UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE
THIAGO CAVALCANTE JERONIMO
FIGURAÇÕES DO ROMANCE DE FORMAÇÃO E RECURSOS
DISCURSIVOS EM UMA APRENDIZAGEM OU O LIVRO DOS
PRAZERES
São Paulo
2016
THIAGO CAVALCANTE JERONIMO
FIGURAÇÕES DO ROMANCE DE FORMAÇÃO E RECURSOS
DISCURSIVOS EM UMA APRENDIZAGEM OU O LIVRO DOS
PRAZERES
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Letras, da Universidade
Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial
para a obtenção do título de mestre em Letras.
Orientadora: Profa. Dra. Aurora Gedra Ruiz Alvarez
São Paulo
2016
Figurações do romance de formação e recursos discursivos em uma aprendizagem
ou o livro dos prazeres
J56v Jeronimo, Thiago Cavalcante.
Figurações do romance de formação e recursos discursivos em uma aprendizagem ou o livro dos prazeres / Thiago Cavalcante Jeronimo – São Paulo, 2016.
121 f. ; 30 cm.
Dissertação (Mestrado em Letras) - Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2016.
Orientador: Profª. Drª. Aurora Gedra Ruiz Alvarez Referência bibliográfica: p. 114-121
1. Lispector, Clarice. 2. Literatura brasileira. 3. Romance de
formação. 4. Bildungsroman. 5. Recursos discursivos. I. Título.
CDD 869.93
À minha mãe – Elaine – pela tal maneira de amar a mim direcionada.
Para Divina – minha avó – meu Céu na Terra.
AGRADECIMENTOS
Ao Deus que é verbo e vive nas minhas orações. Àquele que dividiu o calendário em
dois tempos: antes da vírgula, depois dos dois-pontos.
À minha família, que está bem perto do meu coração: Joaquim, Divina, Elaine (o meu
mundo começou com um sim: a afirmação que a senhora disse à gestação da minha vida
aqui se manifesta, outra vez, em superação), Eliseu, Diego, Stephany e Eduarda.
À minha orientadora, professora Aurora Gedra Ruiz Alvarez, exemplo eficaz e
inspirador de profissionalismo. Se para Clarice Lispector “escrever é abençoar uma
alma que não foi abençoada”, para mim, sua orientação ampliou significativa e
vivencialmente essa premissa: orientar é abençoar. Obrigado pela atmosfera de milagre
que vi nascer em cada sugestão de pesquisa e escrita.
À professora Gloria Carneiro do Amaral e ao professor Ricardo Iannace, membros da
banca examinadora, pela crença, sugestões e afabilidade com que participaram e leram
este trabalho.
Às professoras que me indicaram os primeiros passos às Letras: Marisa Balthasar
Soares e Wilma Rigolon: meu abraço em reconhecimento.
Ao núcleo de professores do programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade
Presbiteriana Mackenzie, e particularmente à professora Neusa Maria Oliveira Barbosa
Bastos, pela compreensão humana a mim direcionada enquanto cursava sua disciplina.
Reitero meus agradecimentos à professora Gloria Carneiro do Amaral pela crença em
meu projeto, convidando-me para expor parte desta pesquisa aos alunos de Letras da
graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie no período de realização deste
estudo.
Agradeço à professora Nádia Battella Gotlib o estímulo que recebi de suas aulas no
curso “Encontros com Clarice”, bem como a leitura do terceiro capítulo desta
dissertação e sugestões.
A todos os meus queridos que me auxiliaram no decorrer dos anos, e em particular aos
amigos que participaram mais de perto do processo desta escrita que aqui se materializa:
Leandro Parreira, Wesley Oliveira e Igor Magalhães; Kátia Medeiros, Sandra Fliess e
Keyla Kenya; Eliana Zuanella, Edson Santos Silva e Wallas Jefferson de Lima; Danielli
Morelli, Luciana Luciani, Camila Concato, Danielle Ojima e Elaine Viacek; Danilo
Castro, Paulo Roberto Farias e Mario Leão; Daniel Frateschi, Mari Pereira, Rita
Barbosa e Aguinaldo Campos; Geruza e Eládio Amado; Mercedes e José Olivar; Inês e
Alana Queiroz; Diógenes de Oliveira, Ivo Yonamine, Lúcio Henrique, Mauro Teixeira,
Lilian Gomes e Meire Mineo.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES – pela
bolsa de estudo.
Agradeço à minha amiga Wilma Rigolon. A história desta dissertação é,
sobretudo, a história de um encontro de vida: a minha vida com os textos de Clarice
Lispector. Encontro intermediado pela competência e amabilidade de sua docência,
minha mãe-de-letras.
Ah, ter de prosseguir nesse aprendizado que se prolonga desde tempos imemoráveis, e
que poderá cessar um dia abruptamente, como uma lâmpada que de repente se apaga, e
muito da tarefa ainda terá restado a ser feita. E isto, sem glória, mesmo a pobre glória de
puramente existir, mas existir integralmente, em todas as direções, com todas as forças,
intensamente. Intensamente, como um grito que leva em si toda a carga, todo o fulgor, o
fulgor da mistura de graça, de acertos e até mesmo de desatinos.
Elisa Lispector
RESUMO
A importância da renovação narrativa trazida por Clarice Lispector é inegável,
não obstante a dificuldade que se interpõe, desde sua estreia, em enquadrá-la nos
protótipos da literatura nacional. Busca-se nesta pesquisa uma intervenção valorativa
acerca do romance Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, um texto em simbiose
com todo o processo escritural da autora. Examina-se a trajetória da protagonista
Loreley na sua busca de ser e estar no mundo, sua construção identitária desencadeada
numa consciência de liberdade íntima e social. As análises interpretativas alcançam a
fortuna crítica de Clarice Lispector; as epígrafes desse romance; a reformulação do
romance de formação alemão – Bildungsroman – à realidade do corpus; as
contribuições de Mikhail Bakhtin acerca dos recursos discursivos inscritos na narrativa
e as variantes do diálogo socrático; a junção do corpo da protagonista em interação com
a natureza.
Palavras-chave: Clarice Lispector. Literatura brasileira. Romance de formação.
Bildungsroman. Recursos discursivos.
ABSTRACT
The importance the Narrative of Renewal brought by Clarice Lispector is
undeniable, despite the difficulty in framing it in the prototypes of the national literature
since her debut. This work searches an evaluative intervention on the novel The
apprenticeship or the book of delight, a text in symbiosis with all the entry process of
the author. It examines the trajectory of Loreley, the protagonist, in her search for being
in the world and her identity construction triggered in an intimate and social freedom
consciousness. Interpretative analyzes reach the critical fortune of Clarice Lispector; the
epigraphs of this novel; the reformulation of the German Novel of Formation -
Bildungsroman - the reality of the corpus; the contributions of Mikahil Bakhtin about
subscribers discursive resources in the narrative and the Socratic dialogue variants; the
interaction with the protagonist's body protagonist with nature.
Keywords: Clarice Lispector. Brazilian literatura. Novel of formation. Bildungsroman.
Discursive resources.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 12
CAPÍTULO 1: A FORTUNA CRÍTICA DE CLARICE LISPECTOR E DE UMA
APRENDIZAGEM OU O LIVRO DOS PRAZERES ...................................................... 15
CAPÍTULO 2: UMA APRENDIZAGEM CONSTANTE: A ESCRITA FORMATIVA
DE CLARICE LISPECTOR .......................................................................................... 37
2.1 AS EPÍGRAFES DE UMA APRENDIZAGEM ........................................................ 40
APOCALIPSE ................................................................................................................ 41
AUGUSTO DOS ANJOS ............................................................................................... 44
PAUL CLAUDEL .......................................................................................................... 47
2.2 O LIVRO DOS PRAZERES E O BILDUNGSROMAN ............................................. 50
2.3 OS RECURSOS DISCURSIVOS NA FORMAÇÃO DA PERSONAGEM LÓRI 63
2.4 AS VARIANTES DO DIÁLOGO SOCRÁTICO EM UMA APRENDIZAGEM OU
O LIVRO DOS PRAZERES ............................................................................................ 67
CAPÍTULO 3: A POÉTICA DO CORPO INTEIRO EM UMA APRENDIZAGEM OU
O LIVRO DOS PRAZERES ............................................................................................ 86
3.1 PRIMAVERA/VERÃO ............................................................................................ 88
3.2 OUTONO ................................................................................................................. 97
3.3 INVERNO ................................................................................................................ 99
3.4 PRIMAVERA ......................................................................................................... 101
CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................... 111
REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 114
DE CLARICE LISPECTOR ........................................................................................ 114
ACERCA DE CLARICE LISPECTOR ....................................................................... 115
GERAL ......................................................................................................................... 119
12
INTRODUÇÃO
Acharam por bem dar-me uma caneta de ouro. Sempre escrevi com
lápis-tinta ou, é claro, à máquina. [...] com caneta de ouro eu cairia
no problema do Rei Midas, e tudo o que ela escrevesse teria a rigidez
faiscante e implacável do ouro? [...] contanto que a caneta escreva,
qualquer uma serve.
Clarice Lispector, A descoberta do mundo
as palavras também têm caminhos por dentro, há que percorrê-los.
Valter Hugo Mãe, O apocalipse dos trabalhadores
Clarice Lispector é a autora que em todo seu processo criativo permitiu que
estudiosos estabelecessem novos conceitos referentes à linguagem literária. Se
comparada à figura mítica de Midas, o rei dotado do poder de transformar tudo o que
estivesse ao alcance de suas mãos em ouro, a escritura clariciana, com seus
desdobramentos inerentes às esferas em que atuou, modificou em amplitude satisfatória
o processo criador da produção literária brasileira à sua época, isto é, de 1943, com o
surgimento de Perto do coração selvagem, seu primeiro livro, até com seus textos
publicados postumamente, 1977, Um sopro de vida, A descoberta do mundo, e tantos
outros textos que têm surgido no decorrer de investigações acerca de suas produções.
Segundo Antonio Candido, a contribuição de Clarice Lispector à literatura
nacional, já em sua estreia, vale-se pelo fato de que a escrita inovadora da autora “[...]
soube transformar em valores as palavras nas quais muitos não vêm [sic] mais do que
sons ou sinais” (CANDIDO, 1970, p. 131). Transformação intrínseca nos romances,
novelas, contos, entrevistas, crônicas, literatura infantojuvenil, textos inclassificáveis
sob a norma vigente de literatura, isto é, em todo o percurso de escrita no qual a
produção lispectoriana se firmou. Desta forma, a ficção da autora passeia por diversos
gêneros literários e discursivos, modificando-os em novidade de sentidos, valorando-os
com significações além de seus paradigmas.
No conto, no romance, na crônica de Clarice Lispector, o caráter fixo
concernente aos gêneros é irrelevante, porque o escrever para a autora brasileira
evidencia uma potência renovadora que não se vinca ao protótipo.
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Clarice tinha ciência de que sua escrita era de cunho transformador1. “Sei que o
romance se faria muito mais romance de concepção clássica se eu o tornasse mais
atraente, com a descrição de algumas das coisas que emolduram uma vida, um romance,
um personagem, etc2. Mas exatamente o que não quero é a moldura” (LISPECTOR,
1999a, p. 271).
Dentro desse processo de narrativas que se erigem para registar o percurso de
uma escritora que ousou ficcionalmente uma postura criativa sem rédeas, convenções ou
“molduras”, pode-se aludir ao seu livro de estreia, Perto do coração selvagem (1943),
bem como ao escrito inclassificável Água viva (1973), alcançando em primazia no
corpus desta dissertação o texto Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres.
A elaboração da presente dissertação tem por objetivo analisar o processo
constitutivo da protagonista de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres,
procedimento de construção identitária que desvela de modo significativo a natureza
peculiar desse romance de Clarice Lispector, publicado em 1969.
Considerado por alguns especialistas como um texto malogrado, se comparado
às obras Laços de família (1960) e A paixão segundo G.H. (1964), o livro que narra a
história de Loreley em uma aprendizagem centrada na personalização de sua
consciência, longe de ser um projeto frustrado dentro do percurso pulsante de Clarice
Lispector, vinca-se como uma obra palimpséstica, em que textos originalmente
publicados no Jornal do Brasil ganham nova dimensão e valor inscritos no romance
clariciano.
Dividido em três capítulos, que se somam à Introdução e às Considerações
finais, este trabalho focaliza a produção ficcional de Clarice Lispector concernente ao
texto Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, com a seguinte estrutura: o primeiro
capítulo, destinado à fortuna crítica da obra da escritora, atém-se à importância da
contribuição literária de Clarice Lispector no panorama da literatura brasileira.
1 Em crônica do Jornal do Brasil, a escritora esclarece: “Bem sei o que é o chamado verdadeiro romance.
No entanto, ao lê-lo, com suas tramas de fatos e descrições, sinto-me apenas aborrecida. E quando
escrevo não é o clássico romance. No entanto é romance mesmo. Só o que me guia ao escrevê-lo é
sempre um senso de pesquisa e de descoberta. Não, não de sintaxe pela sintaxe em si, mas de sintaxe o
mais possível se aproximando do que estou pensando na hora de escrever. Aliás, pensando melhor, nunca
escolhi linguagem. O que eu fiz, apenas, foi ir me obedecendo” (LISPECTOR, 1999a, p. 306, grifo da
autora). 2 Arnaldo Franco Júnior, ao analisar esse excerto, chama atenção à “‘consciência quanto a saber tonar
mais atraente’ o texto, valendo-se de procedimentos e recursos que agradariam uma recepção
automatizada pelo hábito e por uma produção literária que referendasse os paradigmas usuais de crítica,
gosto e recepção do texto literário. Note-se, também, a inflexibilidade quanto a fazer concessões ao
sistema literário, resistência que a escritora manteve até o fim da vida, mesmo quando obrigada a escrever
por encomenda” (FRANCO JÚNIOR, 2003/2004, p. 131).
14
Recuperando as análises críticas que, a exemplo de Antonio Candido, saudaram a obra
de Lispector com prestígio e valoração, este capítulo ressalta o lugar do texto Uma
aprendizagem ou o livro dos prazeres na produção da autora.
O segundo capítulo pontua interpretações acerca das epígrafes referentes ao
corpus – paratextos que desvelam o reportório de leitura da escritora e, ao mesmo
tempo, preludiam o que sobrevirá na narrativa – e analisa Uma aprendizagem ou o livro
dos prazeres como romance de formação, reconhecendo sua gênese no Bildungsroman,
isto é, o romance de formação alemão, mas adaptando-o aos conceitos de romance de
formação feminino. O processo formativo de Loreley, a heroína de Clarice Lispector, é
examinado sob o viés dos recursos discursivos postulados por Mikhail Bakhtin:
solilóquio, diálogo socrático e diálogo no limiar, bem como dos recursos discursivos do
kitsch, conforme contribuições de Arnaldo Franco Júnior, e da ironia, na esteira da
pesquisa de Marcia Lúcia Vianna.
A abordagem do terceiro capítulo sinaliza uma poética do corpo da heroína de
Clarice Lispector. Essa interpretação examina as fases da constituição da protagonista
concernentes aos aspectos temporais da narrativa, isto é, persegue a trajetória de Loreley
que se consolida durante um ano, abarcando as quatro estações. Desta forma, busca-se
uma compreensão de como o corpo da personagem se reorganiza à completude de sua
autoconsciência em simbiose com o fluxo da natureza. O alicerce teórico considera as
sinestesias condizentes às características de Lóri em comparação ao texto bíblico
“Cântico dos cânticos”; as interpretações de Mikhail Bakhtin ao permanente construto
do ser humano, bem como as contribuições de Lúcia Pires acerca da andrógina escritura
de Clarice Lispector: a integração das personagens desse romance. Sublinhe-se ainda
um misticismo heterogêneo à escritura clariciana, isto é, nas letras de Clarice Lispector
o sincretismo religioso tem caráter de “água viva”, flui por entre as diversas religiões,
seja a judaica, a espírita, a cristã, crendices populares etc.
Descritos a proposta desta dissertação, os alicerces teóricos, os processos
metodológicos, assim como a sua organização, passa-se ao Capítulo I.
15
CAPÍTULO 1: A FORTUNA CRÍTICA DE CLARICE LISPECTOR E DE UMA
APRENDIZAGEM OU O LIVRO DOS PRAZERES
Como uma forma de depuração, eu sempre quis um dia escrever sem
nem mesmo o meu estilo natural. Estilo, até próprio, é um obstáculo a
ser ultrapassado. Eu não queria meu modo de dizer. Queria apenas
dizer. Deus meu, eu mal queria dizer. E o que eu escrevesse seria o
destino humano na sua pungência mortal. A pungência de se ser
esplendor, miséria e morte. A humilhação e a podridão perdoadas
porque fazem parte da carne fatal do homem e de seu modo errado na
terra. O que eu escrevesse ia ser o prazer dentro da miséria. É a
minha dívida de alegria a um mundo que não me é fácil.
Clarice Lispector, A descoberta do mundo
Como começar pelo início, se as coisas acontecem antes de
acontecer?
Clarice Lispector, A hora da estrela
Discorrer acerca de Clarice Lispector (1920-1977) pressupõe a análise da vasta
fortuna apreciativa liada ao grande ícone feminino da literatura brasileira. Expoente
ímpar do cânone literário nacional, a obra clariciana agrega qualidades artísticas que
estão além de rótulos e possíveis definições. “Inútil querer me classificar: eu
simplesmente escapulo não deixando, gênero não me pega mais” (LISPECTOR, 1998a,
p. 13), explicita a narradora de Água viva (1973).
Impelida pela vontade de pôr em letras o clímax das sensações vivenciadas por
suas personagens, a experiência pulsante de “estar no mundo”, quer nos contos, quer
nos romances – inclusive no grande acervo de crônicas de sua autoria – depara-se com
“a pobreza da coisa dita”3; a concretização da narrativa, para Clarice, pressupõe uma
experiência incompleta, inenarrável. Segundo a autora, “escrever é um dos modos de
fracassar” (LISPECTOR, 1999a, p. 60). É por isso que o narrador de A hora da estrela,
Rodrigo S. M., expõe: “A minha vida a mais verdadeira é irreconhecível, extremamente
interior e não tem uma só palavra que a signifique” (LISPECTOR, 1998b, p. 11).
Clarice Lispector é uma escritora que conseguiu, ao longo de sua vasta e
precursora carreira literária, percorrer, afirmando-se em renovação, os diversos gêneros
3 “As coisas estão longe de ser todas tão tangíveis e dizíveis quanto se nos pretenderia fazer crer; a maior
parte dos acontecimentos é inexprimível e ocorre num espaço em que nenhuma palavra nunca pisou”
(RILKE, 2013, p. 21).
16
literários. Sua primeira obra publicada foi o repercutido romance Perto do coração
selvagem (1943)4, que lhe rendeu ensaios de alguns dos principais críticos literários
brasileiros da época, uma vez que sua escrita, logo de início, apontava para um abalo
nos alicerces da linguagem ficcional do novo romance brasileiro.
Considerado um divisor na estética literária nacional até então produzida nos
decênios de 1930/1940, Perto do coração selvagem, escrito entre março e novembro de
19425, introduz uma nova maneira de narrar, uma ruptura em que as noções
cristalizadas de tempo, espaço, personagens, a exemplo de José Lins do Rego (1901-
1957) e Jorge Amado (1912-2001), tornam-se subjetivadas ao universo lispectoriano de
narrar, uma vez que o engajamento da escritora é com – e extrapola – a própria
linguagem, como bem observou Antonio Candido. Para o crítico, Clarice fez da
linguagem uma aventura em que “antes de ser coisa narrada, a narrativa é forma que
narra” (CANDIDO, 1996, p. XVIII).
Sucedendo aos romances chamados “regionalistas” e “locais”, de origem,
sobretudo, nordestina e gaúcha, que anos após a Semana de Arte Moderna de 1922
vincaram à escrita brasileira um processo de documentar a realidade do Brasil em tom
de denúncia, num engajamento evidentemente social, mas tendo como mote a
linguagem passiva à linearidade narrativa e ao tema (da miséria e escassez), Perto do
coração selvagem avança numa perspectiva diferenciada de produção literária: o sertão
para Clarice não está condicionado ao local físico, repercute a esfera íntima, tendo como
alcance o universal. Eis aí o diferencial revelador das letras claricianas: um mergulho
nas profundezas do ser. Imersão, com efeito, centralizando a soberania da palavra.
Evidenciando essa premissa, João Guimarães Rosa (1908-1967), nome igualmente
importante e inovador na literatura brasileira, num encontro com a autora de Felicidade
clandestina expôs suas impressões acerca da escrita de Lispector, revelando que lia
Clarice “não para a literatura, mas para a vida” (LISPECTOR, 1999a, p. 135).
4 “Em 1944, aos 17 anos, terminou Perto do coração selvagem, seu primeiro romance. Procurou então o
crítico Álvaro Lins e perguntou-lhe se valia a pena publicá-lo. O crítico pediu-lhe que telefonasse uma
semana depois. Findo o prazo disse-lhe que não entendera o livro e recomendou-lhe que conversasse com
outro crítico. Otto Maria Carpeaux. Ela, porém, não falou com ninguém. Dirigiu-se a uma editora
importante: o original foi recusado. Publicou-o assim mesmo; fez um arranjo com A Noite: não custeou
nada e também não ganhou nada” (BORELLI, 1981, p. 46) Cabe frisar que a 1ª edição de Perto do
coração selvagem data 1943, e não 1944, como pontua Borelli (GOTLIB, 2009, p. 193). 5 “Num de seus depoimentos, Clarice afirma ter levado muito tempo para escrever este romance: uns
cinco anos, no período em que tinha a idade de treze a dezoito anos quando já estava no Rio de Janeiro.
Noutros, afirma que levou doze meses, quando, então, conseguiu fazer e reunir as notas. Afirma ainda que
escreveu o livro durante dez “sofridos” meses, quando era aluna da Faculdade de Direito. E para o
jornalista Ziraldo, que lhe pergunta quanto tempo gasta em cada livro, responde: “Depende. O meu
primeiro livro foi de nove meses. Como uma gravidez”” (apud GOTLIB, 2009, p. 199).
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Carlos Mendes de Sousa orienta a atenção para o não lugar do texto clariciano
no conjunto da literatura produzida no Brasil nos decênios acima pontuados, justamente
por conter, em sua escrita, traços heterogêneos, descontínuos e instáveis, assim como é
a alma humana. Sintetiza que Clarice Lispector “vai aparecer num período em que a
afirmação se fazia via localismo, o qual mesmo quando em articulação dialética com o
universalismo, fazia supor necessariamente a especificação da região” (SOUSA, 2012,
p. 14). Para o pesquisador: “A novidade de Clarice Lispector advém [... da] assunção do
seu lugar a partir de um despaisamento territorial –, esse despaisamento projetar-se-á na
afirmação do território-língua, território devindo escrita” (SOUSA, 2012, p. 17).
O estilo clariciano de narrar, que foge às regras lineares e à passividade de tema,
tem seu viso logo na infância da escritora. Quando criança, ainda no Recife, Clarice se
empenhava em escrever pequenas narrativas, encaminhando-as para a sessão infantil do
Diário de Pernambuco, na expectativa de ter uma de suas histórias publicada no
referido jornal. Desejo que nunca aconteceu. Na crônica intitulada Ainda impossível, a
escritora, que também se debruçou nas narrativas infantojuvenis, publicando cinco
livros direcionados a essa faixa etária, explica o porquê da negação às suas produções:
Eu as enviava para a página infantil das quintas-feiras do jornal de
Recife, e nenhuma, mas nenhuma mesmo, foi jamais publicada. E
mesmo então era fácil de ver por quê. Nenhuma contava propriamente
uma história com os fatos necessários a uma história. Eu lia as que
eles publicavam, e todas relatavam um acontecimento. (LISPECTOR,
1999a, p. 449).
Por transmitir em seus textos “sensações” e não apenas “acontecimentos”,
Bernadete Grob-Lima aponta que Clarice “assimilou de seus antecessores um
procedimento no qual a representação cede lugar à não representação, ao silêncio da
escritura” (GROB-LIMA, 2009, p. 228). É de Clarice que ecoa a afirmação: “Meus
livros, felizmente para mim, não são superlotados de fatos, e sim da repercussão dos
fatos no indivíduo” (LISPECTOR, 1999a, p. 392).
Antonio Candido, um dos primeiros críticos a saudar Perto do coração
selvagem, ao publicar uma resenha crítica meses depois da estreia literária de Clarice,
isto é, início de 1944, reconhece que o livro inaugural de Lispector “[...] dentro da nossa
literatura, é performance da melhor qualidade. [...] O seu ritmo é um ritmo de procura,
de penetração que permite uma tensão psicológica poucas vezes alcançada em nossa
literatura contemporânea” (CANDIDO, 1970, p. 128-129).
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Também sob essa perspectiva, ao citar a estreia impactante da então jovem de
vinte e quatro anos nas letras brasileiras, Massaud Moisés aponta que “[...] Clarice
Lispector vinha renovar e, de certo modo, definir a tendência introspectiva de nossa
ficção dos anos 30” (MOISÉS, 2007, p. 554).
As observações postas em relevo pelos críticos acima estão em consonância com
as impressões que Berta Waldman resgata da fala de Samuel Rawet, ao tecer
considerações acerca da tendência introspectiva batizada nas letras claricianas:
[...] o que ocorre com Clarice é um tipo de consciência particular que
ela tem. Um modo específico e completamente diferente de ver a
realidade. [...] A relação de Clarice com a realidade não é a mesma,
por exemplo, de José Lins do Rego. Não pode ser. José Lins tem uma
relação com a realidade imediata. Um cajueiro é um cajueiro. Uma
fazenda é uma fazenda. Para Clarice, muitas vezes, não é
imediatamente um cajueiro. Ela tem que trabalhar interiormente até
chegar ao cajueiro como cajueiro, na realidade brasileira, é claro
(RAWET apud WALDMAN, 2003, p. XXIV).
E é moldada com essa consciência particular6 que Lispector percorre na escrita
as diversas manifestações literárias em que se firma como escritora: romances, novelas,
contos, crônicas, peça teatral, literatura infantojuvenil, entrevistas, textos sem
classificações definidas, a exemplo do texto poético em prosa Água viva.
Dessa variada produção, foi selecionado para corpus desta dissertação o livro
Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres (1969). Publicado vinte e seis anos após a
aclamação do seu primeiro romance, e cinco anos após a consagração de A paixão
segundo G.H (1964), O livro dos prazeres chega para dar ênfase ao diálogo na produção
clariciana, fato também constatado pela crítica canadense Claire Varin: “Depois do
aprendizado do monólogo pela eremita G.H. no quarto fechado, vem o do diálogo e do
desejo” (VARIN, 2002, p. 146).
No início da década de 1960, Clarice Lispector revigora a atenção da crítica para
si com a publicação de duas grandes obras; primeiramente, o livro de treze contos
saudado com primazia pela academia, Laços de família (1960), que, segundo o escritor
sulista Érico Veríssimo, “[...] é a mais importante coleção de histórias publicadas neste
país na era pós-machadiana” (apud GOTLIB, 2009, p. 360); e a segunda obra, a já
citada A paixão segundo G.H., que, como evidencia Benedito Nunes, no percurso
lispectoriano, esse livro “amplia os aspectos singulares de sua obra, extremando as
6 É de Clarice, no livro póstumo Um sopro de vida, a precisa explanação: “A minha vida tem enredo
verdadeiro. Seria a história da casca de uma árvore e não da árvore” (LISPECTOR, 1999, p. 20).
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possibilidades que nela se concretizam [...] um dos textos mais originais da moderna
ficção brasileira” (NUNES, 1996, p. XXIV). Cabe pontuar que ambas as publicações,
contos e romance, apresentam uma síntese à escritura de Clarice Lispector, “o estado de
graça”, segundo a autora; e em crítica, o termo se reveste da nomenclatura epifania,7
isto é, “o relato de uma experiência que a princípio se mostra simples e rotineira, mas
que acaba por mostrar toda a força de uma inusitada revelação” (SANT’ANNA, 2013,
p. 128).
Sem uma voz dissonante a quebrar a unicidade da crítica, a narrativa de G.H.,
trazida à luz num período sombrio da história do Brasil, uma vez que o país estava
mergulhado no autoritarismo da ditadura, é o ápice da consolidação de Clarice no
cânone literário brasileiro. A narrativa, em primeira pessoa, tem em seu início e em sua
conclusão seis travessões, percurso também observado no livro que aqui é objeto de
estudo, Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, que traz sua introdução marcada
por uma vírgula e seu desfecho assinalado com dois-pontos.
Clarice Lispector dá voz à personagem G.H. para, por meio da paixão da
palavra escrita – paixão no sentido de sofrimento – expor a repercussão do clímax
vivenciado pela protagonista: o confronto com a barata e o desequilíbrio sentido pela
heroína.
G.H., ao colocar a barata em sua boca, traz para si, num percurso ritualístico de
passagem, como já apontado pela crítica, a hóstia sagrada, o corpo de Cristo. Há todo
um aparato emblemático focalizado por Benedito Nunes, O itinerário místico de G.H.
(NUNES, 1995, p. 58), em que o resgate de sua essência se dá, em G.H., por meio da
desestrutura, “da perda do eu” desembocada na solidão e, em última instância, ao
divino.
Impossibilitada de voltar à rotina, G.H. se apossa das palavras tentando
reformular sua vida, “[...] não sei que forma dar ao que me aconteceu. E sem dar uma
forma, nada me existe” (LISPECTOR, 1998c, p. 14). Para tanto, “a personagem, que
chega à visão silenciosa onde o monólogo interior se esgota, inventa, para garantir a
possibilidade da narrativa, a presença de um interlocutor imaginário que finge segurar
suas mãos” (NUNES, 1995, p. 78).
7 Luciana Stegagno Picchio pontua três referências epifânicas em Clarice Lispector: “Epifania
imaginativamente, como revelação através da escritura de algo essencial que inesperadamente se fixa e se
torna visível. Epifania criticamente, terminologicamente, como aparição instantânea e transfiguradora,
com explícita alusão à estética joyceana. Mas epifania, também, metaforicamente, como advento nas
letras brasileiras, tão viçosas de ambientes e de folclore, tão marcadas pelo sol e pelo trópico, de uma
escritura mais esquiva e discreta” (PICCHIO, 1989, p. 17).
20
Ao contrário de G.H., que traz para dentro de sua confissão de sofrimento um
interlocutor imaginário, Loreley, a protagonista do romance Uma aprendizagem ou o
livro dos prazeres, tem seu interlocutor expresso na tessitura do texto, Ulisses, para em
comunhão passarem pelo processo de uma possível felicidade.
Cabe mencionar que, em O livro dos prazeres, há uma supressão no nome da
protagonista, que se apresenta por meio da alcunha Lóri, sendo seu nome em extensão
Loreley, informação que surge ao leitor, a exemplo da revelação do nome de Macabéa,
em A hora da estrela (LISPECTOR, 1998b, p. 43), quando a narrativa já está avançada
em seu fluxo, isto é, nos momentos decisivos do texto. Essa observação será distendida
no decorrer deste capítulo.
Galardoado com o prêmio Golfinho de Ouro8, do Museu da Imagem e do Som,
O livro dos prazeres merece destaque no conjunto da obra da escritora por se tratar de
um texto que inova não apenas os atributos narrativos da moderna ficção brasileira,
mas, como na observação de Benedito Nunes, Uma aprendizagem é “um romance de
romances” (1995, p. 81, grifo do autor), isto é, evoca nesse livro traços marcantes de
todos os livros até então publicados pela autora, um tributo literário, e dialoga com
textos vindouros, a exemplo de Água viva (1973) e A hora da estrela (1977). Acerca
dessa questão, Olga de Sá aponta que “os romances de Clarice dialogam entre si,
levando-nos a concluir que ela realizou, às vezes, nos traços de suas personagens, a
paródia de si mesma” (SÁ, 1993b, p. 181).
Claire Varin articula uma abordagem entre os textos anteriores e posteriores aO
livro dos prazeres, isto é, A paixão segundo G.H. e Água viva unem-se por meio do
romance de 1969.
Se A paixão segundo G.H. constituía uma narrativa, G.H. nos
contando o que havia passado em seu quarto às vésperas, a narradora
de Água viva, dez anos depois, nos fala com as palavras ardentes de
seu presente, nosso presente de leitura. Oferece-nos fragmentos de sua
vida. Mas antes terá sido necessário um aprendizado dos prazeres para
aceitar abandonar-se à liberdade de sentir e pensar. Ao cabo de sua
iniciação, Lóri – tal como a sereia Loreley, que, de seu rochedo, joga-
se no mar – abre via à Água Viva do texto Água viva. [...] O poder da
água informe molda todas as formas (VARIN, 2002, p. 152).
8 Os prêmios ganhos por Clarice foram: Graça Aranha, em 1944, pelo livro Perto do coração selvagem;
Carmen Dolores, em 1956, por A maçã no escuro; em 1967, o Calunga, da Campanha Nacional da
Criança, pela publicação de O mistério do coelho pensante; o Golfinho de Ouro, do Museu da Imagem e
Som (RJ), em 1969, por Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres; no X Concurso Literário Nacional,
da Fundação Cultural de Brasília, em 1976, pelo conjunto da obra; e o Jabuti, em 1978, por A hora da
estrela.
21
A narrativa de Uma aprendizagem expõe a vida recortada de Loreley,
mencionada pela alcunha Lóri, professora primária, numa progressão e amadurecimento
como mulher, processo intrincado para o outro protagonista da história, Ulisses9,
professor de Filosofia, que, como mentor, não mais imaginário se relacioná-lo ao livro
A paixão segundo G.H., é presentificado nessa narrativa com o intento de sugerir a sua
companheira, esta, “autodidata” (LISPECTOR, 1998d, p. 113), o conhecimento e a
identificação de si pelo amor.
Nadia Battella Gotlib, referência crítica nos estudos biográficos e ficcionais de
Clarice Lispector, aponta que a originalidade de Uma aprendizagem não se regula
apenas pelo teor de aprendizagem, uma vez que, como os outros escritos de Clarice, “o
aprender pela desaprendizagem de saberes estereotipados” já é pano de fundo em suas
criações. “Mas esse romance, diferentemente dos demais, narra uma história de
evolução progressiva da mulher que caminha, corajosamente, da dor ao prazer”
(GOTLIB, 2009. p. 491).
É o que pontua Berta Waldman. Acunhado pela crítica de “livro de experiência”,
Waldman esclarece que Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres
se compõe da aprendizagem que nela vai tomando forma. Nisso é
semelhante à A paixão segundo G.H. Mas a aprendizagem aponta em
cada um dos romances para caminhos opostos. Enquanto em A paixão
segundo G.H., G.H. se submete a uma desaprendizagem das coisas
humanas, O livro dos prazeres é uma recuperação corajosa do sentido
da existência humana (WALDMAN, 1992, p. 67).
Se a experiência vivenciada por G.H. a dimensiona à negação “da perda do eu”,
em Lóri, a “sabedoria de que é feita dimensiona-a para a vida humana. A lucidez que
vai adquirindo é tranquila, fora de qualquer espécie de transe” (WALDMAN, 1992, p.
67).
Destarte, O livro dos prazeres, cabe frisar,
pela primeira e única vez, um texto de Clarice situa a entrega amorosa
sem reservas, capaz de conduzir à consciência de si no outro e à
consciência da própria condição social. É fato único, ainda, que o
diálogo tenha a força de aproximar e não separar as personagens
(WALDMAN, 1992, p. 67, 68, grifo da autora).
9 Além de ser o título do livro mais famoso de Joyce, Ulisses é também o nome do cão de Clarice e o
protagonista da história infantil Quase de verdade. Segundo Olga Borelli, Ulisses era o nome de “um
rapaz que ela [Clarice] conheceu na Suíça e se apaixonou por ela. Ele era estudante não sei se de pintura.
E esse Ulisses tinha uma paixão tão violenta, que ele precisou mudar de cidade, ele foi embora. Porque a
Clarice era belíssima, apaixonava as pessoas. E ele foi embora e ela guardou sempre uma recordação. Era
um rapaz louro, de olhos claros. [...] Então, em homenagem a ele, ela pôs o nome de Ulisses no Uma
aprendizagem” (BORELLI, 1987, p. 7-8).
22
Essa aproximação ocasionada pelo diálogo é reconhecida e ampliada por Yudith
Rosenbaum. A crítica pontua que “raros são os finais felizes na obra de Clarice, e
poucas vezes, como nesse caso, o diálogo se efetiva como real comunicação”
(ROSENBAUM, 2002, p. 49). Acrescenta que “além dessa diferença, o romance se
afasta do predomínio da introspecção, marca registrada da autora, para abrir-se a uma
explicitação maior da vida exterior” (ROSENBAUM, 2002, p. 49).
O processo evolutivo de Lóri, tecido numa narrativa polarizada pelo diálogo10
, é
apresentado ao leitor de forma destoante11
de todo o percurso romanceiro da escritora,
ou seja, Clarice narra a evolução de sua personagem valendo-se de um fio condutor
aparentemente perceptível em sua narrativa: progressão e continuidade nos fatos
narrados, dando voz, em diálogo, tanto à protagonista feminina quanto ao protagonista
masculino. O livro dos prazeres, numa primeira leitura rasa, não se isenta dessa
aparente simplicidade de enredo, que, por sua vez, clareia em seus protagonistas, Lóri e
Ulisses, traços caricatos de passividade e pedantismo, respectivamente.
Atendo-se à aparente simplicidade de um enredo linear com personagens
facetados, Vilma Arêas rotula Uma aprendizagem como o livro “malogrado” e
“falhado” de Clarice Lispector. O posicionamento de Arêas é de que “[...] não haveria
erro em se afirmar que Uma aprendizagem é um romance surpreendentemente
malogrado, pois que falhado de modo mais complexo que outros textos, sobretudo se
compararmos com A paixão segundo G.H.” (ARÊAS, 2005, p. 27). Para a crítica, o
ápice da produção clariciana se realiza no livro de 1964; as produções posteriores
seriam os escritos produzidos “com a ponta dos dedos”, metonímia utilizada para
expressar uma desvalorização dessas obras.
Ainda segundo a ensaísta, “o fio por ventura muito explícito da trama” (ARÊAS,
2005, p. 25) e o processo palimpséstico que permeia a escritura de Uma aprendizagem
contribuem para o erro de “tom e composição” que perpassam sua narrativa. “Na
verdade, o erro – de tom e composição – é de tal modo evidente e insistente que acaba
10
Olga de Sá, elencando as contribuições de Benedito Nunes acerca de Uma aprendizagem ou o livro dos
prazeres, conclui que a narrativa em questão “se polariza no diálogo, porque nesse romance duas
consciências se reconhecem e, por fim, se comunicam” (SÁ, 1993a, p. 55). 11
Na pesquisa intitulada Clarice Lispector: A paixão segundo C.L., Berta Waldman pontua que nos
romances claricianos anteriores aO livro dos prazeres, “a utilização do discurso indireto livre e do
monólogo é abundante, enquanto o diálogo, quando ocorre, tem caráter acidental, não chegando a se
constituir no lugar onde dois interlocutores interagem. Em A maçã no escuro, o diálogo, repetidas vezes,
toma até mesmo a forma de uma conversa onde os interlocutores não se ouvem, o que lhe dá uma carga
de incomunicabilidade tal que o faz retornar à situação de dois monólogos cruzados. Contrastando com os
romances anteriores, em Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres (1969), a narrativa está polarizada
pelo diálogo e não pelo monólogo (WALDMAN, 1992, p. 66).
23
por fazer sentido, transformando o livro num jogo claro com regras expostas [...] uma
espécie de extravio ou equívoco envolve o livro como atmosfera” (ARÊAS, 2005, p. 27,
grifo da autora).
O tom errado de Uma aprendizagem, segundo Arêas, seria uma história que se
preocupa em narrar o processo evolutivo da personagem que se desprende da dor para
elevar-se ao prazer por meio de sua autoconsciência desencadeada no outro, uma
história em que a concretização do amor é celebrada; já o erro composicional, em seu
entendimento, ocorre pelo fato de Lispector ter se utilizado de outros textos de suas
produções na tessitura do livro em questão. A ensaísta aborda como negativa a costura
realizada por Clarice, isto é, junção de crônicas no romance. Sua negação alcança até
mesmo a pontuação significativa do O livro dos prazeres: A “pontuação supostamente
vanguardista que abre e fecha o livro acaba por perturbar e banalizar a expressão”
(ARÊAS, 2005, p. 31).
Postos em síntese alguns dos posicionamentos arrazoados por Vilma Arêas, cabe
sinalizar o percurso de Lispector atrelado à esfera jornalística, colocando em relevo
traços de sua produção como cronista junto ao Jornal do Brasil. A coluna semanal do
referido jornal, efetivada de 1967 a 1973, impeliu a escritura de Clarice Lispector, nessa
esfera de escrita, a uma entonação mais pessoal e próxima aos leitores. No entanto, em
diversas publicações, a autora assinalava que o que escrevia não era propriamente
crônica: “Vamos falar a verdade: isto aqui não é crônica coisa nenhuma. Isto é apenas.
Não entra em gênero. Gêneros não me interessam mais. Interessa-me o mistério”
(LISPECTOR, 1999a, p. 379). É evidente a tentativa escapatória de Clarice para o novo
rótulo de sua produção: “Clarice, a cronista.” Em crônica direcionada a Rubem Braga, a
escritora revela que telefonou para o autor, “o criador da crônica, e disse-lhe
desesperada: ‘Rubem, não sou cronista, e o que escrevo está se tornando
excessivamente pessoal. O que é que eu faço?’ E ele respondeu: ‘É impossível, na
crônica, deixar de ser pessoal’” (LISPECTOR, 1999a, p. 381).
Reconhecendo a impossibilidade de se manter neutra às questões de sua vida
pessoal, Clarice oferecia ao leitor de sua coluna textos dos mais variados temas,
relembrando acontecimentos e experiências próprias, mas sem seguir
concomitantemente às formulações intricadas ao gênero crônica12
. Por essa razão, a
12
Evandro Nascimento, em seu livro Clarice Lispector: uma literatura pensante, ao pontuar a forma com
que a autora procedia com suas entrevistas aponta que: “Clarice Lispector [...] mistura forma e registros,
atravessa os códigos, confunde as regras, expõe suas idiossincrasias, desfazendo assim o ingente gênero
24
escritora não só rompeu com o modelo tradicional de crônica ou de coluna opinativa,
como em sua produção jornalística alternou textos pessoais com apontamentos
filosóficos, fragmentos de romances que escrevia na época, entrevistas, e, em última
instância, de forma sucursal, textos que em análise poderiam ser nomeados crônicas.
Ao apresentar a crônica Mal-estar de um anjo, na compilação organizada por
Teresa Montero, Joaquim Ferreira dos Santos resume o processo criador de Clarice
junto à esfera jornalística da seguinte forma:
Clarice, que já não é romancista típica, também se carregava de
estranhezas quando escrevia esses textos rotulados de ligeiros. [...]
Clarice é sempre a palavra inesperada, aquela que não serve para
espelhar uma coisa, uma cena de rua, essas aproximações que o
cronista gosta de ter com o cotidiano. Clarice jamais seria cotidiana.
Há sempre um milagre acontecendo. Ela quer, nos seus romances, nos
seus contos, em “Mal-estar de um anjo” [crônicas], remexer com as
sensações escondidas, desconfortos da alma que não chegam a ter
nome ainda, pois estão sendo anunciados pela primeira vez. [...]
Clarice deixa de lado o descritivo da crônica comum, e mergulha
fundo nas relações com o desconhecido (FERREIRA DOS SANTOS,
2012, p.71-72).
Assim posto, as crônicas publicadas por Clarice evidenciam uma escrita que
foge às regras do gênero jornalístico, algo comum ao estilo da autora, que em seu
processo criativo fez uso de uma linguagem única, transgressora e revitalizadora. O
“mergulho nas relações com o desconhecido”, isto é, uma abordagem própria ao estilo
clariciano, no enfoque recorrente à fala de Ferreira dos Santos, é tensionado em crônica
da própria autora com a seguinte explanação:
[Um amigo disse-me:] escreva qualquer coisa que lhe passe pela
cabeça, mesmo tolice, porque coisas sérias você já escreveu, e todos
os seus leitores hão de entender que sua crônica semanal é um modo
honesto de ganhar dinheiro. No entanto, por uma questão de
honestidade para com o jornal, que é bom, eu não quis escrever tolices
(LISPECTOR, 1999a, p. 113).
Outra vertente da produção jornalística de Clarice Lispector vinculada ao fato de
que, como cronista, a autora não escreveu banalidades, manifesta-se na preocupação que
seu público literário direcionava à romancista Clarice com a seguinte recomendação: Ao
escrever crônicas, “seja você mesma”.
Recomendação publicada por Clarice na crônica Perguntas grandes, com o
seguinte desdobramento:
entrevista, tal como fez com a crônica e praticamente todo tipo de escrita em que pôs as mãos. Tal é sua
atipicidade singular” (NASCIMENTO, 2012, p. 162, grifo nosso).
25
Pessoas que são leitoras de meus livros parecem ter receio de que eu,
por estar escrevendo em jornal, faça o que se chama de concessões. E
muitas disseram: “Seja você mesma.” Um dia desses, ao ouvir um
“seja você mesma”, de repente senti-me entre perplexa e
desamparada. É que também de repente me vieram então perguntas
terríveis: quem sou eu? como sou? o que ser? quem sou realmente? e
eu sou? Mas eram perguntas maiores do que eu (LISPECTOR, 1999a,
p. 180).
As perguntas grandes pontuadas por Clarice Lispector na crônica transcrita neste
corpus evidenciam a preocupação central da narrativa clariciana, seja no âmbito
jornalístico, com seus desdobramentos nas entrevistas que Lispector realizou, seja na
produção dos seus romances, contos e textos inclassificáveis: o ser em constante
indagação a si próprio. Fato, por sua vez, amplamente tensionado na tessitura de Uma
aprendizagem ou o livro dos prazeres.
Os textos Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres e Água viva inserem-se no
período em que Clarice transitava entre a escrita jornalística e literária13
. Edgar Cézar
Nolasco analisa essas duas obras, sinalizando as crônicas reescritas pela escritora na
composição dos textos supracitados. Para o crítico, esse processo palimpséstico,
híbrido, instaura dentro da obra de Lispector “[...] uma prática inteligente da autora de
rearticular seus textos já-escritos e transformá-los em um outro, completamente novo e
diferente” (2001, p. 261).
Sônia Roncador, considerando esse processo de escrita, discorre que
a hibridização de gêneros narrativos, ou a inclusão de crônicas no
espaço da sua ficção literária [... apontam para] o desejo de [Clarice]
manter uma certa coerência estilística, e temática, em sua escrita.
Nesses textos [Uma aprendizagem e Água viva], a autora procura
adaptar suas crônicas às idiossincrasias de sua ficção – não somente
ficcionalizando suas crônicas (ou suprimindo delas o “eu”
autobiográfico), como também adaptando-as às singularidades de sua
prosa artística (RONCADOR, 2002, p. 63).
Reconhecendo a rearticulação proposta por Clarice na tessitura do romance Uma
aprendizagem, e indo a contrapelo do posicionamento vincado numa expressão
incondicional de Vilma Arêas, uma vez que a ensaísta conclui seu posicionamento
negativo acerca de Uma aprendizagem com o vocábulo “amém”, perpassado de
13
Além destes títulos, Uma aprendizagem e Água Viva, durante o período em que foi cronista do Jornal
do Brasil, Clarice escreveu a obra infantil A mulher que matou os peixes; e lançou as antologias
Felicidade Clandestina (1971) e A imitação da rosa (1973), que reuniam contos já publicados. É de 1967
a publicação de O mistério do coelho pensante.
26
disforia, extensa parte da crítica aprecia O livro dos prazeres como um livro inovador
que se soma à produção sólida e pulsante de Clarice Lispector.
Lúcia Helena Viana, refletindo acerca das discussões formais atreladas aO livro
dos prazeres,
[...] como a desenvolvida por Vilma Arêas que o vê “um romance
falhado”, um texto polêmico quanto à composição formal, polêmico
quanto às questões ideológicas, apesar de não se lhe poder negar,
contudo, a condição de texto provocador, transgressor, que coloca em
jogo, como ela afirma, “um novo estatuto do texto literário (VIANNA,
1999, p. 157).
Considera que apesar da rica contribuição para fortuna crítica da autora, as
leituras de Arêas à época das décadas de 1980/1990 “não deram maior relevo à questão
crucial que sustenta esse livro, no qual se ousa desnudar de maneira radical o mundo da
subjetividade feminina” (VIANA, 1999, p. 157). Ainda segundo a pesquisadora,
Clarice ao dar vazão a uma parte do romanesco e da fantasia que
recobre as chamadas histórias de amor, que tanto atraem a afetividade
feminina, abre lugar para que a mulher se pense e pense no homem
como alteridades que precisam atravessar abismos para efetivarem a
possibilidade de um encontro (VIANNA, 1999, p. 167).
Gabriela Ruggiero Nor, refutando, também, o argumento de Uma aprendizagem
ser “um jogo claro com regras expostas”, aponta que a afirmação levantada por Arêas,
dentro do percurso narrativo de Clarice, é redutora e “por mais produtivas que sejam as
contribuições de especialistas para o entendimento de Uma aprendizagem, o incômodo
provocado pelo romance indica a permanência da crítica numa leitura centrada naquilo
que o livro apresenta de mais imediato” (2012, p.107). Isto é, “o suposto fio explícito da
trama”. Nor atém-se aos nomes dos protagonistas para reforçar a discussão levantada
em acerto por Dirce Cortês Ridel, já em 1970, acerca dos elementos paródicos tecidos
na narrativa, isto é, “há distanciamento e diferenças entre o enunciado representado das
personagens e o enunciado do autor”:
A seleção de grande parte das expressões, das construções, das
estruturas frasais são dadas do estilo da personagem Lóri, do seu
romantismo sentimental que vai se despojando dos chavões do
pieguismo ou os vai restaurando na plenitude vital, para atingir outros
lugares-comuns bíblicos que são redimensionados à proporção que a
personagem caminha na sua “aprendizagem” (RIDEL, 1970, p. 139).
27
A partir das reflexões referentes ao teor paródico14
apresentadas por Cortês Ridel
e consideradas por Olga de Sá, Terezinha Goreti dos Santos, ao analisar Uma
aprendizagem ou o livro dos prazeres como romance de formação feminino15
, sinaliza
que diferente do Bildungsroman tradicional, em que a evolução do protagonista
(masculino) e do enredo se caracteriza linearmente, no romance de formação feminino
há momentos circulares, uma vez que o amadurecimento da personagem é consolidado
por epifanias, proporcionando à protagonista avanços e recuos no seu desenvolvimento.
Salienta que o
Bildungsroman é um gênero que dialoga intensamente com o meio
social; portanto, modifica-se com ele. Além disso, o processo de
formação será diferente conforme o protagonista ocupe um lugar mais
ou menos privilegiado dentro do seu grupo social (SANTOS, 2006, p.
43).
Portanto, um Bildunsgroman com protagonista feminino será, evidentemente,
diferente de um masculino.
Tendo por pressuposto teórico a contribuição de Mikhail Bakhtin (2011) acerca
do romance de formação, Goreti dos Santos postula que Uma aprendizagem ou o livro
dos prazeres “corresponde à narração do processo de amadurecimento – à passagem da
infância à adolescência, e desta à idade adulta” (SANTOS, 2006, p. 71).
A aprendizagem vivenciada por Lóri implica, justamente, a passagem de um
estado a outro.
Lúcia Pires, ao analisar a trajetória da heroína na obra de Clarice Lispector,
traçando um paralelo entre Joana, G.H. e Lóri, protagonistas de Perto do coração
selvagem, A paixão segundo G.H. e Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres,
respectivamente, enxerga na união das personagens claricianas a concretude do mito da
Psiqué.
Joana encarnaria o estágio inicial do mito da heroína [pois...] reage
diante da vida de forma muito mais apegada ao instinto do que ao
sentimento ou mesmo à razão. [...] Por força de sua condição heroica,
Joana perde o amor logo após encontrá-lo e é a nostalgia desse
encontro que a guiará pelo sofrimento e pela solidão que se seguirão
[...] G.H. é o mergulho mais profundo com os monstros primitivos,
com a privação, com o delírio. [...] G.H. representa o momento em
que a mulher descobre que, após enfrentar o vale sombrio da morte e
14
Lúcia Helena Vianna defende que a fina ironia e a paródia são recursos recorrentes na obra de Clarice
e, discordando das posições de Márcia Lígia Guidin, que em sua dissertação de mestrado os relega a um
plano secundário, pontua que estes são os principais mecanismos usados em Uma aprendizagem
(VIANNA, 1999, p. 158). 15
Goreti dos Santos dá sequência à pesquisa iniciada por Cristina Ferreira Pinto, que analisou Perto do
coração selvagem com a mesma temática formativa: romance de formação feminino.
28
dele voltar vencedora, sua maior bravura será a desistência – por meio
dela atingirá a grande revelação. Cabe à frágil e incerta Lóri finalizar
esse percurso (PIRES, 2006, 19, 20).
Se atreladas ao mito, Joana vivencia a separação, G.H., a iniciação, e Lóri, o
retorno. Se Joana é aquela que se separa e G.H. é quem se inicia, Lóri é a que
retorna, e de diversas maneiras. De imediato, pode-se dizer que Lóri
retorna para Ulisses ao fim de Uma aprendizagem. Mas, antes de
retornar para Ulisses, Lóri retorna para Lóri como alguém que se
extraviou de si mesma, lançou-se à sua própria procura e se
reencontrou (PIRES, 2006, p. 220).
Na bem articulada hipótese da pesquisadora, tendo em vista que na trajetória de
Lorí a personagem evidencia momentos de separação, iniciação e retorno, isto é,
preenche em si os percursos atribuídos ao mito da Psiquê, “Lóri poderia ser a heroína
clariciana completa” (PIRES, 2006, p. 221),16
pois, “Lóri termina o que as outras duas
começaram e as três se unem em um só destino” (PIRES, 2006, p. 222).
Bernadete Grob-Lima, analisando o percurso das personagens de Clarice
Lispector, ressalta que em Uma aprendizagem o processo de amadurecimento se
consolida porque o amor é reconhecido em autonomia.
O estado de submissão de Lóri é um obstáculo à realização do amor.
Ulisses, o professor de filosofia, não deseja ter ao seu lado uma
mulher que aceita o comando masculino. Seu estado de submissão
intelectual com relação a Ulisses é uma manifestação dos arquétipos
do inconsciente coletivo, dos quais ela terá que se libertar para
assumir a vida amorosa. Ulisses espera, pacientemente, o processo de
personalização da consciência em Lóri; uma paciência vigilante, que
não “queima nenhuma etapa”. Ele respeita o tempo de sua amada,
fundamentando-se na sua própria experiência (GROB-LIMA, 2009, p.
62-63).
O processo de personalização da consciência, configurado no romance Uma
aprendizagem ou o livro dos prazeres no empenho de uma mulher para sobressair-se à
rotina e repetição imposta pelos atributos de uma sociedade patriarcal, dá-se por meio
da experiência amorosa, mas não tem aí seu início e/ou limite; em verdade, “o saber se
efetiva como suporte do prazer”:
Na concepção de Clarice, a realização amorosa depende também do
desempenho mental, expoente do amor autônomo, livre da linguagem
fossilizada da ancestralidade inspirada no código da ética social. Ela
atribui à idealização mútua, assumida corajosamente, um valor que
16
“Essa afirmação não é de forma alguma descabida, pois não há dúvidas de que o percurso de Lóri seja
heroico do começo ao fim e que abarque as três referidas fases: Lóri se separa de suas origens em
Campos, enfrenta sozinha as agruras de sua iniciação no Rio de Janeiro e retorna, pelos braços de Ulisses,
ao destino inicial do qual anteriormente se apartara, de casamento e filhos. Um ciclo completo” (PIRES,
2006, p. 221).
29
engrandece o ser, deslocando-o dos pesares recalcados para uma vida
deliberadamente nova. Através da experiência amorosa, o homem
consegue aceitar-se tal como é, restaurar a linguagem que lhe pertence
e definir sua própria condição. Clarice considera que a experiência
amorosa gera a linguagem que nos anima a examinar as forças que
nos desfalecem quando ouvimos o chamamento de uma inesperada
aurora (GROB-LIMA, 2009, p. 214-215, grifos da autora).
Considerando o saber como meio de transporte para o prazer, isto é, “a
racionalidade não é uma condição oposta ao sentimento”, a protagonista de Uma
aprendizagem é observada por Solange Ribeiro de Oliveira como a única personagem
clariciana que, pouco à vontade num relacionamento com seu companheiro, consegue
vislumbrar em si uma espécie de “Eva futura”, isto é, uma mulher emancipada, em igual
poder de liberdade com seu par, que, antes de sua entrega amorosa/erótica, busca “a
conquista da própria identidade”, por meio da “personalização de sua consciência”.
Fato constatado pela crítica por meio da liberdade que o amor ocasiona aos heróis da
narrativa. “[...] um amor que não exclui, mas amplia a liberdade de ambos”
(OLIVEIRA, 1989, p. 101).
Compete elucidar que a astúcia de um leitor atuante, requisito indispensável,
como bem observa Romilda Mochiuti, terá o fito de delegar a ampliada liberdade
atribuída por Lispector aos seus protagonistas, enxergando não apenas o “desnudar da
intimidade profunda da mulher”, o que já é muito, mas, transcendendo-o, perceberá que
Uma aprendizagem “desnuda e reverte a intimidade profunda da estrutura romanesca,
parodiando ou fazendo uma leitura do avesso das convenções teóricas, do mito e da
mimesis” (MOCHIUTI, 2006, p. 45).
Mochiuti, considerando a maneira descontínua de narrar e a força poética
existente em Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, evidencia “uma reinvenção
contínua de aprofundamento arrebatador na densidade psicológica e na estrutura
romanesca” (2006, p. 46, grifos da autora). Para a pesquisadora, a pontuação de abertura
e fechamento do romance que aqui é foco – uma ruptura visível a qualquer regra ou
convenção –, juntamente com a aparente falha estrutural da obra, que, em sua leitura,
denotam vazios e silêncios, lançam ao leitor uma participação efetiva dentro da
narrativa: “é a ele a quem cabe preencher os vazios, ou antes, dar sentido aos silêncios
que permeiam a obra” (2006, p. 45).
30
Ao nomear Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, por meio de sua
pontuação perceptível, como um romance que é “o meio do caminho”, Mochiuti salienta
que:
A pontuação [...] incialmente é “singular” e significativa, como se
expressasse a cadência poética (travessões, dois-pontos etc.). Os
espaços em branco entre as linhas e os pensamentos cuidadosa e
pretensamente (des)ordenados servem como mecanismo para insinuar
hesitação, pausas, enfim, silêncios significativos que algumas vezes se
verbalizam através da inclusão – referências explícitas – ou exclusão –
referências implícitas (MOCHIUTI, 2006, p. 50).
É de Clarice, em crônica datada de quatro de fevereiro de 1968, Ao linotipista, a
advertência: “Não me corrija. A pontuação é a respiração da frase, e minha frase respira
assim. E se você me achar esquisita, respeite também. Até eu fui obrigada a me
respeitar” (LISPECTOR, 1999a, p. 74).
Constatando que a ampla significação da pontuação utilizada por Clarice no
livro de 1969 vai além da vírgula e dos dois-pontos utilizados na abertura e no
fechamento do romance, respectivamente, tendo seu desdobramento em vazios e
silêncios perpassados na materialidade de todo texto clariciano, Romilda Mochiuti
atribui silêncios, também, ao título duplo do romance: Uma aprendizagem / ou / O livro
dos prazeres, disjunção passível de ser interpretada como uma adivinhação, a resolução
de um enigma, ou ainda, a decisão de escolha por um dos semas, novamente atribuída
ao leitor.
Revisitando as contribuições de Benedito Nunes acerca da desigualdade rítmica,
isto é, “[... a] diferenciação de temporalidade, desde o passado remoto e impessoal, de
onde a personagem vem ao passado próximo de um acontecimento que a instala em sua
intimidade pessoal.” (NUNES, 1995, p. 80), Romilda postula que essa desigualdade
rítmica reflete uma manobra discursiva, viabilizando uma espécie de esfera lábil do jogo
discursivo da aprendizagem, por outro lado, essa cadência rítmica é a identidade da
narrativa que a faz destoar dos seus demais livros. Para a pesquisadora, essa esfera de
indecisão da personagem “é instaurada semanticamente na narrativa enviesada pelos
seus pensamentos, que, como outro ponto de desequilíbrio em convivência com a sua
percepção no começo do romance, viabilizada a aprendizagem ou a leitura do livro”
(MOCHIUTI, 2006, p. 54).
Destarte, Romilda Mochiuti atrela o aprendizado de Loreley não apenas a seu
percurso narrativo posto em letras claricianas, como também por meio da forma com
31
que essa narrativa é estruturada, com suas pontuações (respirações), na sua configuração
de tempo e de espaço, pondo em evidência a participação do leitor em constante atuação
de significações.
Leyla Perrone Moisés observa que:
[...] enquanto escritora, Clarice não acredita nem um pouco na
capacidade da linguagem para dizer “a coisa”, para exprimir o ser,
para coincidir com o real. O que ela queria – ou melhor, “devia”, já
que escrever era, para ela, missão e condenação – era “pescar as
entrelinhas”. O que ela buscava não era da ordem da representação ou
da expressão. Ela operava emergências de real na linguagem,
urgências de ver. Resta ao leitor receber suas mensagens em branco, e
ouvir o que de essencial se diz em seus silêncios (PERRONE-
MOISÉS, 1990, p. 177).
Arnaldo Franco Júnior lê na poética clariciana, sobretudo após a publicação de
Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, a presença do recurso crítico kitsch e/ou
mau gosto. Segundo o pesquisador, a utilização deste recurso discursivo na obra de
Lispector contribui para a abertura de uma nova abordagem para com os textos
publicados após o lançamento de A paixão segundo G.H., enxergando um recurso
crítico da autora em articular sublime e banalidade na materialidade de suas produções.
A identificação dos elementos kitsch presentes na obra de Clarice
Lispector evidencia que [...] ela os utilizava como recurso discursivo
de caráter argumentativo e crítico. Tal fato abre uma nova perspectiva
de leitura dos textos da escritora, sobretudo aqueles que, num primeiro
momento, foram considerados por alguns como fracassos (FRANCO
JÚNIOR, 2000, p. 32, grifo nosso).
Ao analisar a carga do sentido mítico das personagens de Uma aprendizagem,
Vilma Arêas sinaliza que “os nomes dos protagonistas evocam imediatamente figuras
heroicas e proezas extraordinárias impregnadas de significado supostamente profundo,
que se chocam, entretanto, com as situações ligeiras e banais do romance” (2005, p. 32).
Choque que é instaurado quase em uníssono na escrita de Clarice, uma vez que a autora
se utiliza recorrentemente dos atributos do cotidiano como momento revelador para uma
experimentação maior.
A esse olhar apontado para o corriqueiro, àquilo que é simples e por isso mesmo
banalizado, discernindo-o como sumo de uma ascensão necessária, é lícito recorrer a um
excerto da compilação de escritos organizada por Olga Borelli, em que Clarice
Lispector revela seu posicionamento acerca do cotidiano: “[...] os fenômenos naturais
são os mais sobrenaturais de todos” (BORELLI, 1981, p. 56). Com efeito, Loreley, em
32
sua travessia de aprendizagem do prazer, descobre o impossível no possível, o
extraordinário no ordinário.
Em sua pesquisa Do silêncio à liberdade: uma aprendizagem ou o livro dos
prazeres, Renata Tavares filia-se ao pensamento clariciano de que o cotidiano é
passaporte poético para uma nova experimentação de vida, com a seguinte aclaração:
“Impossível e extraordinário significam aqui a apropriação de si mesma. [...] Essa é a
grande experimentação do amor que Lóri viverá: infinito no finito e finito no infinito –
liberdade propriamente dita” (TAVARES, 2012, p. 22). E mais: “A realidade não é algo
estático a ser descoberto e dito em conceitos. É uma essencial disputa do limite no
ilimitado, do ilimitado no limite” (TAVARES, 2012, p. 63).
Centralizando as reformulações existentes no livro clariciano acerca da épica
homérica, bem como o mito da sereia, cabe arrazoar os significados dos nomes dos
protagonistas e seus desdobramentos. Ao jogar luz no nome em extensão de sua
personagem, Clarice acrescenta ao seu texto, intermediado por Ulisses (é Ulisses quem
conduz Lóri ao reconhecimento do seu nome)17
, o seu significado:
Loreley é o nome de um personagem lendário do folclore alemão,
cantado num belíssimo poema de Heine. A lenda diz que Loreley
seduzia os pescadores com seus cânticos e eles terminavam morrendo
no fundo do mar... (LISPECTOR, 1998d, p. 98).
A lenda germânica ligada ao nome de Loreley tem sua origem na região rochosa
do Reno e, portanto, uma das regiões de maior perigo e dificuldades para os barqueiros.
“Este perigo sempre suscitou fascinação e Loreley foi cantada em diversas versões. A
versão mencionada por Ulisses é a do poema “Die Loreley”, de Heine, a partir do qual
tenta explicar a beleza do seu nome” (TAVARES, 2012, p. 58).
Ao leitor atuante, fundamentado em Romilda Mochiuti, cabe o desdobramento
de significações acoplado ao nome de Loreley e de Ulisses, isto é, as possibilidades de
interpretações que o livro em questão evoca e permite para as nomenclaturas de suas
personagens.
Renata Tavares direciona um olhar mais atento às possibilidades interpretativas
que o nome da protagonista Loreley suscita. Sendo mítico, os significados se distendem
em intensidades. É possível agregar à protagonista lispectoriana “[...] significados 17
Carlos Mendes de Souza enxerga no nome de Lóri um anagrama. Segundo o pesquisador, “O nome de
Lucrécia [personagem do romance clariciano A cidade sitiada] deixa entrever um jogo com as letras do
nome “Clarice” que estão lá. Mais elaborado é o jogo que conduz o aproveitamento das letras que
formam o nome da protagonista de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. As letras mais repetidas
(lispector/clarice) levam-nos a Lóri. Loreley ou Lóri é claramente um anagrama” (SOUSA, 2012, p. 556).
33
intensos relacionados à paixão, à sedução, ao perigo, à morte, à busca, ao surpreender-
se, ao render-se” (TAVARES, 2012, p. 57-58).
Sereia. Apaixonada. Perigosa. Mortal. Em busca de. Várias são as possibilidades
que definem Lóri em sua “travessia”, em sua pulsão de estar no mundo. Sobretudo, o
apelo intrínseco à condição humana de Loreley, “sua travessia não é outra coisa senão a
necessidade de corresponder ao apelo de Ser e não-Ser – o mistério de tudo. Lóri não
busca outra coisa senão transformar-se no que é, originando-se, como a vida, daquilo
que ainda não é” (TAVARES, 2012, p. 59).
Ulisses, como mediador desse processo de transformação e aprendizagem, não
por ser presunçoso, mas por já estar em travessia consigo mesmo, possibilita e direciona
a Lóri uma compreensão de ser e estar no mundo. E é refutando o entendimento crítico
de que Ulisses aguça um pedantismo em suas falas, que a pesquisadora complementa:
“Não se trata de uma inteligência de quem adquiriu uma longa experiência intelectual, e
sim de um trato inteligente com a vida, isto é, de uma postura de quem não tenta fugir
dela, mas desvendar seus enigmas” (TAVARES, 2012, p. 61).
Cabe pontuar que o percurso escolhido por Clarice para revelar o nome da
protagonista de sua obra A hora da estrela é semelhante ao que é feito em O livro dos
prazeres, isto é, a revelação do nome de Macabéa pinta-se aos olhos do leitor quando a
narrativa já está avançada em seu fluxo, nos momentos decisivos do texto. A inversão
encontrada no texto de 1977 é que a personagem Olímpico de Jesus, ao perguntar o
nome da datilógrafa, não compreendendo sua sonoridade, impele à personagem a
clarividência de sua nomenclatura. É Macabéa quem complementa a alcunha captada
pelo metalúrgico:
– E, se me permite, qual é mesmo a sua graça?
– Macabéa.
– Maca, o quê?
– Béa, foi ela obrigada a completar. (LISPECTOR, 1998b, p. 43).
Seguindo em sua narrativa, Macabéa diz a Olímpico que não sabe ao certo quem
é. Sabe que tem um nome, “Mas não sei o que está dentro do meu nome” (LISPECTOR,
1998, p. 56).
Ao contrário de Olímpico, Ulisses não só complementa o nome de Lóri, como a
indaga para além da nomenclatura, uma vez que na visão de mundo de Ulisses, em sua
travessia, conforme aponta Tavares, “O nome não basta: há um eu. Há um eu que é e
não é. Eu, portanto, é liminaridade” (TAVARES, 2012, p. 59).
34
Nomear não consegue definir intimamente. É por isso que Macabéa, em diálogo
com Olímpico, põe em foco o desconhecimento do que está dentro do seu nome. É por
isso, também, que Clarice, já na primeira página de Uma aprendizagem ou o livro dos
prazeres, relata a solicitação que Ulisses fez à Lóri: “[...] ele dissera uma vez que queria
que ela, ao lhe perguntarem seu nome, não respondesse “Lóri” mas que pudesse
responder “meu nome é eu”, pois teu nome, dissera ele, é um eu” (LISPECTOR, 1998d,
p. 13).
Assim como Loreley, o nome de Ulisses possui seus desdobramentos. Evocada à
épica homérica, a viagem mítica de Ulisses, galardoada com final feliz, é distinguida
por fortes tempestades que quebram navios, por perigosos acidentes, por monstros
marinhos que ameaçam naufragar as frágeis embarcações e por sereias que, com seus
cantos de sedução, atraem os marinhos para a ruína final, o naufrágio. O Ulisses de
Clarice, na imagem focada por Tavares, “é o barqueiro heroico, capaz de resistir ao
canto de qualquer sereia” (TAVARES, 2012, p. 63).
Por já estar na travessia, Ulisses é o mentor da aprendizagem, é aquele que
consegue desbravar os mares, sublimar suas provações, contornar os apelos de sedução
de Loreley, visando à sua chegada ao litoral acolhedor de sua terra natal.
Inegavelmente, a figura de Ulisses remete à travessia, à busca, ao
retorno para a casa, para a Terra. Remete ainda à fidelidade de nunca
desistir deste retorno. O Ulisses de Clarice demonstra, na busca do
amor, a mesma força e persistência do Ulisses homérico: o
cumprimento heroico de um destino humano (TAVARES, 2012, p.
62).
Ulisses é o mentor que, mesmo embriagado, desvia-se da sedução imposta por
Lóri: “Já tinha sido desejada por outros homens mas era novo Ulisses querendo-a e
esperando com paciência – mesmo quando estava embriagado, o que não lhe tirava o
controle” (LISPECTOR, 1998, p. 41).
Como exemplificado, o episódio mítico de ligação entre os protagonistas
claricianos é o da passagem de Ulisses pelas sereias, na Odisseia:
O herói manda tapar com cera os ouvidos de todos os seus
marinheiros, sendo, porém, o único que escuta o seu canto. Para não
se render, amarra-se ao mastro do navio e manda que os marinheiros
remem o mais rápido possível. [...] Escutar, aqui, é a questão
(TAVARES, 2012, p. 62).
A personagem de Clarice escuta a linguagem verbal e a não verbal evidenciadas
por Loreley: sons e silêncios. A Ulisses compete direcioná-la, em sua travessia, à escuta
35
de si mesma. Sem máscaras, sem maquiagens, sem aparatos de sedução física. E o faz,
esperando:
Foi apesar de18
que parei na rua e fiquei olhando para você enquanto
você esperava um táxi. E desde logo desejando você, esse teu corpo
que nem sequer é bonito, mas é o corpo que eu quero. Mas quero
inteira, com a alma também. Por isso [...] esperarei quanto tempo for
preciso (LISPECTOR, 1998d, p. 26).
Aqui há uma inversão no mito, um desdobramento de significações. Na épica
homérica, é Penélope quem aguarda o retorno de Ulisses, tecendo e destecendo uma
mortalha para seu sogro, na tentativa de murar os gritos de lascívia de seus pretendentes.
Cabe o detalhar de seu nome, que, como clareia Adélia de Meneses:
Penélope: aquela que tece. Seu próprio nome (grego: Penelopéia)
revela sua vocação: ‘pene’, fio de tecelagem e, por extensão, trama,
tecido (daí o nosso pano, do latim, ‘pannus’). E o substantivo grego
“penelope” significa dor. Tudo se explica quando pensamos que ela
vivia na nostalgia (= dor do retorno: ‘nostos’ = volta, ‘algia’ = dor) de
Ulisses, e que o pano que ela tecia (que tem a ver com a morte: era
uma mortalha para Laertes, o pai de seu marido) era a garantia de sua
fidelidade, como que vedava o acesso de sua sexualidade aos
pretendentes que a assediavam. Fidelidade e sedução articuladas
(MENESES apud MOCHIUTI, 2006, p. 63).
Sob esta perspectiva, quem tece, na narrativa clariciana, é Ulisses. Tece
esperando a aprendizagem de Loreley, sua travessia por entre as “trevas geladas”
(LISPECTOR, 1998d, p.45) que a protagonista vivencia no decorrer narrativo.
Enquanto espera, tece uma rede discursiva que mortifica – desconstrói – as convenções
sociais machistas de submissão feminina em que Lóri se encontra inserida, submissão
que é um obstáculo à concretização da aprendizagem.
Ainda sob essa perspectiva de inversão, contrariando a lenda alemã em que a
sereia detém para si o aspecto da sedução, a narrativa clariciana transfere a ação de
seduzir ao professor de Filosofia: “[...] quem seduz você sou eu. Sei, sei que você se
enfeita para mim, mas isso já é porque eu seduzo você” (LISPECTOR, 1998d, p. 98).
Assim posto, os mitos de Ulisses, de Penélope e das Sereias, fabulados na
Odisseia, são revisitados em Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, mantendo ora
os aspectos comuns à narrativa homérica, ora construindo novos sentidos na prosa de
18
No processo criativo de Clarice Lispector, a locução conjuntiva apesar de tem a sua função sintática
inteiramente subvertida pela cadência poética da autora.
36
Clarice19
; com isso, comungam do compasso poético lispectoriano, apontado na obra
por meio de vírgula, dois-pontos, orações iniciadas com letras minúsculas, frases sem
pontos finais, junção de crônicas em seu entrecho narrativo, silêncios estruturais, dentre
outros.
19
A inversão de papéis, criticamente incutida no romance Uma aprendizagem, rompe com o clichê
literário, pedindo ao leitor-atuante o esvaziamento do senso-comum, materializando no texto tensão e
expectativa.
37
CAPÍTULO 2: UMA APRENDIZAGEM CONSTANTE: A ESCRITA
FORMATIVA DE CLARICE LISPECTOR
Demoro a aprender que a linha reta é
puro desconforto.
Sou curva, mista e quebrada,
sou humana.
Adélia Prado, Miserere
Conforme especificado no decorrer do primeiro capítulo, concernente à crítica
acerca de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, o romance publicado em 1969,
dentro do conjunto da obra de Clarice Lispector, evoca em análises literárias alacridades
e contrariedades, isto é, o romance clariciano que narra o desenvolvimento da
personagem Loreley desperta diversas apreciações favorecendo ou não sua concepção.
Atendo-se a essa questão no lineamento crítico levantado na análise inicial desta
dissertação, é possível perfilhar o pensamento daqueles que leram O livro dos prazeres
direcionando-o à definição de literatura “malograda”, uma abordagem “apressada” para
com os atributos poéticos vislumbrados na obra em questão.
Contrapelo a este posicionamento, nomes notáveis vinculados à fortuna crítica
de Lispector contemplam no texto Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres uma
concepção de escrita inerente à poética lispectoriana, um livro que, diante de todo o
processo escritural vislumbrado por Clarice, une-se à somatória da novidade que o
nome da autora representa na literatura nacional.
Olga de Sá, Benedito Nunes, Dirce Cortês Ridel, Nádia Battella Gotlib são
exemplos dos que enxergaram no livro Uma aprendizagem, entre as décadas de 1980 a
1990, “um romance dos romances”, isto é, O livro dos prazeres agrega traços de todos
os romances até então publicados por Clarice: uma escrita constante em inovação20
. Ao
lado destes pesquisadores, nos anos 2000 até o presente momento, encontram-se
20
A Coleção Folha: grandes nomes da literatura, lançada em abril de 2016, dentre os vinte e oito
escritores que a integram, a exemplo de Marcel Proust, Lev Tolstói, Virginia Woolf, Honoré de Balzac,
Alice Munro, Machado de Assis, Herta Muller, elegeu o romance Uma aprendizagem ou o livro dos
prazeres, para compor sua coleção. Manuel da Costa Pinto, acerca dessa escolha, esclarece: “No caso de
autores de língua portuguesa, a coleção inclui [...] obras que expressam os desvãos, os abismos e as
inquietações do sujeito moderno [como] os livros de duas das mais importantes escritoras brasileiras:
Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, de Clarice Lispector, e A obscena senhora D, de Hilda Hist”
(PINTO, 2016, p. 54, 55).
38
Terezinha Goreti dos Santos, Romilda Mochiuti, Renata Tavares, Lúcia Helena Vianna,
Lúcia Pires, para citar alguns exemplos.
Destarte, a apreciação direcionada à história clariciana que narra o
desenvolvimento de Loreley à “personalização de sua consciência” reafirma a qualidade
ficcional que é própria ao universo de Clarice Lispector.
Qualidade observada também pela cantora brasileira Zélia Duncan21
que, ao
estrear uma coluna no jornal O Globo, em meados de 2015, com a crônica “Sou leitora:
desde criança encantada com a mágica das palavras.”, evidencia a surpresa e o fascínio
que Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres lhe proporcionou:
Escrever é uma farsa. Todos sabem e assumem seus papéis, como tem
que ser. Desconfiei disso ao desabar pra dentro de um livro de Clarice
Lispector e me deparar com uma vírgula, antes de qualquer palavra.
Como assim? A história começou, antes que eu abrisse o livro?
Ninguém me esperou? Depois entendi que era uma quebra
fundamental na minha inocência de leitora. Tudo já estava
acontecendo, antes de se revelar. Claro, claríssimo, Clarice? Mas
houve ainda o golpe fatal. Na última página do mesmo livro, depois da
última palavra, lá estavam eles, dois-pontos! Mas o começo me
ensinou a aceitar o fim. Eis a minha participação. O deleite daquela
leitura, enquanto ela durou, contida entre pontuações, que indicavam
continuidade e nunca conclusão, me levou por caminhos que aceito e
procuro. Caminhos sem fim (DUNCAN, 2015).
A pontuação, não apenas em Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, mas
em todo o percurso escritural de Clarice Lispector, numa poética de “respiração da
frase”, aponta para uma quebra nos conceitos normativos da sintaxe e da sinalética, e dá
ao leitor uma narrativa com significados que se ampliam antes e depois da materialidade
do texto.
Atendo-se às significações marcadas e sugeridas no texto em questão, a análise
doravante dará espaço às possíveis interpretações das epígrafes materializadas na
tessitura de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, e, posteriormente, se pautará no
conceito de Bildungsroman, o romance de formação alemão. Acerca deste último
intento, faz-se necessária a compreensão do surgimento do conceito contextualizado à
Alemanha do final do século XVIII até os desdobramentos por que essa narrativa
passou durante os mais de duzentos anos de seu surgimento.
21
O também cantor Caetano Veloso, ao escrever acerca da crônica clariciana “Mineirinho” menciona que,
seu filho, “Moreno, quando tinha 19 anos, leu para mim, com lágrimas nos olhos, longos trechos de Uma
aprendizagem ou o livro dos prazeres. Em todos esses reencontros [com a escrita de Clarice], sempre o
fluxo da vida aflorando por entre as palavras, [...] com intensidade assustadora.” (VELOSO, 2010, p. 26).
39
A análise, por sua vez, focalizará a constituição da heroína Loreley por meio dos
recursos discursivos propostos por Mikhail Bakhtin, na obra Problemas da poética de
Dostoievski, ou seja, os mecanismos de construção da autoconsciência da personagem
tais como o diálogo socrático e solilóquio, tendo por contribuições, ainda, as pesquisas
promovidas por Arnaldo Franco Júnior em relação ao kitsch na obra de Clarice
Lispector, bem como as observações de Lúcia Helena Vianna acerca da ironia,
compreendidos, ambos, o kitsch e a ironia, como recursos discursivos recorrentes ao
romance Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres.
40
2.1 AS EPÍGRAFES DE UMA APRENDIZAGEM
Na obra Paratextos editoriais, o crítico literário francês Gérard Genette
empenha-se na explanação do paratexto. Segundo o teórico, desde a invenção do livro
moderno, as obras literárias nunca se apresentam como um texto neutro, nu, sem o
reforço e o acompanhamento de certo número de produções: vem cercado de um
aparato que o completa e protege, impondo-lhe um modo de usar e uma interpretação
congruentes com o propósito do escritor.
Dessa forma, a apresentação editorial, nome do autor, títulos, dedicatórias,
epígrafes, prefácios, notas, dentre outros, para além de regularem a leitura de um livro,
complementam o sentido do texto literário22
, prolongando-o satisfatoriamente.
Segundo o crítico, paratexto “é aquilo por meio de que um texto se torna livro e
se propõe como tal a seus leitores [...] Mais do que um limite ou uma fronteira estanque,
trata-se aqui de um limiar, [...] de um “vestíbulo”, que oferece a cada um a possibilidade
de entrar ou de retroceder” (GENETTE, 2009, p. 9, 10, grifo do autor).
Dentre as possibilidades analíticas dos paratextos existentes na obra Uma
aprendizagem ou o livro dos prazeres, a atenção neste estudo confluirá às três
epígrafes23
escolhidas por Clarice Lispector para acompanhar o processo de
desenvolvimento de suas personagens: trio de citações que possibilitam ao leitor24
, além
de uma observação quanto ao repertório de leitura – cultural e literário – da escritora,
uma abordagem concisa e, ao mesmo tempo, ampla de significações do texto principal,
isto é, O livro dos prazeres.
A definição, grosso modo, de Genette para o paratexto epígrafe vai de encontro
às interpretações comuns do vocábulo: “uma citação colocada em enxergo, em
destaque, geralmente no início de obra ou de parte de obra: “em destaque” significa
literalmente fora da obra, o que é uma coisa exagerada” (GENETTE, 2009, p. 131, grifo
do autor). O vocábulo em destaque, fora, é o termo ressignificado por Genette. Para o
crítico, a epígrafe, isto é, “o enxergo é mais uma borda da obra, geralmente mais perto
do texto” (GENETTE, 2009, p. 131, grifo do autor).
22
“Digo textos, e não somente obras, no sentido “nobre” da palavra: pois a necessidade de um paratexto
impõe-se a toda espécie de livro, mesmo que não tenha nenhuma intenção estética, ainda que nosso
estudo se limite aqui ao paratexto das obras literárias” (GENETTE, 2009, p. 11). 23
A epígrafe tem a função de acompanhar o texto para projetar nele formas de leitura, mas a epígrafe
pode também funcionar como comentário do texto, inscrevendo-se numa tradição de paratextos
enigmáticos nos quais a significação só se esclarece ou se confirma pela leitura do texto. 24
Estando coligada ao texto principal, “epigrafar é sempre um gesto mudo cuja interpretação fica a cargo
do leitor” (GENETTE, 2009, p. 141).
41
Desta forma, a análise das epígrafes do sexto romance de Clarice Lispector,
consideradas neste estudo como borda do romance, são paratextos “em estado de
dicionário” (DRUMMOND, 2012, p. 12), ou seja, delegam interpretações ao leitor25
para uma compreensão ainda mais rica da produção articulada da escritora brasileira.
APOCALIPSE
Três são as epígrafes escolhidas por Clarice Lispector para, possivelmente,
nortear a compreensão de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres.
A primeira é uma referência explícita ao texto cristão oriundo do livro escrito
pelo apóstolo João, intitulado Apocalipse, isto é, O livro da revelação.
Depois disto olhei, e eis que vi uma porta aberta no céu, e a primeira
voz que ouvi era como a trombeta que falava comigo, dizendo: sobe
aqui, e mostrar-te-ei as coisas que devem acontecer depois destas.
APOCALIPSE, IV, 1.
A explanação recorrente ao nome Apocalipse, encontrada na Bíblia Sagrada
King James, assevera que:
A expressão grega apokalipsis “revelação”, significa literalmente
“tirar o manto”, isto é, “descobrir”, “tornar claro algo obscuro”, “à luz
da compreensão”. Aqui a mensagem (revelação) vem de Cristo, por
meio de um “anjo intermediário”, e é ministrada a João através de
símbolos, que é o sentido do termo grego semaiño “significar”,
“expressar” (ensinar por simbologia). Essa compreensão nos leva à
chave da interpretação geral deste livro: Ensinamento simbólico
(BÍBLIA SAGRADA, 2012, p. 2467).
Ao nome Apocalipse, além de revelação, é possível atrelar o sentido de profecia,
discurso assustador, nebuloso, obscuro, uma vez que, com sua simbologia26
, seus
desdobramentos acerca dos últimos dias se tornam incontáveis.
A finalidade recorrente ao livro cristão é alertar os crédulos acerca das
dificuldades que a comunidade cristã enfrentaria naquele tempo, bem como incentivá-
25
“Chega mais perto e contempla as palavras. / Cada uma / tem mil faces secretas sob a forma neutra”
(DRUMMOND, 2012, p. 12). 26
Como na época de João, as autoridades políticas e militares dominantes começavam a impor o chamado
“culto de adoração ao imperador”, o apóstolo sente a necessidade vital de encorajar os cristãos a se
manterem fiéis e leais a Jesus Cristo. Por vários motivos, incluindo o cultural (o estilo literário peculiar),
o místico (a obra é fruto de uma experiência de êxtase espiritual), e o da segurança (era fundamental que a
mensagem chegasse às igrejas sem a censura ou o bloqueio do exército romano). Por estas razões o
discurso está aqui delineado sob símbolos, metáforas e ilustrações diversas.
42
los a guardar sua fé em Cristo Jesus, resistindo às provações terrenas e mantendo firme
a esperança de que o retorno27
messiânico, a segunda vinda de Cristo, não tardaria.28
É
válido clarear que, a volta de Cristo, pautada no livro de João, engloba a profecia de,
após o cumprimento das perseguições e catástrofes apocalípticas, “[...] novo céu e nova
terra” (APOCALIPSE, 21: 1), isto é, uma renovação a toda existência.
Como supramencionado, o mito de Ulisses e Penélope, na Odisseia, tem em seu
fluxo e contexto o retorno do herói a Ítaca, isto é, ao reencontro com sua esposa.
Penélope, esperançosa para rever Ulisses, tece e destece a mortalha de seu sogro,
resistindo aos apelos de seus pretendentes.
As palavras postas em negrito evidenciam uma correlação de sentidos às três
narrativas – homérica, bíblica e clariciana –, a resistência (provação) desencadeada no
retorno (recompensa).
Focalizando as escrituras reveladas ao apóstolo João, é válido destacar dois
versos que são emblemáticos no texto sagrado: “Quem tem ouvidos ouça o que o
Espírito diz às igrejas” (APOCALIPSE 2: 11) e “Quem vencer herdará todas as coisas”
(APOCALIPSE 21: 7).
Um verso do Apocalipse que contém as duas expressões, como impulso
encorajador aos cristãos que sofreriam perseguições, é distendido na profecia
retransmitida por João da seguinte forma: “Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz
às igrejas: Ao que vencer darei eu de comer do maná escondido, e dar-lhe-ei uma pedra
branca, e na pedra um novo nome escrito, o qual ninguém conhece senão aquele que o
recebe” (APOCALIPSE 2: 17, grifo nosso).
O livro da revelação, em síntese, pressupõe em seu discurso uma ordem à Igreja
Primitiva: ouvir.
Como já mencionado, Ulisses é aquele que terá que ouvir tanto o canto de
sedução instaurado por Lóri, como o seu silêncio. Ulisses ouve e possibilita, como
mentor, um suporte necessário à aprendizagem de Loreley, e esta também terá que se
ouvir. Ouvir sua condição humana. “Deus ouve, mas eu me ouvirei?” (LISPECTOR,
1998d, p. 378), mas compete a Ulisses, inicialmente, a dimensão profética atrelada ao
27
“A palavra “apocalipse” tornou-se um termo técnico para a igreja primitiva e passou a designar a
manifestação gloriosa de Jesus Cristo, o Messias, no final dos tempos. Portanto, o “apocalipse” é a
“revelação” da pessoa do Senhor Jesus Cristo como Redentor do mundo e conquistador único e absoluto
do Mal em todas as suas formas e expressões” (BÍBLIA SAGRADA, 2012, p. 2463). 28
É válido marcar que os cristãos primitivos, aguardavam a volta de Cristo naquela época, fato reiterado
por João à igreja em Filadélfia: “Eis que venho sem demora; guarda o que tens, para que ninguém tome a
tua coroa” (APOCALIPSE 3:11).
43
novo nome que, após sua aprendizagem, a protagonista Lóri herdará. É por isso que no
parágrafo de abertura de Uma aprendizagem a busca de uma nova identidade é posta em
evidência: “Ele [Ulisses] dissera uma vez que queria que ela, ao lhe perguntarem seu
nome, não respondesse ‘Lóri’ mas que pudesse responder ‘meu nome é eu’, pois teu
nome, dissera ele, é um eu” (LISPECTOR, 1998d, p. 13).
E é no terceiro parágrafo do romance que a busca de um novo nome, em um
sentido profético, é claramente aludida ao divino: “Deitada na palma transparente da
mão de Deus, não Lóri mas o seu nome secreto que ela por enquanto não podia
usufruir” (LISPECTOR, 1998d, p. 14).
Aqui, o “por enquanto” pode ser considerado o meio do caminho da
aprendizagem, que é a forma como o romance clariciano é estruturado, e é somente após
o desfecho simbólico do romance que, se relacionado ao sentido de “novo céu e nova
terra”, a expressão apocalíptica tem seu significado: “as coisas que devem acontecer
depois destas”.
Por consequente, no processo narrativo de Uma aprendizagem, da vírgula aos
dois-pontos, Ulisses terá que silenciar sua voz professoral e ouvir. Loreley silenciará
seu canto e voz, despojando-se de “roupas” e “maquiagens” para iniciar um novo ciclo
de vida.
Ouvir pressupõe um impulso para que a protagonista consiga se reconhecer não
mais no nome contido no seu registro de nascimento, Loreley, mas ao que está dentro
do seu nome, ao “eu” que requer passagem.
Olga de Sá, ao analisar Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, marca,
justamente, a audição apontada a Ulisses como passaporte para uma nova possibilidade
de vida:
[...] deixando suas máscaras de pintura, ela [Lóri] acede à via do
conhecimento amoroso, corpo a corpo com a vida. Ulisses, o
professor, cala a sua voz didática e se rende ao silêncio das palavras,
para esperar o amadurecimento das estações. São elas que marcam o
tempo vivo da aprendizagem (SÁ, 1993a, p. 336).
É com teor profético que Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres tem seu
desfecho. Os dois-pontos, considerados uma sequência na narrativa, compostos de
significados delegados a um leitor atuante, evidenciam, também, “as coisas que devem
acontecer depois destas”, isto é, possivelmente, “novo céu e nova terra”, uma novidade
de vida condicionada à audição.
44
AUGUSTO DOS ANJOS
A segunda epígrafe marca uma estrofe do poema “Monólogo de uma sombra”,
do poeta paraibano Augusto dos Anjos29
. Clarice reformula o poema em Uma
aprendizagem ou o livro dos prazeres, isto é, transcreve o texto de forma a eliminar
versos inteiros da estrofe escolhida, bem como palavras dos versos acolhidos.
Evidentemente, essa reformulação acarreta um novo significado poético que vai de
encontro ao postulado pelo poeta. Se no poeta a morte é finitude, em Clarice a morte se
reveste de uma possível novidade de vida. No texto clariciano, a estrofe que, em seu
registro oficial tem seis versos, aparece com apenas três:
Provo
Que a mais alta expressão da dor
Consiste essencialmente na alegria
Já o texto fonte, que abre o único livro de Augusto dos Anjos, Eu, tem sua
estrofe com o seguinte registro:
Provo desta maneira ao mundo odiento
Pelas grandes razões do sentimento,
Sem os métodos da abstrusa ciência fria
E os trovões gritadores da dialética,
Que a mais alta expressão da dor estética
Consiste essencialmente na alegria (ANJOS, 2016, p. 90).
Um dos temas recorrentes ao poeta paraibano Augusto dos Anjos é a
degradação, a precariedade humana. Em seus poemas, a linguagem é trabalhada dando
vazão a um pessimismo extremo desencadeado em uma musicalidade poética, atributos
que corroboram para uma nova expressividade na poesia brasileira.
Alfredo Bosi pontua que Augusto dos Anjos “[...] entre Cruz e Sousa e os
modernistas”, é “o mais original dos poetas brasileiros” (BOSI, 2006, p. 287). Para o
crítico, essa posição “deve-se ao caráter original, paradoxal, até mesmo chocante, da sua
linguagem, tecida de vocábulos esdrúxulos e animada de virulência pessimista sem
igual em nossas letras” (BOSI, 2006, p. 288). Pessimismo, de acordo com o
29
Augusto Carvalho Rodrigues dos Anjos (1884-1914).
45
pesquisador, semelhante ao do filósofo alemão Arthur Schopenhauer30
“[...] que
identifica na vontade-de-viver a raiz de todas as dores” (BOSI, 2006, p. 289).
A ficção de Clarice Lispector ora adere, ora se contrapõe ao pensamento de
Schopenhauer31
. A pesquisadora Bernadete Grob-Lima, ao estabelecer vínculos entre o
pensamento do filósofo alemão com os textos claricianos, esclarece:
[... A ficção clariciana] concorda com a premissa do filósofo de que
não existimos para sermos felizes, o máximo “bem-estar” que
podemos alcançar na vida é o de contemplar as experiências superadas
com o poder de nossas próprias forças. [...] Para Clarice, superar as
adversidades da vida com o poder de suas forças é um privilégio
daqueles que sabem aplicá-las adequadamente. Isso implica o domínio
da linguagem como meio de persuasão das potências transformadoras
do homem (GROB-LIMA, 2009, p. 229-230).
Com efeito, as personagens de Clarice Lispector “[...] vivenciam o bem-estar no
âmbito da luta; o verdadeiro prazer está em sentir o poder de suas forças, empregando
todos os meios para encontrar a situação apropriada ao exercício delas” (GROB-LIMA,
2009, p. 169). Clarice atribui à protagonista de Uma aprendizagem a necessidade de,
por meio de suas angústias, enfrentar a dor para concretude de uma nova possibilidade
de vida. O contraste ao poema de Augusto dos Anjos e ao pensamento filosófico de
Schopenhauer se dá porque em Clarice o enfrentamento da dor ocasiona um novo pulsar
de vida. Sob essa premissa, a recusa da dor, em Lóri, ocasiona a impossibilidade da
aprendizagem. “Pensou: eu nunca tive a minha dor. Por falta de grandeza, sofrerá
suportavelmente tudo o que nela havia a sofrer. Mas agora sozinha. [...] Angústia
também era o medo de sentir enfim a dor” (LISPECTOR, 1998d, p. 66-67).
Lóri é a personagem de Clarice que “[...] reunia toda a sua força para parar a dor.
Que dor era? A de existir? A de pertencer a alguma coisa desconhecida? A de ter
nascido?” (LISPECTOR, 1998, p. 49). Indagações narrativas que culminam num
excerto que é ponto chave para compreender a hesitação da personagem: “A vida inteira
tomara cuidado em não ser grande dentro de si para não ter dor” (LISPECTOR, 1998d,
p. 56).
30
Em sua teoria, Schopenhauer atribui o sofrimento humano à incessante vontade de vida, ao desejo que,
uma vez satisfeito, apenas resultará em novos desejos. É a falta do objeto de desejo a causa das dores
humanas. Definida a vontade como força metafísica e irresistível, a controlar os impulsos sexuais e as
outras manifestações de vida e de morte, no mundo orgânico e inorgânico, o homem aparece como
simples joguete manipulado por forças perversas, capazes de submetê-lo aos seus caprichos. É esse o
grande drama da existência (MACEDO, 2006, p. 60). 31
[... Schopenhauer] não crê na regeneração de uma índole corrompida. Em contrapartida, Clarice
descobre que a linguagem dos desejos que animam o psiquismo humano empreende mudanças no querer,
despertando no ser um desejo de criar nova vida (GROB-LIMA, 2009, p. 230).
46
É possível estabelecer um contraponto entre as epígrafes até aqui analisadas. Se
na primeira o tema apocalipse, revelação, é pano de fundo, na segunda, a escuridão tem
seu espaço perceptível. Em “Monólogo de uma sombra”, a escuridão (sombra) é
acolhida de forma a marcar a degradação física humana, abrindo o livro do poeta
paraibano para uma abordagem que tem como tema uma nova expressão estética
condicionada à dor, à morte, ao universo das sombras.
“Monólogo de uma sombra”, como já referido em seu título, tem como voz
poética as ponderações pessimistas de uma sombra acerca da degradação humana, a
decomposição da matéria. O início do poema é grafado com aspas, pontuação que terá
seu desfecho somente na vigésima-oitava estrofe, o que confere ao discurso do eu-lírico,
propriamente dito, apenas as três estrofes finais do poema.
Cabe evidenciar que Clarice Lispector recria significados ao marcar em sua
epígrafe, reformulado, o texto de Augusto dos Anjos: “A mais alta expressão da dor
estética”, tornar-se “A mais alta expressão da dor”. A retirada do sema “estética”
possibilita uma amplitude de significados correlacionados ao sofrimento. Sendo assim,
a dor em Clarice não é restrita aos atributos artísticos, mas tem seus desdobramentos no
ser humano.
Augusto dos Anjos, como considerado nesta dissertação, postula um pessimismo
chocante em seus poemas, entretanto, “Monólogo de uma sombra”, cabe frisar, abre
passagem para uma expressão otimista sujeita à dor estética, isto é, à arte.
Clarice, em sentido contrário de uma sombria articulação pessimista, que tem
como negativa a desarticulação humana para com a vida, isto é, ao fluxo contínuo de
satisfações versus insatisfações, pontua na voz de Ulisses o significado atrelado à
reformulação do poema de Augusto dos Anjos:
Na desarticulação haverá um choque entre você e a realidade, é
preferível estar preparada para isso, Lóri, a verdade é que estou
contando a você parte do meu caminho já percorrido. Nos piores
momentos, lembre-se: quem é capaz de sofrer intensamente, também
pode ser capaz de intensa alegria (LISPECTOR, 1998d, p. 98-99).
A desarticulação, processo comum às personagens de Clarice Lispector,
possibilita a experiência epifânica, a passagem de um estado ao outro. É por isso que ao
final do livro, após a entrega mútua corporal dos protagonistas, o sofrimento expresso
na narrativa não é o da dor, mas as personagens sofrem dessa vez “de vida e de amor”
(LISPECTOR, 1998d, p. 159). Um novo processo é instaurado.
47
PAUL CLAUDEL
A terceira epígrafe é marcada em itálico na língua francesa e tem em seu registro
a informação de que sua autoria é atribuída ao Oratório de Paul Claudel para a música
de Honneger, Jeanne d’Arc au bucher.32
Segue inscrição:
Jeanne: Je ne veux pas mourir! J’ai peur!
...
Il y a la joie qui est la plus forte!
Pela tradução33
da epígrafe, pode-se correlacionar o texto de Claudel à
reformulação do poema de Augusto dos Anjos marcada por Clarice, isto é, por meio do
sofrimento, enfrentando-o, nasce a possibilidade de um novo ciclo de vida.
Joana: Eu não quero morrer! Eu tenho medo!
...
Há a alegria que é a mais forte!
É possível sintetizar a complexa, simbólica e mitológica figura histórica de
Joana d’Arc da seguinte maneira: Joana34
, ainda criança, ouvia vozes que a direcionam
à missão de libertar a França dos invasores ingleses; embora fosse mulher, liderou um
exército, coroou o seu rei e teve um destino trágico: foi queimada viva como herege.35
Ao registrar em seu texto como epígrafe três versos do Oratório dramático de
Paul Claudel, que principia a história de Joana d’Arc pelo fim, isto é, da morte para a
vida, Clarice acolhe frases soltas do drama para formar sua citação. Embora os três
32
Joana d’Arc entre as chamas. 33
A tradução da obra de Claudel no Brasil é atribuída a Dom Marcos Barbosa. O tradutor, em seu
prefácio à edição brasileira, afirma que Joana d’Arc “não é apenas um episódio francês; ela pertence
também à história da Igreja e do mundo.” (BARBOSA apud CLAUDEL, 1963, p. 9). Ao sintetizar a
biografia de Joana d’Arc, Barbosa define sua vivência como “[...] a epopeia da pastorinha que arranca aos
invasores ingleses várias cidades da França, leva o Delfim a Rheims para ser sagrado, e morre, afinal, nas
mãos dos ingleses e seus aliados, queimada como feiticeira” (BARBOSA apud CLAUDEL, 1963, p. 9-
10). 34 Sublinhe-se que a primeira heroína de Clarice Lispector, apresentada em Perto do coração selvagem, é
nomeada Joana. Olga de Sá cria um vínculo comparativo entre a Joana de Clarice e a Santa Joana. Após
analisar a carga semântica das palavras que designam os quatros elementos no romance inaugural
clariciano (terra, fogo, ar e água), a crítica compara a heroína de Clarice Lispector à Joana d’Arc, ambas
ligadas à audição: “Joana d’Arc ouvia vozes, que não entendia e guiaram seu destino. Joana d’Arc, por
que não? Uma Joana d’Arc da ficção, atormentada pelas próprias fantasias, invenções de palavras, de
vozes, que foram seu brinquedo desde a infância” (SÁ, 1993a, 231). 35 Cabe a citação da leitura de Affonso Romano de Sant’Anna acerca do processo criativo de Clarice
Lispector: “Clarice, aquela que se deixou incendiar na fogueira da linguagem” (SANT’ANNA, 2013, p.
26).
48
versos estejam acoplados à última cena do drama, isto é, à décima primeira cena,
Clarice em sua epígrafe reformula-os, como fez com o poema augustino.
Abaixo é possível constatar que a fala do Povo foi subtraída por Clarice na
abertura de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres.
Joana: – Eu não quero morrer!
O povo, numa só voz: – Ela diz que ela não quer morrer.
Joana: – Eu tenho medo! (CLAUDEL, 1963, p. 112).
O terceiro verso, “Há a alegria que é a mais forte” (CLAUDEL, 1963, p. 117),
transcrito por Clarice na reformulação de sua epígrafe, possui desdobramentos no
Oratório dramático.
A princípio não é de Joana a afirmativa de que existe uma alegria mais forte que
a morte. É de uma “Voz36
”, primeiramente, a marcação no texto dramático de que a
alegria que é mais forte. Sua afirmativa é completa da seguinte forma: “Voz: – Há a
alegria que é mais forte! Há o amor que é mais forte! Há Deus que é mais forte”
(CLAUDEL, 1963, p. 117).
Metaforizando o rompimento de correntes por Joana, logo após a fala dessa Voz,
inicia-se o posicionamento de liberdade da heroína, liberdade condicionada à morte.
Após o rompimento com suas amarras que a protagonista de Claudel une sua afirmativa
à fala da Voz: “Joana: – Eu vou! Eu vou! Eu estou indo! Eu quebrei as correntes! Eu
parti! Há a alegria que é mais forte!” (CLAUDEL, 1963, p. 117, grifo nosso).
Joana quebra as correntes, que, conforme a voz narrativa “[...] prendiam Joana a
Joana. [...] as correntes que prendiam a alma ao corpo” (CLAUDEL, 1963, p. 117).
Após a morte física de Joana, Claudel deixa evocar, já no final de seu Oratório, a voz da
própria Joana: “– Há o amor que é mais forte! Há Deus que é mais forte” (CLAUDEL,
1963, p. 117).
Alegria, amor e Deus, de acordo com o teatro de Paul Claudel, são os elementos
consoladores que tornam o sofrimento suportável.
Ao compasso dos preceitos cristãos, já sinalizados na análise da primeira
epígrafe, a vida eterna é condicionada à morte. Sendo assim, a decomposição física não
é condição de término existencial para a doutrina cristã. Fato alicerçado por meio das
36 São seis as personagens do drama Joana d’Arc entre as chamas: Joana, São Domingos, A Virgem,
Porcus, Santa Catarina e Santa Margarida. Justapostas às vozes destas personagens, há vozes que se
fundem ao drama: O coro, A voz, Vozes de criança, Vozes, O Povo, Vozes no céu, etc.
49
palavras de Cristo em que a morte é vencida pela ressureição: “Quem crê em mim,
ainda que esteja morto, viverá” (SÃO JOÃO, 11: 25). Joana d’Arc, cristã, por ter essa
premissa atrelada à sua fé, mesmo debaixo de tortura psicológica e física, manteve sua
convicção de ressureição, esperança vincada ao cristianismo.
Sob esse aspecto, é possível frisar a possibilidade de um novo patamar de vida
após o ciclo de sofrimento, de intensa dor e morte. Não seria esse um possível percurso
também incrustado no texto A hora da estrela, em que a autora mortifica a personagem
Macabéa, “grávida de futuro” (LISPECTOR, 1998b, p. 79), numa ascensão epifânica
(pós-atropelamento) de um novo estado de vida?
Postulada como herege, Joana d’Arc teve seu nome retratado após quinhentos
anos de sua morte pelo poder máximo da Igreja Católica, o Papa Bento XV, que a
reconheceu como mártir da fé, canonizando-a como santa dessa instituição religiosa.
A protagonista de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, ao contrário de
uma canonização mística – uma vez que a corrente narrativa em Clarice se manifesta
por meio da condição humana – vivencia por meio de uma “mortalha narrativa”, isto é,
o constante limiar de suas experimentações, a possibilidade de criar um novo desejo de
vida.
50
2.2 O LIVRO DOS PRAZERES E O BILDUNGSROMAN
Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, obra publicada pelo escritor
alemão Goethe, entre os anos de 1795 a 1796, é o protótipo do que em crítica literária se
denomina Bildungsroman, isto é, romance de formação.
Publicada na Alemanha no final do século XVIII, a obra de Goethe marca um
novo processo de narrativa, é a consolidação do romance como gênero “digno”37
, bem
como o registro histórico dos anseios da classe burguesa que chama para si um ideal de
desenvolvimento pautado numa possível inserção social. Conjecturada a essas duas
observações, a origem do Bildungsroman vincula-se inclusive à elaboração do registro
historiográfico literário alemão, que tem na obra do “príncipe dos poetas” o desejo de
uma arte de caráter nacional.
Analisando o esforço historiográfico pela atribuição de um caráter nacional à
literatura de expressão alemã, a afirmação do romance como gênero “digno” e a
reivindicação burguesa de uma autonomia ante a esfera social vigente, a pesquisadora
Wilma Patricia Maas pontua que:
[O Bildungsroman é] uma forma literária de cunho eminentemente
realista, com raízes fortemente vincadas nas circunstâncias históricas,
culturais e literárias dos últimos trinta anos do século europeu.
Compreendido pela crítica como um fenômeno “tipicamente alemão”,
capaz de expressar o “espírito alemão” em seu mais alto grau (MAAS,
2000, p. 13).
Considerando o aspecto morfológico do termo Bildungsroman, dois termos
coexistem no vocábulo. Justapostos, em uma primeira abordagem de significação,
Bildung é facilmente traduzido por formação, e, por sua vez, Roman, filia-se à acepção
de romance: romance de formação, essa é a nomenclatura com maior recorrência ao
protótipo aludido à obra de Goethe.
Diacronicamente, porém, os dois verbetes se revestem de definições para além
de uma tradução linear. Se em primeira definição o termo resgata um processo social-
político contextualizado inicialmente em meados da década de 1790 na Alemanha, para
além dessa significação, na teoria da literatura, “o recurso ao Bildungsroman passou a
ser uma estratégia teórica e interpretativa capaz de abarcar toda produção romanesca na
qual se representasse uma história de desenvolvimento pessoal” (MAAS, 2000, p. 24).
37
“Na Alemanha, é apenas no fim do século XVIII, quando nomes como Goethe passaram a se dedicar ao
gênero, que o romance deixa de ser considerado literatura trivial e de má qualidade” (MAAS, 2000, p.
13).
51
Ao analisar o conceito do Bildungsroman, Flavio Quintale Neto sugere que o
termo é recorrente a “um tipo de romance que se caracteriza pela formação do
protagonista e do leitor nos princípios do humanismo, produzindo uma tentativa de
síntese entre práxis e contemplação” (QUINTALE NETO, 2005, p. 185).
A origem do vocábulo Bildung está atribuída ao Mestre Eckhart38
, frade
dominicano da Idade Média e, portanto, com estreita ligação mística. Bildung,
aponta para o conceito de reconquista do paraíso perdido, significando
também a remodelação do pecado original do homem culpado como
‘superimagem’, novo portador da imagem divina. [...] Contudo, ao
cometer o pecado original, o homem perdeu essa imagem divina
original e só pode reconquistá-la transformando-se a si mesmo
(QUINTALE NETO, 2005, p. 187).
Dessa forma, a origem do conceito Bildung marca, para a compreensão do
homem como imagem da divindade, uma retomada ao jardim edênico, ocasionada por
uma transformação vincada de uma experiência místico-contemplativa: “Bildung não
significa “formação” ou “instrução”, mas o conhecimento de si mesmo através de
iniciação nos mistérios do misticismo esotérico” (QUINTALE NETO, 2005, p. 199).
Na perspectiva analisada por Quintale Neto, a origem da palavra Bildung,
portanto, está vinculada ao domínio religioso.
Atrelada à esfera literária, a expressão Bildungsroman foi usada pela primeira
vez em 1803, pelo professor de filologia clássica Karl Morgenstern39
. Anos depois,
entre 1819 e 1820, o estudioso teria associado o vocábulo Bildungsroman ao Os anos de
aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe, associação que corroborou para que o
romance de Goethe se tornasse paradigma à estética de um romance de formação.
A definição de Bildungsroman, em uma síntese tradicional, exemplifica a escrita
literária que narra a formação do protagonista em seu início e desenvolvimento até
38 Mestre Eckhart, um dos mais importantes filósofos místicos medievais, nasceu em Hochheim, perto de
Gotha, na Turíngia, região que hoje se situa no centro-oeste da Alemanha. Seu pensamento influenciou
muitos outros místicos, entre os quais Julian de Norwich, Teresa de Ávila, São João da Cruz, Nicolau de
Cusa e Hegel. A partir do século 19, com a descoberta de seus manuscritos e a diminuição da perseguição
por parte da Igreja, sua obra é redescoberta e sua imagem se refaz, a ponto de hoje ele ser reconhecido
como um dos mais importantes representantes do misticismo cristão (HUÍSMAN, 2001, p. 436). 39
Morgenstern é representante de uma classe de intelectuais alemães pós-iluministas, que, durante a
passagem do século XVIII ao século XIX, contribui para a constituição de um determinado sistema de
pensamento em que a formação intelectual e moral do filho de família burguesa passa a ser tematizada e
problematizada. A criação do termo Bildungsroman emerge, portanto, como um fato histórico associado a
esse pensamento burguês, em que a preocupação com a acumulação de riquezas passa a coexistir com um
desejo de superação dos limites do conhecimento possível à classe média ascendente. A origem da
"literatura de formação” pode ser compreendida como resultado de um mecanismo social autorreflexivo
desenvolvido por uma classe que quer ver espelhados seus próprios ideais na ficção de cunho realista que
começa a firmar-se como gênero (MAAS, 2000, p. 44).
52
alcançar um determinado grau de perfectibilidade, o amadurecimento, tanto na esfera
pessoal como na social, promovendo, também, de uma maneira mais ampla do que em
qualquer outro tipo de romance, a formação do leitor. Nessa conjectura, o aprendizado
do herói se refletiria na construção do leitor participativo a esse tipo de narrativa
formativa.
Algumas das características básicas recorrentes à literatura de formação são
postuladas da seguinte forma: o jovem herói é separado do seu convívio familiar para
viver experiências típicas a essa separação. Durante o seu processo formativo o herói é
instruído por mentores ou instituições educacionais, há uma aproximação, mesmo que
tímida, com a esfera da arte, experiências intelectuais e amorosas, bem como,
eventualmente, experiências relacionadas à vida pública, política.
Um ponto relevante a se considerar ante o aparecimento de uma nova expressão
literária é justamente a abordagem subversiva em que a literatura de formação se coloca
da tradição literária, isto é, suas relações e distinções à epopeia antiga:
Desde suas origens, o romance realista mostra-se como uma forma
capaz de retratar o “homem comum”, mediano. Não se representam
mais seres de capacidade, força e coragem extraordinárias, mas sim o
jovem que se inaugura perante a vida, que busca uma profissão, o
auto-aperfeiçoamento e seu lugar no mundo. Em vez de Ulisses, o
burguês (MAAS, 2000, p. 23).
A vida particular, privada, do protagonista é a matéria narrativa que importa ser
narrada no romance realista de formação, são os homens e o ambiente que agem sobre o
herói, esclarecendo a representação de sua formação íntima, interior. Já a epopeia,
representa o herói agindo em direção ao exterior, interferindo e alterando no mundo
externo.
Tendo como paradigma Os anos de aprendizado, o Bildungsroman, travestido
em novos contextos e épocas, narra, em suma, o desenvolvimento pessoal do herói,
como já observado. Entretanto, as formas estruturais dessa narrativa modificam de
acordo com os contextos e épocas em que ela germina. Dessa forma, entende-se que o
romance de formação, em sua permanência histórica (mais de duzentos anos se
passaram da publicação do livro de Goethe), torna-se amplamente flexível ante as
características pautadas no modelo goethiano.
Partindo desse conceito de transformação no que tange às características do
romance de formação tradicional, Marcus Vinicius Mazzari, na obra Romance de
formação em perspectiva histórica, aponta que:
53
[...] os sucessivos desvios que o Bildunsgroman vem apresentando em
relação ao seu protótipo Os anos de aprendizado mostram-se como
reflexos das transformações políticas e econômicas ocorridas nas
estruturas da sociedade em que o herói em formação busca integrar-se.
Se em Goethe a crescente precariedade de tal integração é tratada de
forma a se preservar ainda a integridade humana, em outros autores
podemos observar uma tendência à dissolução caricatural da
concepção clássica de formação. Na verdade, o romance de formação
no sentido de Goethe [...] pressupõe que a incongruência entre
indivíduo e sociedade ainda seja superável, que ambos não se
choquem de forma irreconciliável (MAZZARI, 1999, p. 85).
Cabe frisar que, sendo o protagonista de Goethe do sexo masculino, Wilhelm
Meister, burguês, e não mais o Ulisses homérico, nota-se que tradicionalmente a fortuna
crítica, liada aos romances de formação, direciona uma personagem masculina para
passar pelo aprendizado inerente à literatura formativa, e não uma personagem
feminina.40
George Lukács, no arrazoamento acerca da obra Os anos de aprendizado de
Wilhelm Meister, em seu livro A teoria do romance, comenta que no romance se busca
um caminho intermediário entre o exclusivo orientar-se pela ação do
idealismo abstrato e a ação puramente interna, feita contemplação, do
Romantismo. A humanidade, como escopo fundamental desse tipo de
configuração, requer um equilíbrio entre a atividade e contemplação,
entre vontade de intervir no mundo e a capacidade receptiva em
relação a ele. Chamou-se essa forma de romance de educação
(LUKÁCS, 2007, p. 141).
A definição de romance de educação proposta por Lukács traz luz aos
desdobramentos do aprendizado do herói goethiano, uma tentativa conciliadora entre
ação e contemplação, entre matéria e espírito. “Não se nega a busca da interioridade no
processo de formação humanista”, afirma Quintale Neto, “mas claramente se acentua a
atividade do homem na sociedade, como sujeito da história” (2005, p. 199).
Reconhecendo o enlace da matéria com o espírito, da ação com a contemplação,
este mesmo crítico oferece a seguinte explanação acerca do vocábulo Bildungsromam:
O Bildungsroman seria, portanto, o meio pelo qual se expõe o eterno
movimento de ida e volta da reflexão à ação, da ação à reflexão, que
tornaria o homem consciente de si, como finito que se reconhece
como absoluto, e consciente da vida como atividade. A formação seria
o meio da realização da reflexão e da ação. Não se afirma a ação e se
nega a reflexão, mas também não se nega a ação e se afirma a
40
A sociedade ocidental é fruto da ordem que favoreceu o mito do herói e desconheceu o da heroína. Um
dos resultados desse processo foi a construção da vasta galeria de heróis masculinos que desde os gregos
ensinam ao homem como ser um homem melhor e a inexistência de um similar feminino. Ou, em outras
palavras, aos homens foi oferecida uma gama de modelos de crescimento e aperfeiçoamento; às mulheres,
praticamente nada (PIRES, 2006, p.16).
54
reflexão. Pelo contrário, afirma-se a síntese dialética da reflexão e da
ação através do romance e não da filosofia, uma vez que a arte é o
grande meio de realização da educação da humanidade. Wilhelm não
é filósofo, mas sim o artista da reflexão e da ação (QUINTALE
NETO, 2005, p. 203-204).
O alcance classificatório para uma obra ser filiada ao romance de formação, a
partir desse conceito, tende-se a uma ampla abertura conceitual, isto é, nas narrativas
contemporâneas, uma obra com desfecho harmonioso entre herói e sociedade, bem
como um desfecho fracassado, é visto em consonância com a ideia renovada atribuída
aos novos moldes de um romance de formação: é preciso que haja um desenvolvimento
individual.
No texto Clarice e a crítica: por uma perspectiva integradora, a pesquisadora
Ligia Chiappini, ao revisitar alguns posicionamentos críticos acerca da obra de Clarice
Lispector, discute em seu ensaio os temas “das chamadas minorias”, “do Judaísmo”, “a
questão feminina e o problema do gênero narrativo”, e o conceito “Bildungsroman
feminino”.
A pesquisadora se posiciona criticamente contra a redefiniçao do protótipo
alemão aos romances brasileiros que narram uma relação de aprendizagem de suas
personagens. A indagação da crítica é, para que usar a reformulação do protótipo
goetheano ao contexto das letras brasileiras, adaptando-o ao espaço ficcional do Brasil,
uma vez que sua transcrição “nem sempre [contempla] todos os passos do gênero do
Bildungsroman?” (CHIAPPINI, 2004, p. 259).
Atendo-se às características normativas acerca do tradicional romance de
formação, mas transportando-as para uma nova concepção de abordagem, isto é, o
Bildungsroman na contemporaneidade, Wilma Mass considera
impróprias ou infrutíferas as abordagens ao Bildungsroman que levam
em conta exclusivamente o instrumental tradicional da teoria literária,
como por exemplo, o gênero entendido como categoria normativa e
classificatória, sob o qual se identifica um modo específico de
representação, de reprodução da realidade [...] Em lugar disso, o que
possibilita a abordagem ao Bildungsroman é a compreensão de sua
diversidade, de seu estatuto híbrido entre construto literário e projeção
discursiva (MAAS, 2000, p. 263).
Ainda acerca das reflexões teóricas referentes à natureza renovadora, e, ao
mesmo tempo, estável do gênero literário, Mikhail Bakhtin esclarece que:
O gênero sempre conserva os elementos imorredouros da archaica. É
verdade que nele essa archaica só se conserva graças à sua
permanente renovação, vale dizer, graças à sua atualização. O gênero
55
sempre é e não é o mesmo, sempre é novo e velho ao mesmo tempo.
O gênero renasce e se renova em cada nova etapa da literatura e em
cada obra individual de um dado gênero. Nisto consiste a vida do
gênero. [...] O gênero vive do presente, mas sempre recorda o seu
passado, o seu começo. [...] É precisamente por isso que tem a
capacidade de assegurar a unidade e a continuidade desse
desenvolvimento (BAKHTIN, 2015, p. 121, grifos do autor).
Referente às reflexões teóricas acerca do Bildungsroman, na obra Estética da
criação verbal, Mikhail Bakhtin pontua a tipologia histórica do Romance dividindo-a
em três grandes vertentes: o romance de viagens, o romance de provação e o romance
biográfico. Descrevendo-os, o filósofo da linguagem chega à conclusão de que, para o
romance realista, “é de especial importância o romance de educação, que surgiu na
Alemanha na segunda metade do século XVIII” (BAKHTIN, 2011, p. 216).
Discorrendo acerca do Bildunsgroman, nomeado por Bakhtin de “romance de
educação”, o literato russo caracteriza-o em cinco subtipos: cíclico, em que, numa
primeira abordagem, se enfatiza a trajetória do homem entre a infância e juventude ou
entre a maturidade e a velhice. Ainda nesse tipo de formação cíclica, ligam-se romances
“caracterizados pela representação do mundo e da vida como experiência, como escola,
pela qual todo e qualquer indivíduo deve passar e levar dela o mesmo resultado – a
sobriedade com esse ou aquele grau de resignação” (BAKHTIN, 2011, p. 220).
O terceiro modelo agrupa os romances classificados como biográfico e
autobiográfico, não há elemento cíclico nessa nomenclatura, uma vez que “a formação
se processa no tempo biográfico, passa por etapas individuais, singulares” (BAKHTIN,
2011, p. 221).
Ao quarto tipo de literatura de formação agregam-se os romances que postulam
uma narrativa didático-pedagógica. Na classificação de Bakhtin, esse tipo de romance
baseia-se “em uma determinada ideia pedagógica [que representa] o processo
pedagógico da educação no próprio sentido do termo” (2011, p. 221).
Segundo Bakhtin, é o quinto e último tipo de romance de formação o mais
importante, o realista:
Categoria na qual a evolução do homem não pode ser dissociada da
evolução histórica. A formação do homem efetua-se no tempo
histórico real com sua necessidade, com sua plenitude, com seu
futuro, com seu caráter profundamente cronotópico. [...] O homem se
forma concomitantemente com o mundo, reflete em si mesmo a
formação histórica do mundo. O homem já não se situa no interior de
uma época, mas na fronteira de duas épocas, no ponto de transição de
uma época a outra. Essa transição se efetua nele e através dele. Ele é
56
obrigado a tornar-se um novo tipo de homem, ainda inédito
(BAKHTIN, 2011, p. 221-222, grifo do autor).
Nesta última tipologia, o estudioso considera que a personagem se constitui
histórico-socialmente; ela reflete e refrata o seu meio, estabelece com ele relações
contratuais ou polêmicas, constrói-se “concomitantemente com o mundo”. As
personagens de Clarice inscrevem-se nessa tipologia, na medida em que se constituem
como seres ativos, responsivos, diante das diferentes formas de pensar o mundo e a si
mesmas. Por isso a tensão crescente que as empurra para a fronteira entre o quadro
axiológico rançoso do qual se querem despegar e a epifania do novo, que lhes acena
promissora, mas que lhes cobra se tornar um novo ser. A assunção mostra-se-lhes
dolorosa, ameaçadora.
Cristina Ferreira Pinto desenvolveu um estudo pioneiro acerca do romance de
formação tendo, como protagonista diferente do arquétipo encontrado em Goethe, uma
personagem feminina.
No livro basilar para a compreensão dessa nova formulação estética, O
Bildungsroman feminino: quatro exemplos brasileiros (1990), a pesquisadora coloca em
observação as obras Amanhecer, de Lúcia Miguel Pereira, As três Marias, de Raquel de
Queiroz, Perto do coração selvagem, de Clarice Lispector e Ciranda de pedra, de Lygia
Fagundes Telles; alcunhando, assim, escritoras que desenvolveram romances com
características provenientes do protótipo de Goethe.
Visando a um modelo interpretativo para a narrativa de escrita feminina do
século XX no Brasil, alicerçada em afirmação de que “O Bildungsroman é caracterizado
como tal a partir, não da sua estrutura formal, mas sim dos elementos temáticos da
obra” (PINTO, 1990, p. 10), uma das indagações que Cristina Ferreira Pinto dispõe em
seu livro é: “Por que essa quase total ausência da mulher como personagem central no
Bildungsroman?” (PINTO, 1990, p. 12).
A resposta preponderante à pergunta levantada pela pesquisadora atém-se ao
fato de que, diferente do protótipo masculino de formação que concerne ao herói o
espaço exterior para compreensão de sua interioridade, no caso da protagonista feminina
sua esfera de vida se consolidaria nos limites do lar e da família.
Uma vez que “os poucos exemplos de Bildungsroman femininos que
focalizavam o desenvolvimento pessoal – ou seja – psicológico, emocional e intelectual
– da protagonista terminavam constantemente em fracasso” (PINTO, 1990, p. 13, grifo
57
da autora), a condição da mulher, inclusive literariamente, estava fadada ao espaço do
casamento e da maternidade.
Propondo uma redefinição do gênero, Cristina Ferreira Pinto atém-se às
características tradicionais do romance de formação, alicerçado em Goethe, para
estabelecer o que poderia ser chamado de Bildungsroman feminino: romance de
formação feminina.
À nomeação de um romance como Bildungsroman feminino seguem-se etapas
que a personagem feminina deve responder à narrativa:
[a] infância da personagem, conflito de gerações, provincianismo ou
limitação do meio de origem, o mundo exterior, autoeducação,
alienação, problemas amorosos, busca de uma vocação e uma filosofia
de trabalho que podem levar a personagem a abandonar seu ambiente
de origem e tentar uma vida independente (PINTO, 1990, p. 14).
Cabe evidenciar que, considerando a existência reduzida de romances de
formação feminina que começam na infância ou adolescência de suas respectivas
protagonistas, Ferreira Pinto pontua que o desenvolvimento das personagens femininas
se inicia, frequentemente, e de forma contrária ao arquetípico goethiano, na idade
adulta.
Uma das contribuições recorrentes à pesquisa de Cristina Ferreira Pinto é a
compreensão de que, considerando o contexto histórico dos romances de formação
feminina, a teórica literária evidencia desfechos harmoniosos na redefinição do gênero
em questão, e, por sua vez, obras literárias que expressam um fracasso no que tange à
integração social e pessoal de suas protagonistas.
Deve-se considerar que o grande número de “Bildungsromane”
fracassados pode sugerir quanto à posição de suas autoras em seus
diversos contextos sociais. Muitas vezes a interrupção do “Bildung”
da protagonista parece significar a aceitação das normas sociais de
comportamento feminino pela escritora. [...] Essas obras serviam
como modelos exemplares na formação das leitoras, cumprindo assim
a função didática característica do “romance de aprendizagem”. Se o
destino dessas personagens, aos olhos do público de hoje, parece ter
sido interrompido, na época estava simplesmente em conformidade
com o ideal feminino estabelecido (PINTO, 1990, p. 17).
Formas que evidenciam a interrupção do desenvolvimento de uma protagonista
feminina é a sua aceitação de um papel social que lhe fora destinado: ser esposa, ser
mãe; bem como o suicídio, a loucura, a alienação imposta ou voluntária. Em
contrapartida, as protagonistas que conseguem uma integração pessoal, por questões
58
sociais nem sempre experimentam, na materialidade do texto narrativo, uma total
inserção com o meio social.
Ao analisar os quatros romances concernentes a sua pesquisa, Cristina Ferreira
Pinto perscruta que, nas duas primeiras obras, Amanhecer, de Lúcia Miguel Pereira, As
três Marias, de Raquel de Queiróz, a integração social e pessoal de suas protagonistas é
frustrada: ambas personagens são fadadas ao completo fracasso e marginalização.
Entretanto, o desfecho encontrado por Clarice Lispector em Perto do coração
selvagem, bem como o final atribuído à protagonista de Ciranda de pedra, de Lygia
Fagundes Telles, evidenciam um otimismo atrelado à integração de suas personagens,
sobretudo na sua uniformidade pessoal, íntima, uma vez que, por questões contextuais,
de época, a integração social da mulher representada nas duas narrativas em foco não é
ao todo vivenciada.
Perto do coração selvagem, obra que inaugura a escritura de Clarice Lispector, é
o título estudado por Cristina Ferreira Pinto como modelo ao romance de formação
feminino. A obra narra a experiência de vida de Joana, primeira heroína clariciana, uma
espécie de súmula matriarcal para todas as outras personagens postas em letras por
Clarice.
Nádia Battella Gotlib, na biografia Clarice, uma vida que se conta, sintetiza os
momentos formativos dessa narrativa:
[...] com capítulos que se seguem alternando os tempos presente e
passado na construção de sua personagem Joana, acompanhando-a
desde a infância até a maturidade, personagem estranha, enfocada
sempre a partir de uma procura de verdade interior, ou seja, de uma
identidade de mulher e de ser a sua complexidade – como ser humano,
vestido com as capas da civilização e delas despido, como ser animal,
livre e selvagem. Nesse percurso, Joana passa por diferentes
experiências de relações com o outro. A menina perde a mãe quando
era ainda bem pequena. [...] Vive com o pai, que também morre. É
difícil para Joana aceitar essa morte. Vive com os tios, e, em seguida,
é mandada para um colégio. Sente-se atraída por um professor, depois
pelo marido, depois por “um homem”, e, finalmente, parte em viagem,
em busca de alguma “coisa” (GOTLIB, 2009, p. 192, grifos da
autora).
A abordagem sintética que a biógrafa de Clarice Lispector recorta do romance
Perto do coração selvagem possibilita, nos moldes reformulados do romance de
formação por Cristina Ferreira Pinto, a adequação dessa narrativa ao romance de
formação feminino.
59
O que cabe sinalizar nesta dissertação, dentro do percurso de desenvolvimento
de Joana, é o desfecho escolhido por Clarice Lispector para a integração de sua
protagonista com seu interior, bem como uma possível abertura em sua obra, plena de
significações.
O final do enredo sugere mais um aspecto dos romances de formação
femininos, ou seja, ao invés do “happy end” tradicional, há indícios de
uma viagem solitária. Não foi por acaso que o primeiro romance de
Clarice Lispector tornou-se um marco na literatura brasileira, em
1994, ao enriquecê-la com um estilo novo na forma e no enredo, assim
como na solução revolucionariamente feminina para o final da
narrativa (SANTOS, 2006, p. 66).
Considerando o título do último capítulo de Perto do coração selvagem, “A
viagem”, Lispector direciona o final do seu primeiro livro às águas: por meio de um
navio Joana visualizará novos mundos. Tendo o mar como possibilidade de um novo
desenvolvimento de vida, as palavras finais da primeira protagonista de Clarice a
assemelha a um cavalo41
. É assim que a última frase desse livro é pontuada: “[...] de
qualquer luta ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo”
(LISPECTOR, 1998e, p. 202).
O ponto final que encerra a consagrada estreia de Clarice Lispector às letras
brasileiras não delimita o desenvolvimento atribuído à Joana. Fecha, sim, um ciclo
formativo, e abre, por meio das metáforas recorrentes às águas do mar e do cavalo novo,
possibilidades interpretativas ao leitor.42
Acolhendo a possibilidade de um novo patamar de vida, um novo tratamento
formativo, em que a integração íntima compactue com a integração social, Clarice
Lispector, após vinte e seis anos da publicação do seu primeiro livro, lança Uma
aprendizagem ou o livro dos prazeres, romance que complementa Perto do coração
selvagem como romance de formação feminina.
O caminho em direção à integração do EU, iniciado pela primeira
protagonista de Clarice Lispector, vai ser seguido pelas personagens
das obras seguintes. Estas vivem essencialmente os mesmos
problemas e lutas de Joana, estabelecendo-se, assim, uma
continuidade entre as diversas protagonistas. [...] O destino e o
41
A figura de um cavalo é recorrente na obra de Clarice Lispector. Sua primeira protagonista, Joana, se
iguala ao mamífero para firmar-se em novidade de vida, Lóri, a protagonista de Uma aprendizagem ou o
livro dos prazeres usará da mesma iconografia para exemplificar o processo de desenvolvimento que
vivenciará. 42
“No texto de Clarice é possível surpreender a mulher a deslocar-se, pouco a pouco, da passividade em
que se viu historicamente atrelada. Ela não se deixa morrer nem se suicida. Muito ao contrário, caminha
para a morte em permanente diálogo com esta. Vive uma relação tensionante com a vida em permanente
estado de “pré-meditadação da morte”, na feliz definição de Benedito Nunes” (VIANNA, 1999, p. 173).
60
aprendizado de Joana se realizam afinal através de Lóri, protagonista
de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres (1969), obra que
complementa Perto do coração selvagem como Bildunsgroman.
Entretanto, Lóri não representa o fim da trajetória das personagens de
Lispector. A continuidade ainda existe, e é indicada pela falta de um
ponto final no texto de Uma aprendizagem, que, aliás, começa com
uma vírgula (PINTO, 1990, p. 107).
Em Clarice Lispector, o desenvolvimento – a aprendizagem – é constante.
Em seu livro O Bildungsroman feminino: quatro exemplos brasileiros, Ferreira
Pinto considera que o destino de Joana, primeira heroína de Clarice Lispector, se
consolidaria, de fato, por meio do desenvolvimento expresso na materialidade de Uma
aprendizagem ou o livro dos prazeres. Dessa forma, Loreley alcançaria o ponto ápice de
sua formação, numa integração entre práxis e contemplação com o íntimo e social.
Onde termina o texto de Perto do coração selvagem recomeça a
trajetória de Joana, com a promessa de realização pessoal e satisfação
dos seus meios e expectativas. [...] O destino e o aprendizado de Joana
se realizam afinal através de Lóri, protagonista de Uma aprendizagem
ou o livro dos prazeres (1969), obra que complementa Perto do
coração selvagem como Bildungsroman (PINTO, 1990, p. 107).
Ao discorrer a respeito da proposta de Cristina Ferreira Pinto da continuidade da
aprendizagem da primeira heroína clariciana, Joana, desencadeada em Lóri,
protagonista dO livro dos prazeres, Ligia Chiappini reivindica no trabalho de Ferreira
Pinto a inserção de Macabéa nas análises da autora:
Aponta-se uma continuidade entre Perto do coração selvagem, Uma
aprendizagem ou o livro dos prazeres e Água viva, ápice do processo,
mas essa leitura descarta Macabéa: Por quê? Aí o fracasso volta?
Macabéa não comparte da mesma busca empreendida pelas outras
personagens, diz a autora. Pergunto: Macabéa não busca a libertação,
porque busca a sobrevivência? [...] A hora da estrela poderia ser
também romance de aprendizagem, enquanto também pode ser lido
como tentativa de auto-descoberta (CHIAPPINI, 2004, p. 262).
O excerto supracitado questiona o posicionamento de Cristina Ferreira Pinto
quanto à abordagem que a autora faz do livro A hora da estrela. Faz-se necessária a
transcrição de seu enfoque:
A personagem-narradora de Água viva completa a trajetória iniciada
por Joana, realizando plenamente a capacidade de auto expressão e a
integração do EU por que as protagonistas de Lispector lutam. Já A
hora da estrela (1977) afasta-se da sequência estabelecida entre o
primeiro romance e Água viva, pois a protagonista desse romance de
1977, Macabéa, não comparte da mesma busca empreendida pelas
outras personagens. Entretanto, apresentam-se aqui temas recorrentes
na obra de Lispector, como a incapacidade de auto expressão do
Sujeito (Macabéa, Olímpico, o narrador), a luta (do narrador) para
61
alcançá-la, e a relação homem-mulher, ainda uma relação em que a
mulher é subordinada ao Outro (PINTO, 1990, p. 107, 108, grifo
nosso).
Chiappini, ao analisar o posicionamento de Ferreira Pinto acerca das
características concernentes à heroína de Lispector, Macabéa, encontra na nota de
rodapé da produção da autora (o excerto acima de Cristina Ferreira Pinto é justamente
uma nota de rodapé) um descuido de expressão que evidencia uma negação ao processo
de aprendizagem recorrente à jovem alagoana de dezenove anos. Macabéa, como
comum às personagens tensionadas na escritura de Clarice Lispector, procura transpor
para além de si a fala que revigora a autoexpressão.
Ocorre que, com o atropelamento de sua personagem, “grávida de futuro”,
ocasionado em morte física, a narrativa do livro de 1977 poderia ser incluída aos
romances de formação incompletos, postulados por Cristina Ferreira Pinto em seu texto,
como os de Lúcia Miguel Pereira, Amanhecer e, Raquel de Queiroz, As três Marias.
Nesses títulos, as protagonistas de cada narrativa não conseguem romper com as
barreiras a elas impostas, impelidas, consequentemente, ao fracasso e à marginalização.
Lúcia Pires atém-se às articulações criadas por Clarice no que tange à construção
de suas heroínas: Joana, Virgínia, Lucrécia, G.H, Lóri, Macabéa e Ângela Pralini. Cabe
transcrever o longo parágrafo da crítica acerca desse elo entre as personagens de Clarice
Lispector:
Joana, Virginia e Lucrécia se equiparam no verdor de uma juventude
rebelde, insubmissa e, acima de tudo, incapaz de se relacionar
satisfatoriamente com o outro. Das três, Joana é a que agita essa
bandeira com maior veemência, e com maior veneno também. G.H.
está um passo à frente de Joana e suas camaradas Virgínia e Lucrécia.
G.H. ainda é rebelde, mas aprende a vitória da submissão ao que é
mais forte e abrangente do que ela própria, mesmo que o encontre
dentro de si, num mergulho em queda livre em seus abismos, para a
partir da matéria primitiva aí encontrada ser capaz de reconhecer-se no
outro. Lóri é quem concretiza o encontro com o outro, um encontro
amoroso, e bastaria isso para torná-la capital na obra de Clarice
Lispector. Lóri é o resultado da persistência de Joana e de G.H. em
continuarem e se superar. Macabéa e Ângela Pralini já são criaturas de
uma outra dimensão. Indissociáveis de seus narradores, elas
representam, na verdade, a união que Lóri conquistara. Já não são
personagens femininas pura e simplesmente, são andróginos com suas
contrapartes masculinas. O percurso da mulher no romance de Clarice
Lispector termina com Lóri (PIRES, 2006, p. 116, 117).
Considerando Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres como um romance de
formação feminino, no qual o desenvolvimento de sua protagonista Loreley se fará
62
numa possível alusão à Joana, heroína de Perto do coração selvagem, cabe examinar as
vivências daquela no processo literário formativo de Clarice Lispector.
O livro dos prazeres tem seu início marcado por uma vírgula e a flexão verbal
no gerúndio. “, estando tão ocupada...” (LISPECTOR, 1998d, p. 13). Marcação virgular
que indica o fato de a história ter sido iniciada antes mesmo de o texto ser
materializado. Vírgula que – em meio a tantos significados já apontados nesta
dissertação – assume, se conectada ao pensamento de Ferreira Pinto, a continuidade do
processo de formação de Joana.
Por sua vez, o verbo em sua flexão no gerúndio marca a ação, logo no início da
narrativa, da personagem Loreley: um movimento que pressupõe um determinado grau
de ação não finalizada, em andamento, em desenvolvimento, “estando”. É o percurso da
heroína que se anuncia imediatamente na primeira palavra do romance Uma
aprendizagem. Já a marcação pontuada por uma vírgula possibilita, também, a
compreensão de que, nos moldes da literatura de formação feminina, o desenvolvimento
se pautará na idade adulta da heroína e não na infância, como é recorrente no modelo
tradicional do Bildungsroman.
Outra diferença da literatura formativa feminina, se cotejada com o paradigma
de Goethe, é que, na tradição,
o desenvolvimento do personagem é linear (em contraponto), a
protagonista feminina apresenta um movimento circular, uma vez que
o amadurecimento é feito por intermédio de epifanias, ou seja, de
momentos de iluminação que fazem com que a mulher avance e recue,
assim como os elementos da natureza, aos quais o feminino é
comparado, uma vez que está sujeito às influências da lua, assim
como as marés dos oceanos e as etapas do plantio da terra e colheita
da lavoura (SANTOS, 2006, p. 71).
Assim postas as observações de Terezinha Goreti Rodrigues dos Santos acerca
das epifanias e influências da natureza referentes ao desenvolvimento de Loreley, cabe
pontuar algumas das formulações recorrentes do filósofo da linguagem russo Mikhail
Bakhtin, sobretudo o diálogo socrático e o solilóquio, para o entendimento do processo
de desenvolvimento da personagem central do romance Uma aprendizagem ou o livro
de prazeres.
63
2.3 OS RECURSOS DISCURSIVOS NA FORMAÇÃO DA PERSONAGEM
LÓRI
Na nota que abre o romance Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, Clarice
Lispector apresenta a história que se seguirá como uma forma libertária que a ficcionista
se permite experimentar. O livro estaria, segundo a autora, acima do percurso narrativo
até então instaurado em sua literatura. Em posição de suposta humildade, Lispector
notifica: “Este livro se pediu uma liberdade maior que tive medo de dar. Ele está muito
acima de mim. Humildemente tentei escrevê-lo. Eu sou mais forte do que eu. C. L.”
(LISPECTOR, 1998d, p. 9).
Fernando Sabino, em carta direcionada à escritora pela leitura que fez acerca dos
originais de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, “atordoado” com o novo rumo
libertário que as letras de Clarice se materializam na referida obra, escreve à amiga:
São 3 e 5 da manhã e acabo de ler seu livro há cinco minutos. Li-o
desde meia noite e vinte, de uma só vez, sem interromper um segundo,
e te escrevo ainda sob a parte mais grossa da emoção da leitura. [...]
Deve ser um grande livro, pode ser até o seu melhor livro, mas está do
lado de lá, como as coisas pensadas depois da morte, e eu estou cada
vez mais do lado de cá, agarrado às coisas concretas que se
movimentam ao redor de mim. [...] Esta carta não lhe dá a medida de
como eu quero bem e admiro o seu livro. [...] Talvez se fosse lido com
outro espírito, outra fosse a minha opinião – mais lúcida, crítica, útil e
reconciliadora com o mistério dos sentimentos que não mereço
desvendar. [...] Certamente vou relê-lo, como os outros, uma, muitas
vezes, até que ele também acabe fazendo parte de mim (SABINO,
2001, p. 2005).
Alinhando os dois excertos – acima destacados – pode-se indicar que a liberdade
de experimentação literária encontrada em O livro dos prazeres, enfocada em uma
narrativa que conta “[...] uma história de evolução progressiva da mulher que caminha,
corajosamente da dor ao prazer” (GOTLIB, 2009, p. 491), engloba “o mistério dos
sentimentos” que estão “do lado de lá” de uma suposta razão que invalida a afeição
sentimental, isto é, que se situam na contramão de uma apreensão linear, concreta e
dogmática da racionalidade.
Sabino reconhece, e com admiração, a articulação criada por Clarice na narrativa
em questão: “[...] há passagens que me tocaram profundamente, outras me comoveram,
outras me arrepiaram” (SABINO, 2001, p. 204), entretanto, a esfera sentimental que
perpassa o enredo, traço inédito nos textos de Lispector como já visto neste trabalho,
filiada ao suposto pedantismo direcionado ao professor de filosofia Ulisses, “Quem é
64
esse homem? Que é que ele está dizendo? Por que tão pedante e professoral?”
(SABINO, 2001, p. 203), faz com que o autor de O homem nu se sinta atordoado, mas
não desacreditado da qualidade que a produção atual de Clarice, isto é, em 1969, tenha
alcançado.
Em entrevista concedida a João Salgueiro e ao casal Affonso Romano de
Sant’Anna e Marina Colasanti, realizada no Museu da Imagem e do Som (RJ) em 1976,
ao responder se gosta do romance de 1969, Clarice diz monossílaba e abruptamente que
não. Entretanto, enfatiza que o livro “é uma história de amor, e duas pessoas já me
disseram que aprenderam a amar com esse livro... Pois é”43
(LISPECTOR apud, p. 230).
Um dos primeiros registros em que Clarice fala acerca de Uma aprendizagem ou
o livro dos prazeres foi através de uma carta que a escritora envia ao seu filho Paulo
Gurgel Valente, datada de janeiro de 1969. “Acabei de copiar o resto do livro, e
certamente amanhã telefono para a Editora Sabiá pedindo que mandem buscar. Se o
livro é bom? Eu acho ele detestável e malfeito, mas as pessoas que o leram acham-no
bom” (LISPECTOR, 2002, p. 261).
Até que ponto esse distanciamento de Clarice para com o livro de 1969 é de fato
uma negação? É sabido que Clarice após o término de uma nova produção sentia-se
desiludida com a realização da escritura. “Todas as vezes em que eu acabei de escrever
um livro ou um conto, penso com desespero e com toda a certeza de que nunca mais
escreverei nada. [....] Lendo dias depois o que escrevi, sinto certa desilusão,
insatisfação” (LISPECTOR apud BORELLI, 1981 p. 69).
Olga Borelli, amiga pessoal de Clarice, revela que a autora de A maçã no escuro
“Não conseguia reler texto seu. E quando publicado era como livro morto. Não queria
mais saber dele. Quando acontecia alguém citar algum trecho, achava ruim”
(BORELLI, 1981, p. 73-74). É ainda Borelli que, ao lançar luz acerca da publicação de
Água viva, romance posterior a Uma aprendizagem, complementa que, após três anos
de exaustiva produção e estruturação do texto em questão, Clarice hesitou em publicá-
lo: “Quando ficou pronto, sentiu-se sem coragem de publicá-lo” (BORELLI, 1981, p.
88).
43
Não há dúvida de que, entre os textos [Perto do coração selvagem e A paixão segundo G.H.], Uma
aprendizagem é o mais acessível. A paixão segundo G.H. chega às raias do hermetismo, e Perto do
coração selvagem tampouco é o que se pode chamar de livro fácil. Já a história de Lóri e Ulisses é uma
história de amor com o qual o público leitor pode superficialmente se identificar mais. Na verdade, se os
dois romances anteriores de Clarice têm a parte mais densa da intriga transcorrendo em um nível
profundo, como um rio subterrâneo à narrativa, Uma aprendizagem é esse rio vindo à tona e aflorando em
olho d’água, fresca e agradável, embora mineralizada pela terra funda de onde brotou (PIRES, 2006, p.
2008).
65
Essa hesitação para publicar um novo livro ou se empenhar na produção de
novos gêneros, tais como crônicas jornalísticas, entrevistas e contos com foco na
sexualidade, acompanhou Clarice em cada nova publicação, entretanto, é imprescindível
marcar que a hesitação comum a Clarice, como pontua Franco Júnior, “em relação à
literatura, à crítica, à imprensa, ao mercado editorial, marca-se pelo cuidado de não se
deixar funcionalizar, de não se deixar reduzir a rótulos” (FRANCO JÚNIOR,
2003/2004, p. 135).
Entre as possibilidades interpretativas do percurso libertário manifestado no
livro que é corpus desta dissertação, sobressai a tessitura da narrativa no e recorrente ao
diálogo. Até então inédito à poética da escritora, a história – “que se pediu uma
liberdade maior” – consiste, dentre outras questões que trata, no desenvolvimento da
protagonista Loreley em direção ao alcance de sua autoconsciência intermediada pelo
outro em referências explícitas de um diálogo constante.
Na concepção bakhtiniana, o desenvolvimento da consciência é viabilizado no
limiar, isto é, “na fronteira entre a minha consciência e a consciência do outro”
(BAKHTIN, 2011, p. 341, grifo do autor).
Empregando atenção ao processo evolutivo de Lóri, desencadeado com a
interação de Ulisses, o mentor da aprendizagem, pode-se atribuir à formação da
protagonista de Clarice Lispector traços do gênero diálogo socrático, com sua gênese na
maiêutica, isto é, no partejar da ideia, desdobrando-se à variante do diálogo no limiar.
Discutido por Mikhail Bakhtin no livro Problemas da poética de Dostoievski, o
diálogo socrático, assim como a sátira menipeia, surgem na Antiguidade Clássica,
vinculados ao conceito de gêneros sério-cômicos. Gêneros densamente conjugados pelo
folclore carnavalesco, isto é, debilitando ao riso “a seriedade [...], a racionalidade, a
univocidade e o dogmatismo” (BAKHTIN, 2015, p. 122). Portanto, os gêneros sério-
cômicos apresentam forte oposição aos limites precisos e estáveis dos gêneros sérios
tidos por excelência na Grécia Antiga: a epopeia, a tragédia, a retórica, a lírica.44
Esclarece Bakhtin que o diálogo socrático “era quase um gênero memorialístico:
eram [...] anotações das palestras reais proferidas por Sócrates, anotações das palestras
memorizadas, organizadas numa breve narração” (BAKHTIN, 2015, p. 124). De acordo
ainda com o pensador da linguagem, a par da atualização do gênero quanto ao avanço
44
É válido marcar que o processo de escrita tensionado por Clarice Lispector rearticula os matizes do
romance tradicional brasileiro para concepção de uma obra questionadora dos paradigmas literários.
Como já aludido: “Gênero não me pega mais” (LISPECTOR, 1998a, p.13).
66
dos anos, o diálogo socrático distancia-se “das limitações históricas e memorialísticas e
conserva nele apenas o método propriamente socrático de revelação da verdade”
(BAKHTIN, 2015, p. 124-125).
Tendo como característica fundamental “[...] a concepção socrática da natureza
dialógica da verdade e do pensamento humano sobre ela” (BAKHTIN, 2015, p. 125),
isto é, o partejar da ideia – o “conhece-te a ti mesmo” – por meio de uma interação com
o outro, o método socrático viabiliza a concepção da autoconsciência por meio de um
processo fundido ao questionamento, à provocação. Atrela-se ao diálogo socrático o
posicionamento questionador da personagem diante de si mesma e da realidade que a
cerca.
São duas as esferas do diálogo socrático: a ironia e a maiêutica. A primeira
consiste na refutação dos preconceitos ou das opiniões subjetivas do protagonista, isto é,
significa perguntar fingindo ignorar (modo de interrogar pelo qual Sócrates levava o
interlocutor ao reconhecimento da sua própria ignorância); a segunda, como
supracitado, incide na arte de realizar o partejar da ideia ou do conceito verdadeiro, ou
seja, a descoberta de uma nova concepção.
Bakhtin considera que uma das características basilares do gênero “é a
concepção socrática da natureza dialógica da verdade e do pensamento humano sobre
ela.”, ou seja, o diálogo socrático se opõe às verdades dogmáticas, àquelas que
sentenciam uma afirmação como única, unilateral, inquestionável, assim, o traço
estético prevalente no gênero é a negação de um discurso opressor e autoritário.
Estruturando o diálogo socrático encontram-se a síncrise e a anácrise,
mecanismos discursivos que viabilizam o autoconhecimento da personagem por meio
da palavra e reflexão. Na tessitura de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres estes
mecanismos contribuem à constituição da autoconsciência de Loreley, matéria que será
examinada a seguir.
67
2.4 AS VARIANTES DO DIÁLOGO SOCRÁTICO EM UMA APRENDIZAGEM
OU O LIVRO DOS PRAZERES
Na obra O drama da linguagem, compilação de textos escritos por Benedito
Nunes acerca da prosa de Clarice Lispector, o crítico
literário, dentre as análises atribuídas ao romance Uma aprendizagem ou o livro
dos prazeres, sinaliza que o que há realmente de novo no processo escritural de Clarice
em contraponto com os romances anteriores “é que a narrativa está polarizada pelo
diálogo e não pelo monólogo” (NUNES, 1995, p. 78).
Sucedendo a experiência do monólogo interior vivenciado pela protagonista do
livro A paixão segundo G.H.45
, O livro dos prazeres impõe à obra de Clarice Lispector
uma abertura conciliadora entre duas consciências – Loreley e Ulisses: “[...] duas
consciências que se reconhecem, a princípio de maneira reticente, para se comunicarem
em seguida através do silêncio e da palavra, da carne e do verbo” (NUNES, 1995, p.
79).
Ulisses aparece no texto clariciano como mediador do processo de
autoconhecimento que Loreley iniciará. A aliança firmada entre as personagens desta
narrativa tem por viso a união amorosa de ambos somente quando a aprendizagem de
Lóri se consolidar, isto é, quando a heroína alcançar um conhecimento corpóreo e
íntimo desencadeado na autoconsciência.
– Lóri, disse Ulisses: [...] uma das coisas que aprendi é que se deve
viver apesar de46
. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar.
Apesar de, se deve morrer. Inclusive é o próprio apesar de que nos
empurra pra frente. [...] Foi apesar de que parei na rua e fiquei
olhando você, esse teu corpo [...] que eu quero. Mas quero inteira,
com a alma também. [...] esperarei quanto tempo for preciso
(LISPECTOR, 1998d, p. 26, grifo nosso).
Ulisses, como representação do ser humano, experimenta em sua vivência o
aprender em todo tempo, “o estar em construção”, isto é, “no dialogismo incessante, o
ser humano encontra o espaço de sua liberdade e de seu inacabamento” (FIORIN, 2008,
45
Benedito Nunes esclarece que “enquanto A paixão foi uma desaprendizagem das coisas humanas, O
livro dos prazeres é, sem abstrair as verdades trágicas daquela experiência, uma recuperação corajosa do
sentido da existência individual” (NUNES, 1995, p. 81). 46
Cabe pontuar que a companhia teatral Luna Lunera (MG) para criar seu espetáculo Prazer, teve como
ponto de partida o excerto supracitado do romance Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. Projeto
contemplado pela Fundação Nacional de Artes – FUNARTE – no Prêmio Funarte de Teatro Myriam
Muniz 2011.
68
p. 28). O professor de Filosofia também é modulado por experimentações avaliativas47
,
mas compete a ele, aqui posto como mediador no âmbito socrático – por já estar em um
desenvolvimento além do que Lóri provará48
– ajudá-la quanto à passagem da ignorância
à revelação dialógica da ideia, ao autoconhecimento.
Não se trata de uma inteligência de quem adquiriu uma longa
experiência intelectual, e sim de um trato inteligente com a vida, isto
é, de uma postura de quem não tenta fugir dela, mas desvendar seus
enigmas. Essa postura já é possível a Ulisses porque ele já está aberto
à escuta do apelo que a realidade lhe faz, em seu mistério. Já está na
travessia (TAVARES, 2012, p. 61).
Posto luz ao desenvolvimento já alcançado por Ulisses na tessitura do texto
lispectoriano, uma vez que é ele quem acompanha, quem espera, quem medeia, faz-se
oportuno analisar o elo existente entre Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres às
variantes do diálogo socrático.
Parte-se aqui do posicionamento de que os instrumentos discursivos intrínsecos
ao diálogo socrático, a síncrise e a anácrise, bem como os outros gêneros a ele
relacionados – solilóquio e diálogo no limiar –, possibilitam, na tessitura do romance de
Clarice Lispector, a análise de como a professora primária toma consciência de estar no
e sentir o mundo – tendo como mote a experimentação dialógica – e como essa
consciência contribui para o alcance do seu autoconhecimento.
Ulisses, o professor de Filosofia, é o mestre maiêutico, o interlocutor que
viabilizará a constituição da autoconsciência de Lóri em um processo atrelado à vida
humana, isto é, o percurso de aprendizagem na comunhão do amor não rejeita a esfera
intelectual da heroína clariciana, ao contrário, homologa-a como primazia. Para Clarice,
a racionalidade não é uma condição oposta à afeição sentimental.
À concretização da autoconsciência de Loreley, o diálogo é o meio de transporte
fundamental de interação e reflexão. Ulisses, pelo diálogo, compreende as palavras que
são silenciadas e os silêncios que evocam falas, por conseguinte, conduz sua discípula à
aprendizagem não apenas transposta da dor ao prazer, mas em uma experimentação
provinda da entrada de Loreley “num realismo novo”.
– Meu mistério é simples: eu não sei como estar viva.
– É que você só sabe, ou só sabia, estar viva através da dor.
– É.
– E não sabe como estar viva através do prazer?
47
Em diálogo com Lóri, Ulisses enfatiza sua inconclusibilidade: “Pronto em todos os sentidos eu nunca
estarei, Lóri, eu não me engano” (LISPECTOR, 1998, p. 51). 48
“Ulisses [...] estava infinitamente mais adiantado na aprendizagem: ele reconhecia em si a alegria e a
vitória” (LISPECTOR, 1998d, p. 92).
69
– Quase que já. Era isso o que eu queria te dizer (LISPECTOR, 1998d, p. 90-
91),
O início de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, já em seu primeiro e
extenso parágrafo, sinaliza a protagonista Loreley preocupada em organizar as lacunas
provenientes das faltas de sua empregada “que cada vez mais matava serviço”
(LISPECTOR, 1998d, p. 13). Loreley surge ao leitor em um posicionamento que
contempla o arrumar das compras que fizera, o atendimento de telefone convidando-a
para participar de um coquetel beneficente e, por sua vez, a “escolher que vestido usaria
para se tornar extremamente atraente para o encontro com Ulisses” (LISPECTOR,
1998d, p. 13).
Cabe salientar a pontuação empregada por Clarice no decorrer do primeiro
capítulo da narrativa. Iniciado por uma vírgula, o texto clariciano materializa quase que
na totalidade da extensão do seu primeiro tópico pontuações expressas exclusivamente
por vírgulas: uma ruptura explícita às avaliações da gramática normativa. Coligada às
vírgulas da narrativa, encontram-se os inícios de parágrafos do capítulo: iniciados em
letra minúscula.
Colisões normativas que, expressas na grafia do texto, apontam para a situação
existencial da protagonista, isto é, já no início da trama, “Lóri surge no caos, em
linguagem que acompanha um desordenado fluxo de consciência” (GOTLIB, 2009, p.
486). Clarice, ao romper com a norma, adequa na tessitura de Uma aprendizagem ou o
livro dos prazeres uma técnica retórica e estilística que alcança as oscilações intrínsecas
à Loreley que abre o romance.
Carlos Mendes de Souza, ao sinalizar a expressão poética vinculada à pontuação
existente no primeiro capítulo de Uma aprendizagem que colide com a normatividade
gramatical, comenta que:
O início do romance [...] mostra a vasta mancha tipográfica que dá
conta da chegada de Lóri à casa: as tarefas que executa quase sem
respirar vêm acompanhadas daquilo que vai pensando. A força do
monólogo (em discurso indireto livre) adequa-se ao compacto
grafismo que pretende ser uma transcrição do ritmo caótico dos
pensamentos que ocupam a mente da personagem (SOUSA, 2012, p.
234-235).
Desordem que lança ao leitor a compreensão de que Loreley vivencia um
emaranhado de ideias, imbricado, sobretudo, à rememoração do discurso de Ulisses,
que, logo na primeira página do texto, se materializa como o mentor da aprendizagem.
[...] pensou no que ele [Ulisses] estava se transformando para ela, no
que ele parecia querer que ela soubesse, supôs que ele queria ensinar-
70
lhe a viver sem dor apenas, ele dissera uma vez que queria que ela, ao
lhe perguntarem seu nome, não respondesse “Lóri” mas que pudesse
responder “meu nome é eu”, pois teu nome, dissera ele, é um eu
(LISPECTOR, 1998d, p. 13).
Nesse entrelaçamento de informações, a narrativa direciona Ulisses à mediação
entre Lóri e sua autoconsciência. É ele que, no compasso poético de Clarice junto a O
livro dos prazeres, evidencia uma das questões recorrente à escritura de Lispector: a
indagação do nome. A esse respeito, cabe citar uma das falas da personagem Riobaldo
no romance Grande sertão: veredas: “Que é que é um nome? Nome não dá: nome
recebe” (ROSA, 2001, p. 172).
O nome de Lóri recobre significações simbólicas, como já evidenciado,
entretanto, para além das significações externas e/ou mitológicas, há o nome íntimo que
à heroína é evidenciado conquistar: “o seu nome secreto que ela por enquanto ainda
não podia usufruir” (LISPECTOR, 1998d, p. 14). A personagem de Clarice Lispector
partilha de uma relação conflituosa com o mundo, isto é, com a esfera social em que
está inserida: “Seu descompasso para com o mundo chegava a ser cômico de tão grande:
não conseguira acertar o passo com as coisas ao seu redor. Já tentara se pôr a par do
mundo e tornara-se engraçado: uma das pernas sempre curta demais” (LISPECTOR,
1998d, p. 20).
Cabe frisar que o descompasso vivido pela protagonista não é materializado
apenas na pontuação que abre e reverbera no primeiro capítulo dO livro dos prazeres,
ou no fragmento aqui exemplificado, alcança, pode-se dizer, com intencional
formulação, o estado de ânimo de Lóri, isto é, no processo de sua autoconsciência, há
um esvaziamento de sua racionalidade; o sublime une-se à banalidade cotidiana, “alto”
abre espaço ao “baixo”, pontuando, assim, um estranho avançar que retrocede.
Ao exemplificar as três características basilares dos gêneros sério-cômico,
Bakhtin esclarece que sua primeira peculiaridade “[...] é o novo tratamento que eles dão
à realidade. A atualidade viva, inclusive o dia a dia, é o objeto, ou, o que é mais
importante, o ponto de partida da interpretação, apreciação e formalização da realidade
(BAKHTIN, 2015, p. 122, 123, grifo do autor).
Acerca da segunda peculiaridade desses gêneros, o pensador da linguagem
esclarece que os gêneros sério-cômicos “baseiam-se conscientemente na experiência (se
bem que insuficientemente madura) e na fantasia livre” (BAKHTIN, 2015, p. 123,
grifos do autor).
71
A terceira e última peculiaridade fundamental e comum de todos os gêneros
integrantes do sério-cômico baseia-se na pluralidade de estilos e variedade de vozes de
todos esses gêneros. Caracteriza-se “pela politonalidade da narração, pela fusão do
sublime e do vulgar, do sério e do cômico” (BAKHTIN, 2015, p. 123, grifo nosso).
Destarte, é possível encontrar na trajetória da protagonista dO livro dos prazeres,
minudências concernentes às definições bakhtinianas supracitadas, ou seja, o estranho
movimento de recuo enquanto se avança, materializado na narrativa clariciana:
1. O cotidiano de Loreley estendido durante as quatro estações do ano.
2. As experiências (experimentações) da protagonista, mesmo que, de certa
forma, insuficientemente maduras.
3. Na banalização do sublime, isto é, no esvaziamento de algo maior preenchido
na rotina, no senso-comum.
Como exemplo dessas três características elencadas por Bakhtin e aqui
direcionadas à compreensão da experimentação de Lóri ao processo de sua
autoconsciência, faz-se necessário transcrever o excerto do romance citado
anteriormente, complementando-o com uma frase até então omitida.
[Ulisses] dissera uma vez que queria que ela, ao lhe perguntarem seu
nome, não respondesse “Lóri” mas que pudesse responder “meu nome
é eu”, pois teu nome, dissera ele, é um eu, perguntou-se se o vestido
branco e preto serviria, (LISPECTOR, 1998d, p. 13, grifo nosso).
A retomada da personagem ao seu cotidiano impele-a a “pausar” sua trajetória
que desencadeará a uma consciência suficientemente madura, mediante a reflexão sobre
si por meio do discursivo elevado e dá vazão à trivialidade, ao clichê feminino
concernente à vaidade.
Esse movimento de rebaixamento do discurso, de recuo enquanto se avança,
entrelaçado por frases irônicas e cenas clichês na materialidade de Uma aprendizagem
evidenciam, para além das oscilações e dos esvaziamentos concernentes à aprendizagem
de Lóri, o drama da linguagem, expressão vinculada ao crítico Benedito Nunes, que
sintetiza a encenação que a própria linguagem literária clariciana faz das questões e
conflitos que trata.
Fato observado pelo crítico Arnaldo Franco Júnior que, ao revisitar as
contribuições de Nunes acerca da encenação perscrutada na obra de Lispector, lê na
72
produção da autora, desde sua estreia com o saudado Perto do coração selvagem,
alcançando o texto derradeiro, A hora da estrela, a presença do recurso crítico kitsch
e/ou mau gosto.
Franco Júnior, no texto Questionando a identidade da literatura, produção em
que o pesquisador se debruça na obra A legião estrangeira, de Clarice Lispector, define
kitsch da seguinte forma:
Kitsch é uma palavra alemã incorporada, no século XX, ao discurso da
arte identificada como o programa modernista e à reflexão sobre a
questão da ate na Modernidade. O termo surgiu para a identificação de
obras que apresentavam – segundo uma concepção de arte como
atividade desinteressada (Kant) e de obra como o resultado
equilibrado de uma articulação orgânica de elementos contrastivos
(Aristóteles) – um desiquilíbrio entre os elementos e a função estéticos
e aqueles elementos e funções ligados a outros sistemas de valor
(comerciais, políticos, morais, religiosos, pedagógicos etc.)
(FRANCO JÚNIOR, 2003/2004, 132).
Ao estabelecer a presença deste recurso na obra de Clarice Lispector, o crítico
esclarece que:
Não só as personagens claricianas experimentam o paradoxo e a
afirmação simultânea de contrários que se afirmam e se anulam, se
harmonizam e se digladiam mortalmente. Também, o texto clariciano
aspira instalar-se no puro devir, participando e escapando
simultaneamente do centro e da periferia do sistema literário e, numa
constante, voltando-se contra as limitações de ambos. É com este
mesmo propósito que também o kitsch, tal como definido pela
tradição modernista, será mobilizado pela escritora (FRANCO
JÚNIOR, 2003/2004, p. 132, grifo do autor).
Assim esclarecido, Arnaldo Franco Júnior, para evidenciar a presença do
recurso crítico kitsch na escritura clariciana, divide a produção de Clarice em duas fases:
1. uma primeira fase que compreende desde os primeiros contos
datados de 1940/1941 e publicados postumamente na coletânea A Bela
e a Fera e vai até PSGH [A paixão segundo G.H.](1969); 2. Uma
segunda fase que compreende desde as crônicas publicadas no Jornal
do Brasil entre 1967 e 1973, estendendo-se até A hora da estrela, de
1977 (FRANCO JÚNIOR, 2000, p. 14).
Elencando a presença do kitsch e/ou mau gosto nas fases de produção da
escritora, Franco Júnior esclarece que
[...] na primeira fase de produção, os textos apenas tangenciam o
kitsch, seja através de referências ao mau gosto, à supremacia de
valores médios impostos como ideal de nossa cultura, aos
comportamentos e atitudes vulgares, sentimentalistas, excessivos,
teatrais, seja através de breves momentos em que a linguagem
dramatiza com maior ênfase o choque entre kitsch e o sublime. [...] É
na segunda fase de produção, iniciada com a incursão pela crônica
73
jornalística e com o lançamento de Uma aprendizagem ou o livro dos
prazeres, que o kitsch passa a ser incorporado como elemento de
construção do texto literário, protagonizando um dos polos do “drama
da linguagem” na obra da escritora (FRANCO JÚNIOR, 2000, p. 21,
25).
Acerca do romance Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, o especialista
reconhece a incorporação de estilemas kitsch (FRANCO JÚNIOR, 2000, p. 25) na
referida obra, isto é, na inserção de preceitos concernentes à ordem social, sobretudo, se
estruturá-la à definição de “romance de mocinha”, e pontua que a utilização do kitsch
e/ou mau gosto na obra de Clarice Lispector “parece ter por objetivo acirrar, através de
um confronto de linguagem, a tensão sublime x banal, e Clarice passa a usar o
desmedido, o clichê para tocar no gosto mau que o mundo às vezes tem” (FRANCO
JÚNIOR, 2000, p. 25, grifo nosso).
Para melhor entender, a inserção do kitsch, criticamente materializado nO livro
dos prazeres, corrobora para personificar as características concernentes à protagonista
Lóri: oscilações em seu processo de autoconhecimento. Desta forma, pode-se
reconhecer no avanço da aprendizagem de Lori um recuo crítico, em compasso com as
características da professora primária, isto é, “seu descompasso para a vida”49
, que
assegura a inserção do kitsch em Uma aprendizagem como complementação de
linguagem.
O kitsch se insinua no confronto de atitudes e comportamentos que
opõem a sublimidade da heroína à mediocridade dos que a rodeiam.
O kitsch se evidencia também no aprumo suburbano das personagens,
no seu modo de se vestir, no seu comportamento supostamente
respeitoso (FRANCO JÚNIOR, 2000, p. 19, 21).
Cabe frisar que, se somado à estruturação do romance Uma aprendizagem ou o
livro dos prazeres – sua pontuação, silêncios, oscilações – o recurso kitsch e/ou mau
gosto “[...] abre uma nova perspectiva de leitura dos textos da escritora, sobretudo
aqueles que, num primeiro momento, foram considerados por alguns como fracassos”
(FRANCO JÚNIOR, 2000, p. 32, grifo nosso).
É válido marcar, segundo o especialista, que o recurso kitsch instalado no texto
de Clarice Lispector
49
“Seu descompasso para com o mundo chegava a ser cômico de tão grande: não conseguira acertar o
passo com as coisas ao seu redor. Já tentara se pôr a par do mundo e tornara-se engraçado: uma das
pernas sempre curta demais” (LISPECTOR, 1998d, p. 20).
74
[...] não deve ser apenas lido em suas manifestações mais evidentes,
em geral, delimitadas e definidas a partir da tradição e dos valores que
animam e sustentam o sistema literário e cultural de nossa sociedade,
mas deve ser lido, também, como resultado de uma avaliação crítica
que nasce de um revés do olhar, que se firma como questionamento ao
que quer que se afirme aprioristicamente como belo, bom, ideal
(FRANCO JÚNIOR, 2003/2004, p. 132).
Se, no início do romance, o descompasso de Lóri para com sua aprendizagem
pode ser evidenciado na preocupação que a personagem possui com as roupas que deve
usar para se encontrar com Ulisses, com a maquiagem que lhe dará um grau de
segurança, com o uso do maiô apropriado a sublimar sua presença corporal (a vergonha
de se estar nas águas de uma piscina), as passagens finais do livro, a entrada de Lóri ao
mar, a união sexual dos amantes, evidenciam Lóri alcançando a simbologia do seu
nome em extensão: Loreley, a divindade das águas e a completude de se sentir plena
com seu corpo, respectivamente.
Desta forma, é válido pontuar que, embora os recuos na aprendizagem obedeçam
à cadência poética da escritura clariciana, tensionada no romance que aqui é tema
dissertativo, o processo de aprendizagem da protagonista é materializado no texto de
Clarice, a exemplo das cenas acima recortadas, abrindo espaço para uma consciência
madura, não mais insuficientemente.
Lúcia Helena Vianna enxerga na totalidade dO livro dos prazeres, isto é, aos
temas que a ele são recorrentes, o tom de suspense policial, o discurso filosófico, o
oratório cristão, o discurso do mito e o do folhetim, uma abordagem irônica na escrita
de Lispector, mas, segundo ênfase da ensaísta,
a ironia que marca a relação entre essas formas do dizer não é
contudo aquela que hostiliza o discurso alheio e que identifica de
modo explícito a paródia, como define Bakhtin. Trata-se de ironia
quase imperceptível e que subsiste pela marcação teatral que imprime
àquelas falas, das quais o narrador não parece poder escapar, porque,
por si mesmo, já é produto delas (VIANNA, 1999, p. 158-159).
A linguagem encenada que une o alto com o baixo, que rebaixa o sublime ao
corriqueiro, faz com que haja um recuo, enquanto há avanço, no partejar da ideia, na
passagem de Lóri a outro estatuto, sua autoconsciência. Há, portando, na travessia da
protagonista Loreley ao partejar de sua consciência, seja por meio da pontuação, das
falas da protagonista, a oscilação entre o vulgar e o sublime, uma quebra intencional e
competentemente articulada de Clarice para com a esfera racional de sua personagem.
75
Entretanto, ao delegar em pensamento voz ao possível posicionamento de
Ulisses a respeito do descompasso por ela refletido, Lóri manifesta uma das frases
emblemáticas da narrativa clariciana: “A condição não se cura, mas o medo da condição
é curável” (LISPECTOR, 1998d, p. 20).
O processo de desenvolvimento de Loreley, portanto, vincula-se ao
enfrentamento do medo de sentir dor: “ser era uma dor?” (LISPECTOR, 1998d, p. 21).
Marcado por um compasso gramatical insólito, isto é, com estruturas de
parágrafos diferentes do capítulo anterior, o segundo capítulo dO livro dos prazeres
apresenta uma esfera de extensa sequidão e quentura. “Era quase noite e ainda estava
claro. [...] E às seis horas da tarde fazia-se meio-dia” (LISPECTOR, 1998d, p. 22-23),
fazia calor e,
[...] a mulher não conseguia transpirar. Estava seca e límpida. [...] Se a
mulher fechava os olhos para não ver o calor, pois era um calor
visível, só então vinha a alucinação [ruptura da racionalidade] lenta
simbolizando-o: via elefantes grossos se aproximarem, elefantes doces
e pesados, de casca seca, embora mergulhados no interior da carne por
uma ternura quente insuportável; eles eram difíceis de se carregarem a
si próprios, o que os tornava lentos e pesados (LISPECTOR, 1998d, p.
22).
O texto supracitado aproxima dois campos semânticos: o do calor e o da seca. O
primeiro faz menção à esfera da natureza e por consequência à falta de água – um fato
histórico da década de 1960 na cidade do Rio de Janeiro – “há dois dias faltava água em
diversas zonas da cidade” (LISPECTOR, 1998d, p. 23). Entretanto, o calor natural,
ocasionado por uma temperatura alta e escassez de água, perpassa o habitat exterior da
protagonista, incorporando-o a seu estado de espírito. A intensidade do calor é tanta que
a protagonista, alucinada, sente o peso dos elefantes, metáfora que simboliza paralisia.
O externo une-se ao interno: o ânimo de Loreley é abalado pela temperatura
elevada. Ao analisar a representação do calor e a sequidão tecida na narrativa de
Lispector, Goreti Rodrigues dos Santos observa que:
[Clarice se utiliza de...] um vocabulário repleto de referências à
escassez de umidade por falta de chuva, às temperaturas elevadas do
verão tropical, que, aos poucos, adquire uma ambiguidade, uma vez
que o calor e a falta de ar ou de “um ópio amenizante”, estão inscritos
no corpo da protagonista e afetam todos os seus sentidos. [...] É
justamente no auge do verão que a narrativa e o processo de iniciação
começam, já com a descrição de uma Lóri adulta, que se encontra
cindida entre o desejo de se tornar sujeito do próprio crescimento
interior e o desejo de voltar à mediocridade, às máscaras, a uma vida
sem grandes alegrias, mas também sem grandes tristezas e
responsabilidades (SANTOS, 2006, p. 95).
76
Por conseguinte, os dois primeiros capítulos de Uma aprendizagem ou o livro
dos prazeres evidenciam uma Lóri exposta a situações de extrema sequidão, quentura e
infertilidade. “Não é só a dor que a toma. A incapacidade de sentir qualquer coisa, de
criar qualquer coisa, de viver qualquer coisa a tomam completamente. Ela é uma mulher
paralisada pelo medo de viver” (TAVARES, 2012, p. 41).
A dificuldade era uma coisa parada. É uma joia diamante. E se o Deus
se liquefaz enfim em chuva? Não. Nem quero. Por seco e calmo ódio,
quero isso mesmo, este silêncio feito de calor que a cigarra rude torna
sensível. Sensível? Não se sente nada. [...] E não chove, não chove.
Não existe menstruação. Os ovários são duas pérolas secas. Vou vos
dizer a verdade: por ódio seco, quero é isto mesmo, e que não chova
(LISPECTOR, 1998d, p. 23-24).
O diálogo interior da Loreley que abre o romance clariciano expõe na narrativa
uma personagem que reflete em seu interior as mazelas que a alta temperatura ocasiona:
uma paralisia seca, quente, sem vestígios de lágrima e suor. O externo, por sua vez,
alcança o corpo da protagonista tornando secas suas mãos, petrificando reações
corporais e por consequência suas emoções: sua menstruação é inexistente, isto é, o
preparo para um novo ciclo que possibilita a gestação de vida é petrificada, seus “[...]
ovários são duas pedras secas” (LISPECTOR, 1998d, p. 24).
A ausência de chuva, de água – que é um dos símbolos recorrentes na costura do
romance – aponta para uma possível ruptura com a aprendizagem da protagonista, uma
vez que sua iniciação ritualística se consolida por meio da fecundação propiciada pelas
águas, porém, no final do segundo capítulo, a narração esclarece que a seca externa não
é de toda a responsável pelo estado de espírito da protagonista, uma vez que “Lóri não
percebe que aquilo que a queimava não era o fim da tarde encalorada, e sim o seu calor
humano” (LISPECTOR, 1998d, p. 25).
A percepção da protagonista, em um processo constante de desenvolvimento de
sua autoconsciência, pressupõe, apenas, que “alguma coisa vai mudar, que choverá ou
cairá a noite” (LISPECTOR, 1998d, p. 25). Entretanto, Loreley, não suportando a
espera de uma passagem, “e, antes da chuva cair, o diamante dos [seus] olhos se
liquefaz em duas lágrimas” (LISPECTOR, 1998d, p. 25).
O desfecho do segundo capítulo postula a necessidade de a protagonista –
figuração do arquétipo do ser lendário inscrito em seu nome – estar ligada às águas. É
na secura do seu calor humano, primeiramente, que se faz necessário o fluir de águas.
77
A visão aqui tem suma importância para a passagem das águas: por meio de um
novo posicionamento visual, de uma nova maneira de reconhecer sua condição humana,
a protagonista desenvolve vestígios de sua iniciação, o preparo às águas da piscina e do
mar, episódios centrais do romance, realizado por meio do olhar da heroína, que, no
final do tópico, se permite experienciar o poder renovador do choro, “o diamante dos
olhos se liquefaz em duas lágrimas. E enfim o céu se abranda” (LISPECTOR, 1998d, p.
25).
Há, portanto, uma aproximação tímida, insuficientemente madura, de Lóri às
águas. O enfoque dialógico de si mesmo, isto é, o solilóquio, não se complementa
satisfatoriamente nessa primeira abordagem, uma vez que, de acordo com Bakhtin.
[...] na descoberta do homem interior – de “si mesmo” – inacessível à
auto-observação passiva e acessível apenas ao enfoque dialógico de si
mesmo, que destrói a integridade ingênua dos conceitos sobre si
mesmo. [...] O enfoque dialógico de si mesmo rasga as roupagens
externas da imagem de si mesmo, que existem para outras pessoas,
determinam a avaliação externa do homem (aos olhos dos outros) e
turvam a nitidez da consciência-de-si (BAKHTIN, 2015, p. 137).
Para além de uma aproximação tímida ao solilóquio, no decorrer da narrativa dO
livro dos prazeres, Lóri consegue se desprender da extensa mancha vermelha que
permeia sua aprendizagem – ao calor, à sequidão, à infertilidade – dando vazão às águas
da chuva, tão necessárias à passagem de um estado a outro, por meio da pergunta que é
comum às personagens de Clarice Lispector: Quem sou eu?
Porque ela estava sentindo a grande dor. Nessa dor havia porém o
contrário de um entorpecimento: era um modo mais leve e silencioso
de existir. Quem sou eu? Perguntou-se em grande perigo. E o cheiro
do jasmineiro respondeu: eu sou o meu perfume (LISPECTOR, 1998,
p. 144, grifo nosso).
Após sua autoindagação articulada na narrativa por meio de três palavras ligadas
à interrogação, Lóri percebe que para se perfumar é preciso se conhecer, desta forma, a
pergunta pontuada acima abre espaço para a descoberta “do homem interior” acessível
ao “enfoque dialógico de si mesmo”. Por consequente, a protagonista “destrói a
integridade ingênua dos conceitos sobre si”, e a esfera de sequidão, pontuada no início
do romance, que fazia com que a personagem rompesse com a automatização de sua
consciência, abre, agora, no fluxo narrativo, vazão ao fluir das águas. “A chuva e Lóri
estavam tão juntas como a água da chuva estava ligada à chuva” (LISPECTOR, 1998,
145).
78
O enfoque dialógico de si mesmo50
, isto é, o solilóquio, estabelece na tessitura
do texto de Clarice Lispector uma densidade introspectiva que viabiliza a
autoconsciência de Loreley. No excerto supracitado, pontuado pela pergunta Quem sou
eu?, a protagonista chega à experimentação suficientemente madura das águas: não
restrita apenas às lágrimas, mas à incorporação do fluir da chuva no corpo da
personagem clariciana. Emanuel, Deus dentro do humano. As águas, um ritual dentro de
Lóri: uma simbologia que alcança o percurso ritualístico que as águas desempenham na
tessitura de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres.
É por isso que após a indagação “logo seu coração bateu ainda mais depressa e
alto porque ela compreendeu que não adiaria mais” (LISPECTOR, 1998, p. 146, grifos
nossos). O descompasso de vida, a paralisia, a sequidão, as maquilagens, já não
permeiam em potencialidade as experimentações de Lóri, que, ao se direcionar ao
encontro de Ulisses,
Pegou na bolsa o endereço dele escrito no guardanapo, vestiu a capa
de chuva sobre a camisola curta, e no bolso da capa levou algum
dinheiro. E sem pintura nenhuma no rosto, com o resto dos cabelos
curtos, caindo sobre a testa e a nuca, saiu para tomar um táxi. Fora
tudo tão rápido e intenso que não se lembrara sequer de tirar a
camisola, nem de se pintar (LISPECTOR, 1998, p. 146).
Norteando a análise da constituição da personagem Loreley à aquisição de sua
autoconsciência, reconhecendo no texto de Clarice Lispector os mecanismos discursivos
discutidos por Bakhtin acerca dos gêneros sério-cômico, do diálogo socrático, a análise
doravante estende-se às definições de anácrise e síncrise, procedimentos do gênero
diálogo socrático.
A anácrise, de acordo com o pensador russo, é “a técnica de provocar a palavra
pela própria palavra” (BAKHTIN, 2015, p. 126), isto é, levar o interlocutor a externar
suas opiniões preconcebidas, objetivando à revisão destas concepções, desmascarando
sua falsidade à luz da nova realidade.
Ulisses, estabelecendo diálogo com Loreley, recuperando da protagonista
informações acerca de suas origens agrárias pertinentes ao interior do Rio de Janeiro,
bem como as cinco experiências amorosas que a professora experienciou, sem êxito de
satisfação íntima, faz uso da técnica provocativa, entendida como anácrise, para auxiliá-
50
“O enfoque dialógico de si mesmo determina o gênero do solilóquio. Trata-se de um diálogo consigo
mesmo” (BAKHTIN, 2015, p. 137).
79
la na sua trajetória existencial: “ Lóri, ouça: pode-se aprender tudo inclusive a amar! E o
mais estranho, Lóri, pode-se aprender a ter alegria!” (LISPECTOR, 1998d, p. 51).
O desenvolvimento do diálogo iniciado por Ulisses resulta da concretização da
anácrise, isto é, Lóri, ao ouvir o posicionamento do professor acerca do que este
pensava sobre a aprendizagem do amor e da alegria, externa, por sua vez, seus
pensamentos. A palavra provocada por Ulisses alcança as palavras de Lóri, que em
reflexão expõe:
– Parece tão fácil à primeira vista seguir conselhos de alguém. Seus
conselhos, por exemplo. [...] Mas existe um grande, o maior obstáculo
para eu ir adiante: eu mesma. Tenho sido a maior dificuldade no meu
caminho. É com enorme esforço que consigo me sobrepor a mim
mesma. [...] Sou um monte instransponível no meu próprio caminho.
Mas às vezes por uma palavra tua ou por uma palavra lida, de repente
tudo se esclarece (LISPECTOR, 1998d, p. 53).
A técnica provocativa inserida no diálogo por Ulisses, a anácrise, faz com que
Lóri reflita acerca da paralisia que reveste sua vivência, marasmo concernente ao
próprio cerne da personagem, que com “enorme esforço” visiona a sobreposição da dor
ao prazer – da ignorância à compreensão –, fato possibilitado por intermédio do
esclarecimento que Ulisses, “por uma palavra tua”, ou a esfera literária, “por uma
palavra lida” proporciona à professora: a provocação da palavra pela própria palavra,
isto é, o desencadear do processo reflexivo em Lóri para que ela mesma encontre a sua
verdade.
No processo de autoconsciência da personagem, a síncrise, também expressa no
texto de Clarice Lispector, corrobora para uma interpretação discursiva ligada ao
diálogo socrático. Definida por Bakhtin como “[... a técnica de] confrontação de
diferentes pontos de vista sobre determinado objeto” (BAKHTIN, 2015, p. 126), a
síncrise, em outros termos, pode ser caracterizada pela interposição dos diferentes
pontos de vista dos interlocutores acerca da temática em pauta, posicionamento que
viabiliza uma “experimentação dialógica da ideia [que] é simultaneamente uma
experimentação do homem que a representa” (BAKHTIN, 2015, p. 127).
A ideia exposta representa a imagem do homem que a defende, bem como
também atua como instrumento para que o outro repense o seu modo de ser no mundo.
A síncrise e a anácrise convertem o pensamento em diálogo,
exteriorizam-no, transformam-no em réplica e o incorporam à
comunicação dialogada entre os homens. Esses dois procedimentos
decorrem da concepção da natureza dialógica da verdade, concepção
80
essa que serve de base ao “diálogo socrático” (BAKHTIN, 2015, p.
126, grifo do autor).
Assim posto, compete elucidar o avanço da narrativa em que a aprendizagem de
Loreley se consolida por meio da síncrise, isto é, do confronto dos diferentes modos de
pensar que possibilita à personagem experimentar as várias ideias e fazer as suas
escolhas.
Após receber um telefonema de Ulisses convidando-a para encontrá-lo em um
clube, Lóri compra um maiô novo e vai, timidamente, ao encontro de Ulisses, que
estava sentado à borda da piscina. Percebendo o incômodo de sua namorada por estar
“praticamente nua” (LISPECTOR, 1998d, p. 67) ante sua presença, o professor de
Filosofia inicia um diálogo provocativo, isto é, vinculado à técnica discursiva da
anácrise: “– Veja aquela moça, ali por exemplo, a de maiô vermelho. Veja como anda
com um orgulho natural de quem tem um corpo. Você, além de esconder o que se
chama alma, tem vergonha de ter um corpo” (LISPECTOR, 1998d, p. 68).
Replicando à provocação da fala de Ulisses, em pensamento Lóri evidencia a
síncrise, isto é, técnica discursiva que reúne tanto a provocação quanto o confronto
direcionado à ideia levantada por Ulisses. À provocação imposta por Ulisses, segue-se o
excerto:
Ela não respondeu, mas atingida, tornou-se imperceptivelmente mais
rígida. Depois, como sentiu que ela não ia dizer mais nada, pôde aos
poucos relaxar os músculos. Pensou – tanto quanto lhe era possível
pensar estando de maiô na frente dele – pensou: como é que explicaria
a ele, mesmo que quisesse, e não queria, o longo caminho andado até
chegar àquele momento possível em que suas pernas se balançavam
dentro da piscina. E ele ainda achava pouco. Como explicar que, do
longe de onde de dentro de si ela vinha, já era uma vitória estar
semivivendo. Porque enfim, uma vez quebrado o susto da nudez
diante dele, ela estava respirando de leve, já semivivendo
(LISPECTOR, 1998d, p. 68).
Embora tímida, Lóri estava “semivivendo”. Definição que contempla o fato da
heroína clariciana estar junto ao seu companheiro de maiô, um “longo caminho andando
até chegar àquele momento possível”, isto é, a tessitura do texto em questão aponta para
um primeiro gesto de afirmação da professora ante o susto de estar seminua diante de
Ulisses, que se desdobra em uma afirmação pessoal, vestígios de um novo
posicionamento de se sentir e de estar no mundo.
A par do solilóquio, outra variante do diálogo socrático que contempla a análise
desta dissertação é o chamado diálogo no limiar. O gênero, de acordo com Bakhtin, tem
81
por tendência a criação excepcional de uma dramaticidade na tessitura do texto que
“obriga o homem a descobrir as camadas profundas da [sua] personalidade e [do] seu
pensamento.” (BAKHTIN, 2015, p. 127).
Caracterizado pelo confronto entre duas consciências, entre duas maneiras de ver
e de refletir o mundo, o diálogo no limiar impele a personagem da narrativa a desvelar
os fatos numa dimensão de autoconhecimento. Por intermédio do limiar, a personagem
é impelida a decidir afirmativa ou negativamente por uma nova experimentação de vida,
a autoconsciência.
Analisando as referências de leitura em toda a poética de Clarice Lispector,
Ricardo Iannace, no livro A leitora Clarice Lispector51
, aproxima as personagens da
autora para com a ficção do escritor russo Dostoiévski. O pesquisador evidencia que,
semelhantemente ao compasso narrativo do escritor, a escrita de Clarice põe em questão
personagens “com fortes sentimentos de indecisão, [que] apreendem o mundo por meio
de díspares verdades” (IANNACE, 2001, p. 71).
Bakhtin esclarece que o limiar representa o “momento da mudança da vida, da
crise, da decisão que muda a existência (ou da indecisão, do medo de ultrapassar o
limiar)” – (1998, p. 354).52
A experimentação dialógica vivenciada por Lóri, isto é, a
linguagem que em si é fruto da alteridade proporcionada por Ulisses, o partejar das
ideias, reflui na tensão proveniente do estar no limiar, do estar entre. Fato materializado
no discurso de Lóri quando esta avalia a fala de Ulisses, depois avalia a si mesma diante
do parâmetro interposto por seu interlocutor e conclui que avançou no seu
autoconhecimento – está agora “semivivendo.”
Após sonhar que Ulisses estava com outra mulher, Lóri é acordada em
sobressalto pelo ciúme e pela cólera. O sonho desperta em Lóri uma vontade maior de
autoconhecimento e rompimento com a normalidade de sua existência. E esse
conhecimento íntimo acarreta em deixar de lado o pudor com que até então vivera. Para
tanto, Lóri passa a viver de forma centrífuga, isto é, visiona para si uma emancipação da
condição feminina que lhe fora imposta, dando passagem para que o seu desejo sexual a
conduza a novas experiências como mulher, fato materializado na narrativa clariciana
51
“Para uma escritora que se deteve com afinco na sondagem de comportamentos, registrando os
desiquilibrados passos de suas personagens, insistindo sempre em demarcar os pontos culminantes da
vida, a leitura de [... Dostoivéski] só lhe teria de fato a acrescentar” (IANNACE, 2001, p. 71). 52
Entrevistando Tom Jobim, Clarice se deixa entrevistar e postula: “É que sinto que nós chegamos ao
limiar de portas que estavam abertas – e por medo ou pelo não sei, não atravessamos plenamente essas
portas. Que no entanto têm nelas já gravado nosso nome. Cada pessoa tem uma porta com seu nome
gravado, Tom, e é só através dela que essa pessoa perdida pode entrar e se achar” (LISPECTOR, 1999b,
p. 121, 122).
82
por meio da experiência erótica que a professora primária vivenciará junto às águas do
mar. A esse respeito, em que o sujeito resiste a um fio centralizador e cristalizado,
Fiorin aponta que:
O sujeito bakhtiniano não está completamente assujeitado aos discursos
sociais. Se assim fosse, negar-se-ia completamente a concepção de
heteroglossia e de dialogismo, centrais na obra do filósofo. A utopia
bakhtiniana é poder resistir a todo processo centrípeto e centralizador.
No dialogismo incessante, o ser humano encontra o espaço de sua
liberdade e de seu inacabamento (FIORIN, 2008, p. 28).
Com essa reflexão de que o ser se constitui, constante e inesgotavelmente,
vislumbrando um processo centrífugo, em que sua liberdade e construção são
asseguradas, é possível asseverar que na narrativa clariciana a personagem Lóri,
enquanto mulher – histórica e social –,é moldada em limitações, mas essas limitações
não são determinadas, há espaço para uma constante ressignificação de sua consciência.
Ao introduzir sua personagem no mar, a autora escolhe não mais a água insossa
da piscina, e sim as águas salgadas da praia de Ipanema.53
A água novamente é
apresentada como elo que conduz Lóri ao conhecimento maior: não mais semiviver,
mas viver. O que lhe ocorre é, de madrugada, entrar na água do mar, sem o olhar do
outro sobre si, sem a preocupação de manter-se sóbria ante seus desejos e instintos. Por
estar sozinha, a preocupação também se reveste em não escandalizar a tradição; o pudor
permanece moldado na personagem. Bakhtin, ao apresentar pressupostos acerca da
constituição do sujeito, aponta que
[...] avaliamos a nós mesmos do ponto de vista dos outros, através do
outro procuramos compreender e levar em conta os momentos
transgredientes à nossa própria consciência: desse modo, levamos em
conta o valor de nossa imagem externa do ponto de vista da possível
impressão que ela venha a causar no outro [...] (BAKHTIN, 2011, p. 13-
14).
Pode-se afirmar que Lóri vivencia um embate em que seus valores são acionados
e, de forma avaliativa, colocados em questão. Embora refute o olhar do outro sobre si,
vislumbra uma amenidade perante sua nova condição, a de encarar o mar e sua força.
Sozinha, em jejum e de noite, Lóri se dirige ao mar. “E tinha a responsabilidade de ser
53
O capítulo que narra a entrada de Lorí ao mar foi publicado, primeiramente, como crônica no Jornal do
Brasil, em 27 de julho de 1968, intitulado Ritual. O mesmo texto apresentado pela autora com o título de
As águas do mundo aparece como conto na compilação Felicidade Clandestina, de 1971, e, em 13 de
outubro de 1973 é publicado outra vez no Jornal do Brasil como crônica. Seu último registro foi como
conto, em 1974, na obra Onde estivestes de noite.
83
ela mesma. Nesse mundo de escolhas, ela parecia ter escolhido” (LISPECTOR, 1998d,
p. 68).
Ao eleger as águas salgadas do mar para vivenciar o ato epifânico, Lóri
privilegia justamente um ambiente em que os olhares familiares não a coibirão, uma vez
que em Campos, cidade de onde vinha, não havia mar. Entra, então, no mar e encara
suas águas como numa relação erótica: “E era isso o que estava lhe faltando: o mar por
dentro como o líquido espesso de um homem” (LISPECTOR, 1998d, p. 80). Simulação
sexual que faz com que a personagem clariciana reveja seu posicionamento diante da
sua vivência com as águas salgadas do mar de Ipanema.
De acordo com Mikhail Bakhtin, “A vida conhece dois centros de valores,
diferentes por princípio, mas correlatos entre si: o eu e o outro, e em torno destes
centros se distribuem e se dispõem todos os momentos concretos do existir”
(BAKHTIN, 2010, p. 142).
O embate com o outro, na narrativa clariciana, pode ser considerado pelo duelo
íntimo da personagem, seu quadro de valor refratado que desencadeia com maior fluxo
diante do mar. “Ela e o mar. Só poderia haver um encontro de seus mistérios se um se
entregasse ao outro: a entrega de dois mundos incognoscíveis feita com a confiança com
que se entregariam duas compreensões” (LISPECTOR, 1998d, p. 78).
E é imersa nas águas do mar, e este com sua dimensão e gosto, que Lóri
vivencia o náufrago de seus valores pré-estabelecidos e se posiciona para o
conhecimento de si mesma. E essa nova descoberta restabelece seu posicionamento
diante de si e do outro, em deixar de lado um juízo de valor institucionalizado – como
ser histórico e social – para incorporar em sua vivência, nesse ato evêntico, um novo
acontecimento existencial baseado numa relação com o outro, em que o sujeito precisa
abandonar sua “bagagem modular”, engessada, e afirmar-se numa nova perspectiva de
sentidos.
O ser se constrói através do outro, isto é, traz consigo a construção do eu-moral
que é constantemente, numa ação axiológica, revisitada num processo de confirmação
ou refratamento. Lóri, ao encontrar-se com as águas do mar, enfrenta uma eventicidade
que lhe ocasiona um refratamento em relação a seus preceitos. E é preciso coragem para
romper com o quadro de valor até então imposto à personagem. “A coragem de Lóri é a
de, não se conhecendo, no entanto prosseguir, e agir sem se conhecer exige coragem”
(LISPECTOR, 1998d, p. 79).
84
Passados os dois episódios narrativos de autoconhecimento vivenciado por Lóri
– a entrada da protagonista às aguas da piscina e do mar –, reencontrando Ulisses, a
professora primária decide vê-lo sem maquiagem, isto é, “Sem máscara. [Porque]
Sentia-se mais segura por ter entrado no mar sozinha e pretendia ver se teria coragem de
contar a Ulisses a vitória” (LISPECTOR, 1998d, p. 88).
Ao chegar ao bar, vendo-o:
[...] sentado junto ao copo de uísque – inesperadamente a visão dele,
bem longe ainda, provocou-lhe uma feliz e terrível grandeza humana,
grandeza dele e dela. Parecia assustada por estar avançando dentro de
si talvez depressa demais e com todos os riscos – em que direção?
(LISPECTOR, 1998d, p. 88).
O avanço de sua consciência provoca um assombro que ocasiona à protagonista
uma reflexão acerca do novo posicionamento diante de Ulisses. A personagem percebe,
em desafio à condição estagnada de conformidade para com a vida, que a visão de
Ulisses, recebendo-a no bar, sintetiza, na professora, sua vitória vivenciada junto às
águas da piscina e do mar, “duas sensações numa só vitória tímida” (LISPECTOR,
1998d, p. 89). Vitória, embora tímida, que abre espaço para o conhecimento da
protagonista dimensionado na possibilidade da abertura de uma nova porta, “uma porta
aberta a uma vida nova” (LISPECTOR, 1998d, p. 154). Novidade de vida vincada, por
sua vez, ao limiar, isto é, à constância de tensões que a vida, dia após dia, possibilita às
vivências do indivíduo na esfera real de sua existência.
No romance Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres o cotidiano é celebrado
como possibilidade autêntica para uma experimentação dialógica, para o embate de duas
ideias, para a reflexão acerca dos conflitos existentes “[...] entre mim e eu, entre mim e
os homens, [e consequentemente] entre mim e Deus.”54
(LISPECTOR, 1998f, p. 86),
uma vez que, como já assinalado, a esfera mística também possibilita à personagem
clariciana o vivenciar de sua autoconsciência.
Tendo como mote a possibilidade de uma nova vida atribuída aos protagonistas
de Uma aprendizagem, as páginas finais do romance, já a apresentar uma Loreley sem
resquícios aparentes de uma tentativa de conter a incerteza da vida, vincam na fala de
Ulisses o constante renovo que o cotidiano oferece para a autoconsciência:
54 “Eu, alquimista de mim mesmo. Sou um homem que se devora? Não, é que vivo em eterna mutação,
com novas adaptações a meu renovado viver e nunca chego ao fim de cada um dos modos de existir. Vivo
de esboços não acabados e vacilantes. Mas equilibro-me como posso, entre mim e eu, entre mim e os
homens, entre mim e o Deus” (LISPECTOR, 1998f, p. 86).
85
Nós dois sabemos que estamos à soleira de uma porta aberta a uma
vida nova. É a porta. E sabemos que só a morte de um de nós há de
nos separar. Não, Lóri, não vai ser uma vida fácil. Mas é uma vida
nova. (Tudo me parece um sonho. Mas não é, disse ele, a realidade é
que é inacreditável) (LISPECTOR, 1998d, p. 154).
A soleira é o limiar da porta55
, a anteporta, o constante estar entre. É a
possibilidade de ampliação da consciência do indivíduo, marcada explicitamente na
tessitura do texto clariciano, de abertura para um encontro sereno do sobrenatural no
natural. A morte é a impossibilidade de manter o diálogo, de manter a perspectiva de
um constante construto, “só a morte de um de nós há de nos separar”, isto é, com a
morte já não há necessidade de experimentação dialógica.
À ampliação de sua consciência o indivíduo se vale, segundo Bakhtin, de “[...]
tudo o que nele é determinado pelas palavras “eu mesmo” ou “tu mesmo” é tudo em que
ele se descobre, se percebe, é tudo por que ele responde, tudo o que se situa entre o
nascimento e a morte” (BAKHTIN, 2015, p. 328-329). Enquanto há vida, o embate para
com o outro e com o outro, desencadeado em uma construção renovada de consciência é
possível.
Assim posto, o solilóquio, diálogo socrático, o diálogo no limiar, permeados
pelo recurso crítico kitsch e/ou mau gosto e da ironia, dizem respeito, na análise literária
do corpus desta dissertação, à maneira com que a protagonista toma consciência de estar
no mundo, de sentir o mundo – numa experimentação dialógica – e como essa
consciência contribui para o alcance do autoconhecimento.
55
“O limiar, a porta e a escada. Sua importância cronotópica. A possibilidade de, em um instante,
transformar o inferno no paraíso (isto é, passar de um para o outro)” (BAKHTIN, 2015, p. 336).
86
CAPÍTULO 3: A POÉTICA DO CORPO INTEIRO EM UMA APRENDIZAGEM
OU O LIVRO DOS PRAZERES
A única forma adequada de expressão verbal da autêntica vida do
homem é o diálogo inconcluso. A vida é dialógica por natureza. Viver
significa participar do diálogo: interrogar, ouvir, responder,
concordar, etc. Nesse diálogo o homem participa inteiro e com toda a
vida: com os olhos, os lábios, as mãos, a alma, o espírito, todo o
corpo, os atos.
Mikhail Bakhtin, Problemas da poética de Dostoiévski
Vale a pena esperar, contra toda a esperança,
o cumprimento da Promessa que Deus fez a nossos pais no deserto.
Até lá, o sol-com-chuva, o arco-íris, o esforço de amor,
o maná em pequeninas rodelas, tornam boa a vida.
A vida rui? A vida rola mas não cai. A vida é boa.
Adélia Prado, O coração disparado
Três anos antes de sua morte, isto é, em 1974, Clarice Lispector lança o livro de
contos intitulado A via crucis do corpo. O rompimento da autora para com as normas
sociais de bom pudor, consideradas à mulher que escreve, amplia-se com a publicação
desse título: o assunto dos contos beira ao pornográfico. Um livro que, se lido
superficialmente, destoa da obra lispectoriana, uma vez que a escritora discute, crua e
diretamente, o enfoque sexual em suas personagens56
. São treze contos curtos, que se
somados ao texto Explicação, que abre o livro, como numa encenação de prefácio57
,
remontam às catorze etapas da via sacra cristã. O sofrimento, que no sentido religioso
aponta para uma elevação espiritual, ressurreição, na compilação de contos claricianos é
associado às experiências terrenas. Experiências que evocam a sensualidade/erotismo do
corpo humano, bem como a compreensão de se ter um corpo desencadeado na
consciência de ser e estar no mundo. Nesse veio, portanto, o profano é celebrado como
condição humana58
, na tessitura escritural de Clarice Lispector.
56
“No entanto, ela [Clarice] é a mesma de sempre, a que nunca se recusou a fitar com os olhos abertos a
selvageria do desejo humano, da avidez humana, da sordidez humana”(CHIARA apud LISPECTOR,
1998g, primeira orelha). 57
No livro Clarice Lispector e a encenação da escritura: em A via crucis do corpo, Nilze Maria Reguera
detém-se a analisar com profundidade, como sugere o título de seu trabalho, a encenação materializada
por Clarice na compilação de contos publicados em 1974. 58
Adélia Prado, no poema intitulado Direitos humanos, evidencia tal condição: “Sei que Deus mora em
mim [...] mas essa letra é minha” (PRADO, 2007b, p. 69).
87
O profano, sob a ótica poética de Clarice, não é enxergado como ofensa ou
distanciamento ao/do divino. A concepção clariciana de profano reside – diferentemente
do termo em sua etimologia, isto é, alheio ao que é considerado sagrado – em conferir
uma espécie de santidade terrena ao indivíduo59
, em outros termos, não sublimar a
condição humana em comparação ao que é divino. “Vós sois deuses” (LISPECTOR,
1998f.) é a expressão citada por Lóri que se encontra gravada primeiramente no Antigo
Testamento da Bíblia Sagrada e redimensionada no Novo Testamento por Jesus
Cristo60
. Grife-se que a esfera mística é comungada pelas personagens de Clarice
Lispector. Lóri se dirige ao Deus em oração tradicional e íntima no romance, porém, a
trajetória da heroína clariciana se consolida, sobretudo, na experimentação de sua
realidade, da sua corporeidade: sua autoconsciência.
O corpo é elemento recorrente e de vital importância à compreensão do texto
Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres de Clarice Lispector; é por meio dele que
Loreley, a protagonista deste que é o sexto romance da autora, como já observado pela
crítica Olga de Sá, “faz um exercício prévio para o amor, reativando sua capacidade de
sentir, nos mercados, reaprendendo a cheirar, a tatear as frutas, enfim uma reeducação
dos sentidos para atingir um sentimento além deles, de que Lóri parecia incapaz” (SÁ,
2004, p. 282).
Se as personagens de Clarice, no livro A via crucis do corpo, evidenciam “o
corpo nos seus desarranjos pulsionais, na tirania dos seus desejos, nas suas fraturas e
feridas, nos seus êxtases” (CHIARA apud LISPECTOR, 1998g, contracapa), para além
do gozo sexual, o que à Lóri é destinado na escrita de Clarice nO livro dos prazeres é
uma experimentação amorosa conquistada por meio de um desempenho mental e
corporal. “A racionalidade não é uma condição oposta ao sentimento. [...] No texto, o
saber se efetiva como suporte do prazer” (GROB-LIMA, 2009, p. 223).
Cumpre observar que o enfrentamento de Clarice Lispector – “a liberdade
maior” – no que tange à realização de um texto contemplado na sensualidade do amor e
do prazer carnal é vital no romance Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres.
Nem antes nem depois ela alcança o mesmo grau de vibração erótica
entre dois seres humanos na presença um do outro, nem mesmo em
seu proposto livro “pornográfico” A via crucis do corpo. O erós da
59
“Escuta, existe uma coisa que se chama santidade humana, e que não é a dos santos. Tenho medo de
que nem o Deus compreenda que a santidade humana é mais perigosa que a santidade divina, que a
santidade dos leigos é mais dolorosa. Embora o próprio Cristo tenha sabido que se com Ele haviam feito o
que fizeram, conosco fariam muito mais, pois Ele dissera: ‘Se fizeram isso com o ramo verde, o que farão
com os secos’” (LISPECTOR, 1998c, p. 130). 60
Salmo 82: 6 e João 10: 34.
88
escrita clariciana parece ter uma dificuldade em se imiscuir nos
humores da carne. E mesmo em O livro dos prazeres ele só o faz
timidamente, embora seja essa a sua mais veemente exposição
(PIRES, 2006, p. 204).
No livro de estreia de Clarice Lispector, Perto do coração selvagem, a palavra
corpo é grafada cerca de cento e trinta e sete vezes. A expressão corporal é lugar
comum na poética da autora. Ocorrência reiterada em Uma aprendizagem ou o livro dos
prazeres: a grafia corpo é sinalizada cinquenta e três vezes na tessitura desse texto, além
dos seus desdobramentos, como elencados a seguir:
Corpo-casa (p. 29),
Corpo-alma (p. 47),
Corpo a corpo (p. 76 - 2 vezes; p. 77, p. 96),
Corpos (p. 92).
Essa constatação direciona a dissertação a uma abordagem direta para com a
importância atribuída pela autora ao corpo de sua protagonista. Lóri terá que passar por
uma via crucis do seu corpo, mortificando e modificando padrões, estereótipos;
reativando os seus sentidos, até alcançar “[...] a dádiva indubitável de existir
materialmente” (LISPECTOR, 1998, p. 135). A trajetória da heroína de Clarice
Lispector no romance Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, portanto, se
consolida na vivência das quatro estações do ano. O foco a partir de então privilegiará o
tempo, isto é, o verão, o outono, o inverno e a primavera, em consonância com o
aprendizado corpóreo de Lóri.
3.1 PRIMAVERA/VERÃO
Antes da vírgula e do gerúndio que dão início ao romance Uma aprendizagem
ou o livro dos prazeres, salta aos olhos do leitor, como uma espécie de subtítulo do
livro, a seguinte grafia:
A Origem da Primavera
Ou
A Morte Necessária em Pleno Dia
Tal como a possível disjunção concernente ao título do romance, isto é, a
dicotomia existente na nomenclatura da obra Uma aprendizagem / O livro dos prazeres,
89
a grafia em destaque prenuncia o processo pelo qual a protagonista vivenciará: um ciclo
completo com seu início na primavera, passando pelas outras estações, encerrando de
forma a regressar na primavera, estação primeira que surge renovada à protagonista.
Durante a trajetória de Lóri, materializada no romance por um período de um
ano, a via crucis se apresentará à personagem, e para ressurgir no alcance de uma nova
dimensão de sua consciência, a morte como simbologia para a ressureição se fará
necessária. “Mas se a origem da primavera é a morte necessária em pleno dia, Loreley a
anela, e tal qual Penélope trama sua mortalha” (MOCHIUTI, 2006, p. 76):
Ah como queria morrer. Nunca experimentara ainda morrer – que
abertura de caminho tinha ainda à frente. Morrer teria a mesma
pungência indivisível do bom. A quem daria sua morte? Que seria
como os primeiros calores frescos de uma nova estação (LISPECTOR,
1998d, p. 117, 118).
O processo de morte desencadeado na vida, já aludido nesta dissertação nas
análises interpretativas das três epígrafes que compõem os paratextos desse romance,
será distendido nas análises sequentes.
Sublinhe-se neste momento as contribuições de Olga de Sá às possibilidades
interpretativas acerca da disjunção dos títulos dos romances de Clarice Lispector:
Já se disse que a poética de Cortázar é a do “escorpião encalacrado”,
mordendo sua própria cauda. Clarice também trabalha desgastando a
linguagem, denunciando o ato de escrever, alertando constantemente a
consciência do leitor para o fato insofismável, mas esquecido, de que
ele é leitor e ela escreve, isto é, faz literatura, inventa universos de
palavras. Tanto o ato de escrever como o ato de ler são questionados,
na ficção de Clarice, em agoniado confronto com o ser o viver61
(SÁ,
1993b, p. 20).
Sob esse viés de questionamento, pode-se afirmar que Clarice busca um leitor
atuante para se ater aos seus escritos. A nota que abre o romance A paixão segundo
G.H. evidencia tal premissa: “Este livro é como um livro qualquer mas eu ficaria
contente se fosse lido apenas por pessoas de alma já formada” (LISPECTOR, 1998c, p.
7). O leitor é convidado a pactuar com a escritora, a visitar seu universo de escrita,
consciente de que sua criação ficcional, bem como a leitura que a ele é compreendida de
sua obra, permeiam o constante confronto da linguagem, ao questionamento intrínseco
ao mundo ficcional criado por Clarice, isto é, o leitor atuante de Clarice Lispector
61
Esse confronto materializado na obra de Clarice Lispector pode ser percebido também nos títulos
constrativos com que a autora direcionou aos seus romances: “Quase todos os títulos de seus romances
exprimem, por meio de uma contradição interna, contrastante (cantra-canto), o sopro vital de seu próprio
hálito de escritora: A cidade / sitiada, A maçã / no escuro, A paixão / segundo G.H.,
O livro dos prazeres / Uma aprendizagem, A hora / da estrela” (SÁ, 1993b, p. 20).
90
entende que “antes de ser coisa narrada, a narrativa é forma que narra” (CANDIDO,
1996, p. XVIII).
Posto luz aos desdobramentos interpretativos do título do romance, bem como a
possível consideração acerca do suposto subtítulo dO livro dos prazeres, o enfoque
interpretativo volta-se à interpretação do corpo da heroína Lóri como elemento que
contribui para a concretização da sua autoconsciência.
A primeira vez que aparece a palavra corpo no romance aponta para uma Lóri
preocupada com a realização do significado do seu nome. Já na primeira linha da
segunda página do romance, a grafia corpo se faz presente metaforicamente aludida à
“dificuldade de um petróleo rasgando a terra” (LISPECTOR, 1998d, p. 14).
Após a rememoração da fala de Ulisses: “ele dissera uma vez que queria que ela,
ao lhe perguntarem seu nome, não respondesse ‘Lóri’ mas que pudesse responder ‘meu
nome é eu’” (LISPECTOR, 1998d. p. 13), a personagem é focalizada ante a constatação
de que teria um encontro com Ulisses, sua preocupação é: de que forma se apresentaria
a ele?: “se o vestido branco e preto serviria”. O ritual de se adornar para o encontro abre
espaço para que a personagem tenha uma percepção inicial e, ainda superficial, de seu
corpo:
... então do ventre mesmo, como um estremecer longínquo da terra
que mal se soubesse ser sinal de terremoto, do útero, do coração
contraído veio o tremor gigantesco duma forte dor abalada, do corpo
todo o abalo – e em sutis caretas de rosto e de corpo afinal com a
dificuldade de um petróleo rasgando a terra – veio afinal o grande
choro seco, choro mudo sem som algum até para ela mesma, aquele
que ela não havia adivinhado, aquele que não quisera jamais e não
previra – sacudida como a árvore forte que é mais profundamente
abalada que a árvore frágil – afinal rebentados canos e veias,
(LISPECTOR, 1998d, p. 13, 14, grifos nossos).
Ventre, útero, coração. A intimidade sexual e sentimental da personagem é
sinalizada já no início da narrativa direcionando ao seu corpo uma contenção dessas
duas esferas. O excerto acima revela ao leitor uma Lóri capaz de resguardar seus
desejos e sentimentos, submetendo-os à contenção da angústia, à contenção da dor.
Entretanto, o corpo da personagem pede expressão para se desprender ou minimizar o
abalo da clausura a que está submetido. Com dificuldade, tremendo e abalado, o corpo
de Lóri reclama o processo do choro que a protagonista, nesse primeiro momento, tenta
conter: “choro seco”.
Se há contenção da passagem da sequidão à torrente de águas, isto é, se a
narrativa permeia as estações do ano mediante também a compreensão de que Lóri é
91
materializada, tem um corpo; como é descrito o corpo de Lóri no processo de sua
autoconsciência? “seu corpo era fino e forte, um dos motivos imaginários que fazia com
que Ulisses a quisesse” (LISPECTOR, 1998d, p. 16).
Preparando-se para o encontro com Ulisses, a narrativa põe em cena uma Lóri
extremamente preocupada com sua aparência física à visão de seu parceiro.
... escolheu um vestido de fazenda pesada, apesar do calor, quase sem
modelo, o modelo seria o seu próprio corpo mas enfeitar-se era um
ritual que a tornava grave: a fazenda já não era um mero tecido,
transformava-se em matéria de coisa e era esse estofo que com o seu
corpo ela dava corpo — como podia um simples pano ganhar tanto
movimento? seus cabelos de manhã lavados e secos ao sol do pequeno
terraço estavam da seda castanha mais antiga — bonita? não, mulher:
Lóri então pintou cuidadosamente os lábios e os olhos, o que ela fazia,
segundo uma colega, muito mal feito, passou perfume na testa e no
nascimento dos seios [...] perfumar-se era um ato secreto e quase
religioso — usaria brincos? hesitou, pois queria orelhas apenas
delicadas e simples, alguma coisa modestamente nua, hesitou mais:
riqueza ainda maior seria a de esconder com os cabelos as orelhas de
corça e torná-las secretas, mas não resistiu: descobriu-as, esticando
os cabelos para trás das orelhas incongruentes e pálidas: rainha
egípcia? não, toda ornada como as mulheres bíblicas, e havia também
algo em seus olhos pintados que dizia com melancolia: decifra-me,
meu amor, ou serei obrigada a devorar, e agora pronta, vestida, o
mais bonita quanto poderia chegar a sê-lo, vinha novamente a dúvida
de ir ou não ao encontro com Ulisses — pronta, de braços pendentes,
pensativa, iria ou não ao encontro? (LISPECTOR, 1998d, p. 16, 17,
grifos nossos).
Embora a personagem tenha escolhido um vestido de tecido pesado, ela está
segura de que o seu corpo o molda. Registre-se a atenção também ao exame que ela faz:
dos cabelos, dos lábios, dos olhos, das orelhas. Não só a preparação para o encontro
segue um ritual, mas também todo o seu corpo composto para esse objetivo se projeta
para o fim último – a sedução. A camada semântica dos vocábulos e das expressões em
destaque trabalha para criar a isotopia da esfinge que se mostra desafiadora,
provocativa, que anseia por amar (“devorar”) e ser amada (“devorada”). A imagem de
Lóri neste passo alcança a imagem da mulher amada (a esposa) do Cântico dos
Cânticos, de Salomão (por exemplo, o capítulo 7), aludida indiretamente no discurso da
personagem. Nesse livro bíblico, o discurso do corpo é marcado por sinestesias que
sublinham o desejo:
Quão formosos são os teus pés nas sandálias, ó filha de príncipe! Os
contornos das tuas coxas são como joias, obra das mãos do artista. O
teu umbigo como uma taça redonda, a que não falta bebida; o teu
92
ventre como montão de trigo, cercado de lírios. Os teus seios são
como dois filhos gêmeos da gazela. O teu pescoço como a torre de
marfim; os teus olhos como as piscinas de Hesbom; junto à porta de
Bate-Rabim; o teu nariz é como torre de Líbano, que olha para
damasco. A tua cabeça sobre ti é como o monte Carmelo, e os cabelos
da tua cabeça como a púrpura; o rei está preso pelas tuas tranças.
Quão formosa, e quão aprazível és, ó amor em delícias (Cântico dos
cânticos, 7: 1 ao 6).
Após o ritual antigo, isto é, o processo de se autoproduzir para um encontro, uma
reflexão acerca de proteção é focalizada em Lóri: “Proteção seria presença? Se fosse
protegida por Ulisses ainda mais do que era, ambicionaria o máximo: ser tão protegida a
ponto de não recear ser livre: pois de suas fugidas de liberdade teria sempre para onde
voltar” (LISPECTOR, 1998d, p. 19).
Mas é após ter-se visto de corpo inteiro, embora de relance, que à personagem é
instaurada a reflexão de que para ser inteira, indelimitada, seu corpo necessita ligar-se
ao corpo de Ulisses.
Por ter de relance se visto de corpo inteiro ao espelho, pensou que a
proteção também seria não ser mais um corpo único: ser um único
corpo dava-lhe, como agora, a impressão de que fora cortada de si
própria. Ter um corpo único circundado pelo isolamento, tornava tão
delimitado esse corpo, sentiu ela, que então se amedrontava de ser
uma só, olhou-se avidamente de perto no espelho e se disse
deslumbrada: como sou misteriosa, sou tão delicada e forte, e a curva
dos lábios manteve a inocência.
Pareceu-lhe então, meditativa, que não havia homem ou mulher que
por acaso não se tivesse olhado ao espelho e não se surpreendesse
consigo próprio. Por uma fração de segundo a pessoa se via como um
objeto a ser olhado, o que poderiam chamar de narcisismo mas, já
influenciada por Ulisses, ela chamaria de: gosto de ser. Encontrar na
figura exterior os ecos da figura interna: ah, então é verdade que eu
não imaginei: eu existo (LISPECTOR, 1998d, p. 19, grifos nossos).
O espelho tensiona na narrativa alguns planos interpretativos condizentes à Lóri.
O primeiro se dá pela concepção de sua solidão enquanto pessoa, um único corpo, não
unificado com seu parceiro. A personagem se vê só; não totalmente protegida por
Ulisses. O limite, a solidão, a pequenez, a finitude humana.
O ato da autocontemplação acarreta, também, a percepção do mistério, da
esfinge. Fato que povoa o romance62
: “como sou misteriosa.” (LISPECTOR, 1998d, p.
19), “decifra-me, meu amor, ou serei obrigada a devorar” (LISPECTOR, 1998d, p. 17).
62
Em diálogo com Lóri, Ulisses afirma: “Teus olhos, disse ele, [...] são confusos mas tua boca tem a
paixão que existe em você e de que você tem medo. Teu rosto, Lóri, tem um mistério de esfinge: decifra-
me ou te devoro. Ela se surpreendeu de que também ele tivesse notado o que ela via de si mesma no
93
Por último, ver-se de corpo inteiro ante o espelho desencadeia em Lóri um
sentimento para além do tradicional mito de Narciso, isto é, “o gosto de ser”, a
percepção de se ter um corpo e de existir nele e através dele, direcionando-o à busca do
autoconhecimento.
Corroborando essa premissa, Aurora Gedra Ruiz Alvarez, ao analisar as versões
do mito de Narciso, esclarece que: “O mito de Narciso encerra uma concepção solipsista
do homem que, da esfera do não ser, do vazio que o angustia e o aniquila, busca a
unidade perdida” (ALVAREZ, 2011, p. 94).
Em relação ao ato da contemplação, Mikhail Bakhtin pontua que: “vemos o
reflexo da nossa imagem externa, mas não a nós mesmos em nossa imagem externa; a
imagem externa não nos envolve ao todo, estamos diante e não dentro do espelho”
(BAKHTIN, 2011, p. 30).
Destarte, embora o espelho intermedeia Lóri à percepção do seu corpo, seu
aprendizado não se fixa apenas no vislumbre de seu atilamento externo. “O espelho”,
completa Bakhtin, “só pode fornecer o material para a auto-objetivação, e ademais um
material não genuíno”63
(BAKHTIN, 2011, p. 30).
A narrativa prossegue a direcionar a protagonista em diálogo com Ulisses, esse
por sua vez, evidencia estar adiantado ao processo de autoconsciência se comparado ao
de Lóri: “Eu já poderia ter você com o meu corpo e minha alma. Esperarei nem que
sejam anos que você também tenha corpo-alma para amar” (LISPECTOR, 1998d, p.
47). Lóri, entretanto, na sua incompletude de corpo e de alma, ao ouvir o
posicionamento de espera de Ulisses, sente-se à mercê de um suposto abandono do
parceiro:
Mas apesar de ele poder compreender, receava sua censura ou de que
ele desanimasse e a abandonasse, e nunca lhe dissera que o “mal”
muitas vezes voltava: o ar dentro dela tinha então cheiro de poeira
molhada. [...] E reunia toda a sua força para parar a dor. Que dor era?
A de existir? A de pertencer a alguma coisa desconhecida? A de ter
nascido? (LISPECTOR, 1998d, p. 49).
As oscilações constantes que à personagem são comuns, materializadas no
romance como dor, angústia, sequidão, evidenciam o medo que a protagonista sente de
espelho. – Meu mistério é simples: eu não sei como estar viva. – É que você só sabe, ou só sabia, estar
viva através da dor. – É” (LISPECTOR, 1998d, p. 90). 63
Assim, o espelho pode refletir uma imagem confortante, mesmo que o íntimo esteja em desacordo com
o exterior. Cabe uma estrofe do poema Bendito, de Adélia Prado, para melhor aludir: “Louvado sejas
Deus meu Senhor/ porque o meu coração está cortado a lâmina,/ mas sorrio no espelho ao que,/ à revelia
de tudo, se promete” (PRADO, 2007a, p. 64).
94
se reconhecer na dor para sobressair-se do próprio sofrimento. “A vida inteira tomara
cuidado em não ser grande dentro de si para não ter dor.” (LISPECTOR, 1998d, p. 56),
mas compete à professora a percepção de si como pessoa para se autoconhecer corpórea
e mentalmente. “Mas antes precisava tocar em si própria, antes precisava tocar no
mundo” (LISPECTOR, 1998d, p. 56).
A narrativa, então, apresenta Lóri atendendo ao convite de Ulisses para
encontrá-lo no clube, junto às águas da piscina: “era só dizer na portaria que era
convidada dele” (LISPECTOR, 1998d, p. 67). O fato de “se verem quase nus”
(LISPECTOR, 1998d, p. 67) temoriza a personagem que se sente inibida ao se deixar
contemplar em trajes de banho publicamente: “Procurou disfarçar a dura relutância em
ficar praticamente nua, afinal tirou o roupão, ela nem sequer o olhava” (LISPECTOR,
1998d, p. 68).
Rompendo o silêncio ocasionado pela timidez da personagem, Ulisses põe em
questão a insegurança de Lóri em duas esferas de sua vida: sua alma e seu corpo: “Veja
aquela moça ali, por exemplo, a de maiô vermelho. Veja como anda com um orgulho
natural de quem tem um corpo. Você, além de esconder o que se chama alma, tem
vergonha de ter um corpo” (LISPECTOR, 1998d, p. 68, grifo nosso).
Lóri, ao refletir acerca do “longo caminho andado até chegar àquele momento
possível em que suas pernas se balançavam dentro da piscina” (LISPECTOR, 1998d, p.
68), vê-se, de leve, “semivivendo”, isto é, à experimentação “do gosto do ser”, de
seduzir e ser seduzida.
A um movimento seu, que era o de jogar os cabelos para trás, viu num
relance o rosto dele, percebeu que ele a olhava e que a desejava.
Sentiu então um pudor que já diferia do que ele chamara de pudor de
ter um corpo. Era um pudor de quem também deseja, assim como Lóri
desejara colar o peito e os membros no Deus. Ao perceber muito claro
o próprio desejo, tornou-se arisca e dura, e ficaram em silêncio o resto
da tarde. Ela foi se tranquilizando e perdeu o medo maior que tinha: o
de perdê-lo por se atardar tanto (LISPECTOR, 1998d, p. 68).
O constante refluxo, o recuo que é instaurado à concretude das realizações da
personagem, como já aludido, evidencia a preocupação que a personagem nutre para
não se expor à dor. Ela que “era uma adoradora de homens” (LISPECTOR, 1998d, p.
70), que já se deixou relacionar com cinco amantes que “não foram propriamente
amantes porque [ela] não os amava” (LISPECTOR, 1998d. p. 50), permite-se, “sob a
nova luz”, à percepção da beleza e virilidade de Ulisses:
95
Quanto a Ulisses, nessas novas cores que enfim Lóri tinha a
capacidade de ver quanto a Ulisses estava agora a um tempo sólido e
transparente, o que o enriquecia de ressonâncias e esplendor. Podia-se
chamá-lo de homem belo.
Pela primeira vez então olhou-o sob o ponto de vista de beleza
estritamente masculina, e viu que havia nele uma calma virilidade.
Sob a nova luz, Ulisses estava irreal e no entanto verossímil
(LISPECTOR, 1998d, p. 69, 70).
Essa constatação, o fato de se permitir ao prazer da contemplação do corpo de
Ulisses, materializa nO livro dos prazeres, mais uma vez, o recuo, enquanto se avança,
da aprendizagem da personagem.
Que faço da felicidade? Que faço dessa paz estranha e aguda, que já
está começando a me doer como uma angústia, como um grande
silêncio de espaços? A quem dou minha felicidade, que já está
começando a me rasgar um pouco e me assusta. Não, não quero ser
feliz. Prefiro a mediocridade. Ah, milhares de pessoas não têm
coragem de pelo menos prolongar-se um pouco mais nessa coisa
desconhecida que é sentir-se feliz e preferem a mediocridade. Ela se
despediu de Ulisses quase correndo: ele era o perigo (LISPECTOR,
1998d, p. 73).
Retomando “em alerta” o processo de aprendizagem, o capítulo que se segue à
descrição acima evidencia Lóri na tentativa de se desprender das suas origens: ela “era
de Campos, terra sem mar, e nunca chegara a pegar o hábito de ir à praia que ficava tão
próxima de seu apartamento” (LISPECTOR, 1998d, p. 76).
A simbologia das águas, constante no romance, aponta à necessidade da
protagonista de desligar-se da esfera continental, do hábito da sequidão, do
aprisionamento social, direcionando sua aprendizagem ao prazer e imensidão das águas.
A solidão na aprendizagem se faz necessária e a heroína clariciana escolhe o mar
para experimentação de um novo posicionamento de vida, não sem antes enfrentar um
“corpo a corpo consigo mesma. [...] iria perder ou ganhar? Mas continuaria seu corpo a
corpo com a vida. Alguma coisa se desencandeara nela, enfim. E aí estava ele, o mar.”
(LISPECTOR, 1998d, p. 76, 77).
Diante do mar, “Lóri aceita seu destino de amanhecer, aceita a dor da condição
humana e a solidão que lhe é intrínseca. Entre a vida e a morte, ela escolhe viver e
prepara-se para o ritual de imersão na vida, no mar, ao raiar do dia” (PIRES, 2006, p.
239). Desta forma, o corpo de Lóri é apresentado ao leitor de forma limitada e por isso
mesmo quente, ao contrário da vastidão que o mar ocasiona.
96
Seu corpo se consola de sua própria exiguidade em relação à vastidão
do mar porque é a exiguidade do corpo que o permite tornar-se quente
e delimitado, e o que a tornava pobre e livre gente, com sua parte de
liberdade de cão nas areias. Esse corpo entrará no ilimitado frio que
sem raiva ruge no silêncio da madrugada (LISPECTOR, 1998d, p. 78,
79, grifos nossos).
A voz narrativa esclarece que o corpo da personagem é destinado ao encontro do
ilimitado frio do silêncio da madrugada. “Lóri está sozinha” (p. 79) e é com essa
condição que se permite confluir à iniciação propiciada ao batismo das águas. É no seu
corpo inteiro que a água se fará sentir, fertilizando-a à passagem de um estado a outro.
Agora que o corpo todo está molhado e dos cabelos escorre água,
agora o frio se transforma em frigido. Avançando, ela abre as águas do
mundo pelo meio. [...] com a concha das mãos cheias de água, bebe-a
em goles grandes, bons para a saúde de um corpo.
E era isso o que estava lhe faltando: o mar por dentro como o líquido
espesso de um homem. [...] E agora pisa na areia. Sabe que está
brilhando de água, e sal e sol. Mesmo que o esqueça, nunca poderá
perder tudo isso (LISPECTOR, 1998d, p. 79, 80, 81, grifo nosso).
O mar possibilita à heroína de Clarice Lispector a concretude de um ritual de
renovação, “no qual Lóri morre simbolicamente unindo-se ao masculino não humano e
renasce [...] para se unir ao masculino humano, o que antes lhe era impossível. O
encontro de Lóri com o mar é, portanto, um hièros gamos, um casamento sagrado”
(PIRES, 2006, p. 244).
Ritual que, para além de uma projeção à união amorosa entre os protagonistas,
desperta em Lóri seus sentidos aparentemente congelados pelo medo que nutria antes da
sua entrega ao mar. Entrega que a reintegra à concepção de se ter um corpo.
O mar desperta em Lóri uma atenção para com os seus sentidos. O olfato e o
paladar são fortemente utilizados pela protagonista junto às águas do mar: “O cheiro é
de uma maresia tonteante que a desperta do seu mais adormecido sono secular. [...] Com
a concha das mãos cheia de água, bebe-a em goles grandes, bons para a saúde de um
corpo” (LISPECTOR, 1998d, p. 79, 80).
Fertilizada, atenta aos sentidos do seu corpo, a heroína de Clarice Lispector vai
reaprendendo a se colocar no mundo, a reconhecer seu corpo como passaporte para o
autoconhecimento, não sem dor.
97
3.2 OUTONO
Após o ritual comungado junto às águas do mar de Ipanema, segue-se o episódio
do coquetel: “[...] que já prenunciava o outono” (LISPECTOR, 1998d, p. 85).
O evento social apresenta-lhe como uma nova oportunidade de aproximação
para com a completude integradora do “gosto de ser”, da percepção de se ter um corpo,
de existir nele. Lóri vai sozinha ao evento, entretanto, reencontra dois de seus ex-
amantes lá. Por já não se sentir ligada a eles, Lóri percebe que “preferiria morrer de
amor do que sentir-se indiferente” (LISPECTOR, 1998d, p. 85). Contestação que
direciona a protagonista a um avanço em seu ciclo de aprendizagem, ela, que era “uma
adoradora de homens”, a sereia que seduz, sente a necessidade de uma ligação não
apenas físico-sexual, mas um enlace corpóreo e mentalmente integrador.64
É por isso que a personagem, não aguentando a superficialidade de se estar
excessivamente maquilada no coquetel, já a caminho de sua casa, no táxi ainda, começa
a refletir acerca do uso excessivo de cosméticos em seu rosto, do esconder-se por trás da
pintura, de representar uma aparência não condizente com sua alma, com o processo de
aprendizagem no qual está inserida.
Escolher a própria máscara era o primeiro gesto voluntário humano. E
solitário. Mas quando enfim se afivelava a máscara daquilo que
escolhera para representar-se e representar o mundo, o corpo ganhava
uma nova firmeza, a cabeça podia às vezes se manter altiva como a de
quem superou um obstáculo: a pessoa era (LISPECTOR, 1998d, p. 87,
grifo nosso).
Despojada de maquilagens, “[...] sem pintura. Sem máscara” (LISPECTOR,
1998d, p.88), a personagem se encaminha a um novo encontro com Ulisses, mas desta
vez, “sentia-se mais segura por ter entrado no mar sozinha” (LISPECTOR, 1998d, p.
88). No diálogo enquadrado pelas personagens nesse encontro, entre as perguntas feitas
por Ulisses à professora, destaca-se:
“- Você ainda não se habituou a viver? Perguntou Ulisses com intensa
curiosidade.
- Não” (LISPECTOR, 1998d, p. 91).
Assim, a negação da protagonista ao hábito da vida evidencia a constante
transformação que é peculiar à condição humana, o ser inacabado, em constante
64
No avanço da narrativa, Lóri evidencia: “[...] antes o sofrimento legítimo que o prazer forçado”
(LISPECTOR, 1998d, p. 107).
98
transformação. Segundo Bakhtin, “a única forma adequada de expressão verbal da
autêntica vida do homem é o diálogo inconcluso” (BAKHTIN, 2015, p. 329, grifos do
autor).
Fato metaforicamente confirmado, na figura de um diamante a ser lapidado, na
reflexão que Lóri tenciona na narrativa: “[...] é como se eu abrisse minha mão fechada e
dentro descobrisse uma pedra: um diamante irregular em estado bruto” (LISPECTOR,
1998d, p. 91).
Lóri, então, comenta acerca da vida “marcada” que vivenciara em Campos, no
interior do estado do Rio de Janeiro: órfã de mãe, vivia com seu pai e quatro irmãos.
“Tentaram me marcar” (LISPECTOR, 1998d, p. 95), mas se aproveitou de uma crise
financeira da família, que fez com que perdessem “grande parte da fortuna e quase que a
maioria dos criados” (LISPECTOR, 1998d, p. 95), para se fixar na capital carioca. O
fato de se ver longe da repressão familiar, da “marca” dos seus ancestrais, faz com que a
personagem diga que teve “[...] a impressão de ter voltado às minhas verdadeiras
proporções. E à liberdade, é claro” (LISPECTOR, 1998d, p. 95).
Ulisses, por sua vez, percebe em Lóri o não uso de maquiagem:
Gosto do teu rosto suado sem pintura embora também goste do modo
exagerado como você se pinta. Mas é que pintada você prova não sei
de que forma que não é virgem. Não, não se engane, não pense que eu
desejaria que você fosse virgem, aliás de certo modo você é
(LISPECTOR, 1998d, p. 96).
A percepção de Ulisses, como interlocutor de Lóri em seu processo de
aprendizagem, evidencia o respeito que este nutre pelas características moldadas à
personagem, nesse caso, o uso excessivo de maquiagens; entretanto, por meio do
diálogo, o professor joga luz à essência da protagonista, algo que no relacionamento das
personagens é cultuado em primazia, isto é, a essência é valorizada mais do que a
aparência.
A virgindade marcada na fala de Ulisses pode ser interpretada pelo motivo de
Lóri ter se unido aos seus amantes anteriores apenas pelo prazer sexual, pela entrega
momentânea e passageira ao prazer; dessa forma, a personagem permanece virgem, seu
corpo continua intacto ao prazer mútuo de uma relação consolidada pela essência, pela
aprendizagem do amor que à protagonista é projetada no final do romance.
99
3.3 INVERNO
A narrativa prossegue, assim como as estações pelas quais Lóri se constitui
dentro do romance de Clarice Lispector. Chega “um longo e tenebroso inverno”
(LISPECTOR, 1998d, p. 102).
Ulisses convida Lóri para almoçarem juntos. Esse novo encontro tem como local
um restaurante na Floresta da Tijuca e como sonoridade a chuva que cai
incessantemente: “[...] chovia como que no mundo inteiro” (LISPECTOR, 1998d, p.
106). Faz frio. “Ele levou-a para um salão onde havia uma lareira acesa, enquanto ia
encomendar o almoço na sala do restaurante. Em breve voltava, ele mesmo com dois
copos de vinho vermelho na mão” (LISPECTOR, 1998d, p. 104).
A atenção interpretativa aqui se direciona a uma das simbologias que o vinho
representa. Interessa, dentre as diversas interpretações acerca dessa bebida, a leitura
condizente com o apreço pela vida, o prazer de viver, à fertilidade. O primeiro milagre
realizado por Jesus Cristo foi o de transformar água em vinho, isto é, transformar a
tristeza – ocasionada pela falta da bebida em um casamento – em redobrada alegria.
Alegria é um dos sentimentos que à Lóri é projetado vivenciar. Ulisses afirma: “[...]
quem é capaz de sofrer intensamente, também pode ser capaz de intensa alegria”
(LISPECTOR, 1998d, p. 98, 99).
Outra leitura acerca da simbologia do vinho, também de origem cristã, se detém
à bebida como referência ao sangue de Cristo. Símbolo que alcança “uma nova aliança”
proposta pela doutrina cristã, isto é, com a morte de Jesus Cristo na cruz, as barreiras
existentes entre homem e Deus são dissipadas, uma aproximação direta com o divino é
homologada.
Seguindo à apreciação do vinho, chamados para almoçar, a refeição servida
naquele dia no restaurante “era galinha ao molho pardo. Os dois comeram e beberam
em silêncio, sem pressa. Estava bom” (LISPECTOR, 1998d, p. 105).
Na culinária brasileira, a receita tradicional de “galinha ao molho pardo”
contém, entre os seus ingredientes, uma dosagem significativa do sangue do animal
abatido: “[...] bem pardo por causa do sangue espesso que eles lá sabem preparar”
(LISPECTOR, 1998d, p. 99). O paladar de Lóri, seguido de Ulisses, experimenta o
vinho e, seguidamente, o sangue de animal; líquidos amplamente simbólicos que
apontam para uma nova possibilidade de vida, se interligada à esfera mística condizente
à renovação, a uma nova aliança.
100
Nasce-se com sangue e com sangue corta-se para sempre a
possibilidade de união perfeita: o cordão umbilical. E muitos são os
que morrem com sangue derramado por dentro ou por fora. É preciso
acreditar no sangue como parte importante da vida. A truculência é
amor também (LISPECTOR, 1998d, p. 99).
A paixão de Cristo, retratada nos evangelhos, é vivificada pelo derramamento de
sangue que ocasiona ressureição e, por conseguinte, união: o alto se une ao baixo. A
paixão direciona as personagens claricianas, ocasiona um posicionamento de que o
sangue, seja o de dentro ou o de fora, é condição humana, isto é, a morte faz parte da
vida. Ou melhor, morrer é necessário para uma melhor experimentação da vida. “[Lóri]
morreria numa ida para uma tonta felicidade de primavera” (LISPECTOR, 1998d, p.
119).
Passado o encontro no restaurante da Floresta da Tijuca, a narrativa mostra ao
leitor uma Lóri com amplo desejo de se entregar corporalmente a Ulisses: “o desejo de
ser possuída por ele vinha forte demais” (LISPECTOR, 1998d, p. 109). Entretanto, o
corpo da personagem ainda não se apresenta integralmente preparado para a união
amorosa. “Por enquanto ela não tinha nada a lhe dar, senão o próprio corpo. Não, nem o
próprio corpo talvez: pois com os amantes que tivera ela como que apenas emprestava o
seu corpo a si própria para o prazer, era só isso, e mais nada” (LISPECTOR, 1998d, p.
110).
Rememorando os encontros e diálogos que manteve com Ulisses, Lóri reflete
acerca do Deus que a ouvia, porém, a indagação da voz narrativa se revela com as
seguintes letras: “O Deus ouvia, mas ela se ouviria?” (LISPECTOR, 1998d, p. 114). A
audição íntima, o rezar para si mesma65
, como o aconselhado por Ulisses, se faz
necessário também à concretude de Lóri ter um corpo inteiro. Lóri reconhece esse
posicionamento no final de sua prece: “[...] faze com que eu tenha caridade e paciência
comigo mesma, amém” (LISPECTOR, 1998d, p. 115).
A última frase articulada na oração que Lóri direciona ao divino reafirma a
necessidade que a heroína precisa para sua integração corporal: ouvir a si mesma.
Após a oração, Lóri, “antes de se deitar foi ao terraço: uma lua cheia estava
sinistra no céu. Então ela se banhou toda nos raios lunares e se sentiu profundamente
65
“A oração de Lóri em Uma aprendizagem terá mais suco do que tem a oração de Martim [A maçã no
escuro], porque as palavras serão dela e não serão palavras de passe” (SÁ, 1993b, p. 104).
101
límpida e tranquila” (LISPECTOR, 1998d, p. 116). Lóri é lunar66
, “associa-se portanto
ao devir, à fecundidade, pois a Lua é um astro que cresce, decresce, desaparece.
Nascimento e morte”67
(SÁ, 1993b, p. 207).
3.4 PRIMAVERA
Que assim seja. O “amém” materializado na oração antes do banho lunar
direciona Lóri à nova estação que se desponta na narrativa: a primavera. “Já se passara o
ano. Os primeiros calores da primavera, tão antigos como um primeiro sopro. E que a
fazia não poder deixar de sorrir” (LISPECTOR, 1998d, p. 117).
Lóri surge ao leitor “iniciada [e], pressentia a mudança de estação”
(LISPECTOR, 1998d, p. 118). Com a nova estação, Lóri decide mudar a extensão do
seu corpo, isto é, cortar seus cabelos.
A primeira calidez fresca da primavera... mas aquilo era amor! A
felicidade a deixava com um sorriso de filha. Cortara os cabelos e
andava toda bem penteada. Só que a espera quase que não cabia mais
nela. Era tão bom que Lóri corria o risco de se ultrapassar, de vir a
perder a sua primeira morte primaveril, e, no suor de tanta espera
tépida, como que morrer antes. Por curiosidade, morrer antes: pois já
queria saber como era a nova estação (LISPECTOR, 1998d, p. 119,
grifo nosso).
A personagem que por vezes não conclui suas experimentações, que se indaga
constantemente, que recua enquanto avança, é posta em eufórica curiosidade para um
avanço que ainda precisa amadurecer em seu percurso: a sua morte primaveril é
necessária para a completude de sua trajetória.
Concernente à morte simbólica que Lóri experimenta durante as estações, é
válido marcar que a entrada da heroína à primavera, isto é, ao desfecho narrativo de sua
aprendizagem, ocasiona uma mudança esteticamente perceptível no seu corpo: a
personagem corta os seus cabelos. Mudança que pontua uma simbólica aproximação da
66
“Mas da lua ela não tinha receio porque era mais lunar que solar e via de olhos bem abertos nas
madrugadas tão escuras a lua sinistra no céu. Então ela se banhava toda nos raios lunares, assim como
havia os que tomavam banhos de sol. E ficava profundamente límpida” (LISPECTOR, 1998d, p. 34). 67 Da mesma forma que o homem, a lua possui uma “história patética porque sua decrepitude termina na
morte. Nunca definitiva, porém. Ela renasce de sua própria substância, em virtude de seu destino. A Lua é
o astro dos ritmos da vida. Controla todos os planos cósmicos regidos pela lei do devir cíclico: águas,
chuva, vegetação, fertilidade. As fases da Lua revelaram ao homem o tempo concreto, o tempo “vivo”.
Tempo que se refere sempre a uma realidade biocósmica, a chuva ou as marés, as sementeiras ou o ciclo
menstrual” (ELIADE, 1970, p. 195- 196).
102
personagem para com o processo de sua autoconsciência, de se fazer integrada
conscientemente à estação que a levará à experimentação de sua autoexpressão.
O corte dos cabelos é um dos símbolos mais antigos de transformação
e entrada em uma nova condição espiritual, o acesso a um outro
patamar de vida. Na Antiguidade, ele fazia parte indispensável da
iniciação do herói, e na vida moderna, por extensão, foi mantido como
rito de passagem para o ingresso, por exemplo, na universidade, sob a
forma do trote, nas forças armadas, para os homens, e nas ordens
religiosas, para as mulheres (PIRES, 2006, p. 260).
Lóri luta para se integrar à nova estação e no meio desse embate surge ao leitor
uma marcação temporal no romance de Clarice Lispector, ocorrência inusitada à obra da
escritora. Não é só Lóri que lutava para se fazer autoconsciente na nova estação que a si
é apontada: “Todos lutavam pela liberdade – assim via pelos jornais, e alegrava-se de
que enfim não suportasse mais as injustiças. No jornal de domingo viu reproduzida a
letra de uma canção da Tchecoslováquia” (LISPECTOR, 1998d, p. 120).
Lóri copia a letra da canção e entrega a Ulisses68
. Canção “obviamente inspirada
na Primavera de Praga, que acontecia nos jornais que Lóri/Clarice lia naquele momento,
falando de amor no tom poético e simples que insufla as revoluções” (PIRES, 2006, p.
255).
Observa-se que o final da década de 1960 não é marcado apenas por avanços
rumo à liberdade social. Há oscilações nesse percurso e o texto de Clarice convida à
reflexão. Ao evento histórico nomeado como Primavera de Praga, que fez com que a
Tchecoslováquia fosse submetida ao regime comunista mantido pela União Soviética de
1960 a 1990, compõe em suas características o cerceamento da opinião individual, a
arbitrariedade, a supressão da democrática expressão.
A década de 1960 no Brasil marca o início da ditadura militar na nação,
estendida até 1985. É possível que a autora dO livro dos prazeres tenha se utilizado de
uma nação geograficamente distante do Brasil como a Tchecoslováquia, para abordar o
68
A tradutora do romance Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres para a língua tcheca, Pavla
Lidmilová, ao ser entrevista por Sarka Grawova, revela um fato curioso acerca da canção tcheca incluída
por Clarice no seu texto: “Quanto a Clarice Lispector, há uma história curiosa relacionada com os
tchecos. Uma das nossas cantoras de música popular, até hoje ativa e famosa, Helena Vondráčková, ia
apresentar no fim dos anos 60 em um festival do Rio do Janeiro uma canção que se chamava “Voz
Longínqua” e me encomendaram uma tradução da letra para o português. Clarice Lispector leu o texto
num jornal brasileiro e reproduziu-o no seu romance Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. Em
1970, quando a escritora mandou-me o livro, onde a protagonista Lóri diz assim: “Todos lutavam pela
liberdade – assim via pelos jornais, e alegrava-se de que enfim não suportasse mais as injustiças. No
jornal de domingo viu reproduzida a letra de uma canção da Tchecoslováquia. Copiou-a com a letra mais
linda de professora que tinha, e deu-a a Ulisses. Chamava-se “Voz longínqua” e era assim…. Eis um
exemplo de intertextualidade inesperado!” (LIDMILOVÁ, 2006, p. 182).
103
assunto da repressão, comum às duas nações, sem, portanto, expor seu romance à
censura ou ter sobre si penas mais graves. Sob essa conjectura a nota que abre Uma
aprendizagem alcança uma nova interpretação ao “livro que se pediu uma liberdade
maior”.
Voltando à integração da personagem de Clarice Lispector ao seu processo de
aprendizagem, a escolha de Lóri, no fluxo da narrativa, se apresenta com a seguinte
expressão: “[...] a ela cabia sofrer o dia ou ter prazer nele” (LISPECTOR, 1998d, p.
122). Com essa consciência, isto é, de se colocar no mundo visando ações responsáveis
que a levará ao amadurecimento, Lóri continua na “sua busca do mundo” (Lispector,
1998d, p. 125), desta vez, direcionado aos seus sentidos os prazeres encontrados, e
tantas vezes sublimados pela personagem na feira de “frutas e legumes e peixes e
flores” (LISPECTOR, 1998d, p. 125).
Beterrabas. Batatas. Ovos brancos. Peixes. Peras. O contato de Lóri junto aos
produtos vendidos na feira-livre faz com que a personagem entre “num realismo novo”:
Nesse realismo cada coisa da feira tinha uma importância em si
mesma, interligada a um conjunto – mas qual era o conjunto? [...] Às
vezes comparava-se às frutas, e desprezando sua aparência externa, ela
se comia internamente, cheia de sumo vivo que era. Ela estava
procurando sair da dor, como se procurasse sair de uma realidade
outra que durara sua vida até então (LISPECTOR, 1998d, p. 126,
127).
O contato com os produtos da feira possibilita a Lóri a experimentação de um
novo realismo impregnado de vida, de existência real; seus sentidos, tato, olfato,
paladar, levam-na à experimentação de sua própria interioridade, o sumo viçoso de sua
vida. Compete notar que experimentação não é concretização do processo.
O romance, então, direciona Lóri ao resumo do que até então vivenciou no
decorrer de suas estações:
Sentou-se diante do papel vazio e escreveu: comer — olhar as frutas
da feira — ver cara de gente — ter amor — ter ódio — ter o que não
se sabe e sentir um sofrimento intolerável — esperar o amado com
impaciência — mar — entrar no mar — comprar um maiô novo —
fazer café — olhar os objetos — ouvir música — mãos dadas —
irritação — ter razão — não ter razão e sucumbir ao outro que
reivindica — ser perdoada da vaidade de viver — ser mulher —
dignificar-se — rir do absurdo de minha condição — não ter escolha
— ter escolha — adormecer — mas de amor de corpo não falarei
(LISPECTOR, 1998d, p. 132).
104
A trajetória de Lóri, com seus avanços e recuos, é sintetizada pela escrita da
personagem. Por meio da escrita a professora, em negação, contrai a expressão do
“amor do corpo”. “Depois desta lista ela continuava a não saber quem ela era, mas
sabia o número indefinido de coisas que podia fazer” (LISPECTOR, 1998d, p. 132). O
resumo de sua trajetória, por conseguinte, faz com que a personagem se aproprie de sua
condição de ser inacabado, em constante construção, para prosseguir em sua
aprendizagem: “Nunca atingiríamos em nós o ser humano” (LISPECTOR, 1998d, p.
132).
No dia seguinte à escrita, Lóri vivencia o que o texto nomeia como um “estado
de graça”. Ao chegar à casa enxergou uma maçã solta sobre a mesa, em total alusão à
maçã do paraíso edênico, a diferença é que, “ao contrário de Eva, ao morder a maçã
entrava no paraíso” (LISPECTOR, 1998d, p. 134).
O profano clariciano, isto é, o ato de Lóri se sentir viva em sua condição
humana, é celebrado mais uma vez no texto como passaporte para uma experimentação
humana direcionada ao corpo, sem nenhuma esfera transcendental ou mística69
. Ao
morder a maçã, a heroína lispectoriana experimenta uma sensação vital em seu corpo,
“uma bem-aventurança física que a nada se comparava. O corpo se transformava num
dom. E ela sentia que era um dom porque estava experimentando, de uma fonte direta, a
dádiva indubitável de existir materialmente” (LISPECTOR, 1998d, p. 135).
Desta forma, a personagem experimenta o que Luiz Costa Lima definiu no texto
de Clarice, se cotejada à esfera sagrada, uma escrita “mística ao revés”, isto é, uma
escrita mística profana, antagônica ao convencional. Segundo o pesquisador, essa
reversão consolida no texto de Clarice Lispector “o religioso à dimensão humana da
práxis, do agir terreno” (LIMA, 1966, p. 126); nas palavras de Olga de Sá: “A graça da
epifania é uma espécie de graça profana; não é a graça dos santos” (SÁ, 1993a, p. 201).
A reversão ao sagrado70
, a compreensão da personagem em seu estado de
“santidade terrena”, abre espaço para que a humanidade de Lóri seja percebida,
materializada, sentida. Por conseguinte, o estado de graça experimentado pela heroína
clariciana difere dos êxtases místicos dos santos:
69
Para José Geraldo Nogueira Moutinho o romance que é corpus dessa dissertação “É um livro de
aprendizagem porque de fato contém os passos de uma pedagogia amorosa, a sucessão dos movimentos
de uma dança prenhe de erotismo, e concomitantemente postulada por um lato sentido ético: nele o
espiritual é realidade carnal” (MOUTINHO, 1977, p. 86, grifo nosso). 70
“Não que Clarice Lispector se reduza ao imanentismo, limitando a realidade à experiência. Contudo
jamais sujeitou o corpóreo ou a matéria às dimensões da ideia. Sua escritura é compacta, enquanto remete
ao leitor uma experiência que fundamenta as reflexões sobre a realidade, a existência humana, para se
perguntar: Quem sou eu?’” (SÁ, 2004, p, 283).
105
Nem de longe Lóri podia imaginar o que devia ser o estado de graça
dos santos. Aquele estado ela jamais conhecera e nem sequer
conseguia adivinhá-lo. O que lhe acontecia era apenas um estado de
graça de uma pessoa comum que de súbito se torna real, porque é
comum e humana e reconhecível e tem olhos e ouvidos para ver e
ouvir (LISPECTOR, 1998d, p. 135).
O estado de graça vivenciado por Lóri, para além de direcionar a personagem à
compreensão do seu corpo, dos seus sentidos, possibilita-lhe, também, a consciência de
que a condição humana é feita “de luta e sofrimento e perplexidade e alegrias”
(LISPECTOR, 1998d, p. 137).
Lóri sai do estado de graça integrada a vivenciar um novo patamar de vida e
passa “a ter uma espécie de confiança no sofrimento e em seus caminhos tantas vezes
intoleráveis” (LISPECTOR, 1998d, p. 137).
No novo encontro com Ulisses, essa confiança é celebrada de forma que seu
parceiro reconhece o porto de chegada da longa aprendizagem da protagonista: “Você
está pronta, Lóri. Agora eu quero o que você é, e você quer o que eu sou”
(LISPECTOR, 1998d, p. 139). Ao final do encontro, Ulisses deixa à escolha de Lóri o
dia que se daria a ligação física dos amantes. Passam-se alguns dias, novas experiências
lhe são imputadas, até que Lóri decide não se prolongar na espera: “não adiaria mais”
(LISPECTOR, 1998d, p. 146).
Parte-se então à unificação das personagens ocasionada na entrega mútua dos
seus corpos, integração que ocorre no último capítulo do romance.
Lóri reconhece em si o momento propício para se unir a Ulisses e o faz sem
maquiagens, sem fazer usos de máscaras ou encenações. Se o exagero de cosméticos lhe
era uma característica que impelia seu rosto à sublimação de sua essência, a não se
mostrar inteiramente nos cinco relacionamentos anteriores a Ulisses, o não uso de
maquiagens ao desfecho da narrativa sugere uma Loreley corporalmente presente.
Clarice orquestra nos momentos finais de sua narrativa uma cena em que a
humanidade de suas personagens é posta em destaque. Cabe o detalhamento, embora
conciso, da cena que permite uma aproximação para a corporeidade dos heróis
claricianos.
A cena, readaptada, refere-se à deslumbrante obra de Michelangelo – a Pietá –
sua mais acabada e conhecida escultura. Ao leitor apressado essa referência não é
percebida, mas permeia a poética da escritura de Clarice Lispector nO livro dos
prazeres, firmando o desfecho da aprendizagem de Lóri tensionado no corpo, na
106
humanidade das personagens. Isso porque Michelangelo retrata o Cristo morto no colo
de sua mãe Maria.
Sublinhe-se que o conjunto escultórico representa a morte do corpo de Cristo
que está prestes a ressurgir para outra vida; para Maria e, por extensão, para os cristãos
representa o renascer da vida espiritual.
Segue a introjeção da arte de Michelangelo materializada por Clarice em seu
romance:
[Ulisses] se ajoelhou diante dela. [...] E para Lóri era bom porque a
cabeça do homem ficava perto dos joelhos e perto de suas mãos, no
seu regaço que era a sua parte mais quente. E ela pode fazer o seu
melhor gesto: nas mãos que estavam a um tempo frementes e firmes,
pegar aquela cabeça cansada que era fruto dela e dele. Aquela cabeça
de homem pertencia àquela mulher (LISPECTOR, 1998d, p. 147).
Como já distendido, Lóri alcança a percepção de sua materialidade; fato que
possibilita à professora a visão de um Ulisses, não mais como professor de Filosofia,
mas como seu companheiro intrínseco. Para tanto, a morte dos estereótipos se faz
necessária. O recuo cede vez ao avanço: a união amorosa se consolida. O professor de
Filosofia amplamente mitificado pela ótica da heroína é aqui enxergado, isto é, nas
orações finais do romance, na sua condição humana, corpórea: “[Ulisses] beijou sua
mão, humanizando-se” (LISPECTOR, 1998d, p. 149).
Consumado o prazer sexual, Lóri “se sentiu perdendo todo o peso do corpo”
(LISPECTOR, 1998d, p. 150). Ambos personagens reconhecem sua materialidade.
Ulisses, em sua percepção, reconhece: “A verdade, Lóri, é que no fundo andei toda a
minha vida em busca da embriaguez da santidade. Nunca havia pensado que o que eu
iria atingir era a santidade do corpo” (LISPECTOR, 1998d, p. 151).
Na trajetória da aprendizagem ao prazer, a avaliação feita por Ulisses impele
Loreley à compreensão do novo patamar de vida conquistado, seu novo nome, sua
integração com o amante: “Você tinha me dito que, quando me perguntassem meu nome
eu não dissesse Lóri, mas “Eu”. Pois só agora eu me chamo “Eu”. E digo: eu está
apaixonada pelo teu eu. Então nós é. Ulisses, nós é original” (LISPECTOR, 1998d, p.
151).
O enlace das personagens é vivenciado em uma plenitude que até mesmo as
palavras perdem sua função normativa. A refração à gramática prescritiva trafega nos
momentos decisivos do romance a unificar a aprendizagem e o prazer das personagens:
“o “eu” apaixonado de Lóri passa a formar com o “eu” apaixonado de Ulisses um “nós”,
107
que é um “um” total. Essa nova alma assim surgida, não mais ele nem ela, mas um
ele/ela, um andrógino” (PIRES, 2006, p. 272).
Como observado por Lúcia Pires, a trajetória de Loreley, dentre as demais
personagens de Clarice Lispector, se cotejada ao mito de Psiqué – consiste numa
trajetória completa, de unificação. Segundo a estudiosa, a entrega amorosa das
personagens fundida no “nós é” acarreta a interpretação de uma completude da
androginia71
: “Ora, a androginia, a fusão de macho e fêmea formando um ser único e
esférico, completo em si, seria a perfeição da condição humana, elevada assim ao nível
da divindade” (PIRES, 2006, p. 270, 271).
Fato possível de válida interpretação ao que concerne a frase posta à narrativa
após a unificação das protagonistas: “A morte perdera a glória” (LISPECTOR, 1998d,
p. 152). Quando a morte perde a glória, em contexto divino, a ressureição surge como
possibilidade de uma nova vida, um novo céu, uma nova terra.
É válido marcar o encontro pouco aparente, mas existente, do texto clariciano
com a história bíblica direcionada à conquista da terra prometida pelos hebreus.
Orienta-se a atenção, primeiramente, ao que Berta Waldman marca acerca da
presença judaica na escrita de Clarice Lispector.
Na obra de Clarice Lispector avulta a presença constante de referência
ou citação bíblica. A primeira tentação é atribuir essa forte presença a
uma educação judaica da romancista. Mas, além da presença judaica,
verifica-se também a cristã, além de crenças populares, o que sugere o
seu empenho de integração no quadro particular das experiências
religiosas brasileiras, marcada pelo sincretismo. Todavia, é certo que a
Bíblia lhe serviu de base (WALDMAN, 2003, p. 37).
Abre-se nesta pesquisa a compreensão de três tópicos imprecisos pontuados pelo
biógrafo norte-americano de Clarice Lispector, Benjamin Moser. Faz-se necessário, em
amplitude, o esclarecimento desses equívocos.
1. A expressão judaica em Clarice.
2. O estupro que o pesquisador delega à mãe da autora.
3. A apropriação indevida do biógrafo às pesquisas de Célia Regina Ranzolin e
Aparecida Maria Nunes.
71
“É preciso compreender a androginia como uma grande metáfora da perfeição espiritual antes de tudo,
algo a ser buscado pelo ser humano no mais íntimo e profundo recanto de seu coração, uma meta de vida,
que, paradoxalmente, só poderá ser atingida com a própria transcendência da vida humana. Para a heroína
clariciana, ter chegado aos braços de Ulisses significa ter conseguido desenvolver-se ao máximo como
Penélope, para só assim poder também abarcar em seu espírito Ulisses, e ser um e outro, sem prejuízo de
ninguém” (PIRES, 2006, p. 273).
108
Para o biógrafo, Clarice é judia não apenas por ter nascido na Ucrânia, mas por
intima aproximação para com a religião, quer nos seus textos, quer nas suas vivências:
“Em Clarice, uma biografia, examinei as raízes da autora no misticismo judaico e o
impulso essencialmente espiritual que anima sua obra” (MOSER, 2016, p. 21). Rotular
Clarice como escritora judia não condiz, integralmente, nem com as vivências da autora,
nem com sua vontade de pertencimento: “Sou brasileira pronto e ponto” (LISPECTOR
apud COUTINHO, 1980, p. 165 – 170).
Benjamin Abdala Junior, analisando a biografia escrita pelo norte-americano,
bem como os plágios e não créditos às pesquisas de Nádia Battella Gotlib e Teresa
Montero, esclarece que ao privilegiar a ascendência judaica de Clarice Lispector,
“[Moser] recai numa linha de reflexão que desloca seu centro de interesse e, na ânsia de
reconstituir um passado de dimensão épica, resvala em riscos de argumentação, que
acabam prejudicando o seu fio de exposição” (ABDALA JUNIOR, 2010, p. 288).
Esses riscos de argumentação, sobretudo, são a recriação de cenas da vida da
família Lispector concernentes ao estupro delegado à mãe de Clarice sem comprovação
pelo biógrafo. Moser ficcionaliza o passado da família Lispector no seu
Clarice,72
.“Com certeza absoluta, o autor identifica o crime (estupro), o criminoso
(bolcheviques russos) e o diagnóstico de doença “proveniente” desse crime (sífilis)”
(ABDALA JUNIOR, 2010, p. 288). Cabe a redundância: sem comprovar essas
afirmativas.73
A ficcionalização biográfica pontuada por Moser de forma reticente para depois
firmar-se como ocorrência verídica em seu livro, reaparece sem sombra de dúvidas na
compilação Todos os contos74
, de Clarice Lispector. Assevera o biógrafo: “Sua mãe foi
72
Lê-se: Clarice vírgula. 73 Sublinhe-se o posicionamento de Nélida Piñon, amiga pessoal de Clarice Lispector, acerca dos
equívocos instaurados na biografia de Benjamin Moser: “Após sua morte [morte de Clarice Lispector],
recusei-me durante anos a prestar testemunho sobre ela, embora constate os equívocos biográficos
cometidos sobre esta genial escritora. Particularmente relativos à mãe que, segundo versão [...] do
biógrafo Benjamin Moser, teria sido violada, deste ato brutal advindo a terrível doença que a levou à
morte quando Clarice tinha 9 anos de idade, já instalados no Recife. Um fato que me inquieta, desejosa de
saber através de quem obteve ele tal dramática confidência. Acaso de Elisa Lispector, escritora de talento,
falecida no ano de 1989, a quem conheci? Uma mulher severa, circunspeta e que terá sofrido por não lhe
haverem reconhecido o talento que se julgava concentrado na irmã caçula. Incapaz ela, a meu juízo, de
transbordamento, de ceder intimidade a quem fosse. E menos ainda deixar alguma posta que revelasse a
final o segredo dolorido da família. Ou se originou de Tânia, que morreu em 2007, com a idade de 92
anos? De todos os modos, estranho que alguém da família afinal tenha exposto ao público uma possível
verdade resguardada durante décadas (PIÑON, 2012, p. 71, 72). 74 Outra problemática encontrada nas pesquisas de Benjamin Moser refere-se à organização do biógrafo
quanto do lançamento, em edição única, de Todos os contos de Clarice Lispector. Diz o autor na
introdução do volume: “Muita coisa nesse livro é sem precedentes. Foi a primeira vez em qualquer
109
violentada” (MOSER, 2016, p. 18, grifo nosso). Uma suposição interpretativa torna-se
ocorrência “comprovada sem provas” pelo biógrafo norte-americano.
Acrescente-se ainda o posicionamento de Nádia Battella Gotlib contrapelo às
afirmativas de Benjamin Moser. Ao organizar o livro memorialístico e póstumo de Elisa
Lispector75
, Retratos antigos, Gotlib esclarece que
[...] nesse texto aparece a explicitação da doença da mãe:
“hemiplegia”, ou seja, paralisia parcial do corpo proveniente de
trauma. [...] violência causada por bolcheviques durante um pogrom76
.
A hemiplegia – paralisia de metade do corpo que afeta justamente a
parte contrária à parte do cérebro afetada pelo trauma ou golpe –
manifesta-se já na viagem de exílio e seria paulatinamente agravada, a
ponto de já, em Recife, a mãe não mais poder caminhar, tendo de
passar o dia, permanentemente, numa cadeira de rodas (GOTLIB,
2012, p. 63, grifos nossos).
Posto luz às problemáticas encontradas nas pesquisas e divulgações de Benjamin
Moser concernentes à biografia e à literatura de Clarice Lispector, volta-se a atenção à
passagem do texto Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, na qual a “terra santa” é
sinalizada no paladar de Lóri, para o desfecho da análise respectiva ao corpo da
personagem. Cabe o desdobramento dessa cena.
idioma, incluindo o português, que todos os contos de Clarice foram reunidos em um único volume.
Inclui um capítulo de ‘Cartas a Hermengardo’ que descobri em um arquivo.”(MOSER, 2015, grifo
nosso). O conto referido por Moser foi mencionado em estudo sobre crônicas por Célia Regina Ranzolin
(1985), foi registrado e analisado por Aparecida Maria Nunes em estudo defendido na Universidade de
São Paulo (1991) e incluído na íntegra pela pesquisadora no volume Clarice na cabeceira: jornalismo
(2012). Esclarece Maria Nunes: “Há ainda, nesse volume [Clarice na cabeceira: jornalismo], crônicas e
outros textos também inéditos, como a série completa de ‘Cartas a Hermengardo’ que o periódico Dom
Casmurro publicou em 1941, textos esses que repousavam no meu arquivo desde quando iniciei o resgate
dessa produção, e que agora retornam para o leitor de Clarice” (NUNES, 2012, p. 18). 75
Ao recordar de sua mãe, Elisa escreveu que: “A hemiplegia de que a mãe fora acometida numa fatídica
noite de pogrom progredindo devagar, mas insidiosamente” (LISPECTOR, 2012, p. 111). Cabe, também,
a citação da escritora no romance em que ficcionaliza a saga da família Lispector em direção ao Brasil,
No exílio. A personagem Marim (a mãe) para proteger seus filhos e vizinhos que se refugiaram em sua
casa à fuga de pogroms, sai à rua na tentativa de conter os ataques milicianos: “Quando deu acordo de si,
estava na rua, de cabelos ao vento, a neve quase a atingir-lhe a cintura. Ao avistar dois milicianos vindo
em sua direção, caiu-lhes aos pés, pedindo auxílio. Depois as imagens embaralharam-se fantasticamente à
luz baça do luar. Como num sonho, por entre espessa neblina, viu homens correndo e travando renhido
tiroteio, e corpos tombando e sendo amortalhados pela neve. Em seguida, por um tempo que lhe pareceu
interminável, o mundo ficoi deserto. Então, encaminhou-se para casa a passos vagarosos e elásticos, só
perceptíveis pelo crepitar cantante da neve” (LISPECTOR, 2005, p. 32, 35). Como pontuado no excerto,
não há nessa narrativa indícios de violência sexual direcionados à mãe das escritoras. 76
Registre-se a definição partejada pela biógrafa: “violência causada por bolcheviques”, isto é, o progrom
interpretado como ato de violência e não como ato de violentar. Ainda segundo a autora de Clarice, uma
vida que se conta, uma segunda menção da doença da mãe das escritoras é mencionada por Elisa
Lispector no livro O tigre de bengala, publicado em 1985. O texto “refere-se aos tremores do corpo
causados pelo mal de Parkinson. Seria esse o segundo de apenas dois diagnósticos, que se conhecem da
doença da mãe, além, naturalmente, do atestado de óbito, que atesta morte por “congestão edematose (sic)
no curso de tuberculose” (GOTLIB, 2012, p. 67).
110
Lóri, vigiando o sono de Ulisses, direciona o pensamento ao divino: “‘Deus’,
pensou ela, ‘então era isto que parecias me prometer’”(LISPECTOR, 1998d, p. 153).
Para se chegar à Terra Santa no contexto bíblico, dentre os percursos trilhados
pelo povo eleito, a morte de um cordeiro a celebrar a primeira Páscoa era
imprescindível. Páscoa aqui tem o sentido de passagem. É a morte da escravidão – do
jugo que cerceou a autoexpressão dos israelistas – abrindo-se à liberdade focalizada
numa nova terra.
A unificação das personagens claricianas alude ao episódio bíblico. Lóri se
apropria do gosto do “fruto do mundo”, experimenta o sabor de uma nova terra, uma
terra santa: “A fruta estava inteira, sim, embora dentro da boca sentisse como coisa viva
a comida da terra. Era terra santa porque era a única em que um ser humano podia ao
amar dizer: eu sou tua e tu és meu, e nós é um” (LISPECTOR, 1998d, p. 153, grifo
nosso).
O vislumbre de uma terra santa faz com que a narrativa adelgace a norma
prescritiva estabelecendo nova significação à oração. Nesse veio de reformulação, a
heroína de Clarice Lispector experimenta no provar do fruto a assimilação da bem-
aventurança: “ao contrário de Eva, ao morder a maçã entrava no paraíso” (LISPECTOR,
1998d, p. 134).
Como evidenciado neste estudo, o processo de renovação apontado pelas
estações do ano alcança a mente e o corpo das personagens, possibilitando-lhes a
unificação corporal no final do romance, no desfecho da trajetória da heroína clariciana.
Renovação é o ato constante em toda a narrativa, entretanto, seu ápice se solidifica no
último capítulo dO livro dos prazeres, na primavera77
. Tal premissa é compreendida por
Lóri com a seguinte expressão: “sei que meu caminho chegou ao fim: quer dizer que
cheguei à porta de um começo” (LISPECTOR, 1998d, p. 158).
Os dois-pontos grafados à continuidade de uma folha em branco contribuem
para esse novo posicionamento da personagem, uma vez que a terra prometida é uma
tarefa a cumprir-se, o texto de Clarice, bem como o percurso de suas personagens, são
tarefas a serem realizadas.
“O que te escrevo continua. [...] O melhor ainda não foi escrito. O melhor está
nas entrelinhas” (LISPECTOR, 1998a, p. 95).
77
“Toda iniciação mítica implica algum tipo de morte e só termina com o correspondente renascimento,
do qual a primavera é uma imagem universal” (PIRES, 2006, p. 224).
111
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Aprender é sempre adquirir uma força para outras vitórias,
na sucessão interminável da vida.
Cecília Meireles, Crônicas de educação
Meu caminho não sou eu, é o outro, é os outros. Quando eu puder sentir plenamente o
outro estarei salva e pensarei: eis o meu porto de chegada.
Clarice Lispector, A descoberta do mundo
Pesquisar a obra de Clarice Lispector, quando ícones importantes da crítica
literária já se empenharam em nortear interpretações acerca dos seus escritos ao longo
dos mais de sessenta e três anos da publicação de seu primeiro romance, é um desafio,
válido de renovação, para qualquer pesquisador. Ocorrência que é possível precisamente
porque o texto de Clarice, como a atribuição direcionada pelo crédulo aos textos
sagrados, se renova a cada estação em que é lido, a cada vivência sondada na vida de
seus leitores “de alma já formada”.
Considerando essa experiência de renovação, buscou-se nesse estudo valorizar o
romance Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres concernente à produção instigante,
fluída e pensante de sua autora. Para tantos críticos, o livro lançando por Clarice em
1969 é uma obra que se distancia de seus textos consagrados, Laços de família e A
paixão segundo G.H., por exemplo; entretanto, o que se nota na história de Loreley e
Ulisses, além de uma aproximação conciliadora para com os desfechos de suas heroínas
anteriores e, para além de uma história clichê de amor romântico, é a unificação
intelectual, espiritual e corporal de suas personagens que são cultuadas nessa narrativa:
“Nós é um” (LISPECTOR, 1998d, p. 153).
A trajetória de Lóri no decorrer desse livro que é “o meio do caminho”,
expressão alcunhada por Romilda Mochiuti ao interpretar a pontuação de abertura e
fechamento da narrativa, perfilou-se nesse estudo sob a ótica interpretativa das três
epígrafes, paratextos que se articulam na tessitura de todo o romance, direcionando-o à
renovação possibilitada pela morte dos estereótipos, conceitos sociais e pessoais de sua
protagonista.
112
Averiguou-se também a reformulação do romance de formação alemão adaptado
à realidade literária brasileira. O texto de Clarice Lispector foi analisado sob a vertente
de estudiosos que delegam autonomia a essa reformulação crítica, tais como Mikhail
Bakhtin, Wilma Maas e Cristina Ferreira Pinto.
A contribuição de Bakhtin às interpretações aqui estabelecidas amplia-se às
análises dos recursos discursivos na construção da heroína de Clarice Lispector: diálogo
socrático (mediante as técnicas síncrese e anácrise), bem como outros gêneros a ele
cognatos, solilóquio e diálogo no limiar.
As pesquisas de Arnaldo Franco Júnior acerca do recurso crítico Kitsch na obra
de Clarice Lispector possibilitaram as análises do processo de avanço, enquanto se
recua, de Lóri, concernente à encenação da escritura, interpretação, dentre outras aqui
discutidas, que vai de encontro aos críticos que leram Uma aprendizagem ou o livro dos
prazeres como um texto fracassado.
Por último, interpretou-se nesta dissertação a formação da consciência de Lóri
atrelada ao seu corpo. Ocorrência intimamente ligada às quatro estações do ano.
Notou-se neste estudo que para uma escritora que se manteve distante da escrita
passiva a procedimentos metódicos, sobretudo a um texto que reproduzia um estilo
convencional de narrar, Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, dentro desse
percurso transgressor, direciona ao leitor a possibilidade de uma leitura plural de sentido
concernente ao micro e macro texto de Lispector: como marcou Benedito Nunes, “um
romance de romances” (1995, p. 81, grifo do autor).
Sob essa premissa, interpretou-se nesta dissertação que Lóri é a heroína que se
integra tanto às produções anteriores, como às produções posteriores de Clarice
Lispector: romances, crônicas, contos, textos inclassificáveis – a exemplo Água viva –,
textos jornalísticos etc. Em Lóri há uma estrutura conciliadora com toda produção de
Clarice Lispector, na medida em que a protagonista de Uma aprendizagem ou o livro
dos prazeres potencializa características presentes em heroínas claricianas que a
precedem (Joana, Virginia, Lucrécia, G.H.) e a sucedem (Macabéa e Ângela Pralini).
Na tessitura dO livro dos prazeres, sondando seu intelecto, construído durante as quatro
estações, a personagem amplia a possibilidade de sua existência, isto é, desfaz-se do
percurso da errância, da hesitação e do medo, para, em diálogo, solidão e comunhão,
refletir acerca de ser e estar no mundo, integrando-se à manifestação de uma nova
experimentação de vida.
Esse percurso, atrelado à interpretação de Lúcia Pires que vê no romance de
1969 a conclusão da aprendizagem de Joana e G.H., direcionou a compreensão de que
113
Lóri termina o que as protagonistas de Perto do coração selvagem e A paixão segundo
G.H., respectivamente, iniciaram. Lóri é a personagem clariciana que vivencia a
integração com seu par, a autonomia intelectual, o sexo como forma de prazer e não
apenas como procriação.
Sublinhe-se a articulação proposta por Clarice Lispector na costura desse que é o
seu sexto romance: junção de crônicas à narrativa de 1969. Para além de uma ligação
entre suas heroínas anteriores, é possível reconhecer estruturas reformuladas de crônicas
tecidas nO livro dos prazeres, fato que amplia as possibilidades interpretativas
concernentes à completude de Lorely. A personagem, além de se relacionar aos
romances anteriores de sua autora, compõe passagens significativas do processo
jornalístico de Clarice.
Considerando os dois últimos livros de Clarice Lispector, os dois-pontos ao
término de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres possibilitam a compreensão de
unificação aos textos A hora da estrela (1977) e Um sopro de vida (1978).
Lóri une-se a Ulisses. Rodrigo S.M. funde-se em escrita com Macabéa. O Autor
de Um sopro de vida articula-se intimamente com Ângela Pralini: personagens e
narradores unificados por uma escrita andrógena78
. Contestações que contribuem para
visualizar “a planta escritural de Clarice” em Lóri, isto é, a escrita clariciana põe luz à
possibilidade de integração e de totalidade.
Assim posto, nesta contribuição ao estudo de Uma aprendizagem ou o livro dos
prazeres conclui-se que nesta narrativa se evidencia a construção física, social, mental e
espiritual, condicionada numa interação e integração com o outro. Ocorrências que
pressupõem o constante construto. Antes da vírgula, durante a narrativa, depois dos
dois-pontos.
78
A conclusão do livro A trajetória da heroína na obra de Clarice Lispector, de Lúcia Pires, estende essa
interpretação.
114
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