UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
MESTRADO EM HISTÓRIA
Leonardo Nascimento Menezes
SOBRE AS CINZAS DA MATA ATLÂNTICA:
CAFEICULTURA E TRANSFORMAÇÃO DO MEIO ECOLÓGICO EM
CATAGUASES (1870-1930)
JUIZ DE FORA
2016
Leonardo Nascimento Menezes
SOBRE AS CINZAS DA MATA ATLÂNTICA:
CAFEICULTURA E TRANSFORMAÇÃO DO MEIO ECOLÓGICO EM
CATAGUASES (1870-1930)
Juiz de Fora
2016
Leonardo Nascimento Menezes
SOBRE AS CINZAS DA MATA ATLÂNTICA:
CAFEICULTURA E TRANSFORMAÇÃO DO MEIO ECOLÓGICO EM
CATAGUASES (1870-1930)
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em História, da Universidade Federal
de Juiz de Fora como requisito parcial para
obtenção do título de mestre em História.
Orientador: Anderson José Pires
Juiz de Fora
2016
Leonardo Nascimento Menezes
Sobre as cinzas da Mata Atlântica: cafeicultura e transformação do meio ecológico em
Cataguases (1870-1930)
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em História, da Universidade Federal
de Juiz de Fora como requisito parcial para
obtenção do título de mestre em História.
Orientador: Anderson José Pires
Juiz de Fora, 01/09/2016.
Banca examinadora
________________________________________________
Prof. Dr. Anderson José Pires – Orientador
________________________________________________
Prof. Dr. Fernando Gaudereto Lamas - Presidente
________________________________________________
Prof. Dr. Cezar Teixeira Honorato (UFF)
AGRADECIMENTOS
Agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior
(CAPES) pelo financiamento do trabalho.
Ao Prof. Dr. Anderson Pires pelo primoroso trabalho de orientação, guiando-me
diligentemente ao longo de toda a pesquisa, auxiliando com presteza, paciência e enorme
dedicação na solução de todas as dificuldades que surgiram. As conversas amigáveis, os
aconselhamentos sempre pertinentes tornaram este trabalho possível. Aos Profs. Drs.
Fernando Lamas (Colégio de Aplicação João XXIII) e Cezar Honorato (UFF) meus sinceros
agradecimentos por participarem de minha banca de qualificação e defesa do presente
trabalho, cujas observações e indicações de leitura contribuíram muito para o enriquecimento
deste trabalho. À todos os professores do Programa de Pós-Graduação em História por
acreditarem em mim
À todos do Instituto Francisca de Souza Peixoto que me ajudaram a ter acesso ao
Centro Histórico de Documentação (CDH) e à Professora Cláudia Cristina da Silva que foi
absolutamente solícita, mostrando tudo que eu precisava saber sobre o arquivo para iniciar
esta pesquisa e à VT Transportes que me deu acesso ao galpão da empresa onde estava
guardada a documentação, permitindo assim que eu concluísse minha pesquisa.
Aos meus primos Gabriel Gouvêa, Tiago Barroso e José Neto e meus amigos
Princisval Ferruce e Pâmela Bastos que sempre ouviram pacientemente eu falar sobre minha
pesquisa, me incentivando e procurando me ajudar de forma prestativa. Aos meus amigos
Adebiano Rodrigues, o primeiro a quem pude chamar de amigo em terras juizforanas, e
Guilherme Schneider, com quem dividi muitos fardos e alegrias da existência cotidiana, meus
agradecimentos por ter acompanhado de perto esta jornada e pelas conversas e experiências
que compartilhamos e que formaram parte importante de quem sou. Por fim agradeço aos
meus pais Alice e Flávio pelo apoio incondicional e pela confiança que depositam em mim, à
minha irmã Lívia por ter me ajudado nos momentos que mais precisei e à Ana Clea dos
Santos minha maior inspiração e grande motivadora, razão deste trabalho ter se realizado.
RESUMO
A proposta dessa pesquisa é realizar um estudo sobre a história ecológica tomando
como objeto a cidade de Cataguases, situada na porção noroeste da Zona da Mata mineira.
Nossa intenção é investigar a relação entre os condicionantes naturais e a ação humana na
determinação da estrutura social e agrária e quais as forças econômicas que induziram a
produção cafeeira na região e mais especificamente no município de Cataguases. Para tal
empreendimento definimos como marco cronológico os anos de 1870, com o objetivo de
contextualizar a produção cafeeira da década que assistiu no ano de 1877 a elevação de
Cataguases à categoria de município e a chegada da estrada de ferro no mesmo ano, e 1930,
ano em que a produção cafeeira entra em crise.
Palavras chave: Ecologia; Cafeicultura; Cataguases
ABSTRACT
The purpose of this research is to produce a study about the ecological history
adopting as object the city of Cataguases, located in the northwestern portion of Zona da Mata
in the state of Minas Gerais. Our intention is to investigate the relationship between natural
conditions and human action in determination of the social and agrarian structure and which
the economic forces that led to coffee production in the region and more specifically in the
city of Cataguases. For such an achievement we defined as chronological mark the year 1870,
in order to contextualize the coffee production of the decade that witnessed in the year 1877
the lift Cataguases to a municipality and the arrival of the railroad in the same year, and 1930,
year in which the coffee production enter in crisis.
Key words: Ecology; Coffee; Cataguases
LISTA DE QUADROS
Quadro 01 – Estações da Estrada de Ferro Leopoldina de Porto Novo do Cunha a Cataguases
.................................................................................................................................................136
Quadro 02 – Proporção dos cafezais (1870-1888)..................................................................138
Quadro 03 – Relação entre proprietários e não proprietários de escravos (1870-1888).........140
Quadro 04 – Estrutura da posse de escravos (1870-1888)......................................................140
Quadro 05 – Estrutura da posse de escravos dos cafeicultores (1870-1888)..........................141
Quadro 06 – Estrutura da posse de escravos não cafeicultores (1870-1888)..........................141
Quadro 07 – Extensão das propriedades em alqueires (1870-1888).......................................143
Quadro 08 – Extensão das propriedades dos cafeicultores em alqueires (1870-1888)...........143
Quadro 09 – Proporção dos cafezais (1890-1905)..................................................................144
Quadro 10 – Extensão das propriedades em alqueires (1890-1905)000.................................146
Quadro 11 – Extensão das propriedades dos cafeicultores em alqueires (1890-1905)...........146
Quadro 12 – Proporção dos cafezais (1906-1930)..................................................................150
Quadro 13 – Extensão das propriedades em alqueires (1906-1930).......................................152
Quadro 14 – Extensão das propriedades dos cafeicultores em alqueires (1906-1930)...........152
Quadro 15 – Classificação das terras em alqueires (1870-1930)............................................156
Quadro 16 – Classificação das terras especificadas em alqueires (1870-1930)......................157
Quadro 17 – Classificação das terras mistas em alqueires (1870-1930).................................158
Quadro 18 – Classificação das terra mistas e específicas em alqueires (1870-1930).............159
Quadro 19 – Rebanhos em Cataguases (1870-1930)..............................................................161
Quadro 20 – Bovinos em Cataguases (1870-1930)................................................................162
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 08
CAPÍTULO 1 – ECOLOGIA, CAPITAL E FORMAÇÃO DO MERCADO MUNDIAL
1.1 A Revolução Agrícola: um marco na história social e natural 24
1.2 O papel do capital na transformação do homem e da natureza em mercadoria 30
1.3 A ruptura no metabolismo social e formação do mercado mundial de café 41
1.4 O leite e depois o café: o consumo de café com leite na Europa 53
CAPÍTULO 2 – HÁLITO DE FOGO E DENTES DE FERRO: A FLORESTA
DEVORADA PELAS TÉCNICAS DE QUEIMADA E DERRUBADA
2.1 A reformulação biocultural do Novo Mundo 63
2.2 Sangue, suor e seiva: o processo civilizatório de mundo selvagem 71
2.3 Economia e ecologia escravista 84
2.4 Condicionamentos biofísicos e sociais na formação do sistema agrário cafeicultor 96
CAPÍTULO 3 – USO EXTENSIVO DO SOLO, DEGRADAÇÃO E FALHA
METABÓLICA
3.1 A história contida numa xícara de café 107
3.2 A fronteira do café invade a Mata mineira: uma breve análise histórica comparada 115
3.3 Uma breve história de Cataguases 130
3.4 O Café e a coroação de Cataguases como a Princesa da Mata 137
3.5 O café e depois o leite: a pecuária extensiva sucede a agricultura extensiva 153
CONCLUSÃO 164
FONTES E BIBLIOGRAFIA 168
8
INTRODUÇÃO
História, enquanto ciência, é o estudo teórico e metodologicamente elaborado que
investiga a ampla gama de realizações da humanidade através do marco de sociedades em
determinados espaços em um recorte cronológico específico. Nesta perspectiva a história não
deve ser entendida meramente como uma sucessão de fatos que se encadeiam, mas como a
investigação de seus nexos – relações causais e correlações – que objetiva elucidar a forma
como se desenrola o processo histórico nas diferentes temporalidades nas quais a existência
humana acontece, seja o tempo de curta duração dos episódios cotidianos ou o de duração
mais longa das conjunturas ou das estruturas que se prolongam ao longo de uma cadeia de
gerações. Assim, uma definição concisa seria a de que “o homem em sociedade constitui o
objeto final da pesquisa histórica. Só a necessidade da análise nos leva a dissociar os fatores
econômicos dos políticos ou dos mentais1”.
Enquanto as ciências naturais constituem o domínio dos fenômenos recorrentes, que
em diversos casos permitem a experimentação – e sua replicação – e a observação in loco, a
história ocupa-se daquilo que é por natureza impermanente e único. Contudo, ciência,
etimologicamente, é apenas uma palavra latina para conhecimento e, portanto o conhecimento
cientificamente sistematizado deve ser obtido pelos métodos que forem mais apropriados ao
campo em questão a despeito de qualquer especificidade que seu objeto de estudo venha
impor.
Obviamente não só o “mundo social”, mas também a própria natureza é por si mesma
essencialmente transitória, o que fica ainda mais evidente em escalas geológicas que
remontam a tempos em que a humanidade ainda não habitava a biosfera. Todavia o homem –
através de suas técnicas e instrumentos e da combinação única em todo o mundo natural de
uma ação consciente e socialmente organizada em estruturas amplas e flexíveis2 – é o único
ser que pode transformar ativamente de modo radical e sistemático os meios ecológicos em
diversos ecossistemas, alterando assim irremediavelmente seus ciclos típicos. Disso resulta
que a análise da ação antrópica na transformação do meio ecológico é necessariamente
condicionada ao tratamento das transformações que retroagem nas formações sociais e no
próprio homem enquanto espécie, sujeito e objeto das próprias alterações que provoca, posto
1CARDOSO, Ciro Flamarion; BRIGNOLI, Héctor Pérez. Os métodos da História. 2ª ed. Graal: Rio
de Janeiro, 1979. 2HARARI, YuvalNoah. Sapiens: uma breve história da humanidade. 7ª ed. Porto Alegre: L&PM,
2015.
9
que a ação histórica se manifesta através das possibilidades e dos requisitos ecológicos do
mundo material no qual uma dada sociedade está inserida3.
Nesta perspectiva a história ambiental se coloca como o campo que busca elucidar o
papel da natureza na vida humana não somente enquanto presença, mas também como agente
histórico, através de uma abordagem definida pela inserção do meio ambiente à história
humana. Portanto um dos méritos da abordagem ambiental é a incorporação de novas
variáveis e os recortes metodológicos que possibilitam leituras inovadoras à medida que não
se restringem aos marcos convencionais, uma vez que os fenômenos e regiões naturais –
como algum bioma específico – não ficam limitados à determinadas fronteiras políticas, e os
processos sociais que ocorrem em um determinado espaço podem ser analisados em função da
evolução de seus elementos constitutivos.
A história ambiental busca narrar os dramas humanos dentro do contexto
mais amplo da materialidade biofísica. Ao abraçar a totalidade das coisas
terrenas em mudança, a história ambiental procura unir história natural e
história humana em uma grande e inteligível narrativa. Ela coloca os
humanos e seus artefatos dentro do fluxo global da matéria, da energia e da
vida4.
Destarte o esforço intelectual de se pensar o meio ambiente associado à evolução das
práticas sociais fomenta uma visão mais integrada do mundo, no sentido que conecta numa só
abordagem tanto processos relativos à história natural quanto à história social, tratando de
forma criativa suas complexas interseções e suas ricas interações dialéticas para desta forma
ampliar o alcance e complexidade das interpretações na escrita da história. Portanto, ao
ressaltar o papel desempenhado pela presença e agência não humanas na construção da
história de algum lugar estamos adotando a perspectiva teórica da chamada história ambiental,
que é “um campo de estudos relativamente recente e eminentemente transdisciplinar,
construído na interface da história, da geografia, da antropologia e da ecologia,
principalmente5”.
Afinal é disso que se trata o materialismo histórico – a saber, a análise do processo
histórico à luz da interação dialética travada entre a humanidade, seja no nível individual ou
social, e a base material de sua existência –, materialismo, aliás, que é um pressuposto nas
assim chamadas ciências naturais. Portanto não há motivo para que os processos considerados
3 MARX, Karl. Formações econômicas pré-capitalistas. 3ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 1981.
4CABRAL, Diogo de Carvalho. Na presença da floresta: Mata Atlântica e história colonial. Rio de
Janeiro: Garamond, 2014; p. 48. 5 Id. Ibid.
10
como pertencentes ao domínio sociocultural e ao domínio natural sejam tratados de forma
estanque e dicotômica, posto que ambos os tipos de movimentos são históricos.
É certo que o mundo material impinge uma série de limitações sobre a vida através das
determinações imperiosas das leis da física, das propriedades dos elementos químicos e das
características biológicas que envolvem desde o nível genético ao ecossistêmico. Porém
outros traços constitutivos do plano material da vida, como a existência de determinados
recursos naturais – apontados por Marx como condições originais de produção6 –, apropriados
ou não por comunidades humanas, estabelecem um outro tipo de delimitação às
possibilidades de ação humana que não o da determinação imposta pelas leis da natureza. Esta
delimitação aqui compreendida é a do condicionamento estabelecido pela dinâmica do meio
natural, ao qual o homem integra e articula em conjunto com os demais agentes: elementos
abióticos e bióticos que compõem este sistema através de uma interação que é em essência
dialética.
Mas enquanto o comportamento de outros animais sociais é em grande medida
determinado por seus genes – ainda que também seja influenciado por fatores ambientais e
por peculiaridades individuais –, fazendo com que mudanças significativas no comportamento
social estejam, em geral, atreladas às mutações genéticas, o homem através de seu
impressionante desenvolvimento cultural conquistou uma margem de autonomia em relação
aos “ditames” do gene sem precedentes em toda a história da vida. Mas para tanto é
necessário entender que a essência humana não é uma abstração inerente ao indivíduo
isoladamente, pois ela abrange todo o mundo material – compreendendo o vínculo entre sua
natureza orgânica interna e a natureza inorgânica externa –, o conjunto das interações sociais
e as transformações culturais ao longo da História. A natureza do homem é sua historicidade,
entendida aqui como as relações estabelecidas uns com os outros, com o mundo material e
com a História, ou seja, o que define o homem é sua grande capacidade de aprendizado, de
construir-se a si mesmo, de forjar seu ambiente e de moldar o curso de sua trajetória no
mundo.
A imensa diversidade de realidades imaginadas que os sapiens inventaram e
a diversidade de padrões de comportamento são os principais componentes
do que chamamos “culturas”. Desde que apareceram, as culturas nunca
cessaram de se transformar e se desenvolver, e essas alterações irrefreáveis
são o que denominamos “história”. A Revolução Cognitiva é, portanto, o
ponto em que a história declarou independência da biologia. Até a
Revolução Cognitiva, os feitos de todas as espécies humanas pertenciam ao
6MARX, Karl. Op. cit.
11
reino da biologia. A partir da Revolução Cognitiva, as narrativas históricas
substituem as narrativas biológicas como nosso principal meio de explicar o
desenvolvimento do Homo Sapiens. Para entender a ascensão do
cristianismo ou a Revolução Francesa, não basta compreender a interação
entre genes, hormônios e organismos. É necessário, também, levar em
consideração a interação entre ideias, imagens e fantasias7.
Obviamente o Homo sapiens jamais deixou de ser constrangido pelas leis biológicas, e
toda sua capacidade cognitiva – a inventividade e poder de criar novas instituições, técnicas,
instrumentos, arranjos sociais, etc. – continua sendo moldada por seus genes. Em suma,
somos condicionados pela base material de nossa existência, o que de forma alguma implica
em sermos governados absolutamente e de modo automático por nossas necessidades
biológicas, mas sim que cada qual se move dentro dos limites colocados por sua biologia e
sua realidade objetiva, que determinam o seu espaço de autonomia. Em verdade a cadeia de
acontecimentos que compõe o processo histórico não desponta de eventos naturais, mas sim
do desdobramento das ações humanas e do poderoso significado subjetivo inerente à
manifestação de sua vontade.
A biologia estabelece os parâmetros básicos para o comportamento e as
capacidades do Homo sapiens. Toda a história acontece dentro dos limites
dessa arena biológica. No entanto, essa arena é extraordinariamente grande,
possibilitando que os sapiens joguem uma incrível variedade de jogos.
Graças à sua habilidade de criar ficções, os sapiens inventam jogos cada vez
mais complexos, que cada geração desenvolve e elabora mais. Em
conseqüência, a fim de entender como os sapiens se comportam, devemos
descrever a evolução histórica de suas ações8.
Há milhares de anos a espécie humana intervém ativamente em seu meio natural. A
natureza, por sua vez, enquanto espaço de reprodução da sociedade que contém as bases
inorgânicas da existência humana, constitui-se como o repositório das condições originais de
produção, já que os recursos naturais utilizados como matéria prima não podem ser
inicialmente eles próprios produzidos, sendo, portanto, condições preliminares do trabalho9.
Por conseguinte, sociedade e natureza compõem um quadro de interação mútua e
transformação dialética no qual o trabalho, através do desenvolvimento das forças produtivas
dentro de formações sociais historicamente definidas, desempenha o papel de regulação dos
fluxos materiais e energéticos do metabolismo do sistema social.
7HARARI, YuvalNoah. Op. cit.; p. 46.
8Id. Ibid. p. 47.
9MARX, Karl.Op. cit.; p. 77.
12
A partir da década de 1840, e até os dias de hoje, o conceito de metabolismo
tem sido usado como uma categoria-chave na abordagem da teoria dos
sistemas à interação dos organismos com o seu meio ambiente. Ele capta o
complexo processo bioquímico da troca metabólica, através do qual um
organismo – ou uma determinada célula – se serve dos materiais e da energia
do seu meio ambiente e os converte por meio de varias reações metabólicas
nas unidades constituintes do crescimento. Além, disso, o conceito de
metabolismo é usado para se referir aos processos regulatórios específicos
que governam esta complexa troca entre o organismo e o seu meio ambiente.
Hoje, o conceito de “metabolismo” é empregado por Eugene Odum e outros
eminentes ecologistas de sistemas para se referir a todos os níveis
biológicos, começando com a célula isolada e terminando no ecossistema10.
Através do processo de trabalho o homem estabelece uma relação metabólica com a
natureza, que consiste basicamente na extração de matéria e energia da natureza exterior para
a sua infusão na sociedade11
. A relação de troca metabólica, subjacente à noção bioquímica de
processos estruturados de crescimento e decadência biológicos, possui também um caráter
social na medida em que a sociedade despende energia humana de trabalho em troca de uma
quantidade determinada de energia natural que ela assimila, sendo o balanço desta operação o
elemento decisivo para a evolução da sociedade e o que define sua capacidade de reprodução
e suas possibilidades adicionais de crescimento ou o seu colapso12
. Desse modo, o nível do
desenvolvimento das forças produtivas atua enquanto índice da relação entre natureza e
sociedade ao expressar o tipo de processo de troca metabólica entre estas duas esferas, o que
caracteriza um determinado processo de reprodução social.
Seja qual for a forma social do processo de produção, ele tem de ser
contínuo ou percorrer periodicamente, sempre de novo, os mesmos estágios.
Assim como uma sociedade não pode deixar de consumir, tampouco pode
deixar de produzir. Portanto, considerado do ponto de vista de uma
interdependência contínua e do fluxo contínuo de sua renovação, todo
processo social de produção é simultaneamente processo de reprodução13
.
De fato nenhuma forma de vida existe de forma isolada de seu meio ecológico, sendo
todas elas integradas ao seu ambiente físico e ao conjunto dos demais organismos que vivem
no mesmo habitat afetando-se mutuamente como parte da teia alimentar e também através de
suas variadas influências sobre o meio ambiente. Assim a jornada evolutiva de qualquer
10
FOSTER, John Bellamy. A ecologia de Marx. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010; p.
226. 11
Id. Ibid..; p. 221. 12
Id. Ibid.., p. 221. 13
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política: livro I: o processo de produção do
capital. São Paulo: Boitempo, 2013; p. 641.
13
espécie é por certo, uma prodigiosa aventura por um caminho cuja direção não é rigidamente
determinada, mas, ao contrário, sujeita a uma vasta gama de contingências a cada etapa,
sendo, portanto cada espécie a soma de guinadas precisas no curso de um labirinto evolutivo
que opera em uma escala de tempo colossal e que é ele mesmo sujeito à evolução através da
interação com as espécies que percorrem e adulteram seus caminhos14
. Porém, ao longo de
sua trajetória, a espécie humana foi a que mais interferiu na estrutura de tal labirinto ao abrir e
fechar diversos nichos ecológicos em resultado do ajuste dos meios ecológicos às suas
necessidades15
.
Esta assombrosa capacidade de alterar ativamente a natureza e suas próprias relações
sociais como nenhuma outra espécie é concebida por sua habilidade ímpar de planejamento
que lhe abre certos caminhos sobre os ditames dos genes16
. Desta forma, o papel da agência
transformadora do homem na reprodução e transformação de suas formas sociais e na
modificação de sua realidade objetiva através do desenvolvimento de novas técnicas e
ferramentas e da criação de novos nichos ecológicos constituiu a mola propulsora da história
natural e social da espécie humana.
Assim o homem forjou seu nicho ecológico distinto, se ajustou adequadamente a
outros biomas além da savana, espalhando-se consistentemente pela biosfera, e se constituiu
enquanto espécie. O fabrico e uso de ferramentas e o desenvolvimento de uma linguagem
maleável17
, necessária para a organização da vida social e produtiva, foram fatores
substanciais para a modelação do processo evolutivo humano que passou a exercer pressões
seletivas em favor das adaptações biológicas que ocorreriam em função dos novos hábitos
culturais e que, desta forma, incorporava gradativamente modificações qualitativas no estilo
de vida e na adaptabilidade no que veio a constituir o ser humano moderno18
.
Os cientistas sociais tendem à desaprovação quando se fala de nicho para o
caso dos humanos – “naturalização da vida social”, dizem eles. Sobretudo
para afastar qualquer possibilidade de causação genética, os estudiosos da
sociedade humana preferem falar de técnica, pois esse conceito enfatiza a
inventividade do gênio humano. No entanto, pode-se argumentar que,
14
FOSTER, John Bellamy. Op. cit., p. 30. 15
WILSON, Edward. A conquista social da Terra .São Paulo: Companhia das Letras, 2013; p. 34. 16
DAWKINS, Richard. O gene egoísta. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 17
A invenção de códigos de linguagem que permitiam o entendimento mútuo e uma apreensão
sofisticada da realidade gerou uma impressionante rede de comunicação, mais extensa e elaborada do
que a de qualquer outro animal, que possibilitou, entre outras coisas, a troca de informações que
possivelmente garantiram vantagens decisivas sobre outras espécies do gênero Homo (principalmente
o Homo neanderthalensis) a respeito de como acessar recursos vitais à sobrevivência que asseguraram
a perpetuação e o domínio do Homo sapiens por praticamente toda biosfera. 18
FOSTER, John Bellamy. Op. cit.; pp. 281, 282.
14
embora o traço distintivo da razão e da cultura seja importante, há uma outra
característica igualmente relevante e que acentua a semelhança entre o
Homo sapiens e os outros seres vivos: para sobrevivermos, todos nós,
humanos ou não, modificamos nosso ambiente. Todos nós, em certa medida,
construímos os nossos nichos. Assim como o castor canadense e suas
“barragens” de madeira, as formigas cortadeiras e seus enormes ninhos de
terra, ou mesmo como as angiospermas tropicais, que ajudam a criar climas
amenos e úmidos, nós humanos somo “engenheiros de ecossistemas”. De
fato, há milênios que nós somos os mais refinados dos engenheiros
alogênicos – i.e., que alteram ambientes por meio de instrumentos externos
(“próteses” ou fenótipos estendidos”) – do planeta, tendo em vista nosso
imenso repertório de habilidades e estratégias de sobrevivência. No estudo
das técnicas, nunca podemos nos esquecer desse terreno comum19
.
A humanidade conquistou a biosfera e a modificou direta e indiretamente na última
dezena de milhar de anos da sua história, baseada na satisfação de seus instintos animais e
guiada por sua inteligência, como nenhuma outra espécie o fez durante os três bilhões e meio
de anos da história da vida20
. Contudo, a evolução cultural e da consciência do mundo
humana representa uma liberdade na ordenação racional da vida histórica que se expressa
imperiosamente a partir das limitações estabelecidas pelas condições materiais que regem sua
subsistência21
, o que significa que de uma perspectiva ecológica, os seres humanos
transformam seu meio ambiente não inteiramente conforme a sua vontade, mas com base em
condições impostas pelos sistemas naturais que seu organismo integra.
O mundo natural é simultaneamentea base da existência material e um produto
histórico da humanidade na medida em que expressa o resultado da ação dialética das
sucessivas gerações que nele atuaram. Por conseguinte, o desenvolvimento das forças
produtivas, além de provocar ajustes na ordem econômica, impele a um rearranjo no
equilíbrio ecológico e na interação social, o que invariavelmente implica na destruição das
condições sobre as quais as antigas formações sociais se assentavam. Como resultado, a
modificação das bases materiais produz ainda outras transformações que impactam a
sociedade substancialmente, ao criar novas necessidades, concepções de mundo e modos de
interação social22
. Portanto, pode-se dizer que a História, enquanto palco dos desdobramentos
culturais de cada sociedade, conforma-se como um tipo de sequência da evolução biológica
do Homo sapiens23
. Assim:
19
CABRAL, Diogo de Carvalho. Op. cit.; p. 57. 20
WILSON, Edward. A conquista social da Terra. Op. cit.; p. 23. 21
FOSTER, John Bellamy. Op. cit., p. 81. 22
MARX, Karl. Formações econômicas pré-capitalistas. Op. cit.; p. 88. 23
FOSTER, John Bellamy. Op. cit., p. 87.
15
Expressando, portanto, a dependência ecológica da ação humana, as técnicas
situam-se num continuum entre humanidade e não humanidade, pois,
embora atendam e reflitam desígnios completamente embebidos de
consciência, intencionalidade e imaginação, constituem também relações
inescapavelmente físicas e biológicas. (...) Assim, o sistema técnico
corresponde a um regime de relações que um determinado grupo humano
estabelece com os elementos não humanos do ecossistema e que permite a
sua manutenção e reprodução econômica e cultural24
.
Em razão da evolução exossomática única do gênero humano, os membros deste
grupo peculiar de primatas tornaram-se grandiosos engenheiros de ecossistema. Quando há
2,5 milhões de anos o Homo habilis desenvolveu as primeiras ferramentas de pedra, pôde
assim quebrar ossos de carcaças para se alimentar da medula óssea – material nutritivo que
preenche as cavidades ósseas e constitui um importante recurso alimentar –, explorando um
novo nicho ecológico que provavelmente representou uma guinada decisiva no curso
evolutivo humano25
. Desde então, por meio das sucessivas descobertas e inovações
acumuladas ao longo de um tempo que se perde nas brumas do alvorecer da história humana,
os Homo sapiens, os únicos herdeiros vivos dessa linhagem, sobreviveram através da
inventividade e do acúmulo de conhecimento responsável pelo gradativo aprimoramento de
suas forças produtivas.
Por certo um destes movimentos que representaram uma guinada no curso histórico da
humanidade foi a abertura de continentes a partir das grandes navegações do fim do século
XV e início do XVI, que inaugurou uma nova fase no desenvolvimento histórico ao viabilizar
não somente a ampliação dos mercados, mas a fundação das bases de um mercado global,
tornando o planeta, a partir de então, a realidade operacional de um sistema econômico
mundial cuja escala de produção, circulação e consumo assumira uma proporção sem
precedente. Apesar da conquista dos mares empreendida por nações europeias – a princípio
motivadas pelo controle das rotas das especiarias desde seus locais de origem – resultar na
dominação colonial e integração dos outros continentes às suas redes comerciais, apenas
tardiamente os produtos do Novo Mundo foram incorporados nas estruturas alimentares da
Europa26
.
Essa nova Era – que assistiria enormes movimentos migratórios em várias ondas de
populações humanas e de seus vegetais e animais domésticos que acabariam por reconfigurar
a biosfera – teve um começo pouco intenso, ao menos no que se refere às estruturas do
24
CABRAL, Diogo de Carvalho. Op. cit.; p. 58. 25
WILSON, Edward. A conquista social da Terra. Op. cit. 26
FLANDRIN, Jean-Louis. Os tempos modernos. In: FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI,
Massimo (org.). História da alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998; p. 543.
16
cotidiano da imensa maioria da população europeia, cuja existência material ainda
permaneceu intimamente ligada à vida no campo e aos seus ritmos e limitações próprios até a
entrada do século XVIII27
.
Entretanto o processo de integração mundial posto em marcha a partir das grandes
navegações do fim do século XV culminou na consubstanciação de um mercado global cujos
tentáculos atingiam rincões antes inacessíveis, convocados a partir de então para compor um
novo mundo sob o comando do capital. Desde então, um imenso contingente de pessoas que
viviam em diferentes partes do planeta passaram a ser articuladas em função desta nova forma
de produção e consumo que abalaram as estruturas do cotidiano e reorganizaram os elementos
constituintes do espaço.
A maior integração dentre as regiões produtoras e os mercados
consumidores dos produtos tropicais, que entre 1870 e 1913, mais do que
dobram em volume comercializado, o século XIX é de fato o período de
dinamização do mercado de commodities. O café, além de outros produtos
de ampla circulação como o chá e o algodão, tornaram-se verdadeiros
motores sociais, responsáveis por grande parte da receita gerada nos países
produtores, uma vez que o alcance dessas mercadorias servira como porta de
entrada das economias periféricas no mercado mundial. Contudo, se a tão
aclamada integração de mercados tenha ocorrido de maneira inédita na
história mundial, acontece que esse processo ficara de certo modo restrito
geograficamente a algumas regiões, principalmente nos países produtores.
Mesmo assim, o setor exportador representou para esses países o elemento
econômico mais dinâmico28
.
Destarte alguns produtos, entre eles o café, foram alçados a um patamar de produção e
demanda sem precedentes, provocando profundos impactos na economia, na organização
social e composição étnica e no meio ambiente das áreas produtoras. A cafeicultura no Brasil,
por ter se consolidado desde muito cedo como uma prática agrícola orientada por normas de
mercado, promoveu tanto a alienação do trabalho – pois mesmo que em grande parte do
tempo as relações sociais de produção tenham se baseado em trabalho compulsório, sua
motivação foi a produção de valor, o que por si só insere esta sociedade em um novo contexto
de mediação dos recursos naturais –, quanto uma alienação da natureza – ao promover uma
ruptura no metabolismo social tanto no âmbito de seu espaço produtivo ao instaurar um
processo de degradação de suas terras cultivadas, como no âmbito global por impor uma
transferência material que impedia o retorno de seus elementos constitutivos ao solo de onde
27
BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo séculos XV-XVIII: as
estruturas do cotidiano. São Paulo: Martins Fontes, 2005; p. 36. 28
VITTORETTO, Bruno Novelino. Do Parahybuna à Zona da Mata: terra e trabalho no processo
de incorporação produtiva do café mineiro (1830-1870). UFJF: Juiz de Fora, 2012; p. 30.
17
foram retirados –. Desta forma, o movimento resultante de um sistema agrário cuja lógica
residia no abandono dos solos que davam sinais de desgaste para a incorporação de terras
virgens que proporcionavam maior rendimento para a sua reprodução simples ou ampliada
provocou a devastação sistemática da Mata Atlântica.
A agricultura – e portanto a História da Agricultura – pode ser focalizada a
partir da Ecologia. Um campo cultivado, ou um pasto, é um biótopo
(substrato material com características físico-químicas específicas – solo,
água, luz, ciclos gasosos, etc. – e que serve de base à biocenose) sobre o qual
se desenvolve uma biocenose (conjunto de organismos em inter-relação
entre si e com o biótopo): em conjunto, o biótopo e a biocenose formam,
justamente, um ecossistema. O enfoque ecológico em História da
Agricultura consiste basicamente em estudar: 1) as condições do meio
ambiente em relação à eclosão, reprodução, extensão, transformação ou
desaparecimento de um dado sistema agrícola; 2) os efeitos voluntários e
involuntários da atividade agrícola e pastoril sobre o meio ambiente29
.
Assim este presente estudo pretende compreender a relação mútua entre o homem e o
meio natural, verificando os respectivos impactos sociais e ambientais do cultivo do café e
com este objetivo analisar sua história à luz dos desafios ecológicos que a natureza impôs aos
processos produtivos orientados para a obtenção de lucro. Para isso elegemos a cidade de
Cataguases como nosso objeto de estudo devido às características da organização de sua
economia e ao papel que a mesma desempenhou na economia cafeeira da Zona da Mata.
O processo de montagem da cafeicultura brasileira não pode ser satisfatoriamente
explicado sem que a explanação remeta aos processos globais que organizam toda a cadeia
econômica do café. Portanto, ainda que esta pesquisa se oriente basicamente por uma
interpretação localizada, pensamos que a localidade submetida à analise não deve ser
considerada enquanto uma unidade completamente separada das dinâmicas que se relacionam
a ela e que operam em escala global. Em um trabalho que busca entender de que maneira a
demanda internacional por café induziu a transformação do espaço natural em uma cidade
interiorana a partir do momento que esta se inseriu no circuito de produção do referido artigo
de exportação, a importância de tal consideração fica ainda mais clara, posto que:
(...) não se pode fazer uma interpretação válida dos sistemas locais na escala
local. Eventos à escala mundial, sejam os de hoje ou os de ontem,
contribuem mais para o atendimento dos subespaços que os fenômenos
29
CARDOSO, Ciro Flamarion. Agricultura, escravidão e capitalismo. Petrópolis: Editora Vozes,
1979; p. 22.
18
locais. Estes últimos não são mais que o resultado, direto ou indireto, de
forças cuja gestação ocorre à distância30
.
Contudo é preciso ressaltar a importância da história regional para a construção do
conhecimento histórico enquanto um importante e confiável subsídio para as interpretações
mais amplas e generalistas na medida em que esta corrige as distorções provocadas por
leituras com uma maior amplitude através de uma maior proximidade de fontes que abrem
novos caminhos para a compreensão da realidade. Esta maior adequação que a história
regional proporciona já seria razão suficiente para justificar o esforço empreendido em seu
estudo, mas há ainda outra leitura possível: na medida em que Cataguases passa a integrar um
circuito internacional através de sua produção agroexportadora, interessa-nos compreender de
que maneira as convulsões que abalaram as estruturas da sociedade de então foram sentidas
em Cataguases, atendo-nos sobretudo às transformações provocadas em seu espaço natural
que adivinha de uma nova relação estabelecida entre o homem e seu sistema natural. Portanto,
o recorte regional, mais que uma opção metodológica constitui-se como um instrumento
imprescindível para uma leitura analítica mais aproximada e detalhada – e, portanto mais
densa – da realidade histórica sob escrutínio do pesquisador.
A reflexão a cerca do conceito de região deve ser feita a partir de uma perspectiva
histórica, isto é, o estudo regional deve considerar a historicidade da formação espacial de seu
recorte e entendemos que a cafeicultura – ainda que o determinado espaço que veio a se
constituir como a Zona da Mata já se encontrasse engajado na agricultura mercantil de
alimentos antes da chegada do café – exerceu um papel chave no processo de diferenciação
espacial Zona da Mata no sentido de conferir historicidade a esta região. Portanto:
(...) não se pode partir para uma apreensão histórica do conceito de região
sem se ter por base, essencialmente, o dado humano na produção/percepção
do espaço. Ou seja, mesmo que respondendo dialeticamente ao que se é
apresentado pelo ambiente, é a ação transformadora nesse espaço, ou
minimamente a forma segundo a qual ele é percebido, apreendido, que
confere, repito, em um jogo dialético, a historicidade do espaço. (...) Uma
vez que a região deve ser fruto não de atribuições “naturais” em exclusivo,
mas da interação desta dimensão com a produção/percepção do espaço, é
razoável pensar que isto não se dá de forma unívoca, e que, portanto, não se
pode falar de um só recorte regional para um dado espaço. (...)mais
apropriada é sempre a percepção dedimensões superpostas para a
análise dessas questões31.
30
SANTOS, Milton. Espaço & Método. Editora Nobel: São Paulo, 1997; p. 22. 31
CUNHA, Alexandre Mendes. Esses espaços das minas gerais: considerações acerca de um conceito
dinâmico de região e seu uso à interpretação dos processos espaciais em curso entre os séculos XVIII
19
Por certo o conceito de região pode assumir mais de uma percepção do espaço vivido,
mas não de forma a permitir recortes que não estejam alinhados com a realidade histórica a
ser investigada. Dito isto, pensamos que predomínio da produção cafeeira no Dezenove, em
acordo com os critérios metodológicos mencionados, exerceu a função de elemento
diferenciador e delimitador da economia da Zona da Mata no interior de Minas Gerais, no que
pesa o estado de Minas conformar-se como a soma de diversas regiões com características
sociais e econômicas consideravelmente distintas com pouca integração entre si32
.
Apesar de representar, com seus 35.000 Kmª, apenas 5% deste território, a
Zona da Mata foi, até o início do século XX, a região mais rica do estado de
Minas Gerais por apresentar as melhores condições físicas para o cultivo do
produto que, na época, era a principal riqueza do país. Até a década de 1920,
foi a principal produtora de café no estado, numa proporção que varia de
90% na década de 1880 até 70% na década de 1920, e isto em relação a um
produto que entre 1870 e 1930 ocupou sozinho cerca de 60% do total das
exportações do estado33
.
Uma região não deve ser entendida unicamente por suas atribuições naturais, mas
como a interação estabelecida entre esta dimensão e a percepção do espaço definida pelo
sistema social de produção ali estabelecido. Isto é, a transformação dialética estabelecida
entre determinado meio ambiente e a sociedade ali constituída acaba por estabelecer um tipo
de metabolismo social que define a identidade de uma região específica de modo a diferenciá-
la de outras regiões34
.
A região natural é uma das feições mais costumeiramente subjacentes ao
conceito de região. A paisagem, ainda que não seja só a natureza em si, mas
também o palco e o resultado da ação humana, é entendida, nesta
perspectiva, fundamentalmente em termos do mundo físico. O que a leitura
de regiões a partir desses atributos naturais fornece é via de regra um
desenho apreendido e explicado em função da fisionomia do espaço, o que é
sem dúvida assaz limitado. (...) Não é desnecessário lembrar que a
região natural não pode ser obviamente o critério único a sustentar o
e XIX. In: Anais do XI Seminário sobre a Economia Mineira [Proceedings of the 11th Seminaron
the Economyof Minas Gerais], 2004; p. 02. 32
PIRES, Anderson. Café, finanças e indústria: Juiz de Fora 1889-1930. Funalfa: Juiz de Fora,
2009; p. 27. 33
PIRES, Anderson. Op. cit.; p. 28. 34
CUNHA, Alexandre Mendes; SIMÕES, Rodrigo Ferreira; PAULA, João Antonio de.
Regionalização e história: uma contribuição introdutória ao debate teórico-metodológico. UFMG/Cedeplar: Belo Horizonte, 2005; p.8.
20
conceito de região, mas erro tão grave seria apartar essa dimensão ao
se recortar o espaço35.
Portanto o metabolismo social – devidamente entendido como o processo por meio do
qual um sistema social transforma a natureza externa pelo trabalho e destarte transforma sua
natureza interna através das relações sociais estabelecidas pela dinâmica desta interação
mútua – coloca-se como o elemento historicamente definidor de uma região. Ora, até a
crescente ascensão da cultura cafeeira que conformou a região matense diferenciando-a das
demais regiões de Minas Gerais, a área ocupada pelo território da atual região da Zona da
Mata era caracterizada, no período colonial, como áreas proibidas, marcadas por um processo
de ocupação pouco efetivo e por um metabolismo social não massivo, tendo o topônimo
oficializado apenas no inicio da Primeira República quando da divisão do Estado em zonas
fisiográficas36
.
O espaço geográfico é um todo formado por vários elementos, aos quais interessa
destacar para este trabalho: o homem, o meio ecológico e as infraestruturas, uma vez que
tratamos neste trabalho das infraestruturas – que se constituem enquanto trabalho humano
materializado e geografizado – construídas no ecossistema cultural dos complexos cafeeiros e
como a atividade antrópica de construção de tais sistemas interferem no meio ecológico, aqui
tomado como o conjunto dos complexos territoriais apropriados como base física do trabalho
humano37
.
Em suma, entendemos que se faz necessário empreender um esforço no sentido de
integrar a evolução das práticas sociais às suas interações com meio ambiente, unindo deste
modo a história social e a história natural da Zona da Mata mineira e especificamente de
Cataguases de modo a contribuir para os estudos sobre as implicações ecológicas da
cafeicultura e desta forma ressaltar Cataguases na composição da história da cafeicultura na
Zona da Mata de Minas Gerais. Destarte o presente estudo acerca da história ecológica de
Cataguases foi feito através da investigação da relação entre os condicionantes naturais e a
ação humana na determinação da estrutura social e agrária e quais as forças econômicas que
induziram a produção cafeeira.
35
CUNHA, Alexandre Mendes. Op. cit. In: Anais do XI Seminário sobre a Economia Mineira
[Proceedings of the 11th Seminaron the Economy of Minas Gerais], 2004; p. 03. 36
VITTORETTO, Bruno Novelino. Op. cit.; p. 14. 37
SANTOS, Milton. Op. cit.; p. 06.
21
Uma vez que a dimensão temporal exerce importante função na consideração analítica
do espaço, o recorte cronológico da pesquisa foi dado, em grande parte, em função do
espacial. Importante enfatizar que:
A introdução da dimensão temporal no estudo da organização do espaço
envolve considerações numa escala muito ampla, isto é, a escala mundial. O
comportamento dos subespaços do mundo subdesenvolvido está geralmente
determinado pelas necessidades das nações que estão no centro do sistema
mundial38
.
Destarte definimos como marco da pesquisa o ano de 1870, com o objetivo de
contextualizar a produção cafeeira da década que assistiu no ano de 1877 a elevação de
Cataguases à categoria de município e a chegada da estrada de ferro no mesmo ano. Em
verdade nos interessa menos a mudança institucional que a instauração da ferrovia, uma vez
que, em nosso entendimento, este acontecimento repercutiu em um impacto substancial na
economia local ao viabilizar ali a expansão do principal artigo de exportação nacional da
época, o que provocou transformações significativas no meio ambiente e na organização
socioeconômica do município. Como marco final elegemos o ano de 1930, quando a produção
cafeeira nacional entra em crise, de modo a verificarmos como o município reagiu ao colapso
econômico de seu principal produto e verificar em que estado se encontrava as transformações
sociais e principalmente ambientais nesta data.
A pesquisa empírica foi orientada pelo objetivo geral de investigar o impacto
econômico, social e ecológico gerado em Cataguases pelo cultivo de café e até que ponto a
reprodução extensiva de suas unidades agroexportadoras transformou o meio ambiente local e
quando este começou a dar sinais de esgotamento, constituindo como objetivo específico a
análise do avanço da fronteira do café na Mata mineira, fazendo um estudo comparado entre
as cidades de Juiz de Fora e Cataguases para assim verificar se seus processos de inicio da
produção, apogeu e crise ocorrem ou não em momentos simultâneos.
Para tal tarefa utilizamos como fonte principal os inventários post mortem do Centro
de Documentação Histórica (CDH) localizado em Cataguases. Através dos dados colhidos
investigamos o avanço da produção cafeeira e seu resultado na transformação do meio natural
analisando as condições de produção das unidades agroexportadoras através da classificação
dos diferentes tipos de terras – áreas em mata, em cultura, em pastos, etc. – e de sua evolução
demonstrada pela mudança do tamanho e de suas proporções ao longo do período da pesquisa
38
SANTOS, Milton. Op. cit.; p. 22.
22
de modo a analisar a dinâmica histórica concreta que produziu a devastação das áreas em
mata na localidade. Apesar de adotarmos fontes de uma única natureza, acreditamos que o
trabalho não foi comprometido, já que entendemos que eles atendem aos requisitos
necessários à pesquisa serial, sendo eles:
(...) validade ou segurança, isto é, absoluta confiança quanto a tratar-se de
um documento que realmente registre o que se pretende medir; continuidade
e abundância, pois são necessárias séries longas e continuas para autorizar
conclusões verdadeiras; homogeneidade, pois a fonte deve ser da mesma
natureza, sempre que possível, para todo o período em estudo39
.
Devido ao volume documental e o tempo disponível para a realização da pesquisa
fomos forçados a analisar apenas uma parte do universo de inventários. Em razão disso
optamos por utilizar o método de amostragem examinando de modo intercalado os inventários
disponíveis que foram abertos em seis anos a cada década, totalizando 348 inventários
analisados num universo de pouco mais de 900. Alguns contratempos também merecem ser
mencionados uma vez que interferiram no método de amostragem utilizado na pesquisa:
muitos documentos encontravam-se em um estado de deterioração que inviabilizava sua
análise e alguns outros – que constavam na ferramenta de busca que guiou a pesquisa – não
constavam nas caixas, desse modo o método de amostragem teve que sofrer sucessivos ajustes
de modo a se adaptar a tais imprevistos, o que de forma alguma comprometeu a validade dos
dados colhidos na pesquisa, uma vez que a amostragem possui um método de coleta arbitrário
e a solução que demos aos documentos que apresentaram problemas foi o de aumentar a
quantidade de documentos analisados nos mesmos marcos da pesquisa que propomos a
princípio. Também vale menção a reforma feita no prédio que abrigava o arquivo, o que
impediu por alguns meses meu acesso à documentação, tornando ainda menor o já curto
tempo disponível para a realização desta pesquisa, que teve que ser concluída nos galpões da
empresa responsável por transportar e armazenar o arquivo, o que por sua vez trouxe ainda
um outro problema relativo a desorganização da documentação com a qual fui obrigado a
lidar.
Por fim dividimos o recorte temporal da pesquisa em três diferentes períodos de modo
a examinarmos a evolução dos dados referentes às transformações na estrutura agrária e à
evolução na composição dos cafezais e das terras no interior das unidades produtivas e das
benfeitorias – que compõe as infraestruturas do ecossistema cultural das fazendas –. O
39
CARDOSO, Ciro Flamarion; BRIGNOLI, Héctor Pérez. Op. cit.; p. 281.
23
primeiro período é composto por 122 inventários, sendo 81 de cafeicultores, e vai de 1870 a
1888 e pelo que verificamos constitui a fase de montagem da cafeicultura em Cataguases e se
encerra no ano em que foi abolido o trabalho escravo no país. O Segundo, com 135
inventários, sendo 95 de cafeicultores, começa em 1890 – em função de termos ignorado o
ano de 1889 na amostragem – e vai até 1905, compondo o período intermediário e que de
acordo com os dados coletados configurou-se como o auge da expansão da produção de café
na localidade apesar das duas crises dos preços que afetou o mercado de café no período. O
último período compreende o tempo que vai de 1906 a 1930, abriga 91 inventários, sendo 46
de cafeicultores e representa a fase de declínio nacional da cafeicultura desde sua última
recuperação a partir do Convênio de Taubaté até o colapso em 1930. Porém, mais do que os
marcos políticos e econômicos da história do café, tais períodos foram definidos em função do
exame do movimento engendrado pela cafeicultura em Cataguases e seu impacto sobre a
configuração de seu espaço geográfico, no que pesou que os períodos não devessem destoar
muito entre si em relação ao tamanho de tempo considerado para percebemos com mais
clareza a evolução deste processo.
24
CAPÍTULO 1: ECOLOGIA, CAPITAL E FORMAÇÃO DO MERCADO
MUNDIAL
1.1 A Revolução Agrícola: um marco na história social e natural
A Revolução Neolítica do Velho Mundo modificou substancialmente a relação do
homem com a natureza e fundou as bases da civilização a partir do advento, entre outras
coisas, da metalurgia, da agricultura – invenção esta que ocorreu ao menos oito vezes
independentemente no Velho e no Novo Mundo combinados –, da escrita e da domesticação
de todos os animais de que dispomos atualmente no campo40
. Os aperfeiçoamentos obtidos
em áreas tão diversas tiveram por base uma alteração profunda no metabolismo entre as
sociedades humanas e seu ambiente natural ao submeter ao controle direto e exclusivo de uma
única espécie, o Homo sapiens, uma gama de espécies vegetais e animais que através de sua
domesticação passaram a fornecer couro, fibras, calorias e energia em uma quantidade e
qualidade inéditas41
.
Por ser o homem um animal social, suas relações de trabalho são marcadas tanto pela
cooperação como pela especialização de funções, que não só é possibilitada pela produção de
um excedente, mas também pela ampliação das possibilidades adicionais de geração desse
excedente. Deste modo, quando as sociedades pastoris e agrícolas passaram a produzir sua
própria subsistência, mudanças cada vez mais significativas operaram no ambiente natural
através de um severo impacto ecológico provocado pela seleção artificial, como o surgimento
de novos patógenos, aumento das populações humanas, dos animais domésticos e das pragas,
e no estilo de vida, causadas pelo sedentarismo populações agricultoras, pela ampliação da
divisão social do trabalho, etc.
Outro resultado foi que a pressão que a oferta natural de alimentos exercia sobre as
populações humanas foi drasticamente alterada e com isso a competição pelos recursos
naturais necessários à sobrevivência foi reorganizada, passando tal disputa a ocorrer em uma
arena diferente, já que tais recursos deixaram de ser acessados pela interação imediata do
homem com o ambiente selvagem e passaram a ser mediados pela sociedade relativamente à
sua estrutura de classe, ou seja, a relação das pessoas com os recursos necessários à vida
40
CROSBY, Alfred. Imperialismo ecológico: a expansão biológica da Europa (900-1900). São
Paulo: Companhia de Bolso, 2011; p. 30. 41
Id. Ibid., p. 33.
25
passou a envolver sistemas de poder, propriedade e leis42
. Por conseguinte a desigualdade
social apareceu como uma representação desta expressão material desigual, refletindo dessa
forma uma desigualdade ecológica entre as classes manifestada pelos modos e escalas de
acesso aos recursos naturais43
.
Como cada modo de produção encerra suas leis de população particulares
historicamente definidas, este traço singular da dinâmica populacional humana passou a
representar uma marca característica que a diferiu dos outros animais e plantas e, ainda assim,
somente em relação às espécies que não foram sujeitadas à intervenção humana através das
atividades agrícolas e pastoris44
.
No fim do Pleistoceno, antes mesmo do advento da agricultura ocorrida em princípio
do Holoceno, as densidades populacionais humanas tiveram um ligeiro e gradativo
crescimento em decorrência do aperfeiçoamento das tecnologias de coleta e processamento de
alimentos não cultivados, sobretudo de cereais, cuja oferta se ampliava à medida que a
glaciação da Terra chegava ao fim, o que por sua vez forçou a adoção de formas de obtenção
de suprimentos cada vez mais eficientes para atender as necessidades alimentares de todos45
.
A relação entre o aumento da produção de alimentos e o crescimento populacional
constitui um processo dialético já que a cadeia de efeitos atua em ambas as direções, o que
dificulta estabelecer qual a relação causal original. A produção de alimentos é um processo
auto catalítico, o que significa que ao gerar ofertas cada vez maiores de calorias, possibilita
um incremento populacional até que este venha a atingir um nível de saturação que exija um
novo aumento na oferta de alimentos e assim sucessivamente46
. Em decorrência desse
processo, as primeiras populações agricultoras não se tornaram melhor nutridas que as
populações caçadoras coletoras que elas sucederam devido ao adensamento populacional ter
crescido ligeiramente mais depressa que a disponibilidade de alimentos, pois o novo estilo de
vida sedentário adequado aos cuidados demandados por determinadas lavouras, possibilitou a
42
THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em comum.São Paulo: Companhia das Letras, 2011; p.
223. 43
PÁDUA, José Augusto. Produção, consumo e sustentabilidade: O Brasil e o contexto planetário. In:
Políticas públicas ambientais latino-americanas. Brasília: Flacso – Sede Brasil: Abaré, 2005; p.
173. 44
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política: livro I: o processo de produção do
capital. Op. cit., p. 707. 45
DIAMOND, Jared. Armas, germes e aço: os destinos das sociedades humanas. 16ª ed. Rio de
Janeiro: Record, 2014; p. 110. 46
Id. Ibid., p. 110.
26
abreviação do intervalo entre o nascimento dos filhos, provocando assim um incremento
populacional mais intenso e rápido47
.
A marca característica da vida é a luta de uma imensa variedade de organismos por
uma quantidade infinitesimal de energia, posto que a totalidade da biomassa opera em apenas
10% da energia solar que chega a crosta terrestre e é fixada pela fotossíntese dos organismos
da base da teia alimentar e é gradativamente atenuada a medida que é transferida de um nível
trófico a outro48
. Seja como for, o fato é que a agricultura aumentou drasticamente o
suprimento de comida e a densidade populacional, mas talvez seu efeito mais significativo
tenha sido a conversão de uma considerável porção do ambiente natural em ecossistemas
tremendamente simplificados49
.
Civilização, como a própria vida, diz respeito à forma de captar energia. (...)
As plantas e animais que dominam a Terra hoje canalizam mais da energia
solar através de seus corpos do que seus ancestrais do período Cambriano
(quando, por exemplo, não havia plantas na Terra). Da mesma forma, a
história humana é um conto de descoberta e diversificação progressiva de
fontes de energia para sustentar o estilo de vida humano. Safras
domesticadas captaram mais energia solar para os primeiros agricultores;
animais de tração canalizaram mais energia das plantas para elevar os
padrões de vida humanos (...) 50
.
A maior parte da biomassa – matéria orgânica total de um ecossistema – encontrada
em ambientes selvagens não é digerível pelos seres humanos, porém, ao selecionar e cultivar
as espécies animais e vegetais comestíveis de modo que estas constituíssem 90% e não 0,1%
da biomassa em um hectare51
, a espécie humana obteve um volume de calorias por hectare
imensamente maior que o naturalmente disponível ao custo do retrocesso da biodiversidade
através da conversão de grandes áreas de cobertura vegetal nativa em culturas direta ou
indiretamente próprias ao seu consumo humano.
Animais e plantas foram selecionados no decorrer de várias gerações para se
adaptarem às mais diversas exigências do estilo de vida humano, seja tornando montarias
mais rápidas e resistentes, aumentando as reservas de gordura de gados de corte, optando por
qualidades perceptíveis como tamanho e gosto mais agradável dos espécimes de culturas
agrícolas ou por aspectos intangíveis como mecanismos de dispersão das sementes, inibição
47
DIAMOND, Jared, Op.cit.; p. 110. 48
WILSON, Edward. Diversidade da vida. São Paulo: Companhia das Letras, 2012; p. 49. 49
Id. A conquista social da Terra. Op. cit., p. 26. 50
RIDLEY, Matt. O otimista racional. Rio de Janeiro: Record, 2014; p. 249. 51
DIAMOND, Jared. Op. cit., p. 86.
27
da germinação e biologia reprodutiva dos gêneros cultivados52
. O aspecto que deve ser
considerado com atenção é que o controle sobre a biota na modelação das paisagens tornou o
homem o mais adaptável e, por isso, o mais amplamente distribuído pela biosfera dos grandes
animais terrestres.
Sendo o homem um animal social, obviamente todo o desenvolvimento material e
intelectual humano deve ser entendido no âmbito social, e que sociedade designa um processo
de interação entre um conjunto específico de pessoas e de organismos não humanos que são
fundamentais para a sua organização. Portanto qualquer formação socioeconômica deve ser
pensada também como um regime ecológico, uma vez que tal formação diz respeito a um
modo particular de organizar as relações humanas e de regular a interação entre a sociedade e
o resto da biosfera.
Para considerar dialeticamente a relação homem/natureza, é preciso superar
a dicotomia, incorporando os dois termos num terceiro termo mais vasto, que
os englobe, e que é o meio histórico, ou seja, a História humana entendida
como sendo, ao mesmo tempo, prolongação e ruptura em relação à História
Natural. E para poder realizar esta ampliação de perspectiva, é necessário
interpor entre o grupo humano e a natureza o resultado da relação dialética
mencionada, ou seja, as forças produtivas. (...) Os chamados recursos
naturais, por exemplo, só o são para sociedades que conheçam a sua
utilidade potencial e estejam equipadas para usá-los. Por outro lado,
fenômenos históricos relativamente bem estudados mostram que um meio
ambiente favorável à eclosão de um processo técnico-econômico – a
chamada revolução neolítica por exemplo – podem não sê-lo para o
desenvolvimento, aperfeiçoamento ou ampliação do mesmo processo, que
podem exigir a sua transferência a outro meio ambiente. (...)De uma maneira
geral, a incidência dos fatores naturais sobre o grupo humano é tanto maior
quanto menor seja o nível atingido pelas forças produtivas53
.
O desenvolvimento das forças produtivas tornou o homem capaz de alterar seu
ambiente local ao ponto de poder construir seu próprio habitat, pois a humanidade, graças à
sua envergadura intelectual, desenvolveu a capacidade de se adaptar à natureza, não apenas
biologicamente como os demais seres vivos, mas também tecnicamente através da criação de
um sistema artificial de órgãos que aperfeiçoa continuamente suas forças produtivas,
exprimindo assim a adequação ativa da sociedade às exigências de seu ambiente, atenuando
desta forma as pressões exercidas pela natureza externa sobre sua estrutura física54
. As
inovações das forças produtivas, portanto, é uma representação da evolução da interação
humana com a natureza.
52
DIAMOND, Jared. Op. cit., p.122. 53
CARDOSO, Ciro Flamarion. Op. cit.; p. 18. 54
FOSTER, John Bellamy.Op. cit., p. 279, 280.
28
A humanidade passou a manufaturar seu próprio habitat em níveis cada vez mais
complexos, o que representou uma mudança fundamental também para os demais seres vivos
direta ou indiretamente através da domesticação e da manipulação genética de vegetais e
animais não mais sujeitos ao mecanismo cego da natureza de seleção natural pela
sobrevivência diferencial das espécies mais bem adaptadas ao seu meio ambiente, mas ao
processo consciente de seleção artificial das características mais vantajosas ao homem. A
nova perspectiva de meio ambiente cada vez mais deixava de conceber os habitat como locais
selvagens onde se praticava as atividades de caça e coleta, cedendo espaço ao conceito de que
os elementos constituintes do ambiente natural necessitavam ser transformados e repostos
pelo próprio homem55
.
Seja como for, esse conjunto de mudanças estruturais na forma de vida humana
também gerou resultados indesejados e imprevisíveis. Desde a Revolução Neolítica os
assentamentos humanos, através da agricultura e pecuária, passaram, então, a construir novos
nichos, muitos dos quais ocupados por novos tipos de parasitas internos e externos, pragas e
ervas daninhas que acabaram dando sua contribuição ao processo antrópico de violenta
alteração dos ecossistemas56
. Isto fez também com que o sistema imunológico dos indivíduos
expostos a estes novos ambientes sofressem um processo de obsolescência irreversível,
forçando assim, através da experiência daqueles que foram bem sucedidos, o ajuste aos
recém-formados habitat humanos, que, por meio da subsequente transmissão hereditária,
sintonizou o indivíduo inerente dos emergentes conglomerados humanos a um mundo novo e
em incessante expansão57
. De qualquer forma pode-se dizer que:
Há uns três mil anos, ou um milênio a mais ou a menos, o ser humano da
civilização do Velho Mundo, já tinha aparecido na Terra. Sabia como
produzir excedentes de alimento e fibras; como domar e explorar diversas
espécies de animais; como usar a roda para fiar, como fazer uma jarra ou
transportar pesos incômodos; suas plantações eram atacadas pelos cardos e
seus paióis pelos roedores; tinha um estoque impressionante de adaptações
genéticas e adquiridas a doenças outrora endêmicas nas civilizações do
Velho Mundo e um sistema imunológico de tal experiência e sofisticação
que fazia dele o molde para todos os seres humanos tentados ou obrigados a
seguir o caminho que ele abrira, pioneiramente, cerca de oito ou dez mil
anos antes58
.
55
WILSON, Edward. A conquista social da Terra. Op. cit., p. 119. 56
CROSBY, Alfred. Op. cit., p. 42. 57
Id. Ibid., p. 44. 58
CROSBY, Alfred. Op. cit., p. 47.
29
Todavia, apesar da agricultura e da pecuária terem surgido de forma independente na
África, nas Américas e na Eurásia, foi neste último que a Revolução Neolítica obteve maior
êxito no que se refere às inovações técnicas e ao desenvolvimento material. De acordo com
Diamond59
isso se deu devido à combinação de uma série de condições biogeográficas como
o vasto tamanho do continente eurasiano; sua maior extensão ser no eixo leste-oeste, o que
implica na localização de uma ampla porção do continente na mesma faixa climática, a Zona
Temperada do Norte; e a riqueza exuberante de sua fauna e flora que resultaram em um
legado maior de espécies vegetais e animais adequados à domesticação. Estas características
específicas do continente eurasiano somadas resultaram na disseminação consideravelmente
rápida das culturas agrícolas e de animais de fazenda por uma ampla área, fomentando assim
uma troca cultural muito mais intensa60
.
As características ambientais interferiram na trajetória das sociedades humanas em
cada espaço geográfico e mesmo entre aquelas que desenvolveram economias agrícolas e
pastoris, as condições geofísicas de cada local e a distribuição irregular de espécies selvagens
disponíveis para domesticação acabaram conduzindo-as por rumos muito diversos, o que fez
com que os eurasianos acabassem com os patógenos, o aço e as armas responsáveis por
subjugar outros povos do planeta61
. Isso ocorreu em grande parte porque a acumulação de
excedentes proveniente da produção de alimentos possibilitava a formação de grandes
populações, o que se traduzia em uma maior quantidade de trabalhadores especialistas, o que
representava diferentes vantagens, inclusive militar62
.
O conhecimento e o domínio sobre as culturas agrícolas e de animais de fazenda e a
tecnologia para obter e armazenar excedentes alimentares estabeleceram assim a base da
expansão dos primeiros Estados, com sociedades politicamente centralizadas, socialmente
estratificadas e economicamente complexas63
.
Em suma, em um breve momento na história da Terra os padrões de vegetação
começaram a se alterar com uma velocidade consideravelmente maior que antes, sinalizando
desta forma o início da agricultura. Destarte a humanidade tornou-se um agente chave na
transformação da natureza, assumindo o protagonismo no processo de transformação
ecológica no curso recente da história natural.
59
DIAMOND, Jared. Op. cit. 60
Id. Ibid. 61
Id. Ibid., p. 161. 62
DIAMOND, Jared. Op. cit., p. 406. 63
WILSON, Edward. A conquista social da Terra. Op. cit., p. 134.
30
As transformações significativas perpetradas pela Revolução Neolítica foram
drasticamente aprofundadas pela Revolução Industrial, uma vez que as mudanças ecológicas
passaram a ocorrer mais rapidamente conforme a população explodia nos grandes centros
urbanos. A divisão social do trabalho que já havia sido bastante modificada pela Revolução
Agrícola – a partir de então não mais limitada basicamente a fatores biológicos como sexo e
faixa etária – foi drasticamente aprofundada pelo capitalismo que separou:
(...) pouco a pouco o homem de um conjunto de circunstâncias consideradas
como naturais: a integração em grupos mais amplos – família, tribo,
comunidade – e a união às condições mediantes as quais atuava sobre a
natureza – objetos e instrumentos de produção –. Portanto, somente sob o
capitalismo completa-se o processo histórico – iniciado segundo Marx com a
aparição do pastoreio associado à agricultura esporádica, enquanto os povos
exclusivamente caçadores ficariam fora do referido “processo de
desenvolvimento” que promove a mencionada separação e,
consequentemente, o advento do homem como individuo. Marx afirma que o
surgimento do novo estado de coisas, preparado desde o século XV,
amadureceu a partir do século XVIII64
.
1.2 O papel do capital na transformação do homem e da natureza em mercadoria
Em todas as formações socioeconômicas que precederam o capitalismo, o sistema
econômico encontrava-se submetido às relações sociais. A propensão à troca, permuta e
barganha, motivada pelo ganho individual e o lucro, ainda não desempenhava a função central
que viria a ter na economia capitalista, pois o mercado em tais sociedades era tão somente
uma instituição marginal65
. Outras motivações, que não o flagelo da fome e a obsessão pelo
lucro, desempenhavam o papel de organizar a vida produtiva, como: a religião e a magia, o
costume e a tradição, a lei, o dever público, a hierarquia e o status, ou seja, a economia
encontrava-se ajustada às estruturas sociais, estando a satisfação dos interesses individuais na
posse de bens materiais em segundo plano em relação à proteção do patrimônio social66
.
O cumprimento das regras de comportamento, estabelecidas por sociedades tão
distintas quanto as comunidades de caçadores coletores e as sociedades despóticas,
asseguravam o funcionamento de seus sistemas econômicos através de configurações sociais
64
CARDOSO, Ciro Flamarion; BRIGNOLI, Héctor Pérez. Op. cit. 65
POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. 2ª ed. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2012; p. 45. 66
POLANYI, Karl. A subsistência do homem e ensaios correlatos. Rio de Janeiro: Contraponto,
2012; p. 216, 217.
31
fundamentadas em padrões dominantes de reciprocidade – baseada na simetria das interações
sociais –, de redistribuição – orientada por um sistema de centralidade política – ou de
domesticidade – organizada por um arranjo econômico autárquico – nos quais a motivação do
lucro não era relevante67
.
Contudo, a ordem burguesa que se consolidou através do progresso material subverteu
as concepções tradicionais ao eleger a esfera produtiva como o lugar privilegiado do novo
arranjo social, forjando assim uma nova concepção do indivíduo, que o ligava
prioritariamente ao âmbito econômico. A partir de então os vínculos sociais passaram a ser
idealizados não mais como fruto do pacto social tradicional, mas como o produto de um
equilíbrio não intencional de diferentes interesses individuais68
.
A sociedade que então se estabeleceu promoveu uma transformação substancial da
natureza e do homem ao mercantilizá-los, provocando com isso uma ameaça ao equilíbrio
metabólico entre o homem e seu habitat e uma desarticulação nas interações humanas ao
romper suas antigas redes de segurança. A subordinação da produção ao capital e o
aparecimento dessa nova relação entre capitalista e produtor emergiram em uma sociedade
agrícola na medida em que o crescimento do mercado, sobretudo a partir do século XVI,
exerceu uma influência desagregadora sobre a estrutura do feudalismo69
que com sua
dissolução liberou os elementos necessários à estruturação econômica da sociedade capitalista
que emergiu sobre os escombros da sociedade feudal70
.
A Idade Média havia legado duas formas distintas de capitais, o capital usurário e o
capital comercial, – já existentes em formações econômicas ainda mais antigas que o
feudalismo – que amadureceram posteriormente nas mais diversas formações
socioeconômicas e que já funcionavam como capital em geral antes mesmo da eclosão do
modo de produção capitalista71
. Entretanto, o capital produtivo, que opera enquanto fator de
produção, haveria de aguardar a ascensão do capitalismo para ser colocado em movimento,
posto que até então os meios de produção, ainda dispersos e não coordenados por este tipo de
capital, serviam aos próprios produtores como meios de ocupação e assim não se valorizavam
mediante a incorporação de trabalho alienado não pago, sendo tais meios de produção
empregados, tão somente, para a criação de produtos a serem consumidos pelos próprios
67
POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. Op. cit., p. 57. 68
SPURK, Jan. A noção de trabalho em Marx. In: MERCURE, Daniel; SPURK, Jan (org.). O
trabalho na história do pensamento ocidental. Petrópolis: Editora Vozes, 2005; p. 116. 69
DOBB, Maurice. A evolução do capitalismo. 6ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1977; p. 180. 70
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política: livro I: o processo de produção do
capital. Op. cit., p. 786. 71
Id. Ibid., p. 820.
32
trabalhadores e não de produtos submetidos ao seu valor de troca a serem negociados no
mercado72
.
As crises econômicas que afligiam qualquer sociedade até o século XVIII
encontravam-se ainda fundamentalmente submetidas às oscilações das colheitas e das
estações de um mundo que até esse tempo era essencialmente agrícola. Contudo, o ciclo do
comércio gradativamente passou a controlar o ritmo e o modo de operação da economia
capitalista então emergente que trazia em seu bojo um padrão próprio de flutuações
econômicas, cada vez menos atreladas ao mundo natural e mais ao mundo dos negócios à
medida que a motivação da atividade produtiva passava da subsistência para as oportunidades
de ganho pessoal73
.
O recrudescimento do comércio mediterrâneo foi um fator que cumpriu importante
função no comércio transcontinental e na vida urbana. Isso porque as cidades, durante a Baixa
Idade Média, passaram a absorver os migrantes – que buscavam refúgio à pressão da
exploração feudal e ao declínio da agricultura – e a se caracterizar como órgãos corporativos
detentores de certa independência econômica e política em diversos graus74
.
Embora as coletividades urbanas se configurassem como centros independentes de
comércio e transações contratuais, que de certa maneira catalisaram o colapso da ordem
feudal, o estágio inicial de sua existência não deve ser encarado como um dissolvente do
feudalismo, nem como espaço do capitalismo75
. Isso porque enquanto vigorou o sistema
mercantil, os mercados não subordinaram a sociedade humana à sua dinâmica, pois ainda
esbarravam em diversos regulamentos que visavam dar proteção às atividades produtivas e
comerciais, o que se configurava como um empecilho ao mecanismo de autorregulação do
mercado76
. Apesar da forte pressão pela criação de mercados, tanto o trabalho quanto a terra
ainda não haviam sido transformados em objeto de comércio, constituindo parte da estrutura
orgânica da sociedade, estando os mercados nessa época restritos às mercadorias no sentido
estrito do termo77
.
Por certo a constituição corporativa das cidades e a vigência do regime feudal
impediram o capital monetário, constituído pela usura e pelo comércio, de se realizar como
capital produtivo nas atividades industriais ao menos até estas barreiras serem postas abaixo
72
MARX, Karl. Ibid O capital: crítica da economia política: livro I: o processo de produção do capital.
Op. cit.; p. 775. 73
HOBSBAWM, Eric. A era do capital. 15ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2009; p. 61. 74
DOBB, Maurice.Op. cit., p. 94. 75
Id. Ibid., p. 95. 76
POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. Op. cit., p. 75. 77
Id. A subsistência do homem e ensaios correlatos. Op. cit., p. 212.
33
pela dissolução das comitivas feudais e pela expropriação da população rural78
. Todavia,
ainda que setores do comércio e das finanças do Antigo Regime, por vezes, dificultassem e
mesmo atrasassem o desenvolvimento pleno do capitalismo enquanto modo de produção
dominante, o conjunto do movimento de expansão do comércio e dos mercados e a empresa
colonial, que marcaram os Tempos Modernos como a principal preocupação dos governos,
concedeu uma contribuição substancial à sua instauração, pois o elemento comercial nutrido
neste meio foi o responsável por gerar o capital mercantil vital para o surgimento do
capitalismo79
.
Quando a nova manufatura se instalou nos portos marítimos exportadores ou em
pontos do campo não sujeitos ao controle do velho regime urbano e de sua constituição
corporativa, o capital mercantil, que em sua fase inicial possuía uma relação estritamente
externa quanto ao modo de produção, posteriormente começou a se engajar na dinâmica
interna do modo de produção a fim controlá-lo com maior eficiência, para desta forma, obter
lucros maiores, que convertidos em capital, passaram a ampliar suas próprias reservas por
meio da produção de mais-valor80
. Entretanto é imprescindível considerar que no processo de
formação capitalista:
A acumulação do capital pressupõe o mais-valor, o mais-valor, a produção
capitalista, e esta, por sua vez, a existência de massas relativamente grandes
de capital e de força de trabalho nas mãos de produtores de mercadorias.
Todo esse movimento parece, portanto, girar num círculo vicioso, do qual só
podemos escapar supondo uma acumulação primitiva, uma acumulação que
não é resultado do modo de produção capitalista, mas seu ponto de partida81
.
O período que abrange o século XV ao XVIII foi marcado na Europa ocidental pela
progressão do modo de produção capitalista frente ao feudalismo ainda dominante, cuja
estrutura se desagregava à medida que os mercados se expandiam e preparavam o caminho
para o crescimento das forças que iriam suplantá-lo. O papel do aumento da circulação de
mercadorias foi de suma importância na dissolução dos modos de produção pré-capitalistas no
sentido da formação de um mercado mundial e da constituição de uma acumulação primitiva
78
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política: livro I: o processo de produção do
capital. Op. cit., p. 820, 821. 79
POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. Op. cit., p. 58. 80
DOBB, Maurice. Op. cit., p. 156. 81
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política: livro I: o processo de produção do
capital. Op. cit., p. 785.
34
que estabeleceu o fundamento histórico da produção especificamente capitalista que veio a se
consolidar como o modo de produção dominante a nível mundial82
.
A descoberta das terras auríferas e argentíferas na América deu a largada para a
disputa entre os países que buscavam se firmar como potências econômicas numa corrida que
deixou um rastro de extermínio e que culminou na conquista e saqueio das Índias Oriental e
Ocidental e na transformação da África numa reserva para a caça comercial de homens e
mulheres83
. Assim as glórias do progresso material da Europa foram realizadas a expensas do
resto do mundo, transformado em palco de uma tragédia que se desenrolou através da
conversão dos recursos naturais e dos nativos em espólio e escravos, prisioneiros de uma
guerra comercial travada entre nações europeias que teve o planeta como campo de batalha e
de pilhagem.
Como no período manufatureiro propriamente dito, a supremacia comercial gerava o
predomínio industrial – ao contrário do período industrial quando se dá o oposto –, o sistema
colonial desempenhou nessa época um papel preponderante, valendo-se amplamente do apoio
e da intervenção do Estado mediante o uso de seu poder e violência concentrada e organizada
para alavancar o processo de transformação do modo de produção feudal em capitalista e
abreviar a transição de um para o outro, fazendo da agência de tais forças políticas uma
potência econômica a serviço da acumulação de capital84
. Assim o sistema mercantil cumpriu
o papel de formação da indústria capitalista através de seu modelo de exploração
regulamentada pelo Estado e de execução por meio do comércio, que gerou a acumulação
prévia de capitais através do processo de concentração e transferência de propriedades85
.
A acumulação primitiva, promotora da polarização do mercado entre capital e trabalho
exerceu a tarefa de engendrar as condições essenciais da produção capitalista ao tornar
atraente o investimento na indústria logo que o referido processo de concentração progredira o
bastante para formar a classe dos despossuídos detentores unicamente de sua capacidade de
trabalho86
, que, com a destruição de sua indústria doméstica rural, formaram o mercado
interno que forneceu a amplitude e a sólida consistência de que o modo de produção
82
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política: livro I: o processo de produção do
capital. Op. cit.; p. 700. 83
Id. Ibid., p. 821. 84
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política: livro I: o processo de produção do
capital. Op. cit., p. 821. 85
DOBB, Maurice. Op. cit., p. 257. 86
Id. Ibid., p. 273.
35
capitalista necessitava para seu pleno despertar87
. Tão logo este sistema foi colocado em
funcionamento, ele não apenas sustentou, mas reproduziu em escala ampliada essa
transformação dos meios sociais de subsistência e de produção em capital e dos produtores
diretos em trabalhadores assalariados88
.
Os incentivos ao investimento massivo na indústria, por ser uma operação dispendiosa
e arriscada, só surgiram a partir do momento em que o mercado se estabeleceu e tornou-se
possível obter matéria prima e trabalho de maneira regular para empreender a tarefa de
combinar esses dois elementos em um produto que seria comercializado, sem que isso
importasse em prejuízo, já que a nova escala de produção industrial exigia que a saída de
mercadorias fosse razoavelmente garantida89
. Em suma, para que o sistema capitalista se
consolidasse foi necessário atingir certo nível de segurança, tanto para aquele que empatava
seu capital quanto para a sociedade como um todo que, a partir de então, passaria a depender
da reprodução contínua dessa economia para obter a renda que satisfaria suas demandas
biológicas e sociais. Por conseguinte, o processo de imposição do sistema de mercado foi
acompanhado de uma subversão inédita na História ao compor uma nova configuração da
sociedade que a atrelava ao sistema econômico enquanto mero acessório deste90
. Destarte:
Esse resultado se torna inevitável assim que o próprio trabalhador vende
livremente a força de trabalho como mercadoria. Mas é também somente a
partir de então que a produção de mercadorias se generaliza, tornando-se a
forma típica da produção; somente a partir de então cada produto passa a ser
produzido, desde o inicio, para a venda, e toda a riqueza produzida percorre
os canais de circulação. É apenas quando o trabalho assalariado constitui sua
base que a produção de mercadorias se impõe a toda a sociedade91
.
A atividade produtiva conforma-se enquanto uma transposição da força de trabalho
para o trabalho, processo este redutível às propriedades naturais, ou seja, a atividade produtiva
nada mais é que o material da natureza transformado num organismo humano que despende
energia em determinada tarefa92
. Assim, nos casos em que imperava uma exploração abusiva
do trabalhador, seu consumo individual era convertido unicamente em consumo produtivo,
dessa forma reduzido a um mero momento do processo de reprodução do capital, no qual o
87
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política: livro I: o processo de produção do
capital. Op. cit., p. 818. 88
Id. Ibid., p. 786. 89
POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. Op. cit., p. 43. 90
Id. Ibid., p. 43, 44. 91
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política: livro I: o processo de produção do
capital. Op. cit., p. 662. 92
POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. Op. cit., p. 234.
36
trabalhador se abastece de meios de subsistência para reproduzir sua força de trabalho, do
mesmo modo como o combustível abastece a máquina. Contudo, em qualquer forma de
exploração, uma parte do capital alienado em troca de força de trabalho sempre atua através
do consumo na reconversão da força de trabalho a ser explorada pelo capital93
.
Assim a sociedade capitalista, alienada pela instituição da propriedade privada e pela
acumulação de riqueza como a força motriz da indústria que orienta o sistema sócio-
econômico e arruína a sociedade, é em sua essência a expressão mais drástica da ruptura entre
o homem e a sociedade e entre o homem e a natureza. A instauração da divisão de classes já
tinha feito com que a sociedade passasse a mediar a relação do homem com a natureza, mas a
partir do advento do capitalismo, o mercado passou a mediar as relações sociais e disso se
seguiu que a nova condição de trabalho impingida ao trabalhador alienou-o não só do
processo e do seu objeto de trabalho, mas também da relação que ele estabelece entre si e os
outros homens94
. Isso apareceu como nada mais que a expressão da redução do trabalho ao
status de mercadoria, que se deu no bojo da transformação da relação do homem com a terra.
Através dessas mudanças, o trabalho adquiriu novo significado ao ser dotado de uma
substância homogênea, o que o possibilitou de ser quantificado e negociado em trocas
equivalentes. Como em uma economia de mercado a produção deve ser orientada para a
criação de valor, isto implica que os produtos do trabalho possam ser trocados, pois toda
mercadoria necessariamente possui um valor abstrato que a torna compatível com os
diferentes produtos95
. Destarte a homogeneização do trabalho trazia em sua essência essa
nova perspectiva do tempo, agora tomado como matéria prima e constituinte último do
trabalho e disso adveio importantes consequências que se constituíram como elementos
fundamentais da cultura que era forjada pela nova ordem burguesa.
Esse tempo mecânico pode ser considerado um dos símbolos mais marcantes
da distância cada vez maior entre o homem e a natureza. Neste sentido, a
sociedade passa a lidar com o tempo da mesma forma como lida com o
dinheiro, atribuindo a ele qualidades objetivas e impessoais, como por
exemplo, a escassez. Como consequência, o tempo pode ser utilizado, pode
ser gasto ou rentabilizado. A equação tempo é igual a dinheiro é o símbolo
mais forte do tempo totalmente transformado em mercadoria, reduzido a
uma coisa e totalmente racionalizado96
.
93
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política: livro I: o processo de produção do
capital. Op. cit., p. 646, 647. 94
POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. Op. cit., p. 107, 108. 95
SPURK, Jan. Op. cit., p. 197. 96
CARDOSO, Ana Claudia Moreira. Tempos de trabalho, tempos de não trabalho: disputas em
torno da jornada de trabalho. São Paulo: Annablume, 2009; p. 36,37.
37
Anteriormente, quando as perspectivas de tempo eram comumente associadas aos
processos familiares no ciclo de trabalho e nas tarefas domésticas, não havia uma separação
demarcada entre relações sociais, e o próprio tempo de trabalho se ajustava de acordo com as
exigências de cada tarefa97
. A fragilidade congênita dos seres humanos submetia-os às forças
da natureza e ao ditame dos seus ciclos e ritmos que governavam suas vidas, mas quando a
humanidade se tornou ela mesma uma força da natureza dotada de uma potência
transformadora geológica, sua existência tornou-se alienada da natureza e o tempo de trabalho
desde então passou a ser condicionado menos pelo calendário que pelo relógio98
.
A economia industrial, que requeria maior sincronização do trabalho, foi a responsável
por esta nova forma de medição do tempo como meio de exploração da mão de obra99
.
Destarte uma crescente parte da humanidade passou a coordenar suas atividades com a
passagem de um tempo abstrato, concebido como referência pontual para o ajuste preciso dos
processos produtivos, o que se caracterizou enquanto um componente crucial na engrenagem
que impulsionava o avanço do capitalismo100
.
Portanto é bastante compreensível o fato de que em muitas cidades da Europa o café
veio a substituir o consumo de ale no desjejum dos operários, fazendo de seu uso intensivo
um hábito indissociável do cotidiano das sociedades urbanas, marcando indelevelmente a
dieta dos trabalhadores onde quer que se impôs a disciplina do novo ritmo da vida industrial
regulada pelo relógio101
. Isso porque a cafeína é um poderoso estimulante do sistema nervoso
central, cujo efeito sobre a fisiologia humana mais perceptível, a saber, o de manter a pessoa
desperta, se deve ao bloqueio no cérebro e em outras partes do corpo do efeito da adenosina –
molécula neuromoduladora que diminui a taxa de descargas nervosas espontâneas e, destarte,
torna mais lenta a liberação de outros neurotransmissores, o que induz ao sono102
.
Por certo a ascensão do capitalismo representou o triunfo da liberdade contra o poder e
os privilégios feudais e os entraves corporativos ao livre desenvolvimento da produção. Sob a
égide da economia de mercado floresceram liberdades celebradas pelo espírito humano como
a liberdade de consciência, de expressão, de reunião, de associação e de escolher o próprio
97
THOMPSOM, Edward Palmer. Op. cit., p. 271, 272. 98
BRAUDEL, Fernand. Op. cit., p. 37. 99
THOMPSOM, Edward Palmer. Op. cit., p. 289. 100
Id. Ibid., p. 294. 101
FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo (org.). História da alimentação. São Paulo:
Estação Liberdade, 1998. 102
LE COUTEUR, Penny; BURRESON, Jay. Os botões de Napoleão: as 17 moléculas que
mudaram a história. Rio de Janeiro: Zahar, 2006; pp. 238, 239.
38
emprego. Contudo, o capital engendrou também liberdades perniciosas que confrontavam os
antigos valores sociais através da instauração da livre exploração do homem pelo homem, da
liberdade de auferir lucros descomunais e de um tipo de liberdade individualista corruptora
dos laços de comunidade que fomentava, por exemplo, a obtenção de benefícios privados à
custa de calamidades públicas103
.
Portanto, o movimento histórico que surgiu por um lado enquanto a emancipação dos
trabalhadores da servidão e da coação corporativa, por outro, ao sujeitá-los tão somente à
necessidade imediata de prover sua subsistência, converteu-os em vendedores de si mesmo,
privando-os das garantias de proteção de sua existência que eram oferecidas pelas antigas
instituições feudais e corporativas então destruídas104
.
A emancipação do trabalho compulsório que tornou homens e mulheres escravos de
suas necessidades vitais, estabeleceu-se como a marca dessa nova Era que travestia de
civilidade o ato bárbaro de deixar pessoas à míngua, conforme demonstra a opinião de Joseph
Townsend sobre o tema:
A coação legal para trabalhar está acompanhada de muitos transtornos,
violência e gritaria [...], ao mesmo tempo que a fome não só constitui uma
pressão mais pacifica, silenciosa e incessante, como também é o motivo mais
natural para a industria e o trabalho, provocando os esforços mais
intensos105
.
A exploração a que o trabalhador passou a ser submetido era absolutamente legitima,
pois sua relação com o dono dos meios de produção que o empregava era puramente
contratual, uma apropriação consentida das forças produtivas do indivíduo106
. Conforme o
capitalismo se desenvolvia, reduzia à condição proletária massas cada vez maiores, o que
determinou um forte crescimento da oferta de força de trabalho de forma independente da
dinâmica populacional. Ao ser reduzido à condição de mercadoria, o trabalho e
consequentemente o trabalhador que despende sua energia produtiva, foi sujeitado a lei de
oferta e demanda, constituindo eventualmente com isso superpopulações relativas por se
encontrarem à margem da população economicamente ativa.
O crescimento diferencial das classes sociais, que engrossava rapidamente as fileiras
do exército industrial e dos marginalizados e esvaziava o contingente populacional rural,
103
POLANYI, Karl. A subsistência do homem e ensaios correlatos. Op. cit., p. 225. 104
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política: livro I: o processo de produção do
capital. Op. cit., p. 787. 105
Id. Ibid., p. 722. 106
SPURK, Jan. Op. cit., p. 198,199.
39
resultava do processo de acumulação e centralização do capital, pois as relações
socioeconômicas, no que diz respeito ao acesso aos recursos necessários à sobrevivência,
regulavam a dinâmica dos movimentos demográficos. E assim, sob o comando do capital, a
população trabalhadora passou a produzir ela mesma, em volume crescente, os meios que
acabaram por torná-la relativamente supranumerária, o que se conforma como a lei de
população peculiar ao modo de produção capitalista107
.
A utilização da força de trabalho passou a ser comprada e vendida universalmente e o
uso da terra passou a ser negociado, pois a instauração de um mercado regulador das
atividades econômicas implicou na subordinação da substância do homem e da natureza às
suas leis através do controle do nível de salários e aluguéis108
.
A destruição violenta das instituições básicas do indivíduo promovida pelo sistema de
mercado rompeu seu ambiente social e natural e sua profissão e posição na comunidade na
qual estava anteriormente inserida sua existência econômica, pois a mercantilização dos
elementos necessários à vida não só trazia em seu bojo o problema da pauperização das
massas, mas também liquidava com qualquer instituição cultural das comunidades assoladas
pela economia de mercado109
.
O processo capitalista, com sua inovadora e transgressora economia de mercado,
entrava em conflito com a conduta não econômica baseada nos costumes que oferecia
resistência aos novos padrões de consumo, às inovações técnicas e à racionalização do
trabalho que ameaçava desmantelar o estilo de vida costumeiro e tradicional da plebe que
buscava defender suas antigas noções de direito e seu status profissional110
.
A economia capitalista, ao divorciar a produção do consumo e instaurar a remuneração
da força de trabalho, provocou uma rearticulação do trabalhador com os bens necessários a
sua sobrevivência através da imposição do mercado como o elemento fundamental de
mediação entre eles111
. Ao contrário da economia de subsistência e de todas as economias pré-
capitalistas – nas quais o emprego sempre corresponde à oferta total de força de trabalho e o
individuo se engaja na divisão social do trabalho como consequência direta do fato de ser
membro da sociedade112
–, a condição geral que caracterizou a classe operária nascente foi a
107
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política: livro I: o processo de produção do
capital. Op. cit., p. 706. 108
POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. Op. cit., p. 146. 109
Id. Ibid.; p. 79. 110
THOMPSON, Edward Palmer. Op. cit., p. 198. 111
SINGER, Paul. Economia política do trabalho. 2ª ed. São Paulo: Hucitec, 1979; p. 10. 112
Id. Iid., p. 09.
40
instabilidade do trabalho, a ausência de qualificação, as alternâncias de emprego e de não
emprego e os desempregos.
Neste mesmo andamento as normas de mercado sobrepujavam em espaços cada vez
mais diversos as normas sociais que antes comandavam o mundo dos homens. Em certos
modos de produção pré-capitalistas o habitat humano, por vezes, possuía pouca pertinência
econômica, posto que diferentes processos econômicos se entrecruzavam em um mesmo
espaço, enquanto movimentos pertencentes a um mesmo processo eram espacialmente
desvinculados. Porém, sob a égide do capital, as atividades produtivas passaram a ser
organizadas e racionalizadas em função das maiores possibilidades de ganho econômico,
tornando os ambientes identificáveis a sua manifestação econômica113
. Destarte a submissão
da terra a um valor exclusivamente mercantil e a transferência da agricultura para um padrão
comercial foram sucedidas por convulsões sociais provocadas pelo rompimento dos laços
tradicionais entre os homens e a terra114
.
Nas antigas sociedades a propriedade possuía um caráter social, os privilégios
corporativistas resguardavam a propriedade coletiva do ofício, assim como as terras comuns
na economia camponesa era propriedade coletiva, mas a sociedade capitalista, sob o signo da
modernidade, tornava as relações mais impessoais, atomizava a sociedade realocando a
satisfação dos interesses prioritariamente à esfera individual – como há de ser em uma
sociedade de consumo como a que se construía – e assimilava natureza e homem a valores
mercantis115
.
Dessa forma, no sistema capitalista, a dimensão humana foi preterida pela produção
material, que tem na acumulação um fim em si mesmo já que o capital não opera em função
da satisfação das necessidades de consumo da sociedade, sendo a realização de suas
demandas tão somente o meio para a obtenção de seu objetivo final: o lucro. Com isso, ao
alterar as bases de sua produção, seus costumes e corpo político, a sociedade humana sofreu
uma grave ruptura que abalou o mundo moral do qual fizera parte até então116
.
O mecanismo de mercado enquanto governante exclusivo da sociedade humana e de
seu ambiente natural e na transformação de sua substância em mercadorias teve um impacto
severo na coesão social e no espaço natural. Sem a proteção das instituições que interferiam
113
POLANYI, Karl. A subsistência do homem e ensaios correlatos. Op. cit., p. 237. 114
HOBSBAWM, Eric. Op. cit., p. 267. 115
CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis:
Editora Vozes, 1998; p. 394, 395. 116
POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. Op. cit., p. 128.
41
no mecanismo de autorregulação do mercado, os seres humanos pereceriam e seu habitat,
submetido aos interesses do capital, seria aniquilado117
. Destarte:
A presteza da espécie humana em definir suas necessidades e satisfações
materiais de mercado – despejando todos os recursos da Terra no mercado –
pode ameaçar a própria espécie – no Sul como no Norte – com uma
catástrofe ecológica. O responsável por essa catástrofe será o homem
econômico118
.
A partir da consolidação do capitalismo as relações sociais passaram a ser mediadas
pelas relações entre as mercadorias e por isso toda a organização social passou a se manifestar
como o resultado do controle do sistema econômico pelo mercado. A sociedade de mercado
emergiu como o efeito irremediável de um sistema econômico que modelava as relações
humanas, ou seja, para que o mercado funcionasse de acordo com suas próprias leis foi
necessário que a sociedade se submetesse à dinâmica da economia. Portanto a experiência
capitalista manifesta-se como uma prodigiosa aventura sem qualquer precedente na História.
1.3 A ruptura no metabolismo social e a formação do mercado mundial de café
A tendência inata de qualquer espécie é se multiplicar até o limiar do que seu
ecossistema suporta, quando então algum fator ecológico se impõe como uma barreira ao seu
crescimento adicional. Isso não foi diferente para os humanos, apesar de sua capacidade
excepcional de transformar a biologia do planeta. Diversos perigos ameaçaram
permanentemente a espécie estancando seu crescimento demográfico e até mesmo colocando-
a sob risco de extinção, sobretudo no despontar de sua jornada evolutiva. Catástrofes
climáticas, patógenos, crises de fome e os flagelos provocados pelo próprio homem atestam
para esta dura realidade que impeliu o homem rumo ao desenvolvimento cultural em nome de
sua sobrevivência.
As mudanças climáticas e o aumento populacional acima da capacidade sustentada
pela disponibilidade natural de recursos é o que comumente força as inovações que garantem
sua sobrevivência. E assim foi quando a pressão populacional combinada às alterações
climáticas do Pleistoceno, há cerca de sessenta mil anos, agiram como força propulsora da
migração da humanidade paleolítica, da sua origem na África para os outros continentes
117
POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. Op. cit., p. 44. 118
THOMPSON, Edward Palmer. Op. cit., p. 23.
42
habitáveis. Também quando as últimas fronteiras – América e Austrália – foram ocupadas,
fechando o caminho para a possibilidade de alimentar populações excedentes com os recursos
tecnológicos disponíveis do Paleolítico, a pressão demográfica e as condições climáticas mais
favoráveis do Holoceno novamente deram sua contribuição à História através da constituição
das condições cruciais ao advento da agricultura e pecuária como poderosos meios de
ampliação da oferta de calorias119
.
Há dez mil anos a Revolução Neolítica começou a render quantidades muito maiores
de alimentos do que a que era obtida pela atividade de caça e coleta, o que alterou a
configuração demográfica, mas não a natureza humana e assim, inevitavelmente, os recursos
alimentares tornaram-se mais uma vez um fator limitante, pois em cada região as populações
se aproximaram do limite estabelecido pelo suprimento de comida120
.
Isso não foi diferente para a população europeia que, apesar de suas vantagens
geofísicas e da diversidade de sua biota, era bem familiarizada com a fome que por séculos
assolou o continente, ao ponto de se incorporar ao regime biológico da sociedade medieval e
compor a estrutura da vida cotidiana121
. No Período Moderno, a Europa ainda apresentava
características demográficas que evidenciavam a dependência material de sua base agrícola.
Entre 80% e 90% da população vivia no campo – salvo a exceção de cidades comerciais
importantes –, onde o resultado das colheitas constituía um fator de preocupação geral em
decorrência do rendimento agrícola ainda ser baixo e muito desigual de um ano para outro, o
que representava um problema persistente em relação ao equilíbrio a ser obtido entre a
quantidade de pessoas a serem nutridas e a oferta de alimentos122
.
Na época, entre metade e três quartos das calorias diárias necessárias à reprodução do
organismo dos trabalhadores da Europa era fornecida pelo consumo de cereais que –
excetuando-se as regiões situadas sob o círculo polar – constituíam a base essencial da
alimentação, havendo assim uma ampla oferta de carboidratos, enquanto as quantidades de
proteínas e lipídios variavam de acordo com o regime alimentar e as contingências locais123
.
Embora em anos normais a ingestão de calorias se situasse muitas vezes até acima do nível
adequado correspondente ao desgaste de um trabalhador braçal, que despende um esforço
médio de 4.000 calorias, não havia qualquer regularidade no consumo de um ano para outro
119
CROSBY, Alfred. Op. cit., p. 31, 32. 120
WILSON, Edward. A conquista social da Terra. Op. cit., p. 97. 121
BRAUDEL, Fernand. Op. cit., p. 61. 122
MORINEAU, Michel. Crescer sem saber por quê: estruturas de produção, demografia e rações
alimentares. In: FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo (org.). Op. cit., p. 560. 123
Id. Ibid., p. 567.
43
devido às variações das colheitas, fazendo com que nos períodos prolongados de carestia –
todos em fins de séculos: XVI, XVII e XVIII – ocorresse uma queda dessas médias causando
a miséria entre populações mais pobres124
.
Entretanto não se deve duvidar da obstinação e a engenhosidade humana para alcançar
os meios com que viver e dessa forma superar os obstáculos naturais que por ventura possam
estar impedindo sua multiplicação. Ao longo de sua jornada evolutiva a espécie humana
desenvolveu determinados comportamentos guiados por seu extinto de sobrevivência e um
destes conduziu a humanidade no transcorrer de sua História ao imperativo territorial sempre
que a comida tornava-se um recurso escasso125
.
Assim quando a revolução comercial impeliu os europeus à conquista dos mares e de
novas terras através do extermínio e desalojamento de seus habitantes indígenas, estavam a
promover um tipo de imperialismo e ampliação dos mercados que, de certa forma,
correspondia ao ímpeto territorial primitivo que movia seus ancestrais caçadores coletores,
com a diferença mais óbvia de que estes controlavam quantidades de comida e territórios
muito menores. – O que deve ficar muito claro é que não se pretende que os acontecimentos
provocados pela ação humana resultassem unicamente do cumprimento compulsório dos
traços de sua herança genética ou da realização da mera necessidade ou de conjunturas
contingentes, mas também da liberdade humana que se manifesta a partir de circunstâncias
culturais e históricas específicas e do estado em que se encontra o desenvolvimento das forças
produtivas, que emergem com a ação criativa da base material de cada sociedade126
.
A pressão a que eram submetidos os recursos naturais desempenhou, com toda
a certeza, um papel nas outras grandes migrações, inclusive na dos europeus
para o Novo Mundo. (...) É também por causa da particular escassez da baixa
entropia no meio ambiente que, desde o alvorecer da história, o homem tem
procurado continuamente inventar meios suscetíveis de captar melhor a baixa
entropia127
.
A colonização da América consolidou-se como o corolário desta expansão marítima e
comercial dos séculos XV a XVIII. Ainda que os navios escandinavos tivessem alcançando a
América – onde permaneceram pelos mesmos quinhentos anos da atual ocupação europeia –
cerca de meio milênio antes que Pinta, Nina e Santa Maria lá desembarcassem, foi necessário
124
MORINEAU, Michel. Op. cit. FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo (org.). Op. cit.,
p. 575. 125
WILSON, Edward. A conquista social da Terra. Op. cit., p. 98. 126
FOSTER, John Bellamy. Op. cit., p. 85. 127
GEORGESCU-ROGEN, Nicholas. O decrescimento: entropia, ecologia, economia. São Paulo:
Editora Senac, 2012.
44
aguardar o transcorrer de meio milênio até que rotas mais seguras fossem conhecidas, os
ventos fossem decifrados e a promessa de enriquecimento se tornasse uma motivação
promissora para que a empresa colonial se tornasse uma experiência bem sucedida128
. Por
certo se torna inviável construir um império sob circunstâncias tão extenuantes como as que
os vikings se depararam: águas frias com gelos flutuantes, vendavais assustadores, densas
neblinas, embarcações mais frágeis, etc., mas apesar da superação de muitos destes
contratempos pelo avanço das técnicas de navegação e da construção naval, é provável que o
êxito do imperialismo da Europa Moderna tenha como fundamento um componente ecológico
essencial do qual os nórdicos não dispunham. Em verdade:
Os manuais dizem-nos que a Europa renascentista era institucional e
economicamente mais forte que a Europa medieval, e mais capaz de
conquistar e sustentar colônias. É claro também que a tecnologia européia
estava bem mais avançada no século XV que em qualquer época anterior. A
posse de armas de fogo pelos invasores, embora não decisiva nas campanhas
das Canárias, deve ter tido algum significado. Inovações européias do século
XV na construção naval, no aparelhamento dos navios e nas técnicas de
navegação tornaram as viagens no grande mar azul mais seguras, mais
rápidas e, portanto mais atraentes para os marinheiros da Renascença do que
em tempos medievais. A história dos Açores, da Madeira e das Canárias tem
mais que isso a nos dizer. Os europeus que navegaram para essas ilhas
dispunham de vantagens biológicas que os escandinavos não tiveram. As
colônias escandinavas ficam tão longe que o contato com a Europa era tênue
– e a simples chegada de um navio do continente podia desencadear
epidemias mortais129
.
Os europeus, mediados pelo conhecimento previamente adquirido pelos nativos,
redescobriram várias partes do mundo através do conhecimento que obtiveram por si mesmos
das trajetórias dos ventos e das correntes marítimas, que lhe renderam o domínio das rotas e
portos colocados desde então a serviço de seus interesses130
. O imperialismo da Europa
Moderna se assentou também na sólida experiência obtida nos Açores, Madeira e Canárias,
sendo sua principal contribuição a descoberta de que os europeus e suas plantas e animais
domésticos adequavam-se bem aos ambientes onde jamais tinham vivido antes. Os europeus
então, de acordo com esse aprendizado, racionalizaram as paisagens naturais desses três
arquipélagos do Atlântico oriental, conformando-as às necessidades dos navegantes que
margeavam suas praias no curso de seus destinos e que lá se abasteciam com as culturas do
128
CROSBY, Alfred. Op. cit., p. 57. 129
Id. Ibid., p. 112. 130
BRAUDEL, Fernand. Op. cit., p. 50.
45
Velho Mundo, que posteriormente colonizariam também outras ilhas e continentes invadidos
pelos europeus131
.
A vantagem ecológica é por certo uma boa explicação do sucesso europeu em seu
empreendimento colonial, contudo o que pode ser apontado como fator imediato de sua
vantagem em relação ao Crescente Fértil e a China responsável por solapar a liderança de
alguns milhares de anos destas duas regiões no controle de tal biota – tão bem utilizada pelos
europeus ulteriormente em outras partes do mundo – foi o desenvolvimento de uma classe
mercantil e a essência expansionista do capitalismo132
.
O capital conquistava o mundo e expandia o habitat humano nos novos territórios,
aumentando a densidade populacional e subordinando a superfície do planeta às exigências da
sociedade industrial. A primeira etapa deste processo se deu com a comercialização do solo,
seguido por um incremento da produção de alimentos e de matérias-primas orgânicas para
atender a demanda, em escala nacional, de uma reprodução ampliada do capital e pela
posterior extensão deste sistema de produção de excedentes aos territórios coloniais133
.
Destarte foi instituída a divisão internacional do trabalho, que consistia basicamente
no dispêndio de energia humana na extração e produção de energia da natureza para o
abastecimento do capital constante, através de matérias primas, e do capital variável, através
de alimentos, ou seja, o capital em seu movimento expansionista arregimentou áreas cada vez
maiores de reservas minerais e terras agricultáveis nos países marginais para extrair energia e
enviá-la para os centros capitalistas onde ela alimentaria suas máquinas e trabalhadores.
Assim a Revolução Industrial e a simultânea explosão demográfica dispararam o gatilho da
maior transformação da História, que recriou as necessidades humanas e solapou a autoridade
das expectativas amparadas nos costumes134
.
A evolução milenar do meio técnico conduziu a um processo cuja primeira
extremidade era representada pela confusão geográfica entre a produção, a
circulação, a distribuição e o consumo, nas primeiras fases da história
humana. Na outra extremidade, essas quatro instâncias da produção estão
geograficamente dissociadas e aparentemente desarticuladas. (...) A
“abertura” dessas áreas à influência de um comércio externo foi levando a
uma dissociação progressiva, não somente de um ponto de vista geográfico,
mas também econômico-institucional, envolvendo as quatro instâncias
produtivas. Parte do produto local era consumido em terras distantes, assim
como parte do consumo local vinha de outras áreas. Dessa forma, as
131
CROSBY, Alfred. Op. cit., p. 84. 132
DIAMOND, Jared. Op. cit., p. 410. 133
POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. Op. cit., p. 200. 134
THOMPSON, Edward Palmer. Op. cit., p. 23, 24.
46
condições de circulação e distribuição se tornavam cada vez mais
independentes de condições propriamente locais e cada vez mais
dependentes de um nexo que escapava à comunidade135
.
Em fins do século XVIII economias comandadas pelo ciclo do mercado aos poucos
sobrepujavam as economias dominadas pelo antigo ciclo agrário. O mecanismo da economia
capitalista entrelaçava o mundo em seu sistema de produção e circulação e, por conseguinte,
seus efeitos tendiam a ser mais globais, contrapondo-se assim às flutuações econômicas
apoiadas nos azares da colheita cujos efeitos eram mais regionais, já que as intempéries e
epidemias humanas e de animais e plantas não afetavam simultaneamente todas as partes do
mundo, alterando assim a natureza das crises econômicas, não mais de subsistência, mas de
produção136
.
Desde então uma parte crescente da agricultura mundial sujeitou-se à economia
industrial, que multiplicava o mercado interno de produtos agrícolas através do rápido
crescimento das cidades, e o internacional através do progresso tecnológico que possibilitou
que regiões outrora inacessíveis fossem integradas ao mercado mundial. A sujeição das forças
da natureza e humanas à civilização industrial se assentou, desse modo, tanto na alienação do
trabalho quanto da natureza, manifestada na mercantilização dos meios que sustentam à vida,
na separação entre as condições inorgânicas da existência humana e sua existência ativa
concluída com o estabelecimento da divisão entre o capital e o trabalho assalariado e na
divisão entre o campo e a cidade137
.
Esta divisão que colocou a civilização capitalista na dependência das cidades e fez
com que nações agrícolas dependessem das nações industriais foi o elemento fundamental da
divisão social do trabalho e a expressão do aprimoramento das forças produtivas da sociedade
burguesa, manifestada primeiramente por uma separação do trabalho industrial e comercial do
trabalho agrícola que instituiu um conflito de interesses entre o âmbito rural e o urbano. A
produção capitalista congregava um contingente populacional cada vez maior nos grandes
centros, fazendo com que a população urbana viesse a ter uma preponderância crescente em
relação à população rural, sujeitando o país ao governo das cidades.
O entusiasmo pelo comércio livre internacional é, à primeira vista, mais
surpreendente, exceto entre os ingleses, para os quais significou, em
primeiro lugar, que lhes era permitido vender livremente a preço mais baixo
em todos os mercados do mundo e, em seguida, que assim encorajavam os
135
SANTOS, Milton.Op. cit.; p. 43. 136
HOBSBAWM, Eric. Op. cit., p. 114. 137
POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. Op. cit., p. 196.
47
países subdesenvolvidos a vender seus próprios produtos – basicamente
alimentos e matéria prima – barato e em grande quantidade, de forma a
conseguir divisas necessárias para comprar as manufaturas inglesas. Para os
países subdesenvolvidos, que não procuravam competir industrialmente, isto
era evidentemente mais atraente: estavam bastante contentes por ter um
mercado ilimitado para seus produtos nos países industrializados que os
importavam138
.
Em decorrência da separação entre produtor agrícola e consumidor urbano, provocou-
se uma perda líquida dos nutrientes do solo devido ao comércio de longa distância que
perturbou a interação metabólica entre o homem e a terra ao impedir o retorno ao solo dos
seus elementos constituintes139
. Destarte uma falha irreparável foi instaurada na mediação e
controle do processo metabólico entre o homem e a natureza em decorrência da relação de
produção capitalista que promovia a alienação material dos seres humanos das condições
naturais que formam a base da sua existência140
. Sendo o modo de produção a forma de
regulação da interação da sociedade com a natureza, o capitalismo, ao se organizar através de
um mecanismo de mercado autorregulador, compeliu o trabalho e o uso do solo, que não são
nada mais que os próprios seres humanos nos quais consistem as sociedades e o ambiente
natural no qual elas existem, à órbita da oferta e procura, sujeitando-os a um manuseamento
como mercadorias141
.
Por certo o progresso obtido na agricultura capitalista aumentou consideravelmente a
oferta de alimentos e rompeu com a perspectiva das economias pré-capitalistas calcada na
criação de valores de uso e na visão política de escassez e do risco do colapso, então
suplantada por métodos produtivos fundados na criação de valores de troca e em uma
ideologia de crescimento ilimitado142
, que assim se estabeleceu como a ruína dos recursos
naturais e, por conseguinte, das sociedades capitalistas por engendrar um modo de produção
social incompatível com as circunstâncias exigidas pelo ciclo metabólico para a fertilidade
duradoura do solo, perpétua condição imposta pela natureza para a existência humana. Assim
o progresso capitalista se assentou no desenvolvimento de técnicas e processos sociais que
mitigam a um só tempo o solo e o trabalhador, fontes originais de todas as riquezas143
.
O desgaste provocado nas terras agricultáveis através do vínculo estabelecido entre o
cultivo e as flutuações dos preços de mercado engendrou uma contradição entre o homem e a
138
HOBSBAWM, Eric. A era do capital. 15ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2009; p. 73. 139
FOSTER, John Bellamy. Op. cit., p. 216. 140
Id. Ibid., p. 229. 141
POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. Op. cit., p. 75. 142
PÁDUA, José Augusto. Op. cit., p. 174. 143
FOSTER, John Bellamy. Op. cit., p. 220.
48
terra ao subordinar o uso do solo à lógica do mercado na qual a criação de valores de troca
sobrepujava a criação de valores de uso, instaurando uma perturbação na capacidade de se
produzir alimentos e matéria-prima, comprometendo as possibilidades de reprodução da
própria sociedade. Isto ocorria fundamentalmente porque:
A lei do valor do capitalismo não concede valor à natureza. A terra é ativa
como agente de produção na produção de valor de uso, de um produto
material, mas não tem nada a ver com a produção do valor de troca deste
material. O valor de qualquer commodity no capitalismo advém do trabalho.
Essa é uma concepção extremamente estreita, limitada, de riqueza, associada
com as relações capitalistas de commodity e com um sistema construído em
torno do valor de troca144
.
A supressão da produção de valores de uso em nome da produção de valores de troca
também representou uma ameaça à segurança alimentar, pois a perseguição de objetivos
econômicos em comunidades baseadas no intercâmbio de mercadorias se contrapôs às
comunidades precedentes onde o objetivo econômico era a produção de valores de uso para a
reprodução dos indivíduos que compunham sua comunidade em determinadas relações com
ela. Os meios alimentares liberados pelo afluxo da população rural para os centros urbanos
eram convertidos em elemento material do capital variável, indispensável para a mera
reprodução da força de trabalho consumida no processo produtivo, e o mesmo se dava com as
matérias-primas agrícolas locais da indústria, assim convertida em elemento do capital
constante145
.
À medida que as leis e os meios de transporte permitiram a mobilização da produção,
o comércio atenuou as desvantagens da distribuição geográfica dos recursos produtivos,
instaurando um sistema de interdependência planetária146
. Graças a isso a subordinação do
produto da terra conforme as necessidades de uma população urbana em rápida expansão foi
estendida do campo vizinho para as regiões tropicais e subtropicais onde o capital, a partir do
momento em que começou a operar em um mercado mundial, era capaz de obter vantagem
das condições geográficas, geológicas, hidrográficas e ecológicas mais favoráveis a sua
necessidade premente de conseguir os maiores lucros seja onde e como for147
.
Os novos mercados produtores de alimento contribuíram substancialmente para a
transição rural-urbana nos países centrais, pois a ampliação dos estoques de comida
144
FOSTER, John Bellamy. Op. cit.; p. 234. 145
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política: livro I: o processo de produção do
capital. Op. cit., p. 730. 146
POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. Op. cit., p. 202. 147
Id. Ibid., p. 168.
49
proporcionada pelas novas extensões agrícolas que permitiu o abastecimento de cidades
inteiras foi de suma importância para o aprovisionamento dos trabalhadores urbanos,
desembaraçados do cultivo e liberados para se dedicarem a outras atividades148
. Assim a
Europa se industrializou na esteira do mais amplo e intenso processo de exploração
internacional da História, sendo sua transformação econômica e social possibilitada em
grande parte pelas riquezas advindas da colossal exploração humana e ecológica realizada
através dos séculos de dominação149
.
A ruptura na interação metabólica provocada pelo comércio de longa distância de
alimentos e fibras é inerente ao curso natural do desenvolvimento capitalista e o aumento da
demanda configurou-se como o elemento dinâmico do desenvolvimento agrícola150
. A
crescente demanda de alimentos e matéria-prima por parte dos centros urbanos e industriais e
a demanda destes por mão de obra alavancaram o aumento do padrão de consumo de massa.
Assim a economia capitalista global se alicerçou na abertura de novos e amplos mercados e
no crescimento vertiginoso dos antigos151
.
Graças a essa expansão dos mercados, sobretudo a partir do século XVI, os percalços
causados pela oscilação das reservas alimentares não foram suficientes para deter a expansão
demográfica na Europa. Apesar do sensível crescimento demográfico entre os séculos XI e
início do XIV, ter sido duramente interrompido pela Peste Negra, em alguns lugares ele
recomeçou ainda no século XV, em outros no início do século XVI e se estendeu até o fim do
século XIX, apesar da desaceleração sofrida no decorrer do século XVII em vários países152
.
No transcorrer dos Tempos Modernos a população europeia superou os ciclos de fome e
passou de cerca de 90 milhões em meados do século XV para em torno de 190 milhões no fim
do século XVIII, mantendo assim sua proporção de um quinto no conjunto da população
global153
.
Este crescimento demográfico subverteu as estruturas alimentares da Europa através
do espaço aberto, sobretudo, às culturas miraculosas – milho e batata154
–. Destarte a
148
DIAMOND, Jared. Op. cit., p. 87. 149
PÁDUA, José Augusto. Op. cit., p. 176. 150
FOSTER, John Bellamy. Op. cit., p. 220. 151
HOBSBAWM, Eric.Op. cit., p. 269, 270. 152
FLANDRIN, Jean-Louis. Op. cit. In: FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo (org.).
Op. cit., p. 533. 153
MORINEAU, Michel. Crescer sem saber por quê: estruturas de produção, demografia e rações
alimentares. FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo (org.). Op. cit., p. 560. 154
BRAUDEL, Fernand. Op. cit., p. 61.
50
internacionalização do comércio com novas fronteiras agrícolas foi acompanhada por um não
menos importante afluxo do excedente populacional do Velho para o Novo Mundo155
.
A explosão populacional e a escassez de terras cultiváveis na Europa somadas à
utilização de energia a vapor nas viagens oceânicas e terrestre facilitaram as migrações de
longa distância, levando dezenas de milhões de europeus a emigrarem para as terras no
ultramar, ao que se sucedeu consideráveis mudanças no estilo e no padrão de vida156
. Esta
verdadeira revolução demográfica, ocorrida principalmente no século XIX, marcou também o
inicio do maior movimento migratório dos povos na História, seja na forma do êxodo rural
para as cidades ou na da migração entre regiões e entre Estados157
.
O Novo Mundo aliviou a pressão demográfica da Europa graças à oferta elástica de
terras que comportava a expansão das fronteiras agrícolas requisitado pelo crescimento
capitalista, mas ainda assim a população da Europa, que já vinha aumentando, continuou
crescendo. Isso porque movimentos populacionais e industrialização se sustentam
mutuamente, pois o desenvolvimento econômico e tecnológico facilita tais movimentos que
por sua vez proporcionam às indústrias novos mercados e fontes de matérias-primas158
. Dessa
forma a Europa teve a oportunidade única na História de enfrentar os resultados
problemáticos da expropriação e da exclusão social provocadas pelo processo de
industrialização e urbanização capitalistas através de uma emigração vultuosa dos
contingentes da população que se viram desalojadas de suas terras e à margem do sistema
produtivo159
.
As ondas migratórias europeias que cruzaram o oceano rumo ao Novo Mundo, a partir
do século XVIII, beneficiaram-se enormemente das invasões anteriores responsáveis por
implantarem com sucesso a biota alienígena160
. A falha metabólica associada no nível social
com a divisão antagônica entre cidade e campo e também evidente em escala global, que
converteu alguns países em meras áreas de abastecimento das indústrias no centro do
sistema161
, foi amplamente favorecida pelo sucesso da biota portátil nos lugares em que o
ambiente colonial foi europeizado e assim os países submetidos ao colonialismo assistiram
não somente a exploração e expropriação de suas riquezas, mas também a implantação em
155
MORINEAU, Michel. Crescer sem saber por quê: estruturas de produção, demografia e rações
alimentares. FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo (org.). Op. cit., p. 570. 156
CROSBY, Alfred. Op. cit., p. 16. 157
HOBSBAWM, Eric. Op. cit., p. 295, 296. 158
Id. Ibid., p. 296. 159
PÁDUA, José Augusto. Op. cit., p. 176. 160
CROSBY, Alfred. Op. cit., p. 306. 161
FOSTER, John Bellamy. Op. cit., p. 230.
51
suas terras do cultivo dos gêneros agrícolas e a criação dos animais que sempre proveram
alimento, fibras, couro, energia e adubo aos europeus162
.
O maior escopo de espécies domesticadas e a habilidade no manejo dos recursos
naturais desenvolvidos desde a Revolução Neolítica do Velho Mundo e aprimorados ao longo
dos milênios de vantagens dos europeus sobre os ameríndios, somados ao desenvolvimento de
uma classe mercantil e aos feitos das Grandes Navegações foram decisivos para o triunfo dos
invasores europeus nas Américas, que logo estabeleceram uma agricultura e pecuária
extensivas responsáveis por tornar o continente uma das principais regiões produtoras de
carnes e gêneros agrícolas originários da Europa163
.
O crescimento colossal da biomassa humana e o aumento ainda mais espanto de suas
necessidades materiais e energéticas foi acompanhado por uma drástica perda de diversidade
que resultou de uma fenomenal ampliação da biota que servia aos interesses humanos as
custas de uma violenta diminuição do meio ecológico de muitas outras espécies de animais e
plantas164
. Assim o comércio internacional de produtos agrícolas conduziu a implementação
de especializações extremas como a monocultura em regiões agroexportadoras165
.
As Américas exerceram um forte atrativo aos europeus devido ao seu nítido potencial
para produzir os bens para os quais havia demanda na Europa e assim, mesmo as espécies não
originárias da Europa, mas já amplamente consumidas no continente, também foram
implantadas em solo americano, destacando-se a cana-de-açúcar e o café. Destarte dentro de
poucos séculos, grande parte dos produtos agrícolas que não existiam nas Américas antes da
chegada de Colombo, tornaram-se o esteio da economia de muitos países e nesse ínterim os
espaços naturais foram submetidos a uma condição de contínua perturbação e ruptura através
da devastação de florestas, queimadas regulares e terras exauridas166
. Destarte a:
(...) conformação do mercado de commodities no decorrer do século XIX só
foi possível por meio de uma série de transformações ocorridas naquele
período. O processo de internacionalização das economias, do qual esses
produtos colocaram-se na vanguarda, foi acompanhado por mudanças sociais
e institucionais diversas. Inovações técnicas permitiram maior produtividade
e demandaram outros tipos de produtos; movimentos imigratórios
proporcionaram a ocupação de novas áreas de cultivo; ampliação e
melhorias no setor de transportes proporcionaram redução nos custos e
agilidade nas trocas comerciais; políticas econômicas e institucionais
impulsionaram e facilitaram a dinâmica de investimento, crédito e
162
CROSBY, Alfred. Op. cit., p. 17. 163
Id. Ibid., p. 33. 164
WILSON, Edward. Diversidade da vida. Op. cit., p. 389. 165
HOBSBAWM, Eric. Op. cit., p. 268. 166
CROSBY, Alfred. Op. cit., p. 302.
52
comercialização dessas mercadorias. (...) Quer dizer que a inexistência de
guerras prolongadas e/ou devastadoras entre as potências europeias
funcionou como forma de expansão dessas mesmas economias, que se
utilizaram também de outros mecanismos para o desenvolvimento. O
emprego do padrão ouro servira para dar maior unidade às negociações
internacionais e uniformizar o mercado, ao mesmo tempo em que os estados
liberais, fundados sob a ideia do mercado auto-regulável, proporcionaram
maior fluidez e flexibilidade nas transações. Grosso modo, duas instituições
políticas e duas econômicas; ou ainda, duas instituições internacionais, duas
nacionais, proporcionaram o ritmo das transformações ocorridas ao longo do
século167
.
Apesar do café ter sido um dos bens agrícolas mais valiosos nos circuitos mercantis
mundiais desde princípios do século XVII, as potências coloniais da Europa demoraram a
produzi-lo. Todavia no século seguinte, a Arábia, que durante o século XVII deteve a
exclusividade das lavouras de café, perdeu a capacidade de sustentar seu monopólio, pois já
não tinha condições de satisfazer sozinha a crescente procura internacional por café168
. Desde
então, o aumento considerável do consumo de café na Europa promoveu a multiplicação de
suas plantações, a partir do século XVIII, nas diversas colônias europeias, principalmente, nas
holandesas, como Ceilão, Java e Suriname, mas também nas inglesas, como a Jamaica, nas
espanholas, como Cuba, nas francesas, como São Domingos e no Brasil português169
.
Por certo o café é uma das commodities agrícolas internacionalmente mais valiosas da
História e desde o século XVI tem sido um grande bem comercial. Contudo, desde o Período
Colonial, o frio que caracteriza as faixas climáticas das latitudes mais ao norte inviabilizava
seu cultivo, tornando-o deste modo um produto natural da divisão internacional do trabalho.
Assim, a energia do sol abrasador dos trópicos que se convertia em café era transportada aos
países de clima temperado onde finalmente era incorporada ao metabolismo daquela
sociedade espacialmente distante de sua fonte de energia170
.
Assim, por quinhentos anos o café tem sido cultivado em países tropicais pobres para
ser consumido nos países temperados ricos, tendo em vista que mais de 90% da exportação de
café é realizada por aqueles e uma porcentagem similar é importada por estes, conectando
deste modo pessoas de diferentes terras e continentes através da conquista, do comércio, da
167
VITTORETTO, Bruno Novelino. Op. cit.; p. 28. 168
TAUNAY, Affonso. Pequena história do café. Rio de Janeiro: Departamento Nacional do Café,
1945; p. 16. 169
FLANDRIN, Jean-Louis. Os tempos modernos. In: FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI,
Massimo (org.). Op. cit., p. 544. 170
CLARENCE-SMITH. Introduction: Coffee and the global development. In: CLARENCE-SMITH,
WILLIAM; TOPIK, Steven (org.). The Global Coffee Economy in Africa, Asia and America
Latina, 1500-1989. p. 06
53
imigração forçada e livre e da difusão cultural e religiosa que movimentou a intensa economia
cafeeira, que passou de um monopólio árabe para um produto colonial europeu no espaço de
dois séculos, tornando-se mais tarde o sustentáculo de nações latino-americanas171
.
Coffee has been one of the world’s most valuable internationally traded
commodities for several centuries. One of the few commodities that was
already important under Early Modern luxury long-distance trade, it
continues today as a key trade good. But one should not reify the “coffee
Market”. Rather than a continuous, homogeneous institution, the
international market has been marked by radical disjunctures and essential
transformations. Coffee continues to enjoy great international importance
because the nature of its appeal to consumers has shifted to conform to
remarkable changes in the societies of the dominant buyers over the last four
centuries. (…) Over time, coffee consumptions became increasingly
segmented, balancing between a luxury and a necessity172.
1.4 O leite e depois o café: o consumo de café com leite na Europa
A partir do final do século XV, produtos alimentares exóticos de diferentes partes do
mundo passaram a integrar os regimes alimentares da Europa, sobretudo três novas bebidas
trazidas de além-mar, sendo cada uma originária de um continente diferente: o chocolate,
proveniente do México; o chá, da China; e o café etíope, consumido como bebida somente
após sua difusão ao sul da Arábia173
. Juntos, os três produtos abrangiam uma considerável
parte do comércio mundial.
Dos três produtos apenas o chá, na Inglaterra, havia sido introduzido na dieta
camponesa já em princípio do século XVIII174
. Quando os cafés públicos ingleses, que
também vendiam chá, começaram a se disseminar pelo país, não demorou para que o chá
tomasse o lugar do café como preferência nacional, mudança de hábito esta que é atribuída à
pressão das autoridades através da propaganda da Companhia Britânica das Índias Orientais,
que rivalizava com sua congênere holandesa, propagandista do café, passando então a
Inglaterra a produzir em suas colônias e a explorar comercialmente o chá175
.
171
TOPIK, Steven. The integration of the world market. In: CLARENCE-SMITH, WILLIAM;
TOPIK, Steven (org.). Op. cit.; pp. 21; 22 172
Id. Ibid. In: CLARENCE-SMITH, WILLIAM; TOPIK, Steven (org.). Op. cit.; pp. 21; 22 173
FLANDRIN, Jean-Louis. Os tempos modernos. In: FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI,
Massimo (org.). Op. cit., p. 532. 174
Id. A alimentação camponesa na economia de subsistência. In: Flandrin, Jean-Louis; Montanari,
Massimo (org.). Op. cit., p. 607. 175
TAUNAY, Affonso. Op. cit.; p. 18.
54
De todo modo os tempos modernos foram a época em que as três novas bebidas
estimulantes conquistaram um espaço cada vez maior no comércio internacional através dos
séculos, tornando-se assuntos de crônicas e aderindo-se à dieta dos europeus176
, mas ainda
raras e caras nos primórdio de suas respectivas propagações pela Europa, só gradualmente se
tornaram mais baratas e acessíveis aos bolsos das classes populares. Enquanto isso, as
especiarias tiveram sua importância diminuída, em certa medida, tanto na culinária como no
comércio europeu em relação aos tempos medievais, em parte, pelo próprio impulso
comercial que haviam despertado e que resultara através dos empreendimentos marítimos na
exploração dos novos produtos que tomavam seu espaço177
.
Contudo, ao contrário das respectivas regiões de origem onde as novas bebidas
coloniais não eram adoçadas e, portanto, preservavam um gosto amargo, na Europa elas
passaram a ser vulgarmente consumidas com o açúcar cristalizado extraído da cana178
–
Saccharum officinarum –, uma planta originalmente domesticada na Ásia e que se espalhara
por este continente alcançando o Oriente Médio e o norte da África, chegando à Europa no
século XIII com a volta dos primeiros cruzados179
. Já bastante apreciado no continente
europeu desde o século XV – principalmente na região mediterrânea180
–, o consumo anual
per capta estimado de açúcar cresceu ainda mais durante o século XVIII, passando de cerca de
1,8 kg em 1700 para 7,2 kg no fim deste século, transformando o que outrora fora um artigo
de luxo acessível apenas aos ricos em gênero de primeira necessidade, pois ao tornar o chá, o
café e o chocolate palatáveis ao gosto europeu, o açúcar seguira o rastro da disseminação das
três bebidas excitantes obtendo grande sucesso181
.
Na esteira das mudanças de hábitos e da criação de novas necessidades fomentada pela
Revolução Industrial, estes produtos, ao sofrerem um incremento exorbitante em seu
consumo, converteram-se em verdadeiros catalisadores de mudanças sociais, culturais e
ecológicas, afetando irremediavelmente o destino de países e mesmo de continentes inteiros.
A demanda por açúcar, por exemplo, que se tornara a principal mercadoria do comércio
marítimo, desempenhou, desde o século XVII – época em que o Brasil se tronou seu maior
176
FLANDRIN, Jean-Louis. Os tempos modernos. In: FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI,
Massimo (org.). Op. cit., p. 532. 177
Id. A alimentação camponesa na economia de subsistência. In: FLANDRIN, Jean-Louis;
MONTANARI, Massimo (org.). Op. cit., p. 544. 178
DE LEMPS, Alain Huertz. As bebidas coloniais e a rápida expansão do açúcar. In: FLANDRIN,
Jean-Louis; MONTANARI, Massimo (org.). Op. cit., p. 623. 179
LE COUTEUR, Penny; BURRESON, Jay. Op. cit.; p. 54, 55. 180
LAURIOUX, Bruno. Cozinhas medievais (séculos XIV e XV). In: FLANDRIN, Jean-Louis;
MONTANARI, Massimo (org.). Op. cit., p. 455. 181
LE COUTEUR, Penny; BURRESON, Jay. Op. cit., p. 55.
55
produtor mundial –, um papel essencial nas políticas coloniais das grandes potências,
impulsionando o tráfico escravista que transportou milhões de africanos para o Novo Mundo
alterando com isso a composição étnica dos países produtores, que também devastaram uma
considerável parte de sua vegetação nativa para dar lugar à cana, cuja produção baseada nos
incentivos do mercado exauriu o solo de suas regiões de cultivo182
.
O que explica o desejo humano por moléculas de açúcar é a apreciação de alimentos
doces, pois a alta demanda energética do desenvolvido cérebro humano é satisfeita
prioritariamente por moléculas de glicose183
. Esta capacidade de distinguir entre os sabores foi
um importante passo evolutivo que garantiu à espécie o poder de diferenciar entre os
alimentos próprios ao consumo e aqueles que, entre outras coisas, apresentam quantidades
incômodas de ácidos indigestos ou toxinas possivelmente letais. Por sua vez o gosto amargo,
detectável, por exemplo, em algumas plantas, frequentemente indicando a presença de traços
de um composto orgânico conhecido como alcaloide, funciona como um importante sinal para
que tal planta seja evitada, pois os alcaloides são comumente venenosos, muitas vezes mesmo
em quantidades mínimas184
.
Todavia algumas moléculas de alcaloides presentes em determinadas plantas
desempenharam grande papel na História, como é o caso da cafeína, um composto viciador
presente, entre outras plantas, no café. A sensação de prazer despertada pelo aroma e sabor do
café e o efeito provocado pela cafeína fomentaram, após a incursão da rubiácea na Europa,
nada menos que um comércio mundial e a imigração de milhões de escravos e trabalhadores
livres rumo, principalmente, às suas lavouras no Novo Mundo, gerando fortunas e
fortalecendo grupos políticos que sustentaram governos e economias que operavam em nome
do lucro garantido pelo desejo de satisfação proporcionado pela substância química que veio a
se tornar a droga predileta da humanidade185
.
O registro mais antigo de consumo do café sobrevivente é de Rhazes, um médico
árabe do século X, embora certamente o café já fosse conhecido em época bem mais recuada,
como sugere o mito etíope de Kaldi, o pastor de cabras. Reza a lenda que ao mordiscar as
folhas e bagas de uma árvore que Kaldi nunca notara antes, suas cabras ficavam brincalhonas
e começavam a dançar, de pé nas patas traseiras, o que o levou a experimentar ele mesmo
aquelas bagas, cujos efeitos lhe pareceram tão estimulantes quanto às suas cabras. Kaldi
182
DE LEMPS, Alain Huertz. As bebidas coloniais e a rápida expansão do açúcar. In: FLANDRIN,
Jean-Louis; MONTANARI, Massimo (org.). Op. cit., p. 623. 183
LE COUTEUR, Penny; BURRESON, Jay. Op. cit., p. 62. 184
Id. Ibid., p.63. 185
Id. Ibid., p. 246
56
resolvera levar uma amostra para um islamita venerável que condenou seu uso e lançou as
bagas no fogo, o que provocou um aroma delicioso proveniente das chamas. Os grãos
torrados foram então recolhidos dentre as cinzas e usados para fazer a primeira xícara de
café186
.
Embora seja pouco provável que as cabras de Kaldi tenham sido as descobridoras do
café, parece ser fora de dúvida que o cafeeiro seja natural das montanhas da Etiópia, tendo
sido domesticado lá por antigos agricultores, tendo depois se espalhado pelo nordeste da
África e pelo sul da Arábia187
. Os mais velhos relatos de viagem apontam para esta opinião,
tendo sido, portanto, um equívoco do botânico sueco Lineu ter denominado a árvore como
Coffea arabica188
. Mas se o exame das fontes não autoriza a versão de que a origem da planta
seja árabe, ao menos o costume de se consumir café, na forma da bebida negra que hoje
conhecemos, foi seguramente iniciado no do Sul da Península Arábica189
. A princípio o café
era consumido na Etiópia como manteiga sob a forma de pasta, mas mesmo sendo incerta a
data em que os cafeeiros começaram a ser cultivados no Iêmen, admite-se geralmente que o
grão de café passou a ser torrado, moído, posto em água fervente e ingerido como bebida já
no século XV190
.
Ainda que os religiosos sufis tenham conferido um sentido pio à cafeína, na forma de
café, ao adotar a bebida logo da sua criação com o intuito de se manterem despertos durante
as orações noturnas191
, o café enfrentou viva oposição desde os primeiros dias de sua difusão,
que, contudo, não impediu que antes do fim do século XV o café tivesse alcançado os rincões
do mundo islâmico através de peregrinos mulçumanos192
. Todavia proibições expressas da
ingestão de café se estenderam pelo século XVI. Assim foi em Meca, onde em 1511 seus
consumidores foram perseguidos por supostamente contrariarem o Alcorão, mas já em 1526
tornaram-se livres o plantio e o comércio cafeeiro na península arábica, onde tomaram grande
desenvolvimento, propagando-se rapidamente seu uso pelo Oriente Médio, Egito, Síria e
Turquia. Entretanto o consumo de café novamente deparou-se com feroz resistência, como em
1534 e 1539, dando isto lugar a motins e violência contra os tomadores de café em 1542 no
186
LE COUTEUR, Penny; BURRESON, Jay. Op. cit., p. 242, 243. 187
DIAMOND, Jared. Op. cit.; p. 389. 188
TAUNAY, Affonso. Op. cit., p. 15. 189
Id. Ibid., p. 15. 190
DE LEMPS, Alain Huertz. As bebidas coloniais e a rápida expansão do açúcar. In: FLANDRIN,
Jean-Louis; MONTANARI, Massimo (org.). Op. cit., p. 617. 191
DE LEMPS, Alain Huertz. As bebidas coloniais e a rápida expansão do açúcar. In: FLANDRIN,
Jean-Louis; MONTANARI, Massimo (org.). Op. cit., p. 617. 192
LE COUTEUR, Penny; BURRESON, Jay. Op. cit., p. 242, 243.
57
Oriente Médio, onde a bebida havia chegado há pouco, mas na Síria, por sua vez, o café
espalhou-se rápida e triunfalmente de 1530 em diante193
.
Provavelmente as primeiras xícaras de café bebidas na Europa ocidental o foram pelos
venezianos, que conheciam bem a bebida por frequentarem os portos de Alexandria e
Constantinopla, onde se tomava café correntemente194
. O café, introduzido pelos turcos na
Europa em meados do século XVI através de Veneza, se disseminou pelo resto do continente
a partir do século XVII, estando sua difusão ainda estrita às classes privilegiadas195
.
Consta que o primeiro café público italiano foi aberto em 1645 e desde então se
proliferaram largamente pela Península Itálica, porém coube aos holandeses o grande papel na
tarefa de disseminação da bebida pela Europa setentrional e central, já que desde o princípio
do século XVII os navios da Companhia das Índias Orientais realizavam grandes transportes
de café entre os países muçulmanos do Levante. Em 1637 já se bebia bastante café em
Amsterdã, datando seus primeiros cafés públicos, porém, apenas de 1666196
. Da Holanda os
grãos foram exportados para a Alemanha onde foi aberto um café em Regensburg em 1686 e
outro em Hamburgo em 1690197
. Na França passou-se a beber muito café a partir de 1660, na
Inglaterra houve grande propagação dos cafés públicos a partir de 1670, já na Suécia o café
começou a ser ingerido somente depois de 1721, enquanto Viena, para alguns autores, teria
sido a primeira cidade teutônica a conhecer o café, em uma circunstância envolvida com o
cerco de 1683, quando as tropas de Kara Mustafá – líder militar e vizir envolvido nas últimas
tentativas de expansão do Império Otomano na Europa central e oriental – foram desbaratadas
sob os muros da então capital do Santo Império, deixando para trás numerosas sacas de
café198
.
O café esteve envolvido também em outros conflitos e efervescências políticas da
Europa, marcando sua presença como um novo hábito que se consolidava indubitavelmente,
despertando o interesse de um setor do capitalismo por sua produção e provocando um
significativo impacto na vida cultural de muitas cidades onde os cafés públicos tornavam-se
ponto de encontro de intelectuais e membros das classes distintas199
. Os cafés londrinos, por
exemplo, tornaram-se centros de contestação política ao governo de Caros II, onde muito se 193
TAUNAY, Affonso. Op. cit., p. 16. 194
Id. Ibid., p. 17. 195
FLANDRIN, Jean-Louis. A alimentação camponesa na economia de subsistência. In: FLANDRIN,
Jean-Louis; MONTANARI, Massimo (org.). Op. cit., p. 544. 196
TAUNAY, Affonso. Op. cit., p. 17 e 19. 197
DE LEMPS, Alain Huertz. As bebidas coloniais e a rápida expansão do açúcar. In: FLANDRIN,
Jean-Louis; MONTANARI, Massimo (org.). Op. cit., p. 618. 198
TAUNAY, Affonso. Op. cit., p. 17, 18, 19. 199
BRAUDEL, Fernand. Op. cit., p. 231.
58
operou a agitação que pôs fim ao governo dos Stuarts em 1689 e também nos tempos da
Revolução Francesa tiveram importância vários cafés, como de La Régence, Lemblin, de Foy,
etc., assiduamente frequentados por personagens do vulto de Robespierre, Camille Desmoulin
e Napoleão200
.
No século XIX o café, ou, mais propriamente, as transformações sociais e econômicas
provocadas por sua demanda mundial, foram o pano de fundo de agitações políticas e
revoluções violentas, em outros palcos que não a Europa, mas nos países que eram
comandados pelas elites proprietárias dos cafezais que fomentavam o racismo e a
desigualdade social e controlavam a riqueza do Estado e orientavam as políticas
governamentais na busca de maiores lucros201
.
Entretanto o café não esteve envolvido somente em tumultos e convulsões políticas,
ele também exerceu influência nas artes e caiu no gosto de filósofos e cientistas. Na música
erudita, por exemplo, em 1727, Bach aparece como compositor de uma divertida cantata,
encomendada por um comerciante dono de um café em Leipizig, sobre a angústia de um pai
desejoso de curar a filha da paixão pelo café compartilhada por muitas moças da cidade202
,
enquanto o pintor holandês Adriano van Ostade figura como o autor da peça iconográfica
europeia sobre café mais antiga conhecida203
. Já a literatura do café, como era de se imaginar,
foi inaugurada pelos árabes, no século XVI, mas já na centúria seguinte apareceram os
europeus celebradores das virtudes do café, sendo possivelmente o poeta italiano Belighi o
primeiro deles, seguido nos séculos seguintes por grandes nomes literários e filosóficos, como
Voltaire, d’Alembert, Diderot, Rousseau, Benjamin Franklin e Kant204
.
Embora a degustação do café tenha obtido grande sucesso, os efeitos provocados pela
ingestão da cafeína foram intensamente contestados, transformando-o em alvo de acalorados
debates a respeito de sua benemerência e nocividade, o que sujeitou o café a editos e
injunções religiosas também em terras europeias durante o século XVII. Ainda que algumas
objeções fossem um tanto quanto exageradas, como a de que o café causava a esterilidade da
espécie205
, outras tinham lá seus motivos, tendo em vista seus efeitos fisiológicos aparentes,
como o retardo do sono e agitações típicas como aumento do ritmo cardíaco e facilitação da
contração de certos músculos, além dos sintomas de abstinência que podem incluir dores de
200
TAUNAY, Affonso. Op. cit., p. 17, 18 e 20. 201
LE COUTEUR, Penny; BURRESON, Jay. Op. cit., p. 244, 245. 202
DE LEMPS, Alain Huertz. As bebidas coloniais e a rápida expansão do açúcar. In: FLANDRIN,
Jean-Louis; MONTANARI, Massimo (org.). Op. cit., p. 618. 203
TAUNAY, Affonso. Op. cit., p. 19. 34.
Id. Ibid., p. 20. 205
Id. Ibid., p. 18.
59
cabeça, fadiga e sonolência ou até mesmo náusea e vômitos em casos em que a ingestão é
frequente e excessiva. – Isso se deve por a cafeína ser uma toxina, a respeito da qual se estima
que uma concentração de 10g seja letal para um adulto de massa média, apesar de uma xícara
de café variar entre apenas 80mg e 180mg, o que torna a morte por consumo de café muito
pouco provável, mas não tão incomum os quadros de dependência química de cafeína206
.
Todavia a tentação exercida pela bebida excitante acabou por fim sobrepujando a
apreensão das autoridades da Igreja e do governo bem como dos médicos em relação à sua
ação psicoativa. Aos poucos o vício pelo café, vendido nas ruas da Itália, em restaurantes de
Veneza e Viena, em Paris e Amsterdã, na Alemanha e na Escandinávia, substituiu em boa
parte as bebidas alcoólicas, tomando o lugar do vinho, no sul da Europa, e da cerveja, no
norte, tendo assim o mérito de tornar a população da Europa mais sóbria207
.
No decorrer do século XVIII também as classes mais pobres tiveram acesso à bebida
da moda, fazendo do café com leite, mistura que passa por invenção alemã e amplamente
consumida por todo o país208
, um alimento popular adotado posteriormente em diversos
países209
. Em Paris, por exemplo, uma chávena de café com leite passou a ser comumente
consumida pelos pobres como o jantar antes da ceia210
. Em 1782 Le Grand d’Aussy dizia que:
Não existe casa burguesa onde não seja servido café; não existe lojista,
cozinheira, faxineira que, de manhã, não tome um café com leite. Nos
mercados púbicos, em determinadas ruas e passagens da capital, instalaram-
se mulheres que vendem aos transeuntes o que designam por café com leite,
isto é, leite ruim tingido com borra de café211
.
A difusão do consumo do café com leite na dieta das classes populares no fim do
século XVIII é um marco cultural que vem na esteira de uma série de mudanças significativas
nas bases materiais e sociais da civilização. Não é exagero afirmar que a disseminação inicial
tanto do café quanto do leite teve um considerável impacto em suas respectivas épocas ainda
que por razões e formas diferentes. O hábito popular e aparentemente banal de se beber café
com leite, que ganhava cada vez mais adeptos entre as massas de diferentes países na virada
206
LE COUTEUR, Penny; BURRESON, Jay. Op. cit., p. 239, 240. 207
Id. Ibid., p. 243. 208
TAUNAY, Affonso. Op. cit., p. 18. 209
FLANDRIN, Jean-Louis. A alimentação camponesa na economia de subsistência. In: FLANDRIN,
Jean-Louis; MONTANARI, Massimo (org.). Op. cit., p. 544. 210
BRAUDEL, Fernand. Op. cit., p. 231. 211
DE LEMPS, Alain Huertz. As bebidas coloniais e a rápida expansão do açúcar. In: FLANDRIN,
Jean-Louis; MONTANARI, Massimo (org.). Op. cit., p. 618.
60
do século XVIII para o XIX, está em certo aspecto envolvido com importantes mudanças
fisiológicas, ecológicas, culturais e econômicas ocorridas ao longo da história humana.
Para que fosse possível, por exemplo, a um trabalhador urbano do século XIX de uma
cidade industrial da Europa ingerir uma simples xícara de café, foi necessário nada menos que
há algumas centenas de anos a espécie humana se colocasse em movimento – inicialmente
motivada pela expansão comercial que se operava na Europa – e cruzasse os oceanos para
implantar o café nas terras distantes de suas, então, colônias, alterando com isso a biosfera
irremediavelmente ao longo de toda a cadeia deste processo. E se a combinação com leite
fosse do gosto deste trabalhador, faz-se necessário também considerar a ocorrência, há
milhares de anos, da mutação que permitiu a digestão de leite na fase adulta e que resultou
naquilo que os ecólogos denominam como “construção de nicho”, que neste caso possibilitou
a inclusão da domesticação de gado leiteiro como uma nova e importante fonte de alimento
entre as populações humanas que viviam da atividade pastoril, responsáveis por espalhar
culturalmente a mutação mencionada212
.
O leite era um alimento acessível e dieteticamente rico. Quando o café começava a ser
degustado pelas classes populares, o leite já era bastante presente no regime alimentar do
campesinato e consumido em larga escala nas cidades do Ocidente213
. Ainda assim, durante a
Idade Média o leite não era comumente consumido ao natural, sendo a produção de queijo o
modo mais usual de conservá-lo214
. Em diversas sociedades o queijo chegava mesmo a
desempenhar um papel mais significativo na alimentação diária que a carne215
e quase sempre
era feito com leite de cabra ou ovelha – animais explorados principalmente como gado vivo
fornecedores de leite e também lã, no caso do último –. Muitos textos antigos, inclusive,
denominam os camponeses como bebedores de leite, soro de leite ou tabefe – subprodutos da
fabricação do queijo e da manteiga216
–. Deste modo podemos dizer que não há dúvidas
quanto ao papel desempenhado pelo leite e laticínios na dieta camponesa e que sua
importância:
(...) é comprovada por muitos outros textos e todo tipo de quadros, pintados
em diferentes regiões da Europa – os que representam, por exemplo, a
212
WILSON, Edward. A conquista social da Terra. São Paulo: Companhia das Letras, 2013; p. 240. 213
BRAUDEL, Fernand. Op. cit., p. 187. 214
MONTANARI, Massimo. Estruturas de produção e sistemas alimentares. In: FLANDRIN, Jean-
Louis; MONTANARI, Massimo (org.). Op. cit., p. 286. 215
MONTANARI, Massimo. Sistemas alimentares e modelos de civilização. In: FLANDRIN, Jean-
Louis; MONTANARI, Massimo (org.). Op. cit., p. 115. 216
FLANDRIN, Jean-Louis. A alimentação camponesa na economia de subsistência. In: FLANDRIN,
Jean-Louis; MONTANARI, Massimo (org.). Op. cit., p. 606.
61
refeição dos ceifeiros – e, não se poderia reduzi-la a uma reminiscência de
cultura antiga, que associava o homem primitivo à economia pastoril217
.
De fato o consumo de leite remonta às primeiras civilizações e a alterações
substanciais no estilo de vida de comunidades humanas antigas. Épocas de ‘vacas magras’ há
muito anunciam tempos de escassez e fome quando não há disponibilidade farta de leite e
gordura e em diversas culturas o leite era comumente oferecido aos deuses218
e até mesmo
Javé, quando falou a Moisés durante a peregrinação de quarenta anos do povo hebreu pelo
deserto, prometeu “uma terra que mana leite e mel”219
, o que evidencia o papel desempenhado
pelo leite como um alimento básico de várias sociedades. O café, por sua vez, haveria ainda
que aguardar o transcorrer dos séculos antes de adquirir o sentido vital conferido ao leite, cujo
uso ritual há muito fora adotado por diversas culturas.
Pode-se dizer com segurança que tudo isso se deve ao fato de a capacidade de digerir
bem o leite na fase adulta ter representado uma vantagem considerável em um passado em
que as populações viviam às margens da inanição220
. Em todas as gerações humanas
anteriores a produção de lactase – enzima que converte as moléculas complexas de lactose em
monossacarídios digestíveis – cessava automaticamente após o período de amamentação.
Então, entre nove mil e três mil anos o pastoreio foi desenvolvido e deste modo a mutação
que mantinha a produção de lactase na vida adulta – detectada pelos geneticistas no norte da
Europa e na África – se espalhou, permitindo o consumo permanente de leite221
. A utilização
de leite e laticínios mostrou-se de grande valor para a sobrevivência, pois rebanhos leiteiros
estavam à época entre as fontes de alimento mais produtivas, além de ser potencialmente
disponível o ano inteiro.
O desenvolvimento desta tolerância à lactose, que contribuiu significativamente no
despertar de diferentes civilizações, foi o resultado de um processo denominado pelos
biólogos evolucionistas como coevolução gene-cultura222
, isto é, a relação causal bidirecional
entre a evolução dos genes e a evolução da cultura que comandou o encadeamento do
217
FLANDRIN, Jean-Louis. A alimentação camponesa na economia de subsistência. In: FLANDRIN, Jean-
Louis; MONTANARI, Massimo (org.). Op. cit., p. 585. 218
JOANNÈS, Francis. A função social do banquete nas primeiras civilizações. In: FLANDRIN, Jean-
Louis; MONTANARI (org.). Op. cit., p. 64. 219
Êxodo 3: 8. Disponível em: < https://www.bibliaonline.com.br/acf/ex/3>. Acesso em: 28 / 05/
2015. 220
CROSBY, Alfred. Op. cit.; p. 39. 221
WILSON, Edward. A conquista social da Terra. Op. cit., p. 239. 222
Id. Ibid., p. 236.
62
metabolismo das sociedades humanas e de seu espaço natural ao longo do tempo. Deste modo
pode-se dizer que:
Ao longo de milhares de gerações, o surgimento da cultura deve ter sido
profundamente influenciado por eventos simultâneos na evolução genética,
especialmente aqueles ocorridos na anatomia e fisiologia do cérebro.
Inversamente, a evolução genética deve ter sido forçosamente dirigida pelos
tipos de seleção que surgem no seio de uma cultura223
.
223
WILSON, Edward. Diversidade da vida. Op. cit.; p. 438.
63
CAPÍTULO 2 – HÁLITO DE FOGO E DENTES DE FERRO: A FLORESTA
DEVORADA PELAS TÉCNICAS DE QUEIMADA E DERRUBADA
2.1 A reformulação biocultural do Novo Mundo
Em um trabalho que busca elucidar o papel que a ação antrópica desempenhou na
transformação do meio ecológico, atendo-se principalmente ao impacto provocado pela
cafeicultura no bioma Mata Atlântica, é imprescindível que se tome o cuidado de não relegar
à natureza a função de mero palco onde se desenrola a atuação humana na trama histórica,
sendo passivamente transformada ao bel prazer da humanidade que, nesta perspectiva, assume
um protagonismo exagerado que não condiz com as nuanças das delicadas relações da
existência material. Logo faz-se necessário, se não desconstruir, ao menos problematizar a
visão antropocêntrica que coloca o homem como um comandante despótico – ou até
transcendente, no sentido de não ser afetado por tais mudanças por estar “desligado” da
natureza – nas transformações dos espaços naturais que promove, corrigindo esta
interpretação por uma que o insira na lógica dos ciclos geoquímicos da biosfera, nos quais
toma parte ao lado de outros seres vivos, em um processo no qual a natureza transforma a si
mesma. Portanto:
Ao conferirmos à enteléquia não humana da Mata Atlântica o status de pleno
agente histórico – e não de mero palco ou cenário –, o nosso entendimento
acerca da formação socioeconômica e política do Brasil colonial ganha uma
maior profundidade histórica. De certa maneira, retomamos um velho tema
da ciência geográfica: a influência da natureza sobre as sociedades humanas.
Contudo, devemos sublinhar muito fortemente de certa maneira. Não se
trata, absolutamente, de reabilitar as teses do determinismo ambiental do
final do século XIX e começo do XX, mas de acentuar a dialética entre os
agentes culturais humanos e o restante da biosfera – uma determinação
recíproca e historicamente dinâmica. Nós, humanos, somos apenas uma
dentre inúmeras espécies convivendo em imensas e complexas comunidades
bióticas. Isso sem falar nos elementos abióticos que estão em constante
trânsito nessas comunidades224
.
A Mata Atlântica é uma floresta ombrófila única no mundo – abriga cerca de 20
mil espécies de plantas, sendo 8 mil endêmicas deste bioma, e 1,6 milhões de espécies de
animais, a maioria artrópodes – que à época da conquista europeia estendia-se por quase toda
a costa do Brasil, indo de Recife à Florianópolis, cobrindo originalmente cerca de um milhão
224
CABRAL, Diogo de Carvalho.Op. cit.; p. 25.
64
de quilômetros quadrados225
. Supõe-se que em alguns momentos de sua história evolutiva
esteve conectada a Floresta Amazônica, variando sua extensão em conformidade com as
glaciações, o que provocava também profundo impacto em sua fauna e flora, abrindo nichos
que logo eram ocupados por novas espécies. Todavia é importante colocar que a Mata
Atlântica constitui um bioma específico, com seus ecossistemas e história natural próprios,
sendo a floresta “um palimpsesto de formas e relações superpostas, refletindo a experiência
evolutiva em padrões geográficos complexos e intrigantes” 226
.
A complexidade da Mata Atlântica, considerada como um sistema único, foi
imensamente agraciada por um clima favorável que estimulou a novidade e o experimento
evolutivos característicos de seus ecossistemas – estima-se que ela abrigue entre 1 e 8% do
conjunto das espécies do planeta – e ao longo de sua formação e evolução dialética com os
elementos abióticos de seu espaço geofísico, os ecossistemas da floresta tornaram-se também
agentes do clima, interferindo na luminosidade, na umidade, no regime de chuvas e na
temperatura de sua região.
Ainda que a biodiversidade seja de suma importância para o mundo natural, já que o
funcionamento de um ecossistema se dá em razão da diversidade de organismos que o
habitam, a exuberância de um bioma paradoxalmente representa uma maior vulnerabilidade
aos traumas externos que afetam a integridade de seus ecossistemas, pois qualquer
desiquilíbrio em seu fino ajuste provoca uma desordem incomensurável nos múltiplos
arranjos interdependentes de seu sistema complexo. Assim, a destruição de uma floresta
tropical provoca uma catastrófica perda em termos de diversidade e originalidade que é
irreversível na escala temporal humana.
As poucas espécies de fungos de raiz, por exemplo, essenciais na absorção
de nitrogênio por muitas das árvores do dossel, podem ser destruídas em
uma clareira feita pelos homens, impedindo que ocorra a sucessão normal da
floresta. Talvez seja de alguma relevância, no entendimento do curso do
assentamento humano na região da Mata Atlântica, que nem os homens nem
seus animais domesticados evoluíram correlativamente nesse meio, mas a
ele vieram como estrangeiros227
.
Um fato fundamental da ecologia diz que o ingresso de uma nova espécie em um
ecossistema pode transformá-lo tremendamente, podendo alterar sua biota irremediavelmente.
225
WILSON, Edward. Diversidade da vida. Op. cit.; p. 330. 226
DEAN, Warren. A ferro e fogo: a história e a devastação da mata atlântica brasileira. 5ª ed.
São Paulo: Companhia das Letras, 1996; p. 37. 227
DEAN, Warren. Op. cit.; p. 33.
65
Quando os portugueses chegaram à Mata Atlântica há pouco mais de quinhentos anos – dando
início a maior e mais profunda transformação que o bioma presenciaria –, a floresta, já se
apresentava como o resultado de práticas humanas. A América foi o último continente
desbravado pelo Homo sapiens, a fronteira final da espécie jamais atingida por qualquer outra
do gênero Homo. Sua chegada coincidiu com o fim do último período de glaciação, que
testemunhou uma onda de extinção da megafauna americana, mas, apesar das mudanças
climáticas significativas, há boas evidências que apontam para a ocupação humana recente
como a responsável por seu agravamento e aceleramento através da caça e da alteração
antrópica dos seus habitats228
.
A América permaneceu intocada por qualquer grande primata até a chegada dos
primeiros hominídeos pela Beríngia. Estes hominídeos pertenciam a uma espécie singular,
eram bípedes, usavam ferramentas de pedra, sabiam utilizar o fogo de modo controlado e, o
mais importante, possuíam conhecimentos e formas de interação social únicos, maturados
desde a Revolução Cognitiva ocorrida no continente africano há 70 mil anos, que capacitou a
espécie a desbravar a biosfera e conquistar os nichos então ocupados por outros humanos –
Homo sp.229
– e também aqueles das terras até então nunca exploradas por nenhuma espécie
do gênero.
A América do Sul foi a região mais severamente atingida por esta invasão, através das
“queimadas controladas” que provocavam a savanização dos biomas e a degradação de seus
ecossistemas e da caça voraz e implacável que não deu tempo aos animais de se habituar a um
predador desconhecido e extremamente habilidoso que se valia enormemente do
conhecimento acumulado com presas de outros habitats. Destarte, nada menos que 83% dos
gêneros de megafauna foram levados à extinção quando da chegada do Homo sapiens há
cerca de 16 mil anos230
.
O meio ambiente típico de uma floresta ombrófila fomenta uma competição ferrenha
por luz e espaço entre as plantas, exercendo uma pressão seletiva em favor de troncos, galhos
e folhas, constituindo assim uma biomassa que o aparelho digestivo humano não consegue
processar. Portanto, mesmo quando os primeiros invasores humanos esgotaram seus antigos
228
CABRAL, Diogo de Carvalho. Op. cit.; p. 38. 229
Por humano entende-se animal pertencente ao gênero Homo. De acordo com as pesquisas
antropológicas mais recentes, desde a extinção do Homo floresiensis há cerca de 13 mil anos, o Homo
sapiens passou a constituir a única espécie viva do seu gênero, o que livrou o termo de ambiguidade a
partir da Revolução Agrícola. 230
HARARI, Yuval Noah. Op. cit.
66
nichos com a extinção da megafauna e assim pressionados adentraram a floresta, eles o
fizeram abrindo clareiras para o cultivo e para minimamente mimetizar os espaços abertos das
savanas: habitat no qual os humanos evoluíram por milhões de anos e que, por conseguinte,
estavam mais adaptados. Mesmo as coníferas ou até as muito bem sucedidas angiospermas –
que arregimentam hordas de animais dos mais diversos grupos filogenéticos na dispersão de
suas sementes em troca dos açúcares contidos em seus frutos saborosos e nutritivos – não
eram poupadas pelos grupos humanos que habitavam o interior das florestas, já que os frutos
e sementes destas plantas não servem como estoque de comida por serem altamente
perecíveis.
Mas ao contrário do habitat fabricado pelos indígenas e sua agricultura itinerária com
pequenas roças de policultura – cujo impacto não diferia drasticamente dos causados pelas
clareiras abertas espontaneamente pela queda de árvores gigantescas –, os vastos campos
agrícolas baseados em monoculturas de exportação provocavam uma simplificação extrema
nos ecossistemas, dificultando enormemente a regeneração da floresta.
Exatamente por causa de sua imensa riqueza biológica, a Mata Atlântica é
uma realidade biofísica extremamente instável na sua relação com a
economia monocultora moderna – e essa foi uma outra fonte importante de
agência histórica. Desflorestamentos para a implantação de monoculturas de
cana-de-açúcar, tabaco, algodão e, mais tarde, café, eram modificações
drásticas em relação à espetacular variedade florística que vinha se
desenvolvendo durante centenas de milênios231
.
Os primeiros invasores humanos do Novo Mundo vieram munidos apenas com
algumas ferramentas de pedra, o fogo e o cão, único ser vivo a ser domesticado no Mesolítico.
Embora estes elementos constituíssem vantagem significativa para a empreitada humana no
novo ambiente, que desde então testemunhou a inventividade da espécie, foi a invasão
europeia que submeteu de forma muito mais avassaladora a natureza da região ao poder
devastador do homem. Esta segunda invasão humana – ocorrida no pós Revolução Neolítica –
trazia em seu bojo não somente um arsenal muito mais diversificado de espécies
domesticadas, mas também o conhecimento necessário para avaliar os recursos bióticos dos
agricultores nativos que encontraram, dotando-os da capacidade de explorá-los
comercialmente e de cultiva-los em sua terra natal232
.
231
CABRAL, Diogo de Carvalho. Op. cit.; p. 42. 232
DEAN, Warren. Op. cit.; p. 71.
67
Com o aquecimento climático do Holoceno juntamente com a extinção da megafauna
herbívora, havia florescido na Mata Atlântica uma vultosa biomassa vegetal que
disponibilizara uma imensa quantidade de produção primária aos ameríndios, cujas
populações esparsas e com baixa densidade, com uma agricultura itinerária de longo pousio,
mantiveram as formações florestais em alto estágio regenerativo. Com a chegada dos
europeus, a biomassa lenhosa transformou-se no recurso mais importante à empresa colonial –
em termos econômicos – ofertado pelas florestas costeiras, e todo o conhecimento acumulado
pelas culturas indígenas e também seu legado biológico foram apropriados pela sociedade
moderna que então se construía à custa da devastação ambiental e cultural dos povos
ameríndios233
.
A colonização é um fenômeno essencialmente ecológico. Decorre disto que a
dispersão de plantas, animais e patógenos perpetrada por invasores que “comandam” recursos
bióticos próprios é a chave para compreender o êxito de qualquer processo colonizador, e a
biota invasora tende a proliferar no novo ambiente ao escapar às pragas e aos predadores com
os quais haviam co-evoluído. Assim, amparados por um exército de plantas e animais
domesticados – e um arsenal mortífero de patógenos –, os europeus rapidamente alcançaram a
hegemonia no Novo Mundo, a despeito de uma anterior ocupação humana milenar.
Os navegadores e sua biota portátil realizaram em solo americano a revolução mais
extrema desde as extinções do final do Pleistoceno. Em verdade muitos ecossistemas estavam
suscetíveis à invasão, já que a extinção da megafauna abriu caminho para que a fauna do
Velho Mundo ocupasse os nichos esvaziados com certa facilidade, pois caso estivessem
densamente povoados com manadas de ruminantes e bandos de carnívoros, teria ao menos
dificultado a dispersão dos animais de criação europeus e exigido maior intervenção humana
no processo234
. Seguramente pode-se inferir que o sucesso da experiência colonizadora
europeia iniciada pela viagem de Colombo ocorreu no bojo de uma transformação em escala
continental da biota do Novo Mundo. Entretanto os novos conquistadores, ainda que tenham
se beneficiado amplamente disto, raramente governaram diretamente tais mudanças
biológicas.
As grandes navegações colocaram subitamente em íntimo contato seres humanos,
animais, plantas e micróbios que haviam evoluído separadamente. Alguns povos ameríndios,
como os do planalto mexicano, até haviam edificado cidades, mas iniciaram o cultivo agrícola
milhares de anos depois que a Eurásia e não contavam com manadas de animais domesticados
233
CABRAL, Diogo de Carvalho. Op. cit.; p. 349. 234 CROSBY, Alfred. Op. cit.; p. 285.
68
– não havendo deste modo hibridação de novos patógenos –, além de possuírem uma
densidade populacional muito menor235
. Estes fatores contribuíram para que o cultivo de
patógenos nas populações ameríndias estive num ponto muito menos desenvolvido em
relação às populações europeias, fazendo com que a Lei de McNeill236
atuasse contra aqueles
em favor destes quando de seu encontro. Portanto:
De todas as armas transportadas nas caravelas dos europeus, nenhuma foi tão
eficaz quanto suas doenças para dobrar a resistência dos povos do Novo
Mundo. Na verdade, a doença epidêmica é a chave para se compreender o
curso do imperialismo europeu no Novo Mundo. Nas outras regiões tropicais
do planeta, que haviam sido todas ligadas pelo comércio e conquista desde o
surgimento da agricultura e das cidades, a abordagem marítima dos europeus
não produziu esse resultado. Por dois séculos e meio, os invasores não
controlavam nenhum território nas costas asiáticas e africanas além daquele
garantido pelo alcance do tiro de canhão. Uma vez que a resistência asiática
e africana às doenças era ainda mais completa que a dos saqueadores
europeus, estes últimos não tiveram qualquer chance de repovoar a paisagem
como lhes aprazia, com um sortimento humano exótico de colonos e cativos
e raças domesticadas de animais. É surpreendente que a realidade de um
Novo Mundo densamente povoado, castigado por doenças subitamente
introduzidas, foi negada não só por aqueles que a testemunharam, mas
também por todos os seus descendentes, por mais de quatrocentos anos, em
interminável cadeia de cumplicidade que permitiu aos neo-europeus
arrogarem-se herdeiros de uma terra vazia, uma “fronteira” ilimitada237
.
O fator biótico é essencial, mas certamente não é o único que explica a conquista
europeia do Novo Mundo. O controle sobre o mundo natural muito mais modesto dos povos
ameríndios comparado ao dos europeus – ao menos em parte explicado por razões
biogeográficas discutidas no capítulo anterior – era também acompanhado de um atraso
tecnológico em relação a estes. A invasão europeia lançou a América à Idade do Ferro e tais
instrumentos faziam a diferença, pois machados, foices e facões facilitavam a abertura de
picadas nas matas e possibilitavam uma limpeza mais completa do terreno, enquanto enxadas
permitiam um cultivo contínuo, que por sua vez, desgastava a fertilidade do solo muito além
do que era perpetrado pelos horticultores ameríndios238
.
235
CROSBY, Alfred. Op. cit.; p. 296. 236
As sociedades que desenvolveram a pecuária e habitavam áreas densamente povoadas favoreceram
o salto de patógenos originários dos animais de criação para os humanos e a transmissão de doenças
infecciosas na população, o que provocou uma pressão evolutiva sobre o sistema imunológico de tais
populações conferindo assim uma vantagem importante aos povos civilizados frente aos menos
adiantados – adaptados a uma quantidade bem menor de doenças –. Esse processo foi elucidado de
forma mais clara pelo historiador William Hardy McNeill e desde então se tornou um fator previsível
na história humana conhecido pelo nome de Lei de McNeill. 237
DEAN, Warren. Op. cit.; p. 79. 238
CABRAL, Diogo de Carvalho. Op. cit.; p. 42.
69
Mas não só a desigualdade no nível das forças produtivas deve ser mencionada. A
diferença de estruturas sociais e produtivas, de instituições, mentalidades e entendimento do
mundo de modo algum deve ser subestimada. É patente o exemplo dado pela ruptura violenta
das instituições básicas dos ameríndios, cuja comunidade organizada em uma sociedade
orgânica foi dilacerada pela mercantilização dos recursos naturais promovida pela
implantação de uma economia mercantil imposta pela empresa colonial. Assim, o que
ocorreria nas cidades europeias que se industrializaram em relação à desintegração do
ambiente cultural dos camponeses despossuídos, foi implementado na América colonial de
forma muito mais violenta e destrutiva em relação aos indígenas e também aos africanos para
cá transportados à força. Por certo:
O processo econômico pode, naturalmente, fornecer o veículo da destruição,
e quase invariavelmente a inferioridade econômica fara o mais fraco se
render, mas a causa imediata da sua ruína não é essa razão econômica – ela
está no ferimento letal infligido às instituições nas quais a sua existência
social está inserida. O resultado é a perda do auto respeito e dos padrões,
seja a unidade um povo ou de uma classe, quer o processo resulte do assim
chamado ‘conflito cultural’ ou de uma mudança na posição de uma classe
dentro dos limites de uma sociedade239
.
Os valores, as ideias, os conceitos e a organização de um povo são condicionados por
seu ambiente ecológico e atuam sobre este através de um movimento dialético no qual se cria,
se coloca em prática e se resignifica tais elementos culturais. Destarte vale notar que além dos
patógenos, dos animais e plantas domésticos e dos instrumentos de ferro, os portugueses
trouxeram para o Novo Mundo dois importantes elementos imateriais que muito contribuíram
para a devastação ecológica da região: o mercantilismo e a tradição judaico-cristã, que
encontraram na natureza selvagem da América um novo mundo a ser interpretado e
manipulado conforme seus parâmetros.
Forjado durante a longa história de domesticação animal e de árduo trabalho na
transformação das estruturas ecológicas do crescente fértil – que deu o mote ao seu
exacerbado antropocentrismo –, o judaico-cristianismo estabelecia uma separação extrema
entre o homem e a natureza, além de promover o domínio humano sobre as coisas vivas e não
vivas de seu ambiente240
, evidenciado pela promulgação divina: “(...) enchei a terra, e sujeitai-
a; e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves dos céus, e sobre todo o animal que se
239
POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. Op. cit.; p. 176. 240
CABRAL, Diogo de Carvalho. Op. cit.; p. 71.
70
move sobre a terra241
”. Por certo o triunfo do modus operandi português trouxe severas
consequências para a Mata Atlântica, pois conforme a dominação portuguesa avançava, a
concepção dominante sobre a floresta segregava-a do domínio das relações culturais para
relega-la ao mundo selvagem, que em tal perspectiva estava à espera de ser civilizado, já que
o sentido do mato emergia da concepção de que era um produto da criação divina destinado a
ser matéria prima trabalhada pela vontade humana242
.
As técnicas, os saberes e a forma de se relacionar com a natureza são instrumentos
culturais dos quais os humanos se valem para construir seus nichos embora tais elementos da
vida cultural mantenham uma relação formativa com o mundo material, não precisam ser em
si mesmos materiais. O choque biocultural que caracterizou a formação do povo brasileiro
fundamentou-se enormemente no solapamento de uma concepção de mundo integrada e
orgânica própria dos povos ameríndios, em nome de uma perspectiva segregacionista e
hierarquizante trazida pelos portugueses243
. Obviamente este processo não deve ser entendido
como uma sobreposição total, pois ele assentou-se na troca – ainda que bastante desigual – e
na subsequente assimilação de muitos elementos do mundo indígena que foram vitais para a
sobrevivência dos portugueses no novo ambiente biológico e cultural que se encontrava em
plena construção. Sendo assim:
Essas terras florestadas constituíram o locus fundamental do encontro
biofísico e cultural que remodelou a terra e a vida a partir da chegada dos
europeus, em 1500. Sob o jugo ibérico, humanos provenientes de três
continentes diferentes e padrões civilizatórios foram obrigados a produzir
suas vidas no mesmo espaço244
.
O sucesso da empresa colonial assentava-se não somente na adaptação da biota trazida
pelos invasores ao novo ambiente, mas também no quão bem os invasores conseguiam utilizar
os elementos locais na construção e reprodução metabólica da nova sociedade. A mandioca
ilustra muito bem essa relação e era tida em muito boa conta pelos portugueses por servir de
base alimentar de toda a população colonial. Dessa forma:
O complexo cultural da mandioca foi uma das maiores contribuições dos
povos Tupi-guarani ao sistema técnico neobrasileiro. (...) Uma vez de posse
241
Gênesis 1: 28. Disponível em: < https://www.bibliaonline.com.br/acf/gn/>. Acesso em: 09 / 02/
2016. 242
CABRAL, Diogo de Carvalho. Op. cit.; p. 66. 243
Id. Ibid.; p. 232. 244
Id. Ibid.; p. 25.
71
do conhecimento do cultivo e processamento da mandioca, os europeus
deixaram de ser visitantes para se tornarem colonizadores: eram então
capazes de se sustentar na terra, produzindo seu próprio alimento sem ajuda
dos antigos moradores245
.
Todavia é importante ressaltar que ainda que os portugueses não tenham conseguido
europeizar a Ásia e a África tropical, obtendo resultados bem mais satisfatórios nos trópicos
do Novo Mundo, eles não conseguiram emular a sociedade europeia sob o sol abrasador do
Brasil como nas “neoeuropas” dos continentes australiano e norte americano. Por certo foi no
Brasil que os portugueses fizeram a transição entre um contato tímido e limitado à costa para
uma relação duradoura e produtiva com as terras tropicais, todavia eles não impuseram de
modo totalitário seu genótipo e sua cultura. Em vez disto construíram a sua paisagem através
do sincretismo e hibridação que formaram um verdadeiro mosaico na sociedade que se
constituía na costa atlântica brasileira246
.
Os portugueses concentraram-se na criação de uma colônia fundamentada na produção
agroexportadora, em boa parte equipada por não europeus, que aqui se refere tanto aos
animais e aos gêneros agrícolas cultivados, quanto aos habitantes humanos.
Uma colônia europeia na América quente e úmida consistia frequentemente
numa pequena classe gerencial branca, alguns negros e mulatos livres e uma
enorme quantidade de escravos africanos. Estes, quase invariavelmente mal
alimentados, muitas vezes submetidos a trabalho excessivo e vivendo num
ambiente patológico não tão hostil a eles quanto aos brancos, mas
significativamente diferente daquele de sua terra de origem, também
morriam em grande número. Contudo, podiam ser e eram sempre
substituídos247
.
Desta forma os portugueses promoveram um intenso intercâmbio de plantas, animais e
até mesmo de humanos entre os domínios ecologicamente diversos de seu império marítimo,
compondo dessa forma, principalmente em sua colônia americana, um impressionante
mosaico biocultural do qual se valeram enormemente.
2.2 Sangue, suor e seiva: o processo civilizatório do mundo selvagem
245
CABRAL, Diogo de Carvalho. Op. cit.; p. 210. 246
Id. Ibid.; p. 60. 247
CROSBY, Alfred. Op. cit.; p. 151.
72
Ainda que os portugueses tenham se deparado com uma rica diversidade de culturas e
formações sociais de diferentes povos indígenas, cujos ancestrais conviviam há mais de 16
mil anos com um conjunto impressionante de estruturas complexas produzidas pela dinâmica
da natureza da região, utilizando-as, modificando-as e marcando de maneira decisiva a
construção de suas paisagens, foram os invasores do Velho Mundo que impingiram às terras
americanas os processos massivos de degradação ambiental. A base do território brasileiro era
incrivelmente exuberante e de acesso relativamente fácil248
, o que estimulou uma exploração
agressiva que marcou o surgimento do Brasil como entidade política249
.
O mercantilismo vigente operava com base na homogeneização dos ecossistemas,
conferindo grande valor às monoculturas e aos produtos extrativos de ocorrência concentrada,
convertendo assim a complexidade do mundo tropical na linguagem abstrata do dinheiro.
Como a biodiversidade se traduz em dispersão geográfica, a Mata Atlântica constituía desta
forma um obstáculo à exploração econômica por não corresponder às necessidades prementes
da exploração mercantil250
. Em decorrência disso os movimentos perturbadores causados
pelos europeus e sua biota invasora nos ecossistemas previamente existentes resultaram numa
composição desproporcional destes em relação à biota nativa na composição da estrutura da
paisagem biofísica e social da colônia que se formava, marcada por uma exploração brutal e
imediatista dos recursos naturais disponíveis.
A regressão dos ecossistemas promovida pela variada exploração humana – cortes de
madeira, agricultura, uso de campos como pastagens – provocava a supressão da vegetação
nativa e consequentemente a destruição de habitats, diminuindo a diversidade de espécies e a
capacidade de adaptação evolutiva a novas situações. Além disso, o desflorestamento
expunha o solo desmatado a uma maior incidência de raios solar e a processos erosivos, cujo
impacto frequentemente potencializado pelas queimadas que degradavam a biomassa,
resultava na destruição da fauna edáfica, cuja função de trituração e decomposição dos restos
orgânicos que resultam na liberação de nutrientes minerais no solo é vital nos ecossistemas terrestres.
248
A vantagem dos europeus sobre os asiáticos era efêmera, pois estes também eram herdeiros da
Revolução Neolítica, enquanto os africanos, apesar de disporem de menor quantidade de elementos do
Neolítico do Velho Mundo, contavam com a hostilidade do território africano a seu favor, manifestada
por seu clima quente e úmido e um ecossistema até então indomado que só pôde ser subjugado pelos
europeus no fim do século XIX quando estes desenvolveram mais seus conhecimentos científicos e o
aplicaram às tecnologias que garantiram o controle sobre o interior do continente bravio. Em suma, as
vantagens ecológicas dos conquistadores europeus parecem ter sido realmente a vantagem decisiva nas
regiões onde conseguiram estabelecer seu domínio colonial anteriormente a Era Industrial. 249 PÁDUA, José Augusto. Um sopro de destruição: pensamento político e crítica ambiental no
Brasil escravista (1786-1888). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002; p. 72. 250 CABRAL, Diogo de Carvalho. Op. cit.; p. 478.
73
Estes processos de degradação dos ecossistemas florestais acabavam atuando de forma
deletéria inclusive sobre as possibilidades de desenvolvimento de atividades agropecuárias
posteriores, já que a transformação gradual dos ecossistemas originais em ecossistemas
especializados – que contavam em suas fileiras com um número comparativamente
insignificante de espécies, resumidas praticamente às plantas e animais domésticos e seus
parasitas – alterava significativamente os ciclos biogeoquímicos e subsequentemente a
fertilidade do solo251
.
Todavia é um fato da vida ecológica que o cultivo agrícola e a criação de animais
exigem a transformação de uma mata ombrófila quando tais atividades e a floresta rivalizam o
mesmo espaço. E de acordo com a perspectiva mercantilista, a floresta tropical, com seu
padrão biogeográfico de dispersão, poderia ser lucrativamente melhor explorada de forma não
seletiva, isto é, em vez de se empreender a extração de algumas poucas madeiras
comercialmente vantajosas por hectare, queimava-se a biomassa contida naquele hectare para
com isso fornecer ao solo suas cinzas fertilizantes, canalizando assim os investimentos para
atividades mais seguras ainda que com retorno mais lento252
.
A aclimatação de espécies exógenas que pudessem ter valor econômico fomentou as
transferências bióticas que fizeram dos portugueses agentes de dispersão – inicialmente em
suas colônias nas ilhas do Atlântico e posteriormente no Brasil – de uma flora tropical
implantada em domínios naturais estranhos. As espécies trazidas eram cultivadas nestes
campos queimados desflorestados, cuja biomassa florestal reduzida a cinzas servia os
nutrientes e o lugar ao sol exigido pelas plantas exóticas que, deste modo, colonizavam o
novo ambiente e tornavam-se suas conquistadoras tanto quanto os humanos que as traziam.
Na obra Sapiens, o historiador Yuval Harari faz uma provocação de que na verdade as
plantas teriam domesticado o Homo sapiens na Revolução Agrícola e não o contrário, já que
as sociedades agrícolas mudaram drasticamente seu estilo de vida em função dos seus
cultivos, e, da perspectiva evolutiva de sobrevivência e reprodução, muitas espécies antes
selvagens e restritas a uma pequena região passaram a crescer no mundo inteiro dentro de
alguns poucos milênios valendo-se inteiramente do trabalho humano de limpeza, adubação,
irrigação ou drenagem do solo, combate às pragas e dispersão de sementes e mudas253
. Em
confirmação ao que foi discutido:
251
CARDOSO, Ciro Flamarion. Op. cit.; p. 23. 252
CABRAL, Diogo de Carvalho. Op. cit.; p. 425. 253
HARARI, Yuval Noah. Op. cit.
74
As pesquisas históricas e antropológicas mostram que a maioria dos povos
agrícolas pré-industriais subsistia à base de carboidratos complexos
geralmente obtidos em um ou, quando muito, dois cereais ou tubérculos
principais. (...) Assim, essa espécie vegetal tende a exercer um papel
estrutural na comunidade humana. O calendário anual, as datas festivas, a
marcação do tempo são feitos de acordo com o ciclo de maturação do
vegetal. Suas necessidades tornam-se, de muitas formas, as necessidades dos
seus parceiros humanos e se expressam, por exemplo, nos rituais e nos mitos
de criação. Suas características fenotípicas, suas relações com outras
espécies, seus nomes, seus gostos e texturas distintivos, as dificuldades
associadas ao seu cultivo, sua história, mítica ou não – tudo isso entranha-se
de um tal modo nos assuntos humanos que fica difícil negar ao alimento
básico o título de “agente social” 254
.
Claro que os humanos dessas sociedades agrícolas primitivas faziam seus cultivos
conscientemente, escolhendo – dentre as opções, muitas vezes estreitas, disponíveis no
ambiente no qual a comunidade estava inserida – as plantas que seriam cultivadas para
atenderem aos seus interesses próprios e controlando o processo através de seleção artificial,
porém, essa não deixa de ser uma reflexão interessante e bastante ilustrativa da íntima
dependência que os humanos engendraram para si mesmos em relação às plantas para a
devida reprodução do metabolismo social quando se iniciou a agricultura, pois desde a
Revolução Agrícola a reprodução das espécies domesticadas tornou-se a condição
fundamental da reprodução das sociedades humanas.
Os humanos primitivos, já na aurora de sua jornada evolutiva há cerca de 2,5 milhões
de anos, haviam desenvolvido as primeiras ferramentas de pedra que dariam início a
construção do nicho que ocupariam; o Homo erectus, quando aprendeu a controlar o fogo, deu
o salto decisivo que destacou os humanos em relação ao uso de recursos naturais empreendido
por outros animais; e o Homo sapiens, o herdeiro mais inventivo do gênero, pela primeira vez
na História usou o fogo para forjar ferramentas de metais, que contribuíram
significativamente para a transformação das paisagens que habitou. O cafeeiro valeu-se
imensamente de tal evolução exossomática dos humanos, largamente empregada no cultivo
do arbusto, cultivo este que devorava a floresta a ferro e fogo e a metabolizava em cinzas e
pastos exauridos. Embora tais técnicas fossem amplamente utilizadas na cafeicultura
brasileira, seus métodos e instrumentos arcaicos eram também duramente criticadas e
denunciadas como práticas primitivas, como pode ser notado na seguinte fala:
254
CABRAL, Diogo de Carvalho. Op. cit.; p. 205.
75
Praticamos hoje a agricultura como o fizeram os primitivos povos ... O
machado e o fogo são quase os nossos únicos auxiliares. As nossas belas e
ricas matas têm desaparecido ante estes dois terríveis agentes da destruição,
e com elas um manancial de riquezas acumuladas por tantos séculos. Não
será tempo por ventura de reconhecermos que um tal abandono pode, além
da perda desses valores, trazer-nos calamidades imensas, como as secas, as
inundações e a impureza da atmosfera? E lançar-nos no maior estado de
miséria, e quem sabe talvez de aniquilamento255
.
Como pode ser notado, o debate em torno das questões ecológicas pertinentes à
cafeicultura não se restringiam à crítica dos métodos de cultivo arcaicos então empregados
que aceleravam o esgotamento do solo, já que também contemplava temas referentes aos
impactos ambientais de outras naturezas perpetrados pela agroindústria. Muitas dessas críticas
esbarravam nos limites do conhecimento científico da época e até mesmo se embasavam em
paradigmas que com o avanço científico posterior caíram por terra, mas outras tantas se
mostraram corretas e nesses debates:
Tornou-se comum atribuir à derrubada da floresta a própria causa da seca.
Na época, tratava-se de suposição impressionista; atualmente, a afirmação
tem bases científicas bem sólidas: as florestas da costa amazonense
transpiram enormes quantidades de água que os ventos de leste levam para o
interior. A eliminação de florestas costeiras, portanto, implica um clima mais
seco no interior. No Sudeste, ao fim do século XIX, tinha-se alcançado a orla
interior da Mata Atlântica em diversos locais. Mesmo sem intervenção
humana, essa já era uma zona de invernos secos mais longos, intensos e
menos previsíveis. Na metade do século, observava-se também que rios,
outrora límpidos e estáveis o ano todo, agora carregavam a água lamacenta
escorrida das plantações; em seus estuários formaram-se bancos de areia que
impossibilitavam até a navegação por canoas256
.
A difusão de uma nova interpretação do mundo natural no pensamento europeu a
partir do século XVIII aos poucos descontruiu a imagem da grande cadeia do ser da scale
nature de Aristóteles, erigindo em seu lugar uma concepção centrada no entendimento da
natureza como uma economia. Esta mudança na visão e compreensão da natureza, antes
entendida como uma ordem estática concebida por Deus, foi responsável por construir uma
imagem de ordem dinâmica cuja explicação encontrava-se na própria manifestação de seu
funcionamento. Posteriormente esta perspectiva da imanência orientou a formação de novas
255
Apud. PACOVA, Caetano da Rocha. Apontamentos sobre a necessidade de uma escola de
agricultura. Teórica e prática, Rio de Janeiro, 1859. In: PÁDUA, José Augusto. Um sopro de
destruição: pensamento político e crítica ambiental no Brasil escravista (1786-1888). Op. cit.; p.
249. 256 DEAN, Warren. Op. cit.; p. 236.
76
visões integrativas do mundo natural, fundadas a partir de então muito mais na observação
empírica257
. Contudo, a respeito das interações dos seres vivos com o meio ambiente:
Isso não significa dizer, porém, que Lineu adotava uma ética biocêntrica,
uma valorização equitativa de todos os elementos da natureza. Todos eram
importantes, mas o valor ético supremo e o direito de domínio repousavam
exclusivamente no homem: “A natureza inteira tende a prover o bem-estar
do homem, cuja autoridade se estende sobre toda a terra, podendo apropriar-
se de todos os produtos.” (...) Mesmo considerando o forte viés
antropocêntrico que caracterizou o pensamento ilustrado, foi no caldo de
cultura do processo de elaboração e uma “economia da natureza” que
começaram a emergir análises mais consistentes sobre os danos ambientais
provocados pela ação humana, especialmente sobre as consequências do
desflorestamento, da superexploração pesqueira, do esgotamento dos solos,
do secamento dos cursos d’água etc. uma formulação especialmente
relevante, dentro desse contexto, foi a chamada “teoria do dessecamento”.
Essa teoria, possivelmente a primeira concepção científica moderna sobre o
risco das mudanças climáticas antropicamente induzidas, relacionava a
destruição da vegetação nativa com a redução da umidade, das chuvas e dos
mananciais de água258
.
Em relação ao processo que demarca a interdependência entre humanos e plantas, tal
interação torna-se ainda mais evidente nos casos em que espécies exóticas colonizam um
novo ambiente ao obter o favor humano na devastação da vegetação nativa que abre caminho
para o seu cultivo, o que foi largamente empreendido no Brasil. O cafeeiro, por exemplo,
cultivado em terras distantes daquela em que se originou graças à intervenção humana, teve
um impacto colossal sobre as populações locais e sobre aqueles que passaram a cultivá-lo,
transformando ainda radicalmente a ecologia dessas regiões à medida que se espraiava sobre a
flora nativa, constituindo seu domínio através do braço escravo e reinando quase absoluto em
morros que outrora conheceram o esplendor da Mata Atlântica e que agora estavam tomados
pelo arbusto invasor.
A economia colonial no Brasil praticamente havia ignorado as espécies
locais, optando por utilizar a base territorial do país – e a fertilidade
temporária propiciada pela queima da sua biomassa florestal – como um
mero substrato para a implantação monocultural de espécies exóticas
provenientes dos trópicos orientais259
.
257
PÁDUA, José Augusto. Um sopro de destruição: pensamento político e crítica ambiental no
Brasil escravista (1786-1888). Op. cit.; p. 44. 258
Id. Ibid.; p. 45. 259 Id. Ibid.; p. 41.
77
Todo o desiquilíbrio ecológico fomentado pela cafeicultura nas regiões onde ocorriam
era ainda impulsionado pela contradição engendrada pelo comércio internacional, as práticas
humanas orientadas pela produção de valor e as condições exigidas pela terra para a
preservação de sua fertilidade, que provocava uma falha no metabolismo social prescrito pelas
leis naturais da vida através da espoliação dos elementos constitutivos do solo
“contrabandeados” na forma de café e consumidos em terras longínquas.
Todavia é forçoso reconhecer que se um organismo não se adapta simplesmente a um
novo ambiente sem modifica-lo, a recíproca é também um fato. Assim como o solo ou a
composição atmosférica, por exemplo, sofrem mudanças evolucionárias em decorrência da
atividade das diferentes formas de vida que neles interferem, tais mudanças retroagem na
existência destes organismos, selando uma interação que é inexoravelmente dialética e que
não ocorre apenas entre um biótopo e sua biota, mas também entre os organismos de uma
dada comunidade260
e obviamente a humanidade, ainda que tenha reconfigurado a biologia do
planeta, não escapa a essa lei da natureza. Feitas essas observações, pode-se afirmar que
seguramente:
O plantio contínuo de café transformou radicalmente o ambiente físico do
Brasil. Enormes faixas de terra foram limpas, a floresta natural derrubada ou
queimada, e animais nativos eliminados para dar lugar aos vastos cafezais
que cobriam a zona rural. Cultivado como monocultura, o cafeeiro exaure
rapidamente o solo, exigindo que novas terras sejam plantadas enquanto as
antigas se tornam cada vez menos produtivas. As florestas pluviais tropicais
podem levar séculos para se regenerar. Sem cobertura vegetal apropriada, a
erosão chega a remover o pouco solo fértil presente, destruindo de fato toda
a esperança de renovação da floresta. A dependência excessiva de um só
produto agrícola geralmente significa que as populações locais deixam de
plantar produtos tradicionais, o que as torna ainda mais vulneráveis aos
caprichos dos mercados mundiais. A monocultura é também extremamente
suscetível a infestações devastadoras por pragas, como a ferrugem, que pode
destruir uma plantação em questões de dias261
.
A respeito deste último ponto, o cafeeiro, por ser uma planta exótica, desfrutou por um
tempo de certo sucesso no ambiente tropical brasileiro, ainda que mais tarde tenha sofrido
enormemente com algumas pragas, pois:
Plantas tropicais domesticadas normalmente desfrutam quase de imunidade
aos parasitismo durante um período considerável após sua transferência para
um ambiente exótico – na verdade foi esta estratégia, totalmente
260 FOSTER, John Bellamy. Op. cit.; p. 32. 261 LE COUTEUR, Penny; BURRESON, Jay. Op. cit.; p. 244.
78
inconsciente, que possibilitou a difusão mundial do sistema de plantation.
Infelizmente, nos anos de 1860, esse intervalo de bonança chegava ao fim no
Rio de Janeiro. Isso podia ter sido previsto, porque o café é membro de uma
família cosmopolita, a Rubiácea, com a qual muitos predadores neotropicais
coevoluíram. Alguns insetos nativos estavam passando a se adaptar ao
imenso banquete que lhes fora oferecido262
.
A despeito disso a cafeicultura foi o caso mais exemplar no Brasil até inicio do XX de
degradação ambiental provocado pelo cultivo de uma planta exótica. Isso porque o café
chegou a ser o principal produto do mercado mundial, fomentando uma produção em larga
escala nos países tropicais, cujo impacto ecológico no Brasil foi agravado pelo caráter
extensivo de seu cultivo. Além disso, a cafeicultura esteve associada a um processo de
ocupação humana mais denso e a diversificação do capital agrário, oriundo das unidades
agroexportadoras, promovendo um intenso processo de transformação do meio ecológico
calcado na intensificação da divisão entre campo e cidade e na subsequente instauração de
uma falha metabólica em nível local e global.
Muito disso se deve à mania pelo café ter se propagado no bojo da Revolução
Industrial, que não só revolucionava a tecnologia de produção e transporte como também
alterava profundamente os padrões de consumo criando novas e vultosas demandas, além de
promover o mais intenso processo de transformação da paisagem natural da História. No
Brasil, na esteira destes processos que ocorriam nos países centrais da economia mundial e se
irradiavam para os países marginais:
O comércio do café induziu o crescimento demográfico, a urbanização, a
industrialização e a implantação de ferrovias. Consequências indiretas da
prosperidade febril baseada numa única mercadoria de exportação exerceram
pressões sobre uma área mais ampla da Mata Atlântica, dando início ao que
agora pode ser considerado como danos irreversíveis a paisagens
antropomorfizadas263
.
Mas como José Pádua chama a atenção em sua obra Um sopro de destruição, políticos
e intelectuais à época já alertavam em tom de denúncia que a degradação do território
nacional derivava das utilizações técnicas e organização social rudimentares originárias de
uma economia colonial predatória e ultrapassada, com a qual muitos estabeleciam um nexo
causal entre a continuidade da produção escravista e a destruição do ambiente natural, que não
262 DEAN, Warren. Op. cit.; p. 237. 263
Id. Ibid.; p. 206.
79
era entendida como o preço do progresso, como na visão moderna dominante, mas sim como
o preço do atraso264
.
As práticas devastadoras enraizadas na lavoura escravista produziam a riqueza da elite
senhorial que por sua vez sustentava a máquina do Estado, cuja elite dirigente mostrou-se
historicamente competente na construção de uma estrutura política sólida capaz de preservar a
unidade do território nacional durante os conturbados anos do Império, mas politicamente
desinteressada no aperfeiçoamento das relações de produção do país, o que não deve causar
surpresa265
.
O Novo Mundo foi encarado desde o início da conquista como um espaço livre à
ocupação e exploração europeia. A primeira onda de ocupação europeia desbravou o
continente abrindo caminho através da espada “civilizadora” e de uma economia extrativista
rudimentar para a segunda onda, numericamente mais expressiva, munida com machados e
enxadas e economias mais complexas, que deu prosseguimento ao processo de expansão da
fronteira pelo nomadismo das queimadas naquelas terras que não pareciam oferecer limite
geográfico ou ecológico à exploração agrícola266
. Essa sensação de fronteira aberta estimulava
uma mentalidade indulgente no agricultor do Brasil colonial, que percebia a floresta como um
espaço “vazio”, ausente de significado, algo a ser transformado e dotado de sentido pelo
homem:
Mas ao mesmo tempo é essencial entender essa lógica, para evitar
julgamentos apressados e anacrônicos, no contexto histórico de uma colônia
de exploração e no contexto geográfico do imenso território que estava
sendo explorado. Considerando a abundância da biomassa florestal, por
exemplo, é provável que as queimadas tenham sido o método mais barato e
imediatamente eficaz para o estabelecimento das grandes plantações. Uma
colônia de exploração é sempre um empreendimento brutal e imediatista. A
lógica de longo prazo é, ou deve ser, própria da ideia de nação, do ideal de
continuidade histórica de uma comunidade política. Seria ingênuo esperar
esse tipo de lógica da parte dos colonizadores. Eles foram pragmáticos,
valendo-se das possibilidades mais evidentes e menos trabalhosas que a
realidade histórica apresentava em cada momento267
.
Todavia é importante ressaltar que economias predatórias – que do ponto de vista
puramente físico não fazem mais que converter de modo intenso recursos naturais, que
264 PÁDUA, José Augusto. Um sopro de destruição: pensamento político e crítica ambiental no
Brasil escravista (1786-1888). Op. cit.; p. 116. 265 Id. Ibid.; p. 32. 266
CROSBY, Alfred. Op. cit.; p. 291. 267 PÁDUA, José Augusto. Um sopro de destruição: pensamento político e crítica ambiental no
Brasil escravista (1786-1888). Op. cit.; p. 79.
80
possuem baixa entropia, em valor e resíduos com alta entropia – oferecem uma contrapartida
construtiva – ao menos do ponto de vista antropocêntrico –, que é a produção de riqueza. Mas
por hora voltemos nossa atenção à degradação ecológica – consumo de recursos e refugo de
resíduos – engendrada pela economia agroexportadora empreendida sobre a Mata Atlântica
que, como qualquer processo econômico, inexoravelmente provocava um aumento
irreversível na entropia do ambiente natural268
.
Dentre os processos de transformação da Mata Atlântica, as queimadas seguramente
ocuparam um dos lugares mais importantes, a ponto dos incêndios florestais serem
considerados um acontecimento trivial, posto que era um elemento típico da agricultura que
se praticava então. De fato, a coivara ou “agricultura de tição” largamente empregada pelos
colonos brasileiros – herança dos colonos portugueses e agricultores ameríndios – era uma
técnica tão antiga quanto a própria agricultura e veio sendo empregada desde o neolítico para
viabilizar a agricultura sedentária em qualquer parte onde houvesse florestas269
.
As plantas verdes, ao armazenar uma parte da energia solar que incide sobre a biosfera
a partir do processo de fotossíntese, evitam que esta se dissipe imediatamente em calor,
tornando mais lenta a degradação entrópica. Os seres vivos consumidores, por outro lado, ao
utilizar a energia química convertida pelas plantas – diretamente através de sua metabolização
pelos consumidores primários ou indiretamente a partir da transmissão desta energia através
dos níveis tróficos superiores até os predadores e decompositores –, mantêm a baixa entropia
de seus organismos a custa da aceleração da degradação entrópica e sem sombra de dúvidas o
homem ocupa a posição mais alta nesta escala graças ao seu desenvolvimento exossomático,
que demanda um fluxo energético e material cada vez maior para a manutenção do seu
metabolismo social270
.
Feita esta consideração, deve-se enfatizar que o que alimenta qualquer processo
econômico, seja ele elaborado ou rudimentar, é precisamente a queima da energia solar
preservada da degradação, seja na forma mais antiga de combustíveis fósseis ou na forma
mais recente de árvores. Por isso:
A agricultura itinerante, de derrubada e queimada, é um sistema agrícola
intensivo em energia – muito mais intensivo, por exemplo, do que a moderna
agricultura fossilista. Além disso, a combustão constitui uma conversão de
baixo rendimento. Dependendo da espécie vegetal, um quilo de biomassa
não produz mais do que quatro gramas de cinzas nutritivas. Apesar de
268
GEORGESCU-ROGEN, Nicholas. Op. cit.; p. 84. 269
CABRAL, Diogo de Carvalho. Op. cit.; p. 111. 270
GEORGESCU-ROGEN, Nicholas. Op. cit.; p. 85.
81
perdulária, a queimada era o único método disponível para se acessar as
gigantescas reservas de nutrientes químicos. Não era o solo per se que os
agricultores exploravam, portanto, mas o complexo solo-vegetação271
.
Deste modo a biomassa aérea fazia a vez de um estoque de nutrientes que podia ser
liberado na forma de cinzas fertilizantes através das queimadas, embora isso significasse uma
imensa degradação entrópica, já que, como informa Diogo Cabral: “em cada hectare
queimado, algo entre 700 e 1.200 toneladas de matéria orgânica era volatilizada, quer dizer,
virava fumaça, literalmente” 272
.
A vastidão das terras e a produtividade biológica prolífica do mundo tropical,
consideravelmente maior que a do mundo temperado, fez da agricultura brasileira uma
atividade amplamente extensiva em terras e intensiva no uso da floresta. O uso da energia e
dos nutrientes contidos na Mata Atlântica na forma de cinzas aumentava o rendimento das
lavouras e a produtividade do trabalho humano muito mais do que se cultivadas no sistema de
rotação das terras273
. Contudo a agricultura de queimadas, por seu caráter nômade e
predatório, esgotava rapidamente a fertilidade do solo, além de destruir e possivelmente levar
a extinção espécies arbóreas que poderiam ser exploradas comercialmente, tornando a
ocupação do território brasileiro uma experiência fundada na devastação274
.
A intensidade acentuada na exploração da floresta fomentada pelas atividades
agroexportadoras, ao contrário da agricultura de subsistência das populações ameríndias de
baixa densidade, engendrava uma devastação florestal irreversível já que:
A vegetação da Mata Atlântica depende da reciclagem de sua própria
matéria orgânica, pois o solo tem uma reserva muito limitada de nutrientes.
Os desmatamentos incendiários interrompem o fluxo constante de galhos,
folhar e outros tecidos vegetais para o solo – onde são decompostos por
microorganismos -, fazendo com que ele perca, em média, metade de seu
estoque de carbono orgânico e mais de 60% de seu estoque de nitrogênio
total. Erosão e lixiviação são intensificadas, bem como a destruição da rede
de raízes superficiais. Como resultado, a reciclagem, o armazenamento e a
absorção de nutrientes são severamente afetados275
.
A voracidade do modo de cultivo das lavouras atreladas às flutuações dos preços de
mercado, especialmente a cafeicultura, produzia um cenário desolador de paisagens
271
CABRAL, Diogo de Carvalho. Op. cit.; p. 125. 272
Id. Ibid.; p. 297. 273
Id. Ibid.; p. 129. 274 PÁDUA, José Augusto. Um sopro de destruição: pensamento político e crítica ambiental no
Brasil escravista (1786-1888). Op. cit.; p. 43. 275
CABRAL, Diogo de Carvalho. Op. cit.; p. 316.
82
antropomorfizadas que em breve seriam arruinadas e abandonadas pelo processo
“civilizatório” que assim prosseguia sua marcha sobre a Mata Atlântica. Nas palavras de
Warren Dean “o terreno assim preparado pela mão purificadora do homem assemelhava-se
um pouco a um moderno campo de batalha, enegrecido, fumegante e desolado” 276
.
O vínculo estabelecido entre os gêneros da agricultura de exportação – destacando-se
o café –, e as flutuações dos preços de mercado engendrava uma contradição entre a terra e os
interesses econômicos imediatos ao subordinar o uso do solo à lógica do lucro no qual a
criação de valor sobrepujava a criação de valor de uso, no qual a terra também é ativa como
agente de produção277
. Tal prática de manejo da terra provocava o seu esgotamento – e outros
problemas ecológicos – sem dispêndio de trabalho para recuperá-la como contrapartida, já que
a vastidão do território e a ambição pelo ganho econômico desempenhavam um papel por
demais poderoso na psicologia do cafeicultor para que este considerasse seriamente a
degradação ecológica que empreendia. O resultado disso era que:
A grande queimada, convertendo de uma só vez algumas dezenas de
hectares, era capaz de criar enormes extensões de área cultivada rodeando
“ilhas” de vegetação nativa. Essa “fragmentação” do tecido florestal
dificultava a recolonização das clareiras, pois elas passavam a depender de
fontes mais longínquas de sementes. As próprias “ilhas” de floresta, com o
passar do tempo, transformavam-se em sua composição, degradando-se
enquanto reservas de recursos. As bordas desses fragmentos, agora com um
ambiente mais extenuante – mais quente, menos úmido –, não podiam
suportar espécies climáticas278
.
O solo tropical alimentado com os nutrientes da biomassa queimada era assim
preparado para o cultivo de uma única espécie exótica que ainda contava com as capinas para
livrarem-na dos competidores mais persistentes. A apropriação de imensas glebas de terras
florestadas garantia uma economia de escala adequada ao sistema agrário vigente, baseado
não na rotação de culturas como ocorria na Europa, mas sim na rotação de áreas em mata.
Porém, como informa Diogo Cabral “um tal sistema nunca permite uma população humana
muito densa, já que, para cada hectare plantado, necessita-se de mais dois ou três –
dependendo do tempo de cultivo contínuo – coberto de mata” 279
, porque a capoeira cresce de
forma mais rápida quando há uma grande área de mata madura em seus arredores fornecedora
de água, matéria orgânica, sementes e animais que as carregam.
276
DEAN, Warren. Op. cit.; p. 200. 277
FOSTER, John Bellamy. Op. cit.; p. 230. 278
CABRAL, Diogo de Carvalho. Op. cit.; p. 123. 279
Id. Ibid.; p. 123.
83
O processo produtivo da agricultura de alimentos baseava-se expressamente neste
sistema de uso da terra em que a disponibilidade de áreas em mata substituía a aplicação de
um trabalho adicional na refertilização do solo, já que a baixa densidade demográfica e a
vastidão do território permitia que a terra antes utilizada na plantação de alimentos pudesse
ser deixada em pousio por sete a oito anos, período suficiente para reverter a lavoura em mata
secundária, recuperando assim sua fertilidade sem a necessidade de outras técnicas de
recuperação da terra, como rotação de culturas ou adubação, o que correspondia a uma
poupança de trabalho280
.
Assim, os sítios de agricultura de alimentos eram tipicamente caracterizados por um
mosaico de floresta em diferentes estágios de regeneração, o que acabou induzindo inúmeros
observadores europeus a descreverem as terras pelas quais viajavam como selvagens, terras
estas que de acordo com muitas outras fontes confiáveis certamente estavam sob cultivo281
.
Como relatou o cronista John Luccok no caminho para Minas Gerais em 1817 sobre o
preparo da terra para a lavoura de milho este sistema agrícola exigia uma pequena inversão de
trabalho que correspondia basicamente a derrubada e queimada da mata para que as cinzas
desempenhassem o papel de fertilização do solo, no qual os trabalhadores:
Deitam o mato abaixo, deixando de pé apenas as árvores grandes a que
ateiam fogo ali mesmo, servindo as cinzas como adubo. Escavam-se então
buracos, sem qualquer preparativo de arado ou outra maneira de revolver o
solo, a dezoito polegadas de afastamento uns dos outros, colocando-se três
grãos em cada qual e em seguida cobrindo-os e deixando-os expostos à
influência do sol e das chuvas (...). A fazenda é sempre arrumada de modo a
que o mesmo talhão volte a ser cultivado uma vez cada sete anos,
permanecendo assim seis sem lavra282
.
Todavia este sistema agrícola de derrubada e queimada possui um claro limite
demográfico que quando rompido dá início a um processo de degradação ambiental e
despovoamento. A comparação entre a agricultura de alimentos e a agroexportadora esbarra
assim em uma diferença óbvia: a escala de produção. A voracidade da cafeicultura,
estimulada pelos incentivos econômicos dados pelas altas do preço do café no mercado
internacional, exigia nada menos que a devastação das áreas em mata do interior das unidades
agroexportadoras em intervalos de tempo continuamente menores, o que dificultava
enormemente ou mesmo impossibilitava o processo de regeneração da floresta secundária. Tal
280
FRAGOSO, João. Sistemas agrários em Paraíba do Sul: um estudo de relações não-capitalistas
de produção (1850-1920). Dissertação de Mestrado, UFRJ, Rio de Janeiro, 1983; p. 19. 281
CABRAL, Diogo de Carvalho. Op. cit.; pp. 304,305. 282
FRAGOSO, João. Op. cit.; p. 18.
84
processo avassalador de transformação ecológica era amplamente atestado pelas fazendas de
café abandonadas que evidenciavam não apenas o esgotamento das terras que ficavam
imprestáveis à lavoura – ou mais precisamente incompatíveis aos interesses econômicos do
cafeicultor de rendimento mais alto possível – como também marcavam a ruína da Mata
Atlântica.
A conversão da biomassa florestal em fertilizante para a agricultura de exportação
fomentou um processo vultoso de degradação ecológica no Brasil. Através da exportação de
café, a biomassa da Mata Atlântica era enviada para fora do Brasil na forma de nutrientes
químicos enquanto outra parte se perdia na forma de calor dissipado. Com os subsídios
ofertados pela floresta a cafeicultura colocou o Brasil em uma posição de grande exportador
de exergia283
e importador de baixa entropia, ou seja, trocava commodities que possuíam
energia com potencial produtivo por produtos manufaturados cuja energia não podia mais ser
utilizada.284
. Em suma, os itens trocados, ainda que o fluxo monetário de tal transação fosse
equilibrado, eram inversamente proporcionais em termos de valor e exergia por unidade de
volume, evidenciando a desigualdade ecológica intrínseca à divisão internacional do
trabalho285
.
2.3 Economia e ecologia escravista
A luta econômica do homem concentra-se na gestão de recursos escassos e no
aumento da entropia do seu meio ambiente, o que explica por qual motivo uma ferramenta ou
um organismo biológico termina por se desgastar ao longo do processo produtivo e deve ser
substituído para a continuidade de sua reprodução, o que implica na retirada suplementar de
baixa entropia do ambiente286
. Desde a colônia a atividade agroexportadora brasileira baseou-
se amplamente em um processo produtivo de intensa degradação entrópica dos escravos, o
que era perfeitamente viável economicamente aos senhores graças à exteriorização dos custos
que tornava o escravo socialmente barato, afinal tais custos eram arcados não pelo comprador,
mas pelo meio ambiente e a comunidade nativos do negro escravizado, pois:
283
Exergia é um conceito da física que diz respeito a capacidade de transformação de uma dada
energia em trabalho, em outras palavras, a disponibilidade de energia para realizar mudanças. 284
CABRAL, Diogo de Carvalho. Op. cit.; p. 155. 285
Id. Ibid.; p. 155. 286
GEORGESCU-ROGEN, Nicholas. Op. cit.; p. 63.
85
Para executar sua função de conversor de energia, o escravo, como
organismo humano, precisava estar vivo, razoavelmente “maduro” e
suficientemente saudável – e isso demandava muito trabalho e recursos. O
problema é que essa trabalheira toda era feita na África, por mulheres,
homens, animais e plantas africanos: a família e a comunidade é que haviam
criado e mantido o indivíduo, devidamente inseridos dentro do ecossistema
mais amplo. (...) Quando esse indivíduo humano era capturado, era como se
sua comunidade fosse roubada de todo esse trabalho e energia armazenados.
A captura denotava a apropriação de trabalho e recursos naturais alheios que
jamais seriam repostos287
.
De um modo geral a formação escravista na América constituiu-se como uma zona de
produção marginal de um sistema socioeconômico mundial que se fundava cada vez mais na
troca e assim submetia o valor de uso dos produtos intercambiados ao segundo plano,
perpetrando assim um desiquilíbrio ecológico inerente à desigualdade ecológica que havia
entre processos socioeconômicos artificialmente equalizados pelo valor dos produtos
intercambiados. Assim:
Essa desigualdade expressava-se, por exemplo, na troca de um homem
adulto e em boas condições físicas por quinze chapéus finos ou catorze pares
de meias de seda, tal como acontecia em Luanda, no final do século XVIII.
Como quase todo comércio ecologicamente desigual, esse também era
camuflado pela intercambialidade monetária: nos dez anos decorridos entre
1785 e 1794, a balança comercial entre Rio de Janeiro e Luanda, por
exemplo, foi superavitária a esta última praça288.
Os escravos juntamente com a biomassa da floresta constituíam a base dominante do
sistema energético da formação colonial e imperial. A matéria orgânica da Mata Atlântica e o
trabalho escravo possuíam um baixo custo, pois adentravam ao processo metabólico da
economia colonial e imperial através da apropriação violenta. Por definição trabalho é
conversão de energia, e a reprodução do organismo do escravo – conversor de calorias
sintetizadas nos alimentos – amparava-se em uma dieta baseada na farinha de mandioca que
apesar de ser nutricionalmente pobre era energeticamente satisfatória da perspectiva do
senhor, que buscava extrair o máximo de trabalho no menor tempo e com os menores gastos
possíveis e que ainda contava com o acesso a mecanismos baratos de renovação do seu plantel
até antes do fim do tráfico negreiro289
.
287 CABRAL, Diogo de Carvalho. Op. cit.; p. 187. 288
Id. Ibid.; p. 193. 289
Id. Ibid.; p. 287.
86
Fazendo uso das plantas de mandioca, da água e da luz solar, os roceiros e
seus poucos escravos eram como que os “produtores humanos primários” do
ecossistema colonial [e imperial]. Eram eles que forneciam o alimento
básico do qual todas as outras atividades humanas dependiam. Mas, como
em qualquer estrutura trófica, havia perdas nas sucessivas transformações de
energia. (...) É claro que essa visualização da economia colonial [e imperial]
como uma estrutura de cadeia alimentar apela a muitas simplificações e
assunções, dentre elas a de que os roceiros de mandioca alimentavam todo o
resto da população. Ainda assim, a imagem é válida por nos lembrar que a
economia colonial [e imperial], como qualquer economia, também era uma
ecologia290
.
O grau da exploração a qual os escravos eram submetidos variava em função da
existência ou não de um mercado de escravos regulamente abastecido que possibilitasse a
substituição dos escravos do plantel a um preço aceitável – exercendo uma maior pressão
sobre os escravos no sentido do fornecimento do maior rendimento possível no tempo mais
curto – do grau de integração da economia considerada ao mercado internacional e do caráter
patrimonial ou capitalista da propriedade da terra e como explica Ciro Flamarion: “esta
diferença decorria do grau de desenvolvimento econômico e social das metrópoles, em
particular quanto às estruturas agrárias” 291
. Além dos fatores citados, para contextualizar
historicamente a forma que a economia escravista assumiu na América Portuguesa, vale
mencionar que Portugal nunca esteve na vanguarda da industrialização europeia e que sua
posição na economia global – diante de sua insipiente produção manufatureira que colocava o
país mais como um entreposto de outras praças europeias do que como produtor – exerceu
forte influência sobre o modo pelo qual era empreendida a exploração econômica e as
relações de produção que vigoraram no Brasil292
.
Conjuntamente com a posição na estrutura econômica e na política mundial, as
características internas do Brasil, sobretudo sua formação ecológica, contribuíram de modo
substantivo para a forma que a exploração escravista assumiu na América Portuguesa, pois:
A incrível capacidade regenerativa das florestas atlânticas ajudava os
senhores a explorar seus escravos, transformando-os em conversores de
energia de vida útil extremamente curta, mas também extremamente
lucrativos. (...) O escravismo utilizava o corpo humano como uma estratégia
de acumulação. Em contraste com o que ocorre no capitalismo, o empresário
tinha direitos legais não somente sobre a força de trabalho, mas sobre o
próprio corpo do trabalhador. (...) Funcionando, na verdade, como capital
constante – maquinaria – e não como capital variável – força de trabalho –, o
290
CABRAL, Diogo de Carvalho. Op. cit.; p. 218. 291
CARDOSO, Ciro Flamarion. Op. cit.; p. 112. 292
CABRAL, Diogo de Carvalho. Op. cit.; p. 157.
87
conjunto de corpos humanos trabalhadores constituía um estoque cujo
aumento significava, num sentido muito concreto, acumulação de riqueza293
.
Para o devido entendimento da economia escravista, é preciso compreender as
especificidades que definem suas relações de trabalho sem que tal análise ganhe precedência
sobre as relações de troca na explicação do caráter dessa economia, posto que as relações de
produção e de troca são processos sociais interdependentes e conceitualmente vinculados.
A produção material e a forma social de sua organização são dois aspectos
inseparáveis da atividade produtiva humana. Assim, a relação entre produção
material (a relação dos seres humanos com a natureza) e as relações sociais
de produção (as relações entre os seres humanos) não pode ser encarada
como externa e contingente. Trata-se, antes, de uma relação interna e
necessária. É interna porque cada aspecto só existe no e através do outro;
assim, ela é necessária no sentido de que o material e o social estão
inerentemente interligados, e nessa conexão um não é redutível ao outro. (...)
Podemos conceber a produção, a distribuição, a troca e o consumo como um
campo unificado de conceitos relacionais ligados pela forma mercadoria.
Cada termo se define mediante sua relação com os demais. A produção e a
troca, por exemplo, aparecem aqui como relações gerais e abstratas. Na
prática, porém, quaisquer exemplos particulares de produção ou troca são
organizados necessariamente mediante alguma forma social específica294
.
Em primeiro lugar é preciso entender que modo de produção é uma articulação
específica e historicamente dada entre um nível e um tipo de organização definidos das forças
produtivas e as relações de produção correspondentes, e a hierarquia e a articulação dos
diferentes modos de produção no seio de uma formação socioeconômico dependem de qual
deles é o dominante. Por isso, ao tratar da economia escravista do século XIX – cujo nível e
forma de organização das forças produtivas sujeitavam-se a uma dinâmica que se assentava
numa relação anteriormente colonial que influía em sua estruturação e funcionamento – é
preciso referir-se ao sistema capitalista, não encerrando deste modo a análise de tal economia
em um marco nacional, posto que as relações econômicas aqui tratadas possuíam conexões
geográficas não limitas por fronteiras nacionais295
. Assim:
As relações escravistas não são concebidas como separadas do ou anteriores
ao mercado mundial e à divisão internacional do trabalho. Não são vistas
nem como capitalistas, porque acarretam produção para o mercado, nem
como não-capitalistas, porque não são a forma de trabalho assalariado. Em
293
CABRAL, Diogo de Carvalho. Op. cit.; p. 485. 294 TOMICH, Dale W. Pelo prisma da escravidão: trabalho, capital e economia mundial. São
Paulo: Editora USP, 2011; p. 49. 295
CARDOSO, Ciro Flamarion; BRIGNOLI, Héctor Pérez. Op. cit.
88
vez disso, o trabalho escravo é tratado como parte da organização do
trabalho social em escala mundial. Constitui uma forma específica de
produção de mercadorias que se relaciona com outras formas semelhantes
através do mercado mundial e da divisão internacional de trabalho.
Sucessivamente, o mercado mundial e a divisão de trabalho continuam sendo
as condições contínuas de reprodução de relações escravistas. Essa
concepção da totalidade faculta-nos reconstruir a divisão mundial do
trabalho historicamente formada como uma relação entre processos materiais
específicos e formas sociais de trabalho em lugares particulares, integrados
pelo mercado mundial, mudando em relação um ao outro através do tempo e
do espaço. (...) Essa abordagem revela a totalidade complexa,
multidimensional e estruturada das relações que formam a economia
mundial capitalista. Podemos então reconstruir teoricamente o
desenvolvimento histórico de regimes escravistas particulares, locais, como
resultados de processos econômicos mundiais e diferenciar esses regimes
uns dos outros por sua posição dentro da totalidade político-econômica. A
especificidade dos regimes escravistas particulares contribui
simultaneamente para e revela a heterogeneidade espacial e temporal da
economia mundial capitalista. Desse modo, a escravidão revela a constante
assimetria, desigualdade tensão entre histórias locais particulares e os
diversos, porém unificados, ritmos temporais e tensões espaciais dos
processos econômicos mundiais296
. P.51
Por certo em todo o sistema histórico houve alguma produção para uso e outra para
troca, mas o sistema capitalista que se erigia no século XVIII com contornos relativamente já
bem definidos, pela primeira vez na História estabeleceu um modo de produção no qual a
maximização da criação de excedente era não só recompensada, mas estimulada como a razão
principal da produção social, tendo ainda uma parcela utilizada na a acumulação de capital. A
história da formação escravista na América foi moldada por sua inserção no mercado global e
esteve atrelada a evolução histórica do capitalismo moderno, já que a escravidão foi uma das
diversas formas de exploração econômica e dominação social associada ao desenvolvimento
histórico do capital e à fundação da economia mundial através de uma nova organização de
trabalho, comércio e poder que estabeleceu a Europa como o eixo de um inédito sistema
econômico que operava em escala global.
Todavia, como dito anteriormente, é estritamente necessário situar a economia
escravista em uma continuidade estrutural de longa duração dos processos históricos
formadores da modernidade capitalista sem abstrair as diferenças fundamentais de forma entre
as várias relações sociais de produção, que de outro modo, reduziria todos os fenômenos
econômicos a um conteúdo comum, a saber a lógica universal do cálculo de lucro e a criação
de mais-valor. Este procedimento teórico implicaria incorrer em grave erro histórico analítico
296
TOMICH, Dale W. Op. cit.; pp. 50-51.
89
ao eleger o que as mais diversas formas de relação de trabalho não-capitalistas têm em
comum em detrimento do que as diferencia:
Por isso a escravidão surge aqui simplesmente como uma dentre várias
formas de trabalho forçado que caracterizam arenas periféricas da economia
mundial. Dentro dessa estrutura, o termo mais geral, produção para o
mercado com base na compulsão do trabalho, recebe prioridade analítica em
detrimento das particularidades da escravidão como característica definidora
da periferia. Conquanto sirva para diferenciar a escravidão de tipos de
trabalho vigentes noutras zonas, essa categoria geral deixa de distinguir as
diversas formas de trabalho forçado existentes na periferia. (...) Assim, essa
estrutura conceitual constrói categorias fixas abstratas de produção e troca
que desconsideram a variação empírica e por isso operam
independentemente de qualquer conteúdo histórico específico. As premissas
da teoria conjugam uma visão funcionalista abstrata do capitalismo como
sistema com um individualismo metodológico igualmente abstrato. A
racionalidade individual de maximização do lucro da teoria neoclássica é
reproduzida aqui, não como um universal presumido, senão como limitado
pelo “sistema”. Por um lado, a concepção instrumental da teoria da mais-
valia fragmenta as relações sociais em miríades de indivíduos desagregados,
cada qual atuando em seu próprio interesse297
.
O exame da rentabilidade ou da racionalidade econômica no regime escravista pode
não fazer sentido se analisado de acordo com os parâmetros da sociedade capitalista, sendo
equivocada a identificação de um vínculo exclusivamente econômico entre senhor e escravo,
como o existente entre patrão e trabalhador assalariado no capitalismo, pois a racionalidade
econômica de cada sistema produtivo é socialmente condicionada e por isso possui um
sentido próprio e específico298
. Por certo o antagonismo entre o regime capitalista e o
escravista não se resumiam ao âmbito econômico, a sociedade burguesa se opunha à
escravidão e à servidão não só por razões econômicas ou morais, mas também por estas
relações de produção serem incompatíveis com a nova ética do trabalho e com a nova
sociedade de mercado fundamentada na busca livre do interesse individual, enquanto
proprietários de escravo apoiavam o sistema por acreditarem ser este o fundamento daquela
sociedade e o que definia seu status299
. Por isso:
Analisar um sistema como o escravista de um ponto de vista exclusivamente
econômico deforma a percepção que se pode ter do objeto de estudo. A
escravidão é a base de um sistema social especifico e o exame da agricultura
escravista tem de ser abordado em um contexto mais amplo. Tratando-se de
constatar as repercussões do sistema escravista sobre a sociedade, em seu
297
TOMICH, Dale W. Op. cit.; pp. 34-35. 298
CARDOSO, Ciro Flamarion; BRIGNOLI, Héctor Pérez. Op. cit. 299 HOBSBAWM, Eric. Op. cit.; p. 284.
90
conjunto, cumpre considerar entre outras repercussões as seguintes: um
baixo nível de acumulação de capitais; a propensão dos senhores ao
consumo de luxo; a monocultura; uma economia dependente e
consequentemente a perda de capitais em benefício de outras regiões do país
e do exterior, agravando a escassez de capital liquido por motivo da
sobrecapitalização do trabalho, uma economia cujo crescimento se dava em
extensão, em vez de ser qualitativo; uma ideologia antiurbana e
atiindustrialista dos donos das grandes lavouras, que dominavam o cenário
político e social; um mercado interno pouco importante; o papel secundário e
acessório das atividades industriais, bancárias e comerciais300
.
Todavia é importante salientar que quando tratamos do século XIX a comparação do
escravismo com o capitalismo era não apenas possível, mas também realizada, tendo em vista
que as concepções e elementos do capitalismo, já consolidado como o sistema dominante na
esfera mundial, penetravam cada vez mais em seus sistemas subordinados fomentando seu
processo de dissolução301
. Assim a insistência nesta ressalva sobre o enfoque teórico
metodológico a cerca da economia escravista é de suma importância para que a análise
empreendida não fragmente o nexo interno entre a escravidão, o mercado mundial e o
desenvolvimento capitalista e para que lance luz sobre a relação dialética entre as origens da
escravidão na economia mundial e as origens escravistas da economia mundial302
. Por fim,
cabe enfatizar que:
Mesmo que o sistema escravista fosse fruto de uma demanda exclusivamente
cultural – algo que parece difícil de sustentar -, sua reprodução continuaria
dependendo de certas estruturas e dinâmicas materiais. Em outras palavras,
não importaria muito que os coloniais desejassem se distinguir socialmente
pela posse de escravos se a economia concreta advinda de sua utilização não
fizesse sentido, ecologicamente. Mas o que a história ambiental nos ensina é
que, de fato, fazia muito sentido. O corpo humano é um excelente conversor
de energia: ele consegue transformar 18% do alimento ingerido em energia
mecânica, enquanto o cavalo, por exemplo, só alcança 10%. Isso significa
que, se você alimentar um humano e um cavalo com a mesma quantidade de
calorias, o humano será capaz de trabalhar quase o dobro de que o equino.
Controlar grandes contingentes humanos significava controlar um exército
de eficientes conversores de energia303
.
O século XVI foi decisivo para a formação da moderna economia capitalista mundial
em razão da abertura de novos mercados perpetrada pelas conquistas europeias que
estabeleceu uma divisão internacional do trabalho e do estabelecimento da escravidão racial
300
CARDOSO, Ciro Flamarion; BRIGNOLI, Héctor Pérez. Op. cit. 301
CARDOSO, Ciro Flamarion. Op. cit.; p. 163. 302
TOMICH, Dale W. Op. cit.; p. 36. 303
CABRAL, Diogo de Carvalho.Op. cit.; p. 190.
91
como nova forma de produção de mercadorias. Entretanto cabe ressaltar que a economia
mundial ainda no século XIX congregava uma vasta gama de formas de trabalho e diversos
grupos de produtores e estabelecia condições específicas de interdependência material e social
entre eles. Deste modo a produção se realizava por intermédio da divisão do trabalho em
escala mundial e a troca de mercadorias equiparava várias formas de trabalho social e
processos de produção materiais ao tornar abstrato tanto o trabalho assalariado quanto o não-
assalariado304
, o que, de certa forma fez com que o mercado contribuísse pra a formação de
uma unidade sistêmica da economia social histórica. Apesar disso :
Diferentes relações produtivas – senhor e escravo, senhor e servo, burguês e
proletário – organizam e estruturam o processo do trabalho de maneiras
distintas. Como os estudiosos que escrevem na tradição marxista há muito
tempo vêm afirmando, cada uma dessas formas especifica uma relação
particular com a natureza, modos particulares de produção e apropriação de
excedente e relações e conflitos de classe particulares. Formas específicas de
relações de produção sociais vêm assim a definir padrões característicos de
desenvolvimento socioeconômico. A atenção à especificidade das formas de
produção social nos permite compreender a economia mundial não
simplesmente como a soma das suas partes ou como uma abstração sobre e
acima delas, mas como relações distintas entre formas sociais particulares e
processos de produção materiais, integrados uns aos outros mediante modos
definidos de troca e poder político – como uma totalidade estruturada e
diferenciada que muda ao longo do tempo305
. P.72
O capitalismo foi gestado pelo mercantilismo, posto que o comércio do século XVI foi
o ponto de partida do capital que engendrou os pressupostos históricos da relação capital-
trabalho assalariado, pois foi por meio das políticas mercantilistas que os Estados Nacionais
expandiram pela força os seus mercados, estimularam a produção e promoveram a
acumulação da riqueza nacional. Por certo o sistema capitalista moderno se desenvolveu em
função dessa expansão dos mercados e de sua integração cada vez maior que colocou uma
massa de mercadorias em circulação e dava contornos cada vez mais definidos à divisão
internacional do trabalho, todavia o capital não requer a escravidão como condição necessária
– ao menos teoricamente –, sendo tal forma de exploração uma contingência externa à sua
lógica. Contudo, historicamente a escravidão desempenhou uma função crucial na expansão
da produção de mercadorias, sendo assim substancial para a fundação das bases de um
304
TOMICH, Dale W. Op. cit.; p. 71. 305
Id. Ibid.; p. 72
92
mercado mundial que forneceu condições para o desenvolvimento da forma capital-trabalho
assalariado306
. Por certo:
A organização de uma economia de bases novas não podia ocorrer sem: que
existisse um mercado mundial suficientemente desenvolvido, com países
industriais que consumissem matérias-primas e países periféricos que
absorvessem produtos manufaturados e isto dependia, basicamente, do
desenvolvimento do capitalismo industrial o que foi alcançado somente na
segunda metade do século XIX quando a Inglaterra começou a consumir
matérias primas em grande escala. E que também houvesse a consolidação
de um Estado Nação sob o governo dos grupos sociais interessados nos
setores produtivos dedicados ao mercado mundial, cuja estruturação
correspondesse às necessidades de funcionamento do novo tipo de produção
para exortação. Isto pressupunha garantir uma oferta adequada de fatores de
produção – terras e mão de obra principalmente –, dotando ainda a economia
do capital social básico indispensável: estrutura financeira, comunicações,
portos, vias térreas307
.
A antiga divisão do trabalho entre metrópole e colônia estabelecia por meio de
monopólios, privilégios e restrições determinados e impostos politicamente pela metrópole, a
direção dos fluxos das mercadorias, o que garantia o controle sobre a produção colonial e
também um mercado protegido para sua indústria. Assim esse sistema manifestava os limites
da produção e troca de mercadorias e a parcela do mercado mundial do período, entretanto
esta estrutura de mercado fomentou uma produção mundial de matérias-primas coloniais que
crescia de forma lenta, mas constante.
Todavia a emergência da hegemonia econômica e política britânica no cenário
mundial fez com que essa forma de organização da economia na qual os produtores coloniais
se viam livres de competir entre si ruísse, instaurando o controle econômico em detrimento do
político sobre o fluxo de mercadorias308
. Destarte esta reestruturação do mercado mundial se
deu no bojo dos processos de industrialização, urbanização e crescimento populacional tendo
em vista que:
O avanço da industrialização na Europa e na América do Norte mudou o
padrão de demanda no mercado mundial no curso desse período. A indústria
moderna requeria novas matérias-primas num escopo e escala sem
precedentes, enquanto o crescimento da população e o desenvolvimento das
classes média e trabalhadora predominantemente urbanas na Europa se
associaram a novos padrões de consumo que aumentaram a dependência da
Europa em relação aos produtores periféricos de gêneros alimentícios.
306
TOMICH, Dale W. Op. cit.; p. 45. 307
CARDOSO, Ciro Flamarion; BRIGNOLI, Héctor Pérez. Op. cit. 308
TOMICH, Dale W. Op. cit.; p. 84.
93
Embora sua importância relativa haja declinado, em termos absolutos o
açúcar continuou sendo um item-chave do comércio mundial. Ao lado dele,
o algodão e o café assumiram nova importância comercial. A produção e o
consumo desses artigos aumentaram numa escala maciça no decorrer do
século, e sua importância cresceu309
.
Em muitas formações socioeconômicas anteriores à Era Industrial a exploração
escravista brutal foi uma solução eficiente para o problema de escassez de energia, o que
começou a mudar a partir do uso de combustíveis fósseis na Europa ocidental. Tais
combustíveis foram um dos elementos que pressionaram a abolição do trabalho servil e
escravo na medida em que impulsionaram o desenvolvimento das forças produtivas que
ocorreram no bojo da reorganização social da produção nos países europeus que se
industrializavam310
. Desta forma, ainda que os combustíveis fósseis não tenham desencadeado
a Revolução Industrial, eles foram figurativa e literalmente seu combustível, dando um
impressionante impulso a tal processo, já que:
O carvão mineral deu à Grã-Bretanha combustível equivalente à produção de
15 milhões de acres extras de floresta para queimar, uma área quase do
tamanho da Escócia. Perto de 1870, a queima do carvão na Grã-Bretanha
gerava tantas calorias quantas teriam sido gastas por 850 milhões de
trabalhadores. Era como se cada trabalhador tivesse 20 servos a seu serviço.
A capacidade das máquinas à vapor do país era equivalente a 6 milhões de
cavalos ou 40 milhões de homens, que, de outra forma, teriam comido três
vezes toda a produção de trigo. Assim foi que muita energia foi controlada
para ser aplicada na divisão do trabalho. Isso mostra o quão impossível teria
sido a tarefa do milagre da Grã-Bretanha no século XIX sem os
combustíveis fósseis311
.
Todavia paradoxalmente o recrudescimento da escravidão na América no século XIX
e sua transformação de uma forma mais ou menos patriarcal em um sistema de exploração
comercial constituiu-se como o resultado histórico da expansão material da economia mundial
europeia, sendo assim em grande parte constituída pela economia capitalista mundial e
tornando-se ela mesma produtora de capital na medida em que estabeleceu uma produção
sistemática direcionada ao mercado, ainda que preservasse suas características particulares
que se baseavam, sobretudo, numa relação de trabalho não remunerada. Consequentemente
produtos alimentícios baratos e matérias-primas industriais produzidos por formas de trabalho
309
TOMICH, Dale W. Op. cit.; p. 84. 310
CABRAL, Diogo de Carvalho. Op. cit.; pp. 192-193. 311
RIDLEY, Matt. O otimista racional. Rio de Janeiro: Record, 2014; p. 237.
94
não assalariadas assentaram-se como a condição de renovação da relação capital-trabalho
assalariado.
A expansão das economias de exportação supunha uma intima vinculação econômica
entre países industriais e países periféricos, posto que a economia mundial desenvolve-se por
meio da incorporação de zonas geográficas e ambientes naturais específicos. Os centros
emergentes de produção escrava encontravam-se cada vez mais integrados à produção
industrial impelidos pela acumulação ilimitada do capital e deste modo, no decurso do século
XIX, a escravidão expandiu-se vigorosamente nas áreas atrasadas para atender a crescente
demanda mundial de algodão, açúcar e café. Por conseguinte:
A demanda de algodão, café e açúcar atingiu proporções sem precedentes
durante o século XIX, e a produção dessas safras revitalizou a escravidão em
Cuba, nos Estados Unidos e no Brasil como parte dessa emergente divisão
capitalista internacional do trabalho. Isso se refletiu na escala e na natureza
da própria produção escrava. Vastas extensões de terra foram abertas, e
milhões de escravos postos a trabalhar na produção dessas safras. A nova
tecnologia industrial – em especial a estrada de ferro, o navio e os engenhos
a vapor – transformaram o processo do trabalho nas novas fronteiras
escravas312
.
A revolução energética dos combustíveis fósseis transformou as viagens de longa
distancia ao reduzir o tamanho da tripulação, o tempo de permanência nos portos e
subsequentemente os custos de trabalho. A hegemonia econômica britânica e o controle de
sua marinha no Atlântico induziram a diminuição dos conflitos armados, o que contribuiu
para a diminuição dos custos de seguro e da quantidade de armamentos, que se traduzia numa
redução do custo de capital313
, e somado a isso, o fim do mercantilismo assinalado pela
dissolução de pactos coloniais e pela ascensão do liberalismo induziram ao barateamento e a
subsequente difusão do consumo de café.
De uma produção limitada à subsistência, a cafeicultura tornou-se uma atividade
indutora de mudanças globais, posto que sua exportação converteu-se num motor de
transformações sociais que a partir de meados do século XIX conduziu áreas periféricas à
economia mundial314
. Destarte a cafeicultura fomentou um circuito comercial internacional
que se assentava na importação de conversores energéticos na forma de humanos
312
TOMICH, Dale W. Op. cit.; p. 89. 313
CABRAL, Diogo de Carvalho. Op. cit.; p. 385. 314
CLARENCE-SMITH. Introduction: Coffee and the global development. In: CLARENCE-SMITH,
WILLIAM; TOPIK, Steven (org.). The Global Coffee Economy in Africa, Asia and America
Latina, 1500-1989; p. 04.
95
escravizados da África e na exportação de energia na forma de café para a Europa e Estados
Unidos e que era consumado à custa de intensa degradação humana e ecológica, mas como
bem colocado por Warren Dean “a conservação dos recursos naturais iria mostrar-se
irrelevante em uma sociedade na qual a conservação da vida humana era irrelevante” 315
.
Obviamente a baixa densidade populacional e a vastidão de terras da América
comparativamente com a Europa exerciam pressões bem diferentes em termos de tipo e
intensidade sobre as economias e relações de produção postas em prática em terras
americanas. Na Mata Atlântica a reprodução simples das lavouras eram inteiramente
submetidas à fertilidade do solo que não sustentava o mesmo rendimento por mais do que três
ou quatro anos e como a inversão de trabalho na recuperação da fertilidade do solo nunca foi
uma opção levada à sério, o movimento de ampliação das lavouras assentava-se na abertura
de novos campos através da derrubada e queimada da floresta. Para tal economia baseada no
trabalho compulsório e na fronteira aberta o controle da mão de obra era mais importante que
o manejo da terra316
.
Para que este sistema se tornasse viável era necessário que a classe dirigente agrária
implementasse mecanismos que lhe permitissem o controle sobre a terra ou sobre o
trabalhador direto devido a baixa relação população-terra que permitia ao produtor direto
sobreviver mediante um sistema de uso da terra que lhe exigia um pequeno tempo de trabalho.
Por conseguinte, para que este produtor trabalhe além do tempo de trabalho
necessário para a reprodução de sua vida material e para que este trabalho
excedente se converta em trabalho extorquido, é necessário a existência de
um daqueles mecanismos acima referidos. Ou melhor, a classe dominante
deve imprimir mecanismos de controle sobre o trabalhador, sejam eles
diretos – escravidão – ou mediatizados pela terra317
.
Por conseguinte este sistema de uso da terra viabilizava a produção de alimentos no
interior da fazenda de café por representar uma baixa inversão de trabalho por alqueire,
possibilitando que sua reprodução fosse feita parcialmente à margem do mercado e, por
conseguinte, permitindo que o trabalhador direto dedicasse a maior parte da jornada de
trabalho à materialização do trabalho excedente ainda que o nível das forças produtivas deste
sistema agrário estabelecesse um delicado equilíbrio entre o tempo de trabalho necessário e o
315 DEAN, Warren. Op. cit.; p. 75. 316
CABRAL, Diogo de Carvalho. Op. cit.; p. 484. 317
FRAGOSO, João. Op. cit.; p. 95.
96
excedente318
. No sistema agrário da economia de exportação do café a incorporação de mais
força de trabalho se dava pelo tráfico de escravos em detrimento do crescimento demográfico
o que de acordo com Fragoso “além de conferir um traço peculiar à racionalidade desta forma
de produção, imprimia um ritmo próprio à demografia local, no que diz respeito à sua
distribuição por sexo e idade” 319
. Assim sendo é possível concluir que:
O regime escravista brasileiro constituiu – para utilizar uma expressão do
historiador e antropólogo Karl Polanyi – um verdadeiro “moinho satânico”
que triturava humanos, terra, animais, plantas, transformando-os em uma
massa coesa e palatável destinada ao mercado internacional. De fato, as
colônias plantacionistas da América tropical produziram um curioso
paradoxo: quanto mais rápido o crescimento econômico, menor o
crescimento natural da população. (...) O sistema “gastava” avidamente seus
próprios trabalhadores. Desequilíbrio sexual no fornecimento de escravos
pelo tráfico, preferência generalizada pelas mulheres quando se tratava de
alforriar, altíssimos níveis de mortalidade infantil – possivelmente
ocasionados pela dependência alimentar em relação à mandioca – altos
custos e riscos inerentes à gestação e criação de crianças, maus-tratos e
sobretrabalho: tudo isso impedia a reprodução e a expansão dos plantéis por
meios vegetativos320
.
2.4 Condicionamentos biofísicos e sociais na formação do sistema agrário cafeicultor
Um sistema agrário pode ser definido como a relação dialética entre o ecossistema
cultivado – que surge como a interação entre elementos culturais e naturais que encampam
uma gama de variáveis como o clima, relevo, vegetação, solo, etc. de um espaço delimitado
sob o domínio de processos históricos referentes a um determinado tipo de metabolismo
social – e o sistema social produtivo – que compreende as formas de acesso à terra, os meios
de trabalho, as técnicas e relações de produção e o capital –. Em suma, é um modo de
exploração dos recursos naturais, historicamente constituído através de formas socioculturais
e institucionais que caracterizam determinado trato da lavoura e que são organizados, em
parte, de acordo com as especificidades do ambiente natural em questão, o que interfere de
maneira decisiva na conformação das atividades agrícolas estabelecidas321
.
318
FRAGOSO, João. Op. cit.; p. 100. 319
Id. Ibid.; p. 40. 320
CABRAL, Diogo de Carvalho. Op. cit.; p. 483. 321
SMITH, T. Lynn. Sistemas Agrícolas. Revista Brasileira de Geografia. Ano IX, Nº 2, Abr-Jun,
1947.
97
Sistema agrário é um conceito dinâmico que pode ser definido de acordo com os
parâmetros específicos de marcos espaciais e temporais de cada pesquisa. Em todo caso, por
certo, não apenas o sistema social produtivo se constitui como um elemento historicamente
definido, mas também a paisagem agrária – o ecossistema cultural de um sistema agrário –,
ainda que englobe as características geofísicas da região em foco, apresenta-se também como
produto da ação humana e é o conjunto de tais composições naturais e humanas que conferem
a identidade dos processos que definem e que se realizam em um sistema agrário. Nas
palavras de João Fragoso “o sistema agrário diria respeito às formas históricas de produção
agrária, sendo que em seu interior, as relações de produção corresponderiam a um
determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais322
”.
A ocupação do território brasileiro historicamente se organizou através de um
esquema ambientalmente devastador, já que a ampla disponibilidade de terras e o uso da força
escrava perpetraram técnicas e instrumentos de produção rudimentares e uma mentalidade de
que o meio ecológico devia ser domesticado e a terra gasta e arruinada sem dispêndio de
trabalho para a recuperação de sua fertilidade. Os colonizadores portugueses encaravam a
Mata Atlântica como um mundo inesgotável em perspectiva das limitações ecológicas de sua
região de origem, o que gerava uma percepção de fronteira aberta à ocupação social e à
produção econômica. Tal sistema acabava por perpetuar tanto a economia quanto a estrutura
social colonial, já que sempre que o limite da capacidade de sustentação ecológica era
atingido, a fronteira da ocupação colonial do território brasileiro era estendida.
A produtividade do mundo natural tropical brasileiro fomentou uma apropriação
parasitária de seus elementos por parte dos invasores europeus e seus herdeiros culturais. A
escassez de capital, ausência de créditos rurais, baixa densidade populacional e desinteresse
pelo trato cuidadoso de uma terra com a qual não havia nenhuma identidade histórica nem a
intenção de se construir um novo vínculo duradouro – como ocorre em colônias de
povoamento baseada, em geral, na pequena propriedade e economia de subsistência –
engendrou um tipo de ocupação efêmera fundada em práticas extensivas. Isso explica, por
exemplo, a intensificação das técnicas tradicionais dos povos nativos por parte dos colonos ao
aplicar a agricultura de queimada indígena em territórios muito mais extensos e em intervalos
de tempo muito menores, o que não dava a chance da floresta se regenerar. Sendo assim o uso
de queimadas foi praticamente o único método de preparação dos campos de plantio a vigorar
no país até o fim do século XIX.
322
FRAGOSO, João. Op. cit.; p. 04.
98
Essa opção por métodos fáceis e predatórios não pode ser dissociada da
imagem de uma fronteira permanentemente aberta. É significativo observar,
nesse sentido, que a implementação de melhorias nas fornalhas dos
engenhos, passando a utilizar o próprio bagaço da cana, ocorreu de forma
precoce nas ilhas do Caribe, onde a sensação de fechamento da fronteira e de
esgotamento das florestas derivava de um óbvio condicionamento
geográfico323
.
Percebe-se assim a importância dos condicionamentos biofísicos no modo como é
realizada a apropriação dos recursos naturais para o desenvolvimento das forças produtivas e
para a organização político-jurídica de uma formação social. Assim, no Brasil, a percepção de
que os recursos naturais eram praticamente inesgotáveis induziu uma facilitação na concessão
de terras para a elite colonial e dessa forma, a fronteira da ocupação colonial no território
brasileiro não era estendida apenas através da ocupação informal, antes disso, era amparada
por um fator jurídico-institucional na forma do atendimento das constantes requisições de
novas sesmarias324
. Assim:
Tendo por base uma baixa relação população-terra e traços de um sistema de
uso da terra que é anterior à própria colonização europeia, se ergue um
sistema agrário historicamente definido ligado ao mercado externo. E é
correspondendo ao nível das forças produtivas presente no interior daquele
sistema agrário, que são articuladas as relações de produção325
.
A produção agrícola era sustentada menos no investimento técnico e material que na
“resiliência ecológica” das florestas – ciclo de regeneração da floresta após cada abandono
dos campos cultivados –. Dessa forma, de acordo com Diogo Cabral, “o latifúndio sempre
constituiu, ao menos em parte, uma estratégia econômica para permitir, pelo pousio, a
recuperação das terras florestadas dentro dos limites de uma mesma propriedade” 326
, pois
mais que a qualidade e até que a produtividade, os fazendeiros prezavam a economia de
trabalho e capital. Portanto a necessidade de abrigar ciclos de pousios dentro da mesma
unidade produtiva pode ser considerado como um dos fatores na formação do sistema agrário
brasileiro. Assim percebe-se que:
323 PÁDUA, José Augusto. Um sopro de destruição: pensamento político e crítica ambiental no
Brasil escravista (1786-1888). Op. cit.; p. 74. 324
Id. Ibid.; p. 74. 325
FRAGOSO, João. Op. cit.; p. 164. 326
CABRAL, Diogo de Carvalho. Op. cit.; p. 127.
99
(...) a postura de depender ao máximo da natureza, dentro dos limites de uma
economia voltada para o mercado, esteve bastante disseminada na formação
econômica do país. Em muitos casos isso significou depender da renovação
espontânea dos estoques naturais327
.
Todavia, há de se fazer uma importante observação: o sistema agrário cafeicultor,
ainda que fosse um sistema de derrubada-queimada, neste ponto específico se diferenciava do
sistema de longo pousio onde há a possibilidade de retorno da produção em um espaço
delimitado da unidade agrária após o tempo necessário ao ciclo de reflorestamento. Isso
porque o sistema extensivo do solo adotado pela cafeicultura suprimia o período de tempo
necessário ao reflorestamento através de uma fronteira agrícola móvel fundada na
incorporação de novas áreas de cultivo, já que a disponibilidade de terras com matas virgens
fazia com que a frequência do cultivo ou a rotação de áreas para o descanso não fosse
efetivamente adotada328
. Tal diferença surge em decorrência da diferença brutal na escala de
produção exigida pelo mercado internacional de café em comparação à demanda de alimentos
que fomentava um mercado insipiente e pouco articulado – frente ao mercado global de
commodities – de produção de gêneros de subsistência. Por isso:
(...) a despeito desses registros de desatamento local e conflito
socioeconômico, tudo leva a crer que a perda maciça e acachapante de
floresta seja um fenômeno do século XX. Estimativas sugerem que, até
meados do século XIX, os neobrasileiros – isto é, os integrantes da
população produzida pela mestiçagem biológica e/ou cultural entre nativos e
adventícios – converteram não mais do que 8% do bioma Mata Atlântica em
lavouras, pastos e áreas urbanas329
.
Desta forma a escala inédita de devastação que ocorria em função do abastecimento do
mercado global de café que crescia vigorosamente aliada à lógica de maximização de ganho
econômico a despeito de qualquer cuidado na recuperação da terra fez da cafeicultura um
verdadeiro catalizador na conversão da biomassa florestal em paisagens humanizadas
permanentes.
Retomando a discussão, há ainda a questão do domínio do braço escravo, fator
considerável na constituição das opções técnicas e organizativas que moldaram a agricultura
rudimentar e extensiva praticada em terras brasileiras. A baixa densidade demográfica tinha
327
PÁDUA, José Augusto. Um sopro de destruição: pensamento político e crítica ambiental no
Brasil escravista (1786-1888). Op. cit.; p. 76. 328
CANABRAVA, Alice Piffer. A Grande Lavoura. IN: HOLANDA, Sérgio Buarque de. (ORG.)
História Geral da Civilização Brasileira. São Paulo: Difel, Tomo 2, Vol.4, 1974. 329
CABRAL, Diogo de Carvalho. Op. cit.; p. 45.
100
por um lado a ampla oferta de terras e por outro a escassez de mão-de-obra, o que induziu o
trabalho forçado e o domínio do latifúndio, o que por sua vez agravou ainda mais a falta de
cuidado com a terra, já que tal relação social de produção não estabelecia um consórcio do
trabalhador com a terra.
O sistema agrário da economia de exportação delineou-se a partir de uma baixa
demografia de força de trabalho, o que se constitui como um dos elementos que induziram o
recrudescimento do comércio transatlântico de escravos e à organização de outras formas pré-
capitalistas de trabalho no pós-abolição; um sistema de uso extensivo da terra; e técnicas e
instrumentos agrícolas rudimentares. Deste modo o caráter extensivo da reprodução de tal
sistema agrário, não estimulava a inovação técnica e o desenvolvimento das forças produtivas
por assentar-se sobre um sistema de uso da terra que possibilitava uma pequena inversão de
trabalho por alqueire, o que, por sua vez, representava uma importante economia de tempo de
trabalho dada a baixa relação população/ terra. Assim as matas usualmente substituíam o
dispêndio de trabalho na recuperação da fertilidade do solo, o que se verificava tanto na
agricultura de alimentos como na de exportação330
.
Contudo a análise deste quadro não estará completa enquanto não for considerada –
juntamente com a composição regional da terra, do trabalho e do capital – a dinâmica política
no que se refere às relações estabelecidas entre fazendeiros, trabalhadores escravizados e o
Estado Nacional posto que:
A formação da cafeicultura escravista brasileira dependeu de ações políticas
concertadas, no plano da esfera nacional, para criar as condições
institucionais necessárias para o arranque da atividade e o consequente
controle do mercado mundial do artigo. Essas ações incidiram
fundamentalmente no campo da política da escravidão. O período de
montagem das grandes unidades cafeicultoras do Vale Paraíba avançou na
fase de ilegalidade do tráfico negreiro transatlântico (1835-1850), com a
aquisição de escravarias que, de acordo com a lei imperial de 7 de novembro
de 1831, seriam formalmente livres. Sem a existência de um quadro interno
que desse segurança política e jurídica aos senhores possuidores de africanos
ilegalmente escravizados, certamente o Brasil não despejaria nos portos e
armazéns do hemisfério norte as sacas de café com as quais dominou o
mercado mundial do produto no século XIX331.
No sistema agrário cafeeiro, assentado na extorsão de sobre-trabalho e orientado para
o mercado externo, os processos produtivos no interior da fazenda combinavam a agricultura
330
FRAGOSO, João. Op. cit.; p. 08. 331
MARQUESE, Rafael; TOMICH, Dale. O Vale do Paraíba escravista e a formação do mercado
mundial do, café no século XIX. In: Grinberg, Keila; Salles, Ricardo (orgs.). Coleção O Brasil
Império, Volume 2 (1831-1870). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008; p. 04-05.
101
de alimentos e de exportação, o que engendrava a associação do trabalhador direto aos meios
de produção, que por sua vez assinalava o caráter não-capitalista das relações de produção.
Assim, no interior das unidades agroexportadoras de café, as áreas em capoeira
caracterizavam-se como:
(...) terras que foram utilizadas pela lavoura do café e que convertidas em
vegetação secundária poderiam ser empregadas, depois de um certo tempo
de pousio, para a produção das lavouras de alimentos. Por outro lado, as
capoeiras podem também indicar o sistema de rotação de terras – sistema de
roça – na cultura de alimentos332
.
A fronteira do café avançava em dois âmbitos a partir de um processo de reprodução
simples e de um ampliado. Ou seja, em um primeiro momento a fronteira interna compreendia
o avanço espacial de áreas recém-incorporadas ao cultivo sobre as áreas de reserva em mata
virgem contidas no interior das unidades produtivas que garantiam o processo de reprodução
simples da produção cafeeira por um determinado período. O outro âmbito em que atuava a
fronteira do café referia-se ao movimento de reprodução em escala ampliada no qual o
movimento realizado pela agricultura no interior da unidade produtiva podia ser percebido na
região do Vale do Paraíba fluminense inicialmente e posteriormente em regiões contíguas
como a Zona da Mata mineira.
Por certo esta reprodução extensiva possuía seus limites, já que o modo de uso da terra
vigente implicava na redução do tempo de trabalho agrícola à custa do aumento da superfície
cultivada, o que gera no tempo um processo de degradação que se traduz como a diminuição
da capacidade de reprodução que uma unidade produtiva possui em potencial.
O conceito de degradação, por outro lado, nos permite reter a relação entre
sistema agrário e região. Tendo em conta a inexistência de um período de
pousio e que a lógica deste sistema agrário liga-se à presença da fronteira
móvel, a reprodução simples da fazenda é ao mesmo tempo a redução das
suas possibilidades e existência. Feita pela incorporação de mais terras, a
fazenda da café neste sistema agrário tem o seu período de vida vinculado à
presença das matas virgens. E o mesmo pode ser dito para uma região
historicamente definida. Com isso pretendemos dizer que há no tempo uma
disjunção entre a região e o seu sistema agrário, enquanto a primeira tem sua
vida limitada a uma área circunscrita e o segundo tem a sua existência ligada
à fronteira, podendo assim, ultrapassar os limites daquela, indo em direção a
outras regiões333
.
332
FRAGOSO, João. Op. cit.; p. 04. 333
Id. Ibid.; pp. 94-95.
102
Conforme a economias agroexportadoras de café se expandiam, tal sistema agrário se
perpetuava e era adotado em novas regiões, pois seu movimento de reprodução em escala
ampliada baseava-se numa fronteira agrícola móvel que incorporava áreas “vazias” e mais
força de trabalho com relativa autonomia em relação à demografia local graças ao
abastecimento de mão-de-obra ofertado pelo tráfico transatlântico de escravos334
. Em suma, a
lógica interna do sistema agrário cafeicultor assentava-se na fronteira móvel e numa baixa
demografia populacional. Por conseguinte a fronteira agrícola deve ser compreendida não
apenas enquanto uma dimensão geoespacial relativa ao processo de interiorização da
produção agrícola, já que tal movimento também perpetua um determinado sistema agrário do
qual ela é parte integrante. Assim a fronteira caracteriza-se também enquanto construção da
paisagem social sobre a qual se constitui um ecossistema cultural e um sistema social
específicos335
.
Por certo estas disposições culturais que constituíram o sistema agrário brasileiro
formaram-se, em parte, a partir de circunstâncias ecológicas que possibilitaram tal arranjo.
Assim a agricultura praticada no Brasil pôde se desenvolver satisfatoriamente ainda que com
instrumentos e técnicas rudimentares, graças à vitalidade ecossistêmica proporcionada pelo
calor e umidade do trópico336
. Portanto a herança do sistema agrário colonial moldou a
cafeicultura brasileira, fazendo com que o café fosse cultivado e comercializado nas mesmas
condições que vigoravam, por exemplo, na economia do açúcar.
O café passou a ser o produto das grandes fazendas doadas em sesmarias,
enquanto a côrte portuguesa residia no Rio de Janeiro. Na verdade, o café foi
a salvação da aristocracia colonial. Foi também a salvação da corte imperial
cambaleante, que, assediada por rebeliões regionais e duramente pressionada
a pagar pelas burocracias civil e militar necessárias para consolidar o Estado,
foi resgatada pelas receitas do café que afluíram para a alfândega do Rio de
Janeiro337
.
Enquanto em outros lugares e climas o cafeeiro era habitualmente cultivado na sombra
com o objetivo de mimetizar seu habitat original e assim melhorar sua qualidade, no Brasil a
floresta era inteiramente destruída na preparação do plantio. Deste modo o solo fértil da
floresta virgem e a escassez de capital e trabalho levava a Mata Atlântica a ser preterida no
334
FRAGOSO, João. Op. cit. ; p. 04. 335
FREITAG, Liliane. Fronteiras: espaços simbólicos e materialidades. IN: OLINTO, Beatriz
Anselmo; MOTTA, Márcia Menendes; OLIVEIRA, Oséias de (ORG.). História agrária:
propriedade e conflito. Guarapuava: Unicentro, 2008, p.313-16. 336
CABRAL, Diogo de Carvalho. Op. cit.; p. 487. 337 DEAN, Warren. Op. cit.; p. 194.
103
processo de constituição dos cafezais e em vez de se preservar parte do dossel nativo,
plantavam-se culturas intercalares de subsistência entre os cafeeiros, devido ao tempo de
cinco anos necessário ao amadurecimento da rubiácea.
Mesmo sendo o cafeeiro uma planta perene – permanecendo produtiva por cerca de 25
anos – seu cultivo não engendrava um regime agrícola de perspectivas estáveis , sendo as
plantações velhas habitualmente abandonadas em prol da incorporação de novas faixas de
florestas primárias. Nas palavras de Warren Dean “o café avançou, portanto, pelas terras altas,
de geração para geração, nada deixando em seu rastro além de montanhas desnudadas338
”.
As exigências ecológicas dessa planta etíope colocavam os limites físicos
para a reprodução do sistema de plantation e, portanto, para a estabilidade
do império. A planta encontrou na província do Rio de Janeiro um ambiente
adequado, se não ideal, para o seu cultivo. Exige precipitação pesada de
chuvas, de 1300 a 1800 milímetros por ano, porque transpira continuamente
e, como uma árvore do sub-bosque, não tem nenhum mecanismo para
armazenar ou conservar umidade. Submetida a uma estação seca em seu
hábitat nativo, retira umidade do solo a profundidades consideráveis – três
metros ou mais – como reserva de água. O café a princípio plantado ao longo
do litoral, onde pode ter sofrido um pouco com os ventos salinos oceânicos,
Logo foi transferido para o planalto um pouco mais fresco, onde se dispõe de
uma temperatura ótima de 20° a 24°C339
.
De sua origem nos altiplanos da Etiópia, após séculos de sucesso comercial em outras
paragens, finalmente o cafeeiro conquistou as “meias- laranja” do Vale do Paraíba onde se
espalharia triunfante, convertendo a região montanhosa da Mata Atlântica num imenso campo
tomado por cafeeiros. O “mar de colinas” característico do relevo marcado por ondulações da
região possuía um clima úmido e apresentava um solo laterítico, geralmente de aspecto
avermelhado, e como informa João Fragoso “a cor do solo, ao lado de sua altitude seria um
dos critérios utilizados pelos futuros fazendeiros de café para a apreensão da qualidade das
terras340
”.
Todavia apesar de sua fertilidade, estes solos lateríticos são sujeitos a se esgotarem
rapidamente, o que implica que após um certo período de cultura, as terras da região
compostas por este tipo de solo tornavam-se impróprias para à continuidades dos trabalhos
agrícolas em razão da perda de elementos constitutivos essenciais341
. Tal esgotamento
implicava no avanço do processo de degradação das unidades cafeicultoras e, por
338
DEAN, Warren. Op. cit.; p. 195. 339
Id. Ibid.; p. 195. 340 FRAGOSO, João. Op. cit.; p. 12. 341 Id. Ibid; p. 13.
104
conseguinte, na instauração de uma falha metabólica que comprometia severamente o
equilíbrio natural dos ciclos biogeoquímicos daqueles ecossistemas agrícolas. Deste modo o
sistema social produtivo baseado no latifúndio e em formas de trabalho não-capitalistas girava
as engrenagens deste sistema agrário devastador que impunha a marcha destrutiva da
produção de bens primários de exportação em regime de fronteira aberta que devastava as
áreas em mata virgem.
Sempre que essa terra dava sinais de esgotamento, se justificava, do ponto de
vista do empresário, abandoná-la, transferindo-se o capital para solos novos
de mais elevado rendimento. A destruição de solos que, do ponto de vista
social, pode parecer inescusável, do ponto de vista de um empresário
privado, cuja meta é obter o máximo de lucro de seu capital, é perfeitamente
concebível. A preservação do solo só preocupa o empresário quando tem um
fundamento econômico342
.
Como foi discutido anteriormente, o café brasileiro era de baixa qualidade e isso se
devia, entre outras coisas, aos métodos de plantio que, como foi abordado, comprometiam não
só a qualidade do produto, mas afetavam de forma deletéria os ecossistemas, comprometendo
assim a própria lavoura. Um destes métodos, por exemplo, consistia na pratica de plantar o
cafezal em linhas retas e verticais para facilitar a vigilância sobre o trabalho dos escravos, o
que contribuía consideravelmente para a erosão dos solos que caracterizou a ocupação do
Vale do Paraíba. Todavia este método não esteve presente na expansão inicial do café nesta
região, quando as plantações eram feitas nas encostas das colinas sem qualquer sistema de
alinhamento, contudo o estabelecimento das fileiras verticais passou a ser adotado conforme a
economia agroexportadora ganhava força, exigindo maior controle sobre o ritmo de trabalho
dos escravos. Como a baixa relação trabalho/ terra fazia com que a extorsão do sobre-trabalho
se associasse a mecanismos de controle sobre o trabalhador direto, a facilidade de colher e
vigiar desta forma de organização do cafezal se sobrepunha ao controle da erosão343
.
Aos olhos de um observador, da acuidade de percepção e espírito culto como
Van Delden Laerne, não podia escapar o problema da erosão nos terrenos
cafeeiros. Ao seu governo notificava, em 1884, que a zona fluminense
prejudicadíssima se achava pela ação das águas erosoras nas terras
amanhadas dos morros, fenômeno que trazia inconvenientes consideráveis
aos cafezais novos de 12 a 15 anos e já visivelmente desnutridos344
.
342
FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. 18ª ed. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1982. 343
PÁDUA, José Augusto. Um sopro de destruição: pensamento político e crítica ambiental no
Brasil escravista (1786-1888). Op. cit.; p. 241. 344
TAUNAY, Affonso. Op. cit.; p. 158.
105
Entretanto não só o sistema de queimada e derrubada ou a disposição dos arbustos da
rubiácea na organização da montagem das lavouras contribuíam pra o desgaste da fertilidade
do solo. A rotina agrícola relativa aos cuidados do cafeeiro intensificava, juntamente com
estes outros fatores, o processo de erosão do solo, pois:
A capina era feita com pesadas enxadas de ferro, duas ou três vezes por ano,
quando se dispunha de mão-de-obra. A turma de escravos trabalhava morro
abaixo, um procedimento que facilitava a vigilância, porque os trabalhadores
permaneciam em fileiras retas. Isso também acelerava o escoamento da água
da chuva. A enxada pesada contava raízes superficiais, um traço morfológico
do pé de café – notado somente muito mais tarde -, que fornecem
considerável parcela dos nutrientes da planta. As plantas que não resistiam a
esse tratamento raramente eram substituídas; apodreciam no local. Os
nutrientes do solo quase nunca se reciclavam e jamais eram substituídos. A
expectativa era que as cinzas e a camada de húmus fornecessem tudo que a
planta pudesse precisar, por toda a sua vida345
.
As alterações climáticas provocadas pelo violento processo de transformação
do meio ecológico causavam sérias irregularidades das estações, falta de chuvas, pragas,
formigas, degeneração biológica dos cafeeiros, impactando de forma decisiva na produção.
Tais efeitos já eram denunciados por alguns fazendeiros da época que entendiam a crise da
lavoura de uma perspectiva essencialmente ambiental, como se vê no seguinte discurso:
Erro grave e imenso supor-se que a deficiência da nossa produção é
proveniente unicamente da falta de braços e capitais. Só quem não pensa e
estuda, só quem não acompanha e examina atentamente e de perto o nosso
sistema de explorar o terreno sem arte e ciência, e a marcha que a lavoura
tem seguido, e as revoluções metereológicas e mudanças climatéricas por
que tem passado o Brasil neste último quarto de século, é que pode avançar
em absoluto uma semelhante proposição346
.
A degradação provocada pela extenuante repetição das técnicas agrícolas que levava à
destruição do ecossistema da região podia ser percebida não só pelas mudanças climáticas ou
pela transformação da fisionomia da vegetação, como também pelas pragas que surgiam em
resultado do desiquilíbrio ecossistêmico provocado pela. As saúvas, por exemplo, que em um
ambiente natural podiam manter uma relação altamente construtiva com as espécies nativas
345
DEAN, Warren. Op. cit.; p. 201. 346
Apud. VAL, Manoel Ribeiro do. “Discurso”, in Congresso Agrícola, Coleção de documentos, Rio
de Janeiro, Fundação Casa de Rui Barbosa, 1988 [1878]. In: PÁDUA, José Augusto. Um sopro de
destruição: pensamento político e crítica ambiental no Brasil escravista (1786-1888). Op. cit.; p.
253.
106
que se beneficiavam da preparação edáfica realizada por elas, num campo cultivado
convertiam-se em uma ameaça para as plantações e como Cabral chama a atenção “(...)
cultivos contínuos no mesmo terreno extirpavam os predadores das saúvas e os formigueiros
prosperavam como nunca. A densidade dessas colônias pode aumentar em até trinta vezes
quando a floresta primária é convertida em lavouras e pastos347
”.
Assim o cultivo do café preservou o caráter nômade da agricultura brasileira e como
relatou Taunay, o cafeicultor “quando a fertilidade das terras está esgotada, abandona os
morros cobertos de sapé, e vai para diante derribar novas matas e continuar o mesmo sistema
de destruição, à procura do veio de ouro, chamado café348
”.
347
CABRAL, Diogo de Carvalho. Op. cit.; p. 316. 348
TAUNAY, Affonso. Op. cit.; p. 157.
107
CAPÍTULO 3 – USO EXTENSIVO DO SOLO, DEGRADAÇÃO E FALHA
METABÓLICA
3.1 A história contida numa xícara de café
Comumente os alimentos são consumidos primeiramente por seus cultivadores que
inicialmente comercializam o excedente da produção para só depois produzi-lo em razão de
seu valor de troca. Porém, o café, a partir do momento que passou a ser consumido como uma
bebida, rapidamente tornou-se uma commodity e diferentemente de outras culturas
alimentares que eram consumidas largamente no país produtor, o café bem cedo em sua
história tornou-se um produto de exportação especialmente orientado pelo mercado.
Outro ponto que merece nota é que culturas alimentares produzidas para o
autoconsumo por diferentes povos são, em geral, nutritivas, o que não ocorre com o café.
Mesmo as principais beberagens – vinho, cerveja e leite – atendem satisfatoriamente
determinadas necessidades nutricionais349
, o que talvez explique, ao menos em parte, a
precoce produção cafeeira destinada ao mercado e não à subsistência. Assim, por suas
características alimentares, o café assemelha-se mais à mandioca, por ser um alimento
energético, mas nutricionalmente deficiente e largamente utilizado como um produto de
massa de suma importância para a reprodução da força de trabalho – do escravo no caso da
mandioca e do operário no caso do café –, com a óbvia diferença de que um alimento
abastecia um mercado interno e o outro um mercado externo. Por fim, tal propriedade do café
é o que possivelmente explica seu consumo habitual misturado ao leite como uma forma de
complementá-lo nutricionalmente.
O café sofreu uma larga expansão de seu consumo provocada pela modificação
profunda de seu mercado, que durante o século XVIII esteve restrito ao consumo de luxo, mas
na centúria seguinte transformou-se em um artigo de consumo de massa devido à queda do
seu preço, tornando seu consumo mais acessível às classes populares. Em uma conjuntura
ascendente do consumo, as convulsões políticas de Saint Domingue que resultaram em sua
retirada brusca do mercado internacional – que até a conflagração de seus conflitos políticos
fornecia quase a metade do café consumido mundialmente –, exerceu um impacto
considerável nas demais zonas cafeeiras mundiais. Por conseguinte:
349
TOPIK, Steven. The integration of the world market. In: CLARENCE-SMITH, WILLIAM;
TOPIK, Steven (org.). Op. cit.; p. 25.
108
O período de 1812 a 1830, assim, pode ser apreendido como uma quadra de
ajuste do mercado, sendo a primeira fase (1812-1822) de alta, após a
retração artificial, e, a segunda (1822-1830), de baixa, que conduziu à
equalização entre oferta e demanda, mas que, ao mesmo tempo, afastou do
mercado os produtores menos eficazes. Não por acaso, foram exatamente os
anos de 1822 a 1830 que marcaram a clara diferenciação no mercado
mundial entre velhas e novas regiões produtoras de café. O processo que
conduziu a tanto, todavia, iniciara-se três décadas antes. A Revolução do
Haiti trouxe uma disjunção no tempo histórico do mundo atlântico,
inaugurando simultaneamente o declínio da escravidão colonial caribenha
francesa e inglesa e a ascensão dos novos espaços escravistas do século XIX.
Noutras palavras, o período entre as décadas de 1790 e 1820 compreendeu
tanto a crise da estrutura histórica do escravismo norte-atlântico – cuja base
geográfica eram as Antilhas inglesas e francesas – como a montagem da
nova estrutura histórica do escravismo oitocentista – cuja base geográfica
passou a ser as vastas áreas virgens do território cubano, brasileiro e norte-
americano. Esses novos espaços do século XIX estavam fora das relações
imperiais tradicionais que travejavam o Caribe inglês e francês e não
apresentavam as constrições geográficas e fundiárias aí presentes. Cuba e
Brasil, no entanto, competiram palmo a palmo pelo comércio internacional
de açúcar e café após 1790350.
A Grã Bretanha, que por uma questão política relacionada às suas possibilidades
mercantilistas decidiu explorar o comércio de chá da China e Índia, foi a única potência da
Europa Ocidental a reduzir o consumo per capta de café, decidindo não explorar o potencial
do cultivo cafeeiro na Jamaica, Ceilão ou Índia, enquanto a Espanha preferiu explorar o
cacau, cabendo, portanto à América Latina o papel de significativo produtor mundial de café,
papel este que foi assumido com vigor após a independência política dos países produtores.
No fim do século XVIII a Revolução do Haiti deixou uma imensa lacuna no mercado de café
que provocou uma elevação dos preços que por sua vez induziu a um rápido processo de
expansão e diversificação geográfica das lavouras, encorajando o cultivo em outras partes do
Caribe e no Vale do Paraíba fluminense351
. Contudo:
Tal como na colônia espanhola, o granjeio do artigo na América portuguesa
foi irrelevante até a última década do século XVIII. Como se sabe, o arbusto
foi introduzido no Estado do Grão Pará e Maranhão na década de 1720, no
mesmo movimento que levou à sua introdução na Martinica e no Suriname,
mas, até fins daquele século, foi unicamente uma planta ornamental. Ainda
que tenha feito parte do cálculo imperial dos administradores pombalinos na
350
MARQUESE, Rafael; TOMICH, Dale. O Vale do Paraíba escravista e a formação do mercado
mundial do café no século XIX. In: Grinberg, Keila; Salles, Ricardo (org.). Coleção O Brasil
Império, Volume 2 (1831-1870). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008; p. 09. 351
TOPIK, Steven. The integration of the world market. In: CLARENCE-SMITH, WILLIAM;
TOPIK, Steven (org.). Op. cit.; pp. 30; 35.
109
década de 1760, que pretendiam diversificar a pauta de exportações agrícolas
da América portuguesa, o café não teve os cuidados que produtos como o
algodão e o arroz – remetidos em grande escala para Lisboa já na década
seguinte – receberam. De todo modo, a aclimatação do cafeeiro no centro-sul
da América portuguesa ocorreu nesse período, nas chácaras e quintais da
cidade do Rio de Janeiro352
.
A produção de café latino-americana ajudou a redefinir a natureza do consumo, pois o
novo arranjo que conformou o mercado produtor induziu uma queda nos preços – após um
período inicial de alta – e uma ampliação no volume da produção suficiente para transformar
o café num mercado de massa. Deste modo, a expansão cafeeira foi estimulada por incentivos
do mercado, que havia sofrido uma importante reorganização estrutural, contudo é importante
enfatizar que tal expansão assentou-se em bases ambientais e sociais que possibilitaram esta
ampliação das lavouras, a saber: o clima propício ao cultivo do cafeeiro e a oferta elástica de
terras em grande parte acessadas facilmente nas matas virgens que permitiam o movimento de
reprodução ampliada das lavouras, uma infraestrutura orientada ao comércio exportador e a
larga utilização da força escrava revitalizada pela demanda industrial de produtos tropicais353
.
As novas condições impostas pela economia internacional do café exigiram um
incremento contínuo de produtividade para aqueles que pretendiam permanecer no mercado.
Assim as antigas regiões produtoras sem reservas de áreas para expansão ou que haviam sido
afetadas pela crise do escravismo colonial foram afastadas das posições centrais do mercado
que logo foram assumidas por Brasil e Cuba. Estes dois países construíram no inicio do
século XIX arranjos políticos dentro dos marcos de suas respectivas monarquias
constitucionais que auxiliaram na fundação da instituição escravista em bases seguras o
suficiente para enfrentar as fortes pressões antiescravistas externas354
.
A competitividade do Brasil foi em grande parte assegurada por seus recursos naturais,
já que a vastidão de terras permitia o método de produção extensivo, no qual o escasso capital
disponível na época era invertido na máxima ampliação possível da plantação, em detrimento
da melhoria dos métodos produtivos. Cuba por outro lado tinham seus cafezais montados nas
mesmas zonas de implantação dos engenhos, o que induzia a uma competição por terra e
352
MARQUESE, Rafael; TOMICH, Dale. O Vale do Paraíba escravista e a formação do mercado
mundial do café no século XIX. In: Grinberg, Keila; Salles, Ricardo (org.). Coleção O Brasil
Império, Volume 2 (1831-1870). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008; pp. 11-12. 353
TOPIK, Steven. The integration of the world market. In: CLARENCE-SMITH, WILLIAM;
TOPIK, Steven (org.). Op. cit.; p. 32. 354
MARQUESE, Rafael; TOMICH, Dale. O Vale do Paraíba escravista e a formação do mercado
mundial do café no século XIX. In: Grinberg, Keila; Salles, Ricardo (org.). Coleção O Brasil
Império, Volume 2 (1831-1870). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008; p. 19.
110
trabalho, levando os senhores de escravo a empregarem seus capitais simultaneamente nas
duas atividades. No Brasil, a vastidão de terras, sem travas fundiárias, evitava o conflito entre
a atividade açucareira e a cafeeira, além do mais, as terras do Vale do Paraíba eram
plenamente aptas em termos de solo altitude e clima à cafeicultura. Somado a isso, o caráter
de bem de capital do cafeeiro criava uma dificuldade adicional para a atividade em Cuba
devido aos furacões que assolam a região, o que não constituía um obstáculo para os canaviais
que recuperava a produtividade plena em um ano ao contrario dos cinco anos necessários para
o amadurecimento do cafeeiro355
.
O devastador furacão que atingiu Cuba 1844 foi o último golpe contra sua economia
cafeeira que terminou por não resistir às competições com a produção de açúcar interna e com
a produção brasileira de café num quadro de preços baixos agravado por sua exclusão, devido
ao conflito fiscal entre sua metrópole Espanha e Estados Unidos, do grande mercado
comprador estadunidense que estava em franco crescimento, no exato momento em que este
decretava o fim das tarifas para o café em 1832356
.
Coffee was treated diffenrently from sugar and rubber in the nineteenth
century Age of Empire, because its low technological demands meant that an
independent country richly endowed with the factors of production, such as
Brazil, could begin producing on an unprecedented scale. Cheap fertile land
and slave labor allowed coffee prices to plummet after 1820 and remais low
until the last quarter of the century, creating supply induced demand. (…)
World consumption grew more than fifteen fold in the nineteenth century357
.
Na virada do século XVIII para o XIX a economia do Brasil era pouco monetizada e
praticamente não se formavam capitais que pudessem ser desviados para novas atividades,
assim a produção para o mercado externo se colocava como a única saída para o
desenvolvimento do país, pois o desenvolvimento com base em mercado interno só é
viabilizado pela complexidade do organismo econômico caracterizado por uma relativa
autonomia tecnológica358
. A solução para o desafio econômico brasileiro consistia em
encontrar produtos de exportação em cuja produção entrasse como fator básico a terra, devido
à escassez de capitais. O café assumiu importância comercial no Brasil justamente nesse
355
MARQUESE, Rafael; TOMICH, Dale. O Vale do Paraíba escravista e a formação do mercado
mundial do café no século XIX. In: Grinberg, Keila; Salles, Ricardo (org.). Coleção O Brasil
Império, Volume 2 (1831-1870). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008; pp. 19, 20. 356 Id. Ibid. In: Grinberg, Keila; Salles, Ricardo (org). Coleção O Brasil Império, Volume 2 (1831-
1870). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p. 21. 357
TOPIK, Steven. The integration of the world market. In: CLARENCE-SMITH, WILLIAM;
TOPIK, Steven (org.). Op. cit.; p. 31. 358 FURTADO, Celso. Op. cit.
111
período, beneficiando-se da alta de preços causada pela desorganização da produção da
colônia francesa do Haiti e pelo arranque da industrialização e a formação de um mercado de
massa urbano nos países centrais. Já na década de 1820 o volume da produção brasileira de
café equiparou-se ao das grandes regiões cafeicultoras do mundo359
. No que se refere a
produção brasileira:
Certos pontos que seriam decisivos para o deslanche cafeeiro do Brasil já se
encontravam presentes em meados do século XVIII, muito por conta da
economia do ouro: um volumoso tráfico negreiro transatlântico bilateral
entre os portos da África Central e o Rio de Janeiro, controlado por
negociantes desta praça; a existência de vias que cruzavam o Vale do
Paraíba no sentido norte-sul (Caminho Novo entre o Rio de Janeiro e a
capitania de Minas Gerais, aberto na década de 1720) e leste-oeste (Caminho
Novo da Piedade, articulando o Rio de Janeiro a São Paulo, aberto na década
de 1770 para facilitar as comunicações a sede do Vice-Reino com as minas
de Goiás e Mato Grosso); a disponibilidade de uma enorme área de terras
virgens entre a Serra da Mantiqueira e os contrafortes da Serra do Mar,
derivada da política oficial das “zonas proibidas”; por fim, um complexo
sistema de transporte baseado em tropas de mulas, muito eficazes – diante
dos meios disponíveis do período – para enfrentar a topografia acidentada do
centro-sul do Brasil Essa infraestrutura, contudo, não foi mobilizada para a
cafeicultura nas décadas de 1790 e 1800. Nesses anos, a resposta dos
proprietários escravistas da América portuguesa ao impacto da Revolução de
Saint Domingue se deu sobretudo no campo açucareiro360.
No fim do século XVIII e início do XIX o país ainda enfrentava a falta de braços e
crédito agrícola, necessidade de imigração, carência de ensino técnico e de estabelecimentos
bancários financiadores da produção e uma contínuo enfraquecimento do açúcar, gênero de
exportação que outrora fora a força motriz da economia no comércio internacional do
Brasil361
. Portanto em 1822, ano em que o Brasil passou a figurar no rol das Nações Livres, o
país não podia escapar à sua realidade econômica marcada por latifúndios e despovoação e
indústria e comércio insipientes que o condenavam a importar da Europa produtos essenciais.
Sua trajetória histórica, assinalada por seu passado de colônia de exploração, impunha a
agricultura como a mola mestra de sua organização socioeconômica.
O café, gênero de exportação que assumiria o protagonismo nas exportações do país
do século XIX e ínicio do XX, foi introduzido na Amazônia em 1727, mas a cafeicultura não
359
MARQUESE, Rafael; TOMICH, Dale. O Vale do Paraíba escravista e a formação do mercado
mundial do café no século XIX. In: Grinberg, Keila; Salles, Ricardo (org.). Coleção O Brasil
Império, Volume 2 (1831-1870). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008; p. 19. 360
Id. Ibid. In: Grinberg, Keila; Salles, Ricardo (org.). Coleção O Brasil Império, Volume 2 (1831-
1870). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008; p. 12. 361
TAUNAY, Affonso. Op. cit.; p. 71.
112
prosperou ali devido às condições climáticas desfavoráveis ao seu cultivo. O sucesso
comercial veio somente um século mais tarde na floresta de um outro bioma: a Mata Atlântica
da região sudeste, mas mesmo o Rio de Janeiro, o cenário que testemunharia pela primeira
vez a pujança da economia do café no Brasil, em meados do século XVIII ainda não conhecia
a força que a lavoura cafeeira haveria de assumir ali.
No Rio de Janeiro, quer nos parecer que a primeira alusão ao café seja a do
Abbé La Caille, ilustre astrônomo e geodeta francês que, em 1750, esteve na
cidade carioca de passagem para o Cabo da Boa Esperança. Em seu relato de
viagem, diz este cientista que tomou café ao findar um jantar “magnífico”,
oferecido por um tal Paulo Vincent, fluminense de origem holandesa. Seria
café importado, pois, em 1768, verberava Cook, o grande circunavegador, a
desídia dos cariocas que de Portugal importavam todo o café e chocolate
consumidos em sua cidade362
.
O café representou uma ótima solução para a busca que o Império empreendia por um
produto para ser comercializado em troca das manufaturas e artigos de luxo da Europa ao
ponto do ramo de café merecer figurar ao lado do escudo da nova bandeira nacional que
celebrava sua independência em 1822, antes mesmo do café se tornar o principal artigo de
exportação do Brasil, posto que assumiria dentro de pouco tempo. Assim a já três vezes
secular economia da cana, que teve forte impacto no Brasil colonial, cedia espaço à do café,
que despontava num surto realmente vigoroso nos primeiros anos do Império. Contudo é
importante enfatizar que o produto que veio a estampar o símbolo nacional que marcou a
independência política do país, que reconfiguraria a organização social e a composição étnica
da nação – através do recrudescimento da imigração compulsória africana e posteriormente da
imigração livre europeia – e que por um século seria o carro chefe de sua economia,
responsável pela formação de divisas, pela composição da maior parte da receita do Império e
da Primeira República e importante agente no fomento da industrialização e da diversificação
econômica, foi também a ameaça mais devastadora à Mata Atlântica que qualquer evento dos
últimos trezentos anos de ocupação europeia363
.
Já na década de 1830 o café já se tornara a terceira principal exportação do Brasil, logo
atrás do açúcar e do algodão, respondendo por 18% das exportações em termos de valor364
.
Destarte tal porcentagem tornou-se mais significativa ao longo do tempo desde a entrada do
362
TAUNAY, Affonso. Op. cit.; p. 33. 363
DEAN, Warren. Op. cit. p.193. 364
TOMICH, Dale W. Pelo prisma da escravidão: trabalho, capital e economia mundial. São
Paulo: Editora USP, 2011; p. 93.
113
Brasil ao rol das Nações livres, contribuindo inequivocamente para o imenso aumento em
suas exportações e na entrada de divisas que:
Fora, em 1822, de 19.754 contos de réis; em 1889, de 259.095 e de
1.016.590, em 1909, acima de cinquenta vezes a cifra primitiva. E se o valor
do café exportado fora de 3.866 contos, em 1822, passara a ser de 172.258,
em 1889 e de 533.870, em 1909. Assim, ao passo que a exportação nacional
avultara de cinquenta vezes, a do café passara a ser 138 vezes maior, o que
mostra do modo mais eloquente a preponderância extraordinária do
contingente da rubiácea, no conjunto da produção nacional365
.
A cafeicultura provocou o nascimento da mais rica região brasileira na densamente
florestada zona serrana, consolidando dentro de algumas décadas sua hegemonia financeira
sobre as demais circunscrições do império. Assim surgiram grandes propriedades no Rio de
Janeiro, na Mata de Minas e em São Paulo, onde nas casas grandes das principais fazendas se
manifestava o luxo e a abundância dos fazendeiros, afinal:
(...) um bom cafezal brasileiro rendia tanto quanto um bom vinhedo francês,
com tendência a superá-lo. O hectare desta cultura de luxo e excepcional
produzia 600 francos em média, o que daria para o alqueire 1.440 francos,
ou fossem ao câmbio médio de $400 por franco, 576$000. (...) Ora, anos
houvera em Campinas em que o alqueire de cafezal (2 ha, 42) produzira
979$000 (1880), 1:305$000 (1874) e 1:714$000 (1873)366
.
Na década de 1850 o Brasil já produzia mais da metade do café consumido no mundo
e é em 1906 a produção era quase cinco vezes maior que a do restante do mundo combinada.
Graças à ampla disponibilidade de terras, o Brasil foi responsável sozinho por volta de 80%
da expansão da produção mundial de café no Dezenove367
. Destarte o café brasileiro vendia-
se muito mais barato do que o das Antilhas nos grandes mercados mundiais, apesar de ser
considerado inferior em qualidade ao de seus concorrentes. Os fazendeiros em geral
preparavam mal seus lotes ao que decorriam as queixas contra o gosto de terra dos cafés
brasileiros. Os produtores do Brasil não se conformavam às exigências do comércio e de
acordo com um memorialista do tempo a imensa maioria beneficiava mal seus cafés. Na
Europa apareciam frequentemente queixas dos consumidores contra o mau preparo brasileiro
e o mau gosto do café podre do Império368
.
365
TAUNAY, Affonso. Pequena história do café. Op. cit.; p. 08. 366
Id. Ibid.; p. 150. 367
TOPIK, Steven. The integration of the world market. In: CLARENCE-SMITH, WILLIAM;
TOPIK, Steven (org.). Op. cit.; p. 31. 368
TAUNAY, Affonso. Op. cit.; pp. 128, 178.
114
Em verdade o sistema escravista do Brasil enfatizava menos a qualidade que o volume
e o longo transporte em trens e navios frequentemente causavam ainda mais danos aos grãos.
Mas o mercado dos Estados Unidos não estava interessado em qualidade e seus consumidores
eram bem menos exigentes que os europeus. Destarte os consumidores estadunidenses
aderiram em massa ao hábito do café à medida que a população e a economia disparavam,
atrelando cada vez mais o Império do Brasil a esse único mercado369
. As políticas
governamentais dos Estados Unidos influíram bastante para a formação de seu mercado
consumidor de café, já que o país foi o único grande mercado a importar o produto com taxas
livres na primeira metade do século XIX370
.
Com a modificação profunda tanto da escala quanto do caráter do mercado no século
XIX, a produção de café no globo sofreu um incremento ainda mais impressionante, dez
vezes maior do que a do século anterior, o que se deve em grande parte ao aparecimento dos
Estados Unidos como compradores, que nesse período assistiu um aumento de quinze vezes
de sua população e uma impulsão colossal no consumo per capita anual de café que passou
das 25 gramas para 4 quilogramas371
.
Os Estados Unidos acolheram sozinhos dois terços dos cerca dos cinquenta milhões de
emigrantes que chegaram às Américas em sucessivas ondas e esse influxo, que modificou
irreversivelmente os Estados Unidos e explica sua súbita expansão populacional, supriu o país
com os fazendeiros que povoaram regiões ainda não colonizadas e com os trabalhadores
necessários para a eclosão de sua revolução industrial, responsável pela formação do mercado
consumidor de café, principalmente do brasileiro372
. Os Estados Unidos eram um mercado
aberto, livre de tarifas de importação desde 1832 e pouco exigente em relação à qualidade do
café que adquiriam e alinhavam-se aos demais grandes compradores do período, todos
localizados na Europa setentrional, no que se refere à explosão demográfica e ao rápido
processo de industrialização e urbanização373
.
Assim se por um lado o aumento vertiginoso na oferta de café ocorreu em sua maior
parte devido a pujante produção brasileira, o aumento no lado da demanda ocorreu graças aos
Estados Unidos, já que metade do crescimento mundial do consumo deveu-se a este país, que
369
DEAN, Warren. Op. cit.; p.196. 370
TOPIK, Steven. The integration of the world market. In: CLARENCE-SMITH, WILLIAM;
TOPIK, Steven (org.). Op. cit.; p. 37. 371
MARQUESE, Rafael; DALE, Tomich. O Vale do Paraíba escravista e a formação do mercado
mundial do café no século XIX. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo (org.). Coleção O Brasil
Império, Volume 2 (1831-1870). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008; p. 19. 372
CROSBY, Alfred. Op. cit.; p. 311. 373
MARQUESE, Rafael; DALE, Tomich. Op. cit., p. 19.
115
teve um incremento de 2.400% na importação total de café que se deu no bojo de uma
explosão populacional que atingiu a impressionante marca de crescimento de quinze vezes no
século XIX374
. O consumo de café neste país:
Aumentou imenso no século XVIII, sobretudo depois da independência dos
Estados Unidos. O famoso “motim do chá”, em Boston e em 1773, precursor
da guerra libertadora, como que acirrou os americanos na preferência pelo
café. A intolerância do governo inglês, instigado pela ganância da British
East India Company, ia tornar os Estados Unidos uma nação de bebedores de
café. Já em 1732, havia em Nova York uma bolsa de café. No decorrer do
século XVIII, avolumou-se muito o número dos cafés públicos375
.
Destarte o mercado mundial do café que em seus primórdios configurara-se pelo
monopólio árabe, monopólio este que séculos mais tarde passaria à Santo Domingo e
finalmente caberia ao Brasil, acabou por também por formar um oligopsônio com alguns
grandes compradores, principalmente os Estados Unidos.
3.2 A fronteira do café invade a Mata mineira: uma breve análise histórica comparada
Neste subcapítulo será feita uma breve análise através da histórica comparativa com o
objetivo de se verificar o desdobramento da economia cafeeira fluminense e da mineira frente
à abolição da escravidão. O enfoque comparativo nos ajuda com frequência a identificar os
agentes ou variáveis que estão presentes ou ausentes nos objetos do estudo, realçando padrões
semelhantes ou divergentes, o que ajuda a traçar a evolução de cada um em relação ao outro.
Os estudos de história comparada procuram não só realçar acontecimentos semelhantes que se
repetem em duas ou mais sociedades, regiões ou instituições, mas também nos ajudam a
entender as razões que levam conjunturas semelhantes apresentarem experiências diversas
umas das outras. Assim, a pesquisa comparada estimula a atenção sobre a complexidade
histórica dos eventos e fenômenos que se desdobram em diversos processos de acordo com os
traços específicos que surgem e se prolongam no tempo em diferentes durações em cada
estrutura social376
.
374
TOPIK, Steven. The integration of the world market. In: CLARENCE-SMITH, WILLIAM;
TOPIK, Steven (org.). Op. cit.; p. 37. 375
TAUNAY, Affonso. Op. cit.; p. 25. 376
MAHONEY, James; RUESHMEYER, Dietrich. Comparative Historical Analysis;
Achievements and Agendas. In Comparative Historical Analysis in the Social Sciences. Cambridge
University Press. New York, 2003.
116
Através de uma perspectiva comparada podemos compreender os elementos
estruturais e culturais de uma realidade histórica, podendo assim destacar o papel que certas
variáveis cumprem no resultado final. Entre suas diferentes implicações, a história comparada
nos ajuda a identificar diferenças ou semelhanças em história, atribuindo maior ou menor
peso ou isolando variáveis que são a razão de certas condições particulares e a reconhecer
padrões comuns que permitem a formulação de generalizações. Destarte a análise histórica
comparativa traz luz sobre importantes efeitos no mundo social e econômico, mantendo o
foco explicativo na compreensão sobre como o mundo político e social é estruturado e como
processos de mudança social e conflitos políticos se desenvolvem377
. É ainda através da
história comparada de duas ou mais unidades históricas que podemos identificar certas forças
ou elementos semelhantes em contextos históricos diferentes e para tanto qualquer
comparação entre um fenômeno similar em duas ou mais sociedades, regiões ou instituições
deve determinar um ponto comum para sustentar a análise378
.
Em consonância com estes critérios, tanto a região agroexportadora fluminense quanto
a mineira apresentaram uma produção cafeeira significativa e se constituíram em processos
que configuraram estruturas agrárias e relações de trabalho similares, apesar de reagiram de
modo distinto no pós-abolição. Destarte é imprescindível esclarecer as causas que explicam os
resultados diferentes apresentadas por ambas as economias cafeeiras tendo em vista se tratar
de organizações estruturais semelhantes dentro de uma mesma conjuntura.
A chegada da família real portuguesa ao Rio de Janeiro no início do século XIX
provocou um súbito aumento do contingente populacional da cidade que acabara de se tornar
a sede do Império Português, o que induziu a uma ampliação considerável na demanda por
gêneros de primeira necessidade. Tal evento levou a coroa joanina a aprimorar a rede de
caminhos da região centro-sul da colônia, estimulando assim a construção de estradas que
tonaria a zona produtora de mantimentos de Minas Gerais mais acessível à nova corte, o que
mais tarde contribuiu decisivamente para o deslanche da cafeicultura no médio Vale do
Paraíba, gerando um intenso movimento fundiário em seus arredores379
.
377
SKOCPOL, Theda. Doubly Engaged Social Science. In Comparative Historical Analysis in the
Social Sciences. Cambridge University Press. New York. 2003. 378
MAHONEY, James; RUESHMEYER, Dietrich. Comparative Historical Analysis;
Achievements and Agendas. In Comparative Historical Analysis in the Social Sciences. Cambridge
University Press. New York, 2003. 379
MARQUESE, Rafael; TOMICH, Dale. O Vale do Paraíba escravista e a formação do mercado
mundial do, café no século XIX. In: Grinberg, Keila; Salles, Ricardo (orgs.). Coleção O Brasil
Império, Volume 2 (1831-1870). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008; p. 13.
117
A vinda da família real para o Brasil também resultou, entre outras coisas, na
antecipação do processo de independência, através da liberação dos portos e da liberdade de
comércio e da indústria. A criação do primeiro banco e a maior circulação monetária
favoreceram ainda o surgimento de uma burguesia nacional que, apoiada desde cedo pelo
Estado, contou com condições favoráveis ao sucesso da cultura cafeeira: posse de capital-
dinheiro; terras aptas ao cultivo fundadas no latifúndio; existência de mão de obra calcada no
escravismo; e demanda externa para o produto380
.
Na região do Vale do Paraíba, compreendendo terras das províncias de São Paulo, Rio
de Janeiro e Minas Gerais, havia uma enorme quantidade de terras virgens, sem travas
fundiárias, plenamente aptas em termos de altitude e clima à cafeicultura e distantes a não
mais de 150 quilômetros da miríade de ancoradouros naturais localizados ao sul do grande
porto do Rio de Janeiro381
.
Posteriormente com o fim do tráfico negreiro houve um considerável aumento no
preço dos escravos e com a oferta baixa e os preços altos, a região produtora mais antiga do
Vale do Paraíba foi forçada a especializar e intensificar ainda mais o trabalho escravo,
resultando numa crescente importação de produtos alimentícios de que necessitava – preços
também crescentes –, aumentando ainda mais a carga monetizada de seus custos. A transição
para o regime de trabalho livre requereu o dispositivo institucional da Abolição, assim a
precariedade da constituição de seu mercado de trabalho fez com que ali viessem a ser
praticadas as mais altas taxas de salário do país382
.
Todavia a o sistema agrário da economia de exportação fluminense persistiu em seu
definhamento mesmo depois da crise do pós-abolição, não conseguindo se recuperar do
trauma provocado. Todavia o impacto que a Lei Áurea de 13 de maio de 1888 foi menos o de
deflagrar do que o de dar fim a um processo de derrocada que já estava em andamento. Em
verdade, a manutenção do sistema extensivo de uso da terra na agricultura e dos instrumentos
e métodos de trabalho agrícola em um quadro de redução das matas virgens e declínio
demográfico mingou as possibilidades de reprodução de um sistema agrário que se realizava
através da incorporação de mais terra e força de trabalho383
.
380
CANO, Wilson. Padrões Diferenciados das Principais Regiões Cafeeiras (1850-1930). In:
Estudos Econômicos: São Paulo, 1985. 381
MARQUESE, Rafael; TOMICH, Dale. O Vale do Paraíba escravista e a formação do mercado
mundial do, café no século XIX. In: Grinberg, Keila; Salles, Ricardo (orgs.). Coleção O Brasil
Império, Volume 2 (1831-1870). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. 382
CANO, Wilson. Op. cit. 383
FRAGOSO, João.Op. cit.; pp. 04-05.
118
O caráter não-capitalista das relações de produção pós-escravidão na
agricultura cafeeira, em Paraíba do Sul, deve-se à persistência (em seu
definhamento) do sistema agrário da economia de exportação. E isto é
percebido pela manutenção de um sistema de uso da terra que permite a
combinação da produção de gêneros de subsistência com o café – o que se
traduz numa situação em que o trabalhador direto livre aparece “associado”
aos meios de produção, produzindo parte de seus meios de subsistência,
enquanto valor de uso. Por sua vez, a articulação dessas relações não-
capitalistas de produção respondia às necessidades de funcionamento
daquele sistema, ao garantir a manutenção do trabalhador direto a baixos
custos de produção384
.
A produção do Rio de Janeiro sofreu um severo processo de retração, passando das
1.987 mil sacas referentes ao período 1876/1880 – correspondente a 52,2% da produção
nacional – para 975 mil – 5,6% da produção nacional – na década de 1921/1930,
demonstrando uma intensa decadência em sua economia agroexportadora devido ao
esgotamento dos solos e a pouca disponibilidade de terras virgens para novos plantios, o que
resultou num quadro de incapacidade de superaração do impacto causado pela abolição da
escravidão385
.
Duas causas promoveram esta queda formidável e brusca: a desorganização
do trabalho, mercê da lei de 13 de maio e as consequências, cada vez mais
pronunciadas e profundas, da erosão das terras montanhosas. (...) Estas,
sobretudo, muito além daquela, certamente. Se o solo fluminense, acaso bem
feito, fosse capaz de alimentar os seus cafezais, permitindo-lhes maior
longevidade, a fixação dos colonos se faria automaticamente386
.
Destarte é possível inferir que a degradação das unidades agroexportadoras num
sentido estrito e da região num sentido lato, representada pelo fechamento da fronteira
agrícola, é a explicação mais convincente no que se refere à crise do sistema agrário e que de
forma geral no Vale do Paraíba fluminense a reduçao das matas se associara ao fim do
escravismo e por conseguinte na dificultação de obtenção de mais força de trabalho387
.
Entretanto este sistema agrarário cafeicultor nascido em terras fluminenses continuou
a existir mesmo após o colapso econômico da região em outras paragens. O surto cafeeiro
fôra a mola econômica que desencadeou um extraordinário movimento pioneiro jamais
realizado em terras mineiras, movimento este que era xipófago do que havia ocorrido no
médio Paraíba, possuíndo com ele traços importantes de identificação manifestados pela
384
FRAGOSO, João. Op. cit.; p. 05. 385 Id. Ibid. 386
TAUNAY, Affonso. Op. cit. 5; p. 198. 387 FRAGOSO, João. Op. cit.
119
formação histórica originada de um mesmo processo matriz, pela contiguidade espacial,
estrutura socio-econômica e sistema agrário homogêneos e aristocracia fundiária com laços
consanguíneos e outros traços em comum388
. Todavia:
Levando em consideração o comportamento secular da produção cafeeira,
por exemplo, se evidenciam grandes diferenças entre os núcleos de produção
agroexportadores fluminense e os da Mata de Minas. Região interiorana,
destituída de um núcleo de comercialização exportador em seu espaço
interno, a Zona da Mata, como já tivemos oportunidade de observar, acaba
por eleger o centro comercial do Rio de Janeiro como espaço privilegiado da
exportação de sua produção. No entanto, a distância frente à Corte e futura
capital federal e, principalmente, a inexistência de uma malha viária dotada
de um mínimo de condições de transporte, fizeram com que a efetiva
incorporação produtiva da Zona da Mata só ocorresse em meados do século
XIX, marcando uma defasagem no “ciclo” da produção agroexportadora de
ambas as regiões. Tal situação fará com que as condições objetivas da
produção, determinadas fundamentalmente pela existência de matas virgens
disponíveis para a expansão cafeeira, sejam significativamente mais
favoráveis na Mata mineira do que no Vale do Paraíba fluminense no final
do século XIX, quando se intensifica o processo de crise do sistema
escravista e de expansão capitalista389
.
Destarte a produção de café na Mata mineira teve início com o avanço da fronteira
agrícola em áreas contíguas com regiões produtoras mais antigas do Vale do Paraíba
fluminense, que acabou adentrando a Zona da Mata mineira devido à disponibilidade de terras
que garantiam as condições de reprodução econômica das unidades agroexportadoras,
baseadas no uso extensivo do solo390
. A existência dessas áreas em mata, fator fundamental
no sistema reprodutivo cafeeiro, decorria da densa cobertura florestal que consistia num
obstáculo natural à penetração e que foi preservada com interesses políticos pela coroa
portuguesa para dificultar o extravio do ouro pelos lugares onde inexistiam registros,
vigorando de 1730 até o ano de 1805391
. Assim, a despeito de registros que indicam cultivos
mais antigos da rubiácea na província de Minas Gerais, a cafeicultura só ganha importância
comercial significativa quando de sua introdução na Zona da Mata.
As primeiras lavouras mineiras devem ter surgido nos últimos anos do
século XVIII. Por volta de 1800, havia pequenos cafezais no Triângulo
388
VALVERDE, Orlando. Estudo regional da Zona da Mata de Minas Gerais. In: Revista
Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro, ano XX, n° 1, janeiro-março de 1958; p. 27. 389
PIRES, Anderson. Café, finanças e indústria: Juiz de Fora 1889-1930. Op. cit.; p. 32. 390 PIRES, Anderson. Tendências da produção agroexportadora da Zona da Mata de Minas
Gerais (1870-1930). In: Locus: Revista de História. Juiz de Fora, v. 3, n°. 2, julho-dezembro de 1997. 391 VALVERDE, Orlando. Estudo regional da Zona da Mata de Minas Gerais. In: Revista
Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro, ano XX, n° 1, janeiro-março de 1958.
120
Mineiro, afirmam as crônicas locais. Em 1809, era considerável a produção
do Araxá. Segundo Daniel de Carvalho, documentos comprovam a
existência de cafeeiros em quintais de Mariana, em 1780. John Mawe, em
1809, viu na Mantiqueira cafeeiros já antigos, assim como em S. João d’El
Rei. O documento mais remoto de que temos notícias sobre a exportação de
café mineiro é o de Eschwege, que declara haver, em 1809, a capitania de
Minas exportado 9.707 arrobas de café, das quais 9.256 oriundas das
cercanias de Matias Barbosa. (...) A zona mineira onde a cultura da rubiácea
teria de desenvolver-se de modo absolutamente notável, viria a ser a da
Mata, pela sua maior proximidade do Rio de Janeiro, e nos municípios do
vale do Paraíba, onde em breve Mar de Espanha, Juiz de Fora, Leopoldina,
Cataguases e Ubá seriam centros cafeeiros da maior importância. Outro
grande núcleo seria o vale do Rio Preto392
.
Ainda que o processo de ocupação da área que viria a se constituir como a Zona da
Mata mineira remonte ao século XVIII, a região só veio a se conformar como tal a partir do
século XIX, já que no Setecentos a ocupação humana era insipiente e orientada para a
agricultura de alimentos. Portanto, o território que viria a formar a Zona da Mata ainda não
apresentava as características suficientes para se estabelecer enquanto região historicamente
específica de acordo com os critérios referentes ao processo de constituição regional através
da transformação de um espaço natural delimitado pelas atividades de um determinado
sistema social que forma um metabolismo social definido393
.
O espaço que veio a se definir como a região da Zona da Mata, compreendido entre as
lavras auríferas do centro da capitania de Minas Gerais e o litoral fluminense e capixaba,
apresentava características naturais singulares que se manifestavam pela presença de uma
densa cobertura florestal assim como a presença de grupos indígenas, que ali foram
preservados por uma motivação política.
Para conter os desviantes, certas áreas da Mata Atlântica foram interditadas
ao povoamento espontâneo. Para coibir o contrabando do ouro, o governo
metropolitano mandou fechar quaisquer trilhas e logradouros existentes nas
imediações dos núcleos mineradores, criando o conceito de “áreas
proibidas”. Esse conceito foi aplicado, por exemplo, aos chamados “sertões
da Mantiqueira”, uma enorme região de floresta ombrófila aberta no limite
sul da capitania de Minas Gerais. Ali ficou proibido o estabelecimento de
roças, bem como o trânsito de pessoas sem “ocupação definida”. A vida
deveria correr apenas ao longo do Caminho Novo, guarnecido pelos
necessários registros, mas não transversalmente a ele394
.
392
TAUNAY, Affonso. Op. cit.; p. 45. 393
VITTORETTO, Bruno Novelino. Op. cit.; pp. 59, 67. 394
CABRAL, Diogo de Carvalho. Op. cit.; p. 330.
121
Esta politica florestal régia, assim como qualquer outra, não era neutra e representava
uma determinada visão do que seria o melhor para a sociedade. Todavia, como cada forma
econômica e formulação politica manifestam-se como um reflexo de um dado arranjo social,
as relações sociais constituídas acabam por interferir de maneira decisiva no modo em que a
natureza é apropriada – no sentido institucional, econômico e cultural – pelos indivíduos.
Destarte os grupos sociais foram desigualmente afetados por tal política florestal, o que
resultou em seu descumprimento, já que a obediência estrita aos seus termos era irrealista,
pois como Cabral destaca “o caminho não funcionaria sem o assentamento de agricultores que
pudessem abastecer os viajantes durante a jornada. Assim, a ocupação neobrasileira
rapidamente transbordou para os matos adjacentes à estrada395
”.
Deste modo o ecossistema pouco afetado por atividades humanas e a baixa densidade
populacional, mantidos desta forma em nome dos interesses da coroa, acabaram por constituir
posteriormente a base sobre a qual o sistema agrário cafeicultor se desenvolveria, pois:
(...) a frequência do cultivo é também elemento essencial na conformação do
sistema agrário, sendo que no caso da Zona da Mata, a área de cobertura do
agro é formada por uma floresta primária sem resquícios de ocupação
agrícola. Assim como em outras regiões do centro-sul do país, o sistema
extensivo foi capaz de se manter a contento, uma vez que a disponibilidade
de terras, e mais ainda, a disponibilidade de áreas compostas pela vegetação
primária eram abundantes. É nesse sentido que a baixa densidade
demográfica proporciona os meios necessários ao processo de produção e
reprodução da cafeicultura396
.
A expansão produtiva da cafeicultura em Minas Gerais na região da Mata foi em
grande parte resultado dos incentivos econômicos dados pela elevação dos preços do produto
no inicio do século XIX, proporcionando uma grande lucratividade à produção através da
incorporação de terras virgens no processo de reprodução ampliada das unidades
agroexportadoras. A proximidade desta área em relação à província do Rio de Janeiro lhe
assegurava uma posição estratégica para o fluxo de comercialização da produção, fator crucial
devido às dificuldades de transporte no período.
Desde os anos do Primeiro Império, como vimos, crescera imenso o cafezal
brasileiro, ocupando áreas cada vez maiores na província fluminense, na
Mata de Minas e no norte de S. Paulo. Enormes superfícies magnificamente
florestadas haviam sido tomadas de assalto pelas lavouras da rubiácea. E,
nada mais eloquente para documentar o fato, do que a inspeção das diversas
cartas geográficas da região centro meridional do Império, os mapas
395
CABRAL, Diogo de Carvalho. Op. cit.; p. 330. 396
VITTORETTO, Bruno Novelino. Op. cit.; p. 46.
122
sucessivamente impressos, onde vemos os núcleos de população, vilas e
cidades surgirem rapidamente em zonas onde, havia bem pouco, reinava a
solidão e vagueavam índios. Grande número de mineiros, famílias inteiras,
se despejaram das terras do planalto para as da Mata do Rio, que uma vez
tomadas pelo cafezal, transpusera este o Paraíba, invadindo uma zona
ubérrima, a Mata de Minas397
.
Pelo fato do café ser uma cultura adaptada a terrenos elevados, normalmente distantes
dos centros de comércio externo localizados no litoral, seu cultivo tornava a questão dos
custos de transportes estratégica ao seu processo de reprodução baseado num sistema de uso
extensivo do solo que sempre expandia sua fronteira e interiorizava sua produção398
e o
precário sistema de transportes numa área que topograficamente não facilitava a empreitada
de construção de estradas, como era o caso de Minas Gerais, foi um dos grandes obstáculos à
expansão da cafeicultura.
O sistema de transportes da Zona da Mata para o escoamento da produção começou a
dar sinais de desgaste ao limitar o efetivo processo de incorporação produtiva à área limítrofe
à província do Rio de Janeiro, prejudicando pelo impacto nos custos das unidades a expansão
da cultura cafeeira em direção às áreas norte e nordeste da Mata que só se deu a partir da
segunda metade do século XIX399
.
Destarte a expansão da cultura na Zona da Mata na primeira metade do século XIX,
apesar das condições ecológicas favoráveis, foi marcantemente inferior à expansão na
província fluminense devido a questão fundamental dos custos de transporte, o que acabou
por provocar uma defasagem entre os ciclos cafeicultores das duas províncias. O posterior
desenvolvimento do sistema viário da Zona da Mata provocou um impulso ao processo de
expansão da cultura cafeeira na região a princípio com a inauguração da rodovia União
Indústria, em 1861, que melhorou significativamente as condições de transporte entre a Mata
mineira e o Rio de Janeiro, permitindo um maior fluxo comercial da produção, poupando
tempo e recursos400
.
Haviam as estradas imenso melhorado, as sedes dos seus municípios tinham
deixado de ser pequeninos vilarejos, para se converter em núcleos de feitio
urbano adiantado. Por toda a parte, subiam as lavouras pelas lombadas
daquelas terras acidentadas. Milagres fazia o café, transmutando o seu valor
397
TAUNAY, Affonso. Op. cit.; p.117. 398 DEAN, Warren. Op. cit. 399
PIRES, Anderson. Tendências da produção agroexportadora da Zona da Mata de Minas
Gerais (1870-1930). In: Locus: Revista de História. Juiz de Fora, v. 3, n°. 2, julho-dezembro de 1997. 400
Id. Ibid.
123
em benefícios da civilização. A iniciativa particular conseguira resultados
surpreendentes401
.
Os continuos incrementos nos meios de transporte possibilitou uma larga expansao na
cafeicultura sem precedentes, já que a disponibilidade de terras, sobretudo de áreas em mata,
em regiões interioranas com clima e altitude favoráveis caracterizavam-se como espaços
plenamente aptos à cafecultura, que foram finalmente explorados quando o desenvolvimento
tecnológico do setor de transporte permitiu acessá-los. Em verdade, as ferrovias brasileiras
surgiram no período oitocentista para atender quase que exclusivamente às exigências
impostas pela economia cafeeira, pois verifica-se que em certas regioes as linhas férreas eram
construídas para atender áreas cafeicultoras402
.
Contemporaneamente, outro grande núcleo se forma, galgando as encostas
da serra marítima pelo vale do Santana e outros, para atingir o plantio.
Domina os distritos vassourense, piraiense, paraibano, transpõe o Paraíba em
terras valencianas para ocupar o vale do Rio Preto, seguindo em grande
transbordamento além da fronteira de Minas, sobretudo em Juiz de Fora e no
vale do Paraibuna. (...) Acompanhando o Paraíba, marcham os cafezais para
Sapucaia e Porto Novo e invadem a Mata mineira onde, havia bem pouco,
existia admirável floresta isolada dos núcleos civilizados e refúgio de índios.
(...) Assim, as terras limítrofes do Paraíba se povoam de lavouras e mais
lavouras, ricas, por vezes riquíssimas, em Mar de Espanha, Rio Novo,
Pomba e Leopoldina. Cada vez mais distantes do litoral, procuram as
cabeceiras dos rios que vertem para o Doce403
.
O impacto do processo de expansão da rede ferroviária da Mata a partir da década de
1870 foi bastante significativo, pois contribuiu para a diminuição dos custos e do tempo de
transporte tornando-o muito mais eficiente e permitindo o avanço da fronteira agrícola pela
região e uma contínua ampliação da produção e consolidou definitivamente o processo de
incorporação produtiva da Mata principalmente em relação ao centro comercial e ao porto
localizados no Rio de Janeiro. Aliada a instalação da malha ferroviária, chegou até a Mata
empreendimentos como bancos, energia elétrica, transportes urbanos, indústria e casas
comerciais por meio da diversificação do capital agrário originado nas unidades produtoras de
café404
.
401
TAUNAY, Affonso. Op. cit.; p.123. 402 SILVEIRA, José Mauro Pires. O café e a estrada de ferro Leopoldina: uma confluência de
interesses (1874-1898). In: Revista de C. Humanas, Vol. 9, Nº 1, p. 107-117, Jan./Jun. 2009; p. 112. 403
TAUNAY, Affonso. Op. cit.; p.234. 404
PIRES, Anderson. Tendências da produção agroexportadora da Zona da Mata de Minas
Gerais (1870-1930). In: Locus: Revista de História. Juiz de Fora, v. 3, n°. 2, julho-dezembro de 1997.
124
Acompanhando a tendência nacional, a cafeicultura na Mata alcançou um movimento
ascendente a partir da segunda metade só século XIX, consolidando-se como uma economia
agroexportadora e em razão disto a região tornou-se a maior importadora de escravos de
Minas, apresentando um número de 34.512 escravos405
. De fato o apogeu da produção
cafeeira se deu quando o tráfico negreiro havia se encerrado definitivamente com a Lei
Eusébio de Queiroz de 1850 e o afluxo de escravos intra e interprovincial em direção à Mata
de Minas demonstra a pujança de sua economia.
No Brasil, uma das soluções tentadas depois do fim do tráfico africano em
1850 foi a compra de escravos das províncias menos prósperas do Norte e do
Nordeste pelos bem sucedidos fazendeiros de café, cujas fazendas se
situavam no vale do Paraíba. Uma tese recente demonstrou estatisticamente
que o tráfico intraprovincial no Rio de Janeiro, de municípios menos ricos
em direção à fronteira do café, foi ainda mais importante. O tráfico interno
foi uma solução adotada por quase todos os países escravistas, em maior ou
menor medida, uma vez encerrado o tráfico africano. Na ausência duma
mudança radical dos padrões demográficos da população escrava, só podia
ser um paliativo, uma solução momentânea que adiava o colapso do sistema
escravista sem poder impedi-lo406
.
Contudo ao contrário da província fluminense, o impacto da abolição da escravidão
sobre a estrutura agroexportadora de Minas Gerais não foi muito grande. Ainda que suas
unidades produtivas tivessem na mão de obra escrava um suporte fundamental e o plantel de
escravos representassem um empate significativo de capital – representando em média 50%
do valor total da unidade – a evolução da produção indica que a produção agroexportadora se
recuperou rapidamente atingindo em 1891 índices superiores aos que mantinha no período
imediatamente anterior à abolição. Esta rápida recuperação foi em parte resultado de uma
conjuntura altamente favorável dos preços do café iniciada em 1891, pois a crise do
encilhamento, com seu poderoso processo inflacionário, provocou uma profunda depreciação
cambial e elevou enormemente os preços internos do café, provocando uma abrupta elevação
dos lucros407
.
Apesar da influência exercida pela expansão e deslocamento da produção de regiões
contíguas entre o Vale do Paraíba fluminense e a Zona da Mata de Minas na determinação da
estrutura social e agrária, a maior oferta de terras que viabilizavam a expansão da produção
405
SILVEIRA, José Mauro Pires. O café e a estrada de ferro Leopoldina: uma confluência de
interesses (1874-1898). In: Revista de C. Humanas, Vol. 9, Nº 1, p. 107-117, Jan./Jun. 2009; p. 111. 406
CARDOSO, Ciro Flamarion. Op. cit.; p. 163. 407
PIRES, Anderson. Tendências da produção agroexportadora da Zona da Mata de Minas
Gerais (1870-1930). In: Locus: Revista de História. Juiz de Fora, v. 3, n°. 2, julho-dezembro de 1997.
125
em Minas Gerais garantiu que esta província tivesse condições de responder melhor ao fim da
escravidão. Este traço fundamental das condições objetivas da produção, centrado na lógica
do sistema extensivo do solo, evidenciava uma situação ainda bastante propícia para a
realização do movimento de reprodução ampliada das unidades agroexportadoras da região,
constituindo-se como o principal diferencial da reorganização econômica das unidades no
imediato pós-abolição entre ambas regiões.
A conformação de formas de trabalho livre, representadas pelos sistemas de parceria e
meação, apresentava níveis de mercantilização claramente inferiores aos encontrados em
sistemas mais dinâmicos como o da cafeicultura paulista, mas ainda assim constituíram um
importante elemento de transição que assegurou o crescimento e a diversificação da economia
local.
Os “salários” pagos na cafeicultura da Mata eram significativamente
inferiores àqueles pagos na cafeicultura de São Paulo, o que obviamente vai
se refletir num menor potencial de geração de efeitos de cadeia de consumo
na região. No entanto, isto não quer dizer que a transição não tenha se
efetivado, a seu modo, na Mata mineira, nem que a massa salarial originada
na cafeicultura não tenha tido seu impacto, ainda em termos de efeito de
consumo, sobre as estruturas socioeconômicas locais408
.
Desta maneira, a partir da abolição da escravidão as relações de trabalho no campo
alteraram-se significativamente, resultando na composição de uma intensa variedade de
relações de trabalho em que várias delas correspondiam à remuneração monetária. A
remuneração monetária foi ganhando força nas áreas mais dinâmicas da economia cafeeira e
seus ecos se faziam sentir nos setores de abastecimento do mercado interno e na elevação da
renda dos comerciantes, já que uma parte considerável da renda desses assalariados era gasta
em produtos de subsistência. A instauração da remuneração da força de trabalho provocou
uma rearticulação do produtor direto com os bens necessários a sua sobrevivência. A partir
desse episódio o mercado começou a constituir-se como o elemento fundamental de mediação
entre o trabalhador e os bens de subsistência409
, transformando a relação daquele com a
natureza ao romper sua conexão exclusiva com os meios de produção, neste caso, a terra410
.
A crise e ruptura definitivas das formas de trabalho compulsórias vão
implicar, independente dos níveis de distribuição de renda, em algum grau
de mercantilização da força de trabalho (e não mais do trabalhador, como no
408
PIRES, Anderson. Café, finanças e indústria: Juiz de Fora 1889-1930. Op. cit.; p. 81. 409 SINGER, Paul. Op. cit.. 410 MARX, Karl. Modos de produção pré-capitalistas. Op. cit.
126
caso da escravidão) e, dessa maneira, na remuneração monetária do produtor
direto, o que significa que o mercado vai se constituir como elemento
fundamental de mediação para o acesso a bens e serviços imprescindíveis à
sua sobrevivência. A parcela monetária originada no processo de produção
do produto básico, ao se constituir em remuneração do trabalho, representa
a formação de uma estrutura de demanda inexistente até então e que vai
acabar por se colocar, efetivamente, como a base do processo de
industrialização local411
.
Os maiores níveis de mercantilização, juntamente com a diversificação do capital
agrário gerado nas unidades agroexportadoras, que fomentou o comércio o desenvolvimento
industrial, liberou uma demanda antes insolvente, dinamizando a economia regional. Ao
contrário do que ocorreu com a economia agroexportadora fluminense quando da abolição da
escravidão, tal evento trouxe vigor à economia regional da Mata, provocando a sua
modificação estrutural através da ampliação dos níveis de monetização e da consequente
dinamização do mercado interno de bens assalariados, que representaram o impulso
necessário para a diversificação urbano-industrial412
, aperfeiçoando assim a divisão social do
trabalho fundamentada na distinção entre o campo produtor de café e bens agropecuários em
geral e a cidade fornecedora de serviços e bens manufaturados413
.
Através da análise comparativa das tendências da produção de Minas Gerais em
relação aos núcleos de produção agroexportadores mais antigos localizados no Vale do
Paraíba fluminense é possível determinar os limites básicos no interior dos quais ocorreu o
processo de transição para relações de trabalho assalariadas que se verificou em ambas
regiões a partir do fim do século XIX. Ainda que a expansão cafeeira no Rio de Janeiro e na
Mata mineira em seu momento inicial fosse o desdobramento de processos estruturalmente
semelhantes, a maior distância das unidades agroexportadoras da Mata frente ao núcleo de
comercialização localizado no Rio de Janeiro definiru um traço específico na evoluçao da
produção da Zona da Mata.
O futuro da lavoura fluminense era sombrio. Estava a sua cafeicultura,
outrora tão próspera, ameaçada de extermínio. (...) Sobre ela pesavam dois
grandes óbices: o declínio da produção, decorrente das condições de seus
solos escarpados e a falta de braços. Já não havia na Província terras por
onde se expandissem as novas plantações. Ao colono estrangeiro repugnava
411
PIRES, Anderson. Café, finanças e indústria: Juiz de Fora 1889-1930. Funalfa: Juiz de Fora,
2009; p. 82. 412 LANA, Ana. A transformação do trabalho: a passagem para o trabalho livre em Minas Gerais
(1870-1920). Dissertação de Mestrado, UNICAMP, Campinas, 1985. 413 MARX, Karl. Modos de produção pré-capitalistas. Op. cit.
127
trabalhar no pesado labor do café e em zona onde reinava, exclusivamente, o
regime servil. (...) Em Minas Gerais, dizia o Dr. Pinto de Figueiredo,
continuava ascensional a marcha da expansão cafeeira. Ainda tinha a
rubiácea à sua frente larga área de expansão414
.
A partir da década de 1881/90 a diferenciação entre os respectivos movimentos da
dinâmica agroexportadora fica claro, evidenciando que o processo associava-se à distintas
condições objetivas da produção agroexportadora de ambas regiões no final do século XIX,
definindo uma grande diferença nas possibilidades de reorganização da produção no imediato
pós-aboliçao e de recuperação econômica com o advento da crise dos preços de 1898/1910415
.
A abolição da escravidão teve por efeito deflagrar a crise que se encontrava em
andamento nos núcleos agroexportadores do Rio de Janeiro devido a pouca disponibilidade de
terras que garantissem o método de produção extensivo e que com o fim da mão de obra
escrava a produção se desorganizou fazendo a economia cafeeira fluminense entrar em
colapso416
. Desde então os núcleos agroexportadores da região não contaram com o impulso
necessário para reoganizar sua economia e responder aos estímulos dados pelo aumento dos
preços, o que fez com que sua participação na produção nacional declinasse cada vez mais.
A lavoura fluminense, sobretudo, sofrera terrível golpe, cujas consequências
seriam irreparáveis na maioria dos casos individuais, daí provindo uma
transformação profunda no cadastro dos agricultores fluminenses. Em Minas
Gerais, tais consequências seriam menos sérias. Em S. Paulo, a previdência
dos lavradores e dos poderes provinciais, atraindo e fixando nos cafezais
numerosos colonos europeus, quase sempre italianos, fazia com que se
atenuassem imenso os maléficos resultados de tão violenta crise da
transformação do trabalho417
.
Ainda que as condições da produçao em Minas Gerais não tivessem sido tão
favoráveis ao processo de acumulação agroexportadora como em São Paulo, elas não
representaram a decadência das undades produtivas do Rio de Janeiro, onde elas chegaram a
inviabilizá-lo418
. Isto pode ser verificado através da comparação entre as produções do Rio de
Janeiro e de Minas Gerais no período: em 1835 a produção da província do Rio de Janeiro
414
TAUNAY, Affonso. Op. cit.; p. 137. 415 PIRES, Anderson. Tendências da produção agroexportadora da Zona da Mata de Minas
Gerais (1870-1930). In: Locus: Revista de História. Juiz de Fora, v. 3, n°. 2, julho-dezembro de 1997. 416 PEIRSON, Paul. Big, slow-Moving, and… Invisible; Macro Social Process in the Study of
Comparative Politics. In Comparative Historical Analysis in the Social Sciences. Cambridge
University Press. New York. 2003. 417 TAUNAY, Affonso. Op. cit.; p. 141. 418 PIRES, Anderson. Tendências da produção agroexportadora da Zona da Mata de Minas
Gerais (1870-1930). In: Locus: Revista de História. Juiz de Fora, v. 3, n°. 2, julho-dezembro de 1997.
128
atingiu um milhão de arrobas, montante que a província mineira só atinge em torno de 1860,
sendo que naquele ano a produção de Minas Gerais correspondeu a apenas 18% da produção
fluminense419
.
A posição de Minas Gerais frente a produção nacional permaneceu constante, em
torno de 20%, ao longo do período entre a décadas de 1870 e 1920, mantendo uma
participação proporcional no total da produção do país. Assim Minas Gerais permaneceu entre
a ascenção pujante de São Paulo e o declínio do Rio de Janeiro. Entre 1876/1880 e 1921/1930
o total da produção nacional cresceu em torno de 340% ao passo que a de Minas Gerais
cresceu em torno de 349%, acompanhando o ritmo de crescimento da produçao total do país,
demonstrando o movimento de expansão da produção agroexportadora mineira420
.
Dessa forma, será evidenciado o papel intermediário da cafeicultura de
Minas Gerais diante o processo de produção da commodity no país. Quer
dizer que a agricultura cafeeira da Mata se estabeleceu exatamente entre os
dois ciclos da rubiácea nas principais regiões cafeicultoras do Brasil, Rio de
Janeiro e São Paulo. No entanto, o fato da região mineira do café não ter
assumido a liderança do produto primeiro em relação ao Rio de Janeiro, e
depois em relação a São Paulo, não diminui sua importância econômica,
assim como a sua capacidade de diversificação econômica na transição
capitalista. De fato, o que ocorreu na Zona da Mata foi a conformação de um
complexo agroexportador periférico, delineado por características
diferenciadas diante os demais complexos cafeeiros, principalmente por sua
natureza interiorana421
.
Assim a cafeicultura matense desenvolveu-se no contexto de uma economia de
natureza fundamentalmente exportadora, mas limitada a um espaço interiorano por sua
localização geográfica e político-administrativa. Tal contradição engendrou a separação entre
sua estrutura agroexportadora e aquela de sua comercialização externa, resultando em uma
assimetria de fluxos de recursos que marcara sua situação periférica diante do conjunto das
demais estruturas agroexportadoras contemporâneas que se desenvolveram no país422
.
Além disso, outra característica específica da evolução da economia agroexportadora
da Zona da Mata mineira que a diferencia especificamente da fluminense foi a preservação de
condições de reprodução econômica determinadas pela existência de matas virgens no interior
das unidades produtivas até pelo menos a década de 1920 em parte devido ao atraso marcado
419
CANO, Wilson. Op. cit. 420
PIRES, Anderson. Tendências da produção agroexportadora da Zona da Mata de Minas
Gerais (1870-1930). In: Locus: Revista de História. Juiz de Fora, v. 3, n°. 2, julho-dezembro de 1997. 421
VITTORETTO, Bruno Novelino. Op. cit.; p. 22. 422
PIRES, Anderson. Café, finanças e indústria: Juiz de Fora 1889-1930. Op. cit.; p. 117.
129
entre ambos os ciclos que resultou da dificuldade inicial de expansão da fronteira agrícola
pela questão estratégica conferida aos custos e tempo envolvido no transporte da mercadoria.
A disponibilidade de áreas em mata no interior das unidades produtivas foi fator foi
preponderante para que a produção da Mata mineira tivesse condições de reestruturar sua
organização produtiva e conseguisse desta forma responder aos estímulos do mercado. Isto
permitiu a ocorrência do processo de acumulação do capital cafeeiro, assegurando sua
hegemonia na determinação da dinâmica interna da estrutura econômica identificada com a
região.
Deste modo, compreendemos que a crise por que passa o Vale do Paraíba –
em particular, Paraíba do Sul, no final do século XIX – não pode ser
interpretada como uma decorrência de uma crise do “produto” café e nem
como uma consequência em si da crise do trabalho escravo. Entendemos que
a crise de Paraíba do Sul é resultante do definhamento, na região, do sistema
agrário, mediante o qual era realizada a produção do café423
.
Destarte podemos concluir que a abolição da mão de obra escrava configurou-se como
uma causa necessária para o colapso dos núcleos agroexportadores do Rio de Janeiro naquele
momento específico ao tornar evidente a crise que já estava instalada no interior de suas
unidades produtivas, mas não é suficiente para explicar seu colapso já que a economia
cafeeira mineira demonstrou vigor necessário para superar a crise, pois detinha o fator crucial
para tal realização que era a oferta de terras virgens cuja incorporação proporcionavam
maiores rendimentos que os solos já desgastados pela cultura424
.
Em outras palavras, a Zona da Mata apresenta uma posição intermediária
frente aos núcleos agroexportadores do Rio e de São Paulo no que se refere
ao potencial de produção e de acumulação do capital cafeeiro: se esteve
longe do dinamismo que caracterizou o núcleo paulista, também não
experimentou o quadro de crise e decadência testemunhado pelo núcleo
fluminense425
.
423 FRAGOSO, João. Op. cit.; p. 119. 424
MAHONEY, James. Strategies of causal assessment in comparative Historical analysis. In
Comparative Historical Analysis in the Social Sciences. Cambridge University Press. New York,
2003. 425
PIRES, Anderson. Café, finanças e indústria: Juiz de Fora 1889-1930. Op. cit.; p. 34.
130
3.3 Uma breve história de Cataguases
O leste de Minas Gerais – expressão que denotava toda a região entre a atual Zona da
Mata mineira e a do Jequitinhonha-Mucuri-Doce – permaneceu intacta frente ao processo de
ocupação intensivo e sistemático promovido durante o período áureo da mineração na
capitania. Com a densa cobertura vegetal que caracterizava a floresta ombrófila da Mata
Atlântica até então preservada e as populações indígenas tidas como antropófogas que para ali
se refugiaram nos três primeiros séculos da colonização portuguesa, a região funcionava como
uma barreira verde, uma barragem natural assim mantida com a intenção de coibir o
contrabando426
.
Há na cidade de Cataguases uma pacata avenida com uma praça pública de frente para
uma escola de mesmo nome que abriga uma estátua em memória do militar e indianista
francês Guido Thomaz Marlère, fundador do primeiro marco civilizatório do que viria a se
tornar o município de Cataguases. Em sua homenagem consagrou-se com seu nome à
mencionada avenida e a escola defronte a ela.
Antes mesmo da chegada dos bandeirantes que desbravavam os sertões da região,
diversos grupos indígenas habitam a Zona da Mata, sendo comumente conhecidos como Puri,
Coroado e Coropó. As notícias sobre esta presença indígena se espalhavam por toda a região
dos rios Pomba, Paraíbuna, Muriaé e Xipotó e de acordo com a maioria dos cronistas seriam
estes os descendentes dos Goitacá, que teriam migrado do litoral fluminense para a região que
mais tarde seria denominada Zona da Mata. Além destes grupos mais conhecidos, diversos
outros se localizavam passageira ou permanentemente ao longo dos rios Pomba e Muriaé,
como os Abaíba, os Guarulho, os Caramonã, os Puriaçu e os Tamoio. Contudo as fontes dão
primazia aos Puri e Coroado, ressaltando de forma vaga a presença dos Coropó e isto se
explica porque no início do Dezenove, época em que os viajantes cronistas elaboravam seus
registros, estes grupos já viviam aldeados na região que abrange atualmente, entre outros, o
município de Cataguases427
.
426
AGUIAR, José Otávio. Ecos da marselhesa nos sertões indígenas do rio Pomba: Guido Thomaz
Marlère, sua influência sobre a colonização da mata Central e a presença de sua memória. In:
LANZIERI JÚNIOR, Carlile; FRADE, Inácio. Muitas Cataguases: Novos olhares acerca da
história regional. Editar: Juiz de Fora, 2006; pp. 16-17. 427
OLIVEIRA, Ana Paula de Paula Loures de; SIMÕES, Maria Cecília dos Santos Ribeiro. Pré-
história, etno-história e outras histórias da Zona da Mata mineira. In: LANZIERI JÚNIOR, Carlile;
FRADE, Inácio. Muitas Cataguases: Novos olhares acerca da história regional. Editar: Juiz de
Fora, 2006; pp. 16-17.
131
Tais aldeamentos eram organizados por chefes de Estradas que vinham desbravar os
sertões do leste mineiro, entre os quais se destaca a figura do Coronel Guido Tomas Marlère,
nomeado Diretor Geral dos Índios e que em razão de suas realizações ficaria conhecido como
a primeira figura da civilização dos indígenas de Minas Gerais428
.
Este emigrado francês aportara em Vila Rica em 1811 quando de seus 25 ou 26 anos e
após engajar-se na milícia, graduou-se em posto de oficial com direito a comando. Mas foi
nos primeiros anos do Império, logo após a proclamação da independência, mais precisamente
no ano de 1824, que Dom Pedro I nomeou Guido Marlère Coronel Comandante das Divisões
Militares do Rio Doce, Inspetor-Geral das Estradas e Encarregado da Civilização e Catequese
dos Índios daquela região e Incumbido dessas atribuições, Marlère promoveu aldeamentos,
demarcou povoações, abriu estradas e “pacificou” milhares de silvícolas que passaram então a
integrar a comunidade brasileira429
.
No ano de 1828 chegava ele em viagem de inspeção ao Porto dos Diamantes, um
lugarejo às margens do rio Pomba com não mais que trinta e oito fogos de brasileiros e
algumas aldeias de coroados, coropós e puris, onde se encontrava aquartelada a Terceira
Divisão Militar. Ali o então inspetor dos serviços da estrada de Minas aos Campos dos
Goytacazes aceitou solenemente a doação de terrenos que fazia o sargento de ordenanças
Henrique José de Azevedo, um dos poucos habitantes daquele ermo, a fim de que ali se
erigisse uma capela e se fundasse uma povoação. E assim foi feito, a capela foi construída sob
a invocação de Santa Rita, filial da Matriz de São João Batista do Presídio e os limites da
nova povoação – que passaria a se chamar Meia-Pataca por encontrar-se o terreno doado
defronte ao ribeirão de mesmo nome – foi traçado430
.
Permaneceu na memoria oral da região do Antigo Quartel do Galo – hoje
cidade de Belo Oriente, no vale do rio Doce – a informação de que Marlière,
por onde andasse, carregava sempre consigo, em um pequeno saco de pano
amarrado ao boné que compunha sua farda, muitas sementes de café, que
plantava por todos os lugares por onde andasse431
.
428
OLIVEIRA, Ana Paula de Paula Loures de; SIMÕES, Maria Cecília dos Santos Ribeiro. Op. cit. In:
LANZIERI JÚNIOR, Carlile; FRADE, Inácio. Muitas Cataguases: Novos olhares acerca da
história regional. Editar: Juiz de Fora, 2006; pp. 16-17. 429
RESENDE, Enrique de. Pequena história sentimental de Cataguases. Itatiaia: Belo Horizonte –
São Paulo, 1969; pp. 21-22. 430
SILVA, Arthur Vieira de Rezende e. Genealogia dos fundadores de Cataguases. ACBF: Rio de
Janeiro, 1934; p. 11. 431
AGUIAR, José Otávio. Op. cit. In: LANZIERI JÚNIOR, Carlile; FRADE, Inácio. Muitas
Cataguases: Novos olhares acerca da história regional. Editar: Juiz de Fora, 2006; p. 32.
132
É difícil precisar a diferença entre o que é fato e o que é lenda em torno da imagem de
figuras históricas que ganham importância no imaginário das pessoas de determinado lugar.
Certo é que a imagem de Marlère para muitos ainda se associa à figura de um semeador, de
pai fundador, e o café, ao engendrar um processo de ocupação mais consistente e fomentar a
diversificação econômica, firmou-se como um símbolo da identidade da região.
A lei provincial nº. 209, de 07 de abril de 1841 elevou o povoado a curato ao criar a
paróquia ou freguesia de São Januário de Ubá, determinando que o mesmo passasse a integrar
a referida paróquia com o nome de Santa Rita do Meia Pataca, o que significa que curato não
passava de simples distrito eclesiástico, não sendo ainda uma divisão administrativa civil ou
política. Era o lugar nessa época circundado ainda por bravio e opulento mato, com algumas
choupanas espaçadas e de léguas em léguas uma fazenda em fundação432
.
Foi por este tempo, mais precisamente em 1842, que penetrou nestes sertões Joaquim
Vieira da Silva e Pinto, mais tarde o Major Vieira, que acompanhado por seus escravos e
abrindo picada na mata virgem, fundou a Fazenda da Glória, um latifúndio de três mil de
alqueires de terras a três léguas do povoado, que se estabeleceu como tronco na numerosa
família Vieira. Já em 1844, portanto dois anos após o início da construção de sua fazenda, o
Governo Provincial nomeava-o Guarda-mor substituto das minas do município de Ubá, por
diploma de 06 de setembro do daquele ano, e em 14 de abril do ano seguinte foi nomeado
Guarda-mor das minas do distrito do Meia-Pataca, à margem esquerda do Pomba, no
município de Leopoldina. Destarte sob sua liderança e atuação junto às autoridades
provinciais, conseguiu elevar o curato à freguesia. Assim, no mesmo ano em que Joaquim
Vieira da Silva Pinto foi distinguido com o título de Major pelo governo imperial, a lei
provincial nº. 534 de 10 de outubro de 1851 elevou o curato de Santa Rita do Meia-Pataca à
freguesia, a qual foi anexada o de São Francisco de Assis do Capivara e o de Nossa Senhora
da Conceição do Laranjal, que constituindo a freguesia de Santa Rita do Meia Pataca, com
sede no arraial deste nome, não era mais que simples povoados, com exclusivos benefícios
eclesiásticos433
.
Com o passar do tempo, demarcaram-se em redor da Fazenda da Glória, vários sítios e
fazendas, cujas terras anteriormente incultas tornavam-se prodigamente produtivas. No
processo de ocupação destes sertões o café muito contribuiu no desbravamento das matas, na
abertura de caminhos e na integração dos lugares, consolidando-se nas últimas décadas do
Dezenove como o principal produto de exportação de Cataguases. Desta maneira:
432
SILVA, Arthur Vieira de Rezende. Op. cit.; p. 11. 433
Id. Ibid.; p. 12.
133
As derrubadas, as queimadas, o plantio do café, com a escravaria no eito, em
sucessivos mutirões, davam a impressão de que uma nova era despontava. A
opulência daqueles vales, banhados por rios anônimos e selvagens, e a
fertilidade daquelas serras, ainda recobertas de espessa vegetação, atraiam
sitiantes e fazendeiros, que se transportavam, dois mais longínquos pontos
da Província, para o novo Eldorado – a Zona da Mata434
.
Nas primeiras décadas de ocupação, quase sempre as florestas apareciam nos
relatórios da época como um empecilho a ser afastado pela civilização. Habitualmente
encarada como reduto de feras humanas e animais ou fator de isolamento, a presença da mata
era entendida como falta de beneficiamento e desleixo com a propriedade na visão dos
fazendeiros.
Finalmente a 25 de novembro de 1875 era sancionada a Lei Provincial nº. 2180 que
criava o município de Cataguases, composto das freguesias do Meia-Pataca, Laranjal e
Empoçado, desmembradas dos municípios de Leopoldina, Ubá e Muriaé e das freguesias de
Santo Antônio do Muriaé e Capivara, sendo Meia-Pataca eleita a sede do município elevado à
categoria de Vila, com o nome de Cataguases.
O vocábulo “Cataguases” é indígena e sua tradução mais aceita é a de Diogo
de Vasconcelos e Napoleão Reys, que o traduzem por “Gente Boa”, sendo
sua forma original “catu-auá”. João Mendes traduz a palavra por “terra das
lagoas tortas” e Nogueira Itagiba afirma que a tradução correta seria “povo
que mora no país das matas”. O que é certo, no entanto, é que o vocábulo
servia, originalmente, para denominar uma tribo indígena que, ao expirar o
século XVII, vivia numa região e temor impunha ao branco invasor. Por isso
ou por outras razões, todo o sertão aurífero foi, de começo, denominado
sertão dos Catu-auá, ou como dizem os brancos, Cataguases, nome que se
generalizou para todo o sertão ao norte da Mantiqueira, sem limites
apontados, para o interior do continente. Esta denominação, que foi a
primeira usada, de modo genérico para o território de toda Minas Gerais,
persistiu até 1721, quando se deu a nomeação do primeiro Governador do
território, D. Lourenço de Almeida, figurando já, então, a denominação de
Capitania das Minas Gerais. No entanto, a escolha do nome Cataguases para
a antiga povoação do Meia Pataca deveu-se exclusivamente a uma razão
sentimental, ditada por José Vieira, filho do Major Joaquim da Silva Pinto, a
cujos esforços o local devia os maiores impulsos ao seu progresso;
realmente, quando o Major Joaquim Vieira aportara com sua família no
latifúndio, seu filho José Vieira, que nascera na fazenda do Bom Retiro, a 20
de agosto de 1829, contava aproximadamente 13 anos; quando da criação do
município, o evento deu-se quase que exclusivamente por exemplo e
prestígio deste então Coronel José Vieira que sugeriu e batalhou pelo nome
de Cataguases , a mesma denominação de um riacho que banhava a fazenda
434
RESENDE, Enrique de. Op. cit.; pp. 25-26.
134
do Bom Retiro, onde passara ele sua meninice, antes de vir para o latifúndio
do Meia Pataca435
.
Contudo, apesar de ter sido criada em 1875, a Vila somente foi inaugurada no dia 07
de setembro de 1877, quando se completavam exatos cinquenta e cinco anos da declaração de
independência do Brasil436
.
O ano de 1877 trouxe consigo não apenas a implantação do município, como
também a inauguração do ramal da Estrada de Ferro Leopoldina. Vale ainda
lembrar que a implantação da via férrea simbolizou um enorme avanço para
a produção agrícola e cultural da época, proporcionando maior facilidade de
escoamento da produção e de contato com outras regiões. As províncias e a
capital do Império, Rio de Janeiro, importante porto exportador, ficaram
mais próximas do interior. Na economia, houve uma mudança considerável,
com o aumento da produção de café e cereais para abastecer o mercado intra
e interprovincial437
.
A vila era o ponto terminal da Estrada de Ferro Leopoldina. A estação ferroviária foi
inaugurada no mesmo ano em que Cataguases foi elevada à vila, quando ainda contava com
uma população pequena, sobretudo na zona urbana, e quando a produção agrícola ainda era
bastante engajada em gêneros de subsistência. Portanto os cafezais ainda estavam sendo
montados em Cataguases, enquanto Leopoldina, na mesma época, já possuía uma produção
cafeeira considerável, o que confere contornos peculiares ao episódio da implantação da
Estação ferroviária no município que parecia ser o menos óbvio a recebê-la. A implantação e
a expansão das ferrovias na região sul da Mata a partir da década de 1870 se associavam à
expansão da fronteira do café e consequentemente ao aumento no volume exportado. Em São
Paulo, que já nessa época era o centro cafeicultor mais pujante e dinâmico do país, é
conhecido o fato de que as estradas de ferro se antecipavam ao movimento de expansão
realizada pela fronteira do café, mas o caso de Cataguases relativo à criação da estação
ferroviária e à montagem da cafeicultura obviamente se deu por outro motivo, já que esta
tendência da cafeicultura paulistana não se verifica na Mata mineira.
Na origem da Estrada de Ferro Leopoldina, verifica-se claramente a
participação dos senhores latifundiários do café, principalmente os do
município de Leopoldina, que a batizaram com esse nome. Em 1871,
Leopoldina estava no contexto do Sul da Mata entre os municípios mais
435 Enciclopédia dos Municípios Brasileiros - Volume XXIV. IBGE: Rio de Janeiro, 1958. 436
RESENDE, Enrique de Op. cit.; pp. 30-31. 437
FANNI, Silvana. Escravidão, economia e liberdade. In: LANZIERI JÚNIOR, Carlile; FRADE,
Inácio. Muitas Cataguases: Novos olhares acerca da história regional. Editar: Juiz de Fora, 2006;
p. 63-64.
135
prósperos da cultura cafeeira, por isso, usando dos seus prestígios políticos,
os cafeicultores irão conseguir do governo provincial a autorização para que
fosse organizada um companhia para construir a Estrada de Ferro
Leopoldina entre Porto Novo do Cunha (hoje Além Paraíba), onde já existia
um ramal da Estrada de Ferro D. Pedro II , e a cidade de Leopoldina. A
empresa então organizada com capitais brasileiros e ingleses, tendo seus
estatutos aprovados, iniciou os seus trabalhos a partir de 05/06/1872,
cabendo ao engenheiro João Gomes do Val, o projeto de construção dos
primeiros 39 km. No dia 08/10/1874, as três primeiras estações foram
abertas ao tráfego: São José(Km3), Pântano (Km 12) e Volta Grande (
Km27). Em julho de 1877, com os trabalhos de construção encerrados, toda
a estrada até Cataguases e o ramal de Leopoldina foram entregues ao
tráfego, perfazendo um total de 120 Km de extensão (PAULA, 2000). É
importante ressaltar que inicialmente a Estrada de Ferro Leopoldina foi
organizada para ligar Porto Novo do Cunha – hoje Além Paraíba – à cidade
de Leopoldina, mas sob alegação de que o terreno próximo a Leopoldina era
difícil, o engenheiro Melo Barreto conseguiu alterar a cláusula do contrato
de construção, passando o terminal da linha-principal para Cataguases.
Contudo, essa mudança vai desagradar por completo os cafeicultores
leopoldinenses, que, se sentindo prejudicados, irão lutar para a construção de
um ramal que ligará a cidade de Leopoldina à linha-principal, na estação de
Vista Alegre438
.
438 SILVEIRA, José Mauro Pires. O café e a estrada de ferro Leopoldina: uma confluência de
interesses (1874-1898). In: Revista de C. Humanas, Vol. 9, Nº 1, p. 107-117, Jan./Jun. 2009; p. 113-
114.
136
QUADRO 01
Estações da Estrada de Ferro Leopoldina de Porto Novo do Cunha a Cataguases
ESTAÇÕES QUILÔMETROS (m)
Porto Novo do Cunha 0.000
São José 2.800
Entroncamento 6.800
Pântano 11.960
Volta Grande 26.440
São Luiz 37.380
Providência 43.360
Santa Izabel 58.480
Recreio 67.120
Campo Limpo 79.480
Vista Alegre 88.240
Aracaty 93.417
Cataguases 105.000
Fonte: Apud. Pessoa Júnior, Ciro Diocleciano Ribeiro. Estudo Descritivo das Estradas de Ferro do
Brasil: Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1886, p. 325-326. In: SILVEIRA, José Mauro Pires. O café
e a estrada de ferro Leopoldina: uma confluência de interesses (1874-1898). In: Revista de C.
Humanas, Vol. 9, Nº 1, p. 107-117, Jan./Jun. 2009; p. 114.
A implantação das estradas de ferro no Brasil esteve em grande parte associada à
necessidade de escoamento da produção cafeeira e isto não foi diferente em relação à
implantação da Estrada de Ferro Leopoldina na região da Mata, cuja meta essencial era
facilitar o transporte de café dos municípios da Mata até o porto do Rio de Janeiro. Desta
maneira, as rotas da Estrada de Ferro Leopoldina ligava quase todos municípios da Zona da
Mata de tal modo que a ferrovia “continuou predominantemente uma ferrovia cafeeira até a
137
década de 1920, quando o valor dos laticínios ultrapassou o valor do café. Como um
empreendimento britânico ela sobreviveu, mas nunca prosperou como nos primeiros anos439
”.
3.4 O Café e a coroação de Cataguases como a Princesa da Mata
A inserção de Cataguases no circuito cafeeiro se deu tardiamente em relação ao
contexto do sul da Mata. A isso se pode atribuir a insipiente densidade populacional e ao fato
de apenas no ano de 1875 ter sido elevado à categoria de vila e ainda assim muito em parte
por uma questão de vontade política do Coronel Comandante Superior da Guarda Nacional
José Vieira de Resende e Silva. Durante seu mandato como deputado provincial:
(...) na Assembleia, e fora dela, José Vieira de Resende e Silva
pensava e repensava na criação da Vila do Meia Pataca, ou seja aquela
que seria a sede do futuro município de Cataguases. A tarefa
apresentava-lhe difícil, senão mesmo irrealizável. Mas, com o imenso
prestigio do pai, e o seu próprio, somados ao de inúmeras e altas
personalidades políticas, que honravam com verdadeira e afetuosa
estima, não se entibiou o grande batalhador440
.
No exercício de seu mandato como deputado, José Vieira de Resende e Silva ainda
contribuiu para que fosse feito os estudos preliminares para a construção da Estrada de Ferro
Leopoldina441
. De todo modo, quando da montagem da cafeicultura em Cataguases, a
localidade em pouco tempo passou a contar com este eficiente meio de escoamento da
produção, sobretudo se tratando de um núcleo agroexportador instalado numa região
interiorana. Seguramente isto contribuiu para que a produção se expandisse rapidamente.
Devido às características que compunham a estrutura agrária e social da localidade,
consideraremos como pequenos cafeicultores aqueles cujo inventário apresentou até 20 mil
cafeeiros, como cafeicultores médios aqueles que possuíam entre 20,001 mil a 100 mil
cafeeiros e como grandes cafeicultores aqueles que possuíam acima de 100 mil cafeeiros.
439 BLESENHEIM, Peter Louis. As Ferrovias em Minas Gerais no século dezenove. In: Lócus:
Revista de História, Juiz de Fora, vol.2, nº 2; p. 109. 440
RESENDE, Enrique de.Op. cit.; p. 30. 441
Id. Ibid; p. 30.
138
QUADRO 02
Proporção dos cafezais (1870-1888)
Nº PÉS Nº PROP. % TOTAL PÉS % MÉDIA PÉS
Não consta
Até 5.000
5.001 a 10.000
10.001 a 20.000
20.001 a 50.000
50.001 a 100.000
100.001 a 200.000
Mais de 200.000
02
40
14
11
09
04
–
01
2,48
49,39
17,29
13,58
11.11
04.91
–
1,24
–
86. 200
112.200
180.100
245.600
293.000
–
240.000
–
7,45
9,71
15,56
21,22
25,32
–
20,74
–
2.155
8.014,28
16.372,72
27.288,88
73.250
–
240.000
TOTAL 81 100 1.157.100 100 14.285,18
Fonte: Inventários post-mortem. Centro de Documentação Histórica.
Deste modo verificamos que no período de 1870-1888 80,26% dos proprietários de
cafezal eram pequenos cafeicultores e que os cafeicultores donos de até 5 mil cafeeiros –
desconsiderando os cafeicultores cujos inventários não indicavam a quantidade de pés de café
– correspondiam sozinhos a metade dos proprietários de cafezal (50,63%), sendo que estes
pequenos cafeicultores concentravam 32,72%, praticamente 1/3, do total de cafeeiros
observados nos inventários deste período. Enquanto isso os grandes cafeicultores nesta
mesma época eram representados por apenas 1 proprietário de cafezal que correspondia a
1,24% do total e concentrava 20,74% dos cafeeiros. Destarte percebemos que neste primeiro
momento a cafeicultura em Cataguases não se mostrava concentrada, estando os pés de café
relativamente bem distribuídos entre os três tipos propostos de cafeicultores, sendo que os
cafeicultores considerados médios apresentavam a maior parcela dos pés de café, 46,57%.
A lavoura contava com o braço escravo desde antes da implantação da cafeicultura,
pois como ocorria em outras localidades da região, ali a escravatura encontrava-se em muitas
propriedades engajadas na produção de alimentos. Contudo, diferentemente de Juiz de Fora –
139
um dos núcleos de expansão cafeeira pioneiro na Zona da Mata442
– Cataguases até depois de
meados do Dezenove ainda era marcado principalmente pela policultura, abastecimento do
mercado interno e só posteriormente incorporou a produção do gênero de exportação.
A região sugerida torna-se peculiar quando se observa que ela possui
características diferenciadas, ao mesmo tempo em que faz parte de uma área
agrário-exportadora, portanto dependente da mão-de-obra escrava; também
possui semelhanças com zonas de produção para a subsistência, não tão
dependente dos braços escravos. Ela encontra-se em um espaço de transição
da Zona da Mata Mineira (...) 443
.
Fazendo um comparativo entre os três períodos ao longo do marco desta pesquisa,
verificamos que a proporção de inventários em que constavam canavial e gêneros de
subsistência frente aos que apresentavam cafezal diminuiu progressivamente. No período de
1870 a 1888 dos 122 inventários examinados 10 inventários (8,19%) apresentaram canavial, 8
(6,55%) milharal, 2 (1,63%) mandiocal, 1 (0,82%) bananal, 1 (0,82%) arrozal e 1 (0,82%)
feijoal, somando 23 (18,85%) inventários contra 81 (66,39%) que apresentaram cafezal. Já no
período de 1890 a 1905 dos 135 inventários 7 (5,18%) apresentaram canavial, 5 (3,7%)
milharal, 1 (0,74%) bananal, 1 (0,74%) batatal e 1 laranjal (0,74%), somando 15 inventários
(11,11%) contra 95 (70,37%) que apresentaram cafezal. Finalmente no período de 1906 a
1930 dos 91 inventários verificamos que 2 (2,19%) apresentaram canavial, 1 (1,09%) feijoal e
1 (1,09%) arrozal, somando 4 inventários (4,39%) contra 46 (50,54%) que apresentaram
cafezal. Assim percebemos que a medida que a fronteira do café avança na localidade, a
produção de cana e alimentos perde importância enquanto a de café aumenta do período de
1870-1888 para o de 1890-1905 para depois declinar no período de 18906-1930 a uma
porcentagem que chega a ser inferior a do primeiro período. A tendência observada em outros
núcleos agroexportadoras também se verificou em Cataguases, uma que:
Um enorme prestígio era associado aos cultivadores de safras de exportação;
nenhum, aos cultivadores de safras de consumo interno; uma escala colonial
de valores que não foi reordenada pela independência política. Na verdade,
foi reforçada pelo recém-conquistado acesso direto aos bens manufaturados
importados que premiava os empenhos dos fazendeiros. O resultado era um
setor agrícola com dois patamares, a “grande lavoura” e a “pequena
lavoura”, e talvez um terceiro patamar de lavoura, marginal demais para
gerar excedentes ou para encontrar vazão para os mercados urbanos444
.
442
VITTORETTO, Bruno Novelino. Op. cit. 443
FANNI, Silvana. Op. cit.. In: LARIERI JÚNIOR, Carlile; FRADE, Inácio. Muitas Cataguases:
Novos olhares acerca da história regional. Editar: Juiz de Fora, 2006; p. 62. 444
DEAN, Warren. Op. cit.; p. 208.
140
Por conta de todos estes fatores mencionados, é bastante compreensível que a estrutura
de posse de escravo fosse dominantemente composta por um pequeno plantel, seja dos
proprietários de escravo não cafeicultores, seja dos proprietários de escravos cafeicultores.
QUADRO 03
Relação entre proprietários e não proprietários de escravos (1870-1888)
Fonte: Inventários post-mortem. Centro de Documentação Histórica.
QUADRO 04
Estrutura da posse de escravos (1870-1888)
Fonte: Inventários post-mortem. Centro de Documentação Histórica.
Tipo de Inventário
Inventário em Geral
% Inventário de Cafeicultor
% Inventário de não cafeicultor
%
Sem escravaria
Com escravaria
61
46
57,01
42,99
34
36
49,57
51,43
27
10
72,97
27,03
TOTAL 107 100 70 100 37 100
Nº de escravos Nº PROP. % Nº total de Escravos
% Média do nº de escravos
Até 5
De 6 a 20
De 21 a 40
Mais de 40
27
14
3
2
58,69
30,44
6,52
4,35
65
152
75
88
17,11
40
19,73
23,16
2,4
10,85
25
44
TOTAL 46 100 380 100 8,26
141
QUADRO 05
Estrutura da posse de escravos dos cafeicultores (1870-1888)
Fonte: Inventários post-mortem. Centro de Documentação Histórica.
QUADRO 06
Estrutura da posse de escravos não cafeicultores (1870-1888)
Fonte: Inventários post-mortem. Centro de Documentação Histórica.
Através da comparação da relação entre os proprietários e não proprietários de
escravos e da estrutura de posse dos escravos verificamos que neste período em Cataguases a
escravaria compunha predominantemente as propriedades cafeicultoras. Todavia, ainda que
quase a totalidade dos escravos observados nos inventários pertencessem a cafeicultores, não
Nº de escravos Nº PROP. % Nº total de
Escravos
% Média do nº de
escravos
Até 5
De 6 a 20
De 21 a 40
Mais de 40
18
13
3
2
50
36,11
8,33
5,56
40
146
75
88
11,46
41,83
21,49
25,22
2,22
11,23
25
44
TOTAL 36 100 349 100 9,69
Nº de escravos Nº PROP. % Nº total de Escravos
% Média do nº de escravos
Até 5
De 6 a 20
De 21 a 40
Mais de 40
9
1
-
-
90
10
-
-
25
6
-
-
80,64
19,36
-
-
2,77
6
-
-
TOTAL 10 100 31 100 3,1
142
foi encontrado nenhum grande proprietário de escravos e apenas cerca da metade dos
cafeicultores possuía algum escravo e atribuímos tal característica das unidades
agroexportadoras locais ao fato da cafeicultura ter se desenvolvido na localidade apenas nas
últimas décadas do escravismo quando o tráfico já havia sido abolido, o que dificultava o
reabastecimento deste tipo de mão de obra e a encarecia muito.
Nos primeiros anos de colonização da localidade as relações de produção eram
caracterizadas pela presença da mão-de-obra familiar e gentia, mas a partir da implantação da
ferrovia e da formação de uma economia agroexportadora houve a necessidade de aumentar o
plantel de escravos para a agricultura, sobretudo nas grandes fazendas após a década de
1870445
. Contudo, conforme foi demonstrado empiricamente, Cataguases nunca se
consolidou como uma área de plantations-escravista.
Devido a estrutura agrária de Cataguases e a dimensão das propriedades consideramos
como pequeno proprietário de terras aqueles cujas propriedades inventariadas somavam até 25
alqueires, como médio proprietário de terras quando somavam entre 25,1 a 100 alqueires e
como grande proprietários quando somavam mais de 100,1 alqueires. Deste modo, no período
compreendido entre 1870 e 1888 a estrutura da posse de terras encontrava-se distribuída de
maneira relativamente igual entre médios proprietários (47,22%) e grandes proprietários
(40,16%), com uma pequena vantagem daqueles. Já os pequenos proprietários – tipo que
constituía a maioria dos proprietários com 55,68% –, contavam com a menor porcentagem,
sendo esta de 12,62% em relação ao total.
Quanto a tabela da extensão das propriedades dos cafeicultores percebe-se que esta é
composta por apenas 65 cafeicultores contra os 81 que foram encontrados no período em
questão. Isso se deve ao fato de que 16 inventários continham pés de café inventariados, mas
não fornecia nenhum dado a respeito de terras. O número de inventários sem especificação de
terra não é desprezível já que corresponde a 19,75% do total de inventários de cafeicultores
do período, contudo preferimos não considerá-lo na tabela já que sua inclusão provocaria uma
distorção nos dados que nos interessam relativos à configuração da distribuição das terras
entre pequenos, médios e grandes proprietários de terras.
445
FANNI, Silvana. Op. cit.. In: LARIERI JÚNIOR, Carlile; FRADE, Inácio. Muitas Cataguases:
Novos olhares acerca da história regional. Editar: Juiz de Fora, 2006; p. 60.
143
QUADRO 07
Extensão das propriedades em alqueires (1870-1888)
ÁREA Nº PROP. % ÁREA TOTAL % ÁREA MÉDIA
Até 25
25 a 50
50,1 a 100
100,1 a 200
Mais de 200
49
18
13
5
3
55,68
20,45
14,78
5,68
3,41
440,5
616,5
1.030,5
743,5
657
12,62
17,67
29,55
21,32
18,84
8,98
34,25
79,26
148,7
219
TOTAL 88 100 3.488 100 39,63
Fonte: Inventários post-mortem. Centro de Documentação Histórica.
QUADRO 08
Extensão das propriedades dos cafeicultores em alqueires (1870-1888)
Fonte: Inventários post-mortem. Centro de Documentação Histórica.
ÁREA Nº PROP. % ÁREA TOTAL % ÁREA MÉDIA
Até 25
25 a 50
50,1 a 100
100,1 a 200
Mais de 200
35
13
11
3
3
53,85
20,0
16,93
4,61
4,61
335,5
440,5
885,5
494,5
657
11,93
15,66
31,48
17,58
23,35
9,58
33,88
80,5
164,83
219
TOTAL 65 100 2813 100 43,27
144
É nítido que os cafeicultores constituíam a grande maioria dos proprietários de terras –
constituindo 65 inventários em um universo de 88, o que representa 73,86% –, portanto a
tendência observada na estrutura de propriedade agrária do período pouco varia em relação à
estrutura agrária específica dos cafeicultores.
No ano em que foi assinada a Lei Áurea, destacava-se o município pelas suas
atividades agrícolas, constituindo-se a cidade naquela época principalmente como um núcleo
cafeeiro. Consta serem poucos os abolicionistas na localidade e ainda que as propriedades
cafeicultoras apresentassem um processo de concentração da escravaria, não houve no
município cataguasense tropelias nas senzalas ou fora delas quando da abolição do trabalho
compulsório e passados os primeiros meses de adaptação dos libertos à nova ordem as
atividades agrícolas apresentaram crescimento446
. Prova disso foram as colheitas de café
registradas nos anos subsequentes, cujo volume ajudou a restaurar as finanças municipais.
QUADRO 09
Proporção dos cafezais (1890-1905)
Nº PÉS Nº PROP. % TOTAL PÉS % MÉDIA PÉS
Não consta
Até 5.000
5.001 a 10.000
10.001 a 20.000
20.001 a 50.000
50.001 a 100.000
100.001 a 200.000
Mais de 200.000
02
34
25
20
10
02
01
01
02,11
35,79
26,31
21,05
10,53
02,11
01,05
01,05
–
90.400
189.600
301.800
322.200
162.000
145.000
255.000
–
06,17
12,94
20,58
21,98
11,05
09,89
17,39
–
2.658,82
7.584
15.090
32.220
81.000
145.000
255.000
TOTAL 95 100 1.466.000 100 15.431,57
Fonte: Inventários post-mortem. Centro de Documentação Histórica.
446
RESENDE, Enrique de. Op. cit.; p. 47.
145
Em comparação ao período anterior (1870-1888) e seguindo os mesmos critérios,
neste período aqui considerado (1890-1905) 83,15% dos proprietários de cafezal eram
pequenos cafeicultores, todavia os cafeicultores donos de até 5 mil cafeeiros –
desconsiderando os cafeicultores cujos inventários não indicavam a quantidade de pés de café
– passaram a corresponder apenas por 36,56% – 14,07% a menos que o período anterior –.
Estes pequenos cafeicultores passaram a concentrar 39,69% do total de cafeeiros observados
nos inventários deste período – 6,97% a mais que o período anterior –. Em compensação os
grandes proprietários também tiveram um ligeiro aumento, passando de 1,24% para 2,1% em
relação ao total de proprietários de café e de 20,74% para 27,28% em relação ao total de pés
de café. Verificamos ainda que este período apresentou um crescimento de 21, 07% do total
de pés de café em relação ao período anterior.
Além dessa expansão apenas moderada dos cafezais, a tendência de distribuição dos
pés de café entre pequenos médios e grandes cafeicultores não sofreu nenhuma alteração
considerável em favor da dominância de um dos tipos. Porém, apesar do crescimento não ter
sido vultoso – o que é compreensível dado o tipo de economia e a estrutura agrária e social
vigente na montagem da cafeicultura e o caráter interiorano do munício, tanto da perspectiva
geográfica quanto da político-administrativa – ele ainda é significativo por demonstrar a
possibilidade de expansão da fronteira do café no interior das unidades de produção após o
fim do escravismo.
Neste período observamos que houve uma alteração na estrutura da posse de terras,
que se não chega a ser profunda também não deve ser considerada desprezível. Enquanto a
área total das terras dos médios proprietários sofreu uma retração em relação ao período
anterior, constituindo agora 38,71%, a dos grandes proprietários aumentou para 49,2%, o que
significa que ambos os tipos de proprietários sofreram uma alteração inversamente
proporcional. Assim os pequenos proprietários continuaram a constituir a maioria dos
proprietários, agora com 57,73%, contando com a menor porcentagem praticamente idêntica
ao período anterior, sendo esta de 12,09% em relação ao total.
Quanto à tabela da extensão das propriedades dos cafeicultores percebe-se que esta é
composta por apenas 86 cafeicultores contra os 95 que foram encontrados no período em
questão. Assim como ocorreu no período anterior isso se deve ao fato de que 9 inventários
continham pés de café inventariados, mas não fornecia nenhum dado a respeito de terras.
Aqui o número de inventários sem especificação de terra é absoluta e proporcionalmente
146
menor em relação ao período anterior e corresponde a 9,47% do total de inventários de
cafeicultores do período. Tomamos aqui a mesma medida aplica ao caso anterior.
QUADRO 10
Extensão das propriedades em alqueires (1890-1905)
Fonte: Inventários post-mortem. Centro de Documentação Histórica.
QUADRO 11
Extensão das propriedades dos cafeicultores em alqueires (1890-1905)
Fonte: Inventários post-mortem. Centro de Documentação Histórica.
ÁREA Nº PROP. % ÁREA TOTAL % ÁREA MÉDIA
Até 25
25 a 50
50,1 a 100
100,1 a 200
Mais de 200
56
24
7
7
3
57,73
24,74
7,22
7,22
3,09
422,25
844,5
507
880
837,5
12,09
24,19
14,52
25,21
23,99
7,54
35,18
72,42
125,71
279,16
TOTAL 97 100 3.491,25 100 35,99
ÁREA Nº PROP. % ÁREA TOTAL % ÁREA MÉDIA
Até 25
25 a 50
50,1 a 100
100,1 a 200
Mais de 200
48
22
7
6
3
55,81
25,58
8,14
6,98
3,49
353
773,5
507
774
837,5
10,88
23,84
15,62
23,85
25,81
7,35
35,15
72,42
129
279,16
TOTAL 86 100 3.245 100 37,73
147
Aqui também os cafeicultores constituíam a esmagadora maioria dos proprietários de
terras – constituindo 86 inventários em um universo de 97, o que representa 88,66%,
porcentagem ainda maior que a verificada no período anterior –, portanto, assim como no
primeiro período, a tendência observada na estrutura de propriedade agrária do período pouco
varia em relação à estrutura agrária específica dos cafeicultores.
Enquanto no período de 1870-1888 foram encontrados 4 inventários de comerciantes,
na fase que assumimos como sendo de consolidação da cafeicultura foram encontrados 10
inventários de comerciantes – sendo uma padaria e 9 de gêneros de negócios como roupas,
chapéus, fazendas, armarinho, ferragens, louça, calçado e drogas – e 1 de proprietário de
imóveis residenciais. Tal crescimento no comércio pode ser assumido enquanto sintoma de
um importante processo de diferenciação entre o campo e a cidade através da diversificação
do capital acumulado nas unidades agroexportadoras, pois:
A presença maciça de casas voltadas para o setor de secos e molhados é
indissociável de uma economia de natureza agroexportadora por motivos
diversos e, até certo ponto, mesmo óbvios. A agricultura comercial não
exportadora (principalmente a produção de alimentos) deve ser entendida,
no interior do complexo, como parte integrante de estruturas vinculadas à
capacidade de acumulação interna de capital que como sabemos é
condicionada pelo potencial de criação de demanda agregada no setor
exportador. (...) Sua presença, portanto, pode ser explicada como um dos
efeitos de encadeamento de consumo, induzido pelo processo de
diversificação econômica (no potencial de crescimento urbano que
implicou) e de transformações sociais que vinham ocorrendo no âmbito do
processo produtivo do produto principal (que teve na produção alimentos por
parte do trabalhador um componente estratégico da forma de reprodução
econômica e social da estrutura agroexportadora). Neste sentido, a parcela
que lhe coube no interior do espaço econômico da produção cafeeira deve
ser compreendida, especialmente no que se refere aos efeitos de
encadeamento de consumo, de forma paralela à presença de inúmeros outros
setores, inclusive o industrial, com o qual, aliás, manteve analogias
importantes, incluindo a presença do mecanismo de substituição de
importações447
.
A partir do início do século XX Cataguases passou a contar com um parque industrial
considerável que empregava em torno de 10% de sua população absoluta, o que nos leva a
pensar que uma parte significativa da população cataguasense possuía algum nível de relação
com as fábricas que ali se instalavam448
. Assim a indústria nascente transformava o cotidiano
447
PIRES, Anderson. Café, finanças e indústria: Juiz de Fora 1889-1930. Op. cit.; p. 150. 448
LANZZIERI Júnior, Carlile; Frade Inácio. Do oléo das telas ao óleo das máquinas: novas
considerações acerca da vocação cultural de Cataguases. In: LANRIERI JÚNIOR, Carlile; FRADE,
148
e a paisagem urbana de Cataguases através do apito rotineiro das fábricas e a construção de
bairros operários.
Em 1905 foi dado o ponto de partida para a industrialização da cidade com a
inauguração da Companhia Força e Luz Cataguases-Leopoldina por iniciativa de Norberto
Custódio Ferreira e José Monteiro Ribeiro Junqueira a quem se associara a seguir, ainda que
temporariamente, o Cel. João Duarte. Após este evento juntaram-se às poucas unidades fabris
já existentes outras de maior porte e assim a Fábrica de Tecidos, fundada em 1906 foi a
primeira indústria a trocar o pequeno motor a vapor por uma unidade elétrica. Outras
acabaram por seguir o mesmo caminho e cada vez mais a cidade se modernizava. Com isso,
como conta Enrique de Resende, Cataguases “foi ganhando honrosos adjetivos, como
progressista, dinâmica, realizadora, e até um cognome – Princesa da Mata449
”.
Na primeira metade do século XX, a cidade de Cataguases viveu um período
de significativo desenvolvimento urbano e industrial. O capital acumulado
pelas oligarquias cafeeiras deixava para trás a antiga vila de poucas ruas e
casas modestas, dando lugar a uma cidade de médio porte para os padrões da
época. A indústria nascente polarizava mão-de-obra de toda região, o que
provocou o incremento do esvaziamento das áreas rurais. Muitas famílias
abandonavam suas pequenas propriedades agrícolas para tentar a sorte de um
novo emprego como operário no sistema fabril emergente450
.
Como no marco de nossa pesquisa Cataguases apresentava características de um
núcleo agroexportador, seu processo de desenvolvimento econômico pode ser analisado de
acordo com a Teoria de encadeamento do produto básico451
. A economia agraria de exportação
em Cataguases experimentou um processo de crescimento e diversificação social e econômica que,
ainda que não tenha sido expressivo, é bastante elucidativo da dinâmica econômica da localidade.
Inácio. Muitas Cataguases: Novos olhares acerca da história regional. Editar: Juiz de Fora, 2006;
p. 85. 449
RESENDE, Enrique de. Op. cit.; p. 145. 450
LANZZIERI Júnior, Carlile; Frade Inácio. Do oléo das telas ao óleo das máquinas: novas
considerações acerca da vocação cultural de Cataguases. In: LANRIERI JÚNIOR, Carlile; FRADE,
Inácio. Muitas Cataguases: Novos olhares acerca da história regional. Editar: Juiz de Fora, 2006;
p. 81. 451 “A teoria mantém como objetivo principal o processo de desenvolvimento econômico em regiões
predominantemente exportadoras, ou seja, onde a produção e a exportação de um produto primário
“básico” se colocam como os componentes mais importantes da economia, vale dizer, como os
determinantes fundamentais de seu nível de renda e do próprio ritmo do referido processo de
desenvolvimento. Em outras palavras, procura elucidar como ocorre uma experiência de
desenvolvimento a partir da estrutura e organização da produção, das características do produto,
além do comportamento das suas exportações.” In: PIRES, Anderson. Café, finanças e indústria:
Juiz de Fora 1889-1930. Op. cit.; p. 38.
149
A teoria tem se mostrado bastante útil para análises de âmbito regional, o
que pode ser explicado, por um lado, porque a implantação, a expansão e o
predomínio de um produto de exportação pressupõem, naturalmente, a
existência de condições físicas que estão presentes em apenas algumas
regiões e, por outro lado, porque o processo de desenvolvimento econômico
que resulta dos efeitos encadeadores do produto principal vai se concretizar
em núcleos urbanos que tendem a se desenvolver no espaço interno destas
mesmas regiões. Os processos de divisão do trabalho e de evolução
estrutural que caracterizam este desenvolvimento econômico beneficiam
principalmente economias locais e regionais, denotando-lhes uma
configuração espacial delimitada452
.
Não é a proposta deste trabalho se alongar neste tema. No que diz respeito a ele nos
interessa, sobretudo demonstrar que uma vez que Cataguases se inseriu no circuito
agroexportador, a diversificação econômica gerada pelo café cresceu em variedade e
importância acompanhando num primeiro momento o próprio movimento de expansão do
produto básico, mas posteriormente, muitos dos efeitos gerados por ele ganharam força
suficiente para movimentar por si mesmos a economia do município. A intensificação do
comércio engendrada pelo café contribuiu substancialmente para a definição do centro urbano
enquanto espaço privilegiado das trocas mercantis que se operavam na localidade, o que
contribuiu para a instauração de uma falha metabólica na localidade por um lado e para o
dinamismo econômico de sua zona urbana por outro.
Em geral o movimento de expansão das monoculturas em regime de fronteira aberta
criava polos de intensa exploração que eram em pouco tempo abandonados. Por certo, em
relação à cafeicultura, a introdução da estrada de ferro converteu-se por um lado em um
instrumento de devastação florestal, mas por outro contribuiu grandemente para o aumento do
fluxo comercial que desempenhou importante papel na diversificação das atividades no
espaço apropriado em função da produção cafeeira. Tal diversificação econômica e social
destes núcleos cafeicultores – que em grande parte se desenvolviam direta ou indiretamente
em função do produto principal – representava a “salvação” para estes locais quando a
produção do produto básico entrava em decadência, que de outro modo estes locais à ruína.
Destarte no período que consideramos como sendo o de declínio da produção,
Cataguases não dependia mais de seu produto principal para a geração de receitas como nos
outros períodos aqui considerados, uma vez que Cataguases havia iniciado um importante
processo de industrialização para sua época453
. Também eram mais amplos e diversos seus
452
PIRES, Anderson. Café, finanças e indústria: Juiz de Fora 1889-1930. Op. cit.; p. 40 453
LANZZIERI Júnior, Carlile; Frade Inácio. Op. cit.. In: LANRIERI JÚNIOR, Carlile; FRADE,
Inácio. Muitas Cataguases: Novos olhares acerca da história regional. Editar: Juiz de Fora, 2006
150
empreendimentos comerciais, tendo sido encontrado no período em questão 7 inventários de
comerciantes – em valores absolutos este número é inferior aos 10 encontrados no período
anterior, mas vale lembrar que enquanto este era composto por 135 inventários, aquele era
composto por apenas 91 – e 4 de proprietários de vários imóveis residenciais.
QUADRO 12
Proporção dos cafezais (1906-1930)
Nº PÉS Nº PROP. % TOTAL PÉS % MÉDIA PÉS
Até 5.000
5.001 a 10.000
10.001 a 20.000
20.001 a 50.000
50.001 a 100.000
100.001 a 200.000
Mais de 200.000
19
8
8
7
4
-
-
41,30
17,39
17,39
15,21
8,6
-
-
49.850
62.500
136.000
230.500
312.000
-
-
6,31
7,91
17,19
29,14
39,45
-
-
2.623,68
7.812,5
17.000
32.928,57
78.000
-
-
TOTAL 46 100 790.850 100 17.192,39
Fonte: Inventários post-mortem. Centro de Documentação Histórica.
O período de 1906-1930 constitui o último do marco de nossa pesquisa. Verificamos
que 76,08% dos proprietários de cafezal eram pequenos cafeicultores e que estes
concentravam 31,41% do total de cafeeiros, representando as menores porcentagens relativas
aos pequenos cafeicultores nos três períodos aqui examinados. Por outro lado não foi
encontrado neste período nenhum inventário de grande cafeicultor, o que resultou
estatisticamente numa concentração dos cafezais entre os cafeicultores médios, que
representaram 23,81% dos cafeicultores que em conjunto detinham 68,59% dos cafeeiros.
Neste último período, apesar de ser o mais longo dos três – representando 25 anos, contra 19
do primeiro e 16 do segundo –, foram abertos menos processos de inventários.
151
Dos 348 inventários analisados em toda a pesquisa, 222 era referente a cafeicultores, o
que corresponde a 63,79% do total. Enquanto no primeiro período o somatório dos
inventários de cafeicultores (81) respondeu por 66,39% dos processos abertos neste período
(122), observamos um aumento no segundo, no qual o somatório dos inventários de
cafeicultores (95) representou 70,37% dos processos abertos (135). Já no último período,
observamos uma queda na proporção de cafeicultores nos inventários examinados, uma vez
que dos 91 processos abertos, o somatório dos inventários de cafeicultores (46) respondia por
50,54% do total. Portanto em cada um dos períodos os inventários referentes a cafeicultores
corresponderam a mais da metade do total de processos abertos.
Ainda que nenhum dos períodos tenha apresentado uma variação brusca em qualquer
uma das variáveis examinadas – proporção dos inventários de cafeicultores em relação ao
total de processos abertos; proporção dos pequenos, médios e grandes cafeicultores; e
distribuição dos cafeeiros entre os referidos tipos de cafeicultores – em relação aos demais
períodos, a evolução de todas as variáveis ao longo dos marcos da pesquisa correspondeu à
tendência esperada, sendo elas: crescimento do total de pés de café, aumento da proporção
dos inventários de cafeicultores em relação ao total de processos abertos, ligeira diminuição
na concentração dos cafeeiros por parte dos pequenos cafeicultores e o respectivo aumento de
similar magnitude em relação aos grandes cafeicultores no período de consolidação da
cafeicultura em relação ao período de montagem da mesma.
Este período ainda foi o que apresentou a mudança mais considerável na configuração
agrária, não só na estrutura da posse de terras, mas também na tendência da evolução das
variáveis observada anteriormente. A área total das terras dos médios proprietários apresentou
um crescimento, chegando a 45,93%, valor bem próximo do observado no período de 1870-
1888. Assim como a área total das terras dos médios proprietários apresentou uma alteração
oposta a alteração observada anteriormente, o mesmo se deu em relação aos grandes
proprietários, que neste período registrou uma queda na proporção em relação ao total que
neste período foi de 31,71%. Em relação aos pequenos proprietários foi registrada a maior
porcentagem de todos os períodos, sendo esta de 22,36%.
Quanto à tabela da extensão das propriedades dos cafeicultores percebe-se que neste
período ela é composta por 43 cafeicultores contra os 46 que foram encontrados no período
em questão. Assim 3 inventários continham pés de café inventariados, mas não fornecia
nenhum dado a respeito de terras correspondendo a 6,52% do total de inventários de
cafeicultores do período.
152
QUADRO 13
Extensão das propriedades em alqueires (1906-1930)
Fonte: Inventários post-mortem. Centro de Documentação Histórica.
QUADRO 14
Extensão das propriedades dos cafeicultores em alqueires (1906-1930)
Fonte: Inventários post-mortem. Centro de Documentação Histórica
ÁREA Nº PROP. % ÁREA TOTAL % ÁREA MÉDIA
Até 25
25 a 50
50,1 a 100
100,1 a 200
Mais de 200
41
12
6
4
-
65,08
19,05
9,52
6,35
-
381,25
412,5
370,5
540,5
-
22,36
24,19
21,74
31,71
-
9,29
34,37
61,75
135,12
-
TOTAL 63 100 1704,75 100 27,05
ÁREA (em
alqueires)
Nº PROP. % ÁREA
TOTAL
% ÁREA
MÉDIA
Até 25
25 a 50
50,1 a 100
100,1 a 200
Mais de 200
25
8
6
4
-
58,13
18,61
13,95
9,31
-
256,25
280
370,5
540,5
-
17,71
19,34
25,61
37,34
-
10,25
35
61,75
135,12
-
TOTAL 43 100 1.447,25 100 33,65
153
Neste último período, confirmando o padrão verificado nos demais períodos, os
cafeicultores também constituíam a maioria dos proprietários de terras, todavia a proporção
foi a menor de todas, posto que os inventários de cafeicultores proprietários de terras
somavam 43 em um universo de 63, o que representa 68,25%. Ainda assim a tendência
observada na estrutura de propriedade agrária do período pouco variou em relação à estrutura
agrária específica dos cafeicultores confirmando o padrão observado nos demais períodos.
3.5 O café e depois o leite: a pecuária extensiva sucede a agricultura extensiva
É amplamente conhecido que o processo voraz de transformação do meio ecológico
provocado pela economia agroexportadora do café resultou em graves alterações
ecossistêmicas como erosão, mudanças diversas nos padrões climáticos como no regime de
chuvas, além da óbvia devastação da flora e fauna local, que se traduziam imediatamente em
más colheitas e posteriormente na própria degradação da forma de agricultura praticada na
região, alterações estas que eram perpetradas pelo próprio sistema agrícola e que retroagiam
sobre ele. Desde o final do século XIX as mudanças dos padrões climáticos das regiões
cafeicultoras mais antigas provocavam perturbações na rotina dos trabalhos agrícolas que
eram organizados de acordo com tais padrões, modificando com isso o ritmo da produção
agrícola454
.
O processo de ocupação massiva engendrado pela cafeicultura em áreas de mata
preservada perpetrou um processo de transformação ecológica catastrófico que provocou uma
profunda simplificação de seus ecossistemas através de um sistema agrário fundado nas
técnicas de queimada e derrubada que possuía o agravante de não conceder o tempo
necessário para a regeneração das áreas em mata no interior das unidades produtivas. Assim a
cafeicultura consumiu vorazmente a floresta provocando uma devastação irreparável.
Há um certo consenso entre os cientistas de que as florestas atlânticas voltam
a um estado maduro quando, abandonadas depois de uma lavoura ou pasto,
elas conseguem alcançar certos requisitos ecológicos básicos: pelo menos
90% de espécies não pioneiras, 80% de espécies zoocóricas (cujas sementes
são dispersas por animais), 50% de espécies de sub-bosque e 40% de
espécies endêmicas. Estudo recente mostra que, enquanto as três primeiras
percentagens podem ser alcançadas entre 65 e 167 anos de desenvolvimento
não perturbado – um espectro temporal que pouco se distancia da escala
humana -, a última requer quase dois mil anos. Para se ter uma ideia, em
454
FRAGOSO, João. Op. cit.; p. 114.
154
capoeiras de apenas 20 anos, os pesquisadores não encontraram nenhuma
espécie endêmica da Mata Atlântica. Isso significa que, em paisagens
mantidas “jovens” por derrubadas e queimada constantes, as capoeiras
tendem a ser matas genéricas455
.
A economia do café, por estar intimamente associada ao mercado externo, impactou
de maneira definitiva a complexidade ecossistêmica das regiões onde foi introduzida ao
reduzir a floresta a uma monocultura – não desconsideramos aqui a produção de alimentos no
interior das propriedades cafeicultoras, mas entendemos que, em grande parte, elas ocorriam
em função do cultivo do produto principal –, o que afetava deleteriamente a diversidade
biológica. Como explica Warren Dean “um ecossistema pode ser visto como um reservatório
de informações, as geneticamente programadas e, ao mesmo tempo, as acumuladas por suas
espécies, relevantes a sua sobrevivência e reprodução em seu interior456
” e com a devastação
florestal perpetrada pela cafeicultura toda essa informação começou a se deteriorar.
A cafeicultura em Cataguases não teve o vulto de outros núcleos cafeicultores da Mata
mineira, contudo o sistema agrário cafeicultor, ainda que operasse em menor escala, foi capaz
de transformar significativamente o seu meio ecológico. A transformação das áreas em mata
em cafezais pode ser percebida e mensurada em inventários através da variação da proporção
dos tipos de terra no interior das unidades agroexportadoras ao longo do tempo. Desta forma
foi possível demonstrar empiricamente a tendência esperada de transformação das áreas em
mata em áreas em pasto, confirmando o processo de degradação ecológica engendrado pela
cafeicultura.
Como a forma de reprodução do sistema agrário cafeicultor se dava através da
incorporação de áreas em mata virgem, é possível induzir que os “tipos de terras” no interior
de uma unidade produtiva adquire novos sentidos conferidos pela lógica deste sistema de
acordo com as sucessivas mudanças ocorridas em função de seus movimentos de reprodução.
Em suma, a relação entre a proporção de áreas em mata e o cafezal existente indica o grau e
as possibilidades de reprodução da fazenda, enquanto as áreas em pasto e capoeira conferem
indicativos referentes aos seus movimentos de reprodução pretéritos e por fim sua relação
quantitativa com as áreas em mata informam o estágio de degradação em que se encontra a
fazenda de café. Assim a riqueza de uma plantação consistia menos na extensão dos cafezais
que nas áreas em mata, o que é compreensível dentro da lógica de cultivo no qual as terras
455 CABRAL, Diogo de Carvalho. Op. cit.; p. 473. 456 DEAN, Warren. Op. cit.; p. 83.
155
disponíveis para o futuro plantio da rubiácea substituem a inversão de trabalho na recuperação
de solos extenuados por cafezais antigos457
.
Tal fato não chega a ser surpreendente quando se compreende a dinâmica deste
sistema agrário, mas ainda assim é curioso notar que, com o passar do tempo, as terras
florestadas acabavam adquirindo um maior valor de mercado, ou seja, em áreas em que a
degradação das unidades produtivas encontrava-se em estado avançado, a natureza assumia
preponderância mercadológica sobre o ecossistema cultural458
. Dessa forma o enriquecimento
dos cafeicultores ocorria à custa da Mata Atlântica, o que evidencia a construção de uma nova
relação com a natureza orientada por uma perspectiva de transformação do meio ecológico
para o acúmulo de capital.
Todavia algumas informações estavam incompletas ou não muito claras, o que nos
levou a adotar determinadas metodologias que explicaremos a seguir. Nem sempre as terras
inventariadas apresentavam classificação – mata, pasto, capoeira, cultura e cafezal. – e outras
vezes a classificação apresentava de forma mista dois ou três tipos de terra. Obviamente as
terras sem classificação são as que apresentam a maior complicação, entretanto em nenhum
dos períodos sua proporção ficou acima da metade do total de terras, portanto consideramos
que sua presença não invalida nossa análise. Quanto às terras mistas, a complicação encontra-
se na dificuldade de como categorizá-las junto às outras que apresentam uma classificação
específica, uma vez que a documentação não fornece nenhuma indicação clara que auxilie a
tomá-la como sendo predominantemente de um tipo ou de outro. Houve ainda casos em que
mais de três tipos de terras eram apresentadas numa só classificação, mas optamos por ignorá-
las por entendermos que esta classificação era demasiadamente imprecisa.
457
DEAN, Warren. Op. cit.; p. 202. 458
CABRAL, Diogo de Carvalho. Op. cit.; p. 126.
156
QUADRO 15
Classificação das terras em alqueires (1870-1930)
Tipo de classificação 1870 - 1888 % 1890 - 1905 % 1906 - 1930 %
Sem classificação
Classificação mista
Classificação específica
1.438,5
634,5
1.415
41,24
18,19
40,57
1.255,75
858,5
1.377
35,96
24,59
39,45
249,5
915,75
539,5
14,89
53,71
31,4
TOTAL 3.488 100 3.491,25 100 1.704,75 100
Fonte: Inventários post-mortem. Centro de Documentação Histórica.
No primeiro período (1870-1888) verificamos que 41,24% das terras não continham
nenhum tipo de especificação. Essa porcentagem alta pode ser explicada pela ausência de
necessidade de uma classificação de terras mais sistemática uma vez que a cafeicultura
encontrava-se na fase de montagem e, portanto a disponibilidade de áreas em mata ainda não
era um limitante das possibilidades futuras de reprodução dos cafezais. No segundo período
(1890-1905), que corresponde ao auge da produção cafeeira, as terras sem classificação caem
para 35,96% e essa tendência de maior cuidado na classificação dos tipos de terra no interior
das unidades produtivas se confirma no último período (1906-1930), quando o processo de
degradação já se encontra consideravelmente avançado em relação aos períodos interiores e a
parcela de terras sem classificação representa 14,89%. Portanto esta tendência mostra
claramente a crescente acuidade na classificação de terras conforme o desgaste da cafeicultura
apresentado pela redução das possibilidades de expansão futura dos cafezais.
Ao contrário do que se verificou em relação a tendência das terras sem classificação, a
porcentagem de terras classificadas de maneira não especificada aumentou em cada período,
passando no primeiro período de 18,19% para 24,59% no segundo período e 53,71% no
último. Contudo isto não contradiz o que afirmamos acima, já que podemos atribuir o
aumento na classificação mista de terras à diminuição da presença de terras sem classificação,
já que ambas as classificações apresentaram uma evolução proporcionalmente oposta.
A respeito destas terras com classificação mista, optamos por metodologia que
viabilizasse uma categorização mais apurada de modo a possibilitar a comparação entre os
períodos e a observação de alguma tendência. Como nos interessa principalmente verificar a
transformação das áreas em mata em paisagens humanizadas – cultura e pasto – optamos por
157
classificar como “mata” as áreas classificadas indistintamente em "mata e capoeira" – até por
ser a capoeira uma fase de regeneração da mata –. Também optamos por classificar como
“mata” as áreas classificadas indistintamente como "mata e cultura". Entendemos a
contradição implícita nesta última, mas qualquer outra seria, ao nosso entendimento,
igualmente arbitrária, e decidirmos tomá-las como “mata” por presumimos que as terras em
"mata e cultura" deveriam possuir uma importante parte em mata, já que a área em mata só
possuía valor de mercado se representasse possibilidades de reprodução futura para a
produção cafeeira. Já as áreas classificadas indistintamente como "cafezal e capoeira" assim
como "cultura e capoeira" foram consideradas como “cafezal” ou “cultura” respectivamente,
posto que a capoeira constitua um tipo de terra que já fora anteriormente transformada pela
atividade de cultivo – o que configura a capoeira como um tipo intermediário entre mata e
cultura, portanto quando este tipo de terra encontrava-se classificada junto com as matas,
consideramos como “mata” e quando classificada junto com cultura ou cafezal como sendo
destes dois tipos –. Por fim tomamos como “pasto” as áreas indistintamente classificadas
como "pasto e capoeira" e "pasto e cultura", uma vez que nosso objetivo é verificar o processo
de degradação ecológica e o pasto constitui-se como o tipo de terra mais intensamente
transformado pela atividade humana. Obviamente tomar uma classificação de terras que no
documentário apresenta-se de forma indistinta como sendo de um tipo ou outro provoca
distorções no exame, mas ainda assim consideramos válida esta análise, principalmente
quando confrontada com a análise formal dos dados precisamente especificados.
Vejamos a evolução de cada tipo de terra – cultura, cafezal, mata, capoeira e pasto –
de acordo com cada sistema de classificação – terras especificas e mistas – ao longo dos 60
anos analisados nesta pesquisa:
QUADRO 16
Classificação das terras especificadas em alqueires (1870-1930)
Tipo de terra 1870 - 1888 % 1890 - 1905 % 1906 - 1930 %
Cultura
Cafezal
Mata
Capoeira
Pasto
467,5
32
534,5
195,5
185,5
33,04
2,26
37,77
13,82
13,11
238
141
560,5
182
255,5
17,28
10,24
40,71
13,22
18,55
81,75
21
90,5
58
288,25
15,15
3,89
16,78
10,75
53,43
TOTAL 1.415 100 1.377 100 539,5 100
Fonte: Inventários post-mortem. Centro de Documentação Histórica.
158
QUADRO 17
Classificação das terras mistas em alqueires (1870-1930)
Tipo de terra 1870 - 1888 % 1890 - 1905 % 1906 - 1930 %
Cultura
Cafezal
Mata
Pasto
100
20
327
187,5
15,76
3,15
51,54
29,55
94
17,5
67,5
679,5
10,95
2,04
7,86
79,15
40,5
-
17,5
828,25
4,58
-
1,97
93,45
TOTAL 634,5 100 858,5 100 886,25 100
Fonte: Inventários post-mortem. Centro de Documentação Histórica.
Devido à já mencionada falta de classificação dos tipos de terra no período de
187901888 representar uma considerável fatia do total (41,24%), não chega a estranhar o fato
que a porcentagem de áreas em “mata” no quadro referente as terras com classificação
específica tenha aumentado no segundo período, pois além da diferença percentual ser
consideravelmente pequena – pouco mais de 3% – tal característica pode até sinalizar o
aumento da importância atribuída a este tipo de terra, que ganha valor de mercado à medida
que vão se tornando mais escassas e portanto passa a merecer um maior cuidado na
classificação. Todavia talvez este nem seja o caso já que no quadro referente as terras com
classificação mista as áreas em “mata” apresentam uma progressiva diminuição na
composição total. Estamos cientes das distorções provocadas pelas variáveis presentes no
segundo quadro, todavia as duas classificações comprovam a tendência de intensa redução das
áreas em mata e o avassalador aumento das áreas em pasto.
Na cafeicultura brasileira, em geral, a produção de gêneros de subsistência para o
abastecimento interno da unidade agroexportadora ou até para o mercado interno de alimentos
era bastante comum, sobretudo em Cataguases que possuía uma produção de gêneros
agrícolas bem diversificada e já se encontrava firmemente engajada na produção de alimentos
antes da chegada do café – conforme já foi discutido –, assim como acontecia em muitas
localidades da região que viria a se constituir como a Zona da Mata. Entretanto ainda assim
chamou a atenção a porcentagem significativamente menor de áreas em cafezal em relação às
áreas em cultura – que podem ser tomadas como áreas ocupadas na produção de alimentos –
durante todo o marco desta pesquisa, mesmo no período que a cafeicultura encontrava-se
firmemente consolidada.
159
Através da confrontação destes dados com a proporção entre as áreas em cultura e
cafezal podemos induzir que esta classificação não é precisa. Além disso, uma quantidade
significativa de inventários que possuía cafezal não apresentava na classificação de terras
áreas em cafezal. Por isso assumimos que estas áreas em cultura, em todos os períodos,
representam não só o cultivo de alimentos, mas também o de café e ainda que não haja meios
de comprovar através de dados estatísticos já que a fonte não o permite, confiamos que os
cafezais correspondam a maior parte dessas terras classificadas indistintamente como áreas
em cultura, sobretudo pelo grande volume de inventários de cafeicultores em relação a
totalidade e a quantidade muito mais significativa de pés de café frente às outras culturas.
Decidimos ainda juntar as terras classificadas de forma mista e específica para
compormos um quadro mais completo que integrasse os dados colhidos na documentação.
QUARO 18
Classificação das terra mistas e específicas em alqueires (1870-1930)
Tipo de terra 1870 - 1888 % 1890 - 1905 % 1906 - 1930 %
Cultura
Cafezal
Mata
Capoeira
Pasto
567,5
52
861,5
195,5
373
27,69
2,54
42,03
9,53
18,21
332
158,5
628
182
935
14,86
7,09
28,09
8,14
41,82
122,25
21
108
58
1.116,5
8,58
1,47
7,57
4,07
78,31
TOTAL 2.049,5 100 2.235,5 100 1.425, 75 100
Fonte: Inventários post-mortem. Centro de Documentação Histórica.
Este terceiro quadro, composto por um volume de dados mais robusto, confirma todas
as tendências já observadas e discutidas anteriormente. Destarte analisando comparativamente
os períodos é possível verificar a tendência devastadora do sistema agrário cafeicultor, no
qual as áreas em mata diminuem em relação às áreas cultivadas e estas em relação às áreas em
pasto até que o processo de degradação esteja consolidado, inviabilizando as práticas
agrícolas.
A cafeicultura em Cataguases, em conformidade com tendência verificada na região
da Zona da Mata, ampliou suas bases na década de 1890, demonstrado sua ampla capacidade
160
de produção no pós-escravidão. Assim como também foi verificado para outros núcleos
cafeeiros da Mata mineira – assim como em outras regiões cafeicultoras –, o processo de
degradação da cafeicultura em Cataguases atrelava-se a ascensão das atividades pecuárias, no
qual o gado leiteiro aparece como a principal atividade em substituição a economia do café459
.
Anos mais tarde, bem depois de as árvores terem desaparecido, encostas
estéreis com o estranho aspecto variólico, como se fossem locais de
combates de artilharia, permaneciam como testemunho da rápida passagem
do café ao longo do vale do Paraíba. Por fim, mesmo esses traços eram
apagados pelo gado, cujos cascos perseverantes entalhavam trilhas em forma
de faixas em ziguezague pelo chão duro desses lúgubres monumentos ao
desperdício460
.
É importante enfatizar que o baixo nível das forças produtivas das unidades agrícolas
cafeicultoras resultava não somente em uma prática agrícola extensiva como também
engendrava uma separação entre a agricultura e a pecuária, já que a prática de adubação com
esterco de gado era preterida pelo uso da mata no desempenho da mesma função. No Brasil
ocorria mesmo uma inversão em relação à Europa no que se refere à relação entre as práticas
agrícolas e a criação de animais, já que nos campos brasileiros, ao contrário dos europeus, a
reprodução da lavoura não ocorria em função da pecuária – adubação por estrume e arado –,
mas a pecuária que se praticava possuía um caráter extensivo em decorrência do uso
extensivo do solo pela agricultura, que transformava a composição orgânica da terra
provocando uma regressão ecossistêmica, originando um tipo de vegetação “primitiva” que
inviabilizava a reprodução da lavoura, mas servia como pastagem para o gado461
. Mas além
da disponibilidade de terras e da presença da floresta, cuja biomassa era utilizada como
fertilizante, a adubação dos campos com esterco de gado era desestimulada:
(...) por dois importantes atributos morfoclimáticos da Mata Atlântica: relevo
acidentado e abundante precipitação. Além da presença das altas montanhas,
as terras baixas do litoral são muitas vezes salpicadas por colinas e morros.
Em boa parte da Baixada Fluminense, por exemplo, o cultivo só era possível
nesses morros em forma de “meia-laranja”, já que os solos das várzeas,
muito baixos em relação ao nível do mar, eram periodicamente alagados.
Lavouras nessas condições eram difíceis de estrumar, pois a precipitação
logo carreava o esterco morro abaixo. Com exceção dos plantadores de
459
DESTRO, José Augusto de Souza. A transição da cafeicultura para a pecuária em Juiz de Fora
(1896/1930). Dissertação de mestrado, Niterói, UFF, 2006. 460
DEAN, Warren. Op. cit.; p. 203. 461
FRAGOSO, João. Op. cit.; p. 19.
161
tabaco, poucos agricultores davam-se o trabalho de criar gado em número
suficiente para lhes fornecer o necessário estrume462
.
Em decorrência disso, frequentemente a maior parte da criação de animais consistia
mais em um suplemento da do regime alimentar, sendo mais comum o suíno que o bovino ou
equino, já que o papel do gado desempenhado no sistema agrícola europeu era em boa parte
substituído pelas matas na agricultura brasileira463
.
O quadro a seguir é composto por todos os animais encontrados nos inventários, seja
de cafeicultores, seja de não cafeicultores. Não fizemos esta distinção já que nosso objetivo é
verificar como se distribuía a composição dos animais em Cataguases e acompanhar a
evolução da composição de cada tipo ao longo do tempo. Além da maioria dos inventários
que continham animais pertencerem a cafeicultores, nos interessa entender a relação destes
com a agricultura em geral e como no último período o tamanho da proporção do gado bovino
se relaciona à decadência do café.
QUADRO 19
Rebanhos em Cataguases (1870-1930)
Período Muar % Equino % Bovino % Suíno % Ovino
%
TOTAL
1870 – 1888 82 14,26 49 8,52 252 43,83 176 30,61 16 2,78 575
1890 – 1905 118 12,99 106 11,68 574 63,22 110 12,11 - - 908
1906 – 1928 17 2,56 32 4,82 564 84,94 51 7,68 - - 664
Fonte: Inventários post-mortem. Centro de Documentação Histórica.
A partir deste quadro podemos perceber que as tropas de muares – muito usadas no
escoamento da produção cafeeira até as zonas de exportação antes da instalação das estradas
de ferro – no período de 1870-1888 pouco varia em relação ao período de 1890-1905 e muito
provavelmente isso se deve a cafeicultura ter sido montada em Cataguases quase
462
CABRAL, Diogo de Carvalho. Op. cit.; p. 118. 463
FRAGOSO, João. Op. cit.; p. 25.
162
concomitantemente com a implantação da Estrada de Ferro Leopoldina. No período de 1906-
1930 a proporção de gado muar diminui drasticamente assim como a de gado equino, que
desempenhava basicamente a mesma função que o muar e ao longo de todos os períodos
apresentou uma porcentagem bem próxima a deste outro. Já o gado suíno apresentou a maior
porcentagem em relação ao total dos rebanhos exatamente na fase de montagem da
cafeicultura, quando a criação destes animais representava uma importante complementação à
dieta alimentar. Assim como o gado muar e equino, o gado suíno também apresentou uma
significativa queda na porcentagem da composição total dos animais, o que pode significar
um aumento na participação do mercado como mediador na relação do homem e sua
subsistência ou simplesmente ser o resultado do massivo aumento do gado bovino na
composição do animais.
O gado bovino sempre compôs a maior parte dos animais em todos os períodos e ainda
assim essa composição quase dobrou do período de 1870-1888 ao de 1906-1930. Em razão de
sua preponderância pensamos ser relevante a apresentação de quadro que mostrasse a relação
entre bois, vacas, touros e novilhos e bezerros na composição total do gado bovino ao longo
dos 60 anos desta pesquisa.
QUADRO 20
Bovinos em Cataguases (1870-1930)
Período Boi % Vaca % Touro % Novilho e
bezerro %
Total
1870 – 1888 140 55,55 66 26,19 4 1,59 42 16,67 252
1890 – 1905 300 52,26 154 26,83 5 0,87 115 20,04 574
1906 – 1928 181 32,09 168 29,79 5 0,89 210 37,23 564
Fonte: Inventários post-mortem. Centro de Documentação Histórica.
Analisando o quadro observa-se que a proporção de bois era a maior, correspondendo
a mais da metade, nos períodos de 1879-1888 e 1890-1905 que correspondem
respectivamente à fase de montagem e de apogeu da cafeicultura. Isso se explica por ser o boi
um importante animal de transporte tanto no interior da fazenda como no deslocamento do
café para a estação de trem, além de ser usado como força motriz no funcionamento de
163
equipamentos como os engenhos e também servir como complemento à dieta alimentar464
. Já
a proporção de vacas aumenta apenas ligeiramente, mas ainda assim tal tendência constitui
um importante indicativo, sobretudo se se considerar apenas o gado adulto, o que denunciaria
uma participação maior de vacas na composição do rebanho bovino em cada período,
sobretudo no último.
Quando um cafezal se tornava tão decadente que não mais valia a pena ser
colhido, era eventualmente podado, o que em geral dava apenas magros
resultados. Na maioria das vezes, era deixado no lugar, as árvores arrendadas
a comerciantes de lenha; o mato então invadia, seguido pelo gado, muitas
vezes sob uma nova administração465
.
Portanto o grandioso aumento do gado bovino – demonstrado no quadro referente aos
rebanhos de Cataguases – assim como o aumento das vacas atestam que o recrudescimento da
pecuária é aparente partir da crise da cafeicultura local, quando as parcelas de terra ocupadas
com cafezais não geravam uma produtividade rentável aos fazendeiros e encontrava-se
drasticamente declinada a disponibilidade de novas áreas para o cultivo do café e a presença
de áreas em pasto era já bastante grande.
464
FRAGOSO, João. Op. cit.; p. 56. 465
DEAN, Warren. Op. cit.; p. 202.
164
CONCLUSÃO
O ser humano surgiu tardiamente na ecosfera e compartilha com ela uma identidade
material manifestada no condicionamento da fisiologia humana pelos padrões básicos do meio
ecológico. Deste modo a atividade econômica coloca-se como um prolongamento da evolução
biológica por meios exossomáticos, da transmissão cultural pela sociedade e não por meios
endossomáticos da transmissão genética. Contudo a evolução cultural evidentemente faz parte
da biologia humana ainda que seja muito mais rápida que a evolução biológica.
Portanto tratar da transformação do meio ecológico provocada pela atividade humana
perpassa necessariamente pela discussão da transformação do próprio homem e das formações
sociais historicamente definidas, pois o metabolismo social define-se como o processo por
meio do qual a sociedade transforma a natureza externa e subsequentemente sua natureza
interna. O desenvolvimento das forças produtivas traz consigo uma modificação na mediação
e regulação das trocas materiais e energéticas entre a sociedade e seu sistema natural, uma vez
que a produção material constitui-se através da continua interação entre o homem e a natureza
por meio do trabalho. Deste modo o desenvolvimento de uma sociedade é determinado pelo
rendimento do trabalho social, que exprime o funcionamento de um dado metabolismo social,
ou seja, o balanço das relações de troca material e energética entre a sociedade e seu meio
natural.
Não há desta forma um único estilo de vida natural para o ser humano já que a
plasticidade do cérebro humano, das relações sociais, dos seus instrumentos e técnicas de
trabalho e da ecologia de seu habitat coloca uma vasta gama de caminhos culturais possíveis
que florescem a partir de suas raízes biológicas. Destarte o processo econômico deve ser
tomado a partir de uma perspectiva que a integre à evolução da biosfera, sobretudo a partir da
consolidação do sistema capitalista e da formação de um mercado global, posto que a
economia humana está inserida no ecossistema planetário. Todo organismo vivo mantém
constante sua própria entropia através da extração de baixa entropia de seu ambiente para
compensar o aumento da entropia à qual o seu organismo está sujeito, como qualquer outra
estrutura material. Esta regra da vida biológica, no caso do homem, em função de sua
economia, resulta em um desgaste ambiental muito mais intenso, já que o custo de todo
empreendimento biológico ou econômico é sempre maior que o produto. Sendo assim o
processo econômico, que está apoiado numa base material, está sujeito a uma evolução
irreversível que se manifesta pela extração de baixa entropia do ambiente a custa do aumento
165
da entropia do sistema inteiro através dos resíduos gerados e da energia dissipada na forma de
calor.
No primeiro capítulo abordamos a implantação do sistema capitalista, que de forma
inédita passou a operar em escala mundial, que se deu a partir de uma modificação profunda
da condição de reprodução do metabolismo social ao se completar plenamente a separação –
iniciada na Revolução Neolítica – entre as condições inorgânicas da existência humana e sua
existência ativa. A economia capitalista promoveu uma transformação substancial do homem
e da natureza ao mercantilizá-los, provocando com isso uma ameaça ao equilíbrio entre o
homem e seu habitat e uma desagregação nas interações humanas conforme se modificava a
motivação da atividade produtiva, antes voltada para a subsistência e depois orientada para o
lucro.
O consumo material, sobretudo o de alimentos, refere-se a um processo metabólico,
que além do aspecto biofísico, envolve a fisiologia humana com a dinâmica dos sistemas
socioeconômicos e políticos que ordena a vida cultural de uma sociedade, conectando
intimamente a história da alimentação de um povo à sua história ambiental.
A cafeína é uma substância psicoativa cujo consumo se espalhou rapidamente pela
península arábica a partir do Iêmen, origem do café enquanto beberagem. No século seguinte
a bebida adentrou o continente europeu onde rapidamente conquistou as camadas mais altas
da sociedade, consolidando-se como um precioso artigo de luxo. Apesar da resistência
enfrentada tanto no mundo árabe quanto no europeu o café superou todos os obstáculos
tornando-se no fim do século XVIII um produto de massa, sendo incorporado definitivamente
no regime alimentar dos trabalhadores dos principais centros industriais do mundo. Isso
porque a adesão a esta bebida energética de um segmento populacional cujo suprimento
calórico vinha declinando ainda teve o mérito de restringir o consumo de álcool e assim tornar
mais diligentes os operários, definindo o café como a bebida do capitalismo.
Como numa sociedade fundada na pobreza os produtos de baixa qualidade tem a
prerrogativa de ser consumidos pela maioria, o café brasileiro, produzido de forma a priorizar
a quantidade em detrimento da qualidade, inundou o mercado mundial. A distribuição dos
fatores terra, capital e trabalho – o primeiro de vasta disponibilidade e os outros dois de baixa
oferta – condicionaram o método de produção extensivo fundamentado no abandono dos
solos que davam sinais de desgaste para a incorporação de terras virgens que proporcionariam
maiores rendimentos, o que acabou por provocar a devastação sistemática da Mata Atlântica
na região Sudeste onde quer que a cafeicultura tenha sido praticada.
166
Fundamental para se entender uma economia agroexportadora é adotar uma
abordagem que a situe devidamente num cenário mais amplo, que dê conta de minimamente
elucidar as pressões e influências mutuamente exercida entre as zonas de produção e
consumo. O crescimento dos mercados e a expansão da produção de mercadorias, seja
mediante a formação da relação capital-trabalho ou da transformação na orientação da
produção nas formas existentes de trabalho não assalariadas fez do capitalismo um modo de
produção mais competitivo que o colocou como eixo organizador da economia mundial.
Portanto, como a sociedade pode ser definida em função do espaço, uma vez que o espaço é
apropriado em função dos processos produtivos ali realizados, conformando-se como uma
decorrência de sua história, a incorporação de diferentes partes do mundo à economia mundial
criou uma sociedade mundial que passou a articular diferentes povos num circuito de
produção, distribuição e consumo.
No segundo capítulo discutimos como a intensa exploração da natureza posta em
prática passou a conspurcar as paisagens e reduzir a fertilidade das terras agricultáveis aos
seus elementos mínimos, relegando-as ao abandono quando esgotadas para a incorporação de
terras virgens que ofereciam maiores rendimentos, sobretudo a partir da abertura das novas
fronteiras possibilitada pela implantação das estradas de ferro.
Em razão da crescente demanda no mercado internacional de café e os meios mais
eficientes de transporte que garantia um escoamento mais rápido e barato da produção, a Zona
da Mata mineira foi incorporada ao circuito produtor brasileiro. Assim o sistema econômico
mundial fez com que a propagação do desejo humano por moléculas de cafeína de um lado e
as novas possibilidades de produção numa escala sem precedentes por outro impactasse de
maneira definitiva a ecologia, a sociedade e a cultura do Brasil, principalmente em seus
núcleos cafeicultores.
No século XIX o metabolismo social posto em prática pela cafeicultura impôs um
arbusto de origem etíope cultivado por técnicas de queimada e derrubada e energia provinda
da biomassa da Mata Atlântica. O produto obtido por este metabolismo social continha alta
exergia que era exportada e metabolizada por trabalhadores e se convertia em parte em sua
força de trabalho. Contudo as divisas geradas pela comercialização externa do café eram
empregadas principalmente para a obtenção de artigos manufaturados que não continham
potencial produtivo livre. Considerando apenas a esfera imediata da produção, o cultivo de
um gênero exógeno sobre as cinzas de uma imensa área queimada da Mata Atlântica, além de
engendrar um severo processo de degradação da terra que culminava numa significativa
simplificação ecossistêmica, instaurava uma falha metabólica em escala local e global a um só
167
tempo já que a maior parte do volume da produção não se destinava à alimentação dos
produtores locais, mas sim à exportação. Desta forma os elementos e a energia extraídos do
solo e incorporados ao café não retornavam ao seu local de origem uma vez que o produto era
consumido em locais muito distantes de onde foram produzidos, o que ocorria também em
relação a agricultura de alimentos que se destinava ao abastecimento interno gerando uma
contradição entre o campo e a cidade ainda que numa escala geográfica menor que a do
produto de exportação.
No terceiro capítulo demonstramos que por algumas décadas, a derrubada das áreas
em mata em Cataguases garantiu uma produtividade suficiente não apenas para o
abastecimento da sociedade, mas para a sua expansão. A implantação da cafeicultura em
Cataguases não assumiu os contornos já vistos em outras regiões e diversos fatores podem ser
apontados para explicar isso: sua localização interior – tanto do ponto de vista geográfico
quanto do político-administrativo – sua tardia autonomia política, a estrutura social e agrária
fundada na pequena e média propriedade e na mão-de-obra familiar e a pequena população de
baixa densidade. Apesar da implantação da ferrovia ter acontecido na mesma década de
montagem da cafeicultura, isto parece ter se dado muito mais por um efeito fortuito.
Ainda assim o sistema agrário cafeicultor de queimada e derrubada baseado num
método de produção extensivo foi colocado em prática e em poucas décadas foi capaz de
mudar o meio ecológico do município, o que verificamos pela expansão da cafeicultura a
partir da década de 1890 e do estado avançado de degradação observado nas duas últimas
décadas do marco dessa pesquisa.
Nas fazendas decadentes, onde a intensa exploração ecológica havia esgotado as
propriedades naturais da terra, os cafeeiros não mais se reproduziam sem o auxílio humano,
posto que a domesticação compromete severamente sua adaptabilidade. Depois, estas
paisagens que se conformavam como o resultado cumulativo de sucessivas interferências
humana nos elementos constitutivos de seu meio ecológico, eram apropriadas por um
processo produtivo inteiramente diferente: a criação de gado leiteiro.
Destarte o elevado custo social e ambiental do método produtivo adotado na
cafeicultura brasileira sempre foi suprimido por seus incentivos econômicos. Assim a
derrubada das áreas em mata no interior das unidades produtivas e sua conversão em
paisagens humanizadas – cafezal e culturas intercalares de subsistência, pasto, currais,
estradas, etc. – que a modernidade exigia, traduzia-se como o signo do progresso do país, que
vilipendiava seus recursos naturais para servir café aos países centrais da economia mundial.
168
A instauração de uma economia de mercado, ao colocar como forma dominante a
produção de valores de troca, precifica a natureza ao instituir um mercado de terras e uma
produção agrícola voltada para o mercado, e por ser orientada por uma perspectiva de lucro e
acumulação infinita, promove um processo produtivo massivo que não leva em consideração
uma apropriação sustentável dos recursos naturais e isto fica bastante claro na cafeicultura no
momento que as áreas em mata começam a ganhar importância e passam a ser classificadas
nos inventários post mortem dos cafeicultores. Contudo, a importância dada a estas áreas em
mata é feita no sentido de atribuir a elas um valor de mercado e se é possível por preço em
algo, significa que ele pode ser consumido. Foi o que ocorreu com a Mata Atlântica quando o
cafeeiro a colonizou.
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