UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA
Rodrigo Ribeiro de Sousa
John Locke e a liberdade republicana
(verso corrigida)
So Paulo
2017
Rodrigo Ribeiro de Sousa
John Locke e a liberdade republicana
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Filosofia do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo para obteno do ttulo de Doutor em Filosofia, sob a orientao do Prof. Dr. Alberto Barros.
(verso corrigida)
So Paulo
2017
Em nossa Frana moderna, o que ento a repblica? um grande ato de confiana. Instituir a repblica proclamar que milhes de homens sabero traar eles mesmos a regra comum de suas aes; que sabero conciliar a liberdade e a lei, o movimento e a ordem; que eles sabero combater sem
se destruir; que suas divises no iro at um furor crnico de guerra civil e que eles no procuraro jamais em uma ditadura, mesmo passageira, uma
trgua funesta e um covarde descanso1.
Jean Jaurs, Discours la jeunesse, proferido no Liceu
de Albi em 30 de julho de 1903.
1 Dans notrre France moderne, quest-ce donc que la rpublique? Cest um grand acte de confiance. Instituer
la rpublique, cest proclamer que des millions dhommes sauront concilier la libert et la loi, le mouvement
et lordre; quils sauront se combattre sans se dchirer; que leurs divisions nirons pas jusqu une fureur
chronique de guerre civile, et quils ne chercheront jamais dans une dictature mme passagre une trve
funeste et un lche repos. Jean JAURS, Textes choisis, Paris: Bruno Leprince, L'encyclopdie du
socialisme, n 6, 2003, p. 127. Traduo livre.
Agradecimentos institucionais
Ao Departamento Jurdico do Centro Acadmico XI de
Agosto, na figura de seus combativos estagirios, que me inspiram na luta pela
defesa concreta do ideal de liberdade em favor dos excludos.
Aos membros do Ncleo de Direito Cidade (NDC), pelo
exemplo prorporcionado pelo incansvel empenho de aproximao do
conhecimento da Universidade ao conhecimento popular.
s trabalhadoras e trabalhadores da Universidade de So
Paulo (USP), na figura das funcionrias e funcionrios do Departamento de
Filosofia.
CAPES, pelo financiamento da pesquisa que resultou na
elaborao desta tese.
Agradecimentos acadmicos
Ao professor Alberto R. G. de Barros, pela criteriosa e
generosa orientao.
Ao professor Laurent Jaffro, pelo acolhimento e pelas
orientaes durante o estgio de pesquisa realizado na Universit Paris 1
Panthon-Sorbonne.
Aos examinadores da banca de qualificao, professores
Maria das Graas de Souza e Samuel Rodrigues Barbosa, pelas pertinentes
crticas e sugestes.
Aos colegas e amigos do grupo de pesquisa Res publica,
Patrcia Fontoura Aranovitch, Flavia Roberta Benevenuto de Souza, Alessandra
Tsuji, Andr Manoel do Nascimento, Caio Eduardo Cunha Leito, Christiane
Cardoso Ferreira, Isadora Prvide Bernardo, Mariana de Mattos Rubiano, Patricio
Tierno, Rodison Roberto Santos, Sandra Pires de Toledo Pedroso e Taynan
Santos Luz Bueno, pelas leituras, debates e discusses que alimentaram e
enriqueceram esta pesquisa.
Aos amigos e professores Frederico Lopes de Oliveira Diehl,
Lauro Joppert Swensson Jnior, Laurent Azevedo Marques de Saes, Douglas
Ferreira Barros, Emerson Ribeiro Fabiani, Soeli Maria Schreiber da Silva e
Deonsio da Silva, pelo exemplo, apoio e incentivo.
Ao amigo e pesquisador Mauro Dela Bandera Arco Jnior,
pelo suporte, apoio e acolhimento em meu estgio de pesquisa na Frana.
Aos amigos e pesquisadores Marcos Daniel Camolezi, Silvio
Gabriel Serrano Nunes, Anderson Aparecido Lima da Silva, Ciro Borges, Mario
Spezzapria, Joo Cortese, Lucas Mello Carvalho Ribeiro e Mauro Dela Bandera
Arco Jnior, pelos estimulantes debates e profcuas indicaes bibliogrficas.
Manuela Schreiber Silva e Sousa, pela judiciosa e atenta
reviso.
Agradecimentos pessoais
Manuela, pela inspirao diria sem a qual no teria sido
possvel o desenvolvimento deste trabalho e pelo incondicional apoio.
minha famlia, pela compreenso e valorizao do meu
trabalho.
Ao Alberto, pelo exemplo e pela parceria.
RESUMO
SOUSA, Rodrigo Ribeiro de. John Locke e a liberdade republicana. 358 p. Tese de
doutorado Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas. Departamento de
Filosofia, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2016.
Ao longo da histria da filosofia, John Locke tem sido frequentemente apresentado sob o rtulo de pai do liberalismo, o que decorre, invariavelmente, de um modo peculiar de interpretao da noo de liberdade para o filsofo, que estaria estruturada em torno da ideia de no-interferncia. Derivada frequentemente de propostas analticas realizadas em um vcuo histrico, em que as ideias de Locke so tomadas como uma esttica coleo, tal concluso expressa uma perspectiva que no considera o carter essencialmente discursivo da filosofia poltica e o campo problemtico em que os conceitos foram pensados pelo filsofo. Se tomarmos a obra de Locke a partir de um campo mais abrangente, constitudo por diferentes atos de discurso, em que sejam considerados as condies e o contexto em que os elementos textuais foram enunciados, recuperando-se o aspecto polmico do texto, pode ser evidenciado um trao marcadamente republicano no conceito de liberdade formulado pelo autor. Partindo da perspectiva de John Pocock acerca do processo de formao do republicanismo ingls, segundo a qual as matrizes republicanas foram recebidas na Inglaterra a partir do sculo XVI, desencadeando um longo processo de anglicizao da repblica, no qual diferentes momentos podem ser identificados, e tomando como pressuposto a ideia de dupla filiao do conceito moderno de liberdade, proposta por Jean-Fabien Spitz, o propsito deste trabalho colher os elementos que apontam em que medida a noo de liberdade defendida por Locke em sua obra poltica pode ser considerada tributria dos argumentos desenvolvidos nos momentos precedentes em que se expressou o pensamento republicano na Inglaterra, o que permitiria inclu-la como referncia de um importante ato do longo discurso que culminou na formulao do conceito republicano de liberdade.
Palavras-chave: liberdade, liberdade natural, liberdade poltica, liberdade religiosa,
lei natural, direito natural, jusnaturalismo, republicanismo, Locke.
ABSTRACT
SOUSA, Rodrigo Ribeiro de. John Locke and the republican liberty. 358 p. Thesis
(PHD Degree) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas.
Departamento de Filosofia, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2016.
Throughout the history of philosophy, John Locke has often been presented under the label of "father of liberalism," which invariably follows from a peculiar way of interpreting his concept of freedom, as structured around the idea of non-interference. Coming from analytical proposals often elaborated in a "historical vacuum", in which Locke's ideas are taken as a static collection, such a conclusion expresses a perspective that does not consider the essentially discursive character of political philosophy and the "problematic field" in which some concepts were thought by the philosopher. On the other hand, if we take Locke's work from a broader field, made up of different "acts of discourse," taking into account the conditions and contexts in which the textual elements were enunciated, and recovering the controversial aspect of the text, we can reveal a republican feature in the concept of liberty formulated by the author. Starting from John Pocock's perspective about the English republicanism, according to which republican matrices were received in England from the sixteenth century, triggering a long process of "anglicization of the republic," in which different "moments" can be identified, and considering the idea of double affiliation of the modern concept of freedom, proposed by Jean-Fabien Spitz, the purpose of this work is to gather the elements that indicate to what extent the notion of freedom defended by Locke in his political work can be considered tributary of the arguments developed in the previous "moments" in which the republican thought in England was expressed, which would allow to include it as reference of an important "act" of the long discourse that culminated in the republican concept of liberty.
Keywords: freedom, natural freedom, political freedom, natural law, religious
freedom, republicanism, Locke.
SUMRIO
INTRODUO....................................................................................................................................11
PRIMEIRA PARTE
CAPTULO I - AS FUNDAES HISTRICAS DO PENSAMENTO POLTICO MODERNO NA INGLATERRA: A ANGLICIZAO DA REPBLICA..................................................................................................................22
1.1. MOMENTO DO DIREITO ROMANO. ................................................................................................................. 25 1.2. MOMENTO DOS HISTORIADORES E FILSOFOS DA ANTIGUIDADE ROMANA. ............................................................. 41 1.3. MOMENTO DA GRAA APOCALPTICA. ............................................................................................................. 48 1.4. MOMENTO MAQUIAVELIANO. ....................................................................................................................... 55 1.5. MOMENTO DA SUPREMACIA POPULAR: A "CRISE DE EXCLUSO". ........................................................................... 63
CAPTULO II DE SDITOS A HOMENS LIVRES: O MOMENTO DA SUPREMACIA POPULAR.........................74
2.1. A AFIRMAO DO ARBITRRIO: A TEORIA DO DIREITO DIVINO DOS REIS ELABORADA NO PATRIARCA, DE ROBERT FILMER...78 2.2. HENRY NEVILLE .......................................................................................................................................... 97
2.3. ALGERNON SIDNEY....................................................................................................................................128
SEGUNDA PARTE
CAPTULO III JOHN LOCKE E A REFUTAO DO PATRIARCA: A AFIRMAO DO NO-ARBITRRIO........157
CAPTULO IV LIBERDADE NATURAL.......................................................................................................181
4.1. ELEMENTOS DA LIBERDADE NATURAL.............................................................................................................181 4.1.1. ESTADO DE NATUREZA ...................................................................................................................... 182
4.1.2. LEI NATURAL....................................................................................................................................195 4.1.3.PROPRIEDADE...................................................................................................................................213 4.2. LIBERDADE NATURAL COMO NO-ARBITRARIEDADE...........................................................................................220
TERCEIRA PARTE
CAPTULO V LIBERDADE POLTICA.........................................................................................................222
5.1. SOCIEDADE POLTICA..................................................................................................................................225 5.1.1. LOCKE CONTRA HOBBES: A NEGAO DO ESTADO DE GUERRA PERMANENTE ............................................... .231
5.1.2. INDIVIDUALISMO RACIONAL E CIDADANIA...............................................................................................236 5.2. CONSENTIMENTO.......................................................................................................................................244 5.2.1. DE INDIVDUOS A CIDADOS: A COMUNIDADE E A EMANCIPAO DO INDIVDUO............................................246 5.2.2. DA COMUNIDADE SOCIEDADE POLTICA...............................................................................................253 5.2.3. SUPREMACIA POPULAR.......................................................................................................................257 5.2.3.1. TRABALHO E POBREZA: O ENSAIO SOBRE A LEI DOS POBRES...............................................................263 5.3. PODER POLTICO.........................................................................................................................................273 5.3.1. REBELIO E DIREITO DE RESISTNCIA......................................................................................................277 5.3.2. PRERROGATIVA..................................................................................................................................287 5.4. LIBERDADE POLTICA COMO NO-DOMINAO..................................................................................................292
CAPTULO VI LIBERDADE RELIGIOSA.....................................................................................................298
6.1. TOLERNCIA RELIGIOSA..............................................................................................................................301
6.2. FILOSOFIA DA RELIGIO: O CRIISTIANISMO RACIONAL ...................................................................................... .321 6.3. AS DUAS FACES DA LIBERDADE RELIGIOSA.......................................................................................................333
CONCLUSO....................................................................................................................................336
BIBLIOGRAFIA.................................................................................................................................346
Lista de abreviaes
Segundo tratado sobre o governo: abreviado por Segundo tratado.
Ensaios sobre a lei de natureza: abreviado por Ensaios.
Primeiro tratado sobre o governo: abreviado por Primeiro tratado.
Dois tratados sobre o governo: abreviado por Tratados
Dezenove proposies das duas casas do parlamento dirigidas a Sua Majestade a
respeito das diferenas entre Sua Majestade e as ditas casas: abreviado por
Dezenove proposies das duas casas do parlamento.
Resposta de Sua Majestade s dezenove proposies das duas casas do
parlamento: abreviado por Resposta.
11
INTRODUO
O pensamento poltico de John Locke tem sido includo, ao
longo da histria da filosofia, em um amplo e variado espectro de orientaes
ideolgicas, o que permitiu a sua associao, conforme salienta John Dunn2, a
inmeras e contraditrias facetas, s quais esto vinculados eptetos que variam
desde arquiliberal identificao de seu pensamento como o de um populista
majoritrio3.
Dentre todos os rtulos atribudos a Locke, destaca-se, por
sua reverberao em um grande nmero de tericos polticos, o de pai do
liberalismo, que decorre, entre outras razes, da grande proeminncia conferida
leitura da obra de Locke realizada por C. B. Macpherson4, para quem a teoria
poltica de Locke teria proporcionado uma base moral apropriao burguesa,
pois apagou a incapacidade jurdica pela qual a apropriao capitalista havia sido,
at ento, entravada.
A tradicional interpretao apresentada por Macpherson, que
atribuiu ao filsofo seu mais notrio rtulo5, derivada da peculiar interpretao da
noo de liberdade para Locke exposta pelo comentador, noo essa que constitui
elemento central para a compreenso da filosofia poltica de Locke6.
Assim, a vinculao da teoria poltica de Locke tradio
liberal resulta, de acordo com a leitura de Macpherson, da compreenso da
liberdade como um direito individual inalienvel decorrente da supremacia moral
do indivduo, que impe autoridade poltica o dever de no interferncia e
2 John DUNN, The political thought of John Locke An historical account of the argument of the Two
Treatises of Government. Cambridge: Cambridge University Press, 2000, p. 5. 3 Tive a oportunidade de analisar tais aspectos em O conceito de liberdade no Segundo Tratado sobre o
Governo de John Locke, dissertao de mestrado defendida junto ao Departamento de Filosofia da Faculdade
de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo (FFLCH/USP). 4 Cf. C. B. MACPHERSON, A teoria poltica do individualismo possessivo, de Hobbes a Locke. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1979. 5 Embora LOCKE fosse considerado, segundo David John MANNING, como um antepassado de eleio,
pelos liberais do sculo de XIX, a fora do estigma de LOCKE como pai do liberalismo decorre da
excessiva proeminncia dada a leituras como a de MACPHERSON, no sculo XX. Cf. D. J. MANNING,
Liberalism, London: Dent, 1976. 6 Como tivemos a oportunidade de analisar em O conceito de liberdade no Segundo Tratado sobre o Governo
de John Locke, cada um dos contraditrios rtulos atribudos a Locke ancora-se, invariavelmente, em uma
diferente interpretao do conceito de liberdade enunciado por Locke.
12
demanda uma atuao mnima da lei, que deve limitar-se a garantir a
independncia individual7.
Tal leitura acarretou, inevitavelmente, a identificao da teoria
poltica de Locke com valores caros tradio liberal, por suas implicaes para o
conceito de liberdade negativa, no sentido de no-interferncia, tal qual enunciado
por Isaiah Berlin8.
De fato, em seu sentido negativo, a liberdade poltica est
associada, segundo Berlin, ao espao em que o indivduo pode agir sem a
obstruo ou a interferncia de outro indivduo ou grupo de indivduos. Ainda que
esse espao de ausncia de interferncias possa ser delimitado por uma fronteira
de maior ou menor extenso, a liberdade decorrente dessa ausncia sempre
uma liberdade de alguma obstruo e que atribui ao indivduo uma determinada
esfera de ao individual9.
Embora tenha sido associada, mais recentemente, a uma
noo positiva de liberdade10, que concebida, segundo Berlin, como derivada do
desejo do indivduo de ser senhor de sua prpria vida e instrumento de seus
prprios atos de vontade vinculando-se, assim, liberdade para viver uma
determinada forma de vida, independentemente da vontade de outrem11 , o
conceito de liberdade de Locke tradicionalmente vinculado ideia de liberdade
negativa, nos moldes descritos por Berlin.
7 C. B. MACPHERSON, Op. cit., p 233.
8 Para Berlin, embora o termo liberdade seja de grande porosidade, o que permite a coexistncia de um
grande nmero de acepes, dois sentidos centrais podem ser identificados para a sua conceituao: o sentido
negativo e o sentido positivo. Liberdade negativa est relacionada com a resposta pergunta Qual a rea
em que o sujeito uma pessoa ou um grupo de pessoas est ou deve ser deixado para fazer ou ser aquilo que
capaz de fazer ou ser, sem a interferncia de outras pessoas? A liberdade positiva, por sua vez, est
relacionada com a resposta pergunta O que ou quem a fonte de controle ou interferncia que pode
determinar a algum que faa ou seja uma coisa em vez de outra coisa? Segundo o autor, as duas questes
so claramente diferentes, muito embora as respostas a cada uma delas possam ser sobrepostas. Cf. Isaiah
BERLIN, Two concepts of liberty. In: Four essays on liberty. Oxford: Oxford University Press, 1969, p. 3. 9 Cf. BERLIN, Op. cit., p. 3.
10 A associao da liberdade para Locke a uma noo positiva de liberdade, no sentido de autorrealizao
moral ou racional, proposta por Mark GOLDIE. Destacando o contedo moral imposto pela lei da natureza,
GOLDIE afirma que para Locke, a verdadeira liberdade consiste em uma vida regida pelo intelecto
racional, e no pela escravido das paixes, o que aproxima o conceito de liberdade de Locke da noo de
liberdade para agir e se autodeterminar, prpria liberdade positiva. Cf. Mark GOLDIE. Introduction. In:
Two Treatises of Government. Londres: Everyman, 1993, apud Lena HALDENNIUS, Locke and the non-
arbitrary. In: European Journal of Political Theory. London: Sage publications, 2003, p. 265 11
Idem, ibidem, p. 8.
13
Para alm da contraposio entre as noes de liberdade
positiva e negativa, tal qual descrita por Berlin que remete oposio entre as
ideias de liberdade dos antigos e liberdade dos modernos, formulada por
Benjamim Constant12 , o conceito de liberdade enunciado por Locke pode ser
situado, tambm, no mbito do debate sobre a dupla filiao do conceito de
liberdade poltica que, de acordo com a enunciao de Jean-Fabien Spitz13, possui
uma dupla origem. A primeira, de configurao jurdico-liberal, decorre de uma
concepo do indivduo como portador de direitos que devem ser garantidos e
assegurados pela poltica. A segunda, que advm de uma reflexo sobre o
estatuto de cidadania que devem possuir os indivduos em uma sociedade poltica,
concebe a poltica como um instrumento de proteo e engajamento, em que os
indivduos so tanto mais livres quanto mais aptos esto a controlar o meio social,
material e humano em que vivem.
Segundo Spitz, at recentemente14, o conceito de liberdade
moderna esteve rfo de um de seus pais, pois as ideias inspiradas pelo
republicanismo e pelo humanismo cvico que deram origem filiao
republicana do conceito de liberdade foram obscurecidas em uma espcie de
face escondida da histria da filosofia poltica moderna.
Essa face escondida, contudo, comeou a emergir
vigorosamente no mbito da filosofia poltica graas principalmente aos trabalhos 12
Para CONSTANT, a liberdade dos antigos consistia no exerccio da soberania, que fazia com que a
liberdade do corpo social fosse concebida como compatvel com a completa submisso do indivduo
autoridade do todo. A liberdade dos modernos, por outro lado, consiste no exerccio pacfico da
independncia privada, isto , nas garantias concedidas pelas instituies a esses privilgios Analisando
as origens e as consequncias da distino entre essas duas espcies de liberdade, CONSTANT conclui no
ser mais possvel aos modernos desfrutarem da liberdade dos antigos, pois as relaes entre os indivduos se
transformaram de tal maneira que o que se reconhece na sociedade antiga no deve ser imitado pela sociedade
moderna, que possui instituies e relaes sociais completamente distintas da sociedade antiga. Segundo
CONSTANT, os antigos fazem com que os indivduos sejam escravos da sociedade, ao passo que a liberdade
dos modernos assenta-se na fruio de sua independncia privada. Nesse sentido, os modernos tm maior
apego sua liberdade e no desejam sacrific-la. J os antigos, ao sacrificarem a sua liberdade aos direitos
polticos sacrificavam menos para obter mais, enquanto, fazendo o mesmo sacrifcio, ns daramos mais
para obter menos. Cf. Da liberdade dos antigos comparada dos modernos. In: Revista Filosofia Poltica 2,
Porto Alegre: L&PM, 1985, p. 9-25. 13
Jean-Fabien SPITZ, La libert politique - Essai de gnalogie conceptuelle. Paris: Presses Universitaires de
France, 1995. 14
O obscurecimento da matriz republicana do conceito de liberdade perdurou at o colapso do socialismo
real europeu, que apregoava como nica alternativa concepo liberal de liberdade o conceito marxista,
que admite a possibilidade de existncia de uma verdadeira liberdade poltica exclusivamente no mbito de
um outro sistema a ser construdo pelos atores histricos.
14
de John Pocock15 e Quentin Skinner16 que, em seus esforos de obter as
fundaes histricas do pensamento poltico moderno, lograram recuperar a
concepo republicana da liberdade.
Diversos elementos da concepo republicana de liberdade
podem ser identificados, como reconhece Spitz, na teoria poltica de Locke, o que
o desvincularia de rtulos tais como os de arquiliberal ou pai do liberalismo17.
Com efeito, conforme analisado em O conceito de liberdade
no Segundo Tratado sobre o governo de John Locke, a despeito das
interpretaes tradicionais do conceito de liberdade para Locke, a interpretao
que parece ser mais amplamente compatvel com a obra poltica do autor a que
associa o conceito de liberdade de Locke ideia de no-dominao, que
descrita por Philip Pettit18 como o cerne da concepo republicana de liberdade.
Embora mantenha a compreenso sobre o carter negativo
da liberdade, tal interpretao reala, por outro lado, a sua associao noo de
no-arbitrariedade explicitada por Locke ao longo de sua obra poltica.
De fato, para Locke, ser livre no estar sujeito vontade
inconstante, incerta, desconhecida e arbitrria de outro homem19.
Alm da expressa meno, nos captulos IV e IX do Segundo
tratado sobre o governo, intrnseca oposio entre liberdade e arbitrariedade,
como bem destaca Lena Haldennius, toda a obra de Locke exibe um poderoso
argumento contra a arbitrariedade, o que pode ser observado, por exemplo, em
suas ideias de liberdade poltica e poder poltico, que so costuradas pela noo
moral de no-arbitrariedade requerida por ambas20.
Assim, embora a liberdade seja descrita por Locke como uma
ausncia de sujeio, essa definio a partir da perspectiva negativa deve ser
compreendida, conforme sugere Haldennius, como uma exigncia normativa para
15
Cf. John POCOCK, The machiavellian moment: florentine political thought and the Antlantic Republican
traditition. Princeton: Princeton University Press, 1975. 16
Quentin SKINNER, Liberdade antes do liberalismo. So Paulo: Ed. UNESP, 1999. 17
SPITZ, Op. cit., passim. 18
Cf. Philip PETTIT, Republicanism: a theory of freedom and government. Oxford: Oxford University Press,
1999. 19
Cf. John LOCKE, Dois tratados sobre o governo. So Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 403, 22. 20
Cf. HALDENNIUS, Op. cit., p. 262.
15
a ausncia de um governo arbitrrio, e no como uma ausncia real de
impedimentos21.
De acordo com essa compreenso da liberdade, a
interferncia na esfera do indivduo determinada pela lei e em conformidade com a
lei natural no constitui uma violao da liberdade, uma vez que esse
impedimento no pode ser considerado arbitrrio.
esse, de fato, o papel atribudo por Locke lei, que
tomada como um instrumento para a garantia e ampliao da liberdade, em
consonncia com o valor central tradio republicana, e no como um
instrumento de imposio de restries e impedimentos liberdade, como decorre
da tradio liberal. Assim, conforme explicita Locke, a liberdade consiste em estar
livre de restries e de violncia por parte de outros, o que no pode existir onde
no existe lei22.
Nesse sentido, para Locke, a despeito da interferncia
determinada pela lei natural ou pela lei civil na esfera dos indivduos, a liberdade
permanece intacta, pois nenhuma ao de restrio conforme a lei natural ou com
a lei civil que deve subordinar-se ao contedo da lei natural pode constituir
uma violao liberdade. Ao fixar uma relao de dependncia do contedo da lei
civil ao contedo moral da lei natural que impe o mandamento de sobrevivncia
e prosperidade a toda espcie humana Locke evidencia que o papel da lei est
associado preservao da humanidade, e no autopreservao de cada
indivduo.
Por esse motivo, o mandato poltico confiado ao governante
o de estabelecer leis civis que promovam a liberdade e o bem do povo, tal como
estabelecido pela lei da natureza ou pela moralidade natural. A lei representa,
assim, um elemento constitutivo da liberdade, sendo indispensvel
sobrevivncia e prosperidade da espcie humana.
Para Locke, portanto, lei e liberdade esto do mesmo lado, ao
contrrio do que decorre da construo liberal de liberdade, para a qual lei e
liberdade esto em polos opostos, vez que, sob essa perspectiva, a preservao 21
Cf. Lena HALDENNIUS, Op. cit., p. 263. 22
Cf. John LOCKE, Op. cit., p. 433, 56. Destaque do original.
16
da liberdade d-se com a mnima interferncia da lei na esfera individual,
suficiente apenas para coagir os indivduos a respeitar a liberdade dos demais.
Para alm dos importantes elementos textuais extrados de
sua obra poltica, o afastamento da teoria de Locke de sua tradicional vinculao
concepo liberal de liberdade pode ser confirmado, de modo mais contundente,
pela compreenso de sua filosofia poltica a partir de importantes elementos
contextuais23, que levem em conta o carter eminentemente discursivo da
empreitada filosfica, conforme proposto por Pocock24.
Assim, se tomarmos a obra de Locke a partir de um campo
mais abrangente, constitudo por diferentes atos de discurso, em que sejam
considerados as condies e o contexto em que os elementos textuais foram
enunciados, o trao republicano25 do pensamento poltico de Locke torna-se ainda
23
Conforme sustenta SPITZ, a filosofia poltica uma disciplina essencialmente histrica, mas no pode ter
um interesse puramente arqueolgico. O estudioso deve recorrer ao passado em busca dos fundamentos
indispensveis formulao do conceito estudado no presente, mas deve explorar o passado com ateno ao
fato de que a linguagem do passado no mais coincide com a linguagem do presente. Para tanto, deve
conhecer o contexto do passado e a sua linguagem, colocando-se escuta para que possa identificar para
quem o autor escreve e contra quem escreve. Por outro lado, deve estar atento ao fato de que os conceitos e
problemas possuem uma lgica indissocivel do argumento interno do texto, motivo pelo qual no se deve
forar os conceitos na tentativa de explicar determinadas nuances do contexto. Cf. Jean-Fabien SPITZ, La
libert politique - Essai de gnalogie conceptuelle. Presses Universitaires de France, p. 08-10. 24
Para POCOCK, uma linguagem poltica deve ser compreendida a partir da histria do discurso poltico.
Para o autor, o mtier dhistorien consiste em analisar os atos de enunciao que compem o discurso
poltico, a fim de identificar a histria que se forma a partir da interao entre parole (atos de fala) e langue
(linguagem). A partir dessa perspectiva, para que um pensamento possa ter uma histria, essencial que ele
possua uma continuidade de ao constituda por aes e performances, que so realizadas e representadas em
determinadas condies, que, por sua vez, so diretamente modificadas por essas mesmas aes realizadas
sob e sobre elas. Cf. Linguagens do iderio poltico. So Paulo: Edusp, 2003, p. 63-64. 25
Embora LOCKE no apresente uma definio explcita do termo Repblica, a vigncia universal atribuda
pelo autor lei natural, que continua a vigorar mesmo aps a instituio do poder poltico, permite vislumbrar
o conceito de res publica na noo de sociedade poltica descrita pelo filsofo. De fato, como observa Nicola
MATTEUCCI, o conceito de Repblica decorre especialmente da formulao realizada por CCERO no
Livro I, XXV, do De Republica, em que a repblica definida como coisa do povo, sendo que o povo no
todos os homens agrupados de qualquer modo, mas congregados em um agrupamento da multido por seu
consenso de justia e uma reunio pela utilidade comum (non omnis hominum coetus quoquo modo
congregatus, sed coetus molditudinis iuris consenso et utilitatis communioni sociatus). Cf. traduo proposta
por Isadora BERNARDO em O De Republica de Ccero: natureza, poltica e histria. (Dissertao de
mestrado), FFLCH, 2012, p. 93. Com o termo Res publica (literalmente, a coisa pblica), CCERO
sublinha, nesse sentido, a coisa do povo e o bem comum, de modo que o elemento distintivo da
Repblica pode ser apontado como o interesse comum (utilitatis communioni sociatus), que se expressa
pelo consenso quanto a uma lei comum (iuris consenso), por meio da qual uma comunidade afirma o direito
capaz de realizar o ideal de justia. Desse modo, de acordo com MATTEUCCI, o conceito de Repblica no
est contraposto, em CCERO, monarquia, mas ao governo injusto, ao qual AGOSTINHO chamar
posteriormente de magna latrocinia. Cf. BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO,
Gianfrancesco. Il Dizionario di Politica, Torino: UTET, 1983. Assim, como observa Sergio CARDOSO, o
17
mais realado, confirmando o afastamento de sua teoria da liberdade de uma
filiao estritamente liberal.
Conforme destaca Alberto R. G. de Barros26, ainda que o
pensamento republicano no possa ser identificado a partir da obra de um nico
pensador, sendo mais adequado falar-se em matrizes republicanas, tornou-se
consenso entre os historiadores principalmente aps os trabalhos de Pocock e
Skinner que o republicanismo moderno possui dois pilares: o republicanismo
renascentista e o republicanismo ingls. Embora muito j se tenha estudado o
republicanismo renascentista especialmente a sua enunciao na obra de
Maquiavel , pouco se tem investigado no Brasil o republicanismo ingls, em suas
diferentes matrizes.
De acordo com Pocock, as matrizes republicanas na Inglaterra
foram recebidas a partir do sculo XVI, com a propagao do iderio humanista na
Inglaterra, especialmente pelas obras de Leonardo Bruni, Girolamo Savonarola,
Francesco Guicciardini e Donato Giannotti. Apenas a partir das primeiras dcadas
do sculo XVII, porm, a partir do contexto poltico propiciado pelas guerras civis,
os princpios republicanos passaram a ser mais notveis na Inglaterra, com a
publicao de diversos panfletos e tratados que passaram a atacar a dinastia dos
Stuart e suas prticas arbitrrias. Em tais ataques, diferentes autores apropriaram-
se do iderio republicano, utilizando-se de suas matrizes tericas para o
embasamento de suas crticas ao governo arbitrrio.
Assim, por exemplo, filsofos e historiadores da antiguidade
clssica como Ccero e Polbio, alm de autores do renascimento italiano, entre os
quais se destacam Bruni e Savonarola e, de forma especial, Maquiavel, passaram
a ser invocados por tericos ingleses empenhados em intervir nas constantes
controvrsias entre o rei e o parlamento, que marcaram o contexto poltico da
Inglaterra sob a dinastia dos Stuart.
termo Repblica remete s noes de governo de leis (e no de homens), de imprio da lei e mesmo
estado de direito, expresses que aludem, de forma mais imediata, ideia de que aqueles que mandam
tambm obedecem. Cf. Sergio CARDOSO, Sergio. Por que repblica? Notas sobre o iderio democrtico
republicano. In: Retorno ao republicanismo, pp. 45-65. So Paulo: Humanitas, 2004, passim. 26
Cf. Republicanismo. In: Manual de Filosofia Poltica. So Paulo: Saraiva, 2012.
18
Essa transposio terica, to bem analisada por Pocock em
The machiavellian moment: florentine political thought and the atlantic republican
tradition, lanou as bases para o desenvolvimento do republicanismo ingls, s
quais se somaram elementos prprios Reforma protestante, alm de noes
como as de direitos naturais, representao poltica e contrato social27, que
conferiram ao republicanismo ingls seus traos peculiares, em um processo a
que Pocock denomina anglicizao da repblica28.
Com o objetivo de interferir diretamente na realidade poltica
do perodo, tais autores produziram, nos diferentes momentos29 que constituram
esse longo processo, um significativo nmero de panfletos e tratados, em que os
contornos da matriz inglesa da teoria republicana da liberdade podem ser
identificados.
De acordo com Skinner, essa teoria da liberdade defendida no
sculo XVII por diferentes autores estava associada ao ideal romano de civitas
libera, que j havia sido revivido pelos renascentistas italianos defensores da
libert republicana, mas foi apropriada no contexto poltico da Inglaterra com
forte carga da linguagem dos direitos, o que conferiu ao republicanismo ingls
traos peculiares30.
De modo a destacar as origens histricas da formulao desse
conceito de liberdade na Inglaterra do sculo XVII e a fim de evitar a associao
imediata dessa teoria com autores que incorporam a ela um repdio explcito
instituio da monarquia, Skinner prope design-la como teoria neorromana dos
Estados livres, em detrimento da designao liberdade republicana, utilizada por
27
A elaborao desses conceitos no mbito do pensamento poltico ingls permitiu tambm o surgimento da
teoria poltica liberal, conforme se pode observar da constante presena dessas noes em autores que adotam
uma perspectiva poltica predominantemente liberal. 28
Cf. J. G. A. POCOCK. The machiavellian moment: florentine political thought and the Antlantic
Republican traditition, Op. cit., p. 361 e seguintes. 29
.A noo de momento desenvolvida por POCOCK em The machiavellian moment: florentine political
thought and the Antlantic Republican traditition para caracterizar o momento maquiaveliano na Inglaterra,
em que, segundo o comentador, as ideias de Maquiavel foram apropriadas por tericos polticos ingleses
interessados em intervir nas disputas entre o rei e o parlamento que marcaram, no sculo XVII, os reinados
dos monarcas integrantes da dinastia dos Stuart. Assim, pode-se compreender por momento o conjunto de
argumentos passveis de serem reunidos em razo de uma origem ou formulao comuns, ainda que a origem
comum no remonte necessariamente a um nico autor. Cf. J. G. A. POCOCK. Op. cit., p. vii-viii. Vide infra,
captulo I. 30
Cf. Quentin SKINNER, Liberdade antes do liberalismo. Op. cit., p. 21.
19
Pocock, Pettit e Spitz, dentre outros autores, alm do prprio Skinner em seus
primeiros escritos sobre o tema31.
As ideias republicanas, que vinham sendo elaboradas na
Inglaterra desde meados do sculo XVI, atingiram o apogeu no breve perodo
entre 1649 e 1660, em que a Inglaterra esteve sob um regime denominado
republicano32. Aps a restaurao da monarquia em 1660, contudo, que frustrou a
implementao concreta dos ideais difundidos no momento central do
republicanismo ingls, designado por Pocock momento maquiaveliano, essas
ideias permaneceram latentes no iderio poltico ingls, diante do recrudescimento
do arbtrio por parte da dinastia dos Stuart.
A despeito disso, porm, esse perodo deixou como legado,
como destaca Skinner, o mais rico e variado conjunto de escritos republicanos do
sculo XVII, alm de alimentar as sensibilidades polticas de autores como Henry
Neville e Algernon Sidney, jovens membros do longo parlamento que voltaram a
defender os mesmos ideais na dcada de 168033, mesmo perodo em que Locke
concebeu os seus Tratados, com a mesma preocupao de refutar as teses do
Patriarca de Robert Filmer, que motivou Algernon Sidney a escrever os
Discourses concerning government.
Ora, como sustenta Pocock, uma linguagem poltica deve ser
compreendida a partir da histria do discurso poltico, em que o intrprete
disponha-se a analisar os diferentes argumentos de uma teoria como parte de
uma performance, permitindo que enunciaes de diferentes autores sejam vistas
em suas recprocas interaes, nas quais as aes discursivas possam ser
31
Ainda que a discusso acerca da designao da teoria em questo no seja de fundamental relevncia para a
compreenso da formulao do conceito de liberdade enunciado pelos autores do republicanismo ingls, a
preocupao de SKINNER chama ateno para o fato de que as ideias defendidas pelos diferentes autores
situados no campo de abrangncia dessa teoria no so incompatveis, em carter absoluto, com a instituio
da monarquia. Em seus escritos mais recentes, contudo, SKINNER voltou a designar essa teoria como
republicana, por entender ter perdido nessa parte da disputa, uma vez que a denominao republicana
tornou-se consagrada pelo uso, mesmo soando, segundo o autor, como anti-histrica. Cf. Hobbes e a
liberdade republicana. So Paulo: Editora UNESP, 2010, p. 9. 32
Os realistas preferem designar esse perodo por interregno. Embora a designao do regime da Free
Commonwealth como republicano seja tambm imprecisa, diante da persistncia de inmeras prticas
arbitrrias nos diferentes regimes que se sucederam execuo de Carlos I, em especial no perodo do
Protetorado de Cromwell, utilizaremos aqui essa designao, com essa importante ressalva. 33
Cf. Quentin SKINNER. Liberdade antes do liberalismo. Op. cit., p. 26.
20
aproximadas por participarem conjuntamente de determinadas condies, que, por
serem compartilhadas, so tambm diretamente modificadas por essas mesmas
aes34.
Nesse esforo, ao mesmo tempo em que deve estar atento ao
fato de que os conceitos e problemas possuem uma lgica indissocivel do
argumento interno do texto, o intrprete das ideias polticas deve, como destaca
Spitz, procurar conhecer o contexto do passado e a sua linguagem, colocando-se
escuta para que possa identificar para quem o autor escreve e contra quem
escreve, de modo a revelar os elementos contextuais indispensveis
compreenso dos conceitos estudados, respeitando o carter essencialmente
histrico da filosofia poltica35. H que se considerar, nesse sentido, como supe
Skinner, que mesmo as obras de contedo mais abstrato de teoria poltica jamais
esto fora da batalha: elas so parte da prpria batalha36.
Desse modo, mesmo admitindo ser impossvel, como
reconhece John Dunn impor uma ilcita coerncia expositiva ao processo histrico
como um todo, pretende-se empreender uma abordagem da obra de Locke que,
embora analtica em sua ambio, recorra ao macrocosmo do processo
histrico e explanao biogrfica, dirigindo-se aos motivos que levaram Locke
a escrever, dizer e publicar o que conhecemos acerca de sua concepo de
liberdade37.
Partindo desses pressupostos metodolgicos, o propsito
deste trabalho colher os elementos que apontam que a noo de liberdade
defendida por Locke em sua obra poltica tributria dos argumentos
desenvolvidos nos momentos precedentes em que se expressou o pensamento
republicano na Inglaterra, o que permitiria inclu-la como referncia de um dos
mais importantes atos do longo discurso que culminou na formulao do conceito
republicano de liberdade.
34
Cf. POCOCK, Op. cit., p. vii e seguintes. 35
Cf. SPITZ, Op. cit., passim. 36
Cf. Quentin SKINNER. Hobbes e a liberdade republicana. So Paulo: Editora UNESP, 2010, p. 15. 37
Cf. John DUNN, The political thought of John Locke An historical account of the argument of the Two
Treatises of Government. Cambridge: Cambridge University Press, 2000, p. 5-6.
21
Para tanto, ser realizada, na primeira parte do trabalho,
composta dos dois primeiros captulos, uma exposio da formao histrica do
pensamento poltico moderno na Inglaterra, seguida de uma apresentao do
debate poltico estabelecido no contexto da crise de excluso, em que se insere
a obra de Locke. Assim, no primeiro captulo ser abordado o processo de
anglicizao da repblica, enquanto no segundo captulo sero apresentados os
argumentos expostos nas obras de Robert Filmer, Henry Neville e Algernon
Sidney, razo pela qual prevalecer, neste captulo, o teor descritivo em
detrimento do analtico. Na segunda parte, formada pelos captulos trs e quatro,
ser empreendida uma anlise do Primeiro tratado sobre o governo, com a
apreciao da contestao de Locke teoria de Filmer, enquanto no quarto
captulo ser analisada a noo de liberdade natural do filsofo. Na terceira parte
da tese, sero analisadas, nos captulos cinco e seis, respectivamente, as noes
de liberdade poltica e liberdade religiosa.
22
CAPTULO I
As fundaes histricas do pensamento poltico moderno na Inglaterra: a
anglicizao da repblica
No grande dilogo que permeia a histria das ideias polticas,
as fronteiras dos diferentes atos do discurso38 que lhe conferem materialidade
so, de forma quase inevitvel, de difcil delimitao. Ainda que frequentemente
sejam trazidas a esse amplo debate referncias de momentos remotos com vistas
a amparar ideias preconcebidas, o recurso a movimentos argumentativos
anteriores pode tambm ser empreendido, conforme aponta Zera Fink39, como um
elemento formativo de novas ideias polticas, em um irrefrevel e intrincado
processo dialtico.
De acordo com Fink, nesse sentido, o vasto nmero de
referncias ao pensamento poltico da antiguidade clssica e a seus modelos
polticos, realizado por diversos autores no renascimento, no deve ser
compreendido como um mero recurso a lugares comuns utilizado apenas para
reafirmar posies tradicionais, pois essa transposio no se operou, de modo
geral, como simples reproduo anacrnica das ideias polticas do passado, mas
representou uma verdadeira fora motriz que constituiu o pensamento poltico
moderno40.
Dessa forma, quando os defensores da monarquia absoluta na
Inglaterra do sculo XVII acusavam que a leitura dos livros dos antigos gregos e
romanos tornava os homens republicanos, ainda que isso no desse conta de
toda a explicao dos motivos pelos quais alguns homens se tornavam
republicanos, eles estavam de fato identificando, segundo Fink, um importante
38
A identificao dos incontveis atos do discurso de que se compem, pela perspectiva de POCOCK, o
pensamento poltico ingls, no ser o objeto do presente captulo, em que se procurar realar o processo de
transposio e desenvolvimento de ideias por meio do qual se deu a ancoragem dos argumentos republicanos
na Inglaterra. Por esse motivo, tal noo ser temporariamente preterida neste captulo pela noo de
momento, por sua maior generalidade, sendo posteriormente retomada. 39
Cf. The classical republicans. An essay on the recovery of a pattern of though in seventeenth-century
England. Eugene: Resource publications, 2011, p. vii. 40
Cf. FINK, Op. cit., p. vii.
23
elemento dessa explicao, que permitiu, na expresso consagrada por John
Pocock41, a anglicizao da repblica.
Como destaca Alberto Barros42, assim como em outras
doutrinas polticas, o iderio do republicanismo uma construo de diferentes
autores, mas sua recuperao na histria das ideias polticas tornou-se possvel
graas principalmente abordagem histrica da linguagem poltica promovida a
partir do sculo XX por autores ingleses como Pocock e Skinner, que
empreenderam estudos das obras polticas sob uma tica de paradigmas
conceituais, pelos quais as questes polticas centrais da sociedade e do tempo
em que as obras foram escritas adquirem carter essencial para a compreenso
do sentido dos textos. Essa abordagem permitiu a identificao da ocorrncia de
uma transposio de ideias e argumentos presentes em autores do
republicanismo antigo e renascentista para autores ingleses do sculo XVII,
possibilitando, assim, a associao de autores polticos que, a despeito de
adotarem diferentes estilos ou perspectivas, defendiam princpios e valores
comuns.
A literatura crtica sobre o republicanismo ingls , por esse
motivo, relativamente recente, podendo sua primeira tentativa de estruturao ser
identificada na obra de Zera Fink intitulada The classical republicans: an essay in
the recovery of a pattern of thought in seventeenth-century England43, publicada
pela primeira vez em 1945. Contudo, a partir de The machiavellian moment:
florentine political thought and the atlantic republican tradition, obra referencial de
Pocock publicada em 1975, que a linguagem poltica que deu origem ao
republicanismo ingls foi devidamente fixada e consolidada, permitindo a
identificao de um contexto lingustico apto a ser politicamente estudado e
compreendido.
De acordo com Pocock, as matrizes republicanas na Inglaterra
foram recebidas a partir do sculo XVI, com a propagao do iderio humanista na
41
Cf. J. G. A. POCOCK. The Maquiavellian Moment: florentine political thought and the Antlantic
Republican traditition. Princeton: Princeton University Press, 2003, p. 361 e seguintes. 42
Cf. Republicanismo. In: Manual de Filosofia Poltica. So Paulo: Saraiva, 2012, pp. 69-95. Ver tambm A
matriz inglesa. In: Matrizes do republicanismo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013, pp. 126-174. 43
Cf. Nota 35, supra. A primeira edio, de 1945, foi publicada por Northwestern University Press.
24
Inglaterra, especialmente pelas obras de Leonardo Bruni, Girolamo Savonarola,
Francesco Guicciardini e Donato Giannotti. Apenas a partir das primeiras dcadas
do sculo XVII, porm, no contexto poltico propiciado pelas guerras civis, os
princpios republicanos passaram a ser mais notveis na Inglaterra, com a
publicao de diversos panfletos e tratados que passaram a atacar a dinastia dos
Stuart e suas prticas arbitrrias. Em tais ataques, diferentes autores apropriaram-
se do iderio republicano, utilizando-se de suas matrizes tericas para o
embasamento de suas crticas monarquia absoluta.
Assim, por exemplo, filsofos e historiadores da antiguidade
clssica como Ccero e Polbio, alm de autores do renascimento italiano, entre os
quais se destacam Bruni e Guicciardini e, de forma especial, Maquiavel, passaram
a ser evocados por tericos ingleses empenhados em intervir nas constantes
controvrsias entre o rei e o parlamento, que marcaram o contexto poltico da
Inglaterra sob a dinastia dos Stuart.
Partindo da noo de momento no pensamento poltico tal
qual empreendida por Pocock para caracterizar o momento maquiaveliano, no
sentido de um perodo tematicamente definido em que um conjunto de
argumentos pode ser identificado e reunido a partir de uma origem ou formulao
comuns44, procuraremos abordar as diversas etapas da transposio terica que
permitiu o desenvolvimento do republicanismo ingls, por meio do longo processo
de anglicizao da repblica. Com base nessa perspectiva, podemos considerar
cinco momentos no processo de anglicizao da repblica, que ora assim
propomos designar: momento do Direito Romano (ou momento de Leonardo
Bruni); momento dos historiadores e filsofos da antiguidade romana (ou
momento ciceroniano); momento da graa apocalptica (ou momento de
Savonarola); momento maquiaveliano; e momento da supremacia popular (ou
momento da razo iluminista). Para que se possa compreender adequadamente
44
A indicao de um autor para designar os diferentes momentos do processo de anglicizao da repblica,
realizada entre parnteses, levou em considerao a relevncia do autor na elaborao dos argumentos
considerados, ainda que diversos outros estejam envolvidos no enfrentamento do problema terico que d
ensejo a cada uma das sries argumentativas. A designao dos momentos maquiaveliano e de
Savonarola foi extrada diretamente da obra de POCOCK, sendo que as demais so aqui sugeridas a partir da
predominncia identificada nos discursos polticos que so descritos neste trabalho.
25
o processo de anglicizao da repblica, faz-se necessrio, portanto, caracterizar
com preciso cada um desses momentos.
1.1. Momento do Direito Romano.
A primeira e uma das mais importantes etapas desse longo
processo o momento do Direito Romano pode ser situada, como salienta
Pocock45, alguns meses antes do incio da guerra civil inglesa, no mbito da
controvrsia estabelecida entre o rei e o parlamento acerca da extenso dos
poderes constitucionais detidos por cada uma das partes integrantes do corpo
poltico.
De fato, depois que o rei abandonou, em janeiro de 1642, a
cidade de Londres e transferiu sua corte para Oxford, os parlamentares que
permaneceram em Westminster aps a grande reprimenda e posterior invaso
do parlamento estabeleceram com o monarca um intenso debate por meio de
declaraes pblicas, representaes e cartas, na tentativa de preservar as suas
prerrogativas e estabelecer as bases de seu relacionamento institucional com o
monarca. Essa acirrada disputa terica atingiu o seu pice em junho do mesmo
ano, com a publicao pelo parlamento do documento intitulado Dezenove
proposies das duas casas do parlamento46, que reivindicava para as casas do
parlamento diversos direitos, entre os quais o comando do exrcito, e propagava
uma das mais duras crticas ao direito de veto do monarca sobre as deliberaes
do parlamento, denominado voz negativa do rei.
Nesse documento, encaminhado ao rei em 1 de junho de
1642, os parlamentares sustentavam que o direito de veto do monarca era a
expresso do arbtrio e representava a completa negao da liberdade dos
sditos, como se observa na segunda proposio apresentada ao monarca:
45
Cf. POCOCK, Op. cit., p. 361. 46
Cf. Nineteen Propositions made by both Houses of Parliament, to the Kings most excellent Majestie,
touching the differences between His Majestie and the said Houses. In: Joyce Lee MALCOLM (ed.), The
Struggle for Sovereignty: Seventeenth-Century English Political Tracts. Indianapolis: Liberty Fund, 1999, p.
148-154. O ttulo foi aqui traduzido resumidamente por Dezenove proposies das duas casas do parlamento.
26
II. Que os grandes assuntos do reino no possam ser celebrados ou transacionados apenas com a assessoria de particulares, ou por quaisquer conselheiros desconhecidos ou no juramentados; mas que tais questes, por serem concernentes ao pblico, e serem prprias da Cmara Alta do Parlamento, que o maior e mais elevado conselho de Sua Majestade, possam ser debatidas, resolvidas, e transacionadas apenas no parlamento, e no em outro lugar. E caso algo deva ser feito em sentido contrrio a essas resolues, isso deve estar reservado censura e ao julgamento do
prprio parlamento. (...)47.
A resposta formulada pelo rei s proposies do parlamento,
apresentada em 21 de junho de 1642 no documento intitulado Resposta de Sua
Majestade s dezenove proposies das duas casas do parlamento48, por sua
vez, tornou-se ainda mais clebre do que as reinvindicaes do parlamento, na
medida em que representou uma drstica e surpreendente inovao na polmica
realista em especial por ter partido do prprio monarca ao conter a descrio
do governo da Inglaterra como uma monarquia mista, em vez de uma monarquia
moderada.
Esboada por dois conselheiros de Carlos I, Lucius Cary o
Visconde de Falkland e Sir. John Colepeper49, na Resposta de Sua Majestade
s dezenove proposies das duas casas do parlamento, o monarca sustenta que
o governo da Inglaterra dotado de trs estados, o rei, os lordes e os comuns, e
que a integridade do todo depende necessariamente da manuteno do balano e
do equilbrio entre cada uma das partes.
De acordo com Pocock, essa inusitada tese, com um
afastamento da ideia segundo a qual a autoridade do parlamento seria derivada e
descendente da autoridade do monarca, representou um desastroso erro ttico na
47
Cf. Dezenove proposies das duas casas do parlamento, Op. cit. (nota 44), p. 149. Traduo livre. 48
Cf. His Majesties Answer to the Nineteen Propositions of Both Houses of Parliament. In: The Struggle for
Sovereignty: Seventeenth-Century English Political Tracts, 2 vols, ed. Joyce Lee Malcolm, Indianapolis:
Liberty Fund, 1999, p. 154-178. Ttulo livremente traduzido por Resposta de Sua Majestade s dezenove
proposies das duas casas do parlamento. 49
De acordo com Corine Comstock WESTON, o papel de maior importncia na elaborao do documento
deve ser atribudo a John COLEPEPER, e no ao Visconde de FALKLAND. POCOCK, por outro lado,
destaca que o papel de FALKLAND no deve ser mitigado, pois apenas FALKLAND era um intelectual. Para
POCOCK, o afastamento de FALKLAND do papel preponderante na elaborao da Resposta de Sua
Majestade s dezenove proposies das duas casas do parlamento deve-se ao fato de CLARENDON, que era
amigo de FALKLAND, ter desaprovado e criticado o documento, o que o levou a amenizar a contribuio
deste na concepo do documento. Cf. Corine C. WESTON, Subjects and Sovereigns: the grand controversy
over legal sovereignty in Stuart England. Cambridge: Cambridge University Press, 1981, passim.
27
polmica realista. Em um intervalo muito curto de tempo, porm, tal tese foi to
amplamente aceita e to diversamente empregada que significou uma verdadeira
inovao paradigmtica, por conter uma descrio do monarca como uma parte
de seu prprio reino, um dos trs estados entre os quais deve haver equilbrio e
igualdade50.
De fato, o governo da Inglaterra assim descrito na Resposta
de Sua Majestade s dezenove proposies das duas casas do parlamento:
Existindo trs espcies de governo entre os homens, monarquia absoluta, aristocracia e democracia, e todas elas possuindo suas prprias convenincias e inconvenincias, a experincia e a sabedoria de seus ancestrais moldou ento uma mistura de suas aes para dar a este reino (to longe quanto a prudncia humana pode conceber) as convenincias de todos os trs, sem as inconvenincias de nenhum deles, enquanto o balano se projete entre os trs estados, e eles fluam conjuntamente em seu prprio curso (produzindo vio e fertilidade por ambos os lados do campo) e a abundncia em ambos os lados no acarreta dilvio ou inundao. A doena da monarquia absoluta a tirania, a doena da aristocracia a faco e a diviso, as doenas da democracia so os tumultos, a violncia e a licenciosidade. A qualidade da monarquia a unio de uma nao sob uma cabea para resistir a invases externas e insurreies domsticas; a qualidade da aristocracia a combinao de opinies das mais capacitadas pessoas de um estado para o benefcio pblico; a qualidade da democracia a liberdade, e a coragem e o esforo
que a liberdade proporciona.51
O documento prossegue, ainda, com a descrio da
competncia conjunta dos trs estados no processo de elaborao de leis e no
exerccio do poder legislativo.
Neste Reino, as leis so conjuntamente elaboradas por um rei, por uma Cmara de Pares, e por uma Cmara dos Comuns escolhida pelo povo,
todos os estados possuindo livre poder de voto e privilgios particulares.52
Quanto diviso de competncias entre os trs estados, por
outro lado, a Resposta descreve o monarca como o nico capaz de executar as
leis conjuntamente elaboradas, circunscrevendo as atribuies de cada qual a um
conjunto limitado de competncias e restringindo, em especial, as atribuies da
Cmara dos Comuns:
50
Cf. POCOCK, Op. cit, p. 361. 51
Cf. Resposta de Sua Majestade s dezenove proposies das duas casas do parlamento, Op. cit., p. 167. 52
Cf. Idem, ibidem, p. 168.
28
O governo de acordo com essas leis est atribudo ao rei, assim como o poder de celebrar tratados, de declarar a guerra e a paz, de nomear os pares, de escolher os funcionrios e conselheiros do Estado, de nomear os juzes de Direito, os comandantes dos fortes e castelos, de destacar recursos para financiamento de guerras no exterior ou para prevenir invases ou insurreies no mbito domstico, o direito de efetuar confiscos, o poder de clemncia, e outros poderes do mesmo gnero so atribudos ao rei. E este tipo de monarquia regulada, por possuir o poder de preservar essa autoridade, sem a qual seria incapaz de manter a fora das leis, e de resguardar os sditos em suas liberdades e propriedades, tem por finalidade o respeito aos grandes, para que possa impedir os males da diviso e da faco, e um tal temor e reverncia para com o povo, para que possa evitar tumultos, violncia e licenciosidade (...). A Casa dos Comuns (uma conservadora da liberdade por excelncia, mas que nunca pretendeu participar de qualquer modo no governo, ou escolher os que devem governar) est exclusivamente encarregada de elaborar proposies relativas s finanas (tanto dos fundos necessrios guerra como dos necessrios para a manuteno da paz)(...). E a Cmara dos Lordes, por estar encarregada do Poder Judicirio, uma excelente proteo e conteno entre o prncipe e o povo, socorrendo cada qual contra as transgresses do outro, por meio de julgamentos imparciais que preservem a lei, que deveria ser a nica regra a ser seguida por cada um dos trs
estados.53
Ainda que a finalidade da Resposta ao descrever as
atribuies de cada um dos estados possa ter sido a de contestar a competncia
invocada pelos Comuns nas Dezenove proposies das duas casas do
parlamento, de participar do processo de escolha dos conselheiros do rei e afastar
as crticas ao poder de veto do monarca, ao apresentar o poder de legislar como
uma competncia exercida conjuntamente pelos trs estados do reino, tal
descrio afastou-se do modo de formulao pelo qual a metfora do corpo
poltico era tradicionalmente apresentada, em que o rei era tido como a cabea do
reino, qual todos os demais poderes estariam subordinados, abrindo caminho
para a retomada da figura do rei no parlamento, em que a Constituio inglesa
era descrita como uma unidade na trindade.
A figura do rei no parlamento, que evocava a ideia de
unidade na trindade, peculiar teologia crist, possua, com efeito, uma longa
53
Cf. Resposta de Sua Majestade s dezenove proposies das duas casas do parlamento, Op. cit., p. 169.
29
histria no pensamento poltico ingls, cujas origens esto associadas obra On
the Laws and Governance of England, de John Fortescue54, publicada em 1468.
Escrita originalmente em latim sob o ttulo De laudibus legum
Anglie, a obra de Fortescue s passou a ser designada por On the Laws and
Governance of England aps 1885, sendo at ento conhecida como Of the
difference between an absolute and limited monarchy55. Escrevendo em resposta
a uma crise concreta no governo da Inglaterra em meados do sculo XV, a obra
de Fortescue no possui carter meramente especulativo, contendo, antes, uma
reflexo sobre o funcionamento do governo e das instituies jurdicas na
Inglaterra de seu tempo.
Com efeito, na dcada de 1450, a coroa Inglesa estava imersa
em uma grande crise: o reino possua imensas dvidas decorrentes da derrota na
guerra dos cem anos, o territrio da Normandia havia sido considerado
definitivamente perdido e havia srias denncias contra auxiliares prximos do rei.
Com o conselho do monarca dividido pelo facciosismo, a violncia e corrupo
generalizadas levaram caracterizao do perodo como um feudalismo
bastardo56. Ainda que a culpa pela penosa situao do reino fosse
frequentemente imputada aos maus conselheiros do rei, a fraqueza pessoal do
prprio monarca, Henrique VI, que sofria de frequentes colapsos mentais, tornou-
se, como destaca Shelley Lockwood, um fato crucial e inescapvel da vida
poltica. Um rei cronicamente fraco representava uma ameaa semelhante a um
tirano, pois a ausncia de uma vontade unificada e centralizada constitua uma
falha do monarca em relao ao dever mais importante de seu ofcio, qual seja, o
de garantir a paz e a justia, alm de significar a total negao das virtudes
esperadas de um monarca57.
Em resposta a essa crise, Fortescue apresenta em sua obra
um argumento de defesa da justia contra a tirania, do interesse pblico contra o
interesse privado, definindo a tirania exatamente como a precedncia do bem
54
John FORTESCUE, On the Laws and Governance of England, Cambridge: Shelley Lockwood, 1997. 55
O trabalho passou a ser conhecido pelo nome atual a partir da edio de Plummer, trazida a lume pelo
cotejamento dos dez manuscritos existentes do texto e que chegaram modernidade. Cf. Op. cit., p. xi 56
Cf. FORTESCUE, Op. cit., p. xvi 57
Cf. FORTESCUE, Op. cit., p. xvii.
30
particular em detrimento do bem pblico, o que resulta em injustia e opresso.
Para Fortescue, a cobia de alguns que reside no desejo de ter mais do que os
outros acarreta a correspondente pobreza da maioria, levando a perturbaes
paz e tranquilidade do reino. Apenas o equilbrio entre os bens individuais que
dado pela justia seria capaz de conduzir o reino condio de paz, razo
pela qual o monarca deve impor a lei natural e a lei civil de modo a reconduzir o
reino ao estado de paz.
Para Fortescue, nesse sentido, a autoridade do monarca est
associada a sua capacidade de impor a lei para garantir a justia. O ofcio do rei
governar com justia por meio das leis, que so o lao sagrado da sociedade
humana. De acordo com Fortescue, contudo, o governo da Inglaterra no se
resumia apenas autoridade do monarca, uma vez que, tal qual a comunidade
dos filhos de Israel antes da ascenso de Saul, a Inglaterra no se constitua em
um domnio real, mas em um domnio real e poltico58.
Com efeito, adotando conceitos constantes da obra De
Regimine Principum De Regno ad Regem Cypri, de Toms de Aquino, com a
atualizao realizada por Ptolomeu de Lucca, que aludem tipologia das formas
de governo de Aristteles, Fortescue sustenta que os governos podem assumir,
inicialmente, duas diferentes formas: um domnio real e um domnio poltico59. O
primeiro o domnio real caracterizado pela existncia de uma s cabea, que
impe as leis de acordo com sua prpria vontade e prazer, ao passo que o
segundo o domnio poltico caracteriza-se pelo governo de cidados de
acordo com as leis que eles mesmos estabeleceram60.
Em relao ao domnio poltico, Fortescue acentua que foi
esse o governo ao qual se submeteram os romanos aps a expulso de Tarqunio,
58
Cf. FORTESCUE, Op. cit., p. 130. 59
Como observa Shelley LOCKWOOD, ainda que tal distino no esteja originalmente contida na obra de
Toms de Aquino, mas faa parte da atualizao realizada por Ptolomeu de Lucca da obra De Regimine
Principum De Regno ad Regem Cypri, h nessa tipologia aluso noo tomista de civitas, cuja
referncia era feita por meio do termo poltico, que na tradio medieval estava associado noo de
repblica. Cf. FORTESCUE, Op. cit., p. xxxviii. 60
Cf. FORTESCUE, Op. cit., p. 128.
31
cujo banimento arrastou consigo tambm o domnio real, pois o povo no mais
podia suportar a indolncia, a luxria e a espoliao de seus reis61.
dicotomia entre domnio real e domnio poltico, Fortescue
acrescenta uma terceira espcie de domnio, no inferior aos outros dois em
dignidade e honra, que no s nos foi ensinado pela experincia e pela histria
antiga, mas que, segundo o autor, estaria tambm presente na doutrina de
Toms de Aquino: o domnio real e poltico:
(...) h um terceiro tipo de domnio, no inferior a esses em dignidade e honra, que chamado de real e poltico, que no nos foi ensinado apenas pela experincia e pela histria antiga, mas que sabemos tambm que nos
foi ensinado na doutrina de So Toms62 63.
Para Fortescue, como na Inglaterra os reis no podem editar
leis ou instituir tributos sem a participao do parlamento e todos os estados esto
sujeitos ao juramento de obedecer as leis do reino que so superiores at
mesmo aos comandos do monarca e considerando, por outro lado, que os
sditos no podem prescindir da autoridade do monarca para editar as leis, o reino
da Inglaterra no pode ser concebido apenas como um domnio real ou como um
domnio poltico, devendo ser compreendido como um domnio real e poltico:
(...) No reino da Inglaterra os reis no fazem as leis, nem impem tributos a seus sditos, sem o consenso dos trs estados do reino; e at mesmo os juzes desse reino esto todos sujeitos a seus juramentos de no realizar julgamentos contra as leis da terra (leges terre), mesmo se receberem um comando do prncipe em sentido contrrio. No se deve, portanto, chamar esse domnio de poltico, quer dizer, regulado pela administrao de muitos, e no se deve cham-lo tambm de real, dado que os sditos no podem, eles mesmos, editar leis sem a autoridade do rei, e o reino, ao estar sujeito dignidade do prncipe, possudo pelos reis e por seus herdeiros de maneira sucessiva, por direito hereditrio, de tal maneira que
o domnio no apenas politicamente regulado64.
61
Cf. FORTESCUE, Op. cit., p. 129. 62
Cf. FORTESCUE, Op. cit., p. 128. 63
Conforme mencionado anteriormente (nota 58, supra), a referncia de FORTECUE obra de Toms de
AQUINO realizada a partir da atualizao empreendida por Ptolomeu de Lucca, o que o leva a adotar o
termo poltico, ordinariamente utilizado na tradio medieval para referir-se noo de repblica, em
detrimento de civitas, adotado por Toms de Aquino, de aluso mais direta antiguidade clssica. Cf.
FORTESCUE, Op. cit., p. xxxviii. 64
Cf. FORTESCUE, Op. cit., p. 128-129.
32
De acordo com Fortescue, assim era o regime descrito no
Antigo Testamento como o governo de Israel no perodo dos juzes, que
antecedeu a instituio da monarquia, pois nele os juzes governavam para o bem
comum, e no para seu bem individual, e estavam submetidos avaliao da
assembleia dos filhos de Israel, a quem prestavam contas de seu ofcio, como fez
Samuel, o ltimo dos juzes65. E esse regime no era exclusivamente um domnio
poltico na medida em que, ao mesmo tempo, alguns eram postos frente dos
demais para julgar com equidade e porque o Rei de todos os reis o havia
governado, como a Seu prprio Reino66.
Contrariamente aos romanos, que baniram o domnio real por
no mais suportarem o esbulho dos reis, o povo de Israel, mesmo tendo sido
advertido das nefastas consequncias da instituio de uma monarquia, clamou,
por teimosia, por um domnio real, o que, segundo Fortescue, s foi concedido por
Deus com grande pesar:
(...) como se tivesse dito: Esse povo ingrato e teimoso que no sabe seu prprio bem, doravante no mais ser governado sob um domnio poltico, nem sob um domnio real e poltico, como antes, mas ser governado por um domnio apenas real, pelo qual, como por uma rdea e um cabresto,
sua teimosia dever ser mantida sob controle.67
Para enfatizar a distino entre o domnio real, o domnio
poltico e o domnio real e poltico, Fortescue lana mo, ainda, da diferena entre
lex e ius existente no Direito Romano68 que encoberta na Jurisprudncia
inglesa pela prevalncia de um nico termo (Law) para designar ambas as noes
segundo a qual a palavra lex designava qualquer espcie de comando, de
qualquer valor e contedo, editada por diferentes instituies, ao passo que o
termo ius estava vinculado origem da autoridade das normas e relacionado
necessariamente com a equidade.
De acordo com Fortescue, nesse sentido, no domnio real no
faz sentido a distino entre lex e ius, pois havendo uma fonte exclusiva de
65
I Samuel 2: 1-5. 66
Cf. FORTESCUE, Op. cit., p. 130. 67
Cf. FORTESCUE, Op. cit., p. 131. Traduzido livremente. 68
Mais especificamente nas Institutas de Justiniano e no Digesto.
33
autoridade das normas, a medida da equidade passa a ser apenas a lex, o que faz
com que as noes se sobreponham. No domnio poltico, de outro modo, h um
predomnio do ius em detrimento da lex, pois a autoridade dos comandos est
sempre em questo, de tal modo que o ius sempre pressuposto da lex.
apenas no domnio real e poltico, por sua vez, que ambas as dimenses esto em
equilbrio, pois ainda que a lex possa existir independentemente do ius, sua
autoridade constantemente avaliada a partir da apreciao, em cada caso, de
sua efetiva capacidade para a realizao da equidade69.
A partir dessa distino, e fazendo aluso, uma vez mais,
instituio da monarquia em Israel, Fortescue dirige lamentos transformao da
comunidade dos filhos de Israel de um domnio real e poltico em um domnio real,
pois a monarquia faz com que a lei revelada pelo profeta a seu povo no possa
ser a despeito de sua equidade intrnseca tomada nem como lex nem como
ius, uma vez que sua adoo e sua autoridade esto condicionadas, no domnio
real, ao arbitrrio juzo do monarca, diferentemente do que ocorria no perodo em
que Israel vivera sob um domnio real e poltico:
Nesse reino, antes de eles terem desejado um rei, no era lcito a nenhum homem fazer a outro aquilo que a razo no permitisse que ele fizesse a si mesmo, nem poderia um homem tomar o servo ou o empregado do outro, contra a sua vontade, nem dar a outro homem campo para seus servos, como o Profeta diz ser o direito (ius) do rei fazer [no domnio real].70
Assim, para Fortescue, h uma intrnseca relao entre o tipo
de domnio adotado em uma sociedade poltica e a equidade, pois se o domnio
real e poltico permite e favorece a realizao da equidade, o domnio real limita e
dificulta a realizao de tal valor, na medida em que at mesmo a adoo da lei
revelada por Deus aos homens fica condicionada, nesse domnio, ao arbtrio do
monarca, que pode ou no adot-la, de acordo com sua virtude e com a inclinao
de sua vontade.
Ainda que, como observa Shelley Lockwood, tal distino
entre domnios, contrariamente ao aludido por Fortescue, no esteja originalmente
contida na obra de Toms de Aquino, mas faa parte da atualizao realizada por 69
Cf. D. 1.1.1pr., D. 1.3.1 e D. 1.4.1pr. 70
Cf. FORTESCUE, Op. cit., p. 130. Traduo livre.
34
Ptolomeu de Lucca da obra De Regimine Principum De Regno ad Regem
Cypri71, h nessa tipologia clara aluso noo tomista de civitas, cuja referncia
na Idade Mdia era feita por meio do termo poltico, que na tradio medieval
estava associado noo de repblica.
Alm disso, como destaca Lockwood, alm da inevitvel
referncia obra On the laws and costume in England, de Henry Bracton,
Fortescue possui claramente como fonte de seu pensamento a Isagogue of moral
philosophy, de Leonardo Bruni72.
Ao descrever na Resposta de Sua Majestade s dezenove
proposies das duas casas do parlamento o reino da Inglaterra como uma
partilha de poderes entre as trs partes integrantes do corpo poltico, os
conselheiros de Carlos I deslocaram, portanto, o debate constitucional para a
anlise de uma noo j tradicional na teoria poltica inglesa, a ideia de rei no
parlamento, desenvolvida especialmente por Fortescue a partir de noes
centrais do Direito Romano, como a distino entre lex e ius, que lhe permitiram
descrever o reino da Inglaterra como um domnio real e poltico.
Ao reconhecer que na Inglaterra as leis so conjuntamente
elaboradas por um rei, por uma Cmara de Pares, e por uma Cmara dos
Comuns, os autores da Resposta afastaram-se drasticamente, nesse sentido, da
concepo do monarca como a fonte de toda autoridade no reino e ao qual o
parlamento estaria subordinado.
Por esse motivo, ainda que, como sustenta Skinner73, a
Resposta tenha representado uma vigorosa ofensiva dos realistas em defesa da
prerrogativa da voz negativa do monarca, por conter uma consistente
fundamentao do exerccio conjunto da competncia legislativa pelos trs
estados do reino, tal documento representou um verdadeiro ponto de inflexo no
pensamento poltico ingls, por fixar as balizas que permitiram a ancoragem dos
argumentos republicanos na Inglaterra.
71
Cf. FORTESCUE, Op. cit., p. xxxviii. Vide notas 58 e 62, supra. 72
Cf. FORTESCUE, Op. cit., p. xx. 73
Cf. SKINNER, Quentin. Classical Liberty and the Coming of the English Civil War. In: Republicanism. A
shared European Heritage. Cambridge: Cambridge University Press, 2002, p. 20.
35
Assim, por exemplo, Arihiro Fukuda enxerga nesse documento
a primeira descrio da constituio inglesa em termos polibianos74, enquanto
Corinne C. Weston afirma que a Resposta uma dentre uma srie de chaves que
abriram a porta para a anlise maquiaveliana na Inglaterra75. Para Pocock, no
mesmo sentido, ao descrever a constituio inglesa como uma mistura de
elementos em que h um balano de poderes, a rplica do rei reconhece que o
governo da Inglaterra, sem deixar de manifestar o elemento monrquico, uma
repblica clssica, podendo-se entrever na analogia realizada pelo monarca, de
um rio com suas naturais alteraes de regime de guas, uma nuance da imagem
maquiaveliana da fortuna:
Os trs elementos constituem um rio, o antigo smbolo do tempo: enquanto ele flui em seu canal natural, proporcionando riqueza e fertilidade, os temas da ordem e da graa descendente ainda esto sendo invocados; mas uma vez que ouvimos que o balano necessrio para prevenir dilvios e inundaes, o rio transforma-se naquele da fortuna, contra o qual os principados e as repblicas constroem diques para o bem da virtude76
Esse balano de poderes, no qual cada uma das partes
contribui com sua virtude prpria, enquanto atrai as outras a conter os vcios que
lhe so prprios, embora apresentasse, como bem recorda Pocock, a dificuldade
de associao entre funes polticas especficas e elementos definidos por suas
virtudes, recorrente desde a teoria aristotlica, ressoava de forma to retumbante
aspectos da teoria republicana que parecia impossvel admitir que sua
caracterizao tivesse partido do prprio monarca.
Sem embargo, foi exatamente isso o que fizeram os autores
da Resposta ao associar a virtude de cada um dos estados com as competncias
constitucionais a serem desempenhadas por cada uma das partes do reino. De
acordo com a Resposta, nesse sentido, a unidade proporcionada pelo elemento
monrquico, seria til ao combate a invases externas e insurreies
domsticas; a excelncia, decorrente da combinao de opinies das mais
74
Cf. Arihiro FUKUDA, Sovereignty and the sword. Harrington, Hobbes and Mixed Government in the
English Civil Wars. Oxford: Oxford University Press, 1997. 75
Corinne C. WESTON, Diverse Viewpoints On Ancient Constitutionalism. In: Eliis SANDOZ (ed.). The
Roots of Liberty: Magna Carta, Ancient Constitution, and the Anglo-AmericanTradition of Rule of Law.
Indianapolis: Liberty Fund, 2008, p. 160-174. 76
Cf. POCOCK, Op. cit., p. 363.
36
capacitadas pessoas (...) para o benefcio pblico, presente na Casa dos Lordes,
seria proveitosa para impedir os males da diviso e da faco; e a aptido para a
conservao da liberdade, atribuda Casa dos Comuns, seria importante para a
preservao da liberdade dos sditos77.
A essa identificao de virtudes segue-se a associao das
competncias dos trs estados do reino, atribudas a cada qual de maneira a
realar a virtude do todo. Assim, conforme descrito anteriormente, ao monarca
competiria, em suma, o governo nos termos da lei, o poder de declarar guerra e
paz, o poder de nomear os pares, alm de outros poderes do mesmo gnero,
Cmara dos Comuns, como uma conservadora da liberdade por excelncia, mas
que nunca pretendeu participar de qualquer modo no governo, ou escolher os que
devem governar, caberia a deliberao acerca das finanas do rei e Cmara
dos Lordes, competiria o exerccio do Poder Judicirio78.
O contraste entre o extenso conjunto de atribuies
resguardadas ao monarca e as reduzidas competncias concedidas aos demais
estados, aliado descrio da competncia conjunta dos trs estados no
processo de elaborao de leis revelam o esforo do monarca em realizar a
defesa de sua prerrogativa da voz negativa, bem como de sua competncia
exclusiva para a nomeao de conselheiros do rei, duramente criticados pelo
parlamento nas Dezenove proposies.
Alm disso, ao sustentar que a Casa dos Lordes uma
excelente proteo e conteno entre o prncipe e o povo e estabelecer que a
Cmara Alta est encarregada do Poder Judicirio, o rei pretendia colocar-se em
posio de poder apelar moderao dos Lordes contra o radicalismo dos
Comuns.
Entretanto, como analisa Pocock, ao realar a competncia
judicial dos Lordes, os autores da Resposta, embora estivessem pretendendo
pouco mais do que aludir competncia da Cmara Alta do parlamento para a
realizao de impeachments, deram voz a uma crena persistente de que os
Lordes seriam peculiarmente aptos a arbitrar o conflito entre os trs estados, 77
Cf. Resposta, Op. cit., passim. 78
Cf. Resposta, Op. cit., p. 169.
37
mantendo o balano do reino e agindo como uma corte suprema de direito
constitucional, nos moldes de uma guardia della libert de Maquiavel79.
Em razo desse e de todos os outros aspectos anteriormente
aludidos, que destoavam das teses tradicionalmente utilizadas para a defesa da
monarquia absoluta, a Resposta descrita s vezes como um passo concessivo e
conciliatrio do monarca que, no por acaso, foi renegado posteriormente, com a
supresso, a partir da segunda edio, do prembulo, sob a alegao da
existncia de incorrees.
Contudo, como destaca Skinner80, inegvel a contundncia
desse documento na tarefa de responder ao ataque do parlamento prerrogativa
da voz negativa, pois ao reconhecer o carter misto da constituio inglesa e
descrever o monarca como um dos estados, a Resposta logrou reforar essa
prerrogativa, que foi descrita como o direito de rejeitar o que entendemos
desarrazoado, ao qual se contrape o direito do parlamento de propor o que
entender conveniente ou necessrio. De acordo com o documento, nesse sentido,
a conduo de nosso voto est confiada pela lei a nosso prprio julgamento e
conscincia e no h nada mais irracional do que dois estados, ao propor algo
ao terceiro81, serem capazes de vincular o terceiro a agir de acordo com sua
vontade.
Desse modo, ao afirmar que na Inglaterra as leis so
conjuntamente elaboradas por um rei, por uma Cmara de Pares e por uma
Cmara dos Comuns, embora reconhecesse o governo do reino como um
governo misto, a Resposta do rei refutava explicitamente o direito invocado pelo
parlamento de legislar sem a sua aquiescncia quanto ao contedo das
proposies, pois ainda que aprovadas por ambas as casas do parlamento, sem a
sano real tais proposies no passariam de meros projetos de lei.
Alm disso, de acordo com o monarca, sem a prerrogativa da
voz negativa, ele seria reduzido de seu status de rei da Inglaterra ao de um
79
Cf. POCOCK, Op. cit., p. 364. 80
Cf. SKINNER, Op. cit., p. 21. 81
Cf. Resposta, Op. cit., p. 164.
38
mero Doge de Veneza, e a Inglaterra seria transformada de um reino em uma
repblica:
Mas clamo a Deus como testemunha de que, assim como em nome dos sditos esta prerrogativa est atribuda ao rei, tambm para o bem deles e para o bem do prprio rei, estou decidido a no renunciar a ela, nem subverter (embora a isso leve o caminho proposto pelo parlamento) a antiga, igualitria, feliz, bem equilibrada, e nunca suficientemente elogiada Constituio deste Reino, nem transformar a mim mesmo de um rei da Inglaterra em um doge de Veneza, e a Inglaterra de um Reino em uma
Repblica82.
Assim, embora a Resposta possa ser vista, como sustenta
Pocock83, como um erro ttico na polmica realista, por conter a descrio da
Inglaterra como um governo misto e afastar-se da tese segundo a qual a
autoridade do parlamento seria derivada da autoridade do monarca, tal documento
ofereceu coroa, por outro lado, um importante argumento jurdico em reforo da
prerrogativa da voz negativa, podendo ser concebido, como prope Skinner84,
como um agressivo e poderoso contra-ataque da coroa.
A despeito dessas aparentemente contraditrias leituras, a
Resposta representou, de fato, como anteriormente destacado, um verdadeiro
ponto de inflexo no pensamento poltico ingls, seja pelo inesperado
reconhecimento, por parte do monarca, do governo da Inglaterra como um
governo misto, seja pela contundente defesa da voz negativa do monarca, que
frustrou o avano das teses que apregoavam o incremento das prerrogativas do
parlamento, obrigando os defensores da causa parlamentar a, como afirma
Skinner, desenvolver novas linhas de ataque na tentativa de sustentar a fora de
sua c