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Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
UM DEBATE EM TORNO DA PROPOSTA DE EMENDA CONSTITUCIONAL 55 (PEC
55): GOVERNO TEMER, CAPITAL FICTÍCIO E AS MULHERES DA CLASSE
TRABALHADORA BRASILEIRA
Lívia de Cássia Godoi Moraes1
Resumo: A desigualdade social no Brasil se caracteriza por ser estrutural, a qual não é somente desigualdade de classe,
ela é também de raça e de sexo. Em uma perspectiva de consubstancialidade entre classe, raça e sexo, temos por
objetivo, neste artigo, analisar os fundamentos sócio históricos da PEC 55, proposta pelo Governo Temer (2016 -), e
como, se implementada, poderá afetar, de forma ainda mais contundente do que já ocorre, as mulheres da classe
trabalhadora brasileira. As raízes dessa proposta estão assentadas em um movimento internacional de financeirização da
economia e suas expressões na forma de capital fictício. No caso específico da PEC 55, a forma concreta central da
expressão dessa relação financeirizada é a dívida pública. O congelamento de gastos em despesas primárias, que
envolvem saúde, educação e assistência social, em resposta às necessidades de pagamento dos juros da dívida, têm
impactos imediatos sobre o cotidiano das mulheres trabalhadoras, ao mesmo tempo em que alimenta a sanha
especulativa da classe dominante. No artigo, aborda-se sobre o contexto de mundialização do capital e a sua expressão
na política econômica nacional; o que seja a PEC 55 como resposta e necessidade desse movimento capitalista; e, por
fim, apresenta possíveis impactos sobre as mulheres trabalhadoras brasileiras nos próximos 20 anos de congelamento
previstos pela emenda.
Palavras-chave: PEC 55. Capital fictício. Mulheres. Classe trabalhadora.
Introdução
“Ajuste fiscal” não é um termo novo para nós, latino-americanos e latino-americanas. Ele
acompanha políticas neoliberais em nossos países há algumas décadas. O laboratório experimental
das políticas neoliberais foi o Chile sob o governo ditatorial de Pinochet, em 1973, ainda que o
projeto neoliberal apenas tenha se tornado hegemônico com a ascensão ao poder de Margaret
Thatcher, na Grã-Bretanha, em 1979, e de Ronald Reagan, nos Estados Unidos, em 1980
(FALQUET, 2006, p. 18).
Entretanto, o que buscamos demonstrar em nossa análise é que o “ajuste fiscal” tem
particularidades em tempos de capitalismo financeirizado, o que implica em peculiaridades também
no impacto sobre a classe trabalhadora em geral, bem como especificamente sobre as mulheres
dessa classe.
Para tanto, organizamos o artigo da seguinte forma: em um primeiro momento, aborda-se o
contexto de mundialização do capital e a sua expressão na política econômica nacional;
1 Docente do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Política Social da Universidade
Federal do Espírito Santo. Coordenadora do PIBID – Ciências Sociais dessa mesma universidade. Vitória, Espírito
Santo, Brasil. Email: [email protected].
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posteriormente passamos a analisar o que seja a PEC2 55 como resposta e necessidade desse
movimento capitalista; e, por fim, apresentamos atuais e possíveis impactos sobre as mulheres
trabalhadoras brasileiras nos próximos 20 anos de congelamento previstos pela emenda, e
debateremos como o feminismo tem respondido a esse movimento do capital.
Capitalismo marcado pela acumulação de capital fictício
Essa fase do capitalismo financeirizado, que ganha suporte a partir da crise estrutural do
capital na década de 1970, se caracteriza pela centralidade nas relações econômico-financeiras
realizadas com capital fictício. Marques e Nakatani (2009) afirmam que há três grandes formas de
capital fictício: o capital bancário, a dívida pública e o capital acionário. Assomado a esses está o
mercado de derivativos.
O capital fictício é ao mesmo tempo real e fictício, porque o indivíduo que detém um papel
com promessa futura pode vendê-lo a um terceiro e obter dinheiro, ao mesmo tempo em
que, no âmbito da totalidade, esse capital é apenas promessa, não existe efetivamente.
Entretanto, mesmo no contexto da acumulação predominantemente financeira, o capital
fictício não se sustenta apenas de especulação. Ele parasita o mundo produtivo, de modo
que são criadas normas de Governança Corporativa e Investimento Socialmente
Responsável que garantam, no âmbito produtivo, o nível esperado de produção de mais-
valia (MORAES, 2016, s.p.)
A crise da década de 1970 se caracteriza por superacumulação de capital e não por falta de
capital, conforme o senso comum tende a fazer parecer. Parte desse capital é reinvestido
financeiramente na compra de ações nas bolsas de valores, títulos da dívida dos Estados e outras
variações de papeis especulativos.
Esse movimento tem impactos nos países da América Latina. O Brasil começou a sentir, a
partir da década de 1980, a pressão pela redução do gasto público, com uma mudança de cariz
neoliberal iniciada no Governo Collor de Mello (1990-1992) e aprofundada no Governo Fernando
Henrique Cardoso (1995-2002). Essa redução dos gastos públicos culminou, desde 1999, no esforço
pela obtenção de superávit primário (FERREIRA, 2010).
“A obtenção de superávits primários significa que as receitas do governo devem superar
seus dispêndios não financeiros. A diferença é utilizada exatamente para pagar parte dos juros sobre
a dívida pública” (FERREIRA, 2010, p. 52, grifo nosso). Ou seja, a prioridade passou a ser “honrar
os compromissos financeiros”. Com isso vemos a crescente importância que o pagamento do
serviço da dívida pública e sua amortização passam a ganhar.
2 Proposta de Emenda Constitucional
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O Estado reduz a sua participação no setor real da economia e nos investimentos sociais e
passa a ser um agente fomentador das finanças. Essa política adentra os governos Lula da Silva
(2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2016).
[...] por um lado, a política fiscal deixa de ser realizada em prol do crescimento, tendo em
vista sua vinculação às responsabilidades financeiras. Por outro, o próprio processo de
financeirização – que tem, no Brasil, sua face mais explícita na liberalização da conta de
capital – aprisiona o País às percepções conservadoras dos financistas, que buscam os
mercados que lhes proporcionam maiores lucros com baixo risco, difundindo a concepção
de que os países emergentes devem obter a chamada “credibilidade” (FERREIRA, 2010, p.
52-3).
A dívida pública existe desde quando se constituíram os Estados-Nação, quando o
investimento necessário não era coberto pelos impostos tão somente. Mas essa dívida pública ganha
uma particularidade nas últimas décadas: a dívida não aparece apenas para financiar o déficit, os
títulos da dívida passam a ser negociados no mercado secundário, na forma de especulação.
Deixam, portanto, de ser apenas capital a juros e passam a ser capital fictício (MARQUES;
NAKATANI, 2009).
No período desenvolvimentista dos governos brasileiros (décadas de 1930 e 1970), o Estado
atuava como um grande incentivador do crescimento econômico. O fato de ser um governo
endividado, para manter o crescimento econômico, não era uma anomalia. Mas a partir da década
de 1990, coloca-se como meta um “equilíbrio fiscal” para “eliminação do déficit público”. Foi com
FHC3 que apareceu a necessidade do superávit primário e, portanto, dos juros altos, que atendem
mais ao capital especulativo parasitário do que às necessidades do capital investido na produção de
riqueza real4. Esse panorama justifica a defesa do “ajuste econômico”, com sua expressão em um
“ajuste fiscal”, que acompanha o tripé vilipendiador do trabalho5: reestruturação produtiva,
neoliberalismo e financeirização.
A PEC 55/2016 como resposta às necessidades especulativo-financeiras
3 Fernando Henrique Cardoso 4 Com isso, não queremos dizer que há uma dualidade: capital fictício é mau e capital produtivo é bom. Não se trata de
uma questão moral, mas de uma análise dos desdobramentos lógicos e históricos do capital, e seus impactos sobre a
classe trabalhadora. 5 Para saber mais sobre o tripé vilipendiador do trabalho ver Antunes et al., 2017.
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A PEC 55/2016 (BRASIL, 2016c) do Senado Federal, anteriormente PEC 241/2016
(BRASIL, 2016a), da Câmara dos Deputados, e atualmente Emenda Constitucional 95/2016
(BRASIL, 2016b), é parte desse envolvimento crescente da política-econômica brasileira com os
ditames da financeirização6.
A revisão da meta fiscal teve o primeiro passo ainda no governo Dilma Rousseff, quando a
presidenta enviou ao Congresso Nacional um projeto de lei, em 28 de março de 2016, que previa,
como medida, uma nova meta de resultado primário7 do setor público para o ano subsequente, com
modificação da Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2016 (Lei n. 13.242/2015) (DIEESE, 2016, p.
2).
O PL de Dilma ainda estava em tramitação quando o governo Michel Temer reapresentou,
no dia 23 de maio de 2016, ainda como presidente interino8, o mesmo projeto, porém, com nova
definição de meta de resultado primário.
A meta da União de déficit de R$ 170,5 bilhões [apresentada pelo governo interino Michel
Temer] acomoda, portanto, os cenários mais pessimistas no que diz respeito às frustrações
de receitas e aumento de despesas. Com isso, o governo vem sinalizando que pretende
promover um ajuste nas contas públicas com foco nas despesas primárias9, principalmente
às vinculadas a receitas. Em diversas declarações à imprensa, o atual ministro da Fazenda,
Henrique Meirelles, tem afirmado que o problema da despesa pública é estrutural, em
razão, principalmente, das despesas obrigatórias definidas na Constituição Federal (CF) e
que, portanto, para controlá-las, seria necessário reformar a CF/88 (DIEESE, 2016, p. 3).
É preciso lembrar que o pagamento de juros e amortização da dívida, ou seja, as despesas
financeiras (excluídas do ajuste), consome em torno de 45% do orçamento geral da União10. O
discurso de defesa do ajuste gira em torno do excessivo gasto com despesa primária, especialmente
nos anos dos governos do PT, o que denotaria certo “descontrole das despesas”. Mas esse tipo de
argumento faz uma análise descolada do contexto de crise em âmbito internacional, que se agravou
desde que a solução para a “crise financeira” de 2007-2008 foi respondida com mais
financeirização.
De acordo com a PEC 55, o novo regime fiscal terá duração de vinte anos, contados a partir
do ano presente, 2017, com possibilidade de alteração apenas após o décimo ano de vigência. Ou
6 É importante que deixemos claro que, em nossa análise, os governos PT não se caracterizam como
neodesenvolvimentistas, porque a prioridade continuou sendo o serviço da dívida, ainda que a conjuntura econômica
mundial tenha favorecido, parcialmente, a produção de riqueza real no país, em especial nos governos Lula da Silva. O
que não nos faz pensar, contudo, que os governos PSDB e PT sejam idênticos. 7 Resultado primário é a diferença entre receitas e despesas do governo, exceto as despesas com juros e amortização da
dívida pública. 8 Michel Temer assumiu a presidência brasileira, em 2016, a partir de um golpe institucional. 9 Despesas primárias são as despesas “não financeiras”, correspondem ao conjunto de ofertas de serviços públicos à
sociedade, por exemplo, com pessoal, custeio e investimento, englobam saúde, educação e seguridade, dentre outros
serviços de natureza obrigatória ou discricionária. 10 Segundo metodologia elaborada pela Auditoria Cidadã da Dívida.
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seja, as despesas primárias sofrerão um congelamento de, no mínimo, dez anos, sendo reajustada
apenas pela inflação11.
Essa proposta se somou ao aumento da porcentagem da Desvinculação das Receitas da
União (DRU) de vinte para trinta por cento, de modo que pode haver um remanejamento da receita
de todos os impostos e contribuições sociais para fins não previstos na Constituição Federal. Em
geral é orçamento da saúde e da educação que é desviado para pagamento de juros. Orçamento este
que, por anos, desde que se figurou a determinação do superávit primário, vem tornando o limite
mínimo, o máximo. Com a PEC 55, o teto fica legitimado.
A PEC altera também a vinculação entre receitas e despesas públicas, afetando a área social
da ação estatal. Os limites mínimos definidos para aplicação nas áreas de saúde e educação,
que possuem seus recursos vinculados por determinações constitucionais, também serão
corrigidos na forma como estabelecido na PEC, ou seja, terão que se enquadrar no limite
total de gastos corrigidos pelo IPCA do ano anterior. Para isso, a presente proposta também
revoga o artigo 2º da Emenda Constitucional nº 86 de 17/03/2015, que estabelece a
progressividade nos gastos mínimos com a área de Saúde em percentuais da Receita
Corrente Líquida12 (DIEESE, 2016, p. 9).
Assim, mesmo com aumento de demandas sociais, os gastos primários somente
acompanharão a inflação.
Abaixo, uma tabela que simula os gastos com saúde e educação de 2002 a 2015, caso as
propostas da PEC 55 tivessem sido implementadas em 2003:
11 O índice utilizado é o IPCA – Índice Nacional de Preços ao Consumidor. 12 Receita corrente líquida é o somatório das receitas tributárias de um Governo, referentes a contribuições patrimoniais,
industriais, agropecuárias e de serviços, deduzidos os valores das transferências constitucionais.
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Tabela 1. Despesas realizadas em Educação e Saúde no período de 2002 a 2015 x
Despesas em Educação e Saúde pela regra da PEC 24113 – Brasil 2002-2015
Fonte: Orçamento Brasil e IBGE. Elaboração de DIEESE (2016)
Obs: Valores reais de dezembro de 2015 (IPCA), Ano-base 2002.
No caso de descumprimento do limite individualizado, cabem vedações que recaem
diretamente sobre os trabalhadores e as trabalhadoras, em especial servidores/as e empregados/as
públicos/as. Tornar-se-ão impedidos: aumento, reajuste ou adequação de remuneração; criação de
cargo, emprego ou função que aumente despesas; alteração da estrutura de carreiras; admissão ou
contratação de pessoal; realização de concurso público; criação de auxílios, vantagens, bônus,
abonos, verbas de representação ou benefícios (BRASIL, 2016b). Vale lembrar que esta PEC
responde, também, diretamente às demandas da Confederação Nacional da Indústria (CNI)
brasileira, conforme é possível observar na sua publicação denominada “Agenda para o Brasil sair
da crise 2016-2018” (CNI, 2016; CNI, 2017), para quem a perda de estabilidade e barateamento da
força de trabalho são bastante relevantes.
A PEC 55, portanto, reafirma o cenário já apresentado por nós no início deste artigo, em que
há uma redução do papel do Estado como alicerce do desenvolvimento econômico e provedor e
garantidor dos direitos sociais básicos da população brasileira, especialmente a empobrecida, que
mais necessita dos serviços públicos, em detrimento do Estado como mediador dos interesses
capitalistas financeiros especulativos em âmbito mundial, aprofundando, de forma radicalizada, o
ideário neoliberal.
13 PEC 241 era a numeração da PEC 55 quando ainda tramitava na Câmara dos Deputados.
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O próximo item deste artigo abordará o impacto dessas medidas sobre as mulheres da classe
trabalhadora a partir de uma análise feminista materialista.
O impacto devastador da PEC 55 sobre as mulheres da classe trabalhadora
Primeiramente, precisamos afirmar que a nossa concepção de classe trabalhadora é bastante
ampla e engloba trabalhadores e trabalhadoras do setor privado e público, de indústrias e serviços,
produtivos/as e improdutivos/as, materiais e imateriais, empregados/as e desempregados/as, do
campo e da cidade. Essa classe trabalhadora é também bastante heterogênea: composta de mulheres,
homens, LGBTs, brancos/as, negros/as, migrantes, indígenas. Essa classe trabalhadora, em toda a
sua heterogeneidade, será/está sendo fortemente afetada pela PEC 55, atual EC14 95, ainda que de
formas particulares dentro dessas diferenças. Nosso foco de análise se centra nas mulheres da classe
trabalhadora.
Sob o capitalismo e o patriarcado, as mulheres trabalhadoras já vivem processos múltiplos
de exploração, opressão e apropriação (individual e coletiva). Sob a perspectiva do feminismo
materialista, o espaço da reprodução é também parte do processo de acumulação de capital, na
medida em que cabe às mulheres realizar o trabalho não pago que garante a reprodução da força de
trabalho da família (FEDERICI, 2015).
Não somente a força de trabalho da mulher é apropriada dentro e fora do ambiente familiar,
ou seja, no espaço da reprodução e da produção, mas a mulher é também materialmente apropriada:
seu tempo, os produtos do seu corpo, a obrigação sexual e o encargo físico dos membros do grupo
de convívio (em especial membros válidos masculinos) (GUILLAUMIN, 2014).
A opressão se relaciona diretamente com o patriarcado, que tem a sua origem na apropriação
do corpo da mulher. O patriarcado e, portanto, apropriação do corpo da mulher na sociedade
capitalista, tem especificidades, já que a exploração capitalista se assenta na opressão e na
apropriação da mulher.
Um feminismo que lute contra esses três aspectos é extremamente necessário para a luta
anticapitalista. Há, entretanto, uma grande preocupação, expressada especialmente por Fraser (2016
[2009]), de que um feminismo liberal tenha ganhado força e expressão conjuntamente ao
neoliberalismo. Para essa estudiosa, tal feminismo deixou de lado a luta por questões de igualdade
14 Emenda Constitucional
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material e redistribuição político-econômica e se concentrou no reconhecimento de identidade e
diferença.
A crítica feminista ao economicismo se transformou em uma ênfase unilateral da cultura e
identidade destacada do anti-capitalismo; o seu ataque ao conceito androcêntrico do homem
provedor foi absorvido pela “nova economia”, que acolheu o emprego feminino como um
aprofundamento da tendência a uma força de trabalho flexibilizada, com baixos salários,
normalizando a família de duplo assalariamento. A crítica feminista da burocracia pôde se
aliar com o ataque neoliberal ao Estado e com a promoção das ONGs; seu
internacionalismo coube bem com a maquinaria da “governança global”, embora
compromissada com a reestruturação neoliberal (SCHILD, 2016, p. 61).
Assim, ao mesmo tempo em que é uma conquista a mulher poder não mais se restringir ao
espaço da reprodução e poder ela mesma receber salário de produção, vendendo sua força de
trabalho ao invés de fornecê-la apenas gratuitamente, a participação das mulheres na economia
salarial tem sido o pilar das estratégias de flexibilização do trabalho. E as mulheres que não estão
trabalhando, como potenciais trabalhadoras, reforçam o exército industrial de reserva que barateia o
preço da força de trabalho das que estão assalariadas.
Trata-se de uma passagem da apropriação individual para a apropriação coletiva do corpo da
mulher (ainda que a primeira não deixe de existir, apenas destacamos o fato de que a segunda ganha
mais relevância). Daí o reforço da luta das mulheres contra o controle do Estado sobre seus corpos,
portanto, que não seja ele quem decida quando a mulher deve ou não ter filhos, por exemplo, como
é o caso da luta pela descriminalização do aborto, em um processo também de desvinculação da
imagem das mulheres como mães. Isso fica bem emblemático em frase citada por Oliveira (2005)
apud Schild (2016, p. 65): “Nós, as mulheres de Chiapas, não estamos mais dispostas a dar a luz
para alimentar seus exércitos, nem para justificar violências e guerras. Nem vamos continuar a
fornecer mão de obra barata para as empresas neoliberais”.
Essa negação do controle do Estado sobre o corpo das mulheres é apropriada pelo ideário
neoliberal como simples negação do Estado, em um processo que Fraser (2016) chama de
ressignificação das ideias feministas. Torna o feminismo um “feminismo do possível” (SCHILD,
2016), fazendo prosperar a política pragmática das mulheres liberais e implementando políticas de
“transferência condicional de renda” bastante focalizadas, no lugar de políticas sociais universais.
No Brasil, conforme Tenorio (2017) apresenta, as políticas sociais no Governo Dilma já se
caracterizavam por terem, como eixo condutores, o empoderamento e a autonomia feminina15. A
América Latina, enquanto colonizada, periférica na relação imperialista do capital, sempre lutou por
15 Tenorio (2017) apresenta como exemplos dessas políticas: o Programa Bolsa Família (direito à assistência via
condicionalidades); o Programa de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (PRONATEC) (direito à educação para o
mercado); e o Programa Minha Casa Minha Vida (direito à habitação via financiamento).
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soberania e autonomia, porém, apropriada pelo neoliberalismo, autonomia se liga diretamente com
“empregabilidade”. Ou seja, a mulher deve ser autônoma para adentrar o mercado de trabalho
“flexível”, ao mesmo tempo em que adentrar esse mercado de trabalho flexível é o que vai lhe
garantir autonomia material e “empoderar” essa mulher.
O “empoderamento”, conforme Carvalho (2014), não é somente um conceito, mas um
projeto do Banco Mundial, enquanto dispositivo de enfrentamento à pobreza, na medida em que é
apresentado como processo que reforça a capacidade dos indivíduos de fazerem escolhas e
transformá-las em ações que melhorem a “eficácia” e a “equidade”.
Em nossa análise, esta explicação do Banco Mundial do “empoderamento” deixa clara a
sua intencionalidade, tomando-o como um de seus principais projetos, sobretudo porque ao
enfatizar a necessidade dos indivíduos pobres desenvolverem capacidades que resultem em
ações e recursos, estimula que esses sujeitos internalizem a situação de pobreza na qual se
encontram, e, mais, reforça o ethos liberal de que a condição social que ocupamos na
sociedade vincula-se ao esforço individual de cada um. Esta leitura deseconomiza,
despolitiza, moraliza e subjetiviza as relações sociais de produção capitalista
(CARVALHO, 2014, p. 147-8).
A PEC 55 tem por consequência o aprofundamento da divisão sexual do trabalho. Dados
presentados por Lavinas et al (2016) demonstram que, quando houve maior taxa de crescimento do
PIB16 no Brasil, a participação das mulheres caiu no mercado de trabalho, enquanto, em momentos
de crise, as mulheres ganham espaço no mercado de trabalho. Isso se justifica porque as mulheres
ocupam os postos mais precários e recebem menores salários. Uma política que valoriza as funções
financeiras do Estado exige diretamente redução de direitos trabalhistas, afinal, conforme já
apontamos, o capital fictício parasita a produção de riqueza real, porque ele próprio não produz
riqueza alguma.
Furno et al (2016) nos recordam o fato de que os setores afetados pela PEC 55, tais como
saúde, educação e assistência social, são os setores nos quais as mulheres possuem mais
representatividade em termo de ocupação profissional, correspondem a 18,2% do total para
mulheres e apenas 4,3% das ocupações dos homens. A redução de concursos, contratações e
aumentos salariais afetará diretamente essas mulheres.
A Nota Técnica do DIEESE (2016) também alerta para o fato de que esta PEC deverá ter
impacto direto no poder aquisitivo dos salários dos trabalhadores e das trabalhadoras, dado que, no
caso dos servidores/as públicos/as, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) determina que os
critérios de aumento dos gastos com pessoal se deem com base na Receita Corrente Líquida (RCL).
No caso dos/as trabalhadores/as da iniciativa privada, há impacto com a alteração na metodologia
16 Produto Interno Bruto
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do reajuste do salário mínimo, a qual era referência na composição salarial. Isso afeta também a
capacidade de acesso a eletroeletrônicos e linha branca, os quais diminuem o tempo despendido no
trabalho reprodutivo o desgaste da capacidade de trabalho das mulheres.
A menor presença do Estado na promoção de políticas sociais gera um impacto muito forte
sobre as mulheres da classe trabalhadora, também no que diz respeito à reprodução da vida e da
força de trabalho. Em razão do patriarcado e das necessidades de acumulação capitalista,
estruturalmente, já cabe a elas as tarefas de cuidado e de garantia da reprodução. Em dados
apresentados por Furno et al (2016), referentes ao PNAD/IBGE, a desigualdade de tempo entre
homens e mulheres no que diz respeito às atividades reprodutivas, no ano de 2012, dava conta de
que a totalidade de mulheres maiores de 16 anos afirmava exercer atividades domésticas, enquanto,
entre os homens, o percentual era de 50%. Nesse ano, as mulheres despenderam, em média, 23,56
horas semanais com afazeres domésticos, enquanto os homens, apenas 6 horas.
Portanto, menos controle do Estado sobre os corpos das mulheres não pode significar eximir
o Estado de suas obrigações sociais. Aliás, a luta das feministas socialistas girava em torno da
necessidade do Estado se comprometer com atividades reprodutivas através de lavanderias
coletivas, restaurantes comunitários, creches etc.
Se a sobrecarga do trabalho reprodutivo já impacta as vidas das mulheres, a PEC 55 impõe
consequências nefastas às mulheres empobrecidas, sendo essas, em grande parcela, negras. O teto
no gasto com saúde, educação e assistência implicará em menos escolas públicas, menos saúde
pública, menos políticas de assistência. Ainda dentre as metas “para tirar o Brasil da crise”, da CNI,
estão a Reforma da Previdência, a Reforma Trabalhista, conceder ao setor privado as Companhias
de Saneamento passíveis de privatização, dentre outros (CNI, 2016). Todas essas em curso no país.
O cenário que se revela é de mais responsabilização das mulheres, aliada a mais
criminalização da pobreza, com encarceramento em massa de jovens, especialmente negros, da
periferia.
Daí a necessidade de um feminismo que não se renda aos floreios ideológicos do
neoliberalismo, que não aceite as políticas focalizadas e a concorrência entre as mulheres,
perpassada por aspectos moralizantes. Faz-se necessário, mais do que nunca, um “feminismo crítico
renovado” (SCHILD, 2016, p. 75), que lute não somente contra o conservadorismo imposto pelo
governo instituído pelo golpe no Brasil, mas que, a partir de uma análise da economia política,
consiga avançar na crítica à linha de continuidade na política econômica dos governos pós-ditadura
no Brasil, sem desconectá-la do movimento maior do capital financeirizado mundial. A apreensão
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de suas contradições pode vislumbrar estratégias de lutas para um projeto emancipatório e
anticapitalista, que negue a exploração, a opressão e apropriação material e emocional das mulheres
trabalhadoras.
Referências
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A Constitutional Amendment Proposal 55 (PEC 55) debate: Temer’s Government, fictitious
capital and Brazilian working class women
Abstract: Social inequality in Brazil is characterized by being structural, which means that it is not
only class inequality, it is also race and sex. In a consubstantiality perspective of class, race and sex,
we aim, in this article, to analyze the socio-historical foundations of PEC 55, proposed by the
Temer’s Government (2016 -), and how, if implemented, it could affect, even more the Brazilian
working class women. The roots of this proposal are based on an international financialization
economic movement and its expressions in the form of fictitious capital. In the specific case of PEC
55, the concrete central form expression of this financial relationship is the public debt. The
expenditures on primary expenditures freezing, involving health, education, and social assistance, in
response to debt interest repayment needs, has immediate impacts on the working women daily
lives, while getting stronger the speculation of the dominant class . In the article, we will present the
capital context of globalization and its expression in the national economic policy; What is the PEC
55, as the answer and necessity of the capitalist movement; And, finally, we will presente the
possible impacts on Brazilian working women, in the next 20 years of freezing foreseen by the
amendment.
Keywords: PEC 55. Fictitious capital. Women. Working class