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AÇÕES AFIRMATIVAS, POPULAÇÃO LGBT E SERVIÇO SOCIAL: A
EXPERIÊNCIA DO PROJETO GÊNERO E SEXUALIDADE – TECENDO
REDES DE SABERES MÚLTIPLOS NO MUNICÍPIO DE CAMPOS DOS
GOYTACAZES (RJ).
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Paulo Santos Freitas Júnior
RESUMO
O artigo tem por objetivo apresentar a experiência do Projeto Gênero e Sexualidade –
tecendo redes de saberes múltiplos, que vem sendo desenvolvido desde dezembro de
2017, em Campos dos Goytacazes (RJ), com a finalidade de qualificar profissionais da
rede pública do referido município no tema da diversidade de gênero e sexual. País
campeão mundial em assassinatos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e
Transgêneros (LGBT’s), o Brasil não desenvolve, de forma mais ampla, ações afirmativas
efetivas para essa população mesmo quando a maior parte do aparato legal nele existente
preconiza a igualdade de direitos, o apreço à tolerãncia e o combate a todas as formas de
preconceito e discriminação. Resultado das reflexões realizadas na disciplina Tópicos
Especiais em Políticas Sociais - Educação e Ações Afirmativas, o trabalho tem como
metodologia a pesquisa bibliográfica sobre o tema e a análise documental dos registros
feitos ao longo das atividades realizadas (Avaliação e Relatórios), foi organizado em duas
partes e pretende contribuir com o debate conquantos se interessem pela questão.
Palavras-Chave: Ações Afirmativas, Direitos, População LGBT, Serviço Social.
SUMMARY
The article aims to present the experience of the project gender and sexuality – weaving
multiple knowledge networks, which has been developed since December 2017, in
Campos dos Goytacazes (RJ), with the purpose of qualify professionals the public
referred to is a town and municipality in the theme of gender and sexual diversity. Country
world champion in murders of lesbians, Gays, bisexuals, Transvestites, and transgender
(LGBT), Brazil does not develop, more broadly, affirmative action effective for this
population even when most of the legal apparatus existing in it calls for equal rights, the
appreciation to tolerãncia and combat all forms of prejudice and discrimination. Result of
the reflections conducted in the discipline special topics in Social Policy-education and
affirmative action, the work methodology to bibliographical research on the subject and
documental analysis of the records made over the activities performed (Assessment and
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reports), was organized in two parts and aims to contribute to the debate conquantos
interested by the issue.
Keywords: Affirmative Action, Rights, Population LGBT, Social Service.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O município de Campos dos Goytacazes (RJ), não está desconectado de um
contexto cultural, histórico, político e social mais amplo. Com sua face conservadora,
reflete a discriminação, o preconceito e a violência que historicamente vem marcando a
população de Lésbicas, Gays Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT’s) em todo o
mundo.
As questões de gênero e sexual não são essencialmente novas no contexto do
município, pois a mais de quatro décadas eventos relacionados à visibilidade da
população LGBT têm sido realizados como uma forma de conferir mais visibilidade,
demandar direitos e denunciar as muitas formas de violência sofrida por essa população,
tais como o Miss Gay Campos (primeiras edições na década de 1970), o Fórum dos
Sexualmente Discriminados (1996 e 1997), a Parada do Orgulho LGBT (de 2006 até
2015) e a Semana da Diversidade LGBT (de 2013 aos dias atuais).
Além destas atividades, existe na Secretaria Municipal de Educação, Cultura e
Esportes (SMECE) o Setor da Diversidade, ligado ao Departamento Pedagógico, que
desenvolve um trabalho de oferta de cursos, palestras e atividades diversas para
professoras, estudantes e demais profissionais da Rede Municipal de Ensino. Tal proposta
é desenvolvida de acordo com um dos importantes eixos norteadores da educação
nacional, qual seja: a promoção do respeito e apreço à diversidade.
No ano de 2017, durante a realização da 5ª edição da Semana da Diversidade
LGBT de Campos dos Goytacazes (RJ), houve a participação da Secretária da Secretaria
Municipal de Desenvolvimento Humano e Social (SMDHS), Sana Gimenes Alvarenga
Domingues, e uma das propostas apresentadas pelo público presente foi a necessidade da
criação de cursos, palestras e oficinas de (in)formação para as equipes que atendem a
população LGBT que recorre aos órgãos municipais como o Centro de Referência em
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Assistência Social (CRAS), Centro de Referência Especializado em Assistência Social
(CREAS), dentre outros.
Após este evento e, já como integrantes da equipe do Setor da Diversidade da
SMECE, tivemos uma reunião com a Equipe Gestora da SMDHS e iniciamos algumas
atividades com a equipe desta secretaria. A partir das avaliações destas atividades e de
reuniões com as equipes envolvidas, elaboramos o Projeto Gênero e Sexualidade –
tecendo redes de saberes múltiplos, que vem sendo desenvolvido desde dezembro de
2017.
Assim, esse artigo tem por objetivo apresentar a experiência do Projeto Gênero e
Sexualidade – tecendo redes de saberes múltiplos, que vem sendo desenvolvido pelo
autor, em parceria com o professor Rafael França dos Santos, desde dezembro de 2017,
em Campos dos Goytacazes, município situado na Região Norte-Noroeste do Estado do
Rio de Janeiro com a finalidade de qualificar a rede do referido município no tema da
diversidade de gênero e sexual. Para a sua elaboração, utilizamos como metodologia a
pesquisa bibliográfica sobre os temas abordados e a análise documental dos registros
feitos ao longo das atividades realizadas (Avaliação e Relatórios).
Acreditamos que o Projeto Gênero e Sexualidade – tecendo redes de saberes
múltiplos constitui uma ação afirmativa na medida em que, ao qualificar os profissionais
da rede pública do referido município no tema da diversidade de gênero e sexual, pode
não só combater a discriminação, como também promover o acesso da população LGBT
às políticas públicas das quais ainda encontra-se excluida e possibilitar a autonomia e
emancipação dessa minoria.
AÇÕES AFIRMATIVAS: ASPECTOS CONCEITUAIS E HISTÓRICOS.
Tecendo a Manhã
(João Cabral de Melo Neto)
Um galo sozinho não tece a manhã: ele precisará sempre de
outros galos. De um que apanhe esse grito que ele e o lance
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a outro: de outro galo que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos que com muitos outros
galos se cruzam os fios de sol de seus gritos de galo para
que a manhã, desde uma tela tênue, se vá tecendo, entre
todos os galos.
E se encorpando em tela, entre todos, se erguendo tenda,
onde entrem todos, se entretendo para todos, no toldo (a
manhã) que plana livre de armação. A manhã, toldo e um
tecido tão aéreo que, tecido, se eleva por si: luz balão.
As ações afirmativas tem origem na India, na década de 40, mas é nos Estados
Unidos, na década de 60 do século XX, num contexto marcado por intensas
reivindicações democráticas internas de extensão da igualdade de oportunidades a todos,
onde o movimento negro surge como uma das principais forças atuantes na busca por
melhores condições de vida da população negra (MOEHLECKE, 2002).
Compreendemos as ações afirmativas como uma intervenção do Estado (e não só)
para que grupos minoritários (negros, mulheres, LGBTs) sejam incluidos em espaços dos
quais, até então, encontram-se excluidos (educação, emprego) e, com isto, combater a
discriminação.
Para Andrews (1997), nos Estados Unidos os resultados positivos desta
intervenção – maior inserção de negros na “economia branca” - são visíveis tanto quanto
os negativos, já que não atendeu a todos e não conseguiu reduzir os níveis de pobreza
existente entre eles (desemprego, violência, narcotráfico, alienação social), bem como
provocou, mesmo que não racista, uma enorme hostilidade na população branca. Ainda
assim, contribuiu para superar um século de exclusão em função da cor.
As ações afirmativas fundamentam-se no fato de que tratar as pessoas desiguais
como iguais amplia a desigualdade entre elas (GUIMARÃES, 1997 apud MOEHLECKE,
2002). De caráter temporário, as ações afirmativas trazem a ideia de restituição de uma
igualdade que foi rompida ou que nunca existiu (MOEHLECKE, 2002).
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Assim, as ações afirmativas visam, do ponto de vista do direito (igualdade
jurídica) e das políticas públicas/sociais reparar as desigualdades (discriminação) e
promover a equidade (respeito à diferença) de grupos vulneráveis (LGBT’s, mulheres,
negros).
Rompendo com uma dimensão meramente punitiva, as ações afirmativas buscam,
outrossim, combater sistematicamente a discriminação, reduzir a desigualdade e integrar
os diferentes grupos sociais existentes, valorizando a diversidade cultural que os formam,
o que lhe imprime um caráter preventivo (MOEHLECKE, 2002).
Dependendo do contexto e das situações existentes, as ações afirmativas
assumiram diferentes formas (dentre as quais a mais conhecida é o sistema de cotas) e
contemplou variado público-alvo. Nesse sentido, experiências semelhantes ocorreram em
vários países da Europa Ocidental, na India, na Malásia, na Austrália, no Canadá, na
Nigéria, na Africa do Sul, na Argentina, em Cuba, dentre outros (MOEHLECKE, 2002).
Tais experiências foram profundamente analisadas por Thomas Sowel (2016). A
despeito das críticas feitas pelo autor, é possível perceber que sua defesa se acenta no
argumento de que as desigualdades que historicamente caracterizam as chamadas
minorias (sobretudo etnicas) é uma questão de (in)capacidade individual mais que de
igualdade de condições (SOWEL, 2016).
Ainda que sejamos contrários à elas, as proposições do autor nos levam a
considerar que na defesa das ações afirmativas necessário se faz pensar, para além da
dimensão econômica, aspectos históricos, políticos, sociais e culturais (diversidade), de
classe, gênero e etnia (interseccionalidade) e a terminologia utilizada, já que palavras são
impregnadas de sentido.
No Brasil, as ações afirmativas surgem, segundo Moehlecke (2002), num contexto
marcado pela redemocratização do país e pela exigência por parte dos movimentos sociais
de uma postura mais ativa do poder público diante de questões de raça, gênero e etnia.
Para a autora, o primeiro registro histórico do que hoje pode ser chamado de ação
afirmativa no país, data de 1968 quando técnicos do Ministério do Trabalho e do Tribunal
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Superior do Trabalho foram favoráveis a criação de uma lei que obrigasse as empresas
privadas a manter uma percentagem mínima de empregados de cor. A lei (Lei n.
1.332/83), que só chegou a ser elaborada em 1980 pelo então deputado Abdias
Nascimento, foi aprovada pelo Congresso Nacional (MOEHLECKE, 2002).
Em 1984, a Serra da Barriga, local do antigo Quilombo dos Palmares é
considerado patrimônio histórico do país; em 1988 foi criada a Fundação Cultural
Palmares que serviria de apoio a ascensão social a população negra; no mesmo ano, a
Constituição assegura a proteção do trabalho da mulher e reseva percentual de cargos e
empregos públicos para as pessoas com deficiência (MOEHLECKE, 2002). Uma vez que
materializou a democratização de direitos no país, a promulgação da Constituição de 1988
impulsionou as políticas afirmativas no Brasil (AMARAL, 2019).
Em 1995 a legislaçaõ eleitoral estabeleceu a cota de 30% de mulheres para as
candidaturas de todos os partidos políticos, o que é considerado pela autora a primeira
política de cotas adotada nacionalmente (MOEHLECKE, 2002).
Em 1996 é criada a Secretaria de Direitos Humanos, lançado o Plano Nacional
dos Direitos Humanos (PNDH) e realizados os seminários Ações “Afirmativas:
estratégias antidiscriminatórias?” e “Multiculturalismo e Racismo: o papel da ação
afirmativa nos estados democráticos contemporâneos (MOEHLECKE, 2002).
Segundo a autora,
Esse conjunto de iniciativas no âmbito do poder público indica
um parcial reconhecimento da existência de um problema de
discriminação racial, étnica, de gênero e de restrições em relação
aos portadores de deficiência física no país, sinalizado por meio
de algumas ações. Entretanto, estas ainda são muito
circunstanciais e políticas mais substantivas não são
implementadas (MOEHLECKE, 2002, p. 205).
Situado na região Norte/Noroeste do Estado do Rio de Janeiro, o Município de
Campos dos Goytacazes constitui o cenário em que o Projeto Gênero e Sexualidade –
tecendo redes de saberes múltiplos é desenvolvido enquanto uma ação afirmativa.
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PROJETO GÊNERO E SEXUALIDADE – TECENDO REDES DE SABERES
MÚLTIPLOS: UMA EXPERIÊNCIA EM CURSO NO MUNICÍPIO DE CAMPOS
DOS GOYTACAZES – RJ.
A discriminação, o preconceito e a violência contra a população de Lésbicas, Gays
Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT) têm representado temas centrais para o
movimento LGBT que tem pressionado o Estado, enquanto poder público governamental,
para a elaboração e implementação de estratégias ou políticas públicas para seu
enfrentamento.
Apesar de todos os avanços conquistados e, ao contrário da bandeira do arco-íris,
símbolo do movimento LGBT, o cenário mundial em relação a essa população ainda é
cinzento mesmo quando, nos países mais esclarecidos, a discriminação tem sido
combatida.
No Brasil a população LGBT é uma das que mais sofre todos os tipos de violência.
Quando ela é negra e pobre, este risco é ainda maior (alvos em potencial). A violência
contra LGBT’s é, nesse sentido, a mais democrática, pois atinge jovens e idosos, negros
e brancos, ricos e pobres, de todos os níveis educacionais, em todos os municípios e
estados do país. O recorte de classe e de etnia, portanto, não podem ser desconsiderados
nas análises da diversidade de gênero e sexual (Interseccionalidade).
Trazer à tona discussões sobre a população LGBT constitui um desafio e um
compromisso acadêmico, ético e político no sentido de melhor compreender os
mecanismos sociais, culturais e institucionais que fomentam e perpetuam a discriminação
e o preconceito e contribuir para que os grupos sexualmente minoritários rompam com a
condição de marginalizados.
A formulação de ações concretas em longo prazo que busquem a construção de
uma sociedade equânime deve partir, portanto, do acúmulo lento e progressivo de
informações adequadas sobre o tema/questão, que embora polêmico, constitui um desafio
a ser enfrentado por aqueles que buscam uma sociedade na qual a convivência entre as
pessoas seja respaldada pelo respeito às diferenças individuais e pela luta contra qualquer
forma de discriminação e preconceito.
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Equidade significa igualdade de oportunidade e de direitos. Assim, defendemos
que a população LGBT tenha os mesmos direitos e a mesma representação política que
outros grupos minoritários alcançaram, o que exigirá da sociedade como um todo uma
redefinição do que seja masculinidade e feminilidade e o respeito às diferenças sexuais.
Nesse contexto, desde que assumiram o Marxismo como instrumento térico-
metodológico, durante o Movimento de Reconceituação do Serviço Social, assistentes
sociais têm como objeto de intervenção as expressões da questão social, que são
cotidianamente vivenciadas pelos sujeitos sociais que são atendidos pela categoria
(NICACIO, 2013).
No entanto, segundo Nicacio (2013, p. 99), são frequentes o testemunho de
assistentes sociais “[...] que não se sentem instrumentalizados para lidar com as
dificuldades e situações imprevistas que surgem no atendimento aos usuários [...]”. No
que se refere a população LGBT, a falta de conhecimento e o despreparo têm sido
apontados como algumas das maiores dificuldades que as profissionais têm em lidar com
esse segmento social, muito embora o respeito a diversidade de gênero e sexual seja uma
das bandeiras de luta da categoria, cujos profissionais encontram-se também inseridos em
diversas comissões e conselhos de direitos da população LGBT no país.
Nesse sentido, ainda é possivel encontrarmos relutância de muitas profissionais
do Serviço Social no atendimento à população LGBT, pois não se consideram aptas a
abordar a temática em seus espaços de trabalho. Além disso, na formação o debate ainda
enfrenta resistência de docentes e discentes. Assim, posturas conservadoras,
preconceituosas e reacionárias reforçam práticas profissionais orientadas pelo senso
comum, na maioria das vezes de cunho religioso, o que infringe o Código de Ética
Profissional (CRESS, 2017).
Nesta, como em outras questões, a atuação profissional deve ter como base e como
norte o Projeto Ético-Político da Profissão que é diametralmente oposto ao projeto
societário atualmente em vigor no Brasil, caracterizado pelo recrudecimento do
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conservadorismo em diversos setores da sociedade, sobretudo, com a eleição de Jair
Bolsonaro (PSL) à presidente do país, em outubro de 2018.
Na materialização do Projeto Ético-Político da Profissão, o Código de Ética
Profissional preconiza, dentre outros princípios, o “empenho na eliminação de todas as
formas de preconceito, incentivando o respeito à diversidade, à participação de grupos
socialmente discriminados e à discussão das diferenças” (6º princípio) e o “exercício do
Serviço Social sem ser discriminado, nem discriminar, por questões de inserção de classe
social, gênero, etnia, religião, nacionalidade, orientação sexual, idade e condição física”
(11º princípio) (CRESS, 2001, pp. 16-17) que, para efeito deste artigo, são destacados.
Para Barroco (2012, p. 74):
Preconceito e discriminação são formas antiéticas de se
relacionar com as diferenças sociais e individuais. As
intervenções profissionais desencadeadas por diversas formas de
atendimento que excluam ou discriminem os usuários, impeçam
o seu acesso aos serviços, limitem a sua autonomia, que os
submetam a situação de desrespeito e de autoritarismo interferem
na vida do usuário.
Além do Código de Ética Profissional, o Serviço Social dispõe também das
Resoluções n. 489/2006, que veda condutas discriminatórias ou preconceituosas no
exercício profissional (CFESS, 2006); n. 615/2011, que possibilita a profissional o uso
do nome social em seus documentos profissionais (CFESS, 2011) e n. 845/2018, que
dispõe sobre a atuação profissional no processo transexualizador (CFESS, 2018).
Tais pricípios e resoluções não podem deixar de ser registrados uma vez que, em
sua prática profissional, não é incomum que assistentes sociais, ainda que não o
reconheçam, sejam influenciadas por seus valores (estéticos, ideológicos, morais,
religiosos) e sentimentos (subjetividade) e assumam atitudes preconceituosas em relação
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aos seus usuários. Portanto, reconhecer seus preconceitos pode ser o primeiro passo para
que assistentes sociais aprendam a lidar com eles.
Para Nicacio (2013, p. 107):
Como não se pode se desembaraçar de valores e sentimentos, é
preciso encontrar meios para que a ação não esteja tão
comandada por eles. Por isso, é necessário assinalar a
importância de o profissional ter acesso a dispositivos
institucionais nos quais ele possa discutir com seus pares e,
eventualmente, se retificar. Tais dispositivos podem ser uma
supervisão, uma reunião de equipe ou uma discussão de casos,
isto é, situações em que o profissional se dispõe a tomar a
palavra, se expondo ao outro, a fim de avaliar sua prática e de
extrair consequências dessa troca para a sua ação profissional.
[...].
Assim, a necessidade da criação de cursos, oficinas e palestras com cunho
(in)formativo foi apontada como uma demanda pelas equipes que atendem a população
LGBT que recorre aos órgãos municipais como o Centro de Referência em Assistência
Social (CRAS), Centro de Referência Especializado em Assistência Social (CREAS),
dentre outros, em Campos dos Goytacazes (RJ), município situado na Região
Norte/Noroeste Fluminense.
Para atender a essa demanda foi elaborado o Projeto Gênero e Sexualidade –
tecendo redes de saberes múltiplos que vem sendo desenvolvido pelos autores (um
assistente social e um historiador), desde dezembro de 2017, com a finalidade de
qualificar no tema da diversidade de gênero e sexual, profissionais (assistentes sociais,
educadores sociais, pedagogos, psicólogos) da rede pública do referido município que
não estando desconectado de um contexto cultural, histórico, político e social mais amplo
reflete, com sua face conservadora, a discriminação, o preconceito e a violência que
historicamente vem marcando a população LGBT em todo o mundo.
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Comparada a outras “minorias”, a população LGBT é a mais vulnerável, pois
ainda não conta com direitos garantidos em leis específicas como as demais e, embora os
direitos humanos sejam direcionados a todos os humanos, a discriminação, a
heteronormatividade, o machismo e o preconceito a ela direcionado, a coloca numa
condição de inumanos. Nesse sentido, acreditamos que o debate sobre a diversidade de
gênero e sexual nos diversos espaços institucionais, sistematizado num projeto de
intervenção, pode promover a efetivação dos direitos humanos da população LGBT.
O projeto de intervenção é uma resposta às questões concretas com as quais os
profissionais se defrontam no seu cotidiano (demandas), que resulta de um processo de
apreensão da complexidade da dinâmica do real (análise da realidade), imprime uma
sistematização a prática profissional (em nível imediato, de curto, médio ou longo prazo),
tem como referência central a política específica da área a ser trabalhada (Saúde,
Educação, Previdência, Assistência, Criança e Adolescente, Idoso, Mulher, etc.), tem uma
dimensão técnica, ética e política, tem condição de instrumentalizar práticas que muitas
vezes permanecem num nível informal da ação profissional (risco da perda da riqueza da
prática profissional, das conquistas que representam um processo de lutas e
reivindicações) e insere a ação profissional em uma dimensão histórica (SOARES, n. d.).
Segundo Soares (n. d., p. 21):
Desse modo, o projeto de intervenção deve ser um documento
que transmita de forma clara e objetiva uma direção que se quer
dar a uma dada problemática, de modo a que no âmbito da
especificidade da ação institucional a que corresponde, a
proposta contida no projeto possa ser apreendida com clareza e
logo corretamente executada de acordo com os objetivos
propostos. (SOARES, n. d., p. 21).
Por ter sido elaborado e vir sendo implementado por profissionais de diferentes
áreas do conhecimento (Educação e Serviço Social), o Projeto Gênero e Sexualidade –
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tecendo redes de saberes múltiplos insere a prática profissional nos campos
interdisciplinar e educacional.
Uma vez que articula diferentes conhecimentos, o Serviço Social é uma profissão
interdisciplinar por excelência, o que tem contribuído para o rompimento do dogmatismo
que está presente no interior de muitas profissões e ampliar o conhecimento do real, em
sua complexidade (múltiplas determinações) (ON, s.d.). A interdisciplinaridade aqui não
deve/pode ser entendida enquanto a soma de saberes, mas uma postura profissional que
visa superar a fragmentação/especialização do conhecimento (JATSCH & BIANCHETI,
2004).
A interdisciplinaridade consiste, assim, na interação de conceitos, métodos,
diretrizes e procedimentos das diversas disciplinas científicas em busca de um
conhecimento do homem e do mundo que se perde diante de sua complexidade. Não
pretende anular a contribuição de cada ciência em particular, mas ao contrário, ultrapassar
seus próprios limites, abrindo-se ao diálogo, mantendo uma relação de reciprocidade e de
mutualidade (JATSCH & BIANCHETI, 2004).
Embora não seja novo ao Serviço Social, o campo educacional tem requisitado
das assistentes sociais uma atuação que, cada vez mais, precisa ser desvelada uma vez
que “[...] encerra a possibilidade de uma ampliação teórica, política e instrumental da sua
própria atuação profissional e de sua vinculação às lutas sociais que se expressam na
esfera da cultura e do trabalho [...]”. (ALMEIDA, 2000, p. 74).
As aproximações teóricas e práticas do Serviço Social no campo educacional se
dão em função da dimensão educativa do trabalho das assistentes sociais, que se
concretiza em todos os espaços sócio-ocupacionais. O perfil pedagógico de sua prática
advém, portanto, da intervenção direta das profissionais na maneira de agir e pensar dos
sujeitos, o que pode incidir diretamente na formação da cultura.
Assim, entendemos que o trabalho da assistente social,
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[...] tem também um efeito que não é material, mas é socialmente
objetivo. Tem uma objetividade que não é material, mas é social
[...]. Tem também efeitos na sociedade como um profissional que incide no campo do conhecimento, dos valores, dos
comportamentos, da cultura, que, por sua vez, têm efeitos reais
interferindo na vida dos sujeitos. [...]. (IAMAMOTO, 2004, p.
67).
Mesmo diante de um contexto sombrio e do desafio de intervir na temática da
diversidade de gênero e sexual, assistentes sociais não devem/podem, sob a
responsabilidade ética que incide sobre sua prática profissional, se furtarem ao
atendimento qualificado da população LGBT, o que requer o debate/reflexão sobre as
questões que envolvem o trabalho direto com essa população usuária. O Projeto Gênero
e Sexualidade – tecendo redes de saberes múltiplos tem propiciado esse debate/reflexão.
“[...]. Entendemos que é através de estudos e espaços para discussões que teremos
a oportunidade de construirmos estratégias e políticas públicas que venham combater as
desigualdades sociais. [...].” (CRESS, 2017, p. 10).
Tomando por base tal premissa, o Projeto Gênero e Sexualidade – tecendo redes
de saberes múltiplos tem por objetivo geral qualificar profissionais das diversas
Secretarias da Prefeitura Municipal de Campos dos Goytacazes (PMCG), e demais
interessados, na temática da Diversidade de Gênero e Sexualidade no município de
Campos dos Goytacazes (RJ) e específicos socializar conceitos referentes à Diversidade
de Gênero e Sexual, em conformidade com os estudos contemporâneos desenvolvidos na
área; difundir os instrumentos legais na garantia dos direitos da população LGBT e
contribuir para a efetivação de um atendimento humanizado, qualificado e respeitoso da
população LGBT nas instâncias municipais.
O projeto foi desenvolvido no ano de 2018, semanalmente, através de palestras e
oficinas que foram realizadas em dias, horários e locais previamente definidos a partir de
agendamento (Cronograma de Atividades) com os responsáveis por sua implementação
e os de cada secretaria. Conforme as atividades-piloto realizadas em dezembro de 2017,
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verificamos que é possível o desenvolvimento de palestras de curta duração (feitas em
um turno de 4 horas) e cursos de longa duração (realizados durante um dia, em dois
turnos). Ambas as atividades priorizaram uma exposição dialogada dos conteúdos
teóricos e conceituais, a exibição de vídeos que versam sobre a temática e estudos de
casos, com o uso de recursos audiovisuais (Notebook, Datashow, Caixa de Som). Ao final
de cada atividade foi aplicado um questionário avaliativo para que as/os participantes
pudessem avaliar a forma e os conteúdos desenvolvidos em cada encontro.
Desde sua implementação, em dezembro de 2017, o projeto já contabilizou cerca
de vinte (20) encontros, tendo em média a presença de vinte e cinco (25) pessoas, cujos
resultados podem ser verificados nas seguintes falas:
[...] Achei fantástico e oportuno tudo o que foi falado.
Meu olhar sobre a questão se abriu ainda mais e
provocou em mim reflexões para ter uma postura sem julgamentos. Obrigada!
Achei super proveitoso, aprendi muitas coisas e os
palestrantes nos deixaram super a vontade para nos
expressar. Excelente!
Achei a capacitação ótima. Atendeu as minhas
expectativas e esclareceu as dúvidas. Muito válido
para a vida e para a atuação profissional, que exige de
nós um olhar diferenciado e principalmente
qualificado. Parabéns!
Como repercussão do trabalho que vem sendo desenvolvido, temos recebido
convite para participarmos de outras atividades-eventos no e fora do município, o que
comprova a eficácia do projeto e a necessidade de sua continuidade, sobretudo, num
contexto marcado pelos retrocessos nas conquistas socialmente alcançadas.
Mesmo com a saída da senhora Sana Gimenes Alvarenga Domingues da gestão
da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Humano e Social (SMDHS), estamos dando
continuidade ao projeto no corrente ano (2019), atendendo convites para participarmos
atividades-eventos como cine-debates, mesas redondas, palestras e rodas de conversa.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com vistas a produzir um espaço de formação crítica e fundamentada, propomos
a implementação do projeto Gênero e Sexualidade: tecendo redes de saberes múltiplos,
que tem como eixo norteador a oferta de cursos, oficinais, reuniões, encontros e palestras
sobre a diversidade de gênero e sexual.
A partir e além dele, a possibilidade de interlocução com Coletivos, Laboratórios
de Pesquisa e Organizações Sociais que promovam o debate sobre o tema/questão vem
ganhando folego. Se é certo que precisamos ampliar as discussões, também certo é que
muito ainda está por se fazer, pois a população LGBT continua sendo vítima preferencial
de todas as formas de violência existentes em nossa sociedade.
Uma experiência em curso, o projeto “Gênero e Sexualidade: tecendo redes de
saberes múltiplos” tem buscado oferecer elementos teóricos e empíricos para um debate
em torno da possibilidade de elaboração e implementação de ações que colaborem com a
desconstrução de uma cultura de discriminação e preconceito e a construção de uma
sociedade mais justa e igualitária em todos os seus níveis e relações, a começar por
Campos dos Goytacazes (RJ).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Sociedade, n. 63, São Paulo: Cortez, jul., 2000.
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16
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