Muitos livros são bons. raríssimos são eternos. Poucos podem ser lembra-dos como marcos importantes pelos contemporâneos. trabalho, lar e bo-tequim faz parte desse seleto grupo. A oportuna reedição vem sanar a inex- plicável ausência, nas livrarias, de um texto que foi capaz de apontar cami-nhos para os especialistas de sua gera- ção: no interior de uma história social voltada quase exclusivamente para movimentos sociais ou propostas de revolução, sidney Chalhoub foi buscar histórias de amor, brigas de botequim, tensões entre indivíduos, grupos ét-nicos e nacionalidades, a trama do dia-a-dia, as formas de ganhar a vida no rio de Janeiro da chamada belle époque, para descobrir, no cotidiano da classe, um outro lugar da política. Escrito na metade da década de 1980, o livro constitui um exercício exemplar com processos criminais. Com eles, devolveu a personagens anônimos a capacidade de falar sobre si mesmos para revelar valores, formas de soli-dariedade ou de conflito — e nos fa-zer sentir o seu inconfundível “cheiro de carne humana”, como dizia lucien Febvre. Mas Paschoal, Júlia, Zé Galego e outros que povoam estas páginas deixam entrever também, além dos significados históricos que o autor evi-dencia, o notável talento para a pes-quisa e a narrativa histórica que marca o conjunto da sua obra.
Maria Clementina Pereira Cunha
sidney Chalhoub nasceu na cidade do rio de Janeiro em 1957. É professor de história na unicamp desde 1985. Publicou, além de trabalho, lar e botequim (1986), visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte (1990), Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte imperial (1996) e Machado de Assis, historiador (2003). Participou da orga-nização de quatro livros coletivos: A História contada: capítulos de história social da literatura no Brasil (1998), Artes e ofícios de curar no Brasil (2003), História em cousas miúdas: capítulos de história social da crônica no Brasil (2005) e trabalhadores na cidade: cotidiano e cultura no rio de Janeiro e em são Paulo, séculos XiX e XX (2009). É pesquisador do Centro de Pesquisa em História social da Cultura (Cecult–unicamp).
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lho
ub
O cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque é o tema central desse grande livro [...] Em meio à escravaria recém-libertada, o Rio de Janeiro se civilizava, com a ajuda de um urbanismo despótico que limpava o po-pulacho de toda a cidade. Em 1890 [...] 34% da população eram negros. As classes cultas fingiam não ver, para não empanar um Champs Elysées tropical.
[...]
Que as classes dominantes tentassem enquadrar os popu-lachos nas suas disciplinas, nada a espantar. O que Sidney Chalhoub mostra com elegância (criticar sem destroçar o acumulado de conhecimento) é a que ponto o esforço da ideologia dominante penetrou as análises acadêmicas. Não se pretende dizer que tudo antes de Chalhoub pere-ça: simplesmente muitas pesquisas sobre as classes tra-balhadoras ganham novos e estimulantes significados.
[...]
Não se trata de celebrar a “sabedoria” popular, mas re-cuperar a contradição, o conflito, a inovação, a invenção. Tudo escrito com a seriedade de um folhetim, onde o rigor não empana o gozo da leitura.
Paulo Sérgio PinheiroExtraído de “Viagem ao lado escuro da belle époque carioca”,
Folha de S. Paulo, Ilustrada, 4 de maio de 1986
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universidade estadual de campinas
Reitor Fernando Ferreira costa
coordenador Geral da universidade edgar Salvadori De Decca
conselho editorial Presidente
Paulo Franchetti Alcir Pécora – christiano Lyra FilhoJosé A. R. Gontijo – José Roberto Zan
Marcelo Knobel – Marco Antonio ZagoSedi Hirano – Silvia Hunold Lara
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Índices para catálogo sistemático:
1. Trabalhadores – Rio de Janeiro (RJ) – Condições sociais 301.240981532. Rio de Janeiro (RJ) – Usos e costumes 301.240981533. Lazer 790.0135
Copyright © by Sidney ChalhoubCopyright © 2001 by Editora da Unicamp
1a edição, 1986 Editora Brasiliense2a edição, 2001 Editora da Unicamp
Nenhuma parte desta publicação pode ser gravada, armazenada emsistema eletrônico, fotocopiada, reproduzida por meios mecânicos
ou outros quaisquer sem autorização prévia do editor.
isbn 978-85-268-0985-7
C35t Chalhoub, Sidney.Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos traba lhadores no Rio de Janeiro da belle époque / Sidney Chalhoub. – 3a ed. – Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2012. 1. Trabalhadores – Rio de Janeiro (RJ) – Condições sociais. 2. Rio de Janeiro (RJ) – Usos e costumes. 3. Lazer. I. Título.
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Prefácio à segunda edição
Prefaciar não é ofício leve — como raspar mandioca, exem plo de cousa tida por suave no Brasil oitocentista. Prefaciar nova edição de livro próprio, passados 15 anos da pu blicação original, é tarefa canhestra, quase improvável. Não sei como isso foi acontecer. Talvez eu queira finalmente dar resposta sorridente às várias pessoas que perguntam, ain da hoje em dia, quando haverá nova edição de Trabalho, lar e botequim. Cá está. Escrevo essas linhas e fico em paz .
O tempo e lugar de um livro explicam muito de seu fei tio. A pesquisa e redação deste aqui ocorreram em meio a um turbilhão político contínuo: ressurgimento dos movimentos sociais de massa no país, luta pela derrubada da ditadura militar, anistia, redemocratização, eleições para governador, campanha para as DiretasJá. Tempo que deixou saudade, não apenas pelo motivo próprio da juventude vivida e ida. Era um momento histórico raro, desses em que a crença no futuro vira experiência coletiva. À história vivida pertencia também a empreitada de produzir conhecimento histórico. Surgiam novos programas de pósgraduação, os debates teó ricos alargavamse, possibilidades de pesqui
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sa e exploração de fontes inéditas apareciam a cada dia. O que lembro deste livro e daquela época é de um estado de excitação política e intelectual constante, que parecia mais do que idiossincrasia individual.
Penso que o autor de Trabalho, lar e botequim formulava, ao lado de outros estudiosos do período, uma crítica à maneira como a sociologia e a historiografia sobre movimentos sociais em geral, e sobre movimento operário em particular, “representavam” os trabalhadores e sua experiência na história, isto é, havia a tendência de reduzir a história dos trabalhadores àquela dos movimentos políticos organizados, julgados todos a partir de um modelo determinado de desenvolvimento da “consciência de classe”. Era uma visão evolucionista e teleológica, que além disso excluía da história a maior parte dos trabalhadores — todos aqueles que nunca haviam participado de uma revolta, de uma greve, ou aderido a sociedades operárias.1
O interesse em ler e analisar processos criminais estava exatamente na expectativa de que tais documentos flagrassem trabalhadores — homens e mulheres — agindo e descrevendo os sentidos de suas relações cotidianas fora do espaço do movimento operário, do lugar da fala política articulada. A hipótese era a de que os conflitos fora dos momentos coletivos de resistência política ajudariam a explicar as características e os limites desses movimentos. Por exemplo, a importância das rivalidades nacionais — especialmente entre brasileiros e portugueses — no Rio do iní cio do século XX esclareceriam, em parte, os problemas do movimento operário carioca do período, e assim por diante. Essa maneira de formular o problema pareceme um tanto mecânica ou simplista — quiçá seja eu agora quem atribua simplismo ao jovem autor do livro —, mas o fato é que, à
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época, era “libertadora” em dois sentidos. Primeiro, abria uma enorme possibilidade de buscar novas fontes e problemas de pesquisa, pois tornavase “legítimo” recuperar a experiência dos trabalhadores em geral, e não apenas a daqueles mais articulados, dotados de uma determinada forma de “consciência de classe”. Segundo, na conjuntura do início dos anos 1980, “libertava” a atividade política da política tradicional, contida em partidos, sindicatos etc. — isto é, ajudava a fundamentar historicamente a idéia de que havia uma pluralidade de sujeitos políticos na sociedade, lutando a seu modo para atingir objetivos que lhes eram caros e assim governar a própria vida. Nesse sentido, foi importante, em seguida, repensar a história da escravidão, e mostrar que os sujeitos históricos mais estereotipados da história do país — pois escravos, por definição, eram heróis da resistência ou vítimas indefesas do arbítrio senhorial — foram, na verdade, muito mais ati vos, sutis e complexos do que muitos logravam imaginar.2
Há coisas que ainda aprecio neste velho livro. Talvez não apenas porque goste de lembrar o gosto de descobrilas e escrevêlas. Por exemplo, a forma de apresentar, logo ao início, o modo de conceber e utilizar processos criminais como testemunho histórico. Questão candente à época. Se as fontes para o estudo da experiência dos trabalhadores já não podiam se reduzir a jornais operários e outras que tais, onde buscar alternativas? Havia um contingente de pesquisadores céticos quanto à possibilidade de utilizar processos penais para estudar temas outros que não a própria criminalidade ou as representações jurídicas sobre determinados assuntos. Tais fontes “mentem”, os depoimentos são manipulados, respondem a uma multiplicidade de interesses que os tornam praticamente inúteis para os historiadores. Outros
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achavam que seria possível utilizar essas fontes para recuperar o cotidiano dos trabalhadores, seus valores e formas de conduta. Os seminários de pósgraduação pegavam fogo. Trabalho, lar e botequim é quase um libelo em defesa da utilização abrangente de processos criminais em estudos de história social. O livro foi bem sucedido neste sentido, pois outros pesquisadores logo dialogaram com seu modo de ler tais documentos. A polêmica, todavia, era até certo ponto equivocada. Dois ou três anos depois, Martha Abreu publicava livro primoroso mostrando que com processos judiciais podiase fazer uma e outra coisa, e outros belos estudos se seguiram, culminando com o de Sueann Caulfield, que faz com processos muito mais do que imaginávamos há 15 ou 20 anos, e ainda mais, que aparentemente só as geringonças da infor mática tornaram viáveis.3
Desde a primeira edição deste meu livro, a histo riografia brasileira mudou muito, diversificouse, sofis ticouse, ampliou horizontes teóricos e apurou o rigor das pesquisas empíricas. A produção acadêmica sobre o Rio de Janeiro, já significativa em meados dos anos 1980, não cansa de surpreender em abrangência e qualidade.4 Seria tolice minha tentar “atualizar” o livro para esta segunda edição. Trabalho, lar e botequim continua a ter o seu lugar na sólida tradição da história social marxista, preocupada em descrever e interpretar a cultura política dos trabalhadores, escravos ou “livres”, homens ou mulheres, integrantes de movimentos sociais organizados ou não, e assim por diante. Num país em que o costume acadêmico e político de “coisificar” os trabalhadores — isto é, de imaginar que as suas formas de lidar com as políticas de dominação são historicamente irrelevantes — continua duro de matar, Trabalho, lar e botequim deve estar disponível a quem desejar lêlo. Com os anos,
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corrigi rumos e arrependime de um ou outro argumento presente no livro. Fiz até uma auto crítica relativamente detalhada em trabalho posterior (Visões da liberdade). Nunca me afastei, por um minuto sequer, do impulso original de combater produções acadêmicas que, intencionalmente ou não, contam a história do país a partir do mote da desqualificação política dos trabalhadores, escravos ou não.
Esta nova edição sai então com pouquíssimas emendas e correções. Todavia, resolvi introduzir material que ficara ausente da publicação original devido a exigências editoriais. Há aqui mais fotos encontradas nos processos criminais, um anexo, lista de fontes e bibliografia. O fato é que nada disso altera a feição do livro. Nem podia ser de outro modo. Encerro com Machado de Assis, em “advertência” ao leitor numa reedição de Helena, ocorrida muitos anos após a publicação original:
Ele [o livro] é o mesmo da data em que o compus e imprimi, diverso do que o tempo me fez depois, correspondendo assim ao capítulo da história do meu espírito, naquele ano de 1876.Não me culpeis pelo que lhe achardes romanesco. [...] Agora mesmo, que há tanto me fui a outras e diferentes páginas, ouço um eco remoto ao reler estas, eco de mocidade e fé ingênua. É claro que, em nenhum caso, lhes tiraria a feição passada; cada obra pertence ao seu tempo.
Machado de Assis explicoume. Agora posso raspar mandioca, que é ofício leve.
Sidney ChalhoubunicamP, abril de 2001
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noTas
1 Para uma resenha da produção acadêmica que foi muito influente à época, ver Maria Célia Paoli, Eder Sáder e Vera da Silva Telles, “Pensando a classe operária: os trabalhadores sujeitos ao imaginário acadêmico”, Revista Brasileira de História, vol. 3, no 6, set., 1983, pp. 12949; para um balanço mais recente, Cláudio H. M. Batalha, “A historiografia da classe operária no Brasil: trajetória e tendências”, in Marcos Cezar de Freitas (org.), Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto, Universidade São Francisco, 1998, pp. 14558.
2 Quanto à escravidão, participei de um esforço coletivo de reinterpretação que resultou na publicação de vários trabalhos importantes a partir de meados dos anos 1980; ver, por exemplo, Célia M. Marinho de Azevedo, Onda negra, medo branco. O negro no imaginário das elites: sé-culo XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987; Silvia H. Lara, Campos da violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988; João José Reis, Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês (1835). São Paulo: Brasiliense, 1986, entre outros. Bastante representativo da produção do período é o número especial, intitulado “Escravidão” e organizado por Silvia Hunold Lara, da Revista Brasileira de História, vol. 8, no 16, mar.ago., 1988. Minha própria contribuição ao tema é Visões da liberdade: uma história das últi mas dé cadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
3 Martha de Abreu Esteves, Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da belle époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
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1989; Sueann Caulfield, Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940). Campinas: Editora da unicamP, ceculT, 2000.
4 Três exemplos recentíssimos, da melhor cepa: Martha Abreu, O Império do Divino: festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro, 1830-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999; Maria Clementina Pereira Cunha, Ecos da folia: uma história social do carnaval carioca entre 1880 e 1920. São Paulo: Companhia das Letras, 2001; Leonardo Affonso de Miranda Pereira, Footballmania: uma história social do futebol no Rio de Janeiro, 1902-1938. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.
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Para Sandra, como uma declaração de amor; para Beto, que renasceu; para Zé Galego, Paschoal e Júlia,
protagonistas desta história.
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sumário
Prefácio à segunda edição ..........................................................v
AgradecimenTos ....................................................................... 17
Introdução — Zé galego, Paschoal e Júlia ............................ 23
A vida e a morte de Zé Galego .................................................. 23Zé Galego e seus companheiros na história .................................. 42
sobrevivendo... ........................................................................ 59
Inquietações teóricas e objetivos .................................................. 59Trabalhadores e vadios; imigrantes e libertos: a construção dos mitos e a patologia social ...................................................... 64Companheiros de trabalho, desempregados e gatunos .................... 89Patrão e empregado ................................................................ 114Senhorio e inquilino ............................................................... 130Conclusão — Ambigüidades e paradoxos na experiência de vida da classe trabalhadora; o caso dos estivadores ...................... 147
...amando... ............................................................................ 171
Inquietações teóricas e objetivos ................................................ 171
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O modelo dominante de relação homem–mulher ........................ 177Parentes, compadres e amigos .................................................. 184Mulheres trabalhadoras .......................................................... 202Mulheres “da gandaia”? ........................................................ 211Epílogo .................................................................................. 239
...“Matando o bicho” e resistindo aos “Meganhas” ............... 247
Inquietações teóricas e objetivos ................................................ 247Lazer e controle social: o dono do botequim e seus fregueses; meganhas e populares ............................................... 256Lazer e ritual (I): o surgimento da rixae a preparação do conflito ........................................................ 301
O surgimento das rixas na hora do lazer e o botequim como “observatório popular” .............. 309A escalada das tensões: o papel do machismo; o significado do desafio ............................................ 320
Lazer e ritual (II): a prática do delito e suas seqüelas; o comportamento dos circundantes ........................................... 327
Epílogo — a volta de Zé galego e seus coMpanheiros, ou a reinvenção da história .................................................. 345
Anexo — uM quarto nuMa casa de côModos ......................... 349
Fontes ................................................................................... 357
bibliograFia ........................................................................... 359
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agradecimenTos
Uma versão anterior deste livro foi defendida como dissertação de mestrado em história na Universidade Federal Fluminense em outubro de 1984. A versão que o leitor tem em mãos neste momento está um tanto medicada, mas não totalmente curada, das bizantinices acadêmicas comuns em textos dessa natureza.
Encontrei muita gente e acumulei dívidas ao longo do caminho. Lembro inicialmente, com muito carinho e agradecimento, dos funcionários do Arquivo Nacional, local onde realizei quase toda a pesquisa. Freqüentei as siduamente o AN durante mais de dois anos, intrometendome assim no trabalho cotidiano de pessoas atenciosas como “dona” D alila, “dona” Yara, “seu” Eliseu e tantos outros. Registro aqui espe cialmente o meu agradecimento aos funcionários anônimos das galerias, rostos sempre vistos em movimento e de relance, a carregar nos braços quilos e mais quilos de papel velho empoeirado. Sem o trabalho dessas pessoas, eu, como pesquisador, simplesmente não existiria.
Vários amigos me ajudaram e incentivaram de diferentes formas. Celeste Guimarães, Hebe Castro, Oswaldo
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Rocha, Rachel Soihet e Sheila Faria estão entre eles. Quatro amigos têm sido meus instigadores constantes nos últimos anos, e nossas memoráveis conversas amenizaram em muito a luta solitária e estafante necessária para redigir um texto como este: Gladys Ribeiro, José Antonio Dabdab Trabulsi, Martha Esteves e Silvia Lara.
Tive sorte de contar também com o auxílio de diver sos professores do curso de mestrado da UFF. O professor Victor Valla leu e comentou o projeto de pesquisa e o segun do capítulo da dissertação. O professor Ciro Cardoso auxiliou na elaboração do projeto de pesquisa, criticou detalha damente o texto e incentivou muito a sua publi cação . As professoras Margarida Neves e Maria Yedda Li nhares acom panharam a pesquisa desde seu início e, como membros da banca, leram e debateram comigo todo o texto. As críticas e os incentivos que esses professores dedicam conti nua mente ao meu trabalho são para mim motivo de orgu lho .
Não sei como agradecer ao meu orientador, professor Robert Slenes, mas vou tentar. Primeiro, e mesmo que isto seja um pouco esquisito, obrigado pelo seu profis sio nalismo e competência, pela sua capacidade de indicar que tipo de documento eu precisava explorar, pela sua possibilidade de adivinhar sempre que texto eu necessitava ler e pela sua habilidade em misturar em doses certas, por alguma alquimia que nunca consegui entender, crítica e enco rajamento. Segundo, obrigado pela paciência e pela amizade com as quais me brindou.
Meus familiares agüentaram as variações do meu humor durante quase quatro anos. Minha mãe, Ermelinda, e minha tia, Luzia, fizeram ainda mais que isso: durante o período em que estive sobrecarregado com aulas, elas decifraram, cor rigiram e datilografaram uma boa parte do manuscrito.
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Sandra suportou meus momentos de ansiedade e incerteza e, como idéias se fecundam com paixão, ela é a minha cúmplice nas eventuais ousadias do texto.
Agradeço, ainda, à caPes e à fineP, que financiaram parcialmente a pesquisa com a concessão de bolsas de es tudo. Maria Rita Coriolano datilografou a versão final do texto com interesse.
Finalmente, como forma de último agradecimento a todos, registro que o texto que se segue é resultado não só de longas e árduas horas de angústia e de trabalho, mas também de muito prazer e diversão. Cada página foi escrita com muita garra e sentimento, porém estas três, que acabo de es crever e que são as últimas, foram as que escrevi com maior emoção.
Rio, janeiro de 1986
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Folha de rosto do processo criminal no qual foi réu Antônio Paschoal de Faria (no 2.069, maço 995, galeria b, 1907).
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Introdução
Zé galego, Paschoal e Júlia
A vida e a morte de Zé Galego
Era no tempo de Pereira Passos. Há apenas alguns meses, o famoso prefeito da cidade do Rio de Janeiro no início do século XX se havia despedido do cargo que ocupara por menos de quatro anos, passando então a figurar nos anais de uma certa história como o grande espírito propulsor das reformas urbanísticas que mudaram substancialmente o panorama da cidade no período. Diz a lenda que Passos superou o atraso colonial, transformando “a cidade bárbara em metrópole digna da civilização ocidental”. O Rio, dizia, “civilizouse”.1
Se estes foram tempos eufóricos para uns, foram tempos difíceis para outros. Assim, Antônio Domingos Guimarães, vulgo Zé Galego, levantarase ainda de madrugada, como de hábito, naquele dia fresco e cinzento de 18 de abril de 1907.2 Vestiu uma calça de casemira escura, uma camisa de fustão branco e um paletó preto, calçou as bo tinas de pelica amarela, equilibrou o chapéu preto na cabeça e ganhou
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a rua em direção à Estação Marítima. Pouco tempo depois de deixar a casinha da avenida em Santo Cristo onde mo rava com a mulher e três filhos pequenos, Zé Galego chegava a um dos armazéns da Hard, Rand & Companhia, onde trabalharia pela manhã no carregamento de café de um navio que deveria partir ainda naquele dia. O trabalho foi efetivamente realizado, sob a coordenação de Zé Galego, que era ultimamente capitão de tropa de carga e descarga de navios transportadores de café, serviço este que realizava por empreitadas. Por volta de meiodia, Zé Galego e outros estivadores companheiros seus já se encontravam sentados numa catraia que estava ancorada no cais, distraindose num jogo a dinheiro.
Mas o jogo não fora tranqüilo e se encerrara após uma discussão entre os estivadores envolvidos. O grupo diri giuse depois para o botequim do Cardozo, na Rua da Gamboa, com o intuito de tomar café e conversar. Era também ali, no botequim, que seria feito o pagamento da tropa. No entanto, o clima continuava tenso depois daquele jogo acidentado. Zé Galego e um outro estivador, Antônio Pas choal, embrenharamse numa discussão acalorada na porta do boteco. Cerca de uma hora da tarde, estava tudo terminado. Dispararamse diversos tiros de revólver, e Zé Galego jazia agonizante no chão. Uma das balas lhe havia perfurado o crâ nio. A padiola da União dos Estivadores transportouo ainda com vida para a delegacia e para o hospital, onde morreria horas depois. Antônio Paschoal tentou escapar à prisão, correndo e se ocultando finalmente num quarto de uma casa de cômodos na Rua da Gamboa, onde foi preso por dois bombeiros e conduzido à delegacia .
Esta versão linear e pouco controvertida dos antecedentes mais imediatos da morte de Zé Galego foi baseada
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em aspectos em geral recorrentes nos diversos relatos ou ver sões dos fatos que o caso suscitou. Mas os noticiários dos jornais e os depoimentos que constam do processo criminal movido contra o estivador Antônio Paschoal — depoimentos estes tomados em dois turnos: o primeiro na delegacia, logo após o crime, e o segundo na pretoria, semanas depois — são ricos em detalhes e carregados de contradições entre si. O Jornal do Commercio, por exemplo, dá sua versão caracte risticamen te sóbria e econômica dos fatos. O noticiá rio sobre o crime no jornal vem sob o título “Entre estivadores”:
Na rua da Gamboa, ontem à tarde, passouse uma rápida e violenta cena, de que resultou a morte de um homem, por um motivo aparentemente frívolo.Encontraramse ali Antônio Domingos Guimarães e Antônio Paschoal Faria, estivadores e desafetos desde algum tempo por causa de uma amante que fora do primeiro e agora é do segundo.Davamse os dois, com alguma prevenção recíproca, mas não fugiam de falar uma ou outra vez.Jogavam ali, no chão, alguns estivadores, entre os quais se encontravam os dois; que, numa indisposição súbita, por causa de uma parada, altercaram e trocaram alguns insultos.Antônio Paschoal, porém, não se limitou a isso: sacou de um revólver e atirou quatro vezes contra Antônio Domingos.O último tiro penetroulhe no crânio, tendo entrado por cima do olho direito.O estivador atingido caiu estertorando.O criminoso fugiu, em seguida, sendo perseguido por vários indivíduos que haviam assistido à cena.Paschoal, ao passar em frente ao quartel dos bombeiros da Gamboa, perseguiramno as praças nos 37 e 32, que
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conseguiram prendêlo na casa de cômodos da rua da Gamboa, no 127, onde se homiziara.O criminoso foi levado depois do quartel dos bombeiros para a sede do 8o distrito policial, onde o delegado, Dr. Mello Tamborim, fez lavrar o auto de prisão em flagrante.O ferido, cujo estado foi logo julgado desesperador, foi transferido para o Hospital da Misericórdia, acompanhado por uma comissão de sócios da União dos Estivadores.O criminoso interrogado pela autoridade, negou que tivesse dado tiros em Guimarães e disse que este sim, lhe dera dois tiros que o obrigaram a fugir. Depois disso ainda ele ouviu dois tiros, que não sabe quem disparou.Ao seu interrogatório seguiuse o das testemunhas de vista em número de 8.Todas elas acordes declararam, perante o criminoso, têlo visto atirar sobre Guimarães.Em vista desta atitude das testemunhas, Antônio Paschoal resolveu fazer a confissão do crime.O inquérito, em vista disso, foi logo encerrado.Antônio Domingos Guimarães, apresentando feri mento penetrante no frontal direito, foi, como dis semos, recolhido já em estado comatoso à 14a enfermaria do Hospital da Misericórdia, onde, por volta das 6 horas da tarde, exalou o último alento.O médico que atestou o óbito deu como causa mortis he morragia consecutiva a ferimento por arma de fo go .Antônio tinha 26 anos de idade, era português, solteiro, residente à rua de Santo Cristo no 5.O seu enterro será feito hoje no cemitério do Caju, a expensas da Sociedade União dos Estivadores.
O relato do Jornal do Commercio, então, reconhece que houve na manhã do crime um desentendimento entre Antônio Paschoal e Zé Galego por motivo de jogo a dinheiro, mas nos informa que os dois estivadores eram desafetos já
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há algum tempo devido a uma disputa amorosa. A versão dos fatos oferecida pelo Correio da Manhã também contém estes pontos fundamentais, apesar de o tom geral da narrativa neste periódico levantar a suspeita de que seu relato da morte de Zé Galego é fruto de uma colorida alquimia entre informações obtidas no local do crime pelos repórteres policiais do jornal e a fértil imaginação do redator da notícia. Esta impressão se reforça ao lembrarmos que Lima Barreto, em Recordações do escrivão Isaías Caminha, satiriza acidamente a forma como eram compostas as notícias de crimes no Correio da Manhã, que aparece com o nome de O Globo em sua narrativa.3 Lima Barreto conta como os jornalistas se empenhavam em inventar detalhes extravagantes que enfeitassem a notícia, causando sensação ao público e assegurando a venda de muitos exemplares do jor nal. O sensacionalismo começava já na “cabeça” — isto é, nas “considerações que precedem uma notícia” — e se carac terizava por um filosofar de caráter moralizador. Lima Barreto exemplifica este procedimento do jornal com um re lato de briga entre amantes, no qual o repórter, após in titular a notícia “O eterno ciúme”, “começa a filosofar, com muita lógica a inédita psicologia”: “O ciúme, esse sentimento daninho que embrutece a imaginação; humana e a arrasta à concepção de crimes, cada qual mais trágico e horripilante, não cessa de produzir seus efeitos maléficos”.4
A forma como a morte de Zé Galego é abordada no Correio da Manhã parece justificar inteiramente as ironias do autor de Isaías Caminha. O título da matéria é “Ain da sangue”, e a “cabeça” é a seguinte: “A um tiro certeiro de revólver, caiu no solo um homem. Era mais uma vítima do ciúme. O amor, que tivera por uma mulher, que leviana, passava de braços a braços, foralhe fatal”.
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Lima Barreto prossegue contando com pormenores as exigências do diretor para que os redatores de notícias desse tipo inventassem “qualquer coisa, indícios, depoimentos, quaisquer informações”.5 Dessa forma, não é de admirar que a morte de Zé Galego tenha ocupado duas colunas de pá gina inteira no dito periódico, sendo que o relato dos “antecedentes do crime” começa quando Zé Galego “há muitos anos, ouvindo falar da fertilidade da nossa terra, embarcou em Portugal, sua terra natal, com destino a esta capital”. Seguese uma descrição dos primeiros tempos de Zé Galego no Rio de Janeiro, onde não foi difícil para ele, indivíduo “reforçado” e “amigo declarado do trabalho”, arrumar uma colocação na casa Hard, Rand & Companhia, comissários de café com vários armazéns na cidade. Em pouco tempo, esse imigrante português conquistava a confiança dos patrões e era logo promovido a mestre de tropa. Na vida particular, esse estivador também parecia ser exemplar, pois casarase com uma patrícia, Silvéria Guimarães, e tivera com ela três filhos. Havia, no entanto, algo de perigoso na personalidade de Zé Galego. Os companheiros tinhamlhe certo medo, pois era um indivíduo “dotado de vigorosa força, possuindo, às vezes, um gênio impossível de conterse”. Enfim, no caso de estar envolvido em alguma desavença com um companheiro, o bom Zé Galego podia se transformar rapidamente num indivíduo “desejoso de sangue”.
Com o título de “Amor fatal”, o trecho seguinte da notícia relata que Zé Galego e Antônio Paschoal eram amigos íntimos até o dia em que passaram a competir pelo amor de uma mulher chamada Júlia. O primeiro a ter um caso com a tal mulher fora Zé Galego, mas Júlia era uma “doudivanas, acostumada a passar de amante para amante”, e acabara cedendo ao assédio de Antônio Paschoal, que também
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a cortejava. Zé Galego descobrira logo a “infideli dade de Júlia”, começando assim uma acirrada inimizade entre os dois estivadores. Nas palavras do jornal: “Ciente do que o seu amigo lhe fizera, roubandolhe a amásia, Gui marães cortou com ele as relações e, francamente, disse a Paschoal que procurasse mudar de turma, pois na sua não o consentiria de forma alguma”.
O trecho acima sugere que, apesar de a rixa entre os dois estivadores ter começado por causa de Júlia, ela teve conseqüências sérias nas relações entre os contendores em seu trabalho: Zé Galego impedia que Paschoal participasse das tropas que comandava. A narrativa prossegue com o relato das trocas de ameaças ou “picardias” entre os inimigos, o que fazia com que os outros estivadores, companheiros de trabalho dos rixosos, adivinhassem um encontro de “conse qüências funestíssimas” entre eles. A rivalidade culmina no assassinato do dia 18 de abril, que se seguira a um novo desentendimento entre os dois homens devido a uma questão de jogo. Segundo o jornal, Paschoal disparou seis tiros contra a sua vítima, acertandolhe o último tiro logo aci ma do olho direito. Preso quando tentava a fuga, Pas choal foi conduzido à delegacia onde “cinicamente confes sou o crime, dizendo que atirara contra Guimarães porque este também lhe disparara dois tiros de revólver”. As testemunhas, “ todas de vista”, também teriam sido acordes em afirmar que Paschoal fora efetivamente o assassino. Na edição do dia 20 de abril, o jornal volta ao episódio relatando o enterro da vítima, que havia sido feito “a expensas da União dos Es ti vadores”. Mulher, filhos e companheiros de trabalho de Zé Galego acompanharam o caixão, que estava coberto com a bandeira da sociedade operária à qual pertencia.
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O auto de prisão em flagrante lavrado na delegacia de polícia do 8o Distrito no próprio dia do crime contém sem dúvida depoimentos bastante incriminadores do acusado Antônio Paschoal. A testemunha João Ventura, por exemplo, brasileiro, de 21 anos, solteiro, estivador, residente na Ladeira do Livramento, no bairro da Saúde, tendo assinado seu nome no auto de flagrante com visível dificuldade — letras tremidas e um tanto desenhadas —, “inquirido, pelo Doutor Delegado, debaixo de compromisso legal disse”
que, ele declarante, hoje a uma hora da tarde, depois de haver com os seus companheiros de trabalho carregado na “Estação Marítima”, um barco de café da casa Hald [sic], Rand e Companhia, foi com os mesmos para o botequim do senhor Manoel tomar café, aguardando ali o pagamento da tropa e isso a mando de Antônio Domingos Guimarães, “vulgo José Galego” que era o capataz ou capitão da mesma tropa a que servia ele declarante. Que achandose, ele o declarante e os seus companheiros já no aludido botequim à rua da Gamboa, em frente à “Marítima”, viu, virem daquela “Estação” o dito “José Galego” acompanhado de perto por Antônio Paschoal, também estivador; Que, ao chegar “José Galego” à calçada do aludido botequim, foi alcançado por Antônio Paschoal que, empunhando um revólver, desfechou contra “José Galego”, sucessivamente, seis tiros, pegando o último na testa de “José Galego” que caiu na calçada ferido e banhado em sangue; Que ele declarante e outros seus companheiros que assistiram a essa cena, que foi rápida, saíram atrás de Antônio Paschoal que corria em direção à ladeira do Livramento, levando ainda em punho a arma com que ferira a “José Galego”; Que aos gritos de “pega, pega” a sentinela do posto de bombeiros, bradou as armas, saindo dali duas praças que conseguiram prender o criminoso debaixo de uma cama do prédio de número cento e vinte e sete da rua da
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Gamboa. Que, o acusado presente era inimigo, desde há muito tempo, de “José Galego”, e não se falavam, apesar de, às vezes, trabalharem juntos. Que sabe o declarante, por ouvir dizer, que a inimizade dos dois teve por origem ciúmes de uma mulher por nome “Jú lia de Andrade”, que foi, há tempos, amásia de “José Gale go”, com quem depois se amasiou digo Antônio Paschoal, digo, com quem depois se amasiou Antô nio Paschoal [sic], havendo nessa ocasião, entre ambos, forte discussão, guardando, desde então, Antônio Paschoal, ódio a “José Galego”. E mais não disse.
Um outro estivador presente à cena, Joaquim da Silva, de 23 anos, casado, português, natural do Porto, confirma em linhas gerais o depoimento de João Ventura, afirmando que a rixa entre os dois homens deviase à disputa pelo amor de Júlia, acrescentando ainda o detalhe de que Paschoal vivia a provocar Zé Galego, “a quem dizia de haver tomado a amante”. Outros quatro estivadores prestam declarações no auto de flagrante e, apesar de pequenas divergências quanto a detalhes, todos afirmam que a rixa entre os contendores era por questões de amor e que “viram” o acusado disparan do tiros contra o ofendido. Constam ainda dos autos os depoi mentos que visam esclarecer as condições da tentativa de fuga e da prisão de Paschoal. Salientamse neste aspecto as declarações dos bombeiros que perseguiram o acusado e o depoi mento da espanhola Josepha, de 50 anos, que relata seu embaraço no episódio, pois estava com seu amásio no quarto da casa de cômodos em que residia quando Pas choal entrou correndo pelo quarto adentro e, dizendo “dá licença minha senhora”, meteuse debaixo da cama do casal, sendo aí preso logo depois.
O acusado Antônio Paschoal de Faria, de 17 anos, solteiro, brasileiro, natural do estado do Rio, residente em Vila
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Isabel, também depõe na delegacia, mas não assina o auto de flagrante já “que não sabe escrever”. Interrogado, Paschoal declara que
hoje ao meiodia em uma catraia amarrada na Estação Marítima jogavam Casemiro, [nome ilegível], Antônio Domingos Guimarães e outros, se achando presente, ele declarante, que hoje não trabalhou; que em dado momento, “José Galego” que havia perdido no jogo, puxou de um revólver, e obrigou, a, Ca semiro a lhe dar trinta e tantos ou quarenta mil réis que Casemiro lhe havia ganho, aconselhando ele declarante a Casemiro, que satisfizesse a vontade de “José Galego” para evitar barulho, porquanto, ali no jogo, o mais forte sempre saía ganhando; Que, ele declarante, dali saiu, e enquanto aguardava, junto à venda [...] que fica ao lado do botequim do “Car dozo”, dez tostões que lhe devia Antônio para ir para casa; saiu de dentro do botequim “José Galego” que, dirigindose a ele, declarante, começou a injuriálo; que para evitar questões, ele declarante deu as costas a “José Galego” procurando dele afastarse, quando recebeu do mesmo, pelas costas, um tiro; que, voltandose então, ainda recebeu de “José Galego” outro tiro, passandolhe a bala pela [...] sobrancelha esquerda, e nessa ocasião, ele declarante, sacando do revólver que consigo trazia desfechou seis tiros contra o mesmo “José Galego” que caiu na calçada enquanto, ele declarante tratou de fugir, para não ser vítima dos populares que atrás dele corriam gritando “pega, pega, pega” [...] Que, de uns cinco meses dessa parte, ele declarante, teve uma questão com “José Galego”, pelo fato de haver, este, pensado que ele, declarante, lhe houvesse tirado a sua amante, Júlia de Andrade; que desde esse tempo deixou de falar com “José Galego” e lhe havendo este prometido arrancar uma costela dele declarante, começou, ele declarante, a andar armado para se defender de qualquer agressão por parte de “José Galego”;
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Que bem se recorda e aqui relata o fato de haver há uns dois meses dessa parte, sido agredido por “José Galego” no canto da Gamboa, não tendo sido ele declarante vítima da agressão de “José Galego” devido à intervenção de outras pessoas cujos nomes não pode precisar por não se lembrar neste momento. E mais não disse.
A versão do acusado, portanto, também confirma que Júlia estava na origem da desavença entre os contendores, e reaparece aqui a informação contida nos jornais de que havia ocorrido um desentendimento qualquer entre Pas choal e Zé Galego durante o jogo a dinheiro pouco antes do crime. Quanto ao crime em si, a versão de Paschoal é bastante diferente das outras versões apresentadas nos jornais e nos depoimentos que constam do auto de flagrante: o acusado afirma que foi agredido primeiro pela vítima e que cometeu o homicídio em legítima defesa.
Concluídos os procedimentos de praxe na delegacia, Paschoal foi conduzido à Casa de Detenção, onde aguar daria preso o prosseguimento do caso. O acusado passou tam bém pelo Gabinete de Identificação e Estatística, órgão da polícia encarregado de identificar e fichar minuciosamente os indivíduos enviados à Casa de Detenção. Des cobriuse, então, que Paschoal já havia cumprido pena por ofensas físi cas leves no ano de 1906. Na ficha do órgão policial, a ida de do acu sado é de 23 anos, sua instrução, rudimentar — sabendo, contudo, “assinar o nome” —, sua cor é branca e sua altura, de um metro e setenta e cinco centímetros. Além de outras in formações que não contradizem as constantes no auto de flagrante, a ficha de Paschoal traz também suas impressões digitais.
Enquanto isso, o exame de autópsia realizado em Zé Galego concluía que ele havia morrido devido a uma “he
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morragia cerebral consecutiva a ferimento do encéfalo por um projétil de arma de fogo”. O laudo informa ainda que “o tiro foi dado de frente e um pouco da direita para a esquerda”. Iniciamse então os procedimentos judiciais visando a tomada de depoimentos na pretoria, o que levaria à elaboração do sumário de culpa. Os oficiais de justiça, no entanto, encontram muitas dificuldades para localizar e intimar as testemunhas arroladas no auto de flagrante policial. O estivador João Ventura, por exemplo, jamais foi encontrado no endereço que forneceu à autoridade poli cial; outro estivador, José Pinho, deu um endereço na Piedade, mas a rua não era conhecida por ninguém naquelas redondezas. Outras testemunhas também não puderam ser encontradas, e o juiz da 8a Pretoria só conseguiu inquirir três dos indivíduos arrolados no auto de flagrante: o bombeiro Leonídio, que havia efetuado a prisão de Paschoal, e os estivadores Joaquim da Silva e Antônio Pogliesse.
Enquanto o novo depoimento do bombeiro Leonídio em pouco se diferencia do anteriormente prestado na delegacia, Joaquim e Antônio fornecem agora uma versão fundamentalmente diferente dos fatos. No auto de flagrante consta que Joaquim “viu” o acusado descarregar seu revólver contra Zé Galego; no sumário realizado na pretoria Joaquim teria declarado o seguinte:
[...] que ele testemunha ao entrar para o botequim viu o acusado que conversava na rua com vários companheiros e pouco depois de achar se no botequim ouviu uma discussão do lado de fora, na rua, discus são essa que se dava entre a vítima “José Galego”, que então já havia saído do botequim e o acusado presente; que ele testemunha não as sistiu à toda discussão porque voltara novamente para o interior do botequim, onde foi a sua atenção des
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pertada pelo estampido de vários tiros de revólver e vindo à porta aí esteve a passagem interceptada pelo acusado presente que seguidamente deitou a correr; que ele testemunha vindo à rua viu a vítima caída no chão e então mandou pe dir a ambulância da União dos Estivadores para a con dução da vítima [...]; que por essa ocasião ele teste munha ouviu os populares dizerem que o acusa do atirara contra a vítima, porque esta o precedera atirando primeiro contra o acusado e também de revólver [...].
Vêse, portanto, que as novas declarações de Joaquim apóiam a versão de Paschoal segundo a qual Zé Galego é quem havia atirado primeiro. Antônio Pogliesse também nega que tivesse visto Paschoal disparar os tiros contra Zé Ga lego e conta que “ouviu dizer” que a vítima atirara primei ro no acusado. Pogliesse arremata dizendo “que acha ter sido justo o homicídio visto que [...] se o acusado não pra ticasse o crime era morto pela vítima”. Todos estes depoi mentos do sumário foram tomados no mês de maio, e a última peça do dossiê nos informa que o réu Paschoal foi posto em liberdade por pedido de habeas corpus em agosto de 1907.
O que mais impressiona neste relato da vida e da morte de Zé Galego são as diferentes versões ou interpretações dos fatos contidas nos jornais e nas etapas consecutivas do próprio processo criminal. Há aqui muitas divergências, contradições e até incoerências que cabe enfatizar, pois é exatamente deste emaranhado de versões conflitantes que procuraremos partir.
Uma contradição bastante fundamental se insinua logo de início. Em seu relato, o Jornal do Commercio afirma que a cena foi “rápida e violenta” e que o crime havia ocorrido
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“por mo tivo aparentemente frívolo”. Em uma linha semelhante de raciocínio — apenas com um pouco mais de sensacionalismo — o Correio da Manhã utiliza para este episódio o título sugestivo de “Ainda sangue”. Para ambos os jornais, portanto, o conflito entre Zé Galego e Paschoal não passara de um acontecimento repentino, violento e desencadeado por motivo fútil, acontecimento este que envolvera indivíduos nos quais as qualidades intrínsecas a qualquer ser humano não pareciam estar presentes, pois seu comportamento “embrutecia a imaginação humana”. Em outras palavras, é quase possível argumentar que, para os nobres jornalistas dos referidos periódicos, a notícia em questão tratava de uma briga ocorrida entre dois brutos “desejosos de sangue”.
Mas esta não era, obviamente, a forma como Zé Galego, Paschoal e seus companheiros percebiam ou pensavam tudo o que havia se passado. Apesar das mediações introduzidas pelos interrogatórios do delegado e do juiz e pelas anotações dos escrivães da delegacia e da pretoria, os personagens de carne e osso que protagonizam efetivamente a trama em questão berram bem forte, e os ecos distantes de suas vozes fazem vibrar os nossos tímpanos. E percebemos, por exemplo, que há uma outra forma de marcar o tempo no qual as coisas se desenrolam. Para os estivadores que prestam depoimento no processo, a morte de Zé Galego não foi “rápida”, nem imprevista, e muito menos ocasionada por “motivo frívolo”. Havia uma rixa de muitos meses entre Zé Galego e Paschoal, sendo que os dois homens vinham sempre trocando provocações e insultos. O português Zé Galego teria dito, por exemplo, que iria “arrancar uma costela de Paschoal”, enquanto este vivia pro palando que roubara a amante do outro. Desta forma, a contenda que teve seu
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desenlace num dia cinzento de abril, é na verdade, um longo processo de luta entre dois membros de um determinado grupo de pessoas, luta esta que é acompanhada de perto e que conta com a participação de outros membros do grupo. Nada aqui é rápido ou inteiramente imprevisto.
E, mais ainda, nada aqui é fútil. No discurso dos jornais e do aparato policial e jurídico, Júlia aparece sem dúvida como uma “doudivanas”, uma mulher “leviana”, que estava “acostumada a passar de amante para amante”. Mas estas são as palavras de alguns; os atos de outros revelam outras coisas. Para os estivadores envolvidos, Júlia era uma mulher formosa e cobiçada, por quem valia a pena correr o risco de matar ou morrer. A disputa entre Zé Galego e Paschoal não é estranha nem fútil; ela é compreendida e valorizada, tendo seu significado especial para aquele grupo de pessoas.
Há também versões diferentes sobre a luta em si. O acusado Paschoal conta na delegacia que foi Zé Galego quem atirou primeiro, tentando alvejálo pelas costas. Já as outras testemunhas do flagrante não confirmam esse ponto, afirmando apenas que “viram” o acusado disparando os tiros. Se é verdade que os depoimentos das testemunhas no flagrante policial são uniformemente incri mi nadores do réu, na pretoria as coisas se complicam. Alguns dos depoentes “somem” e não prestam novas declarações, enquanto outros parecem reforçar o argumento de Paschoal de que seu oponente havia disparado primeiro. Estas incoerências levantam suspeitas quanto aos procedimentos seguidos pela polícia na elaboração de flagrantes e, ao mesmo tempo, podem revelar algo sobre a reação dos populares ao sistema policial e judiciário.
Há outros elementos importantes na história. É interessante notar que a luta se passa entre um português e um
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brasileiro e que, apesar de os periódicos e o aparato policial e repressivo se referirem a estes homens em geral como “brutos”, existem alguns matizes relevantes. O Correio da Manhã, por exemplo, constrói a imagem do português Zé Galego como indivíduo “reforçado” e “amigo declarado do trabalho”, isto é, um imigrante destemido que, como tantos outros, veio fazer a vida na nova terra. Já a figura do acusado Paschoal não merece muitos retoques — ele aparece sempre como cínico, provocador e violento.
Muitos outros aspectos poderiam ainda ser ressaltados no episódio — como o fato de que Zé Galego trabalhava para uma firma inglesa, ou os vários detalhes do cotidiano destes personagens que aqui se insinuam, como o movimento aparentemente freqüente entre o local de trabalho e o botequim e viceversa etc. —, mas o que ficou destacado já atende ao nosso objetivo no momento. O intuito neste contexto é reconhecer que o ponto de partida neste trabalho são as contradições, as incoerências, as construções ou “ficções” que constituem efetivamente as fontes analisadas — e muito especialmente os processos criminais estudados. Os fatos de que partimos, portanto, não são como morangos, ma çãs ou peras que se recolhem ao cesto num passeio ameno e ecológico pelo campo. Se os fatos dessa história podem ser comparados construtivamente a alguma coisa, é melhor escolher algo como a neblina e a fumaça que escondem a trilha que precisamos seguir. No entanto, a trilha existe, e cabe seguila.
Convém ser menos figurativo. Para alguns historiadores — ainda hoje em dia! — os fatos da história são coisas sólidas, “duras”, de forma definida e facilmente discerníveis. Se esses fatos não podem ser encontrados assim, então a história como conhecimento não é viável. Ou seja, se não é
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possível descobrir exatamente quais foram os atos efetivos associados à morte de Zé Galego — quem atirou primeiro, se houve realmente o tal jogo a dinheiro, se Júlia era mulher de carne e osso etc. —, então o sábio recua, espavorido. Como podemos escrever história se não é possível descobrir “o que realmente se passou” — apenas para desenterrar a máxima de Ranke?
Este é um problema antigo, e durante algum tempo se pôde até pensar que Febvre, Bloch e Braudel tivessem espantado definitivamente este fantasma. No entanto, basta que a historiografia se coloque novos problemas e, principalmente, passe a explorar novas fontes, para que o temível fantasma retorne. É o que ocorre atualmente no que tange à utilização de processos criminais como fonte para estudos de história social. Ora, é óbvio que é difícil, senão impossível, descobrir “o que realmente se passou” num episódio imbricado como o da morte de Zé Galego. Existem, é claro, pelo menos tantas dúvidas quanto certezas neste contexto. Mas, por favor, de vagar com o ceticismo: há certezas. Por enquanto, não parece haver fundamento razoável neste mun-do para não achar que Zé Galego tenha existido e que tenha virado cadáver num dia de abril de 1907. (Afinal, não só os sonhos, mas também as pedras são parte do mundo conhecido!) Todas as versões dos fatos, obtidas em diferentes fontes, concordam absolutamente neste aspecto e, mais importante que isto, nada justifica a suspeita de que estas sejam verdades “fabricadas” pelos agentes sociais que produziram estas fontes. Não há duvida razoável aqui, pelo menos para os parâmetros deste mundo. E a história é um tipo de conhecimento humano...6
Contudo, este não é o ponto essencial a enfatizar neste momento — e é até um tanto espantoso que tenha sido
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necessário mencionar este aspecto. Como o leitor verá logo adiante, o texto do livro se constrói a partir da recons tituição de muitas dezenas de histórias análogas à de Zé Galego, Paschoal e Júlia, sendo que os processos criminais são a fonte principal para a recuperação destes episódios. O fundamental em cada história abordada não é descobrir “o que realmente se passou” — apesar de, como foi indicado, isto ser possível em alguma medida —, e sim tentar compreender como se produzem e se explicam as diferentes versões que os diversos agentes sociais envolvidos apresentam para cada caso. As diferentes versões produzidas são vistas neste contexto como símbolos ou interpretações cujos significados cabe desvendar.7 Estes significados devem ser buscados nas relações que se repetem sistematicamente entre as várias versões, pois as verdades do historiador são estas relações sistematicamente repetidas. Pretendese mostrar, portanto, que é possível construir explicações válidas do social exatamente a partir das versões conflitantes apresentadas por diversos agentes sociais, ou talvez, ainda mais enfaticamente, só porque existem versões ou leituras divergentes sobre as “coisas” ou “fatos” é que se torna possível ao historiador ter acesso às lutas e contradições inerentes a qualquer realidade social. E, além disso, é na análise de cada versão no contexto de cada processo, e na observação da repetição das relações entre as versões em diversos processos, que podemos desvendar significados e penetrar nas lutas e contradições sociais que se expressam e, na verdade, produzem-se nessas versões ou leituras.
Em conclusão, ler processos criminais não significa partir em busca “do que realmente se passou” porque esta seria uma expectativa inocente — da mesma forma como é pura inocência objetar à utilização dos processos criminais
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porque eles “mentem”. O importante é estar atento às “coisas” que se repetem sistematicamente: versões que se reproduzem muitas vezes, aspectos que ficam mal escondidos, mentiras ou contradições que aparecem com freqüência. Como já ficou sugerido e exemplificado na reconstituição dos eventos associados à vida e à morte de Zé Galego, cada história recuperada através dos jornais e, principalmente, dos processos criminais é uma encruzilhada de muitas lutas: das lutas de classes na sociedade, lutas estas que se revelam na tentativa sistemática da imprensa em estigmatizar os padrões comportamentais dos populares — estes “brutos”!; nas estratégias de controle social dos agentes policiais e judiciários, e também na reação dos despossuídos a estes agen tes — como, por exemplo, na atitude hostil dos populares em relação aos guardascivis, ou na estratégia utilizada pelos estivadores amigos de Paschoal, e muitas vezes repetida pelas testemunhas em outros autos, de “sumirem” ao longo do andamento do processo, ou nos casos numerosos em que acusados e testemunhas denunciam maustratos; das contradições ou conflitos no interior do próprio aparato jurídicorepressivo — como, por exemplo, no procedimento bastante comum dos juízes encarregados do interrogatório na pretoria de checar as condições em que foi elaborado o in quérito na delegacia de polícia; das lutas ou contradições no interior da própria classe trabalhadora — manifestadas, por exemplo, nos casos numerosos de conflitos por riva li dades de raça e nacionalidade; das disputas que estejam tal vez mais estritamente no domínio da antropologia social — como as relações de poder dentro de um casal, de uma família ou de um grupo de vizinhança. Resta ao historiador a tarefa árdua e detalhista de desbravar o seu caminho em direção aos atos e às representações que expres
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sam, ao mesmo tempo que produzem, estas diversas lutas e contradições sociais.
Ficam assim indicadas, portanto, algumas das soluções teóricas e metodológicas encontradas para os problemas relacionados com a utilização de processos criminais como fonte para estudos históricos. Estes problemas e soluções serão obviamente aprofundados em vários momentos do longo texto que se segue. Resta agora situar para o leitor a relevância de Zé Galego e seu mundo no movimento da história e nos debates acadêmicos sobre a classe trabalhadora, o que servirá também para definir de forma mais específica os objetivos do livro.
Zé Galego e seus companheiros na história
Zé Galego e seus companheiros viveram na cidade do Rio de Janeiro numa época durante a qual a capital da jovem República passava por profundas transformações em sua estrutura demográfica, econômica e social. Os personagens do episódio de Zé Galego estão inseridos num momento histórico crucial da transição para a ordem capitalista na cidade do Rio de Janeiro.
A demografia da cidade testemunha transformações importantes em sua estrutura populacional nas últimas décadas do século XIX e na primeira década do século XX. Em 1872, moravam na capital 274.972 pessoas; em 1890, este número cresce para 522.651, atingindo 811.443 em 1906. A densidade populacional era de 247 habitantes por km2 em 1872, passou a 409 em 1890, e a 722 em 1906. Neste último ano, o Rio de Janeiro era a única cidade do Brasil com mais de 500 mil habitantes, e abaixo dela vinham São Paulo e Sal
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vador, com apenas um pouco mais de 200 mil habitantes cada uma.8
Este crescimento populacional acelerado está estreitamente vinculado à migração de escravos libertos da zona rural para a urbana, à intensificação da imigração e a melhorias nas condições de saneamento.9 Os dois primeiros fa tores explicam algumas características peculiares da de mografia da cidade nos últimos anos do Império e nos primórdios do período republicano. O Rio de Janeiro concentrava um grande contingente de negros e mulatos — o maior de todo o Sudeste —, como registra o censo de 1890. Dos 522.651 habitantes da capital registrados em 1890, aproximadamente 180 mil ou 34% foram identificados como negros ou mestiços. Infelizmente, o censo de 1906 — refletindo a ideologia oficial e racista do período, que queria por força “embranquecer” a população do país — não discrimina os habitantes pela cor.10
A intensificação do fluxo imigratório foi responsável pelo aumento contínuo do número de imigrantes na cidade, especialmente os de nacionalidade portuguesa. Em 1890, havia na capital 155.202 habitantes de naturalidade estrangeira, representando 30% da população total. Os portugueses eram grande maioria entre os estrangeiros — 106.461 pessoas recenseadas haviam nascido em Portugal, representando este número cerca de 20% da população total do Rio de Janeiro. O censo de 1890 contém um “quadro ge ral dos habitantes de naturalidade estrangeira em relação ao ano da chegada ao Brasil”, e uma observação atenta deste quadro revela uma grande intensificação do fluxo imi grató rio na década de 1880. Entre os 106.461 portugueses existentes na capital em 1890, por exemplo, cerca de 50% haviam chegado ao país nos dez anos anteriores. Apesar de o censo
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de 1906 não conter um quadro semelhante, sabese que, ao longo da década de 1890, crises de desemprego e estagnação econômica em Portugal contribuíram para a continuação do fluxo migratório de portugueses para a cidade.11
O censo de 1906 não faz distinção entre a naturalidade e a nacionalidade dos imigrantes entrevistados, o que impossibilita uma estimativa mais correta do fluxo imi gratório entre 1890 e 1906. Não havendo, portanto, possibilidade de distinção entre o número de imigrantes que adotaram a nacionalidade brasileira e os que mantiveram a nacionalidade de seu país de origem, tudo o que se sabe é que havia 210.515 indivíduos de nacionalidade estrangeira entre os 811.443 habitantes da cidade em 1906, o que representa 26% da população total da cidade, contra os 24% de 1890. Sabese também que dentre os estrangeiros 133.393 eram portugueses, o que representa 16% da população total da capital, contra os 20% de 1890. Os dados, então, indicam que houve um ligeiro aumento da representatividade dos indivíduos de nacionalidade estrangeira na estrutura populacional da cidade entre 1890 e 1906, apesar de, no caso espe cífico da participação dos indivíduos de nacionalidade portuguesa, ter havido uma diminuição em relação à população total.
Outra característica da população da cidade no período, diretamente ligada à demografia da imigração, é o grande desequilíbrio numérico entre os sexos. Em 1890 havia na cidade 293.657 homens e 228.994 mulheres, representando respectivamente 56% e 44% da população total. Este de sequilíbrio entre os sexos se explica pelo fato de que, dentre os 155.202 imigrantes estrangeiros que habitavam a cidade por ocasião do censo, nada menos do que 109.779, ou 71%, eram do sexo masculino. A situação permanecia praticamen
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te a mesma em 1906, quando foram recenseados 463.453 ho mens e 347.990 mulheres, representando respectiva mente 57% e 43% da população total. Dos 210 .5 15 habitantes de nacionalidade estrangeira recen seados na ocasião, 150.880, ou 71%, eram do sexo masculi no.
Cabe observar, finalmente, que as características do fluxo imigratório levavam também a uma grande concentração de indivíduos na faixa dos 15 a 30 anos de idade. O imigrante, além de homem, era em geral jovem e solteiro, sendo que sua chegada em grande número no pe ríodo aumentava a oferta de mãodeobra e acirrava a competição pela sobrevivência entre os populares. Em 1890, havia no Rio de Janeiro 163.137 habitantes entre os 15 e 30 anos de idade — 31% da população total — e em 1906 havia 254.662 in divíduos nesta faixa de idade — o que representava exatamente os mesmos 31% registrados em 1890.
Essas mudanças na demografia da cidade precisam ser percebidas dentro do quadro mais amplo da constituição do capitalismo no Brasil — e especialmente no Rio de Janeiro — no período compreendido entre o final do século XIX e as duas primeiras décadas do século XX. Zé Galego e seus companheiros viveram no âmago das profundas transformações socioeconômicas associadas à transição de relações so ciais do tipo senhorialescravista para relações sociais do tipo burguêscapitalista na cidade do Rio de Janeiro no período. Ressaltese, porém, que por ocasião da morte de Zé Galego as relações sociais do tipo bur guês capitalista já eram claramente dominantes na sociedade carioca, após o episódio cataclísmico e decisivo da “obra de renovação ma terial, de renovamento moral”12 empreendida na administração do prefeito Pereira Passos.
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Convém aqui apenas assinalar algumas coordenadas ge rais deste processo de imposição de uma ordem capitalista na cidade do Rio de Janeiro de então. Como ponto de refe rên cia mais amplo, sabese que a emancipação dos escravos e o movimento imigratório foram os dois processos que, ao longo de várias décadas, forjaram o homem livre — tra ba lhador expropriado que deveria se submeter ao assa la riamento — ao longo da segunda metade do século XIX. É es te homem livre — leiase, “livre” da propriedade dos meios de produção, isto é, despossuído — que será a figura essencial da formação do mercado capitalista de trabalho assa lariado.
É, portanto, sobre o antagonismo trabalho assalariado versus capital que se erguerá o regime republicano fun dado em 1889, regime este que tinha como seu projeto político mais urgente e importante a transformação do homem li vre — fosse ele o imigrante pobre ou o exescravo — em trabalhador assalariado. Na verdade, o regime republicano não é o detonador deste projeto de transformação do homem livre em trabalhador assalariado, pois tal projeto já se desenha nitidamente desde pelo menos meados do século XIX, quando a supressão definitiva do tráfico de escra vos é acompanhada quase que simultaneamente por leis que regulamentam o acesso à propriedade da terra — leis estas que, na prática, vedam ao homem livre pobre a possibilidade de se tornar um pequeno proprietário.13 Desde a década de 1850, então, quando a questão da transição do trabalho escravo para o trabalho livre já se colocava de forma incontornável para os diversos setores da classe dominante, delineiase uma política clara de condicionar esta transição a um projeto mais amplo de continuação da dominação social dos proprietários dos meios de produção. Conduziase, assim, um proces so de transição que sem dúvida implicaria reajustes no
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interior da classe dominante, mas que não colocaria em questão o objetivo de garantir a progressiva expropriação dos agentes sociais engajados no processo direto de produção.
Este traço continuísta essencial, no entanto, não oculta a complexidade e alcance das transformações sociais que es tavam em andamento. Para realizar efetivamente a subsunção do liberto ou do imigrante pobre ao assalariamento, não basta apenas expropriálo, pois a expropriação, por si só, poderia apenas conduzir estes agentes sociais a alternativas de sobrevivência outras que não aquelas desejadas pelos donos do capital. Delineiase, então, um processo social amplo que, após muita luta e resistência por parte dos populares, levaria à configuração de relações sociais de tipo burguêscapitalista na cidade do Rio de Janeiro já nas primeiras décadas do século XX. A imersão do trabalhador previamente expropriado nas leis do mercado de trabalho assalariado passa por dois movimentos essenciais, simultâneos e não excludentes: a construção de uma nova ideologia do trabalho e a vigilância e repressão contínuas exer cidas pelas autoridades policiais e judiciárias.
A questão da construção de uma nova ideologia do trabalho nas últimas décadas do século XIX é retomada com detalhes no primeiro capítulo, cabendo aqui, portanto, apenas algumas reflexões prévias. No caso específico do Rio de Janeiro, a redefinição do conceito de trabalho tem como ponto de referência fundamental o problema do enqua dramento dos elementos egressos da ordem escravista, isto é, os libertos.14 No período de dominância das relações sociais do tipo senhorialescravista, o problema de garantir a submissão do produtor direto estava resolvido, no universo le gal, pela condição de propriedade privada deste produtor — isto é, o trabalhador escravo — e, na prática cotidiana de vida,
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o controle social do escravo era obtido por um equilíbrio dinâmico entre a aplicação do castigo exemplar e a adoção de medidas paternalistas por parte do senhor — medidas estas que, numa leitura talvez mais plausível, eram reivindicadas e conquistadas pelos escravos.15 Neste contexto, as atividades do produtor direto eram bastante desqualificadas socialmente, na medida em que se associavam diretamente à situação degradante do cativeiro .
Assim, a perspectiva do fim da escravidão colocava para os detentores do capital a questão de garantir a continuação do suprimento de mãodeobra, e tal objetivo só poderia ser alcançado caso houvesse uma mudança radical no conceito de trabalho vigente numa sociedade escravista. Era necessário que o conceito de trabalho ganhasse uma valo ração positiva, articulandose então com conceitos vizinhos como os de “ordem” e “progresso” para impulsionar o país no sentido do “novo”, da “civilização”, isto é, no sentido da constituição de uma ordem social burguesa.16 O conceito de trabalho se erige, então, no princípio regulador da sociedade, conceito este que aos poucos se reveste de uma roupagem dignificadora e civilizadora, valor supremo de uma socie dade que se queria ver assentada na expropria ção absoluta do trabalhador direto, agente social este que, assim destituído, de veria prazerosamente mercantilizar sua força de traba lho — o único bem que lhe restava, ou que, no caso do liberto, lhe havia sido “concedido” por obra e graça da lei de 13 de maio de 1888. Era este princípio supremo, o trabalho, que iria, até mesmo, despertar o nosso sentimento de “nacionalidade”, superar a “preguiça” e a “rotina” associadas a uma sociedade colonial e abrir desta forma as portas do país à livre entrada dos costumes civilizados — e do capital — das nações européias mais avançadas. O cronista
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Gil mostra bem a articulação existente entre a noção de trabalho e o projeto dos donos do poder e do capital de fazer da jovem República um prolongamento tropical da civilização a da economia européias; o título da crônica é “Renascimento” e se trata de uma apologia à administração do presidente Rodrigues Alves — período áureo de remodelação da cidade do Rio de Janeiro:
Hoje reconhecemos que só parecíamos pobres porque empregávamos mal uma extraordinária riqueza e que a presunção de fracos vi nha somente porque nos falhava a noção relativa das fraquezas e a audácia consciente do próprio vigor. O feito do atual governo esteve justamente em evidenciar por atos esta verdade. Definimos a nossa individualidade internacional; fizemos do crédito um acionador do trabalho; tornamos o trabalho um transformador de belezas mal tra jadas, um empresário de conforto efetivo, um pregoeiro de capaci dade administrativa.17
Este primeiro movimento para transformar o agente social expropriado em trabalhador assalariado tem como alvo, então, a “mente” ou o “espírito” dos homens livres em questão.18 Desejavase, na verdade, que os homens livres in ternalizassem a noção de que o trabalho era um bem, o va lor supremo regulador do pacto social. Notese, ainda, que este movimento de controle de espíritos e mentes lançava suas garras muito além da disciplinarização do tempo e do espaço estritamente do trabalho — isto é, da produção —, pois a definição do homem de bem, do homem trabalhador, passa também pelo seu enquadramento em padrões de conduta familiar e social compatíveis com sua situação de indivíduo integrado à sociedade, à nação.
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Este primeiro movimento, por si só, não era suficiente para garantir a subsunção do trabalho ao capital. A imposição de uma ordem social capitalista na cidade do Rio de Janeiro no período se fez também, na prática, “pela transformação da rua em verdadeiro espaço de guerra”,19 na expressão feliz de Maria Alice R. de Carvalho. Ou seja, a vigilância “espiritual” do agente social expropriado que deveria se tornar trabalhador se completava, no cotidiano, pelo exercício da vigilância policial.20 Este segundo movimento para submeter o homem livre pobre à sociedade ordenada pelo trabalho tem como objeto de ação direta o corpo dos despossuídos, pois estes, ao serem estigmatizados pelas autoridades policiais e judiciárias como “vadios”, “promíscuos” ou “desordeiros”, podem se ver arremessados, repentinamente, ao xilindró, onde seriam supostamente “corrigidos” — vale dizer, transformados em trabalhadores, por mais inverossímil que isto possa parecer.
Convém agora tentar esclarecer o leitor sobre os nos sos objetivos mais específicos. O processo de expropriação do homem livre e o esforço de enquadrálo na ordem social capitalista emergente, processo este que vimos de delinear nas páginas anteriores, equivalem, historicamente, à formação da classe trabalhadora na cidade do Rio de Janeiro no meio século compreendido aproximadamente entre 1870 — início do período terminante de crise do escra vismo — e a conjuntura 19171920 — marco fundamental da história do movimento operário na Primeira República.21 Sendo assim, o objeto principal de investigação neste trabalho é a questão da configuração, nas con dições específicas da sociedade carioca no período estudado, de práticas ou mecanismos de controle social da classe trabalhadora típicos de uma socie
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dade capitalista. Ressaltese, no entanto, que a reconstituição das práticas de contro le social típicas de uma sociedade capitalista neste contexto específico privilegia a experiência ou a prática de vida da classe trabalhadora. Isto significa trazer a questão do controle social para as práticas cotidianas dos agentes sociais des possuídos, e tentar perceber a sua própria leitura de tal fato essencial da vida numa sociedade capitalista. Por outro lado, isto não significa desprezar as práticas discursivas da classe dominante enquanto elementos constituintes fundamentais do objeto a ser estudado — a configuração do controle social da classe trabalhadora —, mas sim que se fez aqui a opção de cercar este objeto por outro ângulo, deslocando assim a questão da prática discursiva da classe dominante para a condição de referencial importante na análise, mas não como seu âmago ou enfoque principal.
Notese, ainda, que o problema do controle social da classe trabalhadora compreende todas as esferas da vida, todas as situações possíveis do cotidiano, pois este controle se exerce desde a tentativa de disciplinarização rígida do tempo e do espaço na situação de trabalho até o problema da normatização das relações pessoais ou familiares dos trabalhadores, passando, também, pela vigilância contínua do botequim e da rua, espaços consagrados ao lazer popular. É neste sentido específico, portanto, que um estudo que procura desvendar o sentido do controle social na vivência da classe trabalhadora trata, forçosamente, da reconstituição de aspectos da vida cotidiana destes agentes sociais.
A opção por abordar a questão do controle social do ponto de vista da experiência cotidiana da classe trabalhadora procura ressaltar o fato de que as relações de vida dos agentes sociais expropriados são sempre relações de luta, ou
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seja, o tempo e o espaço da luta no processo histórico não se restringem aos movimentos reivindicatórios organizados dos dominados — como os diversos momentos do movimento operário, por exemplo. Lima Barreto, com a perspicácia e a consciência de quem tinha a coragem de ser “maldito” na cidade do Rio de Janeiro que se “civilizava”, isto é, que estava em processo de constituição plena da ordem capitalista, exprime bem a relação indissolúvel entre vida e luta na experiência da classe trabalhadora:
Admi ravame que essa gente pudesse viver, lutando contra a fome, contra a moléstia e contra a civilização; que tivesse energia para viver cercada de tantos males, de tantas privações e dificuldades. Não sei que estranha tenacidade a leva a viver e porque essa tenacidade é tanto mais forte quanto mais humilde e miserável.22
Finalmente, apenas uma nota complementar quanto às fontes e à organização do texto. Como já foi indicado, os processos criminais de homicídio ou tentativa de homicídio foram o principal tipo de fonte utilizada neste trabalho para a reconstituição de aspectos essenciais do mundo de Zé Galego e seus companheiros. Foram analisados 140 processos criminais referentes à primeira década do século XX. Cada dossiê é, na verdade, uma coleção de documentos sobre um determinado caso de homicídio ou tentativa de homicídio e contém em geral entre 200 e 250 páginas inteiramente manuscritas. A opção por limitar a exploração dos processos apenas à primeira década do século XX devese a considerações ao mesmo tempo teóricas e práticas: por um lado, e como ficará claro ao longo do texto, a primeira década do século é o período terminante e decisivo do longo processo estrutural de implantação de uma ordem burguesa na cidade
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do Rio de Janeiro; por outro lado, esta opção permitiu a análise da totalidade dos processos de homicídio ou tentativa de homicídio referentes ao 2o Cartório do Tribunal do Júri que se encontram no Arquivo Nacional. Estes processos representam, talvez, uma quarta parte do total de processos de homicídio que se abriram efetivamente na cidade no período, mas o caráter maciço das informações constantes da amostra analisada tornou possível a consecução dos objetivos centrais da pesquisa.
A observação atenta da própria produção social dos processos criminais analisados fornece um primeiro parâmetro de reflexão para a questão do controle social numa sociedade capitalista. Os processos revelam de forma notória a preocupação dos agentes policiais e jurídicos em esquadrinhar, conhecer, dissecar mesmo, os as pectos mais recônditos da vida cotidiana. Percebese, então, a intenção de controlar, de vigiar, de impor padrões e regras preestabelecidos a todas as esferas da vida. Mas a intenção de enquadrar, de silenciar, acaba revelando também a resistência, a nãoconformidade, a luta: neste sentido, a leitura de cada processo é sempre uma baforada de ar fresco, de vida, de surpresa, baforada esta que pode vir em forma de carta de amor, de xingamento, de ironia, ou, menos poeticamente, de violência policial.
O livro está dividido em três longos capítulos. A organi zação do texto está informada pelo objetivo de reconstituir movimentos importantes de Zé Galego, Pas choal, Júlia e tan tos outros anônimos que são os protagonistas desta história: o primeiro capítulo trata das questões mais diretamente ligadas à sobrevivência material — o trabalho e a habitação; o segundo aborda as relações pessoais e familiares dos mem bros da classe trabalhadora; o terceiro trata
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do mundo do la zer popular, das ruas e dos botequins e de sua contrapartida aparentemente obrigatória — a repressão policial.
A praxe acadêmica talvez faça o leitor estranhar que te mas bastante gerais — como a construção de uma nova ideo logia do trabalho, ou uma maior explicitação do quadro teórico que fundamenta a análise, por exemplo — não apareçam no texto na forma de outro longo capítulo ini cial, que lançaria, assim, as coordenadas gerais da análise mais vertical, empírica e microhistórica que constitui, na verdade, a maior parte do texto. Optouse por não escrever tal capítulo, fazendose apenas a indicação sucinta de alguns problemas nesta intro dução, por dois motivos principais: primeiro, a tentativa de forçar uma narrativa que traga em seu bojo a unidade orgânica entre pesquisa em pírica e problemas teóricos, evitandose a divisão artificial entre teoria e prática que parece ser um vício indomável da produção acadêmica em nossos dias; se gundo, porque a presente organização do texto espelha mais fielmente a forma como o problema foi efetivamente pensado durante estes quatro anos de trabalho, procurandose dar as sim, ao leitor, a possibilidade de “descobrir” o objeto e a forma como ele foi pensado ao longo da leitura. Ao leitor caberá julgar a utilidade ou não de tal procedimento.
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noTas
1 Luiz Edmundo, O Rio de Janeiro do meu tempo. Rio de Janeiro: Conquista, 1957, vol. 1, p. 40.
2 O relato que se segue foi baseado no processocrime em que foi réu Antônio Paschoal de Faria, no 2.069, maço 995, galeria b (1907), Arquivo Nacional, e nos noticiários do Jornal do Commercio e do Correio da Manhã do dia 19 de abril de 1907. Ao longo de todo o texto, os documentos são transcritos respeitandose sempre a pontuação e a gramática originais, mas atualizandose a ortografia das palavras.
3 Barbosa Lima Sobrinho, “A imprensa”, in vários autores, Brasil 1900-1910. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1980, p. 138.
4 Lima Barreto, Recordações do escrivão Isaías Caminha. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, s.d., p. 198.
5 Idem, op. cit., p. 201.6 Para uma apresentação polêmica e elaborada do pressuposto filosófico
decididamente materialista da análise histórica, ver E. P. Thompson, A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1981, especialmente o cap. 3, sugestivamente intitulado “Mesa, você existe?”. As observações que se seguem também são, de certa forma, inspiradas neste livro de Thompson, já que procuram expressar nossa estranheza diante de posturas teóricas que cavam um abismo profundo entre o chamado “mundo real” e as chamadas “representações” ou “ideologias”.
7 Este argumento tem muito a ver com as formulações de Clifford Geertz a respeito da “interpretação das culturas”. Ver Clifford Geertz, A in-
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terpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978, especialmente o cap. 1 .
8 Eulalia Maria Lahmeyer Lobo, História do Rio de Janeiro (do capital co-mercial ao capital industrial e financeiro). Rio de Janeiro: ibmec, 1978, vol. 2, p. 469.
9 Ibidem.10 Recenseamento geral da República dos Estados Unidos do Brasil, ano de
1890, e Recenseamento do Rio de Janeiro (Distrito Federal), realizado em 1906. Daí por diante, todos os dados deste pequeno esboço de demografia histórica foram obtidos nesses dois recenseamentos, a não ser onde outra fonte for indicada.
11 Eulalia Maria Lahmeyer Lobo, op. cit., p. 509. Para um panorama geral da imigração portuguesa para o Brasil no período, ver Miriam Halpern Pereira, A política portuguesa de emigração (1850 a 1930). Lisboa: A Regra do Jogo Edições Ltda., 1981.
12 Gil, “Renascimento”, in Antonio Dimas, Tempos eufóricos (análise da revista Kosmos: 1904-1909). São Paulo: Ática, 1983, p. 297.
13 Ver Emilia Viotti da Costa, “Política de terras no Brasil e nos Estados Unidos”, in Da monarquia à República: momentos decisivos. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1979.
14 O conceito de trabalho na sociedade brasileira na passagem do século XIX ao século XX: a formação do mercado de trabalho na cidade do Rio de Janeiro, projeto de pesquisa do Departamento de História da PUC–RJ, 1981.
15 Sobre a questão do controle social do escravo, ver, para uma abordagem que privilegia a questão da violência física, do castigo, Emilia Viotti da Costa, Da senzala à colônia. São Paulo: difel, 1966; e F. Henrique Cardoso, Capitalismo e escravidão no Brasil meridional. São Paulo: difel, 1962. Para uma abordagem que procura retomar a questão do paternalismo, ver Katia Q. Mattoso, Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1982.
16 Sobre a articulação do conceito de trabalho com os de “ordem”, “progresso” e “civilização”, ver Maria Alice Rezende de Carvalho, Cidade & fábrica: a construção do mundo do trabalho na sociedade brasileira. Dissertação de mestrado, unicamP. Campinas, jul., 1983.
17 Gil, “Renascimento”, in Antonio Dimas, op. cit., pp. 29697.
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18 E. P. Thompson e M. Foucault têm mostrado em seus trabalhos uma preocupação constante em destacar este aspecto fundamental do controle social em sociedades capitalistas; ver, por exemplo, E. P. Thompson, Tradición, revuelta y consciencia de clase. Barcelona: Crítica, 1969; e Michel Foucault, Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1977.
19 Maria Alice Rezende de Carvalho, op. cit., p. 65.20 Sobre a importância da ação policial no controle social da classe traba
lhadora, ver Boris Fausto, Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924). São Paulo: Brasiliense, 1984.
21 Ver idem, Trabalho urbano e conflito social (1890-1920). Rio de Janeiro, São Paulo: difel, 1977.
22 Lima Barreto, op. cit., p. 215.
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sobrevivendo...
Inquietações teóricas e objetivos
Este primeiro capítulo aborda as rixas e conflitos envolvendo os membros da classe trabalhadora do Rio de Janeiro na primeira década do século XX que estejam diretamente associados aos problemas de reprodução da vida material desses indivíduos. Sendo assim, focalizamse prioritariamente as tensões e conflitos que emergem de situações no trabalho e de questões ligadas ao problema da habi tação. Nesta tentativa de reconstituição de alguns aspectos essenciais dessas tensões e conflitos cotidianos, des tacase a importância das rivalidades étnicas e nacionais en quanto expressões das tensões prove nientes da concorrência da força de trabalho — em condições bastante desfavoráveis — num mercado de trabalho capita lista em formação.
Parece haver um certo consenso entre os historiadores de que as rivalidades e conflitos raciais e nacionais se constituíram num dos principais elementos limitadores da efi cá cia do movimento operário brasileiro na Primeira República. Sheldon Maram, por exemplo, escreve que “os conflitos en
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tre brasileiros e imigrantes, e entre os próprios grupos etnicamente divididos, foram uma das principais limitações do movimento operário brasileiro”.1 Se isto foi verdade, contudo, provavelmente refletia uma realidade experimentada pela classe trabalhadora em seu conjunto, na prática cotidiana da vida. Ou seja, seria necessário que estas divisões nacionais e raciais fizessem parte da visão de mundo da classe trabalhadora, constituindose num aspecto impor tante da ideologia popular. Refletindo sobre a experiência histórica das classes pobres no Rio de Janeiro nas décadas anteriores ao advento do movimento operário na República Ve lha, parece verdadeiro que as divisões nacionais e raciais fos sem elementos profundamente arraigados na mentalidade popular. Afinal, na composição étnica da classe trabalhadora do Distrito Federal predominavam imigrantes — especialmente portugueses — e brasileiros nãobrancos — a cidade apresentava a maior concentração urbana de negros e mulatos no Sudeste.2 Isto significa dizer que duas das principais clivagens da sociedade colonial e depois imperial conti nuavam a ser parte integrante da experiência de vida popular: refirome às contradições se nhorpatrão branco ver sus escravoempregado negro, e colonizadorexplorador portu guês versus colo ni za do ex plorado brasileiro.3 No nível das mentalidades e atitudes populares, isto significava que muitas vezes a igualdade de situação de classe entre portugueses e brasileiros pobres ficava obscurecida pelo ressentimento mútuo: o imigrante trazia de sua terra natal — e refor çava ainda em terras tropicais — sua concepção de ser racial e culturalmente superior aos brasileiros pobres de cor; e es tes, por outro lado, para quem a escravidão era ainda um passado bastante recente, ressentiamse dos brancos em geral e, mais ainda, dos imigrantes, que vinham chegando ao Rio
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de Janeiro em grandes levas desde os últimos anos da Monarquia, abo canhando boa parte da fatia de empregos disponíveis na cidade.
A constatação, relativamente óbvia, de que as divisões nacionais e raciais eram um elemento importante na mentalidade da classe trabalhadora carioca não nos leva, por si só, muito longe na análise. Se esses elementos constituem traços continuístas importantes no processo histórico da cidade do Rio de Janeiro ao longo do século XIX e da Primeira República, é não menos relevante atentar para o fato de que essas rivalidades nacionais e raciais são rea tivadas e até reelaboradas pela classe trabalhadora dentro do contexto mais amplo da transição para a ordem burguesa na cidade no período pósAbolição. A reconstrução do preconceito racial e nacional neste contexto passa, na verdade, tanto por uma série de im posições propaladas de cima para baixo pelas classes domi nantes quanto pelos ajustamentos dos po pulares às condições concretas da luta pela sobrevivência. Boris Fausto, por exem plo, pensa que um dos dados essenciais dessa luta pela sobre vivência eram as condições de oferta da força de trabalho. A cidade do Rio de Janeiro, na época, reunia contingentes de po pulação em proporção superior às limitadas necessidades do setor industrial e de serviços. Essa população pobre, continua mente engrossada por migrantes internos e imigrantes estran geiros, lutava na prática com uma dificuldade ingente em ar rumar em prego e tinha de se sujeitar a receber salários baixos que de terioravam ainda mais suas condições de existência. Eulalia M. L. Lobo, por exemplo, afirma que “a abo lição da escravatura liberou mãodeobra do campo para a ci dade, for mandose um mercado de trabalho com superabundância de oferta, na medida em que o afluxo de imigrantes veio reforçar o contingente dos
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libertos e a melhoria das con dições de higiene, reduzir a mortalidade”.4 Para com plicar ainda mais o quadro, essa abundante oferta de força de tra balho, aumentando a competição entre os trabalhadores, difi cultava a organização das lutas reivin di catórias.5
A complexidade do período estudado salta aos olhos e desafia tenazmente as tímidas tentativas de generalização es boçadas acima. A observação, correta em seu sentido mais geral, de que eram árduas as condições de competição da força de trabalho no mercado capitalista em formação na cidade le vanta inúmeros problemas, dos quais apenas alguns serão abordados neste trabalho. Seria importante, por exemplo, esclarecer que “mercado de trabalho” é este, pois neste momento seria ilusório pensar que toda a situação se resume ao velho esquema do trabalhador despossuído, dono apenas de sua capacidade de trabalho, que se encontra então no tal “mercado” com um capitalista altivo e carrancudo que, detentor dos meios de produção, acenalhe com a possibilidade de um emprego. Esse esquema não dá conta de milhares de indivíduos que, não conseguindo ou não desejando se tornar trabalhadores assalariados, sobreviviam sem se integrarem ao tal “mercado”, mantendose como ambulantes, vendedores de jogo de bicho, jogadores profissionais, mendigos, biscateiros etc.
Em síntese, o problema das rivalidades nacionais e raciais entre os membros da classe trabalhadora remete tanto a aspectos inerentes à mentalidade popular, já há muito internalizados por brasileiros pobres e imigrantes, quanto à conjuntura específica de transição para a ordem capitalista na cidade do Rio de Janeiro da época. Este trabalho focaliza principalmente o segundo aspecto do problema. Neste sentido, é importante perceber os inúmeros conflitos indivi duais
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em situações de trabalho dentro do contexto mais amplo da competição entre populares pela viabilização de sua sobrevivência em condições extremamente desfavorá veis, sendo os conflitos nacionais e raciais a expressão mais comum dessas tensões provenientes da luta pela sobrevivência.
O restante do capítulo está dividido em cinco partes principais. A primeira parte é uma tentativa de reconstrução do esforço das classes dominantes em elaborar uma nova ética de trabalho no período pósAbolição. Esta reconstrução é necessária na medida em que, no processo de elaboração dessa nova ética de trabalho, as classes dominantes revelam aspectos de sua visão de mundo que tendem a justificar em certa medida as tensões e rivalidades nacionais e raciais entre os membros da classe trabalhadora. A segunda parte focaliza os conflitos surgidos entre companheiros de trabalho, procurando ressaltar o papel da competição entre os trabalhadores e das rivalidades nacionais e raciais nesse contexto. A terceira parte procura reconstruir parcial mente o paternalismo e os elementos de tensão contidos na relação patrão–empregado. A quarta parte trata de outro aspecto fundamental da luta pela sobrevivência dos membros das classes populares: o problema da habitação. Os inúmeros conflitos entre senhorio e inquilino reativam velhas concepções populares sobre o português colonizador, explorador e avarento, e o brasileiro colonizado e explorado. Finalmente, tomaremos um segmento específico da classe trabalhadora, os trabalhadores portuários ou estivadores, e tentaremos observar como aspectos concretos da experiência individual de vida dos membros das classes populares, como a competição pela sobrevivência e as rivalidades nacionais e raciais, impõem limites bastante reais à eficácia das lutas reivindicatórias.
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Trabalhadores e vadios; imigrantes e libertos: a construção dos mitos e a patologia social
Já dizia Cícero que a escravidão não se podia manter, quando o senhor não dispunha do escravo como do seu boi, do seu arado, do seu carro. Era preciso que dele pudesse usar e abusar.Desde que o escravo adquiria um direito, o senhor perdia na autoridade, e a escravidão estava ameaçada de extinção.V. Exa. conhece a história desta instituição, se tal nome merece o fato da escravidão. Desde o começo, não se reconheceu no escravo uma besta, mas um homem; tinha direitos, que impunham ao senhor deve res.Esses direitos cresceram, alargaramse, foram mais e mais atendidos pelo legislador, mandados respeitar .Um dia, o instrumento, o boi, o arado, pelo sopro do legislador levantouse; tomou as formas de homem; pôsse em pé, e disse ao poder público, armado desde a cabeça aos pés: — Eu sou livre; fostes vós que re conhecestes o meu direito; eu sou livre; não me rendo, prefiro a morte (sensação).6
As palavras acima foram pronunciadas diante dos parlamentares do imperador pelo ministro da Justiça, Ferreira Vianna, no dia 20 de julho de 1888. O tom patético do discurso e a sensação que parece ter causado indicam bem o paroxismo das emoções num momento percebido pelos deputados como de extrema gravidade para o país. As palavras de Ferreira Vianna, na verdade, historiam a seu modo o processo segundo o qual o mundo do trabalho tornouse um problema para as elites brasileiras a partir de meados do século XIX, quando o fim do tráfico negreiro obrigou os barões do Império a pensar o fim da propriedade escrava.
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Com efeito, a transição do trabalho escravo para o trabalho livre no Brasil do século XIX colocou as classes dominantes da época diante da necessidade premente de realizar reajustes no seu universo mental, de adequar a sua visão de mundo às transformações socioeconômicas que estavam em andamento. No mundo de outrora, ordenado pela presença do escravo, a questão do trabalho era escassamente problematizada na esfera das mentalidades: o trabalhador escravo era propriedade do senhor e, sendo assim, o mundo do trabalho estava obviamente circunscrito à esfera mais ampla do mundo da ordem, que consagrava o princípio da propriedade.7
O processo que culminou no 13 de maio, no entanto, rea lizou finalmente a separação entre o trabalhador e sua força de trabalho. Com a libertação dos escravos, as classes possuidoras não mais poderiam garantir o suprimento de for ça de trabalho aos seus empreendimentos econômicos por meio da propriedade de trabalhadores escravos. O pro ble ma que se coloca, então, é de que o liberto, dono de sua força de trabalho, tornese um trabalhador, isto é, disponhase vender sua capacidade de trabalho ao capitalista empreen dedor. Por um lado, esse problema tinha seu aspecto prático que se traduzia na tentativa de propor medidas que obrigassem o indivíduo ao trabalho. Por outro lado, era preciso tam bém um esforço de revisão de conceitos, de constru ção de valores que iriam constituir uma nova ética do traba lho. Como já foi sugerido na introdução, o conceito de traba lho precisava se despir de seu caráter aviltante e degradador característico de uma sociedade escravista, assumindo uma roupagem nova que lhe desse um valor positivo, tornandose então o elemento fundamental para a implantação de uma ordem burguesa no Brasil.
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Nas páginas seguintes, abordaremos alguns aspectos das transformações no universo mental das classes dominantes como contrapartida à transição do trabalho escravo para o trabalho livre, a partir da análise dos debates sobre a repressão da ociosidade na Câmara dos Deputados em 1888. Neste debate, o liberto, o “trabalhador nacional”, parece ser a preocupação exclusiva dos parlamentares, mas podemos clara mente acompanhar o esforço mais amplo de elaboração, de construção de uma nova ética do trabalho. O imigrante é a grande presença ausente nesses debates: raramente os debatedores irão se referir a ele explicitamente, mas só este fato, num momento em que a ociosidade está em foco, já é elucidativo do papel que os nossos deputados reservavam para os imigrantes neste processo de construção de uma nova ética do trabalho.
O projeto de repressão à ociosidade de 1888 — elaborado pelo ministro Ferreira Vianna — começou a ser apreciado na Câmara dos Deputados em julho, e sua discussão foi bastante marcada pelos ânimos ainda exaltados pelas repercussões da lei de 13 de maio. A utilidade do projeto foi votada quase que unanimemente pela Câmara, sendo que muitos deputados o viam como “de salvação pública para o Império do Brasil”.
Havia um claro consenso entre os deputados de que a Abolição trazia consigo os contornos do fantasma da desordem. Na mesma época em que o projeto sobre a ocio sidade tramitava na Câmara, um grupo de deputados, liderado por Lacerda Werneck e se identificando claramente com os interesses das “classes dos lavradores”, dirigia uma interpelação ao ministro da Justiça que visava exigir medidas do governo para garantir a defesa da propriedade e da segurança indi
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vidual dos cidadãos, já que estas, de acordo com os interpelan tes, estavam seriamente ameaçadas pelas “ordas” de libertos que supostamente vagavam pelas estradas “a furtar e rapinar”.8
Dramatizando ao máximo a situação, os deputados falam da solidão e do deserto a que ficaram reduzidas as fazendas de Vassouras, onde as “pacíficas e laboriosas populações locais” — isto é, os proprietários e suas famílias — eram agora obri gadas a trabalhar dia e noite para “salvarem alguns caroços de feijão” que garantissem sua alimentação. Mais do que isto, a lei de 13 de maio era percebida como uma amea ça à ordem porque nivelava todas as classes de um dia para o outro, pro vocando um deslocamento de profissões e de hábitos de conseqüências imprevisíveis. Para concluir, os interpelantes citavam diversos casos de crimes que teriam sido cometidos por libertos nos dias anteriores, provando assim o caos social que reinava especialmente nas províncias do Rio de Janeiro e de Minas Gerais. Como paliativo imediato para o problema, su geriase que os libertos fossem recrutados em massa para o exército.
Em sua resposta, Ferreira Vianna mostra claramente os exageros das afirmações dos interpelantes e diz que uma das respostas do governo aos temores gerais de comprometimento da ordem era o projeto de repressão à ociosidade que estava em discussão na Câmara. O problema, portanto, é de ênfase e de decidir que medidas práticas tomar; contudo, havia, sem dúvida, o consenso de que a ordem estava ameaçada. Na ver dade, um dos pontos principais de toda essa discussão por ocasião da interpelação, assim como do projeto sobre a ocio sidade propriamente, é o consenso que se estabelece quanto ao suposto caráter do liberto. Em primeiro lugar, os libertos eram em geral pensados como indiví
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duos que estavam despreparados para a vida em sociedade. A escravidão não havia dado a esses homens nenhuma noção de justiça, de respeito à propriedade, de liberdade. A liberdade do cativeiro não significava para o liberto a responsabilidade pelos seus atos, e sim a possibilidade de se tornar ocioso, furtar, roubar etc. Os libertos traziam em si os vícios de seu estado anterior, não tinham a ambição de fazer o bem e de obter um trabalho honesto e não eram “civilizados” o suficiente para se tornarem cida dãos plenos em poucos meses. Era necessário, portanto, evi tar que os libertos comprometessem a ordem, e para isso ha via de se reprimir os seus vícios. Esses vícios seriam venci dos através da educação, e educar libertos significava criar o hábito do trabalho através da repressão, da obriga torie dade. Este era exatamente o objetivo do projeto de Ferreira Vianna, como bem resume o deputado MacDowell:
Votei pela utilidade do projeto, convencido, como todos estamos, de que hoje, mais do que nunca, é preciso reprimir a vadiação, a mendicidade desnecessária, etc. [...] Há o dever imperioso por parte do Estado de reprimir e opor um dique a todos os vícios que o liberto trouxe de seu antigo estado, e que não podia o efeito miraculoso de uma lei fazer desaparecer, porque a lei não pode de um momento para outro transformar o que está na natureza.[...] a lei produzirá os desejados efeitos com pelin dose a população ociosa ao trabalho honesto, mino randose o efeito desastroso que fatalmente se prevê como conseqüência da libertação de uma massa enorme de escravos, atirada no meio da sociedade civilizada, escravos sem estímulos para o bem, sem educação, sem os sentimentos nobres que só pode adquirir uma população livre e finalmente será regulada a educação dos menores, que se tornarão instrumentos do trabalho inteligente,
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cidadãos morigerados, [...] servindo de exemplo e edificação aos outros da mesma classe social.9
O problema com que se defrontavam os parlamentares era, em síntese, o de transformar o liberto em trabalhador. Tomavase como ponto de partida, então, o suposto de que todos os libertos eram ociosos, o que visava garantir, de início, o direito da sociedade civilizada em emen dálos. Mas a trans formação do liberto em trabalhador não podia se dar apenas através da repressão, da violência explícita. Afinal, não se desejava um retorno a alguma forma disfarçada da hedionda instituição da escravidão. Que fazer, então? Bem, era necessário educar os libertos. Educar significa incutir no indivíduo “essas grandes qualidades que tornam um cidadão útil e o fazem compreender os seus deveres e os seus direitos”.10 Ora, que grandes qualidades são essas que fazem de um indivíduo um cidadão “útil”, de “caráter”? O amor e o respeito reli gioso à propriedade são, sem dúvida, qualidades fundamentais do bom cidadão. Mas esse não é o ponto essencial a enfa tizar neste contexto. Estamos pensando nos libertos, e convém acenar apenas muito remotamente a esses indivíduos com a possibilidade de se tornarem proprietários. Para o liberto, tornarse bom cidadão deve significar, acima de tudo, amar o trabalho em si, independentemente das vantagens materiais que possam daí advir. Educar o liberto significa transmitir lhe a noção de que o trabalho é o valor supremo da vida em sociedade; o trabalho é o elemento característico da vida “civi lizada”. Mas como pensar no trabalho como algo positivo, nobilitador, em uma sociedade que foi escravista durante mais de três séculos? Como “convencer” o liberto a ser trabalhador, logo ele, recémadvindo da escravidão? Mais do que
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isso, como justificar as medidas repressivas visando garantir a organização do trabalho?
Os debates sobre o projeto de repressão à ociosidade mostram claramente a tentativa dos parlamentares de precisar o conceito de trabalho e seu significado no mundo em que viviam. Procuravase uma justificativa ideológica para o trabalho, isto é, razões que pudessem justificar a sua obrigatoriedade para as classes populares. A construção do conceito de trabalho passa por diversas etapas. A noção primeira e funda mental é a de que o trabalho é o elemento orde nador da sociedade, a sua “lei suprema”.11 O cidadão recebe tudo da sociedade, pois esta lhe garante a segurança, os di reitos individuais, a liberdade, a honra etc. O cidadão, portanto, está permanentemente endividado com a sociedade e deve retribuir o que dela recebe com o seu trabalho. O trecho abaixo, de um discurso do deputado Ro drigues Peixoto, ilustra bem esse ponto:
Em todos os tempos, o trabalho foi considerado o primeiro elemento de uma sociedade bem organi zada. Cada membro da comunidade deve a esta uma parte do seu tempo e do seu esforço no interesse geral, cuja inobservância apresenta gravidade, o que autoriza de certo modo a intervenção do Estado.[...] é preciso que tenham todos uma ocupação porque V. Exa. sabe que, desde que o indivíduo respira, como que contrai uma dívida com a sociedade, a qual só pagará com o trabalho.12
Outro ponto fundamental é a relação que se estabelece entre trabalho e moralidade: quanto mais dedicação e abnegação o indivíduo tiver em seu trabalho, maiores serão os seus atributos morais. Uma das justificativas ideológicas fundamentais para o projeto era a intenção de moralizar o
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indivíduo pelo trabalho. Era preciso incutir nos cidadãos o hábito do trabalho, pois essa era a única forma de regenerar a sociedade, protegendoa dos efeitos nocivos trazidos por centenas de milhares de libertos — indiví duos sem nenhum senso de moralidade. Dentro deste espírito, o projeto prevê que os ociosos serão conduzidos a colô nias de trabalho, com preferência para atividades agrícolas, onde serão internados com o objetivo de adquirir o hábito do trabalho. Essa retórica moralista mal acoberta o obje tivo dos legisladores: a pena para o ocioso devia ser bastante longa (de um a três anos para o reincidente), pois o que se desejava não era a punição pura e simples do indivíduo, mas sim sua reforma moral — e este objetivo não podia ser alcançado em curto prazo. A severidade das penas, portanto, explicase pelo seu caráter educativo, de regeneração moral do condenado, como expressa o relator da comissão parlamentar encarregada de dar um parecer inicial sobre o projeto:
Desde que o objetivo é a correção moral, evidentemente eram insuficientes, para se alcançar esse objetivo, as disposições penais do nosso Código Cri minal, que estabelecem a prisão de 9 a 24 dias; era necessário corrigir um ato inveterado, por conseguinte, fazêlo substituir por outro, regenerando, fazendo adquirir o amor ao trabalho, pela prática do trabalho. Ora, um hábito desses não se adquire em pouco tempo...13
O projeto previa ainda que uma parte do dinheiro obtido por meio do trabalho dos condenados nos estabelecimentos correcionais seria depositado em um fundo e cada condenado receberia um certo pecúlio por ocasião de sua saída da prisão. O objetivo aqui era também educacional, pois vi sava formar no indivíduo a ambição de possuir alguma
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coisa através de uma atividade honrada. Tomese o cuidado de não dar a este “possuir” a ênfase na esperança de ad quirir propriedade — o que se pensa antes é incutir no indivíduo o hábito de ser econômico e de viver mais confor tavelmente, pois esses hábitos o estimulariam para o trabalho.14
De qualquer forma, o respeito religioso à propriedade é consagrado no projeto no item das circunstâncias agravantes na prática da vadiagem: um dos agravantes da pena era quando o indivíduo possuidor de certa fortuna acaba por esbanjála, ficando na miséria e sem condições de sustentar a família. O debate deste item mostra o paroxismo a que pode chegar esse respeito devido à propriedade, como, por exemplo, quando um dos deputados não concorda com o fato de um indivíduo que esbanja sua fortuna ter a pena agravada, já que o tal indivíduo precisaria era de tratamento médico, pois só poderia estar louco! Diz o deputado:
Ora, S. Exa. sabe que quase sempre a prodigalidade é inerente a uma enfermidade, porque ninguém, na integridade das suas faculdades, porá fora aquilo que possui.Sabe ainda V. Exa. que todos nós temos amor aos nossos bens, ao fruto do nosso trabalho ou ao que de outrem herdamos. Por conseqüência, um indivíduo que esbanja aquilo que possui, que perde o amor à propriedade, não é simplesmente um viúvo: é principalmente um enfermo e a circunstância do esbanjamento não deve ser para ele um agravante.15
Vejamos agora como os deputados percebiam a relação patrão–empregado neste mundo do trabalho em processo de construção ideológica. O paternalismo é o elemento fundamental neste contexto: a autoridade do patrão é enfatizada e considerada essencial para que o trabalhador se veja
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obrigado a desempenhar suas tarefas com a eficiência exigida, mas os possíveis excessos na autoridade patronal são dissimulados sob a forma de proteção, da orientação que o bom patrão devia a seus trabalhadores passivos e abnegados. Diz o deputado Rodrigues Peixoto:
O patrão, depois de celebrado o contrato, se constitui uma espécie de juiz doméstico e tem ação incontestável sobre o trabalhador, para guiálo e acon selhálo. Se alguma vez esse indivíduo sai das órbitas legais e pratica alguma falta ou delito ligeiro, que não precisa ser punido pela lei, o próprio patrão, em virtude do regulamento que ali existe, e que estabelece direitos e deveres entre locatário e locador, lhe inflige castigos moderados como aqueles que infligem os pais aos filhos.16
Outro momento importante neste processo de construção da ideologia do trabalho é a elaboração do conceito de vadiagem: com todo o alarmismo e os exageros característicos destes homens quando discutem assuntos que supostamente ameaçam o seu mundo, o esforço agora é pela afirmação do ainda hoje poderoso mito da preguiça inata do “trabalhador nacional”.
O conceito de vadiagem se constrói na mente dos parlamentares do fim do Segundo Reinado basicamente a partir de um simples processo de inversão: todos os predicados as sociados ao mundo do trabalho são negados quando o objeto de reflexão é a vadiagem. Assim, enquanto o trabalho é a lei suprema da sociedade, a ociosidade é uma amea ça cons tante à ordem. O ocioso é aquele indivíduo que, negandose a pagar sua dívida para com a comunidade por meio do trabalho honesto, colocase à margem da sociedade e nada produz para promover o bem comum.
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Há, portanto, uma incompatibilidade irredutível entre manutenção da ordem e ociosidade. Mas era essencial para os nossos deputados compreender melhor as causas da ociosidade do trabalhador brasileiro. A crença nesta ociosidade parecia comum a todos, e citavase, por exemplo, o cai pira paulista, “um verdadeiro parasita, que consome ape nas e nada produz”.17 Como explicar esta anomalia? Um dos deputados nos dá uma explicação didática, elaborando um con ceito que ele chama de “lei da necessidade”.18 Segundo ele, nos países europeus e asiáticos se acha realizada a teoria de Malthus e Ricardo, ou seja, há um excesso de população em relação à capacidade de produzir víveres. A vida é bastante dura para essas populações, que se sentem então estimuladas para o trabalho pela própria necessidade de lu tar pela sobrevivência. No Brasil, ao contrário, o indivíduo encontra muitas facilidades para subsistir, pois o nosso solo é rico, o nosso clima é ameno e a abundância se nota por to da parte. Sendo assim, a nossa população não precisa ter hábitos ativos de trabalho, pois tem facilidade em obter a carne, o peixe, o fruto, e, além disso, a amenidade do clima permite ao brasileiro passar perfeitamente ao relento, sem cobrir o corpo com vestes pesadas e caras. Em nosso país, portanto, é preciso obrigar o indivíduo ao trabalho, pois a tentação da ociosidade é irresistível.
Ociosidade deve ser combatida não só porque negandose ao trabalho o indivíduo deixa de pagar sua dívida para com a sociedade, mas também porque o ocioso é um pervertido, um viciado que representa uma ameaça à moral e aos bons costumes. Um indivíduo ocioso é um indivíduo sem educação moral, pois não tem noção de responsabilidade, não tem interesse em produzir o bem comum nem possui respeito pela propriedade. Sendo assim, a ociosidade
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é um estado de depravação de costumes que acaba levando o indivíduo a cometer verdadeiros crimes contra a propriedade e a segurança individual. Em outras palavras, a vadiagem é um ato preparatório do crime, daí a necessidade de sua repressão. Assim se expressa a comissão parlamentar que estudou o projeto:
O projeto [...] revela a intenção de orientar espíritos transviados, corrigir disposições viciosas, antes que punir criminosos.Se o legislador tem o imprescindível dever de consagrar no direito positivo prescrições tendentes à repressão dos crimes que atentam à ordem social, não lhe é lícito desconhecer que esses atos derivamse, o mais das vezes, do relaxamento ou da depravação dos costumes, tendo geralmente como causa geradora a ociosidade.19
Outro aspecto interessante é a relação estabelecida entre ociosidade e pobreza. O projeto reconhecia que eram duas as condições elementares para que ficasse caracterizado o delito de vadiagem: o hábito e a indigência, especialmente a última. Se um indivíduo é ocioso, mas tem meios de garantir sua sobrevivência, ele não é obviamente perigoso à ordem social. Só a união da vadiagem com a indigência afeta o senso moral, deturpando o homem e engendrando o crime. Fica claro, portanto, que existe uma má ociosidade e uma boa ociosidade. A má ociosidade é aquela característica das classes pobres, e deve ser prontamente reprimida. A boa ociosidade é, com certeza, atributo dos nobres deputados e seus iguais...
Os parlamentares reconhecem abertamente, portanto, que se deseja reprimir os miseráveis. Passam a utilizar, então, o conceito de “classes perigosas”, avidamente aprendido nos
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compêndios europeus da época. Segundo Alberto Passos Gui marães, o termo “classes perigosas” apareceu originalmente na Inglaterra e se referia às pessoas que já houvessem passado pela prisão ou às que, mesmo ainda não tendo sido presas, haviam optado por obter o seu sustento e o de sua família por meio da prática de furtos e não do trabalho.20 Esta utilização do termo, por conseguinte, é bastante restrita, referindose apenas aos indivíduos que já haviam abertamente escolhido uma estratégia de sobrevivência que os colocava à margem da lei. Os nossos deputados, contudo, citam principalmente autores franceses e alargam consideravelmente as proporções do termo.21 Os legisladores brasileiros utilizam o termo “classes perigosas” como sinônimo de “classes pobres”, e isto significa dizer que o fato de ser pobre torna o indivíduo automaticamente perigoso à sociedade. Os pobres apresentam maior tendência à ociosidade, são cheios de vícios, menos moralizados e podem facilmente “rolar até o abismo do crime”. Diz um dos deputados:
As classes pobres e viciosas [...] sempre foram e hão de ser sempre a mais abundante causa de todas as sortes de malfeitores: são elas que se designam mais propriamente sob o título de — classes perigosas —; pois quando mesmo o vício não é acompanhado pelo crime, só o fato de aliarse à pobreza no mesmo indivíduo constitui um justo motivo de terror para a sociedade. O perigo social cresce e tornase de mais a mais ameaçador, à medida que o pobre deteriora a sua condição pelo vício e, o que é pior, pela ociosidade.22
Resta situarmos como os nossos deputados percebem a inserção do imigrante neste mundo do trabalho em processo de construção ideológica. O artigo 3o do projeto sobre
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a repressão da ociosidade prevê que o estrangeiro reinci dente no delito de vadiagem poderá ser expulso do país. O rigor da pena para o estrangeiro reincidente e o fato de que quase não se menciona o imigrante nestes debates sobre a ociosidade mostram bem que o consenso a respeito do trabalhador imigrante já havia sido atingido anteriormente. Como mostra José de Souza Martins, as classes dominantes pensavam que o imigrante deveria ser “morigerado, sóbrio e laborioso”,23 isto é, ao cultivar as principais virtudes consagradas na ética capitalista, o imigrante deveria servir de exemplo ao trabalhador nacional. O imigrante e sua família deveriam estar sempre dispostos ao trabalho árduo e às condições difíceis de vida, pelo menos nos primeiros tempos, sendo que estes sofrimentos seriam mais tarde compensados pelo acesso à pequena agricultura familiar. Dentro deste contexto, é fácil entender o porquê do rigor da pena do estrangeiro que era detido por vadiagem: destinado a servir de exemplo, de protótipo do tra ba lha dor ideal na ordem capitalista que se anuncia, sua nãoadequação a estes parâmetros era vista como uma amea ça à ordem social. Ressaltese, porém, que esta visão positiva do imigrante aplicavase principalmente àqueles que se destinavam, nesse período, às zonas cafeeiras de São Paulo, especialmente os italianos. A situação parecia ser bem mais ambígua e contraditória quando estavam em questão, por exemplo, os 106.461 imigrantes portugueses, geralmente homens solteiros e empregados no pequeno comércio, que habitavam a cidade do Rio de Janeiro em 1890.24 Voltaremos a este último aspecto oportunamente.
Seguemse algumas observações de caráter geral que darão não só a tônica das outras partes deste capítulo, mas
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que, na verdade, introduzem aspectos que serão explorados ao longo de todo o restante do trabalho.
1) O universo ideológico das classes dominantes brasileiras na agonia do Segundo Reinado e, depois, durante a República Velha parece estar dividido em dois mundos que se definem por sua oposição um ao outro: de um lado, há o mundo do trabalho; de outro, há o da ociosidade e do crime. No discurso dominante, o mundo da ociosidade e do crime está à margem da sociedade civil — isto é, tratase de um mundo marginal, que é concebido como imagem invertida do mundo virtuoso da moral, do trabalho e da ordem. Este mundo às avessas — amoral, vadio e caótico — é perce bido como uma aberração, devendo ser reprimido e controlado para que não comprometa a ordem. Portanto, um discurso ideológico dualista e profundamen te maniqueísta — baseado na tradição cristã ocidental de procurar distinguir sempre o bem do mal, o certo do errado etc. — parece ser a característica fundamental da visão de mundo das classes dominantes brasileiras no período estudado.
A documentação analisada até aqui parece permitir, contudo, pelo menos como hipótese, a leitura de uma outra forma de inserção do pobre — isto é, do ocioso e do criminoso em potencial — no mundo da ordem. A visão de mundo dos nossos parlamentares postula um paralelismo perfeito entre a hierarquização da estrutura social e as diversas partes constituintes do universo ideológico. No nível mais elevado da hierarquia social nós temos os proprie tários — patrões —, seguidos de forma um tanto distante pelos bons trabalhadores. Neste nível reina a ordem por excelência, já que os indivíduos aí localizados são aqueles de mais alto grau de moralidade, pois amam o trabalho e sabem respeitar
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a propriedade. No nível inferior, nós temos o mundo dos ociosos. Neste mundo, existe um certo grau de depravação moral e uma tendência à desordem, pois estes indivíduos não respeitam a lei suprema da sociedade — o trabalho. Finalmente, temos o mundo do crime, que é formado pelos indivíduos de maus instintos, miseráveis e infensos aos ditames da ordem. Assim, criase um sistema segundo o qual o indivíduo mais bem situado na hierarquia social é sempre mais dedicado ao trabalho, mais moral e ordeiro do que o indivíduo que o precede. Ao contrário, quanto maior a pobreza do indivíduo, maior sua repulsa ao trabalho e menor a sua moralidade e seu apego à ordem.
Em outras palavras, o sistema se caracteriza por uma linha contínua que une o mais moral ao menos moral no universo ideológico, e o mais rico ao mais pobre na estrutura social. Neste sentido, não há um dualismo, uma oposição entre dois mundos diferentes, isto é, não há um mundo do trabalho e outro da ociosidade e do crime — há, na verdade, apenas um mundo, coerente e integrado na sua dimensão ideológica. Não faz sentido, então, pensar o ocioso e o criminoso como indivíduos que vivem à margem do sistema, marginais em relação a um suposto mundo da ordem. Cabe pensar a ociosidade e o crime como elementos constituintes da ordem e, mesmo, como elementos fun damentais para a reprodução de um determinado tipo de so cie dade. Há de se ques tionar a visão tradicionalmente veiculada pelas classes do minantes brasileiras — tanto no passado quanto no presente — de que a vadiagem e o crime, que são noções cuja produção social por si só já constitui um importante campo de análise, são contradições dentro do sistema, simples conseqüências indesejáveis de suas deficiências. Em suma, a hipótese que se quer lançar aqui é a de que a existência da
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ociosidade e do crime tem uma utilidade óbvia quando interpretada do ponto de vista da racionalidade do sistema: ela justifica os mecanismos de controle e sujeição dos grupos sociais mais pobres.25
Mais do que isto, já que ideologicamente quase se equivalem os conceitos de pobreza, ociosidade e criminalidade — são todos atributos das chamadas “classes perigosas” —, en tão a decantada “preguiça” do brasileiro, a “promiscuidade sexual” das classes populares, os seus “atos fúteis” de violência etc. parecem ser, antes que dados inques tionáveis da “realidade”, construções ou interpretações das classes do minantes sobre a experiência ou condições de vida experimentadas pelos populares. Estas noções, contudo, não se confundem com a experiência real de vida dos populares, nem são a única leitura possível desta experiência. Em suma, cabe enfatizar que mitos como a “preguiça” do brasileiro, a “promiscuidade sexual” dos populares e outros congêneres são construções das classes dominantes para justificar sua dominação de classe, sendo, então, apenas uma versão ou leitura possível da “realidade”, apresentada de maneira mais ou menos consciente pelos agentes históricos destas classes.
2) A cidade do Rio de Janeiro recebeu grande número de estrangeiros nos anos imediatamente anteriores e seguintes à Abolição, sendo que este contingente de imigrantes veio se estabelecer numa cidade que continha na época um grande número de negros e mulatos que viviam suas primeiras experiências como trabalhadores livres. Os dados referentes à estrutura ocupacional da cidade em 1890 mostram uma marginalização ocupacional dos nãobrancos ocorrendo em parte devido à presença dos imigrantes europeus. Mais
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da metade dos 89 mil estrangeiros economicamente ativos trabalhava no comércio, indústria manu fatureira e atividades artísticas, ou seja, os imigrantes ocupavam os setores de emprego mais dinâmicos. Enquanto isso, 48% dos nãobrancos economicamente ativos em pregavamse nos serviços domésticos, 17% na indústria, 16% não tinham profissão declarada e o restante encon travase em atividades extrativas, de criação e agrícolas.26 Estes dados sugerem uma questão fundamental para a investigação histórica, mas que tem sido estranhamente ignorada pelos historiadores — em parte talvez pela dificuldade de levantamento de uma documentação adequada, e em parte sem dúvida pela influência notável do poderoso mito da “democracia racial brasileira”; a questão, bastante complexa, pode ser enunciada de forma relativamente simples, qual seja, como explicar o fato da subordinação social do negro no Rio de Janeiro no período pós Abolição, fato este amplamente comprovado pelos dados disponíveis sobre a estrutura ocupacional da cidade?
No caso da cidade do Rio de Janeiro, a situação de subordinação social do negro no período pósAbolição não foi até hoje objeto de uma investigação científica mais séria e abrangente. Para o caso de São Paulo, porém, existem estudos bastante pormenorizados sobre a situação do negro no período pósAbolição, estudos estes realizados especialmente por Florestan Fernandes.27 Fernandes, na verdade, acaba encabeçando uma “escola” de sociólogos que produziu excelentes trabalhos a respeito do negro brasileiro não só em São Paulo, mas também em outras partes do Brasil.28 A influência desta “escola” foi bastante grande, tendo sido suas análises sobre o problema negro geralmente aceitas e permanecido sem serem revistas ou questionadas nos meios acadêmicos até bem pouco tempo.
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O ponto de partida de Florestan Fernandes é a caracterização da sociedade escravista colonial e imperial no Brasil como uma sociedade estamental e de castas: os elementos das classes dominantes se classificavam em termos es ta men tais, os escravos em termos de casta, sendo que os elementos mestiços livres ou libertos oscilavam entre os dois tipos de classificação. A ordem estamental ainda apresentava alguma fluidez, mas o sistema de castas era bastante rígido, sendo que os escravos estavam reduzidos a um estado de “anomia social”, pois não participavam de um sistema definido de direitos e de obrigações sociais. É dentro deste quadro conceitual mais amplo que Fernandes situa seu estudo sobre a integração do negro na sociedade de classes em formação na cidade de São Paulo no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX.
Para ele, então, o escravismo era um sistema de castas cuja desagregação — coincidindo com a formação das classes sociais — não se refletiu numa mudança substancial da posição social do negro. Os negros foram incorporados às plebes, tendo ficado condenados a uma “condição de casta disfarçada”.29 Os negros e mulatos encontravamse despreparados para o papel de trabalhadores livres. A população de cor não tinha nem o treinamento técnico, nem a mentalidade e disciplina do trabalhador livre, ficando, assim, excluída das oportunidades econômicas e sociais oferecidas pela ordem social competitiva emergente. Fernandes enfatiza o efeito desagregador da escravidão, que havia destruído quase todo o vestígio da herança cultural negra. A escravidão havia ainda destituído os negros de toda vida fa miliar e dificultado a criação de formas de cooperação e assistência mútua baseadas na família. Por conseguinte, a herança do escravismo, ao produzir entre negros e mulatos um estado
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de anomia social, pobreza e despreparo para o trabalho livre, teria sido o principal fator responsável pelo isolamento e subordinação social dos negros e mulatos no período pósAbolição.
O problema principal suscitado pela análise de Fernandes é esta noção de que negros e mulatos se encontravam num estado de “anomia” ou “patologia social” no período pósAbolição, estado este que se explicaria como uma herança direta do escravismo. A primeira objeção séria que se pode levantar neste contexto é a de que a visão que Fernandes passa do liberto — como despreparado para o trabalho livre, destituído de vida familiar etc. — é perigosamente próxima àquela veiculada pela classe dominante bra sileira no momento crucial da transição do trabalho escravo para o trabalho livre, como mostram os debates parlamentares do período. Esta é uma objeção importante na medida em que a concepção do liberto que parecia caracterizar a visão de mundo da classe dominante brasileira no fim do sé culo XIX era, em grande parte, uma construção ideológica que visava atender às necessidades desta classe de controlar e disci plinar a força de trabalho num momento crucial da tran sição para uma ordem capitalista no país, especialmente no Sudeste.
Outra objeção, talvez ainda mais fundamental, é que estudos recentes sobre a escravidão, especialmente as pesquisas de Katia Mattoso e Robert Slenes, têm mostrado que, apesar de toda a repressão e violência inerentes à condição de “ser escravo no Brasil”, os negros escravos foram capazes de manter, adaptar ou reconstruir padrões culturais, relações de família e laços de solidariedade e ajuda mútua entre eles.30 Mesmo se aceitarmos as premissas da teoria da patologia social, portanto, pesquisas mais recentes, baseadas em sólida
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e extensa pesquisa empírica, oferecemnos dados que abalam fortemente a tentativa de explicar a condição do negro brasileiro no período pósA bo lição pela via de sua suposta patologia, herança do período escravista.
Além disso, Gilberto Velho nos leva a meditar sobre algumas das premissas básicas da teoria da patologia so cial.31 Preocupado com o estudo do chamado “comportamento des viante”, Velho oferece uma crítica penetrante da teoria da anomia enquanto teoria explicativa do “desvio”. Ele percebe, de início, que o problema do desvio é sempre visto ora do ponto de vista de uma patologia do indivíduo,32 ora do ponto de vista de uma patologia do social. Ele observa que estas interpretações, apesar de aparentemente irreconciliáveis, partem de premissas fundamentalmente semelhantes. Por um lado, a idéia do desvio, pressupondo assim a existência de comportamentos “normais” claramente delimitados em uma sociedade, leva ao estabelecimento de um modelo muito rígido de cultura ou sociedade, sendo a pluralidade de comportamentos dentro de uma cultura vista dentro de limites muito empobrecedores. Por outro lado, estas abordagens partem de uma visão dicotômica da realidade, opondo indivíduo e sociedade como duas entidades puras e abstratas. Como escreve G. Velho, “ou se cria uma individualidade pura, uma essência defrontandose com o meio ambiente exterior, de outra qualidade, ou então um fato social puro, também to dopoderoso, que paira sobre as pessoas”.33
3) Velho faz ainda algumas observações que servem para esclarecer de que forma os inúmeros conflitos individuais expressados nos processos criminais de homicídio estudados por nós são percebidos ao longo do trabalho.
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Feitas estas observações, restará situálas dentro do contexto histórico mais amplo da cidade do Rio de Janeiro na Primeira República, permitindonos, assim, perceber as relações, por exemplo, entre as tensões nacionais e raciais recuperadas no nível da microhistória e este processo histórico mais amplo da cidade no período.
Preocupado sempre com o estudo do chamado “comportamento desviante”, Velho procura indicar novas perspectivas para as pesquisas, na tentativa de virar a página das in fluências da teoria da patologia social sobre nossas análises. Ele sugere inicialmente que se parta de um conceito de cultu ra menos rígido, ou seja, que se abandone o pressuposto de um monolitismo em dado meio sociocultural, pois a cultura é uma linguagem permanentemente acionada e transforma da por pessoas que desempenham diferentes papéis e pos suem experiências existenciais próprias. Tratase, portan to, de deixar de encarar a cultura como uma entidade aca bada e de procurar enfatizar o caráter mul tifacetado, dinâ mico e até ambíguo da vida cultural. Dentro desta perspectiva, o indiví duo desviante não é necessariamente um “deslo cado”, nem a cultura é uma entidade tão monolítica e, mesmo, esmagadora. Para Velho, então, o desviante é um indivíduo que faz uma leitura diferente de um código sociocultural, isto é, ele não está fora de sua cultura, mas faz dela uma leitura divergente daquela dos indivíduos ditos “ajustados”. A possibilidade da existência dessas leituras diferentes ou divergentes é garantida pelo próprio caráter desigual, contraditório e político de todo sistema sociocultural.
As teorias de Velho convergem também com a contribuição dos chamados “interacionistas”, como Howard Becker, por exemplo.34 Para Becker, não existem desviantes em si mesmos, mas apenas uma relação entre atores (indivíduos,
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grupos) que acusam outros atores de transgredir limites e valores de uma determinada situação sociocul tural. O que existe, então, são confrontos entre indivíduos ou grupos concretos, entre acusadores e acusados. Neste sentido, abandonase a de finição de desvio a partir de um modelo rígido de cultura, capaz de prever a existência de um suposto comportamento “médio” ou “normal” dentro de um sistema social; ao contrário, o desvio passa a ser a conseqüência da aplicação por outrem de regras e sanções, ou seja, o desvio passa a ser um problema político, e não uma qualidade inerente ao ato da pessoa. Assim, tanto as rixas e conflitos por questões de trabalho e habitação, que serão analisados nas outras partes deste capítulo, como as rixas da hora do lazer e do amor, que serão analisadas nos outros capítulos deste estudo, são vistos como um acontecimento político dentro de um determinado mi crogrupo sociocultural. Isto é, existem facções dos mais diferentes tipos em qualquer grupo humano, o que implica uma permanente possibilidade de confrontos a partir das tensões e divergências entre tais facções. No nível da sociedade mais ampla, essas tensões são expressas nas lutas de linhagens, classes etc. Mas essas tensões e lutas aparecem também em situações microscópicas do social, como nos grupos de trabalho e de vizinhança, na família etc. De fato, uma verdadeira “política do cotidiano” caracteriza a dinâmica de funcionamento desses microgrupos socioculturais.
4) Resta, finalmente, juntar os elos aparentemente perdidos dessas inúmeras observações de relevância tanto teórica quanto empírica e dar ao leitor a visão de conjunto que se pretende. O conceito de “política do cotidiano” desenvolvido por Velho é bastante útil na medida em que nos chama a
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atenção para o fato de que os processos criminais de homicídio que analisamos devem ser vistos como a expressão de tensões e conflitos entre grupos ou indivíduos, permitindo assim que nos livremos um pouco do conceito de “comportamento desviante”, que é, em larga medida — e especialmente ainda quando a fonte analisada são processos criminais —, uma construção dos mais poderosos para justificar seu jugo sobre aqueles que lhes são antagônicos. As teorias de Velho nos serviram, além disso, para a elaboração de procedimentos metodológicos que aprofundaram bastante a nossa compreensão do próprio processo de produção social de um processo criminal. Assim, para dar apenas um exemplo, era uma prática bastante comum das autoridades policiais e judiciárias da época interrogar as testemunhas de um determinado conflito sobre os antecedentes dos envolvidos. Perguntavase ao interrogado, por exemplo, se o acusado era “mo rigerado e trabalhador” ou “desordeiro e vadio”. É uma constatação óbvia, mas não por isso ir relevante, a de que este vocabulário dos agentes jurídicos em seu interrogatório revela que uma das funções essenciais do aparato policial e judiciário era o reforço dos valores funda mentais da ética de trabalho capitalista. Para constatar isso, no entanto, não teria sido necessário ler processos criminais a mancheias. Ao responder a esta pergunta, a testemunha nos revelava geralmente sua atitude em relação ao conflito, ou seja, de que lado se alinhava e quais seus interesses em relação à luta. Perc ebeuse, dessa forma, e para muito além do nível da sim ples intuição, que imigrantes da mesma nacionalidade tendiam sempre a achar que o oponente de um de seus patrícios em um confronto era um “desordeiro e vadio”. Foi assim também que se percebeu, em outro exemplo, que um empregado que depunha num processo que envolvia seu
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patrão tendia a referirse a este como “bom chefe de família e trabalhador”, fato este que, associado a outras condições gerais de trabalho que pudemos recuperar através dos depoimentos nos processos, muito nos ensina a respeito da relação patrão–empregado em diversas situações micro históricas concretas.
A “tradução” do conceito de “política do cotidiano” para procedimentos metodológicos concretos, porém, ainda não completa o quadro. Se estas observações nos ajudam a esclarecer o significado “antropológico” de cada conflito microssocial específico, ainda não nos ajudam a perceber estes conflitos no movimento mais amplo da sociedade em questão, isto é, no próprio processo histórico. Pierre Vilar já nos alertou que a história trata dos “enriquecimentos e dos empobrecimentos” e não do rico e do pobre, ou do vencedor e do vencido, ou mesmo da burguesia e do proletariado, como categorias estanques e sem movimento.35 Pensar o contrário seria achar possível compreender os pólos de uma relação isoladamente, sem atentar para a relação em si em seus diversos momentos.
Assim, sabemos que o processo histórico por que passou a cidade do Rio de Janeiro na Primeira República apresentou um traço continuísta fundamental em relação aos tempos coloniais e imperiais: a continuação da subordinação social dos brasileiros de cor, ou seja, o negro passou de escravo a trabalhador livre, sem mudar, contudo, sua posição relativa na estrutura social. Isso significa que, no desenrolar das rivalidades nacionais e raciais que, como sugerimos e veremos adiante, foram a expressão mais comum das tensões provenientes da competição pela sobrevivência na cidade do Rio de Janeiro da Primeira República, os brasileiros de cor foram, ou continuaram a ser, os grandes perdedores. É den
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tro de um esforço de compreensão deste processo histórico mais amplo — que, a nosso ver, não pode ser adequadamente explicado a partir dos pressupostos da teoria da patologia social — que queremos situar os inúmeros microconflitos sociais que analisaremos a seguir. Enfim, é importante entender de que forma as determinações históricas mais amplas interferem, ao mesmo tempo que se forjam, nas situações microhistóricas concretas e, em longo prazo, apontam os vencedores da luta cotidiana pela sobrevivência e pelas possibilidades de ascensão social entre os trabalhadores.
Companheiros de trabalho, desempregados e gatunos
O caso abaixo parece mostrar uma situação bastante típica para o surgimento de uma rixa e posterior conflito entre companheiros de trabalho, assim como sugere aspectos bastante comuns das condições de trabalho em uma pequena fábrica no Rio de Janeiro do início do século XX. Um dos depoentes, Antônio José Teixeira, natural da capital federal, de 20 anos, solteiro, industrial, declara
que é o encarregado gerente, da olaria da rua Capitão Félix número um e por isso é que se encarrega da administração da mesma olaria. Que entre oito empregados para o serviço teve um nacional de cor preta de nome Ramiro Costa e que pelo mau procedimento do mesmo e do gênio alterado teve necessidade de despedilo do serviço isso há oito dias mais ou menos. Que, ontem, às nove horas da noite mais ou menos, ele declarante achavase na olaria e viu quando alguns dos empregados, chegavam da rua para se recolher, e ao entrarem no portão, o mesmo Ra miro Costa, que se achava do
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lado de fora do portão agrediu aos mesmos empregados, armado com um fueiro de carroça, e em seguida com um revólver que trazia disparou dois ou três tiros, atingindo ao empregado Germano José Pinto, que ficou ferido.36
A olaria que serviu de cena para o fato relatado era localizada em São Cristóvão, uma freguesia pontilhada de fábricas como a mencionada acima e que, portanto, apresentava em seu panorama um embrião de proletariado de fábrica.37 Os oito empregados da olaria habitavam em quartos no alojamento da própria fábrica. O relacionamento entre os companheiros de trabalho parecia bastante íntimo, já que no próprio dia do conflito, um sábado, haviam saído todos “despreocupados e alegres”, como declarou um deles, para fazerem a barba em Benfica. O gerente também mo rava na fábrica, mas não havia acompanhado os empregados à barbearia.
De acordo com o relato do gerente, a origem das tensões que culminaram na cena de sangue foi sua decisão de despedir um empregado que tinha “mau procedimento”. O empregado despedido, no entanto, o preto Ramiro, acabou descarregando sua ira sobre seus companheiros de trabalho e não sobre o gerente. Todos os outros empregados da pequena fábrica eram portugueses, e todos condenam unanimemente a conduta de Ramiro, que tinha “maus instintos” e era “muito desordeiro”, segundo um deles. A acusação que pesava sobre Ramiro era a de que ele, por ser um indivíduo “rixoso, provocador e autoritário”, não cumpria as ordens dos chefes e estragava os animais com que trabalhava. O pre to Ramiro tinha 25 anos, era natural da capital federal, casado, analfabeto e trabalhava como cocheiro na fábrica.
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Ele ficou foragido durante seis meses, e suas declarações sobre o evento não constam dos autos. Um dos portugueses, porém, nos informa que Ramiro se considerava perseguido pelos companheiros e julgava que “eles houvessem concorrido para a saída dele”. Para completar o quadro, resta mencionar que, cerca de dois ou três dias após a saída de Ramiro, um outro português foi contratado para trabalhar na olaria.
Esta pequena história traz à tona diversos aspectos que são bastante recorrentes na documentação coligida. Temos aqui um patrão — ou seu representante direto, um gerente — que parece praticar abertamente a discriminação contra o brasileiro pobre de cor quando da contratação de empregados para sua pequena fábrica. Vemos também um grupo de imigrantes portugueses que se mostra bastante solidário e unido numa situação conflituosa, sendo que apóiam inteiramente a versão dada pelo gerente a respeito do procedimento de Ramiro. Tanto o gerente da fábrica como seus empregados utilizam as armas ideológicas fornecidas pelos construtores da ética de trabalho capitalista para reforçar sua acusação contra Ramiro; auxiliados pelo interrogatório dos agentes policiais e jurídicos, os acusadores afirmam que Ramiro é “desordeiro” e “mau trabalhador”. O preto Ramiro, no entanto, oferece uma leitura diferente de sua experiência, considerandose perseguido pelo grupo acusador. No momento da luta, Ramiro pode ter tido a satisfação de consumar a agressão que, ao que tudo indica, tinha planejado com antecedência contra aqueles que via como seus inimigos, mas, em longo prazo, teve de enfrentar o desemprego, um período de seis meses como foragido da polícia e, finalmente, o encarceramento e o constrangimento de ser processado por crime de tentativa de homicídio.
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Ele acabou sendo condenado a apenas três meses de prisão, pois o júri desqualificou seu crime para ofensas físicas leves.
A solidariedade entre imigrantes em situações con flituosas no trabalho é mais uma vez ilustrada no caso a se guir, de briga entre funcionários da Inspetoria de Limpeza Pública.38 A cena do crime é a porta de entrada da própria ins petoria, na Praça da República, e o preto Eu cli des de Oli veira, natural do estado do Rio de Janeiro, de 21 anos, sol teiro, analfabeto, ajudante de caminhão da Limpeza Pública, narra na delegacia o conflito que resultou na morte do italiano Bernardo Caputto, de 44 anos, viúvo, varredor:
[...] que seu verdadeiro nome é Euclides Pereira de Oliveira, mas é certo que na Limpeza Pública e Particular deu o nome de Manoel de Souza Segundo, e isso para ocupar esse lugar que ali exerce e que foi mandado dar pelo carroceiro da mesma limpeza, de nome Agostinho de tal; que ontem à noite procurado na Inspetoria por Gaspar dos Santos Monteiro para receber do declarante a quantia de cinco milréis que lhe era devedor e não tendo essa quantia disse a Gaspar que voltasse hoje para a receber; que em seguida começou a brincar com um italiano varredor, brincadeira essa que consistia em querer o declarante tirar dele a vassoura à qual puxava; que nessa ocasião um outro italiano barbado disse a ele declarante “larga a vassoura” e ato contínuo deulhe um cascudo, pelo que o declarante por seu turno deu nesse italiano um cascudo também; que atracouse com esse italiano barbado para brigar e nessa ocasião apareceu o italiano Bernardo Caputto com um cabo de vassoura na mão e quis dar no declarante uma ca cetada; que então o declarante sacou da cinta uma pe quena faca de açougue, investiu contra Ca putto e vi broulhe uma facada no peito; [...] que Gaspar dos San tos Monteiro que se achava ao lado do declarante também puxou de uma grande faca,
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mas não chegou a ferir Caputto, pelo menos que ele declarante vis se; [...] que também se achava juntamente com Monteiro, Manoel da Silva que tem o vulgo de Gambá, mas esse o declarante não viu puxar arma alguma [...].
Vemos, portanto, que a questão de Euclides começa com um italiano, de quem tenta tomar a vassoura, mas em seguida chega um outro italiano, o barbudo, que toma as dores do patrício. Finalmente, chega um terceiro italiano, armado de cabo de vassoura, que acaba sendo vítima de uma facada certeira de Euclides. Havia outros funcionários no local, entre eles mais alguns italianos, e o acusado é aqui novamente rotulado de “homem rixoso e desordeiro”.
Os dois homens que estavam em companhia de Eucli des por ocasião da ocorrência eram portugueses, sendo um deles Manoel da Silva, de 21 anos, solteiro, analfabeto, e o outro, Gaspar Monteiro, de 18 anos, também solteiro, que “assinou o nome”. O pouco que estes homens nos contam de sua vida já ilustra outra vez a solidariedade entre imigrantes da mesma nacionalidade pela viabilização de sua sobrevivência: ambos eram vendedores ambulantes de lingüiça, sendo que o patrão era outro português, o pai de Gaspar. Manoel da Silva declara que não tinha domicílio certo, dormindo ora em casa de seu patrão, ora em casa do filho deste. Esta relação bastante estreita entre patrão e empregado, incluindo muitas vezes a coabitação, parecia bastante comum em se tratando de imigrantes de mesma nacionalidade.
O conflito do preto Euclides com os italianos, na verdade, foi provavelmente também um conflito entre portugueses e italianos. Manoel e Gaspar procuram, obviamente, negar qualquer participação no conflito. No entanto, ambos fugiram em desabalada carreira quando o italiano Caputto
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caiu morto, vitimado pela facada de Euclides. Os italianos são unânimes em incluir os dois portugueses como companheiros de Euclides e, portanto, seus opositores. O próprio Euclides confirma esta versão na delegacia, mas na pretoria nega que os portugueses estivessem em sua companhia. Os autos incluem também o depoimento de uma testemunha que declara ter escutado os dois portugueses contarem em um botequim, em tom de “gabolice”, sua participação no conflito. A questão permanece, portanto, um tanto indefinida, e o juiz declara improcedente a denúncia contra os portugueses. O preto Euclides foi condenado pelo júri a 15 anos de prisão, tendo morrido de tuberculose pulmonar depois de cumprir dois anos de pena.
Estes dois casos iniciais já sugerem o papel fundamental desempenhado pelas rivalidades nacionais e raciais nos conflitos em situações de trabalho. Sugerem também uma forte tendência entre os imigrantes da mesma nacionalidade de se mostrarem solidários nessas ocasiões. As razões ale gadas pelos nossos personagens para as contendas em situa ções de trabalho podem ser bastante variadas, mas os traços comuns entre essas contendas são relativamente fáceis de se identificar: primeiro, elas revelam uma situação altamente competitiva no trabalho; segundo, a competição se manifesta principalmente por meio das lutas entre imigrantes e nacionais. Observemos essas breves generalizações nos casos seguintes, que são de conflitos nos quais membros de um mesmo grupo de trabalho parecem competir para “mostrar serviço”, ou seja, para conquistar a simpatia dos patrões ou superiores e conseguir beneficiarse de alguma forma do caráter paternalista da relação patrão–empregado — predominante especialmente nos pequenos estabelecimentos comerciais e industriais do período.
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No primeiro desses casos, dois companheiros de trabalho em um depósito de carvão em São Cristóvão brigam por terem idéias diferentes a respeito da forma como de viam proceder em relação a seu superior hierárquico no servi ço, que, no caso, era um feitor.39 Como disse uma das testemunhas, “a divergência entre os dois nascia do modo de pensar acerca do serviço deles”. O ofendido Joaquim de Oliveira, pardo, 23 anos, solteiro, cocheiro, dános sua versão do ocorrido:
[...] tendo deixado o caminhão de que é cocheiro na respectiva cocheira, dirigiuse com alguns conhecidos seus companheiros e mais Miguel de tal ao botequim na rua Almirante Mariath onde foram tomar café; que ali teve uma teima com Miguel por ter feito apear em caminho um moço que viajava no vagão para dar lugar ao feitor que encontrava em caminho e dessa teima resultou que Miguel sacou de um revólver, alvejouo contra ele depoente e o detonou indo a bala atingilo na barriga [...].
O acusado era o português Miguel de Paiva, de 24 anos, solteiro, carvoeiro. Vemos no caso, portanto, que o português aparentemente se irritou com a subserviência de Oliveira em relação ao feitor. A briga foi testemunhada por outros três portugueses, entre eles o dono do botequim onde se deu a luta. O relato desses três portugueses é semelhante no essencial, com todos afirmando que Oliveira havia “provocado” seu patrício dandolhe “empurrões” e gritando “Quebrote a cara”. Enquanto os portugueses parecem justificar o crime de seu patrício caracterizandoo como um ato de defesa, o único brasileiro que se achava próximo ao local ouvira apenas a detonação do tiro, pois se encontrava
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num quartinho nos fundos do botequim. Este brasileiro, contudo, auxiliou os “meganhas” — apelido dos praças de polícia na época — a prender o acusado, que se havia escondido na latrina de uma casa de cômodos .
Este processo revela também outro aspecto muito recorrente na documentação coligida. O crime foi cometido num botequim durante um dos intervalos da jornada de trabalho. Estes intervalos para tomar café e cachaça no botequim, prolongados às vezes pelo jogo a dinheiro, eram bastante comuns principalmente entre carvoeiros, estiva dores, carroceiros, ambulantes e outros trabalhadores que não se viam circunscritos a um espaço fechado rigidamente disciplinado. Daí decorre o fato de que muitas das “questões por motivo de serviço” acabavam resultando em conflitos nestes momentos de lazer nos interstícios da jornada de trabalho, quando, aparentemente, as questões podiam ser resolvidas sem pôr em risco os meios de sobrevivência dos contendores.
O processo seguinte mostra dois empregados do Hospital da Misericórdia que competem para “mostrar serviço” às irmãs e que acabam resolvendo a rixa entre eles num dos inter valos da jornada de trabalho.40 Quitério Feitoza, pernambucano, de 24 anos, solteiro, servente de enfermeiro, contanos sua briga com José da Silva, português, 23 anos, solteiro, enfermeiro. Os envolvidos, assim como todos os outros empregados da Santa Casa de Misericórdia que depõem no pro cesso, moram no local de trabalho e, no momento da briga, estavam todos descansando e conversando sentados próximo às árvores da praia de Santa Luzia, em frente ao hospital. Diz Quitério
[...] que há muitos dias que por motivos de ciúmes há prevenção da parte do ofendido que conhece pelo nome
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de Silva e que é enfermeiro da mesma enfer ma ria da qual ele depoente é servente por causa da preferência que lhe é dada pelas Irmãs da referida en fermaria, tendo sido até insultado e agredido na re fe rida enfermaria pelo ofendido. Que hoje [...] acha vase sentado na praia de Santa Luzia em frente à Santa Casa, quando a ele chegouse o ofendido pro vo candoo por duas ou três vezes. Que ele depoen te ficou de sobreaviso. Que a um momento dado o ofendido dirigiuse a ele depoente, empurrandoo, dizendo ele depoente ao ofendido “deixe disso”; que vol tando novamente o ofendido para cima dele depoente, ele depoente sacou do seu revólver e disparou um tiro [...].
As testemunhas do crime, todos companheiros de trabalho dos envolvidos, confirmam que havia uma antiga rixa entre eles e que ambos vinham trocando provocações havia alguns dias, sem, entretanto, serem mais específicos quanto à causa da desavença entre os lutadores. Um fato interes sante neste processo é que o acusado redige sua defesa de próprio punho, talvez apenas orientado por um advogado ou um companheiro mais experiente da Casa de Detenção quanto ao conteúdo. Escrevendo em péssimo português, o acusado “implora a uma suplica” e diz “que me acho dento de um carsere tão amargurado”. Explica que “um homem cansado do trabalho, estando em seu discanso, e vindo um outro em devido a provocalo, aponta de amea sarme com amorte, eu o passiente, vendo, tratei de minha defeza para que... não me ferise”. Pede ainda “caridade” para “um pobre infeliz”, anexando também um atestado de um médico do Recife para quem havia trabalhado, no qual consta que o acusado sempre tivera conduta “irre preen sível”, sendo “trabalhador e de boa moral”. A estratégia de defesa do acusado, portanto,
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não foi negar o ato que cometeu, mas sim tentar colocarse como um “bom trabalhador”, imbuído dos valores da ética de trabalho capitalista. O estratagema deu certo e ele foi absolvido.
Uma nova briga entre um brasileiro e um imigrante por motivo de competição em situação de trabalho tem como cenário uma oficina de sapateiros, na Rua Senhor dos Passos.41 Maria Cecília Baeta Neves, ao traçar as características gerais da indústria de calçados do Rio de Janeiro na primeira década do século XX,42 fornecenos elementos importantes para contextualizar o fascinante flagrante da rotina de trabalho numa oficina de sapateiros da época que nos é dado pelo processo em questão. A indústria de calçados da cidade no período é predominantemente artesanal, sendo as oficinas com cerca de 20 operários os estabelecimentos industriais mais comuns no ramo. A produção nes sas oficinas tem um caráter individual, isto é, cada operário trabalha a seu modo e com relativa independência dos outros trabalhadores. De forma característica para uma época de transição para a ordem capitalista, a separação entre o capital e o trabalho ainda não estava definitivamente realizada: os “artesãos” ou “artistas sapateiros” que trabalhavam nessas oficinas, apesar de assalariados, eram donos de seus instrumentos de produção. Sendo assim, o ofício ainda era visto como uma “arte”, com as ferramentas sendo utilizadas como uma extensão do trabalhador e a qualidade do produto final dependendo diretamente da inteligência e da qualificação profissional do “artista”. Não existe, portanto, “qualquer forma de adequação das atividades humanas aos ritmos e movimentos do processo mecânico, próprio da indústria moderna”.43 Finalmente, eram admitidos “aprendizes” nas oficinas, para que se treinassem no ofício, e os industriais
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recorriam também ao trabalho do menor, visando ao aumento do lucro por meio da compressão salarial.
José Bento de Souza, natural do Distrito Federal, de 14 anos, solteiro, aprendiz de sapateiro, narra sua briga com Joaquim Alves Casemiro, português, de 20 anos, solteiro, sapateiro:
[...] que estava hoje a uma hora da tarde mais ou menos, na oficina de sapateiro à rua Senhor dos Passos número noventa e três da qual é operário, e entregavase ao seu trabalho, sentado no banco que ocupa na dita oficina, quando alguns de seus companheiros começaram a brincar com ele declarante entre os quais o de nome Joaquim Alves Casemiro que levantarase do seu lugar para vir junto dele acusado arrebatar os aviamentos que tinha no seu banco; que feito por Casemiro, ele acusado levantouse por sua vez para apanhar os ditos aviamentos que aquele espalhara pelo chão, voltando ao seu banco para continuar o serviço que fazia; que outros companheiros nessa ocasião atiravam pedaços de sola e outros pequenos objetos sobre ele acusado, tendo Casemiro reproduzido a brincadeira de vir ao banco dele declarante tomarlhe os aviamentos para tornar a espalhálos pelo chão; que ele acusado diante de tal procedimento pretendeu fazer com Casemiro o que este fizeralhe indo ao banco do mesmo tomarlhe os seus aviamentos, mas nessa ocasião foi empurrado pelo mesmo Casemiro; que voltando ao seu banco de trabalho Casemiro insistiu em renovar a brincadeira, ocasião em que ele acusado com a faca que trabalhava levantouse e foi ao encontro de Casemiro fazendo menção de quem pretendia ferilo; que assim procedeu sem intenção de fazer mal a seu companheiro, porque calculara que este recuasse, mas não se deu isso e quando deu acordo a si verificou que havia ofendido à Casemiro [...].
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Esse flagrante da rotina de trabalho na oficina nos mostra o caráter individual e paralelo do processo produtivo, cada trabalhador debruçandose sobre seus afazeres de forma independente dos outros. Daí se justifica a seriedade do confronto que se segue à troca de provocações entre os contendores: os artesãos se sentem ligados a sua “obra” — como diz um deles — e o ataque a esta equivale a uma agressão real ao autor de tal “obra”. A suposta “brincadeira” que estes meninos sapateiros realizam ao longo do processo produtivo assume, na verdade, um caráter altamente competitivo. O próprio fato de que era José Bento a vítima favorita das “brincadeiras” que acabavam por prejudicar a produtividade de seu trabalho, fato confirmado por outros depoentes, é revelador: apesar de bastante jovem, ele é “estimado por seu patrão”, como diz uma das testemunhas, e, além disso, “sabe ler e escrever e é bastante ativo”, já recebendo “salário correspondente a uma diária de dois ou três milréis”, como afirma outra testemunha. Este salário era bastante alto para uma criança aprendiz de sapateiro que, de acordo com M. C. Baeta Neves, percebia normalmente uma diária entre mil e 1.500 réis em 1906.44 José Bento, portanto, sendo um sapateiro de futuro promissor e gozando da estima de seu patrão, acaba sendo a vítima predileta dos companheiros que competiam com ele pelas possibilidades restritas de ascensão social.
O conflito seguinte, novamente entre um brasileiro de cor e um português, ocorre numa disputa entre ambos pela posse de uma grosa ou lima, um instrumento de trabalho im portante para ambos.45 Uma das testemunhas, José Men des , natural do estado do Rio, de 38 anos, narra os antece dentes do conflito no qual o português Manoel Torres, de 28 anos, solteiro, carpinteiro, matou com dois tiros de
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garrucha o pardo Paulo Oliveira, de 50 anos, casado, bengaleiro:
[...] estava ele testemunha em a venda próxima à casa onde trabalhava como carpinteiro o denunciado, que a vítima encontrandose com o denunciado em a dita venda onde ele testemunha se achava pediu ao denunciado uma grosa que havia emprestado respondendo o denunciado mal com palavras más pelo que a vítima, que estava fazendo a cabeça em uma bengala, deu com a mesma na cabeça do denunciado ferindoo e este correndo ao quarto armouse de uma garrucha [...]; que o denunciado não se achava embriagado pelo contrário a vítima estava embriagado; [...] que co nhece os precedentes do denunciado e não lhe consta serem maus, sabendo apenas ter ele dito que havia de matar alguém [...].
O português Manoel contesta o depoimento deste brasileiro que nega que o acusado estivesse embriagado quando da ocorrência e que ainda sugere que a agressão foi premeditada — Manoel teria dito que “havia de matar alguém”. As outras testemunhas afirmam que os dois con tendores estavam embriagados, e o advogado do acusado organiza a bemsucedida defesa do réu em torno do conceito jurídico da “privação de sentidos e inteligência”,46 ou seja, Manoel, estando embriagado, não podia ser responsabilizado criminalmente pelo seu ato. Aqui, mais uma vez, a jornada de trabalho está intimamente ligada aos períodos de lazer no botequim, que acaba se transformando na arena de luta dos contendores.
Parece desnecessário multiplicar indefinidamente os exem plos de briga entre imigrantes e brasileiros em situações de trabalho.47 Os casos analisados já sugerem a importância dos conflitos nacionais e raciais enquanto expressão
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das tensões provenientes da luta pela sobrevivência. Mas até aqui vimos apenas casos em que brasileiros e estrangeiros se enfrentam durante a jornada de trabalho. Res tam ainda alguns nos quais crimes de homicídio surgem como conseqüência de atitudes desesperadas de indivíduos desempregados, ou como resultado de tentativas de ataque à propriedade — os roubos e furtos dos “gatunos”. Aqui, novamente, parece maior a probabilidade de que estrangeiros e brasileiros se encontrem em campos opostos de luta.
Assim, Cândido Silva, natural do estado do Rio, 27 anos, solteiro, lavrador, assassinou com uma facada o italiano Hercílio Aldeghir, também de 27 anos, casado, operário. O cri me se deu em uma venda, em Bangu, e, interrogado sobre o que o levara a cometer tal ato, Cândido explicou: “que achandose com fome e sem dinheiro para se tratar resolveu praticar esse crime, uma vez que assim [obteria?] amparo, que nunca teve ofensas do morto e nem nunca lhe pediu coi sa alguma, que cometeu o crime pelo motivo já exposto”.48
As explicações do acusado devem, sem dúvida, ter causado estranheza às autoridades policiais e judiciárias, que tentam por todos os meios descobrir um motivo mais plausível para o crime. As investigações foram inúteis, pois as testemunhas declaram não saber o porquê da agressão de Cândido, limitandose a afirmar que ele tinha “maus precedentes”. Finalmente, o acusado é levado para o Hospício Nacional para ser examinado por uma comissão de alienistas. Afirmando sempre que matara por estar “desempregado, doente e com fome”, necessitando, pois, de proteção, Cândido é considerado louco, com os peritos achando que ele sofria de “imbecilidade, com episódios delirantes”. É impossível deixar de pensar, no entanto, que as explicações de
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Cândido tinham a sua lógica — fosse esta a lógica da loucura, ou a da extrema penúria.
Foram localizados ainda quatro casos de brigas entre brasileiros e imigrantes devidos a furtos ou roubos. Em um desses casos um negociante português afirma que dois homens — um brasileiro e um espanhol — entraram em seu estabelecimento comercial e roubaram trezentos e tantos milréis. O português dispara tiros contra estes indiví duos posteriormente.49 Em outro processo um chacareiro espanhol vinha por uma estrada montado em um cavalo quando foi interceptado por três brasileiros que o acusavam de haver roubado o cavalo que montava. Após uma discussão azedada, o cavaleiro espanhol respondeu com tiros a seus acusadores e declarou na delegacia que os brasileiros pareciam ser assaltantes.50 No caso seguinte, o caixeiro de um armazém, de nacionalidade brasileira, afirma que teve de disparar sua espingarda contra dois gatunos que tentaram penetrar no es tabelecimento quando lá dormia. Um dos ofendidos, de nacionalidade desconhecida, morre, mas o sobrevivente, um português, diz que fora cobrar do brasileiro uma dívida que tinha “por causa de um anel”.51 Finalmente, temos um grupo de marinheiros que sai para fazer compras; quando da saída de uma casa de negócios, um desses marinheiros pega a saca de compras de um outro — não se sabe se por acaso ou matreiramente. Daí surgem a discussão e a briga, na qual se enfrentaram um brasileiro pernambucano e um espanhol.52
Em contrapartida a estes 14 casos mencionados de brigas entre brasileiros e estrangeiros em situações ligadas à competição pela sobrevivência, temos apenas cinco casos de conflitos envolvendo apenas imigrantes e três envolvendo apenas brasileiros em situações semelhantes. Os processos que relatam conflitos entre imigrantes mostram as redes
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íntimas de solidariedade e ajuda mútua que estes imigrantes teciam entre si. Ao mesmo tempo, eles revelam que a mesma situação de penúria que reforçava estas redes de solidariedade entre patrícios impunha também certos limites a essas práticas de ajuda mútua, pois a necessidade de competir pela obtenção dos meios de sobrevivência obscurecia algumas vezes os laços de solidariedade nacional. De qualquer forma, e apesar de a documentação analisada ser especializada em violência, o que mais ressalta no conjunto é o caráter predominantemente solidário das relações entre imigrantes de mesma nacionalidade.
Uma boa parte do comércio da cidade do Rio de Ja neiro no início do século XX era realizada por ambulantes. Ao descrever a atividade dos ambulantes no período, Luiz Edmundo pinta em cores vivas uma atividade frenética, com homens e mulheres indo e vindo a gritar “histéricos pregões”.53 A descrição deste cronista sugere também que havia no comércio ambulante uma certa tendência de grupos de uma mesma nacionalidade em se dedicar a um ramo semelhante dentro dessa atividade. Assim é, por exemplo, que os italianos apa re cem como vendedores de peixe ou de jornal, os turcos e tur cas são vendedores de fósforos, es pe lhinhos, tesouras, bo tões e outras miudezas. Os portugueses, muito nume rosos, desempenhavam funções mais variadas, aparecendo como leiteiros, vendedores de frutas, bacalhau etc. Além dis so, Luiz Edmundo, ferrenho ini migo dos portugueses, a quem responsabilizava pelo “atraso nacional”, afirma que estes dominavam o pequeno comércio não ambulante da cidade, estando estabelecidos em “mercearias, padarias e quitandas”.54 Quanto aos brasi leiros, há a esperada referência à baiana “do cuscuz, da pa monha, do amendoim e da cocada”, aos “moleques ven dedores de biscoitos e de
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balas” e aos pretos vendedores de sorvete. Finalmente, cabe assinalar que, às vezes, os ambulantes de uma mesma nacio‑nalidade se aglomeravam numa determinada área da cidade, como, por exemplo, os imigrantes sírios e libaneses — cha‑mados indistintamente de turcos — que já naquela época se localizavam em grande número ao longo da Rua Senhor dos Passos e adjacências.
Assim, Miguel Abrahão, sírio, de 18 anos, solteiro, vendedor ambulante, narra o conflito a que assistiu entre dois outros vendedores ambulantes, seus patrícios:
[...] que anteontem às cinco horas e meia da tarde mais ou menos estando no largo da Sé em frente à igreja viu [...] o menor Salomão Elias vendedor ambu lante de fósforos e cigarros vendendo a um indivíduo e nesse [ilegível] apareceu um seu compatriota de no me Elias Iunes o qual teve forte discussão com Sa lomão; que este retirou‑se em direção à rua Uru guaia na sendo perseguido por Elias que aí vendo‑o vender cigarros e fósforos a um outro indivíduo, levantou do pau que consigo trazia dando uma pancada na cabeça, lado esquerdo, de Salomão produzindo‑lhe um “galo”, pas‑sando‑se este fato naquela rua entre a do Hospício e Alfândega em frente a uma padaria ali existente; que Salomão com a pancada foi por terra perdendo quase os sentidos ficando com fortes dores na cabeça e per‑turbado; que ao chegar em casa foi Salomão para o leito, vomitando muito e perdendo a fala, sendo então socorrido por diversos médicos entre eles o Dr. Olym‑pio da Fonseca; que Salomão apesar dos socorros pres‑tados veio a falecer ontem às sete horas da noite de comoção cerebral [...].55
Tanto o acusado quanto o ofendido neste episódio ti‑nham apenas 15 anos de idade. Os diversos depoimentos de
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imigrantes sírios no processo mostram a mobilização dos patrícios que eram vizinhos da família do “compatriota enfermo” para prestarlhe auxílio e mostrar solidariedade. Todos são unânimes em identificar a origem do conflito na concorrência entre os jovens pelo monopólio do pontodevenda no qual trabalhavam. Outro fato interessante é o duelo que se trava entre os agentes jurídicos: o delegado, ao redigir a formação de culpa, defende a tese da “futili dade” da agressão, “oriunda da venda de uma pequena caixa de fósforos” e cometida por um “bárbaro”; o advogado do réu contraargumenta que não houve “motivo fútil”, pois o réu e a vítima pretendiam “ter o exclusivo da venda no local em que se deu o fato” — para ele, o ocorrido foi uma “fatalidade”. Ao defender a tese da futilidade da agressão, o delegado está cumprindo o seu papel, que é o de tentar “produzir” o criminoso por meio de uma certa inter pretação ou leitura dos atos cometidos pelos con ten dores durante o confronto. O advogado de defesa reconhece no episódio uma situação clara em que indivíduos trocam acusações e se agridem com o firme propósito de garantir um espaço que lhes permita a sobrevivência. Contudo, ele concebe esta situação não como o produto concreto de determinações sociais mais amplas, mas sim como uma “fatalidade” — um acidente ou um capricho de um destino ignóbil. Neste caso, portanto, em que temos total concordância entre as testemunhas quanto aos atos e às motivações dos contendores, podemos discernir duas leituras divergentes destes atos, propostas a partir dos diferentes papéis sociais desempenhados pelos agentes jurídicos no episó dio.
O processo seguinte narra a briga entre dois vende dores ambulantes de nacionalidade portuguesa, Albertino Gonçalves, de 30 anos, casado, analfabeto, e José Antônio Vieira,
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de 15 anos, solteiro, “assina o nome”. O acusado Vieira conta o ocorrido:
[...] que saiu da rua da Misericórdia [...] na companhia do português Albertino Gonçalves e de Mar ce lino de tal e de Álvaro Joaquim Portela, com o fim [de] comprarem uma carroça para vender frutas, na rua de São Clemente [...]; que aí chegando tratavam de fazer o negócio sendo que Albertino Gonçalves, ofereceu mais do que ele acusado pela compra da carroça, motivo porque tiveram desde logo uma discussão dandolhe Albertino três bofetadas, motivo porque ele acusado lançando mão de uma pedra arre messoua à cabeça de Albertino e logo disparou a correr [...].56
Vemos aí, novamente, que os contendores competem pela obtenção de um instrumento de trabalho que é essencial para a sua sobrevivência, ou seja, a carroça de frutas. A análise do processo em seu conjunto, no entanto, caracteriza bem a estreiteza dos laços de solidariedade entre os imigrantes portugueses em questão. Uma das testemunhas, outro português vendedor de frutas, de 43 anos, conta que o acusado Vieira, ao chegar de Portugal havia poucos meses, hospedarase em sua casa e resolvera iniciar sua vida na nova terra também como vendedor ambulante de frutas e hortaliças. Vieira trabalhava com o filho desta testemunha, “portandose sempre com a melhor correção já nos serviços que lhe eram encarregados, já particularmente”. A união entre estes portugueses é evidenciada mais ainda pelo fato de que o próprio ofendido pede para não ir a corpo de delito, pois não queria incriminar o acusado, que era seu amigo. Este caso, portanto, ilustra bem as possibilidades que se abriam ao imigrante português que chegava ao Brasil, pois podia contar com a ajuda de outros patrícios para iniciar a vida.
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Esta vida nova, entretanto, podia ter vicissitudes imprevistas: o ofendido não contou com o atendimento médico adequado, afirmando uma das testemunhas que houve grande demora na Santa Casa, e acabou falecendo devido ao ferimento recebido.
Foram localizados ainda dois casos de brigas entre portugueses neste contexto. Em um deles, o acusado — que se declarou desempregado — parece ter invadido o sítio do ofendido para roubar e, sendo descoberto, lutou com seu opositor e acabou por matálo.57 Em outro processo, não se sabe bem o motivo da rivalidade entre dois portugueses, ambos estivadores, mas durante a troca de provocações um deles fica bastante aborrecido ao ser chamado de “vagabundo”.58 Finalmente, temos apenas um caso de tentativa de homicídio entre imigrantes de nacionalidades diferentes, que serve para ilustrar novamente os laços de solidariedade existentes entre imigrantes de mesma nacionalidade. A testemunha João de Oliveira, espanhol, de 59 anos, viúvo, analfabeto, hortelão, narra o conflito entre seu patrício Joaquim Biosco, de 47 anos, solteiro, hortelão, e o português Ma noel Antônio, de 23 anos, casado, analfabeto, carroceiro:
[...] que passava em frente à casa do senhor Manoel dos Prazeres e ali viu o indivíduo Manoel Antônio conversando com a senhora do senhor Ma noel dos Prazeres dizendo as seguintes palavras: que iria à casa do espanhol Joaquim Biosco para matálo, visto ter este machucado um seu animal, e que isso não passaria de hoje, só se ele não pudesse; que a senhora de Manoel dos Prazeres procurou dissuadilo de seus intentos, nada conseguindo, porém, que o que declara ouviu pelo interesse que a conversação lhe despertara, tratandose, como se tratava, de um conhecido seu; que despedindose da senhora referida dirigiuse à casa de Joaquim Biosco, que fica
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próxima, a quem interpelou na porta da rua sobre a origem dos fe rimentos que alegava apresentar um burro de sua propriedade, que conduzia; que Joaquim Biosco negando a autoria de tais ferimentos apenas informou que, mais de uma vez, teve ocasião de enxotar de sua horta animais que ali entravam, mas isto sem ferilos, que nesta ocasião, dando por finda a discussão Manoel Antônio simulou retirarse, dizendo ir queixarse à polícia de Joaquim Biosco; que este não dando importân cia ao caso encaminhouse para o interior de sua casa, ao mesmo tempo que Manoel Antônio retrocedendo disparou dois tiros de revólver contra Biosco e fugiu, internandose no mato próximo [...].59
Neste conflito, ocorrido na freguesia de Santa Cruz, vemos que os contendores se enfrentam por questões que envolvem diretamente seus meios de sobrevivência em uma freguesia rural: a pequena produção de alimentos — no caso, a horta de Biosco — e um animal fundamental para o transporte — no caso, o burro de Manoel Antônio. A análise conjunta dos depoimentos revela uma divisão estrita entre os portugueses e os espanhóis que nos dão sua versão dos fatos. O espanhol Oliveira, como vimos em suas declarações, diz que o português Manoel atirou em seu patrício à traição, depois de ter dito a outras pessoas que iria matálo. Um outro espanhol, que se diz “amigo e compadre de Biosco”, confirma esta versão dos fatos e conta que seguiu imediatamente para a casa de Biosco, com o intuito de ajudálo. A portuguesa Leonor da Luz, porém, dá um depoimento bem mais favorável ao acusado. Confirma que Manoel fora procurar seu marido, e isto porque Biosco já “há tempos chumbou dois animais do marido da declarante”. Leonor afirma ainda que Manoel não havia absolutamente declarado que iria matar Biosco, e sim apenas exigir uma indenização pelos
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ferimentos infligidos a seu burro. O português Manoel também afirma que não teve intenção de matar o espanhol e que só atirou para se defender, pois este ameaçava puxar uma arma para agredilo. Vemos, assim, que a rivalidade entre estes portugueses e espanhóis era antiga, como confirma ex plicitamente uma das testemunhas, e que a rixa tem um desfecho violento quando as animosidades rebentam em danos aos meios de sobrevivência das partes em confronto.
Resta ainda comentar os três únicos processos que narram brigas entre brasileiros em situações de trabalho. O pe queno número de casos neste item parece confirmar o ar gu mento que procuramos propor de que as rivalidades na cio nais e raciais — que ocorriam simultaneamente na maio ria das vezes — eram a principal expressão dos conflitos que envolviam a luta pela reprodução da vida material entre nossos personagens. As situações concretas que ensejam estas brigas entre brasileiros parecem em tudo semelhantes às condições em que se deram os conflitos já analisados nesta parte. O primeiro caso eclode quando um dos contendores vê ameaçados seus meios de sobrevivência: um in divíduo carregava frutas para vender e um outro pediu que ele lhe desse algumas, o que o vendedor se recusou a fa zer.60 No segundo caso, vemos a competição no trabalho: dois empregados de uma padaria brincam durante a jornada de trabalho, até que as pilhérias de cunho machista se azedam e um dos indivíduos agride o outro com uma bofetada, levando um tiro como troco.61 No último processo do grupo, o assunto é o desemprego: dois cocheiros vão para um botequim conversar e acabam discutindo e brigando “por questões de servi ço”. O agressor havia perdido o emprego na véspera.62
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De tudo que ficou dito até aqui, parece claro que a característica essencial destas tensões e rixas associadas aos pro blemas de reprodução da vida material de nossos personagens era o fato de que elas se exprimiam principalmente através de conflitos entre imigrantes e brasileiros pobres, especialmente os de cor. Estes confrontos entre estrangeiros e brasileiros pobres, que ressaltam na documentação coligida como um traço fundamental do diaadia distante e em grande parte obscuro das classes populares do Rio de Ja neiro na República Velha, coadunamse perfeitamente com as determinações estruturais mais amplas do processo histó rico da cidade e do próprio país naquele período .
Estes conflitos, como já foi mencionado anteriormente, dãose num momento preciso da história da cidade, ou seja, num momento de transição para uma ordem capitalista. Este momento caracterizavase também por uma presença ma ciça de imigrantes na cidade — especialmente portugueses — que se vieram juntar aos milhares de brasileiros pobres de cor que já aí se encontravam e continuavam a afluir do interior do país. Criase assim uma situação altamente competitiva para os membros da classe trabalhadora, pois o mercado de trabalho assalariado em formação na cidade não tem condições de absorver esta mão deobra abundante. Na verdade, os donos do capital se beneficiavam amplamente da existência deste exército de reserva na capital da República, já que isso barateava bastante o custo da força de trabalho. Quanto aos populares, tinham de conviver com as agruras de um futuro incerto, baixos salários, longas jornadas de trabalho e árdua competição para conseguirem uma ocupação como assalariados da indústria ou do comércio. Muitos optam, temporária ou definitivamente, por desempenharem atividades à margem desse mercado de trabalho em formação,
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exercendo atividades autônomas que lhes garantiam a sobrevivência. Por exemplo, o comércio ambulante, filho mais da necessidade e da tradição do que da opção desses indivíduos, floresce na cidade e dribla com maestria a repressão que lhe é imposta pelo “progressismo” equívoco de alto custo social das elites, tão bem representado pela ânsia demolidora — mas dita “civilizadora” — do prefeito Pereira Passos, como veremos com mais detalhes logo adiante.
Mas mesmo entre os membros da classe trabalhadora, que sofreu como um todo os resultados concretos dessa transição para a ordem capitalista e a ideologia do progresso que a acompanhava, houve vencedores e perdedores. Como vimos, na prática cotidiana da vida, tal como se manifesta nos conflitos microssociais recuperados por nós, a competição pela sobrevivência e pela ascensão social entre os populares tendia a colocar em campos opostos de luta imigrantes e bra sileiros pobres, especialmente os de cor. Que estas tensões tivessem que se exprimir desta forma precisa, e não de qualquer outra, parece ser em grande parte o resultado das tra di cionais contradições senhorpatrão branco versus es cra voempregado negro, e colon iza dorex plorador português versus colo nizadoexplorado brasileiro que vinham dando a tônica do processo histórico da cidade do Rio de Janeiro ha via séculos. Deste confronto, reativado no período pósAbolição através da chegada maciça de imigrantes, especialmente portugueses, à cidade, resultou a recriação ou a continuação em um novo contexto da subordinação social do negro brasileiro. A documentação coligida e analisada até aqui, assim como parte do que ainda virá a seguir, permitenos aventurar hipóteses sobre o porquê deste fato.
Primeiramente, há o fato óbvio de que havia uma clara predisposição por parte dos membros das classes dominan
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tes em pensar o negro como um mau trabalhador e em reconhecer no imigrante um agente capaz de acelerar a transição para a ordem capitalista. Em termos práticos, isso sig nificava que os indivíduos que tinham o poder de gerar empregos tendiam a exercer práticas discriminatórias contra os brasileiros de cor quando da contratação de seus empregados. O forte preconceito contra o negro se combinava na época com a obsessão das elites em promover o “pro gresso” do país. Uma das formas de promover este “progres so” era tentar “branquear” a população nacional. A tese do branqueamento tinha como suporte básico a idéia da supe rioridade da raça branca e postulava que com a miscigenação constante a raça negra acabaria por desaparecer do país, melhorando assim a nossa “raça” e eliminando um dos principais entraves ao progresso nacional — a presença de um grande contingente de população de cor, pessoas pertencentes a uma raça degenerada.63 O paroxismo desses sentimentos negativos em relação ao negro dá uma idéia exata das dificuldades que ele tinha de enfrentar para conseguir uma colocação como assalariado em estabelecimentos comerciais e industriais dominados por brancos.
Existia ainda, no caso da cidade do Rio de Janeiro, um outro fator de complicação para o negro: além de branco, era grande a probabilidade de ele ter de se defrontar com um empregador estrangeiro, na maioria das vezes portu guês. Com efeito, os portugueses dominavam grande parte da atividade comercial e de serviços da cidade e mostravam uma acentuada preferência por seus patrícios quando da contratação de empregados.64 É verdade que a atitude das classes dominantes em relação ao português era em geral ambígua, e Luiz Edmundo, por exemplo, chega a sugerir que eles eram os “autores do atraso nacional”.65 Esta atitude negativa em
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relação ao português, entretanto, era rela tivizada pelo fato de que dentro das próprias elites parecia haver um número considerável de abastados comerciantes portugueses. Entre os populares, os portugueses carregavam, sem dúvida, o estigma de serem avarentos e exploradores, o que na ver dade apenas refletia a situação real de predominância por tuguesa no pequeno comércio da cidade. Em suma, os bra sileiros pobres de cor se viam praticamente privados da pos sibilidade de conseguir uma colocação como assalariados numa das áreas mais dinâmicas da economia da cidade — o comércio.
Patrão e empregado
A imagem da relação patrão–empregado geralmente veiculada pelas classes dominantes brasileiras na República Velha era de que esta relação se assemelhava em muitos aspectos à relação entre pais e filhos. O patrão era uma espécie de “juiz doméstico” que procurava guiar e aconselhar o trabalhador, que, em troca, devia realizar suas tarefas com dedicação e respeitar seu patrão.66 Esta imagem ideal da relação patrão–empregado tem um objetivo óbvio de controle social, procurando esvaziar o potencial de conflito inerente a uma relação baseada fundamentalmente na desigualdade entre os indivíduos que dela participam.
Uma questão importante é saber até que ponto esse paternalismo na relação patrão–empregado é realmente compatível com relações de produção do tipo capitalista. Procurarei argumentar nesta parte que, no contexto da transição para a ordem capitalista na cidade do Rio de Janeiro na República Velha, a imagem paternalista da relação patrão–empregado funcionou eficazmente como elemento
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mitigador das tensões entre patrões e empregados, pelo menos até o final da primeira década do século XX. Ressaltese aqui que a documentação coligida privilegia os pequenos e médios empreendimentos econômicos — sejam eles agrícolas, comerciais ou industriais —, não versando sobre a relação patrão–empregado em empreendimentos de maior vulto, como as grandes indústrias, por exemplo.67
Há diferenças no conteúdo do paternalismo na relação patrão–empregado dependendo do tipo de atividade econômica na qual se realiza essa relação. Assim, comecemos por analisar dois processos provenientes das fregue sias rurais da cidade e que envolvem diversos lavradores. Benjamim Marques Seixas, de 22 anos, solteiro, português , analfabeto, conta a briga que teve com o pardo João de tal:
[...] que hoje às nove horas da noite mais ou menos ele declarante foi a uma venda da vizinhança e encos touse ao balcão; que na dita venda se achavam Domingos Manoel da Rocha e um João de tal, ambos de cor parda, e este, para implicar com o declarante, disselhe que se desencostasse, ao que o declarante não deu resposta alguma e retirouse para dentro do terreno da chácara em que mora; que daí a momentos entraram os ditos Domingos e João e aproxi maramse do respondente; que em seguida, o mesmo Domingos começou a provocálo insultandoo com palavras; que em seguida, João também insul touo, e sem que o declarante desse o menor motivo, o mesmo João, armado de um cacete, com ele deulhe duas cacetadas [...]; que depois de ferido o respondente correu para o interior da casa onde se achava seu patrão Manoel dos Santos festejando São Manoel com diversos amigos, e referindolhe o sucedido em altos gritos foi logo socorrido pelo dito seu pa
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trão que saiu imediatamente em demanda do criminoso, e chegando ao sítio onde tivera lugar o fato referido, não mais foi encontrado o seu agressor pois tinhase já evadido, achandose aí somente Do mingos a quem seu dito patrão intimou para vir dar suas declarações nesta delegacia.68
Estamos novamente diante de um conflito entre um português e um brasileiro pobre de cor. O depoimento de Benjamim, apesar de narrar um conflito ocorrido no seu período de lazer, é muito útil para compreendermos as condições de trabalho numa freguesia rural da cidade e o tipo de relação patrão–empregado vigente nesse contexto. Benjamim residia no seu local de trabalho, ou seja, morava na chácara de hortaliças cujo dono, seu patrão, era um português de 30 anos, solteiro e que sabia ler e escrever. O dono da chácara estava festejando são Manoel com alguns “amigos”, e pelo depoimento das testemunhas notase que alguns destes “amigos” eram empregados seus na dita chácara. Vemos, portanto, o convívio íntimo entre o patrão e seus empregados que, no caso, também eram portugueses, reforçando assim a noção de que o imigrante, quando patrão, discriminava abertamente o brasileiro pobre por ocasião da contratação de seus empregados. Notese também que, nestas pequenas propriedades agrícolas das freguesias rurais da cidade, patrões e empregados compartilhavam as mesmas condições de vida e, em alguns casos, como no narrado acima, a identidade cultural e os laços de solidarie dade nacional diminuíam a distância social e congraçavam todos em torno de festejos e do objetivo comum de ganhar a vida.
Apesar do abrandamento da distância social entre patrão e empregado neste contexto, a situação como um todo revestese de um claro teor paternalista. Todos os portugue
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ses reunidos na casa de Manoel prontamente se uniram em torno do patrício ofendido e foram à delegacia denunciar o ocorrido. É significativo, no entanto, o fato de Ben jamim se dirigir ao patrão “em altos gritos” pedindo sua ajuda. O patrão é a primeira pessoa a quem o ofendido recorre, e deste mesmo patrão ele espera proteção e solidariedade total neste momento de infortúnio. O patrão, por sua vez, corresponde às expectativas e age imediatamente para redimir seu empregado das ofensas do pardo João de tal. Em contraste com o comportamento solidário dos portugueses, o pardo Domingos — sem dúvida ciente de que se encontrava numa situação em que a relação de forças lhe era amplamente desfavorável, podendo ser considerado cúmplice na prática do delito — tentava livrarse dos apuros em que se achava incriminando ainda mais seu companheiro foragido, João de tal, que seria um “desordeiro conhecido e de maus instintos”.
O processo seguinte também mostra a convivência íntima entre patrões e empregados numa freguesia rural da cidade, sendo que novamente um empregado conta com a proteção do patrão num momento de apuros. Antônio Fernandes, conhecido como Antônio Espanhol devido à sua nacionalidade, de 40 anos, solteiro, analfabeto, lavrador, narra assim o ocorrido:
[...] que em um dos domingos do princípio do mês corrente ele declarante veio às seis horas da tarde mais ou menos ao botequim de Tomás Espanhol situado na estação do Cordovil, em companhia de Francisco Cunha e José Antônio Cunha, a fim de be berem um pouco, quando aí estavam apareceulhes Manoel Bo ni fácio da Silva, conhecido por Manoel da Pinga, que com ele e seus companheiros também bebera; que Ma noel Boni
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fácio da Silva é empregado dele declarante e de seus sócios José da Cunha e Francisco da Cunha; que passada uma hora mais ou menos [...] apareceu no referido botequim José Caboclo, e tomou um cálice de parati e ao entrar Ma noel Bonifácio dirigiralhe a palavra, usando desta frase: Vaite embora José, não venhas comprometer aqui a ninguém, José retirouse mas voltou pouco tem po depois e ficando como que espiando na porta do botequim, Manoel Bonifácio repetiu a frase [...] e como José Caboclo continuasse espiálo, Manoel Bo nifácio saiu do botequim e correu perseguido por José Caboclo, e alcançado aquele por este, atra caramse os dois [...] que continuando na luta, o seu sócio Francisco da Cunha interveio e os separou [...].69
A primeira parte do depoimento de Antônio Espanhol relata uma cena na qual patrões e empregado confraternizam num botequim próximo à pequena roça na qual todos trabalhavam. Neste ínterim, o empregado Manoel da Pinga, natural do estado do Rio, 30 anos, solteiro, analfabeto, entra em conflito com um dos outros freqüentadores do botequim. No depoimento acima, um dos patrões de Pinga procura colocar tanto a si como aos seus sócios Francisco e Antônio Cunha, ambos portugueses, como simples observadores do conflito, tendo Francisco tentado apenas apartar a briga. As outras testemunhas, entretanto, contam em sua maioria que os patrões “tomaram as dores” de Pinga, e o auxiliaram na agressão ao pardo José Caboclo. Este apareceu morto no dia seguinte, estendido na linha do trem, e a polícia suspeitava que ele não havia sido atropelado pelo trem, mas sim colocado nos trilhos quando já era cadáver. Os três patrões e o empregado Pinga, portanto, tornamse suspeitos de terem cometido o crime e são processados por homicídio. Os quatro acusados se defendem sem procurar incriminar
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uns aos outros, com todos afirmando que o fato de Caboclo ter sido pego pelo trem nada tinha a ver com a briga que havia ocorrido no botequim horas antes. Os atropelamentos pelos trens da Leo poldina eram bastante comuns nessa época, e os réus acabaram impronunciados por falta de provas.
Os casos relatados sugerem, portanto, que nesses pequenos empreendimentos agrícolas nas freguesias rurais da cidade havia a possibilidade de uma relação bastante estreita entre patrão e empregado, o que diminuía de certa forma a distância social entre eles. Mesmo assim, o patrão tendia a desempenhar o papel de protetor e orientador de seus empregados, que sem dúvida lhe retribuíam a proteção com longas e penosas jornadas de trabalho. A relação patrão–empregado nos pequenos empreendimentos econômicos nas freguesias mais urbanizadas da cidade era, em muitos aspectos, semelhante à descrita nestes casos rurais; no entanto, parece haver também alguns elementos novos.
A semelhança essencial é que, tanto nos pequenos empreendimentos rurais quanto nos urbanos, a atitude paternalista dos patrões tem o claro sentido de possibilitar o aumento da exploração da força de trabalho. Nas pequenas casas comerciais do centro da cidade, por exemplo, como vendas, padarias, botequins etc., era comum que o patrão permitisse que o empregado residisse e se alimentasse no próprio local de trabalho. Em compensação, ao fazer isto, o empregado se obrigava também a cumprir longas jornadas de trabalho, pois muitos desses estabelecimentos normalmente fechavam apenas por poucas horas durante a noite. Aluísio Azevedo, em O cortiço, seu célebre relato da vida das classes populares da cidade do Rio de Janeiro no fim do século XIX, sugere um outro possível significado que os empregados desses pequenos estabelecimentos comerciais
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deviam atribuir à atitude paternalista dos patrões. Ele nos conta, logo no início do livro, como o personagem principal, o português João Romão, iniciara a escalada que o levaria ao enriquecimento. João trabalhara dos 13 aos 25 anos como empregado de um vendeiro que acabara fazendo fortuna em sua “suja e obscura taverna” no bairro de Botafogo. João economizara bastante durante esses anos, e o patrão, ao voltar para Portugal, deixou para seu empregado como pagamento “nem só a venda com o que estava dentro, como ainda um conto e quinhentos em dinheiro”.70
O que a história de João Romão parece sugerir é que a dedicação e submissão ao patrão durante tantos anos justificavamse, na verdade, pela esperança de ascensão social que sua situação lhe dava. Essa esperança de ascensão social era bastante justificável em seu caso, pois tinha a pele branca e era um imigrante que trabalhava para seu patrício. O processo seguinte sugere mesmo que nos pequenos estabelecimentos comerciais — onde predominava o paterna lismo na relação patrão–empregado de uma forma bastante direta — o empregado se sentia quase que como um sócio de seu patrão e, pelo menos às vezes, identificavase inteiramente com os interesses dele. Essa identificação de interesses entre patrão e empregado aumentava ainda mais quando ambos eram imigrantes e, muitas vezes, até parentes. Assim, Augusto Bastos, português, solteiro, de 21 anos, trabalhava como caixeiro na venda de seu tio José Bastos, também português, de 32 anos, solteiro. Ambos sabiam ler e escrever, e Augusto conta na delegacia o caso de tentativa de homicídio no qual teria sido vítima:
[...] que anteontem cerca de dez horas da noite pouco mais ou menos como de costume fechou as portas da
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casa de negócio onde é empregado e em seguida veio para a porta da rua e encostouse para tomar fresco a um dos umbrais de pedra da porta, e viu em seguida Epaminondas Mirandela, residente na casa fronteira, em estado exaltado proferindo obscenidades as quais eram dirigidas ao seu patrão que achavase ausente por já ter se retirado para a sua residência, dizendo mais que havia de matar todos os galegos aí residentes. Que cerca de onze horas da noite do mesmo dia, Epaminondas Miran dela, saindo pelos fundos da casa de sua residência, veio para a calçada da sua casa e daí de revólver em punho continuou a proferir obscenidades e falar no nome de seu patrão, José de Oliveira Bastos, e em seguida apontando o revólver para ele depoente desfechou dois tiros [...].71
O acusado Epaminondas Mirandela era natural do estado do Rio, tinha 30 anos, era casado, sabia ler e escrever e possuía uma venda bem próxima àquela de José Bastos. Os dois negociantes tinham acirrada rivalidade devido à concorrência comercial que travavam. Epaminondas nega a acusação de que teria atirado em Augusto, dizendo que “tudo não passa de uma farsa” e atribuindo a queixa “à desvan tajosa concorrência que a sua casa de negócio faz à casa do queixoso, tanto assim que no domingo passado as portas do negócio dele depoente amanheceram sujas de fezes”.
Há diversos aspectos a ressaltar nesse episódio. Primeiro, a competição comercial entre os pequenos negociantes se exprime ou se confunde com as rivalidades nacionais entre brasileiros e portugueses. Segundo algumas testemunhas, Epaminondas diz mesmo que havia de agredir os portugueses, pois “que quem mata galegos não tem crime”. Este conflito pode ter sido também a expressão de tensões raciais, pois Epaminondas é identificado como um indivíduo
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“de cor morena”. Segundo, vemos que Epaminondas não faz distinção alguma quanto a seus opositores: o nego ciante e o seu empregado são tratados igualmente como seus inimigos, que tendem apenas a ser identificados como membros de um conjunto mais amplo e numeroso de antagonistas — os “galegos”. Finalmente, a situação configurada na venda de José Bastos é típica do Rio de Janeiro daquela época, sendo uma presença quase constante na do cumentação analisada. Aí temos patrão e empregado portugueses habitando o mesmo local em que trabalham. O empregado é considerado um protegido do patrão, que no caso — de forma nenhuma atípico — é também seu tio. O próprio empregado e sobrinho, ao relatar a ocorrência na pretoria, informanos que é “caixeiro de seu tio [...] tomando interesse pelo negócio”, o que mostra de forma inequívoca que a situação em que se encontrava continha uma possibilidade, ou até mesmo uma promessa, de ascensão social.
Um outro indicador de que o teor paternalista da relação patrão–empregado funcionava como eficiente mitigador de conflitos é o pequeno número de casos de brigas entre patrão e empregado localizados por nós. Em apenas dois processos temos conflitos diretos entre patrão e empregado. Assim, Manoel de Abreu, português, de 25 anos, casado, alfaiate, analfabeto, narra a briga que teve com seu empregado Bernardo Francez, italiano, de 17 anos, solteiro, analfabeto:
[...] que Bernardo Francez era seu empregado e ontem saiu sem ter para tal fim pedido a necessária licença pelo que quando voltou fezlhe as contas e o despediu, tendo Bernardo ficado a deverlhe vinte e quatro milréis provenientes do restante de um terno de roupa; que Bernardo saiu e às duas horas da tarde voltou e pela
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janela começou a insultálo com frases ofensivas como sejam filho da puta, corno e outros e apanhando de uma pedra a arremessou para sua casa indo ela quebrar o vidro da janela; que ele declarante exasperouse com esse procedimento de Bernardo tirando de sua gaveta o seu revólver “Bul dog” e disparou dois tiros.72
O empregado Bernardo dá uma versão diferente dos fatos, afirmando que ele mesmo havia se despedido do emprego e que a briga com Manoel de Abreu se deu porque este havia estragado um terno de sua propriedade, cor tandoo com uma tesoura e arremessandoo na rua. A defesa do réu neste processo exemplifica novamente como o discurso jurídico desempenha o seu papel na construção ideológica da oposição bom trabalhador/mau trabalhador ou trabalhador/vadio. O advogado de defesa afirma que Ma noel “não é um desocupado, mas um honesto operário alfaiate, que procura tirar com seu trabalho os meios de subsis tência para sua família”. Temos aí, portanto, a tentativa de enquadrar o acusado na imagem ideal de homem que é compatível com a ordem capitalista emergente: Ma noel é um bom trabalhador, que cumpre sua função social essencial — a de prover a subsistência de sua família. Ber nardo, por outro lado, aparece no discurso do advogado de defesa como um mau trabalhador, que havia “incorrido em diversas faltas no seu trabalho”, a ponto de provocar críticas dos fregueses.
No processo seguinte, temos um negociante português que tem como empregados dois outros portugueses. O patrão Antônio da Mata, de 28 anos, casado, sabendo ler e escrever, conta como acabou levando um tiro de seu empregado, o compatriota Firmino Rodrigues, de 23 anos, solteiro, analfabeto:
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[...] que mandou o acusado levar um amarrado de cinqüenta sacos a um freguês, saindo o mesmo de sua casa pelas nove horas da manhã. Que o acusado voltou desse serviço que poderia ser feito em duas horas às quatro da tarde razão pela qual ele informante admoestouo. Que em resposta disse o acusado que ainda tinha vindo cedo, limitandose ele informante a dizer: bom, está direito, está a tua vontade. Que o acusado entrou para os lados da cozinha onde pôsse a brincar com seu companheiro José Afonso, enquanto ele informante continuava na sala no serviço de sacos na presença de Miguel. Que ouvindo ele informante o acusado dizer: olha que eu atiro, levantouse para impedir a continuação de tal brinquedo, nada podendo fazer por ter recebido um tiro no rosto [...] Que o acusado era seu empregado apenas há oito dias e que anteriormente já o fora também sendo certo que entre os dois nunca houve a menor desavença [...].73
Neste caso, vemos que Antônio tem dificuldade de manter a disciplina de seus compatriotas e empregados durante o serviço. As testemunhas dividemse entre duas possíveis ver sões dos fatos: alguns depoentes acham que a agressão foi proposital, pois Firmino ficara ofendido com a repreensão que levara de seu patrão; outros depoentes, porém, procuram inocentar Firmino, dizendo que a arma havia disparado acidentalmente quando Firmino brincava com José Afonso, seu companheiro de trabalho e patrício. O mais interessante é que o próprio depoimento do patrão e ofendido não é peremptório a esse respeito: apesar de admitir que havia repreendido seu empregado, Antônio termina por dizer que jamais havia tido desavença com Firmino. Beneficiado pela dúvida, o réu é facilmente absolvido no júri.
Parece, contudo, existir uma relação direta entre maior grau de hierarquização das posições no trabalho e a ocor
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rência de conflitos durante o serviço, pelo menos em empreendimentos econômicos de pequeno ou médio porte. A maior hierarquização aumenta a distância entre os patrões e os empregados mais subalternos, criando uma camada intermediária de funcionários privilegiados que não é bem vista pelos funcionários inferiores. Quando estão ausentes as mediações da hierarquia de comando, é menor a distância social entre patrão e empregado, o que tende a despertar menores contradições entre ambos. O pequeno negociante ou empresário, não raro recémsaído dos próprios meios operários, serve antes como um modelo de ascensão social para cada um de seus empregados, que o respeitam pelo seu êxito pessoal.74 Convém, no entanto, não idealizar o quadro: mesmo que a documentação coligida mostre que o empregado muitas vezes se identifica claramente com os interesses do patrão nos pequenos empreen dimentos econômicos, a situação é em si contraditória e potencialmente conflitiva. No último processo comentado, por exemplo, vimos que o patrão Antônio e o empregado Firmino têm uma concepção diferente acerca do tempo necessário para realizar a tarefa “de levar um amarrado de cinqüenta sacos a um freguês”. O patrão acha que Fir mino demorouse demasiadamente na tarefa, mas este retruca que “ainda tinha vindo cedo”. Este curto diálogo mostra bem os limites objetivos de uma possível comunidade de interesses entre patrão e empregado, mesmo no âmbito do pequeno empreendimento econômico.
De qualquer forma, as evidências indicam que o aumento das mediações da hierarquia de comando enfraquece de certa forma a eficácia da dominação paternalista, acirrandose então os conflitos entre os empregados e os funcionários intermediários que representam, por via de regra, os interesses do patrão. Assim, por exemplo, o português An
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tônio Ferreira da Costa era o encarregado de uma co cheira onde também trabalhava um outro português, de nome Joaquim Pereira. Certo dia, por volta das seis horas da tarde, Joaquim voltava do serviço para a cocheira e, ao aproximarse, Antônio lhe gritou para que não soltasse ainda os animais. Seguiuse uma “grande questão” na qual Joaquim agrediu Antônio. Em seu depoimento, Joaquim se defende dizendo que o encarregado o havia maltratado, implicando com ele “a ponto de querer intervir em seu serviço”.75
O próximo processo é bastante rico, envolvendo em uma mesma situação relações paternalistas entre o representante do patrão, isto é, o gerente, e alguns empregados, insubordinação de outros empregados em relação à autoridade deste mesmo gerente e, como pano de fundo do conflito, as rivalidades nacionais entre brasileiros e portugueses e também entre imigrantes de nacionalidades diferentes. A cena se passa na cocheira de uma empresa de transporte de carnes verdes, à Rua Mariz e Barros. A cocheira pertence a uns portugueses, que não estão presentes na ocasião. Lá trabalhavam diversos empregados de nacionalidade portuguesa, mas havia também alguns brasileiros e pelo menos um espanhol. Havia uma considerável hierar quização do comando, pois, além dos patrões ausentes, temos ainda, pelo menos, um encarregado ou gerente e seu assessor, ambos de nacionalidade portuguesa. O acusado Maciel Rodrigues Veiga, espanhol, de 27 anos, solteiro, sabendo ler e escrever, cocheiro, dá a sua versão dos fatos:
[...] quando estava a aparelhar bestas para metêlas na carroça, sucedeu que uma delas lhe pisou o pé, e então ele deu nela uma pancada com um pequeno pau que apanhou no chão; que vendo isto o feitor Nogueira
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repreendendo [sic] dizendo‑lhe que não queria que maltratasse os animais e que estava despe dido do servi‑ço, e chamando‑o de filho da puta a uma observação que lhe fez [...], respondeu que filho da puta era ele Nogueira; que ouvindo isto, Nogueira avançou para ele armado de machado, circundado por mais outras pessoas, que [...] agredido, fugiu dizendo: “Esperem aí que vocês me pagam”; que foi à casa, armou‑se de um revólver de seu uso e com ele armado voltou à co‑cheira; que aí chegado, disse, dirigindo‑se ao feitor Nogueira “agora estou aqui, se vocês querem me matar, que venham”; que nesse ato Domingos Antônio Nunes, conhecido por Pi ca‑Fumo [...] que estava à porta do escritório puxou do revólver e deu no declarante um tiro que não o atingiu; que recebendo o tiro, o decla‑rante correu para o fundo da oficina [...] ouvindo um rapaz gritar que estava ferido [...]; que Domingos Pi‑ca‑Fumo não gosta dele declarante e tem má vontade contra ele há muito tempo, tendo tido também questões por motivos de serviço com o feitor Nogueira que re‑puta também seu desafeto.76
O mais revelador neste processo é reparar como se constituem os grupos em confronto. Apoiando a versão do espanhol Maciel, segundo a qual havia sido o português Pica‑Fumo, uma espécie de assessor do gerente, o autor do disparo que acabou por matar um outro empregado da co‑cheira, temos diversos cocheiros de nacionalidade brasileira. Estes cocheiros dizem ainda que o animal que levara a pan‑cada de Maciel era “trêfego e insubmisso” e que realmente diversos empregados seguiram o espanhol armados de paus e vassouras. Para completar, afirmam que o acusado era homem “trabalhador, sempre empregado e de bons costu‑mes”. O outro grupo, encabeçado pelo gerente e por Pi‑ca‑Fumo, era constituído quase exclusivamente por portu‑
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gueses e, segundo sua versão dos fatos, o espanhol Maciel havia espancado “brutalmente” o animal, teria xingado Nogueira de “galego” e “filho da puta” e havia disparado diversos tiros.
A situação descrita contém em si vários dos antagonismos possíveis e que temos visto repetidamente nestes microgrupos de trabalho que analisamos. Primeiro, temos a oposição já amplamente vista entre os empregados brasileiros e os portugueses. Os brasileiros apóiam em sua maioria a versão do acusado, o espanhol Maciel, enquanto todos os portugueses apóiam a versão dada pelo gerente e por PicaFumo, seus compatriotas. Segundo, temos o antagonismo entre alguns empregados — o espanhol e alguns brasileiros — e os funcionários intermediários da hierarquia de comando na cocheira. O episódio relatado se inicia quando o espanhol Maciel não aceita a repreensão do gerente e se insubordina. Finalmente, o advogado de defesa parece ter percebido bem o sentido do jogo de forças em questão ao contestar os depoimentos dos empregados portugueses da cocheira, dizendo que eles eram “dependentes” do gerente e de PicaFumo. Com isto, ele parece compreen der que os empregados portugueses gozavam de uma situa ção privilegiada na dita cocheira, pois seus patrões e os funcionários intermediários eram seus compatriotas. O próprio fato de que os funcionários intermediários eram portugueses já mostra que os patrícios dos proprietários da cocheira estavam mais justificados em sonhar com a ascensão social em futuro próximo e, por conseguinte, apoiavam mais facilmente o gerente quando do confronto deste com um seu companheiro de trabalho.
Em outro processo, vemos uma situação em que, num conflito entre um funcionário intermediário, no caso um
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chefe de tráfego de uma companhia de bondes, e um funcionário subalterno, muitos empregados parecem coagidos a apoiar a versão do chefe de tráfego com receio de possíveis represálias. O chefe de tráfego resolvera passar um fiscal do quadro dos fiscais efetivos para a reserva. Daí para a frente existem duas versões sobre os acontecimentos: o chefe diz que o fiscal se revoltara e tentara assassinálo a tiros de revólver; o fiscal, por outro lado, diz que tudo não passava de invenção e que nem sequer estivera no local mencionado como a cena do crime. As testemunhas, todos portugueses e espanhóis, apóiam a versão do chefe, mas não de forma muito contundente. Em geral dizem que viram o acusado no local do crime e que ouviram disparos, mas alguns deles afirmam que viram o acusado dar os tiros contra o ofendido. Contestando uma destas testemunhas, o acusado diz que “a mesma deu seu depoimento por insinuação do ofendido, que sendo chefe do tráfego [...] se assim não procedesse teria sido demitido perdendo o lugar”. O juiz parece dar mais crédito à versão do fiscal, ressaltando até mesmo que fora o próprio ofendido quem dera a queixa, sendo que a polícia não havia sabido do ocorrido anteriormente. Justificando sua decisão de declarar im procedente a denúncia, o juiz escreve:
[...] considerando que as testemunhas inquiridas no sumário [...] são em pregados subalternos da aludida companhia e dependentes mais ou menos do suposto ofen dido; e que essas testemunhas mereceram por isso a contradita que o réu lhes opôs; que essas testemunhas, além de serem suspeitas, são discordes e incompletas em seus depoimentos [...] julgo improcedente a denúncia [...].77
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E, para concluir, o juiz resolve infligir ao réu “castigos moderados, como aqueles que infligem os pais aos filhos”,78 e, no caso, aplicavase um sermão: que o réu seja posto “em liberdade [...] depois de vir a minha presença a fim de ser convenientemente admoestado”.
Senhorio e inquilino
Não há quem ignore que, com as demolições e reconstruções que o aformo seamen to da cidade exigiu, houve no Rio uma verdadeira “crise de habitação”. O número de casas habitáveis diminuiu em geral, porque a reconstrução é morosa. Além disso, diminuiu especialmente, e de modo notável, o número de casas modestas, destinadas à moradia da gente pobre — porque, substituindo as ruas estreitas e humildes em que havia prédios pequenos e baratos, rasgaramse ruas largas e suntuo sas, em que se edificaram palacetes elegantes e caros. E que fizeram os proprietários dos casebres e dos cochichólos que as picaretas demolidoras pouparam? viram na agonia da gente pobre uma boa fonte de renda, e aumentaram o preço dos seus prédios. É uma crise completa e terrível: há poucas casas para os humildes, e essas mesmas poucas casas alugamse por um preço que não é acessível ao que possuem os poucos favorecidos de fortuna, os que apenas podem ganhar ordenado exíguo ou minguado salário.
olavo bilac79
Para sobreviver, os nossos personagens não precisam apenas de uma atividade que lhes garanta um rendimento.
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Eles precisam, também, de um teto. E, como nos explica Bilac, o problema da moradia era sério no Rio de Janeiro no início do século XX.
Os trechos a seguir constam das edições do Correio da Manhã de 6 de janeiro e de 25 de novembro de 1906. Ambos tecem comentários a respeito da administração do prefeito Pereira Passos (19021906) e procuram avaliar os resultados das reformas urbanísticas realizadas no período. O primeiro editorial foi escrito quando Pereira Passos ainda era prefeito:
[...] hoje, mais do que nunca, dadas as excepcionais circunstâncias em que se encontra esta cidade, onde cresce, dia a dia, a febre, que já parece interminável, dessas demolições que se estendem por aí afora, deve provocar nossa atenção a sorte dessa infeliz gente que vive do produto exclusivo de seu esforço quotidiano.Como se não bastasse a quadra calamitosa que atravessamos, cheia de dificuldades para que o pobre operário consiga uma modesta colocação, que o ponha a coberto das mais imperiosas necessidades da vida, ainda surge agora a agravarlhe a já penosa situação em que se encontra, essa dobadoura, verdadeiramente tresloucada, da interdição de pequenas casas, decreta da pela inspetoria de higiene. [...]A falta de habitação para o trabalhador é absoluta, ninguém pode negálo. [...]E ao governo do dr. Rodrigues Alves, que se notabilizará, por muitos títulos, nos anais da política nacional, ficará mais este padrão de glória: — abriu avenidas, largas ruas, construiu o cais, embelezou e aformoseou a cidade, embora alicerçando todo esse grandioso edifício de melhoramentos materiais sobre [...] a desgraça de uma classe honesta, operosa e digna de melhor sorte.80
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O segundo trecho foi escrito logo após o término da administração Pereira Passos, por ocasião de uma homenagem ao exprefeito:
Toda a cidade rebentava, a um tempo, numa explosão bendita de trabalho e em toda parte, de sol a sol, dia a dia, num esforço sobrehumano, aparecia a figura impressionante do eminente homem, fiscalizando, dirigindo, ordenando detalhes do grande plano transformador.Quatro anos duros, a campanha contra a rotina de quarenta decênios que se fizera lei irrevogável nos nossos costumes [...].Mas o dr. Pereira Passos venceu. [...]Ruas largas, avenidas sem fim, entrecruzandose, prédios novos, altos, verdadeiros palácios! É o deslumbramento.81
Como explicar que no espaço de apenas alguns meses o mesmo jornal possa fazer avaliações tão diferentes das reformas urbanísticas realizadas durante a administração de Pereira Passos? Teria o jornal realmente mudado de posição? E, mais importante do que isso, a quem interessavam e o que significaram estas transformações urbanas que despejaram de suas moradias nas ruas centrais da cidade cerca de duas dezenas de milhares de pessoas em cerca de quatro anos?82 Enfim, quem “enriqueceu” e quem “empobreceu” com este processo e quais suas conseqüências para o modo de vida da classe trabalhadora do Rio de Janeiro no período?
É antiga e bem conhecida a hipótese de Engels segundo a qual a organização do espaço urbano numa sociedade capitalista ou em transição para o capitalismo seria um mecanismo de controle social e econômico, utilizado pela burguesia, visando principalmente organizar e disciplinar a força de trabalho. Esta hipótese, associada à constatação de
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que o desenvolvimento do capitalismo traz consigo o surgimento das grandes metrópoles modernas, forneceu o quadro teórico fundamental de duas recentes e escla rece doras monografias a respeito da questão das habitações populares e da administração Pereira Passos no contexto mais amplo da transição para a ordem capitalista na cidade do Rio de Janeiro.83
Constatando o acelerado crescimento da população da cidade nas três últimas décadas do século XIX, Lia de Aquino Carvalho localiza neste período o agravamento do problema da moradia na cidade.84 A autora tenta sempre si tuar a questão das habitações populares dentro do contexto das transformações econômicas que estariam ocorrendo no país em geral e na cidade do Rio de Janeiro em particular, em fins do século XIX. Assim, havia um processo de acumulação e concentração de capitais por parte de uma burguesia emergente que impingia em proveito próprio diversas transformações urbanas que mudavam pouco a pouco o panorama da cidade. As modificações na economia urbana se davam a partir da realocação de capitais e mão deobra desviados do setor agrário decadente — a zona cafeeira do Vale do Paraíba — e da ampliação do mercado consumidor possibilitada pela expansão dos meios de transportes, a generalização do assalariamento e a concentração de uma população migrante na capital. Desta forma, a burguesia comercial tradicional, que empregava capital e crédito na exportação de produtos agrícolas e na importação de manufaturas, cedia terreno a uma nova burguesia comercial, que voltava seus interesses para os setores dos transportes, serviços em geral e indústria nascente. Essas transformações na economia urbana, decorrentes da introdução maciça de capitais outrora investidos em outra área, causaram a valorização do es
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paço urbano, como corolário do próprio processo de acumulação e concen tração de capitais por parte da nova bur guesia emergente.
A valorização do solo urbano, abrindo caminho assim para a especulação imobiliária, incidiu diretamente sobre o problema das habitações populares. Escondida então por detrás de uma política de planejamento urbano que visaria apenas ao “saneamento” e “embelezamento” da cidade — que seria batizada de “Maravilhosa” por Coelho Neto em 190885 —, uma elite de empresários intimamente associada ao poder público coordenou um processo de urbanização que visava orientar a ocupação do espaço urbano de acordo com os imperativos da acumulação capitalista. A administração de Pereira Passos seria o apogeu deste processo, quando, por meio de uma concentração de poderes nas mãos do prefeito, desencadeiase um período bastante violento de reforma urbanística nas áreas centrais da cidade, temperado por arbitrariedades de toda ordem e demo lidores golpes de picareta.86 Em apenas quatro anos, milha res de pessoas tiveram de deixar suas casinhas em cortiços ou estalagens e seus quartos em casas de cômodos, que foram desapropriadas e demolidas por ordem da prefei tura. Em seu lugar surgem a Avenida Central e outras ruas no centro da cidade, valorizando assim ainda mais o espaço urbano e aumentando o processo de acumulação de capital por meio de especulação imobiliária. Quanto aos populares, que habitavam em grande número os cortiços e casas de cômodos demolidos, restaramlhes poucas opções: uma delas era pagar aluguéis ainda mais exorbitantes que antes por casinhas ou quartos nos cortiços e casas de cômodos ainda existentes; outra opção era tentar mudarse para os subúrbios, o que trazia o grave inconveniente de aumentar a distância a ser
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percorrida diariamente até o emprego; uma terceira opção era ir habitar um dos inúmeros morros que rodeavam o centro da cidade.87 Enquanto não conseguiam uma solução, os populares tinham também de se precaver para não terminarem “hóspedes” das delegacias policiais, pois poderiam ser processados por vadiagem caso ficassem vagando pelas ruas centrais da cidade.88
Em linhas gerais, não há grandes divergências entre Lia de Aquino Carvalho e Oswaldo Porto Rocha no tocante às características gerais e ao significado das transformações urbanísticas que culminaram na administração de Pereira Passos: ambos confirmam a hipótese de que a segregação habitacional imposta pelas reformas urbanas do período representa uma projeção espacial do processo de estru turação de classes característico de uma sociedade em fase de transição para uma economia de moldes capitalistas .
Parece, no entanto, que Lia de A. Carvalho tende a exagerar um pouco a importância do “processo indus trializante” no período como um dos desencadeadores das transformações urbanas em questão. Para a autora, em fins do século XIX a cidade do Rio de Janeiro já “deixava de ter uma função eminentemente comercial em virtude do movimento de seu porto e as atividades dele decorrentes e desenvolvia um processo de industrialização que lançava as bases da ocupação da cidade no século XX”.89 Essa afirmação parece um tanto exagerada, principalmente porque Lia de A. Carvalho em certos momentos procura sugerir que as reformas urbanísticas foram também uma tentativa de resolver o problema da mãodeobra para a indústria nascente, pois a idéia seria transferir os trabalhadores para as vilas operárias construídas junto às fábricas.90 Na verdade, essas vilas operárias nunca foram construídas em número suficiente, e a
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orgia demolidora do tempo de Passos apenas agravou o problema das habitações populares.91 O setor industrial que foi realmente beneficiado pelas transformações urbanas foi o da construção civil, que lucrou amplamente com a especulação imobiliária no período. A análise de Oswaldo Porto Rocha aponta para uma combinação mais complexa de interesses em torno das obras de “embelezamento” da cidade. Segundo ele, a administração Pereira Passos representaria o triunfo não só dos setores ligados à construção civil, mas também daqueles ligados à expansão dos meios de transportes e ao grande comércio (de importação, principalmente).92
Quanto a este último ponto, o próprio traçado da Avenida Central é revelador, pois liga em linha reta o cais do porto à área na qual se localizam as principais casas comerciais da cidade.
Tentemos agora explicar a aparente ambigüidade do Correio da Manhã em relação à “obra civilizadora” — ou orgia da picareta — encabeçada pelo engenheiro Pereira Passos. As transformações urbanas ocorridas no período de 1902 a 1906 opuseram, na verdade, dois grupos de interesses bastante distintos: de um lado, havia a já mencionada burguesia ligada ao grande comércio de importação, aos meios de transporte e à construção civil; mas, de outro lado, tínhamos um grupo talvez menos poderoso, porém bastante tradicional na cidade, constituído pela pequena burguesia ocupada até então com a especulação imobiliária, a exploração das casas de cômodos e dos cortiços e o pequeno comércio varejista dos armazéns, armarinhos, vendas etc. Era contra esta pequena burguesia, com efeito, que se voltava principalmente o poder de fogo da poderosa burguesia comercial que procurava fazer valer seus interesses de acu
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mulação capitalista. Apoiados em uma retórica que tentava imputar a estes pequenos comerciantes e proprietá rios de habitações coletivas a responsabilidade exclusiva pelo “atraso colonial” e pelas epidemias que de quando em vez assolavam a capital federal, os empresários mais poderosos e a administração municipal que os representava procuravam desapropriar e demolir casarões, cortiços e pequenas casas comerciais, sob o pretexto da necessidade de sanear a cidade e transformála numa metrópole moderna, dotada de ruas largas e avenidas, a exemplo das grandes cidades européias.
O Correio da Manhã, na realidade, apóia abertamente a grande burguesia comercial nesta luta contra a pequena burguesia, olhando com bons olhos o suposto sopro “civili zador” trazido pelo sr. Pereira Passos. Tanto assim que, nos primeiros meses de 1906, o jornal se lança numa ferrenha campanha contra os “exploradores do povo”, divulgando cartas que continham as queixas dos inquilinos de diversas casas de cômodos e estalagens. O conteúdo dessas cartas não variava muito, referindose geralmente aos altos preços dos aluguéis, à má qualidade das habitações e à ameaça constante de despejo.93 Um dos queixosos, por exemplo, escreve :
Rio, 21.2.06. Exmo. Sr. No vosso órgão defensor da classe oprimida e dos operários laboriosos que sempre encontram as colunas francas para relatarem suas queixas, venho hoje exporvos, exmo. sr., a crítica situação em que se encontram dezenas de operários que habitam os imundos cubículos da estalagem da rua Senador Pompeu no 36, de propriedade de um tal sr. Antônio José Pereira. Além de um aluguel que é demasiado para essa pobre gente, esse indivíduo aproveitase da fraqueza desses infelizes e com fantásticos mandados de despejo, expulsa a qualquer hora o inquilino que lhe é
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desafeto. Em princípios de dezembro do ano próximo passado, expulsou ele duas famílias pobres, que tinham seu aluguel pago em dia, unicamente porque sendo duas lavadeiras, lhe gastavam muita água! Isto é triste, exmo. sr.! Só num país desgraçado como o nosso se cometem estes e outros absurdos contra um operário, porque o operário não tem valor algum perante a justiça do nosso país.
O apoio ao prefeito Pereira Passos, no entanto, não era incondicional. O jornal exigia sempre que a prefeitura tomasse providências no sentido de construir novas casas para os trabalhadores que estavam perdendo seus tetos no centro da cidade. É neste contexto que se explica o agressivo editorial contra o prefeito e o governo de Rodrigues Alves publicado em 6 de janeiro de 1906. Mas, já em abril do mesmo ano, Passos havia esboçado um plano para a construção de casas operárias dentro dos preceitos recomendados pela “higiene”, o que lhe valeu novamente as graças da imprensa que participava e difundia a ideologia do progresso que estes homens haviam importado do continente europeu. Segundo o jornal, a iniciativa de Passos era “digna de todo o aplauso e... recomendará o nome do prefeito à gratidão desse grande número de sacrificados”.94 Daí, então, o editorial elogioso que podemos ler na edição de 25 de novembro de 1906, que anunciava com todo o alarde a ho menagem que “o povo, sem distinção de classes” — nas pa lavras do jornal —, faria ao exprefeito naquela mesma tarde.
Obviamente, no entanto, no confronto entre aqueles que tinham muito — a grande burguesia comercial — e aqueles que tinham menos que estes — a pequena burguesia exploradora das habitações coletivas e do comércio a varejo —,
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os maiores perdedores foram aqueles que nada tinham — a classe trabalhadora, que morava em grande número nas habitações coletivas, cada vez mais escassas, caras e precárias, das freguesias centrais da cidade. A forma como se desenvolveram as reformas urbanísticas, portanto, tendia a aguçar o confronto cotidiano direto entre os exploradores das casas de cômodos e estalagens e seus inquilinos, e isto é realmente o que sugere a análise do número relativamente grande de processos que localizamos de brigas entre senhorio e inquilino.
Aqui, novamente, as rivalidades nacionais e raciais desempenham um papel primordial como forma de expressão das tensões provenientes das dificuldades de se obter um teto a preço razoável e que ofereça condições mínimas de ser habitado. Assim, o português Manoel Carvalho, de 33 anos, casado, sabendo ler e escrever, funcionário da Estrada de Ferro Central do Brasil, era proprietário de uma casa na qual alugava diversos cômodos. Um de seus inquilinos, Alpheu Carlos Barroso, brasileiro, de 21 anos, casado, sabendo ler e escrever, operário, nos conta o conflito que teve com seu senhorio:
[...] que é inquilino do acusado presente, Manoel da Costa Carvalho, e devido a ter se atrasado no pagamento dos aluguéis da casa, teve ordem de mudança, não tendo podido ainda mudarse por não ter encontrado outra casa; que hoje às seis e meia horas da tarde, o acusado foi à casa do declarante, e depois de haverem discutido sobre a mudança do declarante, o acusado tentou agredilo, sendo obstado por pessoas da casa; que [...] o acusado Carvalho, voltou novamente [...] armado de revólver e [...] detonou o revólver três vezes sobre o declarante [...].95
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O próprio acusado e outras testemunhas confirmam que o motivo da desavença entre os contendores havia sido realmente o problema do atraso do aluguel. Mas o acusado, obviamente, oferece uma outra versão para a luta em si, dizendo que fora agredido primeiro e que agira em legítima defesa. Confirmando mais uma vez a solidariedade entre os imigrantes, dois outros portugueses depõem no processo e reforçam a versão dos fatos oferecida pelo acusado. O caso relatado é típico em diversos outros aspectos: temos aqui a dificuldade de um operário em pagar o aluguel, o problema de arrumar um outro local para morar, o despejo exigido pelo pequeno burguês explorador da habitação coletiva. Finalmente, há também no caso um forte componente de rivalidade entre brasileiros e portugueses. Três testemunhas, sem dúvida simpáticas ao acusado, contam que, durante a acalorada discussão com Alpheu, o acusado foi cercado por diversos populares que perguntavam em tom desafiador: “O que é que esse galego quer?” Além disso, após ter cometido o crime, Manoel teria sido perseguido por populares aos gritos de “Mata, mata esse galego”.
A verossimilhança e tipicidade do caso relatado são também confirmadas por um dos inúmeros delírios anti lu si tanos do cronista Luiz Edmundo. Muitos destes pe quenoburgueses exploradores de habitações coletivas e casas comerciais no centro da cidade eram portugueses. Assim, Luiz Edmundo, que considera os “bacalhoeiros” e “tamanqueiros” das ruas centrais da cidade, juntamente com outros “estrangeiros” — isto é, portugueses — “os autores do atraso nacional”, afirma que entre os principais obstáculos que Pereira Passos encontrara para “civilizar” a cidade achavamse “as conveniências do comércio estrangeiro”.96 Parece sem dúvida verdadeiro que o fato de muitos proprietários
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de habitações coletivas serem portugueses contribuía para acirrar as rivalidades nacionais e raciais entre portugueses e brasileiros pobres, especialmente os de cor. Assim, o processo seguinte relata a briga entre o senhorio português Antônio Moreira, de 25 anos, casado, analfabeto, e o inquilino Olímpio dos Santos, preto, natural do estado do Rio, 26 anos, casado, analfabeto, pedreiro. O depoimento a seguir é de uma das testemunhas do conflito e é reproduzido quase na íntegra, porque nos proporciona um fascinante flagrante de uma festa íntima de uma família negra e seus amigos num cortiço da freguesia de Santo Antônio no início do século:
[...] realizavase um baile no cômodo onde mora o ofendido a fim de comemorar o aniversário de uma filha deste; que o [...] denunciado chegando à porta do quarto do ofendido intimouo a acabar com o baile com o que o ofendido não concordou dizendo que estava em sua casa e que não estava incomodando a ninguém; que à vista das declarações do ofendido, o denunciado retirouse voltando porém pouco depois armado de um revólver e em atitude agressiva, intimando novamente ao ofendido a acabar com o baile; que como o ofendido insistisse em não acabar com o baile, o denunciado sacando o revólver que trazia desfechou três tiros em direção ao peito do ofendido [...]. Dada a palavra ao denunciado, a seu requerimento respondeu: que não tomou parte no baile nem para ele foi convidado; que conhece Faus tina da Conceição, vizinha do quarto onde se deu o baile, que morreu em conseqüência do susto; que calcula em seis a oito homens nos que tomaram parte no baile; que a intimação que o denunciado fez para acabar o baile foi pouco depois da meianoite; que o denunciado quando foi intimar o ofendido para acabar com o baile disse que o fazia porque era homem de trabalho e queria dormir; que os instrumentos que se
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tocaram no baile eram um violão, um cavaquinho e uma harmônica; que as pessoas que to maram parte no baile eram em geral operários; que não havia algazarra, tanto que do portão onde ele testemunha se achava não se ouvia [...] barulho nenhum [...] Foi contestado o depoimento da testemunha, porque é falso [...] visto querer ser agradável ao ofendido, seu amigo íntimo, sendo a referida testemunha um dos convivas que mais perturbava a ordem no referido baile com gritos e algazarra mostrando assim já estarem perturbados pelas bebidas que haviam na referida festa e que ainda é suspeito o depoimento da testemunha porque fez parte do grupo dos agressores do acusado que teve de fazer uso de um revólver para não ser morto [...].97
Além dos diversos detalhes a respeito da festinha familiar que se realizava na casa de Olímpio, há outros elementos a destacar no depoimento acima. A testemunha é claramente simpática ao ofendido, e vemos então o duelo verbal entre esta testemunha e o acusado Antônio Moreira na presença do juiz na pretoria. Os contendores defendem versões diferentes do ocorrido e trocam acusações. O interessante é que as acusações que o português faz ao grupo de brasileiros de cor procuram reproduzir aspectos da própria visão a respeito do negro comum no discurso das classes dominantes: o português exige o fim da festa porque era “homem de trabalho e queria dormir”, com o que obviamente sugeria que os negros não eram homens “de trabalho”. Além disso, afirma que os negros faziam “algazarra” porque estavam “perturbados pelas bebidas”. O grupo oponente rebate, logi ca mente, as acusações de que são vadios, bêbados e arruaceiros, dizendo apenas que comemoravam pacificamente o aniversário da filha do ofendido e que a intimação dada
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pelo senhorio era um abuso, pois, como enfatiza o inquilino, “estava em sua casa” e não incomodava ninguém.
Um outro processo também mostra um caso no qual a tentativa do senhorio de pôr ordem na casa — ou de impor sua autoridade sobre o inquilino — acaba causando um conflito. O conflito se dá entre José Pereira Terra, português, 46 anos, casado, sabendo ler e escrever, barbeiro, e seu inquilino Graciliano Nunes, preto, de 35 anos, viúvo, “que se empregava no serviço de preparo de café nos armazéns de comissários e exportadores”. Sofia da Conceição, brasileira, cozinheira, amásia do português José, dá sua versão sobre a origem da desavença entre os contendores:
[...] que hoje pelas quatro horas da tarde José saiu para a rua voltando cerca de nove horas da noite para jantar mudando então de botinas para ficar mais a sua vontade, notando a declarante que ele já estava um tanto alcoolizado, pois tem o hábito de beber; que enquanto José jantava o crioulo Graciliano alter cava com ele dizendo que José nada tinha que ver com a vida dele Graciliano, ao que José respondeu que tinha pois vivendo em companhia de uma senhora séria não podia ficar satisfeito com o procedimento de Graciliano, que fazia muito barulho de noite e introduzia em casa mulheres que não eram sérias, ao que Graciliano replicou dizendo que tinha o direito de o fazer, porque o quarto era seu e o paga [...].98
O episódio acima se passa numa das casinhas de uma avenida e ilustra bem a que circunstâncias se submetiam esses indivíduos devido à dificuldade de se obter uma moradia adequada. Neste caso, é claro que o espaço diminuto que essas três pessoas ocupam não permite que cada uma goze de certa privacidade e independência em relação às outras.
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A discórdia surge quando o inquilino, que é aquele que teoricamente teria menos direito a um espaço sob aquele teto — “espaço”, aqui, entendido não só como espaço físico, mas também como liberdade para viver a seu modo — resolve reivindicar aqueles que ele acha que são seus direitos, provocando, ao proceder dessa forma, a reação do senhorio. A luta por ocupação de espaço no interior de uma casinha de avenida se expressa, contudo, na forma que já vimos ser típica desses confrontos entre portugueses e brasileiros pobres de cor: o português e sua amásia, refle tindo e reproduzindo os estereótipos dominantes, acusam o negro de ter uma vida promíscua, pois, nas palavras de Sofia, “introduzia em casa mulheres que não eram sérias”. Mas o próprio depoimento do acusado nos informa que o preto Graciliano apenas tinha uma namorada, com quem gostava de dormir no quartinho que alugava. O preto Graciliano, então, procura asseverar sua independência em relação ao português, seu senhorio, dizendo que nada lhe devia e que tinha direitos, pois “o quarto era seu e o paga”.
Localizamos também três processos de brigas entre brasileiros por problemas ligados à questão da moradia. As situações que dão origem aos conflitos são basicamente semelhantes às descritas até aqui. No primeiro desses casos, o serralheiro Artur Monteiro, solteiro, de 19 anos, é acu sado de haver disparado três tiros contra seu senhorio. Artur explica que realmente estava devendo dois meses de aluguel ao dito senhorio, mas este argumenta que Artur lhe devia três meses, pois havia pagado o primeiro mês adiantado e depois disto não pagara mais nada. As insistentes cobranças do senhorio e a alegada impossibilidade de Artur em pagar a dívida acabam originando o conflito. O senhorio de Artur se chamava Campolin Müller — devendo ser, portanto, um
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descendente de imigrantes ou mesmo um imigrante naturalizado —, exercia a profissão de sapateiro, tinha 33 anos, sabia ler e escrever, e alugava diversos quartos no casarão em que morava.99 Em outro conflito causado por dívidas a serem saldadas, temos o caso de um pequeno construtor que vai cobrar de um de seus clientes o pagamento por obras realizadas na casa deste. Esgotados os argumentos verbais, os contendores trocam tiros.100
Finalmente, há um novo caso em que o senhorio tenta pôr ordem em sua casa de cômodos e acaba brigando com um dos inquilinos. O senhorio se chamava Alexandre Trindade, natural da capital federal, 55 anos, viúvo, e alugava diversos cômodos no casarão de sua propriedade. Até no porão haviam se instalado duas famílias inteiras. Uma dessas famílias era constituída pelo viúvo Bernardino Pereira, de 51 anos, contínuo da Escola Politécnica, sua “velha mãe” e quatro filhos menores. Bernardino chegara em casa embriaga do e fazendo grande alarido, o que provocou a repreensão por par te do senhorio e o conflito entre os contendores. Ber nardino morreu devido a uma pancada que levou na cabeça.101
O quadro geral traçado anteriormente e esses casos que acabamos de relatar de brigas entre senhorio e inquilino mostram bem a gravidade da questão da habitação. As picaretas “progressistas” do sr. Passos não só demoliram casarões e cortiços, mas também desorganizaram a vida de muitas pessoas e agravaram ainda mais as já precárias condições de sobrevivência das classes populares. O “progres sismo” equívoco de alto custo social do sr. Passos e seus seguidores, po rém, não teve só efeitos devastadores sobre o modo de vida dos nossos personagens. Renovando tradições antigas, reforçando e construindo novos laços de solidariedade e ajuda mútua, os populares realizaram ajustes em seu modo de vida
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que lhes permitiram sobreviver à ânsia demolidora — e acumuladora de capital — da grande burguesia comercial da cidade do Rio de Janeiro no início do século XX. Veremos estes ajustes e estratégias de sobrevivência praticados pelos populares com o objetivo de contornar o problema da habitação quando analisarmos as relações de amor, de família e de amizade entre nossos personagens.
Conclusão — Ambigüidades e paradoxos na experiência de vida da classe trabalhadora; o caso dos estivadores
A nossa preocupação aqui é tentar compreender como a classe trabalhadora vivencia — aceitando, resistindo ou se submetendo à força — a dominação de classe e o controle so cial numa sociedade capitalista. Há, na verdade, que distinguir dois níveis na análise: de um lado, temos a questão da complexidade dos mecanismos de controle social no mundo capitalista; de outro, há o problema de tentar explicar a eficácia e os limites do exercício deste controle a partir da reconstituição das condições de vida e da visão de mundo da classe trabalhadora em questão. Estes dois níveis de análise, no entanto, são absolutamente comple mentares e só fazem sentido se abordados como uma totalidade de relações complexas, sutis e, às vezes, contraditórias.
O controle social numa sociedade capitalista procura abarcar todas as esferas da vida, todas as situações possíveis do cotidiano: este controle se exerce desde a tentativa do estabelecimento da disciplina rígida do espaço e do tempo na situação de trabalho até a tentativa de normatizar ou regular as relações de amor e de família, passando, nos interstícios, pela vigilância e repressão contínuas dos aparatos
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jurídico e policial. O empreendimento do controle social no mundo capitalista, portanto, diz respeito à totalidade das relações sociais por definição, e só as necessidades incontornáveis da redação deste texto explicam que tratemos do assunto em diversos capítulos, abordando sucessivamente as situações de trabalho, de amor, de lazer e de resistência explícita à autoridade. Em todas estas esferas da vida, contudo, o que se tem é a explicitação de um mesmo tipo de controle — aquele necessário à reprodução e perpetuação de relações capitalistas de produção —, mas que se expressa de diversas formas — que variam desde o paternalismo da relação patrão–empregado em diversos contextos até a violência explícita da força policial nas ruas da cidade.
Este primeiro capítulo, que trata das questões ligadas às situações de trabalho e ao problema da habitação, já nos permite levantar uma hipótese importante a respeito do exercício do controle social numa sociedade capitalista. Normalmente, quando pensamos em controle social, temos em mente um todo complexo de relações através das quais a classe dominante garante a subordinação social da classe trabalhadora. Assim, pensamos numa relação na qual a classe dominante é o sujeito, isto é, a protagonista de uma relação de dominação na qual a classe trabalhadora é simples objeto. Se parece simples constatar que a classe trabalha dora é mero objeto no que diz respeito à exploração econômica, não parece tão simples apreender o caráter da dominação compreendida num sentido mais amplo, que abrangeria a totalidade das relações sociais. O que parece ocorrer, de fato, é que a classe trabalhadora é, em certa medida, sujeito de sua própria dominação. Em outras palavras, não basta perceber uma relação de dominação a partir dos mecanismos de controle social mais ou menos conscientemente elabora
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dos pela classe dominante no sentido de reproduzir certo tipo de relações sociais que a beneficia. É necessário pensar também nos elementos da ideo logia popular que facilitam a reprodução destas relações sociais, ou seja, existem elementos na visão de mundo da classe trabalhadora que a transformam, em certos aspectos, em agente inconsciente de sua própria dominação.
Assim, por exemplo, as divisões nacionais e raciais eram um aspecto da visão de mundo das classes populares do Rio de Janeiro na Primeira República que obstaculizava um processo de tomada de consciência destes populares. Estas divisões nacionais e raciais, que eram, a um só tempo, um legado da tradição histórica e uma reelaboração surgida num momento crucial da transição do trabalho escravo para o trabalho livre no país, funcionavam como um elemento de facilitação do controle social, transformando então a classe trabalhadora, neste sentido específico, em agente ou sujeito de sua própria dominação.
Existem também outras mediações da dominação de classe numa sociedade capitalista que desempenham papel semelhante e que têm caráter mais geral do que o problema das divisões nacionais e raciais — que são uma característica mais particular do processo histórico da cidade do Rio de Janeiro. Vimos, por exemplo, como na conjuntura específica dos anos da virada do século no Brasil havia um processo de fixação de valores que iriam justificar e reforçar a tran sição para a ordem burguesa no país. Alguns dos pontos fundamentais desta nova ideologia de trabalho veiculada originalmente pelas classes dominantes eram a disciplina, a dedicação e a competência profissional, que aumentariam as condições de competitividade do indivíduo — isto é, do trabalhador — no mercado de trabalho assalariado. Ora,
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vimos também que as condições árduas da luta pela sobrevivência — salários baixos, abundância de força de trabalho, habitação escassa e em condições precárias — serviam para incutir nos membros da classe trabalhadora que eles tinham de competir uns com os outros no intuito de garantir a reprodução material de sua existência. Desta forma, o valor “competição”, elemento fundamental enquanto formador da ética de trabalho capitalista, apresentava um sentido para os populares na medida em que cor respondia de certa forma às condições concretas de vida que experimentavam.
Ressaltese, no entanto, que a situação é um tanto ambígua. Se é verdade que as condições concretas de vida dos populares propiciavam em certa medida a absorção de valores que facilitavam o controle social, não é menos verdade que esses valores veiculados pela classe dominante eram “lidos” ou interpretados de forma um tanto diferente e até contraditória pelos membros da classe trabalhadora. Assim, por exemplo, enquanto na ideologia do trabalho construída pelos poderosos o valor “competição” significava basicamente competência profissional — isto é, habilidade téc nica, disciplina, obediência etc. —, para os populares este valor significava necessidade de sobreviver, de garantir a reprodução material da existência. Em termos de prática de vida das classes populares, então, a necessidade de ser competitivo — isto é, de ser bemsucedido na luta pela sobrevivência — traduzse em ações aparentemente contraditórias. De um lado, temos um mundo do trabalho em geral conflituoso, onde os indivíduos competem com o intuito de garantir um meio de sobrevivência. Mas, por outro lado, esta necessidade de sobreviver se traduz também na construção de redes de solidariedade e ajuda mútua entre familiares, amigos e vizinhos, que visam via bilizar a reprodução da exis
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tência de todos.102 Desta forma, o valor “competição” se reveste não só de um conteúdo de luta e de desagregação, mas também de solidariedade e de espírito comunitário.
A realidade do controle social é, portanto, do ponto de vista da classe trabalhadora, algo ambíguo e paradoxal. É ambíguo no sentido de que dá ensejo a práticas cotidianas aparentemente contraditórias, isto é, práticas de microlutas intestinas e de construção de laços de solidariedade. É paradoxal no sentido de que a visão de mundo das classes populares contém e é acrescida continuamente de elementos que as tornam não só objetos do controle social, mas também sujeitos de seu próprio controle. Reside neste último aspecto, talvez, a principal sutileza da dominação de classe numa sociedade capitalista: aqueles que são objeto de exploração econômica se sentem, na maior parte do tempo, como se fossem os principais autores de sua própria vida.
É quando tentamos analisar a classe trabalhadora em movimento, ou seja, procurando fazer reivindicações em seu próprio benefício, que podemos ter uma idéia mais exata de quanto as ações e atitudes do diaadia obscuro dos populares, já reconstruídas em parte nos itens anteriores deste capítulo, criam um padrão ideológico que contém em si os limites necessários da consciência de classe destes homens e mulheres num determinado momento histórico. A experiên cia de um grupo de trabalhadores numeroso e importante para a ci dade do Rio de Janeiro na República Velha — os estivadores — irá nos permitir observar de perto as articulações entre a estrutura das mentalidades e atitudes mais simples dos populares vistas até aqui e algumas limitações necessárias do movimento operário da Primeira República.
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É relativamente óbvio constatar que a mãodeobra portuária, por estar localizada num setor básico de uma economia agroexportadora, encontrase numa posição de negociação bastante forte.103 As greves dos portuários, assim como as dos ferroviários, causam perdas financeiras maciças e são consideradas mais perigosas ainda por envolverem um grande número de trabalhadores. Um trabalhador de estiva no Rio de Janeiro do início do século XX era em geral bastante consciente de sua situação de classe e valorizava o sindicato a que pertencia; porém, o movimento dos portuários da cidade no período esteve sempre limitado por deter minações estruturais profundas, como veremos.
A reconstituição de algumas ações individuais ou de pe quenos grupos de estivadores pode exemplificar de maneira mais clara a consciência que estes homens tinham de sua situação de classe e até nos esclarece sobre algumas práticas cotidianas de resistência que eles utilizavam. Assim, Luiz Castilhos, branco, natural do estado do Rio, de 42 anos, solteiro, sabendo ler e escrever, conta a briga que teve com Joaquim de Souza, mulato, de 32 anos, casado, analfabeto:
[...] que trabalhava no trapiche Comércio à rua da Saúde, onde também trabalhava Joaquim Antônio de Souza; que o trabalho que na ocasião faziam o declarante, Joaquim e outros era pesar carneseca; que então ali chegando um homem que não é vagabundo, [...] pediu a Joaquim um pe daço de carne para comer; que Joaquim como resposta disse ao homem que pedia que fosse pedir à puta que o pariu; que o declarante fazendo ver a Joaquim que ha via muita carne e que por conseqüência um pedaço que desse ao homem para comer em nada prejudicaria ao dono da mercadoria, Joaquim voltandose para o declarante man douo também a puta que o pariu; que em vista do mau humor de Joaquim o declarante
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retirouse do tra piche visto como naquele momento terminaria o trabalho do dia, que em seguida o declarante foi à pa gadoria receber a sua diária, que ao voltar da pa ga doria [...] Joaquim desfechoulhe quatro ou cinco tiros [...].104
Temos aqui um conflito que se origina a partir de uma questão em torno de um carregamento de carneseca, mas que também explicita na realidade duas concepções diferentes a respeito da relação patrão–empregado. De um lado, temos Joaquim de Souza, que não concorda que seus companheiros de trabalho levem pedaços de carneseca para comer e se justifica declarando que estava “zelando o interesse de seus patrões”. Por outro lado, temos Luiz Castilhos e outros estivadores, que não viam nada de mal em pegar alguns pedaços de carne, pois em nada “prejudicaria ao dono da mercadoria”. Vemos aí, portanto, um trabalhador que se identifica claramente com os interesses de seu patrão neste caso específico, enquanto outros procuram praticar pequenas sabotagens que revelam uma consciência nítida de que os interesses do patrão não são os seus. Esta controvérsia entre trabalhadores que percebem a relação patrão–empregado basicamente como uma relação de cooperação paternalista e aqueles que a concebem como uma relação conflituosa está presente tanto nas ações indivi duais dos trabalhadores de estiva quanto nas ações coletivas desta categoria profissional.
Mas as práticas cotidianas de resistência são múltiplas e variadas. Em outro processo, temos uma briga entre dois feitores de estiva “por questão de serviço”.105 Os dois homens se defrontaram na Rua de Santo Cristo, e um deles acabou ferido à bala no nariz. O acusado foge na ocasião, e diversos outros estivadores depõem na delegacia sobre o
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ocorrido. O acusado é finalmente preso, e as autoridades judiciárias expedem diversos mandados intimando as testemunhas do inquérito policial a prestar suas declarações na pretoria. Apesar das inúmeras intimações, que duram meses, os estivadores arrolados como testemunhas não se apresentam para depor. O juiz, diante da insuficiência de provas, julga improcedente a denúncia. Este procedimento de truncar o andamento do processo e facilitar a absolvição do réu por insuficiência de provas é bastante comum nos processos analisados que relatam brigas entre esti vadores. Este fato parece indicar um certo acordo tácito entre esses homens de resolver suas desavenças entre eles apenas, recusando, sempre que possível, a mediação das autoridades policiais e judiciárias.
O caso seguinte relata um conflito ocorrido durante a greve de sapateiros em 1906. O contramestre da fábrica de cal çados Condor, o português Eduardo Martins, casado, de 35 anos, mostrouse contrário à greve, provocando a ira de muitos sapateiros. No dia 5 de abril, Martins voltava para sua casa em Inhaúma acompanhado de alguns operários e, quando passava em frente ao botequim do Fiúza, bas tante popular na localidade, foi interpelado por um grupo de indivíduos descontentes com o seu posicio na mento em re lação à greve. Seguese um grande conflito entre os dois gru pos, e Martins, ao identificar seus oponentes na dele gacia, declara “que conhece quase todos os seus agressores apenas de vista, os quais são sapateiros atual mente em greve sendo que também se achavam acompanhados de indivíduos que não fazem parte dessa classe e sim estivadores [...]”.106
Outras testemunhas, ao que parece todas pertencentes ao grupo de Martins, também declaram que havia estivadores entre o grupo de sapateiros descontentes. O caso in
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dica, portanto, que parecia haver entre os estivadores uma certa consciência de que a defesa dos interesses de sua categoria profissional passava necessariamente pela defesa dos interesses da classe trabalhadora como um todo.107
Estes poucos casos relatados até aqui mostram aspectos interessantes da consciência que os estivadores tinham de sua situação de classe. No entanto, os episódios contidos nos processos seguintes, que relatam ações corriqueiras individuais de estivadores e suas participações no movimento operário, revelam os limites necessários da consciência de classe desses homens. No primeiro caso, temos dois trabalhadores que se enfrentam numa situação típica de competição no trabalho. Segundo uma das testemunhas, a origem da rixa entre os dois homens ocorreu quando ambos trocaram empurrões, na ânsia de dar seus nomes ao apontador. Após um período de troca de provocações, os contendores se enfrentaram no próprio cais do porto.108 Em outro caso, dois estivadores brigam no trapiche em que trabalhavam “por questão de preferência no serviço de descarga de café”, como afirma um comissário de polícia. O acusado se chamava Caetano Damásio, pernambucano, de 19 anos, solteiro, sabendo ler e escrever, e o ofendido era Manoel Gomes, português, de 25 anos, solteiro, analfabeto. A inimizade entre os dois homens talvez tivesse um conteú do de rivalidade nacional, mas, de qualquer forma, exempli fica novamente o caráter competitivo da situação de trabalho desses homens. Uma das testemunhas relata assim o ocorrido:
[...] que estava em uma embarcação [...] que descarregava farinha e feijão na ponte do trapiche Silvino nas docas, [quando viu?] travarem discussão à que se seguiu luta corporal, os trabalhadores Caetano Da másio e Manoel Gomes, ocasionada pelo fato de Caetano Damásio
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arrebatar um saco para conduzir, tirandoo das mãos do declarante que o ia entregar a Ma noel Gomes. Que depois disso ambos subiram para o cais e logo após o declarante ouviu o estampido de um tiro e vozes que diziam “lá o homem matou o outro” [...] “pega! pega! assassino” [...].109
“Competir”, palavra de ordem numa sociedade capitalista, traduziase em práticas cotidianas concretas dos trabalhadores de estiva. Interiorizar um determinado conceito de competição — mesmo que num sentido aparentemente distinto daquele veiculado pelos apologistas da nova ideologia do trabalho — tem sérias conseqüências na vida desses homens. Viver competitivamente significa perceber a si mesmo como um ser basicamente solitário que se constitui no principal agente ou construtor de seu próprio “destino”. Viver competitivamente significa também interpretar sucessos e fracassos como resultados principalmente de potencialidades e realizações individuais, diluindo assim, de forma dramática, a consciência que esses homens necessitavam ter do fato de que pertenciam a uma mesma classe social. “Ser” competitivo significa, acima de tudo, conceberse como “ser” individual, solitário, “livre”, e não como “ser” produto de um conjunto de relações sociais específicas.
Assim, criar organizações fortes para reivindicar direitos de classe era uma experiência difícil e contraditória para os estivadores. No dia 13 de maio de 1908, vigésimo aniversário da Abolição, a Sociedade dos Trabalhadores de Trapiche e Café, um sindicato de estivadores, realizava uma reunião em sua sede.110 A reunião acabou em grande conflito, motivado pela luta entre estrangeiros, especialmente portugueses, e brasileiros de cor pelo controle do sindicato. O baiano Rozendo Alfredo dos Santos, de 33 anos, viú vo, sabendo
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ler e escrever, prestou um longo depoimento na delegacia explicando o ocorrido. O seu relato resume bem as contradições características da experiência de vida desses homens: o alto nível de mobilização e consciência de classe expresso no depoimento combinase com uma incontornável reprodução da longa tradição de rivalidades nacionais e raciais entre brasileiros e portugueses. O impulso coletivo diluise, então, nos limites impostos por toda uma prática de vida. Rozendo dá sua versão dos fatos:
[...] que é sócio da Sociedade de Resistência dos Trabalhadores em trapiches e café, com sede à rua Marechal Floriano vinte, onde exerce o cargo de membro da Comissão de construção do edifício social; que sancionado o decreto 1.637 de 5 de janeiro do ano passado, que criou os sindicatos profis sionais e sociedades corporativas, aquela sociedade resolveu modificar a sua [ilegível] de acordo com o citado decreto que, pelo parágrafo segundo do artigo segundo estabelece que só podem fazer parte das administrações brasileiros natos ou naturalizados com mais de cinco anos de residência no país e no gozo de seus direitos civis; que havendo terminado o mandato da diretoria, procedeuse a eleição da nova diretoria de acordo com os estatutos sociais e esta teve lugar no dia dez do corrente, na sede, eleição essa que não foi anunciada com a devida antecedência o que só foi feito no dia em que se realizou a eleição e isto mesmo em um só jornal; que irregular mente foram eleitos: Presidente o português José Fernandes Ribeiro e tesoureiro Manoel Dias, também português [...], que eleitos esses dois diretores com manifesta violação do citado decreto, foi anunciada para hoje a assembléia para darlhes posse; [...] que aberta a sessão e exposto o motivo desta o depoente pediu a palavra e começou sua oração protestando contra a ilegalidade da eleição não só por não ter sido ela previamente anunciada como
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ainda pela violação do referido decreto, pois que os eleitos eram portugueses não naturalizados e além disso o presidente eleito estava em atraso de dois meses em suas mensalidades; que o seu discurso era violentamente apartado por um grupo composto de Henrique Roseira, Antônio Henrique, Rafael Mu nhoz e Gumercindo Louzada que o interrompiam com apartes ameaçadores, assim se manifestando partidários do presidente eleito e nes ses apartes diziam que se o presidente eleito não fosse empossado, formavam uma nova sociedade e davam por terra com o sindicato; que pedindo a palavra o sócio Rufino Ferreira da Luz, fez ver que mesmo antes da promulgação do decreto, já havia proposto, no co meço da sociedade que o seu presidente seria sempre um brasileiro e essa proposta havia sido aprovada por brasi leiros e estrangeiros; que nessa ocasião o sócio Hen rique Roseira que já se mostrava em atitude agressiva e provocadora, provocou tumulto, abrindo francamente a luta [...].111
Um detalhe talvez mostre de maneira inequívoca o caráter racial da disputa: os estrangeiros presentes apar teavam o baiano Rozendo aos gritos de “abaixo a plebe”.112 Os resultados deste conflito foram sentidos em curto e médio prazos. Em curto prazo, houve uma sede bastante danificada, com cadeiras e mesas quebradas e paredes perfuradas por balas, homens feridos por tiros e facadas e diversas prisões. Em médio prazo, no entanto, as perdas foram mais dramáticas: o sindicato entrou em vertiginoso declínio e o número de seus associados caiu de 4 mil para 200 num só ano. Três anos depois, a sociedade contava apenas 50 membros, mas iria revitalizarse sob nova liderança.113
Como já foi mencionado, alguns conflitos indivi duais entre trabalhadores se explicam a partir de concepções diferentes que estes homens teriam da relação patrão–emprega
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do: por um lado, havia trabalhadores que percebiam esta relação basicamente como uma relação de cooperação paternalista; por outro lado, havia os que a percebiam como uma relação conflituosa. A luta política interna dos sindicatos de estiva dores refletia de certa forma este conflito de opiniões. Boris Fausto mostra que na capital federal, no período, existia uma corrente no movimento operário que ele classifica de “trabalhista” e que se limitava à defesa das reivindicações mínimas da classe trabalhadora por via da colaboração de classes e da proteção do Estado.114 Assim, o conflito seguinte, ocorrido na sede da União Operária dos Estivadores, parece indicar a luta dentro desta organização operária entre o grupo adepto da posição trabalhista e os defensores de um sindicalismo mais independente. O conflito em questão ocorreu no dia 11 de abril de 1906 e resultou no assassinato do preto Henrique Gomes, de 35 anos, cometido por Antônio de Figueiredo, um paraibano de 33 anos. Um outro estivador presente na ocasião explica que
de fato havia na União uma divergência por causa de questões internas que não eram de importância, visto que a última assembléia geral tinha tudo sanado, mas que, entretanto, a animosidade perdurava por questões das últimas eleições federais em que Figueiredo e grande número de sócios, por gratidão ao Coronel Leite Ribeiro, por muito ter feito em benefício da União, deramlhe votos para deputado ao passo que Henrique era entusiasta do grupo que apoiava o candidato doutor Irineu Machado.115
Ora, enquanto o coronel Leite Ribeiro apresentava um perfil bastante conservador, Irineu Machado esteve durante muitos anos ligado aos núcleos contestadores. Ele era uma
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das figuras de maior prestígio do “jacobinismo” carioca, que mostrava muito inconformismo com o triunfo da oligarquia paulista, isto é, da burguesia do café, consolidado com a ascensão de Prudente de Morais à presidência. Parece que Irineu Machado esteve até mesmo envolvido num atentado contra Prudente de Morais.116
Talvez tão limitadores do alcance do movimento operário quanto estas lutas por rivalidades nacionais ou motivos políticos no interior dos sindicatos fossem os conflitos entre as sociedades de estivadores.117 No mês de agosto de 1905, por exemplo, ocorrem sucessivos conflitos entre os membros de duas sociedades rivais, a União Operária dos Estivadores e a Sociedade Regeneradora dos Esti vadores. Já no primeiro dia do mês, o Correio da Manhã noticiava que haviam “ressurgido” as rivalidades entre os es ti va dores.118 Na véspera, um grupo de trabalhadores pertencentes à União Operária dos Estivadores se apresentou ao comandante do vapor Campeiro, que se encontrava no cais e precisava ser carregado. Combinado o serviço entre o comandante e os estivadores, estes aguardavam a abertura do trapiche para dar início ao serviço. Nesse momento, surgiram alguns estivadores pertencentes à Sociedade Rege neradora, começando logo um conflito entre os membros das sociedades rivais. O português José Joaquim Alves, de 37 anos, casado, deu sua versão dos fatos na delegacia:
[...] que sendo convidado por outros companheiros para trabalhar a bordo do vapor “Campeiro”, que se achava atracado no trapiche Reis; que seguindo com os seus companheiros do mesmo trapiche aí se achava José Gomes Cardozo, conhecido por “Car do zinho” em companhia de seus companheiros. Que Cardozinho per tence à Sociedade da Regeneração e só trabalha com estivadores da mesma Sociedade e por isso quando ele testemunha e seus companheiros
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da União chegaram ao trapiche [...] foram recebidos [...] a tiros de revólver [...].119
As brigas entre os estivadores se sucedem no período. No dia 19 de agosto do mesmo ano, o estivador Charles Wallace levou dois tiros de revólver quando passava pelo Largo de São Francisco. O agressor fugiu e Charles atribuiu “a agressão a questões das duas sociedades de estivadores, vis to ter trabalhado ora com sócios de uma, ora de outra”.120 No dia 20 de agosto, cinco sócios da Sociedade Rege neradora se encontraram com um numeroso grupo da União. As provocações começaram, e os cinco sócios da Sociedade Regeneradora se refugiaram no escritório do chefe de estiva, onde haviam ido receber seus salários. A chegada da polícia dispersou o grupo da União.121 No dia 10 de outubro, o Cor-reio da Manhã, observando que se havia rompido um período de “relativa calma” entre os estivadores, volta a noti ciar um conflito entre membros das duas sociedades rivais.122
Não há necessidade de multiplicar ainda mais os exemplos neste contexto. A longa trajetória percorrida neste capítulo já deve ter demonstrado as ambigüidades e contradições inerentes à experiência de vida da classe trabalhadora da cidade do Rio de Janeiro na República Velha. Para viver, no entanto, os nossos personagens não precisam apenas de trabalho e de abrigo. Eles precisam, também, de amor...
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noTas
1 Sheldon L. Maran, Anarquistas, imigrantes e o movimento operário brasi-leiro, 1890-1920. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 31; e Boris Fausto, Trabalho urbano e conflito social (1890-1920). Rio de Janeiro, São Paulo: difel, 1977, p. 37.
2 Carlos A. Hasenbalg, Discriminação e desigualdades raciais no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p. 159.
3 Sobre a lusofobia no século XIX e na República Velha como uma continuação de um conflito interno, inerente à sociedade colonial, ver Maria Odila da Silva Dias, “A interiorização da metrópole (18081853)”, in Carlos Guilherme Mota (org.), 1822: dimensões. São Paulo: Perspectiva, 1972, pp. 17980.
4 Eulalia M. L. Lobo, “Condições de vida dos artesãos e do operariado no Rio de Janeiro da década de 1880 a 1920”, Nova Americana. Turim, Einaudi, no 4, 1981, p. 301.
5 Boris Fausto, Trabalho urbano..., op. cit., pp. 2529.6 Anais da Câmara dos Deputados, 1888, vol. 3, p. 240. Uma versão an
terior da análise que se segue foi publicada em S. Chalhoub, “Vadios e barões no ocaso do Império: o debate sobre a repressão da ociosidade na Câmara dos Deputados”, Estudos Ibero-Americanos. PUC–RS, vol. 9, nos 1 e 2, jul. e dez., 1983.
7 Sobre os conceitos de “mundo do trabalho” e “mundo da ordem”, ver Be renice C. Brandão, Ilmar R. Mattos e Maria Alice R. de Carvalho, A polícia e a força policial no Rio de Janeiro. PUC–RJ, 1981, Série Estudos, no 4.
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8 Anais da Câmara dos Deputados, 1888, vol. 3, pp. 22941.9 Op. cit., vol. 7, pp. 25960.10 Op. cit., vol. 6, p. 152.11 Op. cit., vol. 3, p. 73.12 Op. cit., vol. 6, pp. 15053.13 Op. cit., vol. 6, p. 326.14 Op. cit., vol. 6, p. 152.15 Op. cit., vol. 6, p. 156.16 Op. cit., vol. 6, p. 151.17 Op. cit., vol. 6, p. 227.18 Op. cit., vol. 6, p. 152.19 Op. cit., vol. 6, p. 68.20 A. P. Guimarães, As classes perigosas: banditismo urbano e rural. Rio de
Janeiro: Graal, 1982, p. 1.21 Sobre o conceito de “classes perigosas” na França do século XIX, ver
Louis Chevalier, Laboring classes and dangerous classes in Paris during the first half of the nineteenth century. Princeton: Princeton University Press, 1973.
22 Anais da Câmara dos Deputados, 1888, vol. 3, p. 73.23 José de Souza Martins, O cativeiro da terra. São Paulo: Ciências Huma
nas, 1979, p. 130.24 Recenseamento geral da República dos Estados Unidos do Brasil, 1890.25 Ver, por exemplo, José Ricardo Ramalho, Mundo do crime: a ordem pelo
avesso. Rio de Janeiro: Graal, 1979.26 Dados do recenseamento de 1890, reproduzidos em C. Hasenbalg, op.
cit., p. 159.27 Florestan Fernandes, A integração do negro na sociedade de classes, 2 vols.
São Paulo: Ática, 1978; R. Bastide e F. Fernandes, Brancos e negros em São Paulo. Nacional, 1959.
28 Ver, por exemplo, Fernando H. Cardoso e O. Ianni, Cor e mobilidade social em Florianópolis. São Paulo: Nacional, 1960; Fernando H. Cardoso, Capitalismo e escravidão no Brasil meridional. São Paulo: difel, 1962; e O. Ianni, As metamorfoses do escravo. São Paulo: difel, 1962.
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29 F. Fernandes, “Weight of the past”, Daedalus, primavera, 1967, pp. 56079.
30 Katia Mattoso, Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1982; Robert Slenes, Escravidão e família: casamento, parentesco e compadrio em três comunidades escravas, 17601888, projeto de pesquisa.
31 Gilberto Velho, “O estudo do comportamento desviante: a contribuição da antropologia social”, in G. Velho (org.), Desvio e divergência: uma crítica da patologia social, 4a ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
32 Neste tipo de interpretação, o problema dos indivíduos que apresentam comportamento desviante é encarado do ponto de vista estritamente individual, sendo o fenômeno geralmente definido como endógeno ou mesmo hereditário no indivíduo que apresenta tal comportamento. Um exemplo ilustre desse tipo de interpretação são as teorias de Freud e seus discípulos, que atribuem o surgimento do desvio às falhas do controle social sobre os imperiosos impulsos biológicos do homem. Para Freud, os fundamentos são esses impulsos biológicos do homem, sendo que a construção da civilização ou da ordem social está baseada na “renúncia às satisfações dos instintos” (Sigmund Freud, Civilization and its dis-contents. Nova York: W. W. Norton, 1961, p. 44). Sendo assim, no sistema freudiano o desvio provém do inconformismo com esta repressão aos instintos exercida pela ordem social: o comportamento desviante surge quando os impulsos biologicamente enraizados irrompem através do controle social.
33 G. Velho, op. cit., p. 19.34 Howard Becker, Uma teoria da ação coletiva. Rio de Janeiro: Zahar, 1977,
caps. 36.35 Pierre Vilar, Iniciación al vocabulario del análisis histórico. Barcelona:
Crítica, 1982, p. 127.36 Processocrime de Ramiro Costa (réu), no 5.135, maço 889, galeria a,
Arquivo Nacional, 1908.37 Brasil Gerson, História das ruas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Folha
Carioca Editora, s.d.; Boris Fausto, Trabalho urbano..., op. cit., p. 15.38 Euclides Pereira de Oliveira, no 4.964, maço 879, galeria a, AN, 1906.39 Miguel Nunes de Paiva, no 690, maço 881, galeria a, AN, 1907.40 Quitério de Barros Feitoza, no 4.999, maço 880, galeria a, 1907.41 José Bento de Souza, no 599, maço 876, galeria a, 1905.
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42 Maria Cecília Baeta Neves, “Greve dos sapateiros de 1906 no Rio de Janeiro: notas de pesquisa”, Revista de Administração de Empresas, no 13, 1973.
43 Idem, op. cit., p. 50.44 Idem, op. cit., p. 51.45 Manoel Joaquim Torres, no 4.945, maço 878, galeria a, 1904.46 Sobre este conceito, ver Mariza Corrêa, Os crimes da paixão. São Paulo:
Brasiliense, 1981, pp. 2122, coleção Tudo é História.47 Para outros exemplos de brigas entre brasileiros e estrangeiros neste
contexto específico, ver José Alves de Almeida, no 1.074, maço 895, galeria a, 1911; Amphilóquio Niemeyer, no 619, maço 876, galeria a, 1905; e Luiz José de Faria, no 4.995, maço 880, galeria a, 1907.
48 Cândido Gomes da Silva, no 4.971, maço 879, galeria a, 1906.49 Joaquim Gonçalves Servos, no 1.046, maço 893, galeria a, 1909.50 Victor Fernandes, no 5.000, maço 880, galeria a, 1907.51 Bernardino Francisco de Almeida, no 609, maço 876, galeria a, 1905.52 Manoel Garcia Chaves, no 5.001, maço 880, galeria a, 1906.53 Luiz Edmundo, O Rio de Janeiro do meu tempo. Rio de Janeiro: Conquis
ta, 1957, vol. 1, pp. 5262.54 Idem, op. cit., pp. 11720. Era sem dúvida de longa data esta presença
maciça dos portugueses no pequeno comércio da cidade; ver, por exemplo, LuizFelipe de Alencastro, “Prolétaires et esclaves: immigrés portugais et captifs africains à Rio de Janeiro — 18501872”, Cahiers du Criar. Publications de l’Université de Rouen, no 4, 1984, p. 124.
55 Elias Iunes, no 603, maço 876, galeria a, 1905.56 José Antônio Vieira, no 4.933, maço 878, galeria a, 1904.57 Gaspar Barros da Silva Porto, no 615, maço 876, galeria a, 1907.58 João Bandeira, no 2.902, maço 2.191, galeria a, 1908.59 Manoel Antônio, no 5.137, maço 889, galeria a, 1909.60 Antenor Moreira Alves da Silva, no 4.940, maço 878, galeria a, 1905.61 Alcino Floriano, no 1.038, maço 893, galeria a, 1910.62 José Vairo, no 71, caixa 270, 1907.63 Sobre a ideologia do branqueamento, ver Thomas E. Skidmore, Preto
no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.
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64 Sobre o empenho dos portugueses em manter um certo monopólio sobre o pequeno comércio da cidade, limitando assim as possibilidades de ascensão social dos brasileiros pobres, ver LuizFelipe de Alencastro, op. cit., p. 124; e Warren Dean, “A industrialização durante a República Velha”, in Boris Fausto (org.), O Brasil republicano: estrutura de poder e economia (1889-1930). São Paulo: difel, 1977, p. 271, coleção História Geral da Civilização Brasileira.
65 Luiz Edmundo, op. cit., vol. 1, p. 31.66 Anais da Câmara dos Deputados, 1888, vol. 6, p. 151.67 Notese, no entanto, que os pequenos e médios empreendimentos — que
empregavam de um a cinco trabalhadores e de seis a 40, respectivamente — eram mais típicos, pelo menos no que tange às indústrias. Ver Eulalia Maria Lahmeyer Lobo, História do Rio de Janeiro (do capital co-mercial ao capital industrial e financeiro). Rio de Janeiro: ibmec, 1978, vol. 2, p. 488 .
68 João de tal, no 5.114, caixa 1.158, galeria a, 1898.69 Manoel Bonifácio da Silva, no 4.935, maço 878, galeria a, 1906.70 Aluísio Azevedo, O cortiço. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, s.d., p.
19. Apesar de os eventos se desenrolarem em São Luís do Maranhão, um outro romance de Aluísio Azevedo, O mulato (Rio de Janeiro: Edições de Ouro, s.d.), também exemplifica a questão da solidariedade entre portugueses e as possibilidades de ascensão social abertas por tais circunstâncias.
71 Epaminondas Mirandella, no 735, maço 883, galeria a, 1908.72 Manoel de Abreu, no 1.437, maço 903, galeria a, 1906.73 Firmino Rodrigues, no 689, maço 881, galeria a, 1906.74 Ver Boris Fausto, Trabalho urbano..., op. cit., p. 107.75 Joaquim Alves Pereira, no 3.865, maço 949, galeria a, 1895.76 Maciel Rodrigues Veiga, no 696, maço 881, galeria a, 1907.77 Leopoldo Ferreira da Silva, no 724, maço 883, galeria a, 1908.78 Trecho já citado dos Anais da Câmara dos Deputados, vol. 6, p. 151.79 Olavo Bilac, “Chronica”, Kosmos, out., 1907, apud Antonio Dimas,
Tempos eufóricos (análise da revista Kosmos: 1904-1909). São Paulo: Ática, 1983, p. 279.
80 Correio da Manhã, 6 jan., 1906, p. 1.
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81 Correio da Manhã, 25 nov., 1906, p. 5.82 Dado citado por Oswaldo Porto Rocha, A era das demolições: cidade
do Rio de Janeiro: 18701920. Dissertação de mestrado, Universidade Federal Fluminense. Rio de Janeiro, 1983, p. 84.
83 Refirome à dissertação de O. P. Rocha, op. cit., e à de Lia de Aquino Carvalho, Contribuição ao estudo das habitações populares: Rio de Janeiro: 18861906. Dissertação de mestrado, Universidade Federal Fluminense. Rio de Janeiro, 1980.
84 L. A. Carvalho, op. cit., p. 16. As observações que se seguem são em geral baseadas nesta dissertação.
85 O. P. Rocha, op. cit., p. 132.86 O. P. Rocha relata de forma minuciosa estas arbitrariedades e a concen
tração de poderes nas mãos do prefeito, no capítulo 3 de sua dissertação. Luiz Edmundo também conta as exigências de “amplos poderes” que Passos fez para assumir a prefeitura; cf. op. cit., vol. 1, pp. 2931.
87 Havia ainda uma outra solução, que era a de dois ou mais casais ou famílias dividirem o mesmo teto, como veremos no próximo capítulo.
88 Um rápido exame nas fichas de processos criminais da cidade do Rio de Janeiro no início do século XX revela um enorme aumento do número de processos de vadiagem, a partir de 1903. O tratamento dispensado aos supostos vadios é violentamente condenado por Evaristo de Moraes no Correio da Manhã, em artigo publicado em 24/7/1905, p. 4. O famoso advogado aponta a existência de indivíduos presos sem processo, de proces sos por vadiagem e embriaguez que rolam nas delegacias e pretorias por muitos meses e, ainda, chama atenção para as arbitrariedades e violências cometidas pela polícia contra os “vadios”. É de se notar também que datam de 5/2/1903 os decretos nos 4.763 e 4.764 sobre o “Regulamento para o serviço policial do Distrito Federal” e sobre o “Regulamento da Secretaria de Polícia do Distrito Federal”, respectivamente, que reformulam amplamente a polícia da cidade visando aumentar sua capacidade de controle e repressão. É neste momento, até mesmo, que se cria o Gabinete de Identi fi cação e Estatística, que, utilizando os modernos métodos da da ti loscopia, permite à polícia um controle e identificação mais precisos dos criminosos. É óbvio, portanto, que a ação “civilizadora” das picaretas do sr. Passos estava suficientemente garantida pela ação “saneadora” dos sabres policiais.
89 L. A. Carvalho, op. cit., p. 26.
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90 Lia de A. Carvalho escreve, por exemplo, na página 4: “A política municipal em relação ao problema das moradias populares no Rio de Janeiro refletia a preocupação, por parte do poder constituído, de solucionar uma das questões do processo de urbanização da cidade, colocada a partir do desenvolvimento industrial”.
91 A este respeito, ver, por exemplo, o editorial intitulado “Casas para os pobres”, Correio da Manhã, 15 maio, 1908, p. 1.
92 O. P. Rocha, op. cit., p. 139.93 Ver edição do Correio da Manhã de 18/2/1906, p. 1, que contém o
editorial de lançamento e justificação da campanha, e de 22/2/1906, p. 1, para exemplo de carta dos queixosos.
94 Correio da Manhã, 12 abr., 1906, p. 1.95 Manoel da Costa Carvalho, no 5.053, maço 884, galeria a, 1908.96 Luiz Edmundo, op. cit., vol. 1, p. 31.97 Antônio Moreira, no 722, maço 883, galeria a, 1908.98 José Pereira Terra, no 687, maço 881, galeria a, 1907.99 Arthur Fernandes Monteiro, no 4.990, maço 880, galeria a, 1906.100 José Antônio Cardozo e Joaquim Pereira Rangel, no 5.072, maço 886,
galeria a, 1908.101 Alexandre José da Trindade, no 1.076, maço 895, galeria a, 1910.102 Ver cap. seguinte deste livro.103 E. Hobsbawm, Os trabalhadores: estudo sobre a história do operariado. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1981, p. 209; e Boris Fausto, Trabalho urbano..., op. cit., pp. 12223.
104 Joaquim Antônio de Souza, no 1.057, maço 895, galeria a, 1910.105 Bonifácio Paim, no 714, maço 883, galeria a, 1909.106 Manoel de Almeida Peixoto, no 1.031, maço 893, galeria a, 1906.107 Sobre a solidariedade entre os estivadores e outras categorias profis
sionais, ver Marli B. M. de Albuquerque, Trabalho e conflito no porto do Rio de Janeiro (19041920): um estudo sobre a participação política das categorias portuárias no movimento operário da Primeira República. Dissertação de mestrado em história, ufrJ. Rio de Janeiro, s.d., p. 79.
108 Benjamim Guedes, no 1.034, maço 893, galeria a, 1909.
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109 Caetano Damásio, no 5.156, maço 890, galeria a, 1909.110 Havia uma diferença, na verdade, entre ser estivador e trabalhador em
trapiche e café: apesar de ambos exercerem a função de carga e descarga de mercadorias, o primeiro exercia sua atividade nos porões dos navios, e o segundo, no interior dos armazéns; ver M. Albuquerque, op. cit., p. 78 .
111 Rafael Serrato Munhoz e outros, no 720, maço 883, galeria a, 1908.112 Correio da Manhã, 14 maio, 1908, p. 2.113 Sheldon Maran, op. cit., p. 31.114 Boris Fausto, Trabalho urbano..., op. cit., p. 52; e Albuquerque, op.
cit., pp. 14950.115 Antônio Francisco de Figueiredo, no 1.108, maço 897, galeria a, 1906.116 Dados sobre o coronel Leite Ribeiro e Irineu Machado obtidos em
Dunshee de Abranches, Governos e congressos da República dos Estados Unidos do Brasil, 1889-1917. São Paulo, 1918. Sobre Irineu Machado, as informações foram completadas com dados obtidos em Boris Fausto, Trabalho urbano..., op. cit., p. 43, nota 3.
117 Marli Albuquerque não considera importantes os conflitos raciais e nacionais entre os trabalhadores portuários, enfatizando sempre as solidariedades entre eles (ver, por exemplo, p. 89). A autora, porém, tende a exagerar um pouco na ênfase à convivência harmônica e solidária entre os estivadores, como continuaremos a ver nas páginas seguintes.
118 Correio da Manhã, 1o ago., 1905, p. 3.119 José Gomes Cardozo, vulgo Cardozinho, no 4.989, maço 880, galeria
a, 1905. 120 Correio da Manhã, 19 ago., 1905, p. 3.121 Correio da Manhã, 20 ago., 1905, p. 2.122 Correio da Manhã, 10 out., 1905, p. 2.
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...amando...
Inquietações teóricas e objetivos
Transformar o agente social expropriado em homem de bem — isto é, em trabalhador assalariado — requer também o exercício de um controle sobre sua vida fora do espaço do trabalho, pois, afinal, um indivíduo integrado à sociedade se define ainda por certos padrões de conduta amorosa, familiar e social. Sendo assim, o objetivo deste capítulo é es tudar alguns padrões de comportamento revelados por homens e mulheres da classe trabalhadora ao se envolverem em relações de amor na cidade do Rio de Janeiro na alvorada do século XX. Este tema, aparentemente esdrúxulo e açucarado, suscita questões importantes: até que ponto os homens e mulheres despossuídos que são nossos protagonistas nesta história praticam relações de amor informadas pelos valores dominantes com que são continuamente bombardeados pelos veículos classistas de propagação e internalização de padrões comportamentais? Numa época em que o “amar”, como tudo, de resto, deveria se enquadrar nos padrões morais da ordem burguesa que se impunha, como efetivamen
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te amaram os homens e mulheres da classe trabalhadora? Viveram eles angustiados pela ânsia de se ajustarem aos pa drões de conduta feitos para eles, ou forjaram valores próprios que orientaram sua conduta nas situações reais específicas que vivenciaram? Ou, quem sabe, viveram divididos entre valores que não eram os seus e aqueles que forjaram efetivamente em sua prática de vida?
Pelo menos no que tange às relações amorosas, este problema da relação entre normas de comportamento dominantes e classes sociais tem sido tradicionalmente abordado em nosso país do ponto de vista da patologia social: tanto os homens de poder quanto os cientistas sociais têm ado tado o procedimento de comparar os padrões de comportamento ideais considerados universais pela classe dominante com a conduta real manifestada pelas classes populares. O passo seguinte é constatar que a conduta real vivida pelos membros das classes populares não se ajusta aos padrões do minantes, concluindose, então, que os populares vivem em um estado anô mico ou patológico no qual as relações entre os sexos são caracterizadas pela desordem e pela promiscuidade, cul mi nando com a desagregação da família. É lógico que esta linha contínua ao longo da qual os amantes pobres se meta morfoseiam em seres promíscuos e anômicos pode apresentar as mais variadas sinuosidades. Para citar apenas um exemplo já conhecido, lembramos que os negros libertos — por ocasião do debate sobre a repressão da ociosidade na Câmara dos Deputados alguns meses após a Abolição — foram descritos pelos barões imperiais, de forma caracteristicamente simplista e maniqueísta, como indivíduos que viviam num estado de “depravação dos costumes”, “cheios de vícios” e com baixos padrões morais.1 Mas, por outro lado, um pensador do quilate de um Florestan
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Fernandes, munido de toda sua inteligência, de numerosos dados em píricos e de sofisticado aparato teóricometodológico, afirma sobre o mesmo negro liberto que ele apresenta “de formações introduzidas em sua pessoa pela escravidão”, “ob sessão pelo sexo” e que vivia em um esta do de “desorganização permanente de suas condições materiais e morais de existência social”.2 É estar recedor e intrigante que pes soas tão diferentes cheguem a conclusões tão parecidas.
É necessário desatar o nó górdio. E desatálo neste contexto significa mudar a tonalidade e até o sentido das nossas perguntas. Os teóricos da patologia social deram uma contribuição importante ao constatarem que os padrões de comportamento amoroso praticados pela classe trabalhadora não se ajustavam àqueles propalados pela classe dominante. A constatação é essencial na medida em que sugere limites claros à possível eficácia dos mecanismos de controle e repressão sexual ativados pelos detentores do poder e do capital na conjuntura específica da transição para a ordem burguesa na cidade do Rio de Janeiro. Mas o sentido do passo seguinte há de ser modificado: não se trata mais de rotular de patológico ou anômico tudo aquilo que não se ajusta satisfatoriamente aos valores característicos da visão de mundo burguesa, e sim tentar compreender o sentido e a racio nalidade intrínsecos ao comportamento amoroso dos membros da classe trabalhadora. Este sentido e esta racionalidade só podem ser apreendidos a partir da reconstituição artesanal de inúmeras histórias de amor entre estes indivíduos des pos suídos, pois estas histórias — com seus incontáveis pequenos detalhes e pelo que revelam de numerosas experiências reais vivenciadas por estas pessoas — nos informarão dos condicionantes sociais e materiais do ato de
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amar nos escalões inferiores da sociedade carioca dos primeiros anos do século XX.
Os estudos mais recentes sobre família no Brasil já mostram claramente uma mudança de perspectiva sobre o problema. Mariza Corrêa, por exemplo, “repensando” o assunto, realça a necessidade de “dar conta de uma tensão permanente entre os impositores de uma ordem préde finida e aqueles que a resistem cotidianamente”.3 Concretamente, isto significa reconhecer a impossibilidade de discorrer sobre a família brasileira, enquanto modelo ideal pairando sobre nossas cabeças e determinando as ações dos agentes históricos independentemente das situações de classe vivenciadas por esses agentes na prática cotidiana da vida. Como afirmam com propriedade Lia Fukui e M. C. A. Bruschini, o conhecimento do real significado das famílias num determinado momento histórico
só é possível quando, ao invés de uma abordagem ancorada no plano do ‘dever ser ’, que tem orien tado a teoria e a prática, na direção da normatização e do estabelecimento de controles sociais , procurase de fato apreender o real significado da diversidade e da especificidade das diferentes estruturas familia res num determinado contexto social.4
Ou, como escreve de forma ainda mais enfática Car mem Cinira Ma cedo:
[...] O significado da família não pode, portanto, ser estudado em termos gerais para o conjunto da socie dade. Pelo contrário, a análise da família deve visar a identificação da prática real das várias classes e, ao reconstituílas por referência ao todo, retirar daí a compreensão do sentido particular que a vida familiar assume em cada
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caso. A análise da família não pode ser desvinculada da estrutura de classes e deve visar a reconstrução do modo pelo qual ela representa um modo possível de viver concretamente a inserção numa estrutura de classes. Assim, o significado da família operária só pode ser iluminado por referência às condições de vida das classes trabalhadoras no Brasil.5
Cabem ainda algumas observações que visam ajustar as expectativas do leitor aos objetivos obviamente limitados deste capítulo. O enfoque deste estudo é a relação homem–mulher em si, seja ela uma relação entre paqueras, namorados, noivos, amantes, amásios ou cônjuges com papel assinado e tudo o mais. Os dados sobre as relações de família de forma mais ampla, no entanto — ou seja, aqueles referentes às relações entre parentes, compadres e, até, amigos mais íntimos —, não foram desprezados e são aqui copiosamente utilizados porque nos esclarecem bastante sobre as formas possíveis que assumem os relacionamentos amorosos entre os despossuídos presentes no tempo e na sociedade em questão. Esta opção preferencial de enfoque na vida do casal em si, ao invés de nos relacionamentos familiares mais amplos, devese, por um lado, à natureza dos dados empíricos coletados — provenientes, principalmente, de processos penais sobre homicídios pas sionais —, que privilegiam claramente a parcela do real vivido que concerne ao relacionamento do casal em si. Mas, por outro lado, este enfoque é reflexo da dificuldade que encontramos em perceber o real significado do termo “família” para os homens e mulheres em questão. Os dados coletados mostram que esses indivíduos se envolviam em redes de solidariedade e ajuda mútua tão extensas, variadas e íntimas que se tornou impossível, em diversas situações concretas, estabelecer os limites entre
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as redes de solidariedade dita “familiar” e as de outro tipo. O compadrio entra como junção fundamental neste contexto, pois sim bo liza o caráter flexível e abrangente dessas redes de solidariedade dita “familiar”: o procedimento de trazer para o seio da família, através da instituição do compadrio, ami gos íntimos feitos na vizinhança ou nos locais de trabalho é sistemático e bastante comum entre os homens e mulheres em questão.
O capítulo está dividido em quatro partes principais. A primeira consiste na observação do processo de construção dos papéis sexuais pela ordem burguesa emergente no Rio de Ja neiro em fins do século XIX e primeiros anos do século XX. A apresentação resumida desse modelo burguês de relação homem–mulher — colocando em evidência, assim, seus pres supostos essenciais — é necessária na medida em que nos pro pomos mostrar os limites incontornáveis deste modelo domi nante quando utilizado como instrumental heurístico e ponto absoluto de referência na análise dos padrões de comporta mento da classe trabalhadora. As duas partes seguintes visam reconstruir certos aspectos das condições de vida da classe trabalhadora que parecem condicionar mais fortemente as formas que assumem as relações entre os casais nesse con texto. A primeira dessas duas partes trata da construção das redes de solidariedade e ajuda mútua que se constituem num aspecto fundamental da estratégia de sobrevivência do pobre urbano em questão. A outra parte versa sobre o modo específico de inserção da mulher pobre no mundo do trabalho, já que esta inserção é outro fator de peso na estratégia de sobre vivência das pessoas. Finalmente, focalizaremos o relaciona mento entre homens e mulheres em si mesmo, procurando esboçar algumas de
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suas regras de funcionamento e detectar alguns de seus elementos de tensão.
O modelo dominante de relação homem–mulher
Analisando principalmente as teses defendidas na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro ao longo do século XIX, Jurandir Freire Costa procura mostrar a emer gência dos valores e normas referentes à família burguesa no Brasil.6 Claramente inspirado nas idéias de Foucault, Costa ar gu menta que os preceitos de uma educação higiê nica pre sentes no discurso médico da época acabam por construir modelos de homem, de mulher e de relacionamento entre os sexos que, masca rados pelos seus propósitos decla radamente científicos, reforçam formas de dominação e de manutenção e reprodução da ordem social burguesa.
O discurso médico procurava captar as diferenças de natureza entre os sexos a partir da maneira como homens e mulheres reagiam ao amor e aos sentimentos em geral. De maneira bastante característica para a época, essas diferenças naturais entre homens e mulheres tinham sua origem, em última análise, nas características anatômicas dos sexos. Estabelecese, assim, uma correspondência direta entre “faculdades afetivas” e formas anatômicas que dá legitimidade científica ao discurso. Um dos nossos doutores postula desta forma o pressuposto científico da natureza intrinsecamente afetiva da mulher:
As observações anatômicas do Dr. Gall confirmam tão bem esta diferença primeira que estabelecemos entre o moral do homem e da mulher. Com efeito, Gall obser
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va que as mulheres têm geralmente a cabeça mais volumosa na parte posterior e a fronte mais estreita: e sabemos que ele atribui às partes posteriores do cérebro as faculdades afetivas, e às partes anteriores as faculdades intelectuais”.7
Estabelecida esta “verdade científica”, desenrolase então o processo de caracterização sentimental, construindose verdadeiros “catálogos de especificação sóciosexual”, para utilizar a expressão de Jurandir F. Costa.8 A primeira constatação era a de que a mulher era mais frágil fisicamente do que o homem. Desta fragilidade física advinham a delicadeza e a debilidade da constituição moral da mulher. Diz um doutor: “Toda a constituição moral da mulher [...] resulta da fraqueza inata de seus órgãos; tudo é subordinado a esse princípio pelo qual a natureza quis tornar a mulher inferior ao homem”.9 Criatura fraca por natureza, as principais virtudes femininas passam a ser a sensibilidade, a doçura, a passividade e a submissão. A mulher, então, deve ser posta sob a proteção do homem, empenhandose em cuidar do lar e dos filhos. Ela devia estar ligada ao homem como a “trepadeira a um tronco” e sua vida devia se resu mir “em amar e ser amada”.10 O homem, ao contrário, caracterizavase pelo vigor físico e pela força moral. Dominado pela sua virilidade, o homem amava menos que a mulher e seu interesse estava mais voltado para o gozo puramente sensual. O homem era mais seco, racional, autoritário e duro.
O problema seguinte dos higienistas era explicitar como criaturas tão opostas poderiam se unir para constituir uma fa mília. A resposta encontrada era previsível: o amor aos fi lhos era o fator principal de união do casal. A mulher, assim, fica reduzida ao seu papel de mãe e esposa, enquanto o homem se dedica ao seu trabalho, à posse da mulher e à
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fiscalização dos filhos. Jurandir F. Costa acentua o caráter assimétrico da relação conjugal propalada pelo poder médico, pois nela o homem exercia uma pesada dominação sobre a mulher. Esta dominação se justifica, segundo ele, por uma espécie de compromisso entre o pai e o poder médico: o patriarca dos tempos coloniais ostentava seu poder sobre todo o grupo familiar e demais dependentes da propriedade; agora, desprovido de terras e escravos e disciplinado se xualmente, o pai tinha como compensação a propriedade pri vada da mulher.
Como observa Lia Fukui, a leitura de Freire Costa impressiona porque reforça em sua generalidade um estereótipo de relação homem–mulher que está fortemente presente na literatura especializada e que provavelmente faz parte do universo mental da população urbana brasileira. Falta, contudo, saber “se esta norma é concretamente efetivada pelos diferentes segmentos da sociedade”.11
É óbvio, no entanto, que a construção e a divulgação de um determinado modelo dominante de relação homem–mulher não se fazem apenas através da ordem médica. As lições de amor e sexo, paternidade e maternidade etc. também são transmitidas por meio do aparato jurídico e da imprensa, por exemplo. Em trabalho mais recente, Mariza Corrêa estuda as representações jurídicas de papéis sexuais a partir da análise de processos criminais de homicídios passionais.12 Apesar de o material analisado pela autora se restringir à cidade de Campinas entre os anos de 1952 e 1972, as conclusões principais do estudo são bastante pertinentes para a análise dos processos penais do mesmo tipo ocorridos na cidade do Rio de Janeiro do início do século .
Corrêa mostra que o que está realmente em questão em cada julgamento é a defesa de um sistema de normas visto
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como universal e absoluto. Os julgamentos, então, objetivam reafirmar as normas dominantes, sendo que as pessoas envolvidas serão julgadas nem tanto pelo ato criminoso em si, mas pela adequação de seu comportamento às regras de conduta moral consideradas legítimas. Sendo assim, o modelo ideal de mulher que aparece nos autos é o de mãe, ser dócil e submisso cujo principal índice de moralidade é sua fidelidade e dedicação ao marido. O homem se define principalmente pela sua dedicação ao trabalho, pois sua obrigação fundamental é prover a subsistência da família. Daí emerge, por conseguinte, uma imagem bastante assimétrica de relação homem–mulher, com o homem exercendo uma dominação completa sobre a mulher submissa. O paralelismo com o discurso médico analisado por Jurandir Costa é claro, mas os fundamentos da dominação masculina aqui não são, obviamente, alegações de cunho cientificista — o problema agora é a honra: a honra do homem depende da conduta da mulher, que lhe deve ser absolutamente fiel, e é exatamente essa dependência que legitima seu poder sobre ela. Esta problemática da defesa da honra já estava cla ramente presente nos processos por crimes passionais do início do século XX, só que naquela época os defensores contavam ainda com o argumento da privação de sentidos: o homem ofendido em sua honra ficava em estado de “privação de sentidos e inteligência” e cometia o crime em um momento de desvario, de loucura momentânea. É interessante, nesse contexto, realçar a combinação perfeita de um con ceito “mé di cocientífico” — a loucura — com um conceito jurídico — “defesa da honra” — para reforçar o di reito de dominação do homem sobre a mulher no relacionamento amoroso. Alicerçado nos discursos médico e jurídico, o homem adquiria, assim, poder de vida e morte sobre a mulher.
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Seria ocioso reconstituir aqui detalhadamente o processo de elaboração das representações jurídicas de papéis sexuais nos processos criminais do início do século, pois isso seria apenas uma reafirmação das conclusões de Mariza Corrêa já sintetizadas acima, e, além disso, fugiria um pouco dos objetivos deste capítulo. Tentemos satisfazer a possível curiosidade do leitor comentando apenas um caso bastante típico e elucidativo. O crime em questão ficou conhecido na época como “A Tragédia da Tijuca” e um dos seus principais atrativos é a atuação brilhante e decisiva de Evaristo de Moraes, o mais famoso dentre todos os defensores de criminosos passionais no período.13 Advogado astuto e hábil manipulador dos estereótipos sexuais dominantes à época, a estratégia de defesa de Evaristo de Moraes no caso tipifica bem o que invariavelmente ocorre em processos do gênero.
O crime ocorreu no Alto da Boa Vista no dia 26 de abril de 1906 e foi cometido pelo estudante de direito Luís de Faria Lacerda, que assassinou a tiros o médico João Ferreira de Moraes e fez diversos ferimentos na jovem e for mosa Climene Philipps Benzanilla, viúva de um diplomata chileno. Temos, então, um açucarado triângulo amoroso, seme lhante aos de nossas atuais novelas das oito. O depoimento da viúva nos esclarece que ela e Lacerda ha viam sido namorados durante algum tempo, mas que jamais havia dado ao jovem estudante o seu “compromisso de noiva, porque este ainda não tinha posição na sociedade, que garantisse a sustentação de um casal”. Arremata dizendo “que o rompimento de suas relações com o mesmo acusado foi motivado por ter ela informante tido decepções a respeito dele, sabendo que era um moço de mau caráter, de maus costumes e vadio, tanto que não conseguiu uma colocação durante todo o tempo que o conheceu, isto é, seis anos”. O acusado, em depoimento
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patético e romântico, conta que, munido de uma carta amorosa que havia há tempos recebido da esbelta viú va, dirigiuse ao Alto da Tijuca para saber do dr. Moraes se este estava de fato noivo de dona Climene e, “como tivesse recebido resposta afirmativa, desvairado por profundo sentimento afetivo que a ela vota, três vezes detonou o revólver [...]”. Depois disso, pensava em suicidarse, mas deparou com a viúva adorada e mudou de idéia. Tomado de “alucinação”, narrou a dona Climene “a desgraça em que o mergulhara [...] clamando que ela era a causa de seu infortúnio” e “no desvario em que foi tomado” descarregoulhe as outras balas de seu revólver. Depois de narrar todo este frenesi, contou que foi “cercado pela turba popular que, irada e feroz” (grifo meu), agrediuo!
Para azar da viúva Climene, o astuto defensor de Lacerda conseguiu com a família do réu algumas cartas de pró prio punho da viúva que eram bastante comprometedoras da “honestidade” desta. Apesar da resistência do romântico acusado, que não queria a divulgação das cartas pelo prejuízo que traria à reputação de sua amada, Evaristo de Moraes conseguiu fazer destas cartas o seu princi pal argumento de defesa. As cartas, apresentadas inespera damente no Tribunal do Júri, no último instante, suge riam que a viúva havia mantido relações sexuais com o réu durante o período de namoro e que tinha até necessitado fazer um aborto. Assim, o defensor do réu, matreiramente, faz da conduta da viúva Climene o principal assunto a ser apre ciado pelo júri, e este, vencido pelos estereótipos sexuais que carregava consigo, absolve o réu. Quanto aos atos do réu propriamente ditos, Eva risto de Moraes os justifica atri buindoos à “exacerbação amorosa, elevada ao paroxismo, como legítimo equivalente da alienação mental”.
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Orgulhoso de sua perspicácia, Evaristo de Moraes relembra, já anos mais tarde, sua estratégia naquele célebre caso:
Tinha eu, como arma principal, a coleção das cartas escritas a Lacerda por D. Climene. [...]Baseouse, portanto, meu discurso, na demonstração de ter havido entre Lacerda e a, também acusadora, D. Climene, relações de certa intimidade, reveladas por aquela comprometedora correspondência. Havia, de fato, prova convincente de ter sido a formosa viú va mais, muito mais, do que simples namorada de Lacerda. Havia, mesmo, prova irrecusável de haver o amor dos dois produzido fruto, que eles não deixaram aparecer.Contava eu (e não sem razão) com o efeito dessas escandalosas revelações no espírito do júri, o qual não poderia deixar de repelir a atitude de D. Cli mene, tendo a coragem de mandar pedir para o seu ex aman te 30 anos de prisão, depois de o haver enganado atrozmente.14
Casos deste tipo repercutiam intensamente e eram cobertos de forma bastante sensacionalista pela imprensa da época durante dias e até semanas. Um caso como este era explorado ao infinito, pois não só os atores jurídicos, mas também seus protagonistas, manipulavam com desenvoltura os valores dominantes da relação homem–mulher. Todo o empreendimento acabava assumindo um caráter educacional claro, pois os diversos segmentos da sociedade deviam reter do caso amplamente divulgado as lições pertinentes sobre quais deveriam ser as condutas do homem e da mulher no relacionamento amoroso ideal.
Mas para o pobre urbano, que ouvia comentários sobre o caso por vizinhos ou amigos, ou ouvia a reportagem do jornal lida em voz alta por um companheiro mais letrado no
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botequim, o que significava aquilo tudo? Que lições ele realmente retinha de todo esse esforço educacional detonado pela classe dominante da sociedade?
Parentes, compadres e amigos
Ao analisar as relações de família entre os caipiras da velha civilização do café — a região do Vale do Paraíba —, Maria Sylvia de Carvalho Franco argumenta que a violência era uma característica fundamental dessas relações, constituindose em uma forma regular de ajuste de tensões.15 Ela afirma ainda que agressões sérias aparecem associadas à rotina doméstica, em situações que não são absolutamente de relevância excepcional para a sobrevivência do grupo familiar. Fazendo uma comparação com o “padrão de organização da família tradicional brasileira, vigente entre as camadas altas da sociedade até os fins do século XIX”, a autora conclui que nas famílias caipiras “predominam os vínculos pessoais dissociados de considerações de interesses”, o que tornava as relações entre parentes superficiais e ambíguas, dificultando a integração das famílias.
Maria Sylvia de C. Franco constata, então, que há diferenças importantes no sentido das relações de parentesco en tre os caipiras em questão e a chamada “família tradicional brasileira”. A análise de Franco suscita, no entanto, algumas questões, como, por exemplo, quando ela afirma que a violência era a característica fundamental das relações de fa mília entre os caipiras e que, além disso, essas relações eram “dissociadas de considerações de interesses”. Parece pro blemático trabalhar com a noção de violência como instrumento heurístico, já que tal conceito está carregado de
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conotações de classe e, ainda, a autora utiliza processos criminais na reconstituição das relações de família entre os caipiras, o que privilegia obviamente as situações que desembocam em confronto físico direto. Além disso, a constatação de que há diferenças no sentido das relações de parentesco entre os caipiras e os setores abastados da sociedade não implica necessariamente que as relações de famí lia entre os caipiras são “dissociadas de considerações de interesses”, mas pode significar apenas que tais relações entre esses homens e mulheres são regidas por interesses dis tin tos daqueles que predominam na chamada “família tradi cional brasileira”, conceito este, aliás, bastante problemáti co .
Sendo assim, as observações que se seguem a respeito das relações entre parentes, compadres e amigos, entre os membros da classe trabalhadora, visam mostrar
1) que, devido às condições adversas de luta para a reprodução de sua vida material, os laços de solidariedade e ajuda mútua entre os homens e mulheres em questão eram um aspecto fundamental de sua estratégia de sobrevivência ;
2) que os eventuais conflitos entre parentes, compadres e amigos possuíam uma significativa densidade política, sendo expressão das tensões provenientes de lutas por poder e influência no interior dos microgrupos socioculturais, tensões e lutas estas inerentes à dinâmica de funcionamento de qualquer grupo humano.16
Abdicamos, portanto, de tentar fazer qualquer avaliação quanto ao grau de violência presente nos ajustes de tensão dentro desses grupos, assim como não tentaremos construir modelos abrangentes de relações de parentesco ou compa
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drio pois, levando em consideração o estágio atual da pesquisa e o tipo de fonte analisada, tais pretensões em pouco contribuiriam para um melhor conhecimento da realidade que se quer apreender.
Miguel da Costa, natural do Distrito Federal, branco, 25 anos, operário, assim narra na delegacia o homicídio que acabara de cometer contra seu cunhado, o estivador Ma noel Pedro de Andrade, sergipano, pardo, de 32 anos:
[...] estando ele depoente em casa de seus pais à rua acima indicada, aí chegou o seu cunhado Manoel Pedro de Andrade pronunciando as seguintes palavras: “Já aluguei a casa, as chaves estão aqui, porém só mudarei quando eu quiser”; que o pai dele de poente dissera: — “O senhor pode se mudar quando quiser, não é preciso, porém, fazer barulho”, ao que Andrade nada respondera; que o pai dele declarante entrara para o seu quarto trancandose por dentro e Andrade indo em sua perseguição meteu o pé na porta; que o pai dele declarante abrindo a porta foi [trecho ilegível] imediatamente por Andrade que, trazendo um facão à cintura e uma faca na mão, em atitude de desferir o golpe chamavao de semver gonha; que ele depoente vendo a iminência da luta na qual seu pai seria vitimado, foi buscar um revólver e desfechou um tiro em Andrade; que este deixando seu pai vol touse para ele depoente agarrandoo e jogandoo no chão; que ele depoente uma vez caído deu o segundo tiro, sendo ele depoente arrastado por diversas pessoas que o puxaram para o interior da casa; que An drade, já ferido, correu para a rua atrás de Fuão e Sebastião Pereira, caindo no portão desfalecido [...].17
Esse depoimento caracteriza bem um aspecto fundamental da vida cotidiana do pobre urbano na cidade do Rio
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de Janeiro na era das reformas urbanísticas do prefeito Pereira Passos: o problema da moradia era sério, tornandose então bastante comum que casais jovens e seus filhos habitassem a casa dos pais de um dos cônjuges. No caso em questão, moravam na pequena casa dos pais de Vitória, mulher de Andrade, além dos dois casais já mencionados, o acusado e dois filhos menores de Vitória e Andrade. Esta situação provocava tensões algumas vezes, causadas pela competição entre sogro e genro pelo privilégio de dar as ordens na casa. Tudo indica que as tensões inerentes a esta situação só adquiriam feições mais graves quando o relacionamento entre o jovem casal não era bom, fazendo com que os sogros ou mesmo os cunhados interferissem nas brigas do casal. No caso em questão, há uma condenação quase unânime da conduta de Andrade, que é considerado um indivíduo “rixento” e “valente”, que ameaçava constantemente de pancadas os outros moradores da casa. O sogro acusava Andrade de mau marido, pois “levava um mês, quinze dias e mais sem aparecer em casa e quando aparecia era apenas para provocar desordens e distúrbios”, caracterizando assim sua interferência nos problemas de relacionamento do casal. A má reputação de Andrade corria também a vizinhança, que o responsabilizava pelas “desin teligências” na família de Lourenço da Costa, outrora “pacata” e “digna de todo respeito”, como afirma o vizinho Sebastião Pereira, também quase agredido pelo ofendido Andrade quando tentava interferir na luta. Os vizinhos narram o desenrolar das tensões, contando episódios em que Andrade teria agredido a sogra, “escangalhado” móveis e ameaçado “matar a todos”. Andrade morre antes de dar sua versão dos fatos na delegacia, mas sua atitude desafiadora ao chegar em casa, sa cudindo as chaves e apresentando o recibo de uma casa que
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já havia alugado, atesta sua intenção de livrarse da interferência do sogro e passar a ter uma vida mais independente. Vitória, a mulher da vítima, também não depõe no processo, sabendose apenas que gritou muito por socorro durante a luta e depois foi “presa de uma crise nervosa”.
Os casos seguintes parecem confirmar a hipótese de que os conflitos nos grupos familiares em questão origi na vamse sobretudo quando da interferência de sogros ou cunhados no relacionamento do casal. No caso em que o alfaiate Ozias Moreira, mineiro, pardo, de 22 anos, matou com um golpe de navalha o sogro Joaquim Figueiredo, também pardo, de 42 anos, trabalhador, a necessidade havia novamente levado sogro e genro a habitarem sob o mesmo teto.18 O promotor público narra dessa forma os antecedentes do crime:
O réu, há tempos, residia no Estado do Rio de Janei ro, onde exercia a profissão de alfaiate, havendo escasseado o trabalho devido à crise da lavoura local, que é a única fonte de todas as atividades comer ciais e industriais, do ofício já não tirava os meios para a mantença pessoal e da família e escreveu ao sogro pormenorizando as dificul dades que estavam atravessando e desesperançado que aquele malestar minorasse pelo desânimo que assoberbava a população local.O sogro que idolatrava aquela filha, esposa do réu, pressurosamente remeteu por um saque postal os recursos para o regresso de todos e os acolheu alegremente na sua confortável vivenda, onde residiam felizes até o dia da execução criminosa.Muitos meses decorreram naquela vida plácida, na mais santa harmonia.Por muitas vezes manifestara o réu desejos de regressar para o local onde sentira o frio da miséria com todo o seu cortejo de horrores, ao que se opunham todos, lhe dizendo na intimidade familiar:
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“Você aqui não incomoda absolutamente a nós em coisa alguma. Como quer voltar para um lugar, onde já esteve mal sem um contrato que garanta a estabilidade e o bem estar de sua família?”Tão sensato parecer era motivo de profundo desgosto para o réu que, dia a dia, aninhava mais aversão àqueles que devia idolatrar, por não consentir na resolução leviana e insensata que queria pôr em prática. [...]Daí veio a corrente de ódio implacável do réu contra o seu sogro [...].
A situação de impasse se arrasta por algum tempo, até que Ozias decide partir para o interior. A esposa, contudo, fica indecisa, ora dizendo que partiria com o marido, ora afirmando que ficaria com o pai. Acaba decidindo partir com o marido, mas este, aparentemente irritado com a situação, decide que não mais a quer e que partiria sozinho. Ozias sai e retorna mais tarde para pegar seus pertences, encontrando então o sogro mais uma vez, ocorrendo nessa ocasião o desfecho fatal. Há certa unanimidade das testemunhas quanto aos antecedentes da luta, mas muitas divergências quanto ao seu desenrolar: alguns dizem que Ozias provocara o conflito, mas a maioria diz que o sogro estava mais exaltado e fora quem começara com a panca daria. De qualquer forma, mais uma vez é a interferência de parentes no relacionamento do casal que detona o ajuste violento.
No caso seguinte, Maria Francisca e sua filha moram com seus respectivos amásios sob o mesmo teto.19 Outro fi lho de Maria, João Braulino de Souza, pardo, de 18 anos, padeiro e analfabeto, morava em outra casinha na mesma rua. João relata na delegacia a briga que teve com o amá sio da irmã, Artur Silva, pernambucano, pardo, 23 anos, jornaleiro:
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[...] achavase [...] do lado de fora da casa onde mo ra sua irmã Deolinda, quando ouviu o amásio dela Artur Ferreira da Silva maltratála com palavras ofensivas; que não sendo essa a primeira vez que Artur maltratava a sua irmã, não só com palavras mas também ofendendoa fisicamente, ele declarante entendeu que devia tomarlhe uma satisfação e para isso, entrou na casa e dirigindose a Artur o repreendeu; que este enraivecendose, levantou uma foice que tinha na mão, fazendo menção de ferilo, e foi nessa ocasião que ele declarante, apa nhando uma faca de seu padrasto que se achava pendurada, investiu contra Artur dandolhe uma facada; que em seguida Artur atra couse com ele declarante, e como a irmã dele Deo linda o tivesse agarrado, Artur conseguiu tirarlhe da mão a faca [...].
O ofendido faleceu a caminho da Santa Casa.Artur, no entanto, ainda teve tempo de dar sua versão
dos fatos. Contou que a discussão com sua amásia era “sobre uma filha dela pela qual Deolinda toma logo as dores quando o declarante repreende”. Confirmou que Braulino achava que ele infligia maustratos a Deolinda e por isso veio interpelálo. Nada mencionou sobre a foice que o acusado disse que tinha na mão, afirmando que este o agrediu repentinamente. Diversas testemunhas afirmam que Artur era “rixento” e “valentão”, e o amásio de Maria Fran cisca confirma que Artur sempre tinha discussões com sua amásia Deolinda, “não lhe constando, porém, que ele a maltratasse com pancadas”. O mais importante neste contexto é que Deolinda repele fortemente a interferência do irmão em seu relacionamento com o amásio. Confirmou que de fato tivera pequenas rusgas com o amásio, “mas que não é verdade que Artur maltratasse ela declarante, como afirmou seu irmão Braulino”. Disse que seu irmão agredira Artur “sem
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motivo algum” e que não era verdade que Artur estava armado de foice na ocasião. Deolinda negou, ainda, que estivesse discutindo com Artur quando Braulino apa receu. Uma das testemunhas refere que Braulino, dece p cio nado com a atitude hostil da irmã para com ele, teria lhe perguntado: “É esse o pago que me dás de ser a seu favor? ”
No último caso em que aparece uma situação de tensão causada pela interferência de parentes no relacionamento de um casal, vemos a vingança do amásio abandonado contra o sogro, a quem responsabilizava pelo fato de sua amásia o haver deixado.20 Mário Costa, cavouqueiro, de 27 anos, dirigiuse à delegacia de Bangu para “queixarse de Manoel Paulo Taveira que foi a sua casa anteontem buscar objetos pertencentes a uma sua filha Maria Madalena, amásia do declarante, tendo levado também roupas pertencentes a sua mãe e uma nota de vinte milréis que se achava dentro de uma caixa [...]”. Mário prossegue contando que Taveira era um assassino, pois tinha matado um homem havia dois anos na mesma localidade, em crime cuja autoria não havia sido descoberta na época. Com efeito, o processo contém o inquérito policial de dois anos antes, que não determinara a autoria da morte do preto Alberto, vulgo Tifu. Mário conta que Taveira matou Alberto para roubar mantimentos, quando voltavam todos de uma venda. O depoente já era amásio da filha de Taveira na época, e o assassinato “ficou em família”, tendo sido o cadáver escondido no meio de um matagal, onde foi encontrado dias de pois já bastante desfigurado. Mário conta que veio à polícia porque Taveira o havia ameaçado de morte caso se aproximasse de novo de sua filha, e que esta o havia deixado “por imposição do pai”.
Em seu depoimento, um filho menor de Taveira confirmou o crime, dizendo que seu pai dera uma cacetada em
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Alberto quando este recusouse a soltar uma bolsa que trazia. A mãe também confirma a ocorrência do crime, mas diz que seu marido foi tomar satisfações de Tifu, que “vendo a declarante passar convidoua para ir pro mato”, resultando daí uma briga entre ambos. A filha de Taveira diz que não vinha com sua família no dia da ocorrência, “não acreditando fosse seu pai o autor de tal morte, que é apontada por Mário Ferreira, examásio da declarante, da qual deseja vingarse por o haver deixado, tendo até a ameaçado de mor te”. O acusado Taveira também nega ter cometido o crime e “que a denúncia se deve a uma desarmonia entre ele e Mário Ferreira, examásio de sua filha”. Mário também “insinuou sua mulher para falar contra ele”. Diante desse caos de declarações conflitantes, o júri absolveu folgadamente o réu, abortando assim a vingança do amásio abandonado.
Até o momento, os casos relatados sugerem pelo menos dois fatos importantes para que possamos contex tualizar ade quadamente as relações amorosas dos homens e mulheres em questão. Primeiro, notamos um esforço ingente desses indiví duos para resolver o problema da moradia, o que teria levado muitos casais ligados por laços de parentesco a habitarem a mesma casa, muitas vezes em condições bastante precárias. Como continuaremos a ver, não só casais ligados por laços de parentesco, mas também casais ligados pela insti tuição do compadrio e até por simples amizade, eram levados a morar sob o mesmo teto devido às imposições da luta de todos pela sobrevivência. Segundo, a fonte principal de tensões entre parentes provinha da interferência de sogros e cunhados nos problemas de relacionamento do jovem casal, premido pela necessidade a morar junto com os pais de um deles. Como ve remos adiante, este fato comum de vá rios casais habitarem sob o mesmo teto contém também mui tos
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elementos de tensão quando está afastada a circunstância do parentesco: o perigo do adultério — pouco importando se real ou imaginado — rondava a cabeça dos amantes inseguros; os problemas de cada casal eram compartilhados pelos outros habitantes da casa, que, às vezes, tomavam par tido na disputa; em algumas ocasiões surgiam problemas entre os casais devido a pequenos deveres diários de solidariedade e ajuda mútua que deviam ser cumpridos à risca; final mente, podia ocorrer o fato de os ho mens e mulheres da casa se ve rem em campos opostos, como, por exemplo, quando as mulheres se uniam para protestar contra seus maridos que se juntavam para realizar “conquistas” e ir a bailes. 21
De qualquer forma, a própria observação pormenorizada do surgimento das tensões entre esses homens e mulheres faz lembrar Lima Barreto, que se impressionava em ob servar “de que maneira forte a miséria prende solida mente os homens”. Esses casais, que se uniam para enfrentar, juntos, a situação de penúria a que estavam condenados, “talvez não se amassem, mas viviam juntos, trocando presentes, pro tegendose, pres tandose mútuos serviços”.22 Na verdade, os casos analisados a seguir parecem indicar que esses deveres de reciprocidade eram muito valorizados pelas pessoas, que deles dependiam bastante para continuar se equili brando sempre precariamente na corda bamba da sobrevivência.
Antônio Pedro dos Santos, sergipano, pardo, de 31 anos, carpinteiro, narra detalhadamente a briga que resultou na morte de seu concunhado José Agostinho da Paixão, pardo, de 27 anos, pintor:23
[...] que há meses convidou o seu concunhado José Agostinho da Paixão para juntos arrendarem um terreno em Madureira para fazerem duas casinhas para si e
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suas famílias; que então não encontraram terreno para aforar, porém tendo o declarante posteriormente arrendado um terreno em Madureira como esse fosse espaçoso ofereceu uma parte a José Agostinho para que ele edificasse uma casinha ao lado da do declarante; em vista disso os dois construíram duas casinhas vizinhas uma da outra, sendo que a de José Agostinho não se acha de todo concluída; que na sextafeira na ausência do declarante José Agostinho e sua mulher vieram da cidade para trabalhar nas obras da casa em companhia de Trajano de tal e Pedro de tal, guardafreio da Estrada de Ferro Central; que o declarante foi dormir em sua casa ficando José Agostinho na casa em construção em companhia de Trajano, dormindo porém a mulher daquele Maria da Paixão no quarto do declarante em companhia de um filhinho e dormindo o declarante e sua mulher na sala próxima; que no dia seguinte o declarante almoçou na casinha de José Agostinho em companhia dele, de Maria da Paixão e Trajano estando nessa ocasião sua mulher Dorcina ausente em casa de uma vizinha de nome Eva; que à tarde Dorcina queixouse do declarante não ter almoçado em sua companhia e por isso disse que jantaria com ela, pelo que ela preparou o jantar que foi servido no terreiro nos fundos da casa do declarante das cinco às seis horas da tarde; que antes do jantar José Agostinho perguntou se o declarante não ia jantar em companhia dele ao que respondeu que não porque já ia jantar com sua mulher não tendo visto nessa ocasião a mulher de José Agostinho; que findo o jantar foi à Cascadura a fim de comprar fumo e ao sair viu José Agostinho e Trajano juntos à casa daquele; que ao voltar já era noite e entrando em casa pelos fundos recolheuse a seu quarto e deitouse depois de ter tirado o paletó e as botinas; que na ocasião em que entrou sua mulher e sua cunhada estavam na sala vizinha e conversavam, não tendo visto onde então se achava José Agostinho; que tendo adormecido acordou em sobressaltos,
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deparandoselhe sua mulher entrando para o pequeno quarto impelida por José Agostinho que gritava, dirigindose ao declarante, que havia de acabar com ele e com a sua raça por ele declarante não ter querido jantar com eles; que José Agostinho empunhava um pedaço de ferro [...]; que nessa ocasião diante do que se passava o declarante apoderouse de uma faca de mesa que se achava sobre um lavatório e servira para picar fumo e com ela deu um golpe contra José Agostinho [...].
Este fascinante flagrante de vida doméstica nos fornece diversas informações. De início, notase que os dois casais em questão procuravam uma alternativa de moradia nos subúrbios, deixando assim de habitar as freguesias centrais da cidade. Eram, muito provavelmente, alguns dos milhares de populares vitimados pela política de reformas urbanísticas da era de Pereira Passos. No esforço de construção das ca sinhas, destacase a ajuda dos amigos Trajano e Pedro, que passam dias inteiros labutando com José Agostinho e Antônio Pedro. Enquanto isso, as mulheres se revezam nas tarefas domésticas: uma prepara a comida e outra vai trabalhar na casa de uma vizinha. Um outro depoimento diz que Dorcina tinha ido à casa de Eva “fazer flores”; esta tarefa po deria ser remunerada, como tais tarefas efetivamente o eram muitas vezes, ou então era uma simples retribuição de um favor prestado anteriormente pela vizinha. Esta segunda hipótese parece mais favorável neste caso específico, pois uma testemunha refere no processo que um filho de Eva havia estado em casa de Dorcina no dia anterior “lavando a louça”.
Mais interessantes, contudo, são as observações quanto ao caráter cerimonioso que cerca o ato de comer junto, de almoçar, de jantar. Primeiro, vemos que a mulher de Antônio Pedro, Dorcina, reclama deste por não haver almoçado
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com ela. Depois, Antônio Pedro narra os antecedentes da luta sempre em função da indignação de José Agostinho pelo fato de o amigo e concunhado não o haver chamado para jantar. Com efeito, as testemunhas referem que José Agostinho reclamava que Antônio Pedro, apesar de o ter convidado para morarem juntos em Madureira, não estava sendo correto com ele, tratandoo “com pouco caso”. Estes fatos ilus tram bem a importância que os nossos personagens atribuem às demonstrações diárias de hospitalidade e respeito mútuo, que servem como uma espécie de reafirmação de cada parte de que todos estão unidos no objetivo comum de tornar possível sua sobrevivência.
A versão da história apresentada por Antônio Pedro, no entanto, parece enfatizar demasiadamente o papel da que bra do cerimonial gastronômico da rotina doméstica no ajuste violento em questão. Esta atitude do acusado é compreensível, pois ele pretendia com isto colocarse como vítima de uma agressão fútil para justificar o homicídio que cometera. Tanto as mulheres dos envolvidos quanto os vizinhos afirmam que a briga entre os contendores se dera “por questão das casinhas que faziam”. O problema é que a ca sinha de Antônio Pedro, que fora construída primeiro, havia ficado mais baixa e menos bonita do que a de José Agos tinho. Isto criou um malestar entre os dois casais, pois as duas irmãs viviam “altercando” sobre a qualidade das ca sinhas, e Antônio Pedro, considerandose ludibriado, tencionava fazer mais obras em sua casinha, tornandoa “mais alta e melhor”, como a do companheiro. José Agostinho e Maria do Carmo retrucavam que os outros estavam “com inveja da casa”. To da esta questão, apesar de sua aparente futilidade, ensinanos um ponto de importância transcendental para estes homens e mulheres: todas estas associações, estes laços de
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solidariedade e ajuda mútua eram percebidos como relações entre seres rigorosamente iguais, que nelas se envolviam para viabilizar a reprodução material de suas existências. Sendo assim, é fácil compreender que a quebra de pequenos deveres diários da rotina doméstica — como prestar um pequeno auxílio ou seguir as regras da boa hospitalidade — e a obtenção de privilégios ou vantagens indevidas por uma das partes — como a construção de uma casinha “mais alta e melhor” — eram fatos graves que, se não contornados, poderiam desembocar em soluções radicais de conflitos.
Os compadres e os amigos eram pessoas com quem se po dia contar nas vicissitudes da vida. José Ferreira Terra, por exemplo, um português de 46 anos, barbeiro, correu para a casa do compadre Brochado, também português, de 56 anos, quando matou com um tiro o preto Graciliano, que alugava um quartinho na casa em que o acusado morava com sua amásia.24 Constança, por sua vez, portuguesa, de 41 anos, estava na casa de um seu compadre, “ajudan do a fazer o luto” de uma pessoa da família que havia falecido, quando recebeu a notícia de que seu próprio marido havia sido morto durante uma briga.25 A esposa do português Abílio Ferreira pede a um amigo que vá à cidade chamar um compadre seu, quando do assassinato de seu marido.26 Em outro processo, vemos que a menina Jandira de Carvalho, natural da capital federal, de 8 anos, estava moran do na casa de seu padrinho, o português José Pinto, de 41 anos, negociante, e de sua madrinha, a parda Sofia, de 40 anos, amásia de Pinto. O padrinho havia ficado de ar rumarlhe um colégio.27 Maria Estefânia, preta, de 45 anos, chama seu compadre Antônio Cassus, português, de 26 anos, operário, quando um homem ameaça agredila.28 Além de todos estes casos, temos obviamente a mobilização de compadres e
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amigos para auxiliar aqueles mais atingidos pelo problema da moradia.29
Os compadres e amigos eram também pessoas a quem se deviam dar demonstrações constantes de apreço e cortesia. O caso seguinte reforça muito do que já foi dito. Amélia da Rocha Pereira, brasileira, de 21 anos, narra o cri me cometido por seu marido contra a pessoa de Eugênio Antônio de Oliveira, pardo, de 30 anos, pedreiro:30
[...] que é casada com Mário da Rocha Pereira, branco, de 24 anos de idade [...] marítimo, alto, magro, pouco bigode castanho e cabelo da mesma cor, e com ele reside à rua acima referida em companhia de Carlos da Rocha Pereira Júnior, irmão de seu marido e de seu com padre Eduardo Gonzaga Borges e da mulher deste Altina Gon zaga Borges; que ontem, cerca de onze horas da noite, ouvindo bater na porta de sua casa e vendo que era seu marido abriua, tendo ele entrado em casa com seus companheiros Eugênio Antônio de Oliveira e Hermano Moreira Lima; que seu marido assim que chegou acusou fome dizendo para que a declarante arranjasse o que comer para ele e seus dois amigos; que então aprontando o que comer colocou na mesa onde sentaramse os dois amigos de seu marido, tendo este porém saído novamente para rua dizendo ir buscar um violão; que como seu marido se demorasse Eugênio e Hermano foram esperálo no terreno em frente a sua casa e quando ele chegou Eugênio Antônio de Oli veira censurouo por terse demorado, dizendo que faria o mesmo quando ele fosse a sua casa; que por isso Eugênio e seu marido entra ram a discutir ofen dendose mutuamente enquanto a declarante entrava em casa para fazer café; que nessa ocasião ouviu a detonação de três tiros pelo que correu para frente da casa e aí viu seu marido com um revólver na mão e caminhando para a rua [...].
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Aqui vemos, portanto, dois casais associados pelo compadrio habitando a mesma casa. Novamente, o conflito entre os amigos parece girar em torno de certas expectativas de cumprimento de regras de hospitalidade que não foram adequadamente seguidas por uma das partes: Eugênio, convidado para jantar, ofendeuse com a demora do amigo em sentarse à mesa, ameaçando tratálo da mesma forma quando ele fosse a sua casa. Outros depoimentos esclarecem ainda que Eugênio e Mário eram amigos bastante íntimos e que os dois se tornariam compadres em breve, pois Mário havia convidado Eugênio para batizar um de seus filhos. Durante a discussão entre os dois, no entanto, Mário exasperouse com a recusa do amigo em voltar para a mesa de jantar e gritou para Eugênio que “não seria mais o padrinho do seu filho”. A vítima, então, perdeu as estribeiras, xingou Mário de “branco filho da puta”, e a troca de insultos culminou com a morte de Eugênio. O episódio, portanto, possibi li tanos ver o processo através do qual um amigo íntimo se trans formava em um membro da família, um compadre, processo este que no caso em questão foi interrompido de forma trágica porque uma das partes não cumpria adequadamente o seu papel neste ritual de aproximação.
A quebra de um ritual semelhante também parece ter sido a origem da questão entre João Lúcio de Morais, pardo, português, natural de Cabo Verde, 30 anos, estivador, e Benjamim Inácio, também estivador, de 39 anos.31 Declara João que
sempre ele ofendido foi amigo e companheiro de trabalho do acusado Benjamim Inácio e até ultimamente estando o mesmo desempregado ele ofendido se empenhou e arranjou o mesmo. Que o acusado tem muito mau gênio, mas com ele sempre se deu muito bem. Que ontem ao sair do trabalho às quatro e meia horas da
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tarde foi convidado pelo acusado Benjamim Inácio para ir à casa do mesmo. Que foi, e ao chegar à casa do acusado aí começou a conversar e nada deu lugar para que o acusado com um revólver [...] desse um tiro para a parede — como lhe ameaçando. Que ele ofendido vendo aquilo tratou de se despedir. Que o dono da casa e o acusado não consentiram, con vidandoo para jantar, mas ele não aceitou dizendo “você me recebeu assim voume embora”.
João realmente se retirou, mas Benjamim foi atrás dele e acabaram brigando, ficando ferido João. Quase todas as testemunhas referem que os envolvidos eram muito amigos e estavam embriagados na ocasião.
O caso a seguir, em seu paroxismo, ilustra além de qualquer dúvida a importância primordial que os homens e mulheres em questão atribuem ao seu relacionamento com com padres e amigos, e, mais do que isso, enfatiza o papel das pe quenas demonstrações de solidariedade no relacionamento. Era um domingo e José Cândido Vieira, português, 30 anos, carpinteiro, saiu com sua mulher, Francisca Esteves Vieira, portuguesa, de 25 anos, e seus filhos menores para visitar o compadre José Ferreira Gaspar, português, casado, 28 anos, pescador.32 A visita durou todo o dia e, já às sete horas da noite, a família visitante tomou o bonde de volta para casa. O compadre visitado, José Gaspar, acompanhou a família em sua viagem de retorno, prestandolhe, assim, nova cortesia. Vieira sentavase no banco de trás com a mu lher e filhos, e Gaspar vinha no banco da frente, vi randose para con versar com seu compadre. Passando o bonde em frente ao Cemitério de São Francisco Xavier, o recebedor começou a cobrar as passagens de trás para a frente. Gaspar insistia que queria “pagar todas as passagens”, mas o recebedor
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passou primeiro pelo banco de Vieira, que se adiantou e pagou ele mesmo todas as passagens. Gaspar enfureceuse com o recebedor, que também era português e tinha 27 anos, por ter aceitado o pagamento feito pelo amigo, discutindo ambos fortemente. Daí em diante a história fica nebulosa. Algumas testemunhas contam que o condutor deu uma bofetada em Gaspar, e Vieira, então, fez uso do guarda chuva que trazia e perfurou a cabeça do recebedor, que foi arremessado fora do bonde, morrendo em seguida. Os compadres e a mulher de Vieira relatam que o recebedor se desequilibrou e caiu durante a discussão. O exame de autópsia mostra que o cadáver tinha o crânio perfurado por um instrumento pontiagudo.
De tudo que ficou dito, ficam claros alguns condicionantes concretos das relações de amor entre os homens e mulheres em questão. Os imperativos da luta pela sobrevivência faziam com que houvesse grande probabilidade de um casal pobre dividir uma habitação com um ou mais casais em idênticas condições. As relações entre estes casais tendiam a ser muito íntimas, pois a troca de pequenos serviços e o cumprimento de deveres de ajuda mútua eram aspectos fundamentais da estratégia de sobrevivência dessas pessoas. Mas, por outro lado, essas circunstâncias tornavam a vida de cada casal um tanto dependente das pessoas que os cercavam, que, por isso, interferiam com freqüência em seus problemas de relacionamento.
Pretendemos também ter mostrado o caráter mani festamente político destas tensões e conflitos intrafami lia res e entre amigos. O ajuste violento nunca surge de um momento para outro, de maneira fútil e imprevista. Estes conflitos são em geral resultado de um processo relativamente longo
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de escalada de tensões, de disputas e de troca de provocações entre os indivíduos ou grupos em confronto. E, principalmente, a eclosão desses conflitos revela geralmente uma grande valorização dos diversos rituais de solidariedade e ajuda mútua que unem as pessoas. Num certo sentido, portanto, o surgimento do ajuste violento nesse contexto significa uma reafirmação de valores essenciais para a estratégia de sobrevivência dos homens e mulheres, possuindo, assim, um caráter construtivo e organizador das relações sociais entre seres essencialmente iguais.
Mulheres trabalhadoras
Quem paga a casa pra homem é mulher Canção de João da Baiana, 1915
Se é de mim, podem falarSe é de mim, podem falarMeu amor não tem dinheiroNão vai roubar pra me dar (bis)
Quando a polícia vier, e souberQuem paga a casa pra homem é mulher (bis)
No tempo que ele podia, Me tratava muito bem. Hoje está desempregado Não me dá porque não tem.
Quando a polícia vier, e souberQuem paga a casa pra homem é mulher (bis)
Quando eu estava mal de vida Ele foi meu camarada Hoje dou casa, comida, Dinheiro e roupa lavada.
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Quando a polícia vier, e souberQuem paga a casa pra homem é mulher33 (bis)
As mesmas condições concretas de vida que atiravam nossos personagens em redes íntimas de solidariedade e ajuda mútua eram responsáveis por outra circunstância que condicionava bastante as formas possíveis de relacionamento homem–mulher neste contexto: o modo específico de integração da mulher ao mundo do trabalho.
Apesar de encontrarmos algumas mulheres trabalhando em casas de comércio ou como operárias, o serviço doméstico era o principal reduto ocupacional das mulheres pobres. A tabela de profissões do censo do Distrito Federal de 1906 indica que, do total de 117.904 pessoas que se declararam empregadas em serviço doméstico, 94.730 eram mulheres e apenas 23.174 eram homens.34 O trabalho remunerado da mulher pobre, portanto, era, em geral, uma extensão das suas funções domésticas, sendo realizado dentro de sua própria casa ou na casa da família que a empregava. Sendo assim, era relativamente fácil para essas mulheres arrumarem uma colocação como lavadeiras, cozinheiras, en gomadeiras etc. Muitas ainda se dedicavam a fazer doces e salgadinhos em casa, indo depois para a rua vendêlos junto com os filhos mais crescidos. Apesar de estas tarefas serem em geral mal remuneradas, a documentação coligida mostra claramente que: primeiro, muitas mulheres conseguiam sobreviver exclusivamente daquilo que conseguiam obter com seu trabalho; segundo, o ato de desempenhar atividades remuneradas, mesmo que intermitentes em muitos casos, era parte da experiência real de vida dessas mulheres. Como veremos a seguir, essa possibilidade de arrumar trabalho com alguma facilidade colocava a mulher pobre em
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posição de relativa independência em relação a seu homem, e ela soube muitas vezes asseverar esta sua condição com altivez e, até, orgulho, como bem sugere o texto da composição de João da Baiana.
Rosária Maria Ferreira, preta, 34 anos, natural do estado do Rio, narra assim o seu drama:35
[...] que na sextafeira [...] estando fazendo cocadas para vender, chamou, por volta das cinco horas da tarde, o seu filho Faustino Ferreira, de oito anos de idade e mandouo acalentar o seu irmão Osvaldo, de seis meses de idade, que chorando em redor da de poen te, impossibilitavaa de prosseguir a sua tarefa; que Faustino, desobedecendoa, correu para a rua, de onde só regressou já ao anoitecer; que a depoente, não só pela desobediência do seu filho, como com o intuito de o educar, tomou de uma pequena guarnição de guardalouça que, por acaso encontrara no chão e vibroulhe umas três ou quatro pancadas, porém, moderadas, sendo que a primeira ele recebera na mão direita, por ter, naturalmente e com o intuito de defesa, a aparado; que no dia seguinte, sábado vinte e oito, pela manhã, a depoente notou um pouco infla ma da a mão de Faustino e perguntandolhe qual a causa, ele dissera ter sido uma farpa da tal guarnição que ali entrara, quando na véspera fora castigado; que imedia tamente levouo à consulta do doutor Oliveira de Meneses, na farmácia “Sam paio” sita no Boulevard 28 de Setembro, onde foi examinado e medicado por aquele clínico que recomendou não deixasse Faustino apanhar sol; que chegando em casa, a depoente reiterou esta recomendação a Faustino e aplicoulhe, na ferida, amiudadas vezes o medicamento receitado; que no domingo vinte e nove, a depoente saiu para vender as referidas cocadas e outros comestíveis e ao regressar à casa por volta de uma hora da tarde, não encontrou Faus tino, que só apareceu à tardinha e já com
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a mão muito inflamada e vermelha; que a depoen te, muito desnorteada e contrariada, saiu à procura do doutor Oliveira de Meneses, a quem não logrando encontrar, dirigiuse à farmácia Sampaio onde lhe foi dada repeti ção da receita daquele médico, cujo medi camento a depoente levou aplicando à ferida até o dia seguinte, segundafeira; que, neste dia [...] o doutor Meneses foi a sua casa e não achou bom o estado de Faustino e, após fazer neste uma injeção, aconselhou a depoente que o levasse para o Hospital da Miseri cór dia, visto que o seu tratamento não poderia ser feito na casa em que estava, não só pela falta de recur sos da depoente, como porque a moléstia tinha tomado proporções que requeria um tratamento que só naquele estabelecimento de caridade poderia ser dado; que nesse mesmo dia, com guia do co missário de higiene da Agência da Prefeitura, onde foi solicitála, a depoen te levou seu filho para o hos pital [...]; que na terçafeira, dia trinta e um, a depoente indo ao hospital, pela manhã encontrou já morto seu filho...
A impressionante tragédia pessoal de Rosária choca mais ainda se pensarmos que muito provavelmente este estava longe de ser um caso único. Tentando deixar de lado a inevi tá vel empatia que sentimos diante de semelhante drama, o caso Rosária esclarece muitos pontos importantes do “ser mulher”, do vivenciar a condição de mulher em situações cotidianas tão adversas. Rosária morava, por favor, com a amiga Maria Almeida Cabral, de 20 anos, que havia con venci do sua sogra a receber Rosária e seus três filhos. Maria diz que já havia “convivido” com Rosária “mais de uma vez”, o que sem dúvida significa que já havia anteriormente morado com a amiga. Em nenhum momento se faz qualquer refe rência a um amásio ou marido que Rosária pudesse ter, sendo certo que a mesma sustentava a si e a seus três filhos com a renda que conseguia obter da venda de
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“cocadas e outros comestíveis”. Ela contava ainda com suas relações de amizade que, garantindolhe abrigo naquele momento, demonstravam ser um fator essencial de sua sobrevivência nas condições de penúria com que se defron tava. Rosária tentava organizar sua vida doméstica de forma que pudesse trabalhar para conseguir seu sustento e o de seus filhos: contava com a ajuda do mais velho nos cuidados com o caçula de 6 meses, o que a liberava para fazer os doces que vendia principalmente no domingo de manhã. Todas as testemunhas confirmam inteiramente a versão dada por Rosária para o epi sódio, sendo que Maria e Firmina dizem que Rosária batera no filho “com moderação” e que fizera o possível para que ele tivesse o tratamento adequado. O médico da farmácia “Sam paio” também atesta a peregrinação de Rosária para salvar o filho e atribui o fato de o menino não ter sido adequadamente tratado ao “estado de pobreza” da mulher. Outra estratégia que as testemunhas utilizam para inocentar Rosária é ressaltar que o menino Faustino era “malcriado e desobediente”, “um verdadeiro garoto”, e que ele, ao invés de atender às recomendações da mãe, havia ido para a rua “soltar papagaios”, ficando exposto ao sol e indefeso diante do tétano.
De todo o episódio, no entanto, o que mais interessa ressaltar para os nossos objetivos é a maneira natural com que as pessoas encaram e, principalmente, valorizam o trabalho de Rosária. Por um lado, temos Firmina, que havia admitido Rosária e seus filhos em casa por recomendação da nora havia cerca de um mês e afirmava que, “de fato, Rosária sempre se portou bem trabalhando para o seu sustento e dos seus filhos”. Esta avaliação positiva do trabalho de Rosária por uma mulher que experimentava as agruras da mesma situação de classe era previsível, mas ainda assim
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revela que para a mulher pobre o trabalho remunerado é um aspecto essencial da construção de sua identidade social. Era por se dedicar ao trabalho, conseguindo assim seu sustento, que Rosária podia contar com a ajuda das amigas num momento de dificuldade.
Talvez um pouco surpreendentes, contudo, sejam as observações do promotor público. Logicamente convencido de que Rosária não tinha tido nenhuma intenção de matar o filho a pancadas, ele tenta justificar sua opinião de que “não se trata, na espécie, de um crime”. Os seus argumentos iniciais são inteiramente previsíveis; ele en fatiza: que o menino era muito desobediente e vadio; que as pancadas dadas pela mãe “não foram bárbaras”; que o tétano havia surgido devido à teimosia do menor; e que a ignorância da mãe e a falta de higiene da casa em que moravam não haviam permitido o tratamento adequado. E conclui dizendo que “tudo leva a crer que Rosária Maria Ferreira jamais alimentou a in tenção de eliminar a existência de seu filho Faustino, tanto mais que, para sus tentálo e a outros irmãos, ela se entrega, quotidianamente, ao trabalho do fabrico de doces, que, depois, expõe à venda nas ruas”. Como legítimo por tavoz do modelo dominante — portanto, pre ten samente universal e absoluto — do “ser mulher” na sociedade em ques tão, o nosso promotor utiliza aqui um argumento muito pouco ortodoxo. Valorando positivamente o trabalho remunerado da mulher pobre — e utilizando mesmo este argumento para excluir sua responsabilidade criminal no caso —, o promotor na verdade admite que o modelo dominante da mulher frágil, passiva e economicamente dependente do macho não dá con ta da realidade em questão. E, mais do que isso, o modelo dominante do “ser mulher” não serve sequer de pa râ metro para julgar a conduta de Rosária em relação a seu filho e a
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seu trabalho. Vemos aí, claramente, que a inter fe rência, mesmo que acidental, de um drama humano co mo vente vaza a guarnição ideológica do aparato jurídico, obrigandoo, en tão, a levar em consideração o fato óbvio da exis tência de visões de mundo essencialmente diferentes da sua.
A necessidade do trabalho remunerado feminino — e a sua conseqüente valorização — entre os nossos protagonis tas con dicionava bastante as formas que assumiam os rela ciona mentos amorosos. Os casos seguintes já nos sugerem alguns aspectos da relação entre trabalho feminino e relacionamento homem–mulher. Maria Solanez, espanhola, de 42 anos, estava já havia oito anos separada do marido, trabalhando em uma oficina de costuras, onde também residia.36 O marido, Mariano Alegret, de 56 anos, cubano natura lizado brasileiro, picador, recebera havia pouco tempo uma carta anônima que lhe informava que a mulher tinha arrumado um amante. Indignado, Mariano foi à oficina de costuras à noite e, ao ver um vulto de homem saindo da casa, disparou tiros que acabaram por não atingir ninguém. Maria Solanez repele fortemente a intervenção do marido em sua vida, dizendo que desde que se havia separado dele vivera “sempre às suas custas, com o produto de seu trabalho”. Deu como causa da separação “os maustra tos” que o ma rido lhe infligia.
Vemos acima, então, o exemplo de uma mulher que, in satisfeita com um relacionamento amoroso, opta por se se parar e viver do próprio trabalho, orgulhandose muito de sua independência. O caso seguinte, porém, é muito mais contundente, pois capta uma mulher pobre num momento crucial de sua vida: tinha de decidir em poucos instantes, devido às circunstâncias, entre levar a bom termo a ati vidade remunerada que exercia naquele momento e atender às exi
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gências do marido, com quem mantinha um relaciona mento difícil e de futuro imediato bastante incerto. Ela era Luí sa Martins, preta, brasileira, 19 anos, doméstica e analfabeta, e ele era Cesário Martins, preto para uns, pardo para outros, 28 anos, servente de pedreiro.37 Luísa narra a sua história:
[...] que é casada com Cesário José Martins há seis meses e pouco depois foi por seu marido abandonada, indo residir em casa de sua mãe à rua Nova, 7, em Dona Clara; que tempos depois, Cesário reapareceu e foi com ela declarante coabitar, na mesma casa de sua mãe; que ultimamente Cesário afastouse novamente dela e por isso, foi empregarse, ela declarante, na rua Souto Carvalho, 10, casa de Abílio Augusto Ferreira; que na casa em que se acha empregada, foi procurada por seu marido, na sextafeira passada, [...] que a convenceu de ir dar um passeio à Dona Clara; que aí esteve com ele e pernoitou, regressando no sábado, dia imediato, à casa de seus patrões, que ela declarante vivia em desavenças com seu marido e no entanto era por ele sempre procurada; que hoje cerca de dez horas da noite, seu marido Cesário a procurou, na rua Souto Carvalho, e a convidou para irem à Dona Clara, em casa da mãe da declarante, po rém, como estava em fes tas, a casa de seu patrão por mo tivo de aniversário da esposa dele e batismo de um filhinho, observou a Ce sário ser isto inconveniente e que transferisse esse passeio para amanhã; que notou ter ele ficado contrariado, porque insistiu em querer levála, porém ela declarante disse terminantemente que não iria [...].
Luísa conversara com Cesário no jardim da casa do patrão, e seu marido, acabada a conversa, permaneceu no portão da casa, bastante irritado. O negociante português Abílio Ferreira, patrão de Luísa, foi ao portão junto com outros amigos para ordenar a Cesário que deixasse o local. Cesário
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respondeu com tiros, tendo Abílio falecido devido aos ferimentos que sofreu. Durante a fuga, Cesário também trocou tiros com um guardanoturno, mas dessa vez foi ele próprio que caiu morto.
Vemos aqui, novamente, um casal que recorreu ao expediente de morar com outros membros da família como forma de resolver o problema da moradia. Vemos também uma mulher humilde que se coloca em posição de bastante independência em relação ao seu homem. O relacionamento do casal não era bom, e alguns testemunhos confirmam isto. Abílio, por exemplo, antes de morrer, ainda teve tempo de narrar o ocorrido e afirma que o casal não se entendia bem e que Cesário sempre procurava a mulher “para fazerem as pazes”. A mãe de Luísa, de nome Eva, viú va, de 39 anos, cozinheira, declara que não podia afirmar se o casal “vivia em desarmonia porque raras vezes lhe apareciam em casa”, mas conta que, numa dessas visitas, Cesário zangouse com sua mulher porque ela estava cantando, chegando até a dispa rar tiros. Tudo indica, portanto, que Luísa estava entre um relacionamento amoroso que poucas chances tinha de dar certo e a manutenção de sua autonomia por meio do emprego de doméstica. Sua decisão de não sacrificar o emprego para atender o marido sugere dois fatos importantes a respei to da mulher pobre em geral neste contexto: primeiro, essa mulher valoriza seu trabalho não só porque é essencial para sua sobrevivência, mas também porque garante certa independência em relação aos homens; segundo, a sua relativa independência a coloca em condições de poder recusar a continuação de uma relação que já esgotou suas possibilidades afetivas e, mais do que isso, permitelhe ter uma parti ci pação mais ativa no desenrolar de toda uma relação amorosa, não se submetendo passivamente aos anseios de
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dominação do homem. Veremos melhor este segundo ponto em seguida.
Mulheres “da gandaia”?
A cidade tem mulheres perdidas, inteiramente da gandaia. Por causa delas tem havido dramas [...] e, de vez em quando, os amantes surgem rugindo, com o revólver na mão.
João do rio, Vida vertiginosa, 191738
Como já vimos na introdução, havia um grande desequilíbrio entre o número de homens e mulheres no Rio de Janeiro na primeira década do século XX — segundo o censo de 1906, havia na cidade 463.453 homens para 347.990 mulheres —, sendo que este desequilíbrio se acentua ligeiramente se pensarmos que a demografia da imigração levava a uma concentração ainda maior de homens adultos na faixa dos 15 aos 30 anos de idade — 59% dos habitantes incluídos nesta faixa eram homens, contra 57% entre a população total da cidade.39
Este fato demográfico, apesar de circunstancial, é relevante para o que se deseja argumentar nesta parte do capítulo. O relacionamento homem–mulher entre os membros da classe trabalhadora do Rio de Janeiro na Primeira República estava diretamente condicionado pelas situa ções concretas de vida desses indivíduos. Três fatos fundamentais da vida dessas pessoas pareciam determinar mais fortemente o seu ato de amar: primeiro, havia a necessidade da existência de fortes laços de solidariedade entre parentes, compadres e amigos, o que levava a uma maior probabilidade de inter
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ferência de outros indiví duos nos problemas de relacionamento do casal; segundo, a mulher pobre tendia a exercer atividades remuneradas que lhe possibilitavam certa independência em relação ao homem; terceiro, o grande desequilíbrio numérico entre os sexos — com a existência de um número bem menor de mulheres — tornava o ato de amar bastante competitivo para os homens, ao mesmo tempo que ampliava as possibilidades da mulher de escolher seletivamente seu companheiro.
Esses três fatores combinados fazem emergir um tipo de relacionamento amoroso bastante diferente dos estereótipos dominantes da relação homem–mulher. A possibilidade de o homem impor seu poder tirânico sobre uma mulher oprimida e indefesa está praticamente proscrita pelas condi ções concretas de vida, pois este homem tem de contar com as seguintes contingências: parentes, compadres e amigos coíbem seus atos de violência; sua mulher pode conseguir a sobrevivência sem depender dele e, finalmente, sua mulher geralmente tem possibilidade de arrumar outro companheiro com relativa facilidade. Todos estes fatos talvez indiquem uma menor durabilidade, e talvez até instabilidade, nas relações homem–mulher entre essas pessoas, mas, ao mesmo tempo, ao possibilitarem uma relação mais simétrica, talvez abrissem as portas para um relacionamento mais significativo afeti vamente, com considerável espaço para o amor e o carinho.
Tentemos, então, testar as hipóteses lançadas acima a respeito do relacionamento amoroso entre os nossos personagens, começando pelos casos em que a situação de tensão entre os amantes desemboca num ato de violência de uma das partes — geralmente, do homem.
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Os dois primeiros casos analisados têm em comum o fato de que, rompida a relação, o homem volta a procurar a mulher e acaba agredindoa quando um acordo para o reatamento não é atingido. Francisco Horffe, natural da capital federal, 28 anos, pardoclaro para uns, branco para outros, empregado nas obras da Avenida Central, conta assim seu infortúnio:40
[...] que tendo chegado do Rio Grande no domingo, foi sabedor de que sua amásia Joaquina Novaes da Silva se achava amasiada com um negociante a quem não conhece; que hoje às onze e meia da noite, indo procurála na casa em que reside a mesma Joaquina à rua Camerino, número cento e oito, ele a interpelou sobre a acusação que pesava sobre ela; que Joa quina negando, insultouo, e ele depoente enfure cendose lançou mão de uma faca de cozinha, e fez em Joaquina diversos ferimentos [...].
Joaquina, parda, de 22 anos, referese a Francisco como seu “examásio” e, de acordo com o noticiário do Correio da Manhã do dia posterior ao crime, Francisco tinha abandonado Joaquina havia um ano, partindo para o Rio Grande do Sul. Eduardo de Souza Dantas, 30 anos, cozinheiro, compadre de Joaquina, era o dono da casa onde esta estava morando na ocasião. Eduardo também se refere a Francisco como o “examásio” da ofendida e conta que acolheu Joaquina em sua casa desde que seu amásio a abandonara, indo para o Sul. Joaquina não nega que tivesse outro amante, di zendo que Francisco a agredira “demonstrando ciúmes dela depoente com outro amante”. O compadre Eduardo conta que Joaquina trabalhava fora como doméstica, e que “às vezes saía depois de regressar de seu trabalho dirigindose a uma venda existente nas imediações de sua casa”.
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Esta pequena e trágica história de amor contém todos os elementos que, como já vimos, são condicionantes essenciais da relação homem–mulher neste contexto. Vemos, de início, que o compadre de Joaquina a socorreu quando de seu abandono pelo amásio. Esta, por sua vez, continuou sobrevivendo normalmente por meio da ajuda do compadre e de seu trabalho como doméstica. Finalmente, pouco importa aqui se Joaquina havia com efeito arrumado outro amante — apesar de tudo levar a crer que sim —, pois o que realmente interessa é que este fato era bastante provável, o que levou ao desespero Francisco, o amante posses sivo que não conseguiu impor livremente sua dominação. O ato de matar a examásia é um ato de quem se vê incapaz de exercer um certo poder sobre outra pessoa.
No caso seguinte, Marieta Mendes, branca, flumi nen se, 20 anos, doméstica e analfabeta, conta que
viveu quatro anos como amante de Domingos Mon teiro Jorge e há cerca de três meses [...] abandonou o referido Domingos em Inhaúma onde moravam, por darse ele ao vício da embriaguez, vindo ela depoente para esta cidade onde alugou um cômodo de número sete na casa de cômodos número noventa e quatro da rua General Gomes Carneiro. Desde que ela depoente separouse de Do mingos, nunca mais este procuroua até que há cerca de três dias, voltou ele a insistir com ela depoente para continua rem a viverem juntos, ao que ela recusouse e que destes três dias para cá tem ele estado em seu aposento, até que ontem Domingos tendo estado com ela declarante deixou em seu quarto um revólver [...] Depois de entregar o revólver a ela depoente saiu Domingos e foi para um botequim próximo cuja fregue sia ela depoente reprovou entrando Domingos e ela de poente para o aludido número sete da casa de cômodos [...] e
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fechada a porta do mesmo dei ta ramse na cama. Momentos depois começaram ambos a discutir resolvendose ela depoente a vestir para sair com ele a fim de deixálo na rua. Levantada da cama dirigiuse a depoente para o toilette e na ocasião em que procurava preparar os cabelos foi inopinadamente agredida por Domingos que des fe choulhe três vezes o revólver [...].41
Os outros depoimentos informam ainda que Marieta morava no quartinho alugado junto com uma irmã. O senhorio e sua mulher, assim como outros habitantes da casa de cômodos, afirmam que não conheciam o acusado e que só depois do ocorrido foi que ficaram sabendo, por Marie ta, que ela e o acusado haviam sido amasiados. Aqui temos mais um caso em que uma mulher pobre recusase ter mi nantemente a assumir um papel submisso na relação amorosa. Ma rieta não aceita continuar uma relação na qual se via sacrificada pelo hábito do marido de se embriagar. Além disso, a iniciativa de Marieta de abandonar Domingos e juntarse à irmã para dar seqüência a sua vida mostra sua pos sibilidade de viver sem depender do amásio. Nes te contexto, a agressão do homem denota mais uma vez completa impotência em impor sua dominação sobre a companheira.
A versão dos fatos apresentada por Domingos, contudo, é um tanto diferente, mas inteiramente previsível. Ele sustenta que Marieta ainda é sua amásia e que “em vista da infi delidade da mesma muito se tem contrariado”. Diz ainda que “perdeu a cabeça” ao conversar com Marieta porque esta disselhe certas “coisas” e chegou a insultálo. Apesar da versão de Domingos ser um tanto diferente, ela ainda assim confirma o essencial: seu ato de violência resultou diretamente de sua incapacidade de exercer um poder irrestrito sobre a companheira. É absolutamente necessário
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enfatizar o fato de que a violência do homem surge, nos ca sos estuda dos, antes como uma demonstração de fraqueza e impotência do que como uma demonstração de força, de po der. Este ponto é essencial porque o discurso dos agentes jurídicos da época tentará inverter radicalmente o signi ficado desta violência masculina. Nestes casos em que o homem acusa a companheira de infiel, os advogados argumentarão invariavelmente que o homem partiu para a agressão porque teve sua “honra ultrajada”, o que fez com que ele perdesse a noção de seus atos. Notase, então, que o ato violento do macho assumiu aqui uma conotação completamente dis tinta: a agressão do homem passa a ser o exercício, a prática de um poder que ele tinha sobre a mulher. A “defesa da honra”, por tanto, transforma um ato de fraqueza e im potên cia em demonstração de poder e dominação. A rea lidade con creta dentro da qual se desenrolam as relações de amor entre esses homens e mulheres pobres é, então, desfigurada e dis torcida para servir à ideologia da dominação masculina.42
Os casos seguintes mostram situações em que a mulher apresenta uma conduta independente e insubmissa, às vezes expressamente em represália à conduta do companheiro ao longo do relacionamento. Nestes casos, portanto, a relação ainda não estava rompida quando da crise que desembocou no crime, sendo que o homem continua a alegar sistematicamente a infidelidade da companheira como justificativa para a sua agressão. Antônio Paiva, natural da Paraíba, 24 anos, sargento da força policial, narra assim a sua desdita:
[...] que há cinco anos mais ou menos é casado com Alice de Assunção a qual sempre se portou com serie dade não constando ao declarante fato algum sobre a sua honestidade; que há um ano mais ou menos o de clarante
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reside, por espírito de economia, com o sargento Bié atualmente destacado no Méier, o qual para ter um auxílio para viver, visto serem os seus vencimentos como os do declarante, diminutos, fornece comida aos praças do destacamento, entre eles um de nome José; que na madrugada de hoje ao sair de casa com Bié, este declaroulhe que tinha um fato grave a co mu nicarlhe sobre sua esposa, e que o faria em caminho, o que de fato fez narrandolhe que Alice portavase mal, tendo notado que ela namorava a referida praça José para quem tinha todas as atenções havendo até pedido à mulher dele Bié que queria lavar a roupa do mesmo José, com quem ela já tinha tido encontros [...]; que há dias ele Bié notara que Alice colocara entre a roupa engomada de José um bilhete, e inter rogandoo no destacamento confessou ele que realmente tinha recebido dela um bilhete, que en tre goulhe, no qual Alice confes savalhe amor e outras coisas que o declarante agora não se recorda [...] dizendolhe ainda Bié que estava convencido que Alice o enganava não estando disposto a que ela continuasse em sua casa; que o declarante convencido da traição de sua mulher, assim que chegou ao quartel escreveu um bilhete ao seu cunhado Antônio de Assunção, co nhecido por Nhonhô, pedindo que ele o procurasse, e quando ele chegou o declarante relatoulhe o que ou vira de Bié acrescentando que ele fosse buscar Alice porque não queria saber mais dela não querendo nem vêla; que por volta das quatro horas da tarde o de cla rante dirigiuse à casa de sua sogra Dona Maria Amélia de Assunção [...], a quem relatou o sucedido dizendo que tinha visto o bilhete havendo reconhe cido a letra de Alice e como Dona Amélia não acreditasse o declarante disselhe que a chamasse e interrogasse; que Alice entrou na sala de visitas, onde se achavam, risonha e com todo cinismo confessou que realmente tinha escrito o aludido bilhete, mas, como não tinha assinatura nada podia fazer; que da discussão que tiveram e do que acabou de ouvir, dito
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com tanto cinismo [...] entre riso de mofa [...] o declarante perdendo toda a calma, num momento de alucinação, lançou mão do revólver que consigo trazia de tonan doo duas vezes contra Alice [...].43
Este relato minucioso do desenvolvimento de uma crise conjugal reforça aspectos já conhecidos da estratégia de so brevivência do pobre urbano: a necessidade une dois casais amigos sob o mesmo teto. Os homens trabalham na força policial, enquanto as mulheres desempenham ativida des remuneradas que representam uma extensão de suas funções domésticas: elas oferecem pensão aos soldados do destacamento e ainda lavam e engomam as roupas dos mes mos soldados. Vemos também um desdobramento possível desta coabitação de casais amigos, com a interferência do sargento Bié no relacionamento amoroso do outro casal. É Bié que denuncia ao amigo a suposta infidelidade da esposa e chega até a exigir que esta deixe de imediato a sua casa. Aqui, novamente, a agressão do homem é cons truída a partir de uma situação real de fraqueza e impotência dian te da insubmissão da mulher. A versão que Alice dá aos fatos torna patente sua disposição em não aceder à dominação do marido, exigindo a prática de uma relação amorosa mais simétrica. Sobre o fato de que seu marido havia insistido muito para que ambos fossem morar na casa do sargento Bié, Alice diz “que seu marido assim procedeu para ficar mais à vontade, pois que é atirado a conquistas”. Continua ainda acu sando o marido de haver arrumado uma namorada nas redondezas e de sair à noite para ir a bailes com o sargento Bié. Sendo assim, Alice claramente sugere que sua conduta em relação ao soldado José foi em represália às atitudes que seu marido vinha tomando. Ela confirma que mandou o tal bilhete a José, mas nega que com ele tivesse tido encontros.
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Arremata ainda sugerindo que estas acusações eram feitas pelo sargento Bié porque “ele a desejava”, tendo notado isto “pelo seu olhar”.
No caso seguinte, a conduta independente de uma mulher parece ser novamente a causa de desavenças entre um casal. A carta transcrita abaixo foi escrita por Joaquim Verço sa Calado, alagoano, de 25 anos, guardacivil, para Aristea Lins, branca, brasileira, 20 anos.44 Joaquim procurava explicar à amásia sua decisão de romper a relação. Segundo Joaquim, Aristea teria ficado muito abalada com o recebimento da carta e acabara se suicidando com um tiro no ouvido. Os moradores da casa de cômodos em que ambos moravam, porém, afirmam que Joaquim havia matado a amásia, pois já vinha ameaçando fazer isto havia algum tempo. O próprio Joaquim apresentou a carta ao delegado.
Minha Ingrata AristeaUma vez que foram debalde os conselhos que te dei em voz baixa naquele quarto da miserável casa nú mero cinqüenta e cinco da rua de Santana e para melhor aceitares tornei a darlhe outros na praia da Lapa quando ví nhamos de regresso da casa de meu compa dre Leosette, a fim de abandonares a amizade de D. Belmira, Ga briela, Nenê, Seraphina, a Negra e D. Adelina estas in felizes prosti tutas que iludiramte a fim de dares um passo que por tua criancice dei xouse levar, chegando até ao ponto de não ligarme importância conforme a sua própria e ingrata pessoa de coração tão cru passou a me declarar por ocasião em que nos achavamos na mesa depois que jantei e que a filhinha não jantou sequer, pois já que assim foi, assim seja, e queira desde já por meio desta receber a notícia que a tua pessoa para mim com muita dor passo a confessar que não existe, peçote que nunca mais me aborreças ficando ciente
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também que as causadoras de teus sentimentos são aquelas miseráveis mulheres que por Deus Onipotente juro e espero o fim delas, somente pelo fato de têla desencaminhado para o tão triste viver à mercê do povo. Pro metote pela última vez minha filha que fostes a segunda e última mulher com quem vivi, a fim de não passar por um outro dissabor tão amargurado conforme passei por ti. Estimará a tua felicidade o nun ca esquecido Verçosa (que uma hora Filhinho e outra hora Velhinho como tratavas).
As declarações que Joaquim presta a respeito da carta são bastante duvidosas, tornando pouco provável a sua versão de que a companheira se suicidara quando de seu recebimento. O modo como a carta está escrita — explicando com detalhes as causas das desavenças do casal e narrando as supostas tentativas de Joaquim de contornar os problemas — deixa a nítida impressão de que ela foi escrita muito mais para esclarecer o delegado do que propriamente Aristea. Esta impressão se reforça quando sabemos que Joaquim ainda morava com Aristea e estava sozinho com ela no momento do suposto suicídio. Além disso, o fato de que Aristea apenas “assinava o nome”, não sabendo ler nem escrever — fato afirmado por diversas testemunhas —, torna ainda mais estranha a opção do acusado de romper o relacio namento através de uma carta. O mais provável, portanto, é que o acusado, tendo assassinado a amásia, tenha escrito a carta para reforçar sua estratégia de alegar inocência sugerindo o possível suicídio de Aristea.
Esta circunstância de a carta ter sido provavelmente es crita para esclarecer à autoridade talvez nos auxilie a entender a imagem de mulher que o acusado nos tenta transmitir atra vés de Aristea, imagem esta que se apresenta como
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A carta que Joaquim escreveu a Aristea (processo criminal no qual foi réu Joaquim Verçosa Jacobina Callado, no 5.040, maço 884, galeria a, 1908).
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claramente contraditória em relação à experiência real de relacionamento que Joaquim teve com a amásia. Joaquim pinta Aristea como uma mulher imatura — onde se destaca a “criancice” —, que foi “iludida” por mulheres perdidas e levada para o mau caminho. Temos aí, então, uma mulher passiva, submissa e indefesa que, não tendo aceitado a proteção e os conselhos de seu homem, acabou por se perder. As outras testemunhas, contudo, revelamnos que o relacionamento entre o casal era problemático havia muito tempo e Aristea reclamava constantemente que seu amásio era “muito ciumento”, ameaçando darlhe pancadas e até matála por qualquer motivo. O irmão de Aristea conta que sua irmã já o havia procurado pedindo que a ajudasse a alugar um quarto, pois queria se separar de Joaquim. Aris tea realmente fizera amizade com outras mulheres da casa de cômodos, sendo no entanto impossível saber se estas mulheres eram realmente prostitutas, como alega Joaquim. O empregado de um cinematógrafo da vizinhança, porém, conta que Aristea ia ao cinematógrafo com freqüência, acom panhada de outras mulheres e rapazes. Ele refere que Aristea, perguntada certa vez por seu amásio — que, todos sabiam, não gostava que ela ali fosse —, havia respondido que “nada tinha a perder”.
A história de Aristea reforça novamente a figura do homem frustrado diante da impossibilidade de subjugar sua companheira pelo ciúme. Os casos até aqui mostram que a luta da mulher por um relacionamento amoroso mais simétrico era um fato comum da vida destas pessoas e a mulher insubmissa encontrava quase sempre aliados entre parentes, compadres e amigos. Mas a luta da mulher para obter uma relação mais igual também tem suas regras e seus limites bem definidos: em um dos casos analisados, a conduta da
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mulher em relação ao marido é quase que unanimemente reprovada pelos seus iguais. Tratase do caso de Elvira Monteiro, portuguesa, de 25 anos, casada com José Monteiro, também português, de 29 anos, cocheiro.45 O casal habitava uma das superlotadas casas de cômodos do início do século, e sua história ilustra bem a participação ativa de outros indivíduos nos problemas íntimos de um casal. Uma das habitantes da casa de cômodos, portuguesa, de 29 anos, doméstica, conta que
chegou o inquilino José Monteiro que logo perguntou por sua mulher de nome Elvira; que a declarante à vista da pergunta de José Monteiro bateu na porta de Pedro Primavera, pois a declarante tinha visto Elvira dentro do quarto de Primavera; que nessa ocasião Elvira que se achava dentro do quarto de Primavera, avistando a declarante ajuntou as mãos como quem suplicava misericórdia para ela; que José Monteiro que estava junto com a declarante, quis forçar a porta para entrar, porém Primavera não consentiu; que Elvira conseguindo sair por outra porta foi alcançada pelo seu marido José Monteiro, que desfechoulhe cinco tiros à queimaroupa matandoa instantaneamente; que atribui como causa dessa desgraça acharse José Monteiro ofendido com o procedimento de sua mulher e que nisso tudo tem grande parte Pedro Primavera Filho que se intitulava amante da mulher de José Monteiro [...].
A participação ativa da testemunha acima no desfecho fatal do caso é enorme, pois ela chega até a bater na porta do quarto de Primavera, pois sabia que Elvira estava lá dentro. Mas esta testemunha está longe de ser a única a condenar a atitude de Elvira, apesar de os outros moradores da casa de cômodos terem tentado resolutamente evitar o des
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fecho sangrento. De qualquer forma, neste caso não há nenhuma referência a uma possível conduta repressiva de Monteiro em relação a Elvira, e a forma aparentemente escandalosa com que esta cometia o adultério com Primavera fez com que não contasse com a simpatia dos outros habitantes da casa de cômodos.
Resta finalmente comentar dois casos em que a luta da mulher por uma relação mais igual, com a exigência firme da fidelidade do companheiro, não a transforma em vítima do homem. Em um desses casos, Marta Maria da Conceição, parda, de 19 anos, cozinheira, conta
que conhece há três anos mais ou menos Luís Augus to Pinto; que no ano de 1907, Pinto disse à depoente que queria casarse com a depoente, pois, tinhalhe muita amizade; que em junho ainda do mesmo ano e quando a depoente estava empregada em uma casa no Sam paio, Pinto a convidou para darem um passeio o que a depoente aceitou e uma tarde em lugar de ir para casa foi com Pinto dar o passeio combinado até à Es tação do Engenho de Dentro; que quando voltaram à noite foram então pernoitar no quarto de Pinto e aí ele deflorou a depoente; tendo consigo três contatos sexuais; que tempos depois foram morar em casa de Mariana Estefânia, sendo então que a mãe da depoen te soube do caso, porém Pinto ainda declarou que se casa va com a depoen te; que no dia quatorze de agosto do ano passado a de poente teve uma filha de Pinto, à qual deram o nome de Olímpia por ser esse o nome da mãe de Pinto; que em abril do ano corrente a depoente teve notícia que Pinto tinha uma noiva que se chamava Adelina que morava na rua Dona Ana Nery [...]; que foi a sua casa e aí encontrou seu amásio, sendo que fez aí grande barulho; que foi então abandonada por Pinto que nada mais deu à depoente nem à criança [...].46
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Marta conta ainda que Pinto, que era português, de 39 anos, caixeiro, havia mandado para ela uma lata de farinha láctea Nestlé envenenada, com o óbvio intuito de matar sua filhinha. Pinto nega a acusação, dizendo que isso não passava de um ato de vingança de Marta, sendo esta ajudada por Maria Estefânia, dona da casa de cômodos onde Pinto havia alugado um quarto para morar com Marta. Vemos neste caso uma mulher que exige a fidelidade de seu amásio e luta para obtêla por todos os meios, além, obvia mente, de exigir que Pinto assuma a sua condição de pai e auxilie no sustento da criança. Mas Marta perde a parada, pois Pinto acaba casan do com Adelina, numa união que, muitas pessoas consideram, foi por puro interesse da parte de Pinto, já que o pai de Adelina era um negociante português que parecia prosperar a cada dia.
Em apenas um dos casos analisados a mulher acaba cometendo um crime por não aceitar a infidelidade do companheiro. Tratase do caso de Sofia Eugênia da Gama, parda, de 40 anos, natural do estado do Rio, doméstica, analfabeta, que deu um tiro no ouvido de seu amásio, José Pinto Ferreira, português, de 41 anos, negociante, e outro no próprio ouvido.47 Um negociante amigo de Pinto conta os antecedentes da questão:
[...] que entretendo estreitas relações de amizade com o ofendido José Pinto Ferreira, sabe que ele é ama siado há cerca de 20 anos com Sofia Eugênia da Gama, rapariga de cor pardaescuro e quarenta anos presumíveis; que há cerca de oito meses Ferreira, tendo tido como empregada, uma mulher de nome Maria, começou a com esta ter relações sexuais, e, por último, pôla por sua conta, em uma casa à rua Luiz Barbosa vinte e três; que Sofia descobrindo a infidelidade do seu amásio, ficou toda enciuma
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da e às vezes procurava discutir ou brigar, não levando, porém, a efeito, visto que Ferreira não lhe dava atenção; que Ferreira sempre tratou com muito carinho sua amásia Sofia, proporcionandolhe todos os recursos [...].
Este caso único de violência feminina direta contra o ho mem tem realmente todas as características da famosa ex ceção que prova a regra: a situação era tão humilhante para Sofia que nos faz pensar que só em condições extremas como essa a mulher recorria à violência direta contra o companheiro. Pinto chegava ao requinte de dormir regularmente às terças, sextas e domingos com a nova amante, enquanto passava as outras noites com a velha amásia. Esta trágica his tória serve para sugerir que a violência direta contra o com panheiro não era uma forma comum de a mulher pobre mostrar sua exigência de um tratamento melhor e mais igualitário na relação amorosa. A mulher pobre mostrava seus anseios de uma relação mais simétrica preferencialmente por meio de sua conduta independente e de atos não violentos de represália às tentativas do marido de impor uma dominação absoluta sobre ela. Ela recorria também, como veremos adiante, ao expediente radical — e sempre dolo roso para o homem desprezado — de trocar de amásio.
O fato de ser mais comum a violência direta do homem contra a mulher nas relações amorosas entre nossos personagens talvez mereça uma interpretação mais apro fundada, mes mo que ainda bastante hipotética. Toda a trajetória da argu mentação até aqui tem sido para mostrar que as condições materiais de vida da classe trabalhadora na cidade do Rio de Janeiro no início do século XX levavam a tipos de relação homem–mulher que se caracterizavam por uma maior simetria — ou seja, a experiência de vida destas pessoas não
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oferecia bases concretas que justificassem uma pesada dominação masculina no relacionamento de um casal, o que resultava num papel mais ativo da mulher na relação.
Se esta posição menos passiva da mulher na relação ocorria realmente na prática de vida destas pessoas no contexto histórico específico que experimentavam, então como explicar que a mulher pobre continuasse a ser a principal vítima da violência intraconjugal? Por que ela continuava sendo vítima dos amantes possessivos e ciumentos? Por que não era, ela também, autora de atos violentos de retaliação com mais freqüência?
Essas interrogações precisam ser respondidas por partes. Primeiro, é necessário inquirir sobre o significado da violência masculina. Um de seus prováveis significados é que os estereótipos sobre o “ser homem” e o “ser mulher” pro palados pela classe dominante eram pelo menos parcialmente internalizados pelos amantes da classe trabalhadora. Esses modelos dominantes, ao incidirem sobre um meio social que não tinha as condições materiais nem as motivações necessárias para praticálos, talvez criassem situações de ambigüidade e insegurança que contribuíssem para o recurso ao ajuste violento. O homem, especialmente, aprendia pelos estereótipos dominantes que a mulher era sua propriedade privada, o que o tornava mais frustrado ao perceber que a prática da vida não autorizava que ele exercesse aquele poder ilimitado que o ser possuidor tem teoricamente o direito de exercer sobre aquilo que é possuído.
Mas a violência masculina também pode ter um outro significado. Como já vimos, a reprodução das condições materiais de vida desses homens e dessas mulheres dependia da sua capacidade em articular redes extensas de solidariedade e ajuda mútua, que se constituíam em sua principal
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estratégia de sobrevivência nas situações de extrema penúria que experimentavam. E o fato é que essas redes de solidariedade e ajuda mútua eram mais facilmente cons truídas entre casais do que entre indivíduos isolados. Essa realidade é rela tivamente fácil de explicar. Devido à própria natureza da divisão das tarefas entre o casal, temos que a mulher, especializandose na realização de tarefas domésticas, remuneradas ou não, acaba sendo o principal elo de prestação de ser viços entre os casais. É ela geralmente que realiza pequenas tarefas domésticas para os casais amigos, criando e renovando assim a teia de relações do casal. Mais do que isso, os serviços prestados pelo homem nessas relações de ajuda mútua, além de parecerem mais esporádicos, são também de uma natureza essencialmente distinta daquela dos serviços prestados pela mulher. O homem ajuda mais diretamente um companheiro na hora difícil do desemprego, por exemplo, ou quando da realização de uma tarefa árdua e pesada como a construção de uma casa. Por quase todo o resto do tempo, e excluindo também as horas semanais da cachaça social no botequim da vizinhança, o homem depende da presença da mulher para acionar e cumprir seus deveres cotidianos de solidariedade, como convidar os amigos para jantar, por exemplo, para citar o caso que mais aparece nos dados co le tados. Nestas relações de ajuda mútua, portanto, o casal funciona como a unidade ideal de prestação de serviços, unidade esta que, desfeita, põe em risco a principal estratégia de sobrevivência destes indivíduos. O rompimento de uma relação, então, era visto pelo homem pobre como uma desarticulação de seu modo de vida, com o agravamento imediato de seus problemas de sobrevivência. Este talvez seja o significado mais profundo da violência masculina no contexto histórico e na situação de classe experimen
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tada por essas pessoas. As mulheres talvez se desesperassem menos com este aspecto do rompimento amoroso, pois elas com preendiam que em geral não teriam dificuldades em ar rumar outro amásio se assim o desejassem. O homem, no en tanto, sabia que estava novamente atirado numa arena na qual a luta era árdua e conquistar uma nova companheira poderia levar tempo.
O fato de a mulher recorrer com menos freqüência à vio lência contra o companheiro nos momentos de crise, porém, não pode ser atribuído exclusivamente ao dado de que o de sequilíbrio numérico entre os sexos na cidade do Rio de Janeiro da época tornava fácil para ela iniciar em breve um outro relacionamento amoroso. As razões desse comportamento não diretamente violento das mulheres são mais complexas. Aqui, novamente, é necessário ter em conta que as mulheres pobres muito provavelmente interio rizavam pelo menos em parte os padrões dominantes do “ser mulher” que a bombardeavam ao longo da vida. Sendo assim, os estereó tipos de passividade e submissão feminina, gerando assim a autoimagem da mulhervítima, talvez servissem como uma espécie de freio aos possíveis impulsos femininos para recorrer à violência física direta contra o parceiro amoroso.
A mulher parecia recorrer também a uma espécie de retaliação violenta indireta contra o homem, retaliação esta por meio da qual ela negava sua submissão e desviava de si a violência machista do homem. Refirome às numerosas ocorrências de brigas entre homens por causa de mulher. Nesses casos a mulher colocase como o pivô da disputa e assiste a seus possíveis algozes digladiaremse mutuamente. Os dados coletados mostram que a mulher pobre em questão muitas vezes reagia aos maustratos do companheiro utilizandose do expediente de mudar de amásio. Esta “ro
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ta tividade dos amá sios” atirava os homens uns contra os outros e trans for mava as mulheres de vítimas da violência machista em ma ni pu ladoras, conscientes ou não, deste tipo de violência. Desta forma, a mulher fragmenta o poder e a ânsia de domi nação masculina, fazendo com que esse poder masculino se exerça não apenas sobre si, mas também sobre os outros homens. Para os homens, isto significa a reconstrução parcial dos conceitos machistas pro palados de cima para baixo pela classe dominante: os dados coligidos mostram que a violência do homem por questões de amor se exerce com muito mais freqüência contra outros homens do que contra as mulheres.48 É necessário ressaltar que os homens e mulheres pobres empenhados em relações amorosas correm riscos geralmente semelhantes de sofrerem violências. Não é ape nas a mulher que corre o risco de ser vitimada, como se po deria deduzir do modelo dominante de relação homem–mulher, pois a mulher pobre em questão tem meios, que fre qüentemente utiliza, de transformar seus algozes em vítimas. Os fatos da competição pelas mulheres e da “rotatividade dos amásios” vêm apenas confirmar o papel ativo que a mulher pobre assume nos destinos de uma relação amorosa, sendo ela consciente de que pode a qualquer momento desviar o rumo ou mesmo romper uma relação que não mais a satisfaz afetivamente.
Os casos analisados a seguir mostram homens que, empenhados na conquista de uma mesma mulher, acabam brigando por isso. Honorina Martins, de 23 anos, lavadeira, solteira, natural de São João da Barra, conta que
conheceu [...] Hermógenes Bispo dos Reis, daquela cidade, vendo o mesmo inconstantemente como embar cadiço
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que era; que ao chegar nesta cidade coin ci diu ir morar em uma casa da rua Jogo da Bola [...] que então Hermógenes tomou a mãe da declarante pa ra sua lavadeira, lugar este que mais tarde passou para a depoente por haver sua mãe adoecido; que uma vez a depoente tomou de conta da roupa de Hermógenes para lavar este muitas vezes mandavalhe junto à roupa bilhetes con vidandoa para com ele se amasiar; que a depoente vendo que tal não devia aceder, não só por ter um filho de três anos de idade a quem jamais sujeitaria a um indivíduo como Hermógenes, como também pela diferença de idade, o dissuadiu fazendolhe ver que o proposto era impertinente; que isto fez escrevendolhe em um dos mesmos bilhetes que recebera dele Hermó genes; que Hermógenes não insistiu, porém não a queria com Armando Couto, a quem depois da referida proposta a declarante passou a namorar, e de quem aceitara uma proposta para se amasiarem, [...] [Hermógenes] passou pela casa da depoente amea çandoo [a Armando], caso não atendesse, de o esbofetear; que naturalmente deuse qualquer desin te ligência entre os dois donde proveio o assassinato de Hermógenes [...].49
Honorina morava numa casa de cômodos com a mãe, a irmã e o filho pequeno que menciona no depoimento. Pelo menos Honorina e a mãe lavavam roupas para garantir seu sustento, sendo que contavam entre seus fregueses outros moradores da casa de cômodos. Mulher, portanto, trabalhadora e independente, Honorina escolhe de forma criteriosa seu possível amásio. Tanto Hermógenes Bispo dos Reis, pardo, 41 anos, estivador, quanto Armando Couto, natural do Distrito Federal, 18 anos, bombeiro hidráulico, mos tramse interessados em se amasiar com Hono rina. Uma das testemunhas afirma que Honorina “dava corda a ambos”, mas ela nos diz que não se interessava por Hermó
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genes porque não acreditava que este pudesse ser um bom pai para seu filho, além de ser bem mais velho do que ela. O caso ilustra bem a forma ativa como a mulher participa de uma relação desde o início, escolhendo de forma bastante seletiva e racio nal o seu amásio e se recusando a se submeter a um homem aparentemente dominador e vio len to como Hermógenes. Este, por sua vez, acaba tentando exercer seu poder masculino sobre outro homem — o rival mais bemsucedido —, porém acaba sendo morto na luta.
Em outro caso semelhante, os amores de Alice Maria da Conceição, parda, de 21 anos, cozinheira, natural de Angra dos Reis, estavam sendo ardorosamente disputados por João do Cavanhaque, branco, de 21 anos, natural do Distrito Federal, cocheiro, e Antônio Teixeira, branco, de 19 anos, português e carroceiro.50 Antônio Teixeira se queixa de que Alice ultimamente vinha “preferindo a João, naturalmente porque este podia gastar mais do que ele”. Certa noite, os rapazes se encontraram na casa de um amigo comum, sendo que Alice vinha em companhia de João. Os rapazes trocaram provocações e, no dia seguinte, João procurou Antônio e desfechoulhe diversos tiros. Algumas testemunhas dizem que Alice era “mulher fácil” e que efetivamente andava com os dois rapazes. Alice diz que nunca foi amante “nem de João nem de Antônio”, mas que este último “quis se amasiar com ela, porém, ela não quis por saber que ele era pouco amante do trabalho”. Do alto de sua posição de mulher cobiçada por dois rapazes ao mesmo tempo, Alice dá uma esnobada final, afirmando que “nunca foi amásia nem de um nem de outro, estando até, presentemente ama siada, com José dos Santos, pintor, com quem já esteve amasiada quatro anos [...]”.
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O caso seguinte mostra que a violência machista do amante inseguro era fragmentária e se fazia exercer tanto sobre a companheira quanto sobre outros homens. Celeste de Souza, preto, natural do estado do Rio, 20 anos, analfabeto, servente de pedreiro, desempregado na ocasião do crime, era amasiado com Maria Benedita, brasileira, 18 anos, analfabeta e cozinheira.51 O casal morava na residência de Joana, mãe de Maria Benedita, onde também morava outra filha de Joana. Maria Benedita conta que era amasiada com Celeste havia seis meses e se queixa de que
Celeste tinha ciúmes dela depoente, e várias vezes a ameaçou com pancadas; que na quintafeira da semana passada o seu amásio Celeste lhe disse que se a encontrasse na rua conversando com José Saul ou outro qualquer homem a espancava; que amedrontada ficou doente e na sextafeira da mesma semana teve um aborto e ainda hoje se acha de cama doente. Que ela depoente nunca foi infiel ao seu amásio Celeste. Que Celeste é de gênio irascível e violento [...].
A violência do tratamento de Celeste à amásia é afirmada também por outras testemunhas e, de acordo com os dados coletados, ele realmente tinha razão em temer a perda da amásia, pois as mulheres em questão pareciam muito pouco condescendentes com este tipo de tratamento, principalmente uma mulher como Maria Benedita, que tinha a companhia da família e exercia a profissão de cozinheira. De qualquer forma, o ato mais violento de Celeste foi dirigido a outro homem, José Saul, preto, de 28 anos, carroceiro, que trabalhava no abastecimento de carne aos açougues da freguesia do Engenho Novo. Celeste diz que tinha rixa com José Saul havia muito tempo, “por querer este lhe tomar a
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sua amásia Maria Benedita”. Certo dia, os dois homens se en contraram quando José Saul passava com sua carroça de carne pela rua em que morava Celeste. Os dois se desafiaram e lutaram, tendo José Saul morrido com uma facada.
O trecho do depoimento seguinte é o de uma mulher de nome Ana Gonçalves de Oliveira, portuguesa, 27 anos, sol teira, costureira.52 Ela foi chamada à delegacia porque fora pivô de um crime no qual seu examásio Manoel Monteiro Guedes, português, 48 anos, negociante, havia lutado e sido ferido por Manoel Fonseca, português, 40 anos, negociante, cujo “comércio consiste no transporte de gêneros dos subúrbios [...] para o centro comercial desta cidade”. Ma noel Guedes dizia que Manoel Fonseca, seu conhecido de longa data, havialhe roubado a amásia. Ana conta que
até julho viveu amasiada com Manoel Guedes de quem é sócia [...] na casa de quitanda à rua Visconde de Itaúna, número oitenta e sete, residindo ela declarante atualmente com uma comadre [...]; que o seu examante tem lhe dado vários prejuízos empe nhan dolhe jóias e pedindolhe dinheiro para saldar compromissos seus e como ela declarante conhecesse Manoel Fonseca por vezes pe diu deste dinheiro sob sua responsabilidade para aten der a pedidos do dito Manoel Guedes; que pelo fato dela declarante não ter querido mais o dito Monteiro como seu amante por ter sofrido do mesmo até pancada começou ele a tudo fazer para que ela voltasse a sua companhia e como ela declarante não cedeu a suas rei teradas súplicas começou Monteiro Guedes [a dizer] que ela declarante estava amasiada com Manoel Fonseca [...].
Ana conclui seu depoimento negando que tivesse tido “relações carnais” com Manoel Fonseca, mas o que é mais interessante nesta história é que temos mais uma mulher que
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se recusa a continuar uma relação amorosa com um homem que a maltratava e de quem absolutamente não dependia economicamente. Este caso também inaugura uma série de exemplos nos quais, já rompida uma relação amorosa, geralmente por iniciativa da mulher, o examásio retorna para agredir o homem que é ou que ele pensa ser o novo amásio de sua excompanheira. Em um desses casos, o sargento Nó brega, da polícia civil, branco, solteiro, de 27 anos, vi via ama siado com Lourença Palhares, brasileira, viúva, de 31 anos, doméstica.53 Certo dia, Lourença resolveu aban donálo, por motivos que não se especificam nos autos. Enfurecido, o sargento desfechou dois tiros contra a mulher, errando o alvo. O sargento foi preso e julgado pelo júri, tendo sido absolvido. Por esta ocasião, Lourença já se encontrava amasiada com outro homem, Leonel Ferrão, de 27 anos, solteiro, comandante da guarda noturna. O sargento Nóbrega dirigiu então toda a sua raiva para o novo amásio de Lourença, surgindo entre os dois homens uma séria rixa. O sargento vivia propalando que daria cabo de Leonel. Certa ocasião, quando o rival passava num bonde em frente à dele gacia, o sargento comentou com um companheiro: “Vai, puto, que qualquer dia tu darás um adeus eterno”. O compa nheiro retrucou que Leonel era “homem valente”, ao que o sargento respondeu “que para essa valentia ele sargento tinha um revólver”. Dias depois, Leonel passou em frente à delegacia na qual trabalhava Nóbrega, trazendo ainda a “ amante disputada”54 pelo braço. Os dois homens trocaram tiros, sain do ferido o sargento.
O depoimento abaixo, de Maria Barbosa, de 21 anos, solteira, lavadeira, é a história de outra mulher que decide abandonar seu amásio, contando então com a ajuda de uma amiga que a aceita para morar em sua casa. Maria Barbosa
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acaba se amasiando com um dos irmãos da amiga, rapaz com quem, segundo ela, nada tinha anteriormente, e se cria assim uma situação típica para o surgimento de uma rixa entre homens que se tornam rivais amorosos. Diz Maria Barbosa
que era amasiada com o acusado Domingos Ferreira; que há menos de um mês não podia continuar em sua companhia; em vista disso foi residir com seus filhos em casa de Carlos Jerônimo à rua Pernambuco, número vinte, por ser amiga de sua mulher; que depois disso amasiouse com Sebastião, cunhado de Carlos e desde então Domingos tomou raiva àquele, a quem mandava provocações por intermédio de um sobrinho [...].55
O examásio de Maria Barbosa, o pardo Domingos, ti nha 37 anos, era viúvo, natural do estado de São Paulo e ferreiro. O novo amásio, Sebastião, tinha 18 anos, era natu ral do estado do Rio e lavrador. Domingos foi procurar Sebastião e ambos trocaram tiros, saindo ferido Domingos .
Em outro exemplo, o português Cândido Alberto, de 28 anos, funileiro, era amasiado com Ana Gomes, portuguesa, de 25 anos, empregada como doméstica numa casa de família em Botafogo.56 Ambos viviam “maritalmente” num quarto de estalagem pago por Cândido Alberto havia cerca de sete anos. Cândido tinha um amigo de nome Antônio Duarte, também português, de 26 anos, canteiro, que se de clarou casado. Cândido e Duarte se conheciam e mantinham relações amistosas havia um ano, mais ou menos, quando surgiu entre ambos uma séria rixa. Cândido começou a desconfiar de que Ana, sua amásia, o estava traindo justamente com Duarte. Cândido estava certo, e Ana, em seu depoimento, declarouse “seduzida” pelas cartas de amor e promessas de Duarte, que, por sinal, mal escrevia o próprio
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nome e tinha suas cartas escritas por um negociante português seu amigo. Ana declara
que só atendeu às seduções de Duarte porque este chegou ao ponto de ir dentro de sua própria casa, quando o amásio estava trabalhando, para desviála [...]; que as rela ções dele informante com a vítima não se limitavam a simples galanteio, porém tiveram cará ter mais positivo, sendo que eram realizadas dentro da própria casa do acusado [Cândido], quando este saía para seu trabalho, isso mais de uma vez; que o acusado sempre ignorou essas relações, até o dia em que a surpreendeu com a vítima [...].
Após algumas semanas de troca de ameaças, os dois rivais se encontraram em uma praia, ambos armados, e Cândido desfechou cinco tiros em Duarte.
No caso seguinte, Emília Pinto, brasileira, de 32 anos, doméstica, era casada havia quase 20 anos com Manoel Ferreira Pinto, português, 39 anos, cocheiro.57 Emília narra as circunstâncias de seu rompimento com Manoel Ferreira:
[...] que ela declarante é casada há vinte anos com Manoel Ferreira Pinto com quem viveu algum tempo em boa harmonia, tendo dele três filhos; que em setembro de 1906, foram morar na casa acima citada, ocupando o quarto e sala da frente; que na parte restante da casa residia um moço de nome Manoel Correa, em companhia de três irmãs; que em princípios do ano próximo findo, seu marido começou a ter ciúmes de Correa, ciúmes esses infundados, até que em fevereiro do mesmo ano, depois do carnaval, seu marido levou todos os móveis e objetos que existiam em casa, abandonando a declarante na maior miséria e levando consigo o filho mais velho e uma menina; que então, seu marido co me
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çou a difamála, propalando ser ela amante de Cor rea, o que não era verdade; que tendo a declarante ficado sem recursos, resolveu procurar um emprego, no que foi obstada por Manoel Correa, o qual disse à decla rante que, uma vez que seu marido a difamava publicamente como amante dele Correa, fizesse do dito verdade e passasse a viver em sua companhia, o que a declarante aceitou, urgida pela necessidade; que daí seu marido começou a perseguir Correa, ameaçandoo em toda a parte onde o encontrara [...].
Certo dia, Manoel Pinto foi à casa de Correa, que era na tural do Distrito Federal, calceteiro e tinha 29 anos, e os dois homens lutaram, morrendo Pinto com um tiro.
Não importa tanto nesse caso o fato de que Emília talvez não dissesse a verdade quando qualificava de “infundados” os ciúmes do marido, mas sim que novamente temos uma mulher que, ao trocar de amásio, assiste à luta entre os dois homens que a desejavam.58 Outra vez, o problema da coa bitação aparece intimamente ligado à crise de um casal, apesar de certamente não dar conta do possível desgaste de uma relação de quase 20 anos na qual Emília se viu envolvida quando ainda não tinha sequer 14 anos. De qualquer forma, seria ilusório pensar que Emília assistia à luta entre os dois contendores como um ser passivo, pronta a se oferecer como troféu ao vencedor: ela dá motivos bastante lógicos para a sua decisão de amasiarse com Correa, associandoa às necessidades de sobrevivência e a uma forma de retaliação pelos ciúmes e pela campanha de difamação que o marido parecia mover contra ela.
Em suma, a história de Emília é mais um caso contundente e reiterativo de tudo que se quis argumentar nesta parte: as mulheres em questão exigiam de seus companhei
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ros relações amorosas em que assumissem uma posição mais igual e participante, e estavam em condições de romper ou pressionar pela mudança de rumo de relações que não as satisfizessem. Essas mulheres, portanto, não eram obviamente “da gandaia”, como queria João do Rio, e sim pareciam estar não muito acomodadas ao jugo de seus homens. Apesar disso, continuavam fortemente acorrentadas ao jugo de outra classe, de outros homens que não eram os seus.
Epílogo
Os agentes jurídicos que produzem os processos criminais analisados partem do pressuposto de que qualquer relação amorosa tende a um modelo absoluto e universal segun do o qual o homem ocupa o pólo ativo e dominador, enquanto a mulher se encontra no pólo passivo e submisso. Sendo assim, as crises amorosas registradas nos processos se explicam geralmente a partir da constatação de que a mulher não assumiu devidamente a sua passividade e submissão, quebrando assim o estado de equilíbrio desigual que deveria caracterizar qualquer relação homem–mulher. Daí o fato de que o comportamento da mulher é quase sempre o que está em julgamento quando um criminoso passional do sexo masculino está sentado no banco dos réus. Esta é apenas uma das muitas contradições inerentes e necessárias a uma sociedade cujo sentido mais profundo é a reprodução das desigualdades — sejam elas sociais, econômicas, sexuais ou de qualquer outro tipo que o leitor possa imaginar.
Um tanto alheios a este modelo absoluto ao qual se deviam supostamente ajustar — mas sofrendo constantemente na pele e na mente a sua tentativa de imposição —,
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os seres de carne e osso em cuja vida fomos nos intrometer pa reciam vivenciar o amor a partir de parâmetros bem distintos. As suas condições materiais de vida, os seus modos de pensar e agir os levavam a praticar uma relação homem–mulher que tendia a uma bipolarização, com uma maior divisão do poder entre os amantes. Isso pressupõe uma mulher mais ativa e independente, o que significaria apenas ad mitir o tipo de postura que esta mulher tinha de assumir diante da vida em condições tão adversas. Significa também que, mais freqüentemente, as crises amorosas talvez fossem resultado da não aceitação por parte do homem da conduta independente da mulher, conduta feminina esta mais de acordo com as motivações e limites impostos a ela pela situação de classe que experimentava.59
De qualquer forma, e além de qualquer possibilidade de construir modelos rígidos e únicos de comportamento amo roso, os sinais longínquos emitidos por estes homens e mulheres são ambíguos e contraditórios. Mas estes sinais che gam a nós, apesar de todo o esforço dos agentes jurí dicos em enquadrálos e, assim, silenciálos. Aguçando os ouvidos, po demos escutar as vozes esganiçadas se infil tran do pelas entrelinhas dos processos. Ao contrário do que postula o dita do jurídico, o que não está nos autos ainda assim está no mundo. Por mais que tentem, os autos não silenciam os atos.60
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noTas
1 Anais da Câmara dos Deputados, 1888. Debate sobre a lei de repressão à ociosidade.
2 Florestan Fernandes, A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Ática, vol. 1, 1978, pp. 20 e 15455.
3 Mariza Corrêa, “Repensando a família patriarcal brasileira”, in vários autores, Colcha de retalhos. São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 35.
4 Lia Fukui e M. C. A. Bruschini, “A família em questão”, Cadernos de Pesquisa da Fundação Carlos Chagas. São Paulo, 1981, p. 3.
5 Carmem Cinira Macedo, A reprodução da desigualdade: o projeto de vida familiar de um grupo operário. São Paulo: huciTec, 1979, p. 146. Uma resenha bibliográfica que chega a esta perspectiva teórica é a de Lia F. G. Fukui, “Estudos e pesquisas sobre família no Brasil”, Boletim Infor-mativo e Bibliográfico de Ciências Sociais (BIB). Rio de Janeiro, no 10, 1980. Para estudos de caso em uma perspectiva semelhante, ver, por exemplo, Alba Zaluar, “As mulheres e a direção do consumo doméstico”, in vários autores, Colcha de retalhos, op. cit., pp. 15984; Elisabete Dória Bilac, Famílias de trabalhadores: estratégias de sobrevivência. São Paulo: Símbolo, 1978; e ainda os artigos de Ana Maria da Silva Dias, “Família e trabalho na cafeicultura”, e Eni de Mesquita Samara, “Casamento e papéis familiares em São Paulo no século XIX”, ambos incluídos nos Cadernos de Pesquisa da Fundação Carlos Chagas. São Paulo, 1981.
6 Jurandir Freire Costa, Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
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7 José Joaquim F. M. Barros, apud idem, op. cit., p. 235.8 A síntese que se segue provém de idem, op. cit., cap. 6.9 José Joaquim F. M. Barros, apud idem, op. cit., p. 235.10 José Luiz da Costa, apud idem, op. cit., p. 236.11 Fukui, “Estudos e pesquisas sobre família...”, op. cit., p. 15.12 Mariza Corrêa, Morte em família. Rio de Janeiro: Graal, 1983.13 A narrativa que se segue é baseada no processo de Luís Cândido de
Faria Lacerda (réu), no 4.930, maço 878, galeria a, Arquivo Nacional, 1906, no noticiário do Correio da Manhã dos dias posteriores ao crime (a partir do dia 25/4/1906) e no livro de Evaristo de Moraes, Crimi-nalidade passional — O homicídio e o homicídio-suicídio por amor. São Paulo: Saraiva, 1933.
14 Evaristo de Moraes, op. cit., p. 115. Para outros exemplos da atuação de Evaristo de Moraes no júri, ver processo de Lucinda Leão Mendes, no 4.969, maço 879, galeria a, 1906, e Arthur Frederico de Noronha, no 717, maço 883, galeria a, 1908.
15 Maria Sylvia de C. Franco, Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo: Ática, 1976, pp. 4047.
16 Gilberto Velho, “O estudo do comportamento desviante: a contribuição da antropologia social”, in G. Velho (org.), Desvio e divergência: uma crítica da patologia social. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
17 Miguel da Costa, no 4.970, maço 879, galeria a, 1906.18 Osias José Moreira, no 1.068, maço 895, galeria a, 1911.19 João Braulino de Sousa, no 5.009, maço 880, galeria a, 1907.20 Manoel Paulo Taveira, no 1.061, maço 895, galeria a, 1911.21 As estalagens e as casas de cômodos eram cenários bastante comuns
dessas desavenças típicas de situações em que diversos casais conviviam sob o mesmo teto. Neste caso, as tensões talvez se agravassem pelo fato de esses casais não possuírem, em geral, nenhum laço prévio de afinidade.
22 Lima Barreto, Recordações do escrivão Isaías Caminha. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, s.d., pp. 21314.
23 Antônio Pedro dos Santos, no 5.023, maço 882, galeria a, 1907.24 José Pereira Terra, no 687, maço 881, galeria a, 1907.25 Gaspar Barros da Silva Porto, no 615, maço 876, galeria a, 1907.
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26 Joaquim de Andrade Bastos, no 5.061, maço 886, galeria a, 1908.27 Sofia Eugênia da Gama, no 5.007, maço 880, galeria a, 1907.28 Luís Augusto Pinto, no 5.071, maço 886, galeria a, 1909.29 Os casos são numerosos, e muitos serão citados ao longo do texto daqui
para frente.30 Mário da Rocha Pereira, no 1.066, maço 895, galeria a, 1911.31 Benjamim Ignácio, no 4.941, maço 878, galeria a, 1905.32 José Cândido Vieira, no 5.150, maço 890, galeria a, 1910.33 Apud Oswaldo Porto Rocha, A era das demolições: cidade do Rio de
Janeiro: 18701920. Dissertação de mestrado, Universidade Federal Fluminense. Rio de Janeiro, 1983, p. 90.
34 Recenseamento do Rio de Janeiro realizado em 1906, pp. 38889.35 Rosária Maria Ferreira, no 8.547, caixa 1.187, galeria a, 1908.36 Mariano Solanez Alegret, no 5.063, maço 886, galeria a, 1909.37 Joaquim de Andrade Bastos, no 5.061, maço 886, galeria a, 1908.38 João do Rio, Histórias da gente alegre (org. João Carlos Rodrigues). Rio
de Janeiro: José Olympio, 1981, p. 82.39 Recenseamento do Rio de Janeiro realizado em 1906, pp. 12227.40 Francisco Alberto Horffe, no 612, maço 876, galeria a, 1905. Algumas
circunstâncias deste caso foram esclarecidas pelo noticiário do Correio da Manhã, 27 jan., 1905.
41 Domingos Monteiro Jorge, no 5.054, maço 886, galeria a, 1909.42 Para um outro caso semelhante a estes dois comentados acima, ver o
processo de Edmundo Pfaltzgraff de Oliveira Paranhos, no 5.059, maço 886, galeria a, 1908.
43 Antônio de Paiva, no 5.048, maço 884, galeria a, 1908.44 Joaquim Verçoza Jacobina Callado, no 5.040, maço 884, galeria a, 1908.45 José Monteiro, no 719, maço 883, galeria a, 1908.46 Luís Augusto Pinto, no 5.071, maço 886, galeria a, 1909.47 Sofia Eugênia da Gama, no 5.007, maço 880, galeria a, 1907.48 Dos 140 processos de homicídio analisados, tivemos apenas cinco casos
comprovados de agressão do homem contra a companheira entre casais pobres. Além desses, no caso já analisado do processo citado na nota 44, o acusado alega que a mulher se suicidou e é absolvido, com
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o júri aceitando sua alegação. Contudo, como já sugeri quando comentei o caso, é bem mais provável que o acusado tenha efetivamente sido o autor da agressão. Em outro caso, um homem é acusado de dar tiros na noiva, mas há grandes contradições nos autos e fortes evidências de que a polícia forjou o flagrante na delegacia. Por outro lado, foram localizados 11 casos de brigas entre rivais por questões de amor, alguns dos quais serão comentados adiante. Registraramse também três casos de agressão de homens contra prostitutas e dois de homens que brigaram por causa destas. Este número de questões envolvendo meretrizes é relativamente alto, sugerindo a importância da prostituição como meio de vida para mulheres humildes que desejavam ter uma vida independente numa cidade repleta de homens jovens e solteiros. Esses casos indicam, ainda, que essas mulheres não eram desprezadas pelos seus iguais, pois inspiravam, algumas vezes, reações extremadas e até passionais. A prostituta parecia despertar sentimentos ambíguos de fascínio e rejeição, pois em sua opção de vida ela negava radicalmente o estereótipo da mulher possuída e dependente: ela fazia da negação da possibilidade de alguém possuir seu corpo com exclusividade o meio de ganhar a vida. Finalmente, a amostra contém alguns casos de crimes de amor perpetrados por pessoas de classes mais abastadas. Destes, os casos não mencionados no item “O modelo dominante de relação homem–mulher”, neste capítulo, foram deixados de lado.
49 Armando Couto, no 1.069, maço 895, galeria a, 1911.50 João José da Silva, vulgo João do Cavaignac, no 1.515, maço 906,
galeria a, 1907.51 Celeste Lauriano José de Souza, no 731, maço 883, galeria a, 1908.52 Manoel Ferreira da Fonseca, no 4.317, maço 954, galeria a, 1908.53 Leonel Moreira Pires Ferrão, no 607, maço 876, galeria a, 1905.54 Este é o título da reportagem do Correio da Manhã sobre o crime de
Leonel Ferrão (matéria publicada em 8/12/1905).55 Sebastião Pereira da Silva e outro, no 2.775, maço 2.120, galeria a, 1906.56 Cândido Alberto, no 1.444, maço 903, galeria a, 1907.57 Manoel Sanches Corrêa ou Manoel Joaquim Corrêa, no 5.136, maço
889, galeria a, 1908.58 Outro exemplo deste tipo é o narrado na introdução — a briga entre
Zé Galego e Paschoal.
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59 Maria Odila L. da Silva Dias, em trabalho notável sobre as mulheres pobres na cidade de São Paulo no século XIX, também constata os limites cotidianos às práticas das normas e valores ideológicos das classes dominantes pelos agentes sociais expropriados. A autora escreve que o sistema de dominação social das classes dominantes “estipulava papéis sociais difíceis de serem mantidos por homens ou mulheres de classes desfavorecidas, embora alguns de seus valores permeassem por toda a sociedade como traços machistas dos papéis sociais masculinos. Entretanto, normas e valores ideológicos relativos ao casamento e à organização da família nos meios senhoriais não se estendiam aos meios mais pobres de homens livres sem propriedades a transmitir. Moças pobres sem dotes permaneciam solteiras ou tendiam a constituir uniões consensuais sucessivas”. Ver Maria Odila L. da Silva Dias, Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX — Ana Gertrudes de Jesus. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 20.
60 O ditado jurídico é “O que não está nos autos não está no mundo” e é citado por Mariza Corrêa em Morte em família. A autora parece descrer da possibilidade de se chegar aos atos por meio dos autos, justificando assim sua opção por trabalhar exclusivamente no nível das representações jurídicas.
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...“maTando o bicho” e resisTindo aos “meganhas”
Inquietações teóricas e objetivos
A burguesia, pelo rápido desenvolvimento de todos os instrumentos de produção, pelos meios de comunicação imensamente facilitados, arrasta todas as nações, mesmo as mais bárbaras, para a civilização [...]. Em uma palavra, cria um mundo à sua própria imagem.
K. marx e f. engels1
[...] nunca houve um só tipo de “transição”. A tensão desta recai sobre a totalidade da cultura: a resistência à mudança e o ascenso à mesma surge da cultura inteira [...]. O que necessita dizerse não é que uma forma de vida é melhor que outra, mas sim que há aqui um problema muito mais profundo; que o testemunho histórico não é simplesmente de mudança tecnológica neutra e inevitável, mas também de exploração e resistência à exploração; e que os valores são suscetíveis de serem perdidos e encontrados.
e. P. ThomPson2
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O termo “imperialismo” passa a ter uso generalizado en tre intelectuais e políticos europeus no final do século XIX. O Oxford English dictionary, que tenta sempre localizar o exem plo mais antigo de uso de cada palavra, não consegue encontrar exemplo de uso da palavra “imperialismo” que seja anterior a 1881.3 A palavra foi cunhada em função de um dos acontecimentos mais singulares da história contemporânea — a expansão súbita e desenfreada dos impé rios co lo niais europeus após 1870. Nas três décadas que antecederam o final do século XIX, os principais Estados europeus — em ferrenha competição entre si — expandiram seu controle político no exterior de forma espantosa — mais de 25 milhões de quilômetros quadrados de território e qua se 150 mi lhões de pessoas, ou seja, cerca de um quinto da área territorial mundial e um décimo da população mundial.4 Uma outra faceta do mesmo fenômeno foi o verdadeiro boom, a partir de 1873, de exportação de capitais europeus para as suas próprias regiões coloniais dotadas de administração lo cal — como o Canadá, Índia e Austrália, no caso do Impé rio inglês —, e também para as áreas de passado colonial, mas ainda submetidas a um controle indireto das principais po tên cias européias — como no caso da América Latina.5 Nas últimas décadas do século XIX e no início do século XX, a América Latina, bombardeada por maciços investimentos de capitais europeus, trilha decididamente o caminho da “oci dentalização” na sua forma burguesa — libe ral, num proces so de mudança muitas vezes brutal e de ele vado custo social.6
O Brasil cumpriu seu papel na crescente divisão interna cional do trabalho estabelecida ao longo da segunda metade do século XIX ao especializarse na produção de um ar tigo supérfluo de sobremesa — o café — e ao se transfor
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mar também num dos alvos das batalhas de investimentos. Este processo de maior integração do Brasil à economia capitalis ta mun dial sofreu um novo impulso com a Abolição e o ad ven to da República, que parecem ter criado o quadro ins ti tucional adequado para colocar o país numa posição de maior destaque na divisão internacional do trabalho, atraindo assim os fluxos de capital e de força de trabalho que se en ca minha vam do Velho para o Novo Mundo. A maior inte gração do Brasil à economia capitalista mundial a partir dos acon tecimentos de 18881889 é comprovada pelos dados de cresci mento das nossas exportações: estas cresceram num ritmo de apenas 10% entre os decênios de 1871 1880 e 18811890, passando este crescimento para 31,6%, entre a penúltima e a última década do século XIX, e atingindo a ele vada cifra de 63,7%, na primeira década do século XX.7 Ín dice ainda mais revelador deste processo são os dados quan to à penetração do capital inglês: de 1829 a 1860, a GrãBre tanha concedeu ao governo brasileiro empréstimos no valor de 6.289.700 libras; de 1863 a 1888 foram concedi dos emprés timos no valor de 37.407.300 libras e, finalmen te, de 1889 a 1914 estes empréstimos atingiram a cifra de 112.774.433 libras.8 É por essa via que o governo federal intervém decididamente para tornar viáveis as reformas urba nísticas realizadas durante a gestão do prefeito Pereira Pas sos (19021906): o presidente Rodrigues Alves solicita e recebe do Congresso plenos poderes para negociar por intermédio de seu ministro Leopoldo de Bulhões um em préstimo vi sando a financiar as obras da capital federal. Com efei to, é ob tido, do grupo de banqueiros N. M. Rothschild, um em prés timo no valor de 8,5 milhões de libras, quantia que representava quase a metade do orçamento da União em 1903.9
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A cidade do Rio de Janeiro, portanto, desempenhou papel destacado nesta crescente inserção da economia brasileira no capitalismo internacional. É verdade que a deca dência da economia cafeeira do Vale do Paraíba e o envio da pro dução do Oeste paulista para o porto de Santos ten deram a di minuir a atividade exportadora do Rio de Janeiro, mas estes fatos foram compensados por um enorme aumento das importações e do comércio de cabotagem.10 Em 1906 entra vam na capital federal 2.386 navios a vapor e veleiros do co mércio transatlântico e de cabotagem. Este movimento dava uma tonelagem de 3.443.004, representando um aumento de mais de um terço no período de 1888 a 1906. As impor ta ções do Rio de Janeiro neste último ano equivaliam a pouco menos da metade do total do país e as exportações, a apenas um sétimo. Esses dados indicam com clareza uma mudança de função do porto do Rio de Janeiro, que perde sua impor tância como exportador de café e ganha como centro distribuidor de artigos importados e como mercado consumidor.11
Com efeito, entravam pelo porto da cidade produtos de toda espécie, predominando os artigos manufaturados. Em 1906, a maior parte destes produtos era proveniente da Inglaterra, ficando a Alemanha em segundo lugar e os Estados Unidos em terceiro.12 Houve, portanto, uma mudança de vulto nas atividades econômicas da cidade do Rio de Ja neiro nos primeiros anos da República Velha, mudan ça esta que transformou a cidade num grande centro cosmopolita, ligado intimamente à produção e ao comércio europeus e americanos.13 A cidade parecia mal preparada para desempe nhar suas novas funções econômicas. Segmentos das classes dominantes cariocas, ligados ao comércio de importação e aos interesses do capital estrangeiro, logo se
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empenharam em realizar os melhoramentos materiais e as re formas nos hábitos sociais que transformariam a capital federal no posto avança do por onde se fariam “o progresso e a grandeza do Brasil”.14 Entendase aqui que realizar o “progresso” significava exclusi vamente acompanhar os padrões e o ritmo de desdobramento da economia européia,15 ou seja, a imagem que a nova burguesia carioca tinha do “progresso” se sintetizava no objetivo precípuo de realizar a civilização européia nos trópicos.
O “estado de espírito” — se é que o leitor me permite uma expressão tão abstrata — que acompanha estas mudanças de base nas atividades econômicas e na estru tura de poder da cidade se caracteriza por um cosmopolitismo desmedido e agressivo. Um “escritor maldito”16 como Lima Barreto pinta com precisão este “estado de espírito” reinante na cidade nos primeiros anos da República Velha — e que culmi naria no delírio demolidor da gestão de Pereira Passos, como já vimos em outro capítulo — num conto debochado e divertido, intitulado “O homem que sabia javanês”.17 O nar rador da aventura, um bom contador de histórias chamado Castelo, relata como conseguiu um emprego de professor de javanês, língua falada numa distante possessão holandesa na Ásia, sem que tivesse nenhum conhecimento prévio do idio ma. Castelo estava “literalmente na miséria”, pulando de casa de pensão para casa de pensão, quando leu no Jornal do Com mercio um anúncio requisitando um professor de java nês. Estando o nosso herói em apuros e sem saber como ganhar dinheiro, imaginou que este seria um emprego para o qual haveria poucos concorrentes. Assim, Castelo di ri giuse à Biblioteca Nacional, descobriu algo sobre a ilha de Java, começou a decorar o alfabeto javanês e logo se apresen tou ao
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velho barão de Jacuecanga, que era quem havia requi sitado o professor.
O bom barão queria aprender a língua com o intuito de ler um velho livro, herança do avô, que era considerado uma espécie de talismã da família. Não foi difícil ludibriar o barão: este não conseguia sequer aprender as primeiras le tras do alfabeto javanês e Castelo começou logo a “ler” para seu aluno as histórias que supostamente constavam do livro, mas que ele obviamente inventava utilizando um pouco de sua criatividade. Nesse ínterim, a fama do “homem que sabia javanês” alastrase pela cidade. O barão e seu gen ro, um desembargador influente, alardeiam em todas as direções a sapiência deste homem tão jovem “que sabia javanês”. Para encurtar a história, Castelo foi indicado para a carreira diplomática, tornouse cônsul, foi escolhido para representar o país num congresso de lingüística em Paris e, na volta, foi recebido solenemente pelo presidente da República. Digase de passagem que, apesar de se dedicar aos estudos, o nosso cônsul jamais conseguiu aprender o javanês.
Lima Barreto critica, assim, de forma divertida e veemente, o artificialismo daquela cultura burguesa importada e bebida avidamente pelas elites cariocas do período. O trágico, contudo, é que o processo de aburguesamento da sociedade carioca estava muito além de uma simples comédia de erros. Tratavase, na verdade, de um projeto político de reforma social veiculado de forma consciente e agressiva por uma classe dominante diretamente comprometida com a penetração de capital e bens industrializados provenientes das metrópoles capitalistas avançadas. Tratavase, portanto, de um projeto social “totalizante” — no sentido de que visava impor não só mudanças materiais, mas todo um modo de vida — e profundamente autoritário — no sentido de que
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visava realizar essas mudanças à força e sem nenhuma consideração maior para com os setores sociais que sofreriam as conseqüências diretas de tais transformações. Nicolau Sev cenko resume de forma brilhante os pontos fundamentais deste projeto político de metamorfose social:
[...] a condenação dos hábitos e costumes ligados pela memória à sociedade tradicional; a negação de todo e qualquer elemento de cultura popular que pudesse macular a imagem civilizada da sociedade dominante; uma política rigorosa de expulsão dos grupos populares da área central da cidade, que será praticamente isolada para o desfrute exclusivo das camadas abur guesadas; e um cosmopolitismo agressivo, profundamente identificado com a vida parisiense.18
Este projeto avassalador de mudança social — cujas linhas de força fundamentais vinham de fora para dentro do país e de cima para baixo do ponto de vista da estrutura social interna — havia sido concebido como um processo linear, natural e inevitável por seus protagonistas. Tratavase, afinal, de fazer com que o país se inserisse na “civilização”. O teste munho histórico, no entanto, é de profunda resistência à mu dança. Se é verdade que a burguesia sonhava em “criar um mundo à sua própria imagem”, também é verdade que acabou tendo de se contentar com uma imagem, no mínimo, bastante imperfeita. O próprio Lima Barreto, “escritor maldito”, mula to numa sociedade que os poderosos sonham em “regenerar”, ou seja, “embranquecer”, registra nas vozes de seus personagens mais humildes o protesto surdo, mas firme, das vítimas. Para um conhecido de Isaías Caminha, estes homens que “botam abaixo, derrubam casas, levantam outras, tapam umas ruas, abrem outras [...] estão
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doidos!!!”19 E Clara dos Anjos, moça pobre e negra de um subúrbio do Rio, enganada e deflorada por um conquistador de pele branca, sardento e de cabelos claros, exclama “com um grande acento de desespero” abraçandose a sua mãe: “Nós não somos nada nesta vida”.20
A emancipação dos escravos e a política imigratória foram os dois processos constitutivos essenciais do mercado de trabalho capitalista — e conseqüentemente da classe trabalhadora — da cidade do Rio de Janeiro nas últimas décadas do século XIX e no início do século XX. A Repú blica procla mada em 1889 contém em si, portanto, como antagonismo fundamental, a relação trabalho assalariado versus capital. Podese dizer mesmo que a República foi proclamada sobre a figura do homem livretrabalhador assalariadocidadão.21 Talvez fosse melhor afirmar que a República foi proclamada sobre a figura do homem livre pobre porque tinha para ele um projeto amplo, que era o de transformálo em trabalhador, ou seja, em fonte de acumulação de capital. E a República foi proclamada ainda sobre o homem livre pobre na medida em que este projeto de exploração econômi ca era acompanhado de todo um projeto de mudança “es piritual”: já vimos nos capítulos anteriores como se forja neste momento crucial toda uma nova ética de trabalho e um modelo de família que se aplicariam a todos os membros da “nação”. E já vimos também, em parte, a forma con traditória com que a tentativa de implantação desse projeto de sociedade “de fora para dentro e de cima para baixo” foi vivenciada pelos membros da classe trabalhadora: uma aparente mistura indivisível de resignação e revolta, aquiescência e insubordi nação, solidariedade e lutas intestinas.
Mas o quadro ainda não estará completo enquanto não trouxermos em cena, para desnudálo, o mundo do lazer
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popular, dos botequins e das ruas, assim como a sua contrapartida inevitável: a repressão policial. Ela aparece aqui com uma função relativamente óbvia, pois a organização da força policial é “parte constitutiva da estratégia de formação de um mercado capitalista de trabalho assalariado”.22 Ou seja, a imposição do assalariamento ao trabalhador é cor roborada pela vigilância constante do aparato policial, que ro tula de “vadios” — e arremessa eventualmente ao xilindró — todos aqueles indivíduos que se encontram nos botequins e nas ruas e que não conseguem provar sua condição de trabalha dores — isto é, de indivíduos submetidos ou adaptados ao projeto de vida feito para eles.
O restante deste capítulo pretende, no entanto, ir além da simples exploração sistemática do vínculo que se estabelece entre lazer popular–formação de um mercado capita lista de trabalho assalariado–repressão policial. Pretendese, além disso, propor uma interpretação global do sentido da cul tura popular na cidade do Rio de Janeiro nesta era de impor tantes transformações sociais. Seguindo a definição de Sidney Mintz,23 “cultura” é entendida aqui como uma espécie de recurso, de formas ou alternativas de conduta ou com portamento historicamente disponíveis aos membros de uma de terminada comunidade ou classe social. Este conceito não se confunde com o de “sociedade”, que é concebida como a “arena” de luta ou as circunstâncias sociais que dão en sejo à utilização das formas ou alternativas culturais disponíveis. Sendo assim, a hipótese mais geral que se quer lançar aqui sobre a cultura popular na cidade do Rio de Janeiro nestes anos de formação da classe trabalhadora carioca é de que esta cultura é resultado da dialética — antagonismos e reconciliações — entre as normas e os valores burgueses que se desejam impor às classes populares “de fora para dentro
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e de cima para baixo” e as normas e os valores criados pela própria classe trabalhadora na sua prá tica real de vida. Mais do que isso, pretendese mostrar que na época havia uma cultura popular relativamente autônoma, vigorosa e criativa na cidade e que, apesar de o projeto de sociedade das classes dominantes cariocas querer se implantar de cima para baixo independentemente da natureza da resposta social a este projeto, o fato é que na prática polí tica real estas classes do minantes não puderam escapar às contingências impostas por uma classe trabalhadora que resistiu tenazmente à tentativa de destruição de seus valores tradicionais. Devese meditar, aliás, se a existência na cidade desta cultura popular vigorosa e largamente insubmissa, no momento crucial da formação do mercado capitalista de trabalho assalariado, explica, em alguma medida, o fato ób vio de que vivemos, hoje em dia, numa sociedade capitalista que não deu certo.24
As partes seguintes do capítulo visam testar esta hipótese geral a partir da análise das tensões e conflitos cotidianos no mundo do lazer popular na cidade do Rio da primeira década do século XX: são abordadas sucessivamente a vida no botequim, a relação entre populares e “meganhas” — guardas civis — nas ruas da cidade e a dramatização e ri tua lização dos confli tos na hora de “matar o bicho”, isto é, de tomar a “ branquinha”.
Lazer e controle social: o dono do botequim e seusfregueses; meganhas e populares
O Correio da Manhã do dia 17 de julho de 1906 inicia assim o relato de um conflito entre o caixeiro de um botequim e um dos fregueses: “Em um botequim [...] na estação
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do Engenho de Dentro, verdadeira tasca onde se reúnem, à noite, desordeiros e vagabundos, que perambulam pelos subúrbios, promovendo desordens que sempre acabam em terríveis desacatos, deuse ontem uma cena de sangue”.25
Essa forma de introdução moralizadora é típica de notícias do gênero na imprensa da época. Ela revela claramente a tentativa de estigmatização da principal opção de lazer dos pobres urbanos do sexo masculino: a conversa informal que estes homens levam no botequim, ao redor de uma mesa ou encostados no balcão, sempre sorvendo goles de café, cachaça, cerveja ou algum vinho bem barato. Era ali, nos papos da hora de descanso, que se afogavam as mágoas da luta pela vida e se entorpeciam os corpos doloridos pelas horas seguidas do labor cotidiano.
A associação do espaço fundamental do lazer destes homens com rótulos estigmatizantes do tipo “desordeiros” e “vadios” é sintomática e reveladora. Esse tipo de associação revela mais uma vez o projeto de vida que a jovem Repú blica trazia para esses homens: ao chamálos de “de sor deiros” e “vadios”, enfatizavase novamente que urgia trans formálos em “morigerados” e “trabalhadores”. Mas aqui se revela também algo que talvez se desejasse ocultar: a tentativa de im po si ção de hábitos de trabalho compatíveis com os desígnios bur gueses de acumulação de capital encontrou firmes obstá culos nos velhos hábitos e no modo de vida tradicional dos pobres urbanos em questão. Neste caso, a estigmatização do espaço por excelência do lazer popular revela aquilo que a “história” na versão dos vencedores se empenha sempre em ocultar: a transição para a ordem burguesa na cidade do Rio de Janei ro no período foi um processo de luta, de imposi ções e resis tências, e não um caminhar harmônico, linear e tranqüilo.
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Neste sentido, o botequim e o quiosque, a despeito de seus algozes, apresentam múltiplos significados. O quiosque era uma armação frágil de madeira, em estilo oriental, construído nas calçadas e ao redor do qual populares se reuniam pa ra beber e conversar. Segundo Luiz Edmundo, “[...] o quios que é uma improvisação achamboada e vulgar de madei ras e zinco, espelunca fecal, empestando à distância e em cujo bojo vil um homem se engaiola, vendendo ao pé rapa do — vinhos, broas, café, sardinha frita, côdeas de pãodormido, fumo, lascas de porco, queijo e bacalhau”.26
O destino dos quiosques durante a administração Pereira Passos é sintomático. É constantemente considerado pela imprensa como uma “vergonha” para a cidade que se “civilizava”, e o prefeito Passos esperava uma ocasião oportuna para atacar de frente aquele comércio popular quando “homens de negócio” resolveram agir por conta própria: munidos de latas de querosene e caixas de fósforos, atearam fogo em inúmeros quiosques do centro da cidade.27
O que significa esse episódio, que aparentemente foi ape nas mais uma obra “saneadora” ou “civilizadora” da épo ca áurea de reformas urbanísticas? O próprio Luiz Ed mun do nos dá uma pista ao comentar que baleiros, carregadores, vendedores de jornais e outros trabalhadores autônomos costumavam se reunir em torno dos quiosques para tomar goles da “branquinha” enquanto esperavam a freguesia.28 O hábito destes homens de assim proceder mostra que para eles o ideal burguês de separação rígida entre lazer e trabalho não tem significado algum: trabalho e diversão estão associados no cotidiano e não são regidos por horários fixos. Mas esta separação pouco rígida entre trabalho e lazer está longe de ser um atributo único de trabalhadores autônomos: as situa ções de conflito ocorridas em botequins e quiosques
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mostram que muitas vezes os tra balhadores freqüentam estes es ta belecimentos nos in ters tí cios da jornada de trabalho, quebrando assim a rotina de produção que seria desejável do ponto de vista estrito dos donos do dinheiro. Desta forma, o episódio da queima dos quiosques é mais uma manifes tação do antagonismo fundamental que permeia a sociedade, isto é, a relação trabalho assalariado versus capital.
Se a luta contra os quiosques foi sem tréguas, o mesmo não ocorreu em relação aos botequins. Isto talvez se explique pelo fato de que o botequim funcionava geralmente também como venda, desempenhando um papel fundamental na distribuição de alimentos para a população de baixa renda. Mas a condescendência em relação ao botequim pode ter também significados menos aparentes, principalmente se racioci narmos em termos dos objetivos mais amplos da classe dominante de exercer uma vigilância contínua sobre sua força de trabalho. Assim, o quiosque era um estabelecimento com uma área interna diminuta, onde só cabiam o pro prietáriocaixeiro e as poucas bebidas e guloseimas que este vendia. O proprietário, portanto, ficava dentro do quiosque, enquanto seus fregueses se moviam e conversavam do lado de fora, isto é, nas ruas mesmo. Luiz Edmundo des creve com nojo o movimento em torno do quiosque, esta “infâmia” contra a “civilização”:
Estão os fregueses do antro em derredor, recostados, à vontade, os braços na platibanda de madeira, que sugere um balcão; os chapéus derrubados sobre os olhos, fumando e cuspinhando o solo. Cada quiosque mostra, em torno, um tapete de terra úmida, um círculo de lama. Tudo aquilo é saliva. Antes do trago, o pérapado cospe. Depois, vira nas goelas o copázio e suspira um ah! que diz satisfação, gozo e conforto. Nova cusparada. E da
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grossa, da boa... Para um cálice de cachaça há, sempre, dois ou três de saliva. A obscenidade vem depois.29
Mas esse ritual popular, obviamente inevitável, poderia pelo menos ser circunscrito às quatro paredes de um botequim, pois assim se salvariam as aparências de “civilização” da capital da República. A questão, contudo, pode ser ainda mais complexa. Ao contrário do quiosque, o botequim é um estabelecimento com uma área interna mais espaçosa, onde se encontram não só o dono e seus caixeiros e fregueses, mas também as mesas, cadeiras e estoque de mercadorias do proprietário. Este, portanto, tem de zelar pela ordem em seu es tabelecimento, do contrário verá ameaçada a integridade do capital investido no pequeno empreendimento econômi co. Restringir os hábitos populares de conversar e be bericar ao espaço interno do botequim significa, então, tornar mais explícito o antagonismo entre o pequeno proprietário e seus fregueses, transformando o primeiro num alia do mais efetivo da força policial na vigilância contínua que se quer exercer sobre os homens pobres — aqueles que devem ser submetidos à condição de trabalhadores assalariados.
Assim, Luiz Edmundo conta que, no botequim de Antônio Português, o proprietário costumava proibir os ex cessos dos “devotos de Baco” reclamando atenção e respeito e mostrando o santo no oratório.30 Em um dos proces sos analisados, dois homens começam uma briga “por rixas antigas” perto de um botequim, e o dono do estabelecimento afasta seus fregueses e fecha as portas com receio do conflito.31 Em outro processo, dois rapazes brigam por causa de namoradas. A briga é precedida de um longo ritual de provocações que tem seus episódios também no botequim da esquina, mas o conflito acaba estourando mesmo na rua. O
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dono do botequim diz altivamente que assim foi porque “não admite desordens em seu estabelecimento”.32 Os proces sos seguintes mostram ocasiões em que os donos destes esta belecimentos ou seus caixeiros tomam medidas mais enérgicas contra fregueses “de sordeiros”: ou brigam diretamente com esses fregueses, ou convocam os meganhas para auxiliálos.
O gerente de um botequim em Inhaúma, Faustino José da Silva, brasileiro, preto, de 27 anos, solteiro, escreveu de próprio punho sua defesa no processo em que era acusado de ter ferido a tiros, dentro do botequim no qual trabalhava, o freguês de nome Manoel Monteiro, português, 37 anos, casado:
Estando no botequim número trezentos e quarenta e quatro da rua Goiás [...] onde era em pre gadogerente; no dia primeiro de janeiro, do ano corrente, às sete e meia horas da noite, mais ou menos, entrou ali um homem que dizem chamarse Manoel Afonso Mon tei ro e este portandose inconvenientemente obri gan dome a pedilo que não continuasse assim; e este julgandose com direito virou a insultarme com palavras tais: “negro à toa, sem vergonha, filho da puta, safado” e lembrouse também do nome de minha mãe e ameaçandome espancar. E como não estou habi tua do à capoeiragem, nem tão pouco sou lutador e vendo que de forma nenhuma não podia me desemba raçar do meu gratuito agressor, vime forçado lançar mão do revólver e disparálo, porém, não com o fim de ferilo mas de amedrontálo. Tudo que fiz foi na minha legítima defesa e não como disse a quinta testemunha do processo (Bento de tal) e por ser ela pessoa desafeta à minha pessoa, contesteia.Alego mais: sou homem trabalhador e chefe de família (mãe e irmãs); nunca dei entrada a prisão alguma, sen
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do esta a primeira infelicidade que se dá em minha vida, pelo que espero que os beneméritos juízes que julgarem a minha causa tenham um pouco de comi seração para com a minha triste situação, pois que infelizmente não tenho ninguém por mim! [...]33
Logo abaixo deste texto e ao lado da data e assinatura do réu, lêse a observação: “Seguese exofício por ser proletário”. Não é possível descobrir se esta defesa bastante articulada do réu foi redigida sob a orientação de um advogado ou qualquer outra pessoa, mas o confronto de seu conteúdo com os outros depoimentos no processo nos esclarece bastante sobre as circunstâncias da produção social de mais este conflito. Na versão do ofendido, apoiada por outras testemunhas, o português Monteiro encontravase no dito botequim com seu sobrinho José Pereira, que era caixeiro do mesmo botequim, e ambos entraram em discussão devido a questões particulares. O preto Faustino, segundo o ofendido, dirigiuse “à sua pessoa” e “disse ser o gerente do botequim e não admitir ali discussões e mandado por ele que se retirasse que ele ofendido disselhe acharse em um estabelecimento comercial e por isso não podia retirarse”. A discussão se azedou a partir daí e culminou com Faustino sacando da arma e desfechando dois tiros contra Monteiro, que ficou ferido no pescoço.
Alguns pontos podem ser ressaltados neste episódio. Primeiro, vemos claramente que a situação de tensão se forma com a tentativa do gerente do botequim de manter a ordem no estabelecimento, procurando evitar discussões que pudessem culminar em conflitos e possíveis danos à proprie dade pela qual ele, como gerente, estava encarregado de zelar. Segundo, o conflito tem um cunho claro de rivalidade de raça e nacionalidade. Os dois pontos acima são ilustrados
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novamente na contestação que o acusado Faustino faz à teste munha Bento Pinto, português, de 24 anos, solteiro, que procura em seu depoimento incriminar mais ainda o acusado, afirmando que este teria assassinado seu patrício se ele, testemunha, por ocasião do segundo tiro, não lhe tivesse segurado o pulso, “de modo que o projétil foi se encravar numa táboa”. Faustino contesta esta testemunha, “que é seu desafeto por causa de uma repreensão que ele denunciado fez à testemunha quando esta fazia perturbação dentro da casa de negócio”. Finalmente, a estratégia de defesa de Faustino é a mais recorrente e a única cabível em casos deste tipo: dizse insultado de “negro à toa”, e procura mostrar que é, na verdade, “homem trabalhador e chefe de família”.
As rivalidades de raça e nacionalidade e o problema da manutenção da ordem num botequim também parecem estar na origem do conflito no qual o menino Adelino Fer nandes, português, de 14 anos, caixeiro do botequim na freguesia de Santana, onde se deu o crime, matou com uma navalhada no pescoço Benedito Cruz, preto, de 16 anos. O outro caixeiro do botequim, Leocádio Souza, natural do estado do Rio, de 18 anos, solteiro, narra assim o ocorrido:
[...] entrou no botequim [...] Benedito da Cruz, menor de cor preta e dirigindose a ele depoente pediulhe para o servir de parati e feijão; que depois de servido Benedito achavase um pouco alcoolizado e discutindo, ele depoente o chamou à ordem e o mandou sair, levandoo até a porta, voltando logo para o interior da casa; que logo em se guida, quando ele depoente voltou viu cair à porta um indivíduo e aproximandose reconheceu ser o referido Benedito; que na mesma ocasião o menor Licínio [...] disse a ele depoente que tinha sido o caixeiro Adelino Fernandes que com uma navalha deu um golpe em Benedito, tendo antes lhe dado um pontapé; que
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então o depoente viu logo a falta de Adelino, pelo que disse a alguns fregueses que tinha sido Adelino quem havia matado a Benedito [...], que hoje de manhã estando no botequim um moço cujo nome não sabe, lhe contou que tinha sido patrão de Adelino quando tinha armazém de molhados à rua Escobar e que ele quando seu empregado havia tido uma questão com um companheiro e com um pau quebroulhe a cabeça. Que segundo informações que tem chegado a seu conhecimento ele depoente soube que Adelino havia dito que se ele depoente o maltratasse se vingaria. Que ouviu do quitandeiro vizinho que Adelino há dias passados tinha levado uns cascudos dados por Benedito pelo que Adelino lhe disse que lhe havia de pagar.34
O acusado negou sempre a autoria do crime, dizendo haver sido outro rapaz o autor da morte de Benedito e justificando a acusação que lhe faziam pelo fato de que muitas das testemunhas eram seus desafetos. As testemunhas são quase unânimes na afirmação de que havia sido Adelino real mente quem matara Benedito, mas discordam um pouco quanto ao motivo. Uns dizem que Benedito estava “ tocado” e causava problemas, outro afirma que ele se recusava a pagar a conta e outro ainda, que Benedito se enfureceu porque os caixeiros do botequim se recusaram a lhe vender fiado dois vinténs de parati. Estas versões, na verdade, parecem ser mais complementares do que contraditórias. De qualquer forma, a origem do conflito passa, sem dúvida, pelo problema da manutenção da ordem dentro do botequim. Além disso, as rivalidades entre brasileiros e portugueses também se insinuam aqui: o depoimento do brasileiro Leocádio, transcrito acima, deixa transparecer a competição na situação de trabalho que existia entre ele e o caixeiro português de nome Adelino. Assim, Leocádio procura incriminar ao má
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ximo seu competidor na situação de trabalho, dizendo mesmo que o havia visto com a navalha com a qual teria ma tado Benedito. Finalmente, o confronto entre o preto Benedito e o português Adelino anuncia o caráter ritualista e machista dos confrontos entre estes homens: duas testemunhas afirmam que Benedito havia dado “cascudos” ou “bofetadas” em Adelino dias antes, fazendo com que Adelino “jurasse vingança”. A partir daí, detonase um ritual de provocações entre os contendores, que culmina na navalhada da noite do crime. Veremos com detalhes mais adiante por que, entre estes homens, “uma bofetada não se leva para casa”, como postula o provérbio popular.
A relação entre o proprietário do botequim e seus fregueses está longe de se caracterizar sempre pela animosidade. A posição do proprietário do botequim é um tanto ambígua: por um lado, sua condição de proprietário fundamenta um antagonismo básico entre ele e seus fregueses, mas, por outro lado, ele fazia parte do mundo dos populares, comparti lhando sua visão das coisas e assimilando seu código de conduta. Tanto é assim que o botequim é quase sempre o ponto de abrigo preferido de populares que procuram escapar à ação dos meganhas ou de outros quaisquer agressores. Um carpinteiro, por exemplo, brigou com um companheiro por causa de uma grosa, acabou agredindo seu oponente e correu para se esconder na “venda de Tupinambá”.35 Já Vítor Fer nandes descia uma estrada a cavalo quando foi interceptado por um grupo de homens. Receoso de ser assaltado, disparou tiros contra o grupo e se refugiou num botequim das redondezas.36 E mesmo Maria, perseguida implacavelmente por um examásio muito ciumento, correu para um botequim e se colocou sob a proteção dos homens que lá estavam.37 Outros exemplos surgirão ao longo da narrativa.
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Pode chegar a haver mesmo uma relação bastante estreita de solidariedade entre o dono do botequim e alguns de seus fregueses. Assim, por exemplo, José Maria Couto, brasileiro, de 33 anos, casado, era dono de um botequim na Cachoeira da Tijuca.38 Entre seus fregueses estava Apolinário José Soa res, brasileiro, de 33 anos, solteiro, analfabeto, carpinteiro. Segundo diversas testemunhas, era público e notório que o dono da taverna “protege a Apolinário a quem até já empres tou dinheiro para encarreirar a sua vida”. Numa noite de agosto de 1905, no entanto, Apolinário disparou um tiro de espingarda no botequim de Couto e foi acusado de tenta tiva de assassinato contra seu amigo. As versões sobre o ocor rido são as mais contraditórias possíveis. O acusado diz ape nas que estava completamente bêbedo e que de nada se lembrava, reafirmando ainda sua longa amizade com o suposto ofendido. No interrogatório na delegacia, logo após o crime, as testemunhas são unânimes em acusar Apolinário de tentativa de assassinato. Na pretoria, porém, algumas semanas depois, as versões são bastante contra di tórias: duas das teste munhas, Pimenta e Narciso, mantêm suas declarações anteriores, mas são identificadas por outras testemunhas como inimigas do réu e interessadas em sua condenação; as demais testemunhas, contudo, afirmam ago ra que Apolinário havia disparado o tiro para o teto, por brincadei ra, e que o fato não poderia terse dado de outra forma, já que o acusado era amigo do suposto ofendido e, além dis so, era homem “morigerado e trabalhador”. Uma das tes temunhas favoráveis a Apolinário vai ainda mais longe, sugerindo que suas de clarações na delegacia foram distorcidas pelos policiais para prejudicar o réu: diz Fernandes, brasileiro, de 19 anos, caixeiro do botequim de Couto, que “pelo pre sente retifica o seu depoimento tomado na dele
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gacia de polícia, o qual malgrado seu não é completamente a expressão da verdade”.
As diferentes versões sobre o episódio em questão levan tam uma série de problemas em relação ao caráter profun damente político tanto da produção social dos conflitos no botequim quanto da produção social do próprio pro cesso criminal. Inicialmente, temos um núcleo de fatos incontestáveis que são comuns a todas as versões: Apoli ná rio, o acusa do, realmente disparou um tiro de espingarda dentro do boteco de Couto. Daí por diante, as versões pro duzi das — to das socialmente verossímeis e, portanto, obviamente relevantes para avançar nossa compreensão do real vivido por nos sos personagens — são como que armas utilizadas por es sas pessoas num jogo de poder que abarca diversos níveis do real. No nível da comunidade local, do gru po de vizi nhança que girava em torno do botequim do Couto, notamos em parte a dinâmica interna de funcionamento destes pequenos grupos: os depoimentos contraditórios re ve lam o conflito político cotidiano como parte fundamental da dinâmica de produção e reprodução desses microgrupos sociocultu rais. Vemos também a posição ambígua do dono do bote co: separado de seus fregueses pela sua con dição de pe queno proprietário, está intimamente unido a eles pelas relações pessoais.
Na suspeita de fraudes e distorções nos depoimentos na delegacia, vemos o antagonismo fundamental desta sociedade expresso na relação entre o aparato policial — representante dos donos do dinheiro e empenhado em “produzir” crimino sos para “mostrar serviço” — e os homens pobres urbanos em questão. Este antagonismo se revela da mesma forma se pensarmos que é também provável que a facção local ligada a Apolinário tenha distorcido os fatos para tentar inocentar o acusado. É em geral difícil — mas não de todo
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impossível — perceber em cada processo em que direção ocorrem as distorções de maior peso; no entanto, seria ilusório pensar que do maior ou menor sucesso deste empreendimento de detetive dependesse toda a validade da análise: fraudes poli ciais ou “armações” de grupos locais para inocentar algum de seus membros de atos “crimináveis” do ponto de vista dos poderosos são duas expressões contraditórias, mas não excludentes, do antagonismo fundamental da sociedade carioca no período em questão — não custa repetir, a relação trabalho assalariado versus capital. E, mais ainda, o procedi mento sistemático dos juízes das pretorias de checar a veracidade das declarações anotadas nas delegacias e o expediente comum de advogados de basear as defesas dos réus em supos tas fraudes policiais revelam a dimensão profundamente po lí tica da dinâmica de funcionamento interno do próprio aparato jurídicorepressivo. Retomaremos estes últimos pon tos com detalhes logo adiante.
[...] Lá vem meganha!Meganha sempre foi o guarda de polícia. Anos antes chamavamno morcego, matacachorro.Se há quem fuja gritando, há, também, sempre, quem, gritando, chegue pelo largo e proteste contra a ação policial em berros fortes:— Não pode!Não pode! Esse brado incontido, sincero e muitíssi mo do tempo, não falta nunca onde existem, de uma parte a autoridade, a idéia do poder constituído e da outra parte, o povo na hora em que rebenta algum conflito.É justa, por acaso, a autoridade ou exorbita? Isso não vem ao caso. Berrase sempre. Berrase forte. Berrase sem cessar:— Não pode!
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Até parece que, no subconsciente do que protesta, trabalham os gritos sopitados dos tempos da colônia, quando era crime e dos piores, erguer, mesmo de manso, a voz contra a injustiça de elRei ou a autori dade real. Não pode! Alívio do imo peito, desafogar de corações!Apenas (muito guarda, afinal, o subconsciente) se o homem que representa o arbítrio do poder, que nos corrige, a autoridade, enfim, que tem seguro, pelo gasganete, o homem que delinqüiu num assomo de mando e prepotência, como a indagar, e, em resposta ao que grita — Não pode! pergunta por sua vez: — Que é que não pode? logo a gentalha estaca, e os que a compõem calamse, submissos, quando um não se sai com esta, acobardado, solícito, explicando: — Não pode é largar o homem [...].39
Este trecho de Luiz Edmundo nos coloca diante do problema da relação entre populares e meganhas nas ruas da cidade do Rio de Janeiro nos primeiros anos do século XX. Como já foi mencionado anteriormente, o aparato policial tem um papel fundamental a desempenhar neste momento de tentativa de imposição de uma ordem burguesa na sociedade carioca do período: sua função é ao mesmo tempo de vigilância — na medida em que deve zelar pela disciplina da força de trabalho — e de repressão direta — na medida em que deve espancar e arremessar ao xilindró todos aqueles que se negam a se sujeitar às picaretas demolidoras da prefeitura ou à condição de trabalhadores assalariados. A narrativa de Luiz Edmundo sugere que a atitude dos populares em re lação aos meganhas combinava resistência e submissão. Mas esta combinação necessita de algumas qualificações: a atitude inicial e predominante é de resistência e insubmissão, sendo o grito de protesto — “Não pode!” — “sincero e muitíssimo do tempo”. O autor explica ainda a situação final de aparen
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te submissão como resultado de um condicionamento longamente arraigado no subconsciente desses populares — desde “os tempos da colônia” — e segundo o qual o protesto contra a autoridade era crime bastante grave, que demandava séria punição. O que o trecho de Luiz Edmundo parece sugerir, contudo, é um alto nível de racionalidade desses pobres urbanos em seus confrontos com os meganhas: em princípio e por princípio, a atitude deve ser de resistência, de tentativa de obstaculizar, ou pelo menos moderar, a ação policial; no entanto, não se perde a noção de que se está geralmente diante de situações em que as relações das forças em jogo são desfavoráveis aos populares — afinal, são os meganhas que, por via de regra, estão mais bem armados e sempre dispostos a conduzir “desordeiros” para as delegacias.
Esta interpretação do trecho de Luiz Edmundo talvez resuma em linhas gerais o que se tentará argumentar a partir da análise dos processos criminais que tratam dos confrontos entre membros da classe trabalhadora e policiais nos botequins e nas ruas da cidade. Assim, Antônio Sebastião da Cruz, natural da capital federal, de 21 anos, casado, sabendo ler e escrever, praça de polícia, presta as seguintes declarações no processo em que era acusado, junto com outro praça de polícia, de ter assassinado com dois tiros Justino de Queiroz, que se declarou francês, de 22 anos, solteiro, operário:
[...] estando de patrulha a rondar viu um grupo consti tuído de seis indivíduos em grande algazarra sendo que um dos tais indivíduos além de proferir obscenidade ao passar um bonde expunha o membro viril a quem quisesse ver, ofendendo assim à moral pública; que o de poente acercouse do grupo para admoestálo, mas foi recebido com grande vaia; que à vista disso pren deu o indivíduo que mais se salientava e por esse fato se viu
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envolvido e bem assim seu companheiro de pa tru lha, por todos eles do grupo que se dispunham a agredir ao depoente e seu companheiro e deram fuga ao preso; que foi nesse momento então que para atemo rizar os desordeiros dispararam ambos um tiro para o ar e feriram ao homem que se punha em fuga e que fo ra tirado das mãos dele depoen te e seu companheiro.40
Obviamente, a versão do grupo de rapazes é um tanto diferente. Para Justino, por exemplo, a ordem de prisão dada pelos guardas ocorreu “sem que para isso houvesse motivo”. Disse ainda que “protestou” porque viu “que era injusta a prisão”. Outros membros do grupo dizem apenas que seu companheiro, premido por necessidades inadiáveis, en costarase a um muro e puserase a “verter água” — isto é, a urinar —, mas os meganhas chegaram quando o rapaz estava no meio do ato e o repreenderam aos gritos. Os guar dascivis teriam recebido, logicamente, uma estrepitosa vaia e, irritados com tamanha afronta, deram voz de prisão ao rapaz que come tia o “delito”. O jovem Justino, no entanto, reagiu, dizendo “que não podia ir preso pois que não tinha cometido falta”, ao que o guarda Antônio replicou simplesmente: “Não quero conversa, siga em frente” e, ato contínuo, despencou algumas bordoadas em Justino. Os outros jovens do grupo e populares que já se juntavam no local protestavam dizendo ao guarda: “Não pode dar no homem”. Nesse ínterim, o preso aproveitou um instante de distração dos guardas e saiu em desabalada correria. Os guardas empunharam seus revólveres e abriram fogo contra Justino, que veio a fale cer semanas depois devido aos dois tiros que lhe acertaram.
Um imigrante português, dono de botequim em São Cristóvão, onde se deu o fato, ficou chocado com a violência da cena e exclamou: “Isto é uma barbaridade, não estamos
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em um país de anarquistas!” Lembrando sem dúvida de tempos idos em sua terra natal e expressando de certa forma suas preferências políticas, a frase do português parece captar também o significado da ação da autoridade policial para estes homens pobres: a autoridade legitimada pelo Estado é repressiva, não oferece possibilidades de barganha e, principalmente, em nome do estabelecimento da ordem, de sordena e confunde o mundo dos humildes. Sendo assim, os conflitos cotidianos destes homens encontram apenas duas saídas possíveis: a privatização ou a repressão.41 A pri vatização significa que os conflitos serão resolvidos de acordo com regras de comportamento próprias do grupo socio cultural em questão, ou seja, os conflitos serão resolvidos no nível dos elementos ordenadores das relações pessoais do cotidiano, pois não se dá a estes homens a opção da mediação do Estado — cuja repressão ou violência legal deve ser evitada e resistida sempre que possível.
O processo seguinte exemplifica de forma magnífica esta desconfiança dos populares em relação à autoridade constituída. Oscar da Silva, vulgo “Mulatinho”, de 30 anos, casado, servente do Desinfectório Central de Higiene, tivera havia dias, segundo ele, “uma pequena discussão” com Paulo dos Santos, vulgo “Jaguarão”, preto, de 23 anos, solteiro, embarcadiço. Ambos passaram então a trocar ameaças, até que se encontraram na Ladeira de Paula Matos, na freguesia de Santo Antônio, e, após se desafiarem, Mulatinho levou a melhor, acertando três tiros em Jaguarão. Depois dos dis paros, cada contendor correu para um lado, sendo que Ja guarão, ferido sem muita gravidade, refugiouse na venda de João Batista. Um velho e conceituado morador do local, José Augusto Vinhaes, natural do estado do Maranhão, de 50 anos, viúvo, capitãotenente reformado da armada,
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“atualmente chefe do serviço Marítimo das obras do porto”, ouviu os tiros e resolveu chamar os brigões para uma conversa, que relata da seguinte forma:
[...] que conhece há muito tempo o denunciado e ofendido por serem moradores há longos anos ali, chamouos a fim de inquirir do que havia, acudindo o mesmo do seu chamado [sic], desceu à porta da rua e perguntou ao acusado presente o que havia e quem tinha dado os tiros; que o acusado declarou que não tinha sido ele quem dera os ti ros, protestando Ja gua rão que sim e que tanto era verdade que ele Jaguarão se achava ferido [...]; que ele testemunha e nesse ato, revistou o acusado presente, nada tendo encontrado como arma; que nesse ín terim apareceu no alto da ladeira um guardacivil, o que fez com que o acusado presente fugisse [...].42
A cena se passa no meio da rua, sob a vista dos moradores do local, e mostra, portanto, que os contendores — membros do mesmo grupo de vizinhança — aceitaram a mediação de um indivíduo que gozava de prestígio nas redondezas, mas a che gada do guardacivil — encarnação da autoridade extrínseca ao grupo e vista como essencialmente repressiva — motiva a tentativa de fuga do acusado.
Os três processos seguintes mostram que o antagonismo latente entre o dono do botequim e seus fregueses, assim como as contradições inerentes a esses microgrupos socioculturais — por exemplo, as rivalidades de raça e nacionalidade —, dei xam brechas importantes para uma ação mais efetiva do apa rato policial. Antônio de Almeida Pinto, português, 37 anos, solteiro, negociante, presta declarações sobre um conflito ocorrido dentro de sua venda, na freguesia de Inhaúma:
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[...] que achavase ele depoente dentro de sua venda, quando aí en traram três indivíduos já alcoolizados, pedindo parati, que sendo, porém, hábito dele depoen te, não servir indivíduos alcoolizados, re cusouse a servilos, daí originando discussão entre eles, isto é, di ri giramse eles, de modo insultuoso ao declarante, chamandoo de ga lego, sacana, miserável, e outros nomes injuriosos; que a praça de ronda, o acusado pre sente ouvindoas, chegou à porta da venda e dirigindose aos indivíduos chamouos à ordem, dizendo que não que ria palavradas, retirandose em seguida, para defronte à venda; que os três indivíduos ainda fi caram na venda alguns instantes, saindo depois, os três juntos; que minutos após, ele declarante que se acha va dentro do balcão ouviu o estampido de três ou quatro tiros, pelo que, levado pela curiosidade, chegou à porta da venda, onde viu então, a vítima cambalean do cair e junto à mesma o acusado, empunhando um revólver; que achavamse também junto à praça os dois compa nheiros da vítima; que os indivíduos a que se tem referido ele decla rante os conhece de vista sabendo por isso que eles se chamam Paulo, Alfredo e Au gusto, que foi o vitimado; que sabe serem estes indiví duos ébrios habituais, por freqüentarem assi duamente seu negócio; que não pode afirmar se o acusado agiu em defesa própria , parecendolhe porém, que só levado por esse sentimento podia ter usado do seu revólver [...].43
Paulo, Alfredo e Augusto, os “ébrios” e “desordeiros” em questão, eram brasileiros. Paulo tinha 26 anos e era pedrei ro, Alfredo tinha 39 anos e era pintor, e Augusto, o ofendido, era um pardo de 35 anos, companheiro de trabalho de Paulo no ofício de pedreiro. Além de Antônio Pinho, o negociante que prestou as declarações acima, havia dois outros portugueses entre as testemunhas, e o próprio acusa do,
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o praça de polícia Roberto Ozório, era português naturalizado brasileiro.
Diversos elementos já enfatizados anteriormente aparecem combinados neste episódio. Primeiro, temos o antagonismo entre o dono do botequim e seus fregueses, representado, na versão do pequeno proprietário, pela recusa deste em servir “indivíduos já alcoolizados”, refletindo assim sua preocupação em manter a ordem dentro de seu estabelecimento. Na versão de Paulo, Alfredo e Augusto, no entanto, a discussão com o dono do boteco se deu porque este se recusava a vender fiado a seus fregueses. Segundo, vemos que o problema do negociante português com seus fregueses brasileiros se entrecruza com rivalidades de raça e nacionalidade. Os depoentes de nacionalidade portuguesa dizem que os três brasileiros faziam “algazarra” no botequim e defendem o meganha, também seu patrício, afirmando que este agira em legítima defesa. Terceiro, os brasileiros confirmam tanto a discussão com o dono do botequim, apesar de a justificarem de forma diferente, quanto a troca de provocações e, finalmente, o conflito com o meganha. Paulo relata que seu companheiro Augusto, o ofendido que acabou fale cendo devido aos ferimentos, teria comentado em voz alta, para provocar o praça de polícia: “[...] o governo não tinha dinheiro e no entanto pagava tantos vagabundos para estarem em pé, nas esquinas”. De acordo com Alfredo, Paulo teria ficado muito revoltado com a agressão do meganha, dizendo “que este matara seu companheiro covardemente, quando ele pedia que não atirasse sobre o mesmo [...] [e] que se tivesse um revólver teria feito ao acusado o mesmo que este fizera ao seu companheiro”. O fato de Augusto ter provoca do o meganha chamandoo de “vagabundo” — um termo usado habitualmente contra homens pobres como Augusto e seus
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companheiros — é interessante, na medida em que mostra quanto a aplicação destes rótulos sociais está vinculada às relações de poder na sociedade em questão, e não às qualidades intrínsecas das pessoas “presenteadas” com tais rótulos. Finalmente, suspeitase aqui de algumas distorções dos policiais nas declarações anotadas, no sentido de diminuir a gravidade ou mesmo justificar a agressão do praça Ozório. As declarações dos portugueses na pretoria não são tão uniformemente favoráveis ao réu quanto as feitas na delegacia, apesar de confirmarem em linhas gerais os problemas que teriam sido causados pelos brasileiros no botequim. Um desses portugueses, por exemplo, negociante vizinho ao local do crime, teria declarado na delegacia que apenas ouvira os tiros, chegando depois ao local, afirmando ainda que vira que Augusto estava armado de um cacete na ocasião; já na pretoria, o mesmo depoente afirma “ter sido o acusado o autor da morte de Augusto por ter visto o mesmo dar o tiro” e que não vira cacete algum na mão do ofendido. Também há contradições no mesmo sentido no depoimento de Antô nio Pinho: ele afirma na pretoria que ouvira do acusado a con fissão do crime. O outro português disse na pretoria, a favor do ofendido, que o conhecia havia alguns meses e que “nunca o vira metido em desordens”. O acusado contestou na pretoria todas estas afirmações das testemunhas de nacio nalidade portuguesa.
Estas várias versões para o episódio, ora complementares, ora contraditórias, ilustram mais uma vez os múltiplos aspectos da realidade social que podem ser percebidos por meio da leitura de processos criminais. Nos autos em questão, diversas versões confirmam aspectos que temos visto repetidos em muitos processos: a questão da manutenção da ordem no botequim e sua articulação com a atuação dos
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me ganhas; o hábito de resistência aos meganhas por parte de populares; as rivalidades de raça e nacionalidade entre mem bros da classe trabalhadora e entre estes e pequenos pro prietários; e, finalmente, aqui se insinua novamente a prá ti ca dos policiais na delegacia de distorcer ou forjar declarações quando estão diretamente interessados no res ultado do inquérito. Sobre este último ponto, notase ainda que no caso em questão as possíveis distorções nos depoimentos anotados na delegacia são no sentido de maximizar a gravidade do conflito entre os portugueses e brasileiros no bo tequim, de modo a justificar a ação violenta do me ganha neste contexto. Assim, portanto, a própria manipulação pos sivelmente feita na delegacia produz uma versão verossímil sobre o episódio em questão, pois, como já vimos amplamente, os conflitos relacionados a rivalidades de raça e nacionalidade são uma característica comum no cotidiano das classes popu lares do Rio de Janeiro no início do século XX. Em seus próprios atos violentos ou fraudulentos, portanto, a polícia revela o conhecimento prático que possui sobre a realidade social na qual atua e, conseqüentemente, as “mentiras” ou “armações” assim produzidas também são altamente relevantes para o historiador da classe trabalhadora.44
No processo seguinte, “um desconhecido”, homem preto de 35 anos presumíveis, é acusado de “desordeiro” e acaba sendo morto num botequim da freguesia de Santana pelo meganha Bruno Melo, branco, pernambucano, solteiro, de 23 anos. O acusado Bruno conta que estava de ronda na Rua Santo Cristo quando
chamou a atenção de um indivíduo desconhecido de cor preta, a quem intimou para vir a esta Delegacia por haver ferido com uma faca, que ainda trazia na mão, a um indivíduo que estava em um botequim da rua San
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to Cristo, produzindolhe um corte no nariz; que, então, o dito indivíduo, com muita dificulda de entregoulhe a faca com que estava armado e nesta oca sião, com toda a brandura o depoente fezlhe ver que de via vir para esta delegacia, o que não conse guiu; que o dito indivíduo atracouse ao depoente, lu tando e neste momento conseguiu tomarlhe a faca, desar man doo do sabre que trazia; que conseguindo esca parse de suas mãos, feriuno na mão esquerda com a dita faca e procurou conservarse a pequena distân cia; que, então, atirou a faca ao chão e lhe disse “bas ta o fa cão para arrancarte a vida e picarte” e, resoluta mente, avançou para o depoente, com o sabre em pu nho, no intuito firme de matálo; que, nesta ocasião, o declarante viuse na contingência de lançar mão do seu revólver, dando dois tiros para o ar, a fim de ame drontálo; que, a despeito disto, o seu agressor não se intimidou e mais resolutamente avançou novamente para o depoente, que deu mais dois tiros, agora, sobre o seu agressor, indo um dos projéteis alcançálo na cabeça, fazendoo cair morto instantaneamen te; que matou o dito indivíduo em legítima defesa; [...] que o depoente, depois de ter dado o último tiro e morto o seu agressor, ouviu uma salva de palmas que lhe foram dadas pelas famílias do local e demais pessoas que se achavam aglomeradas naquele local [...].45
O meganha Bruno, com certeza, não era tão angelical quanto tenta transparecer nesta sua conveniente versão do as sassinato que cometeu. Contudo, alguns pontos básicos de seu depoimento, como a resistência do preto desconheci do, os dois tiros iniciais apenas para amedrontar o oponente e a salva de palmas que teria recebido de populares pre sen tes por sua ação contra o “feroz” inimigo também constam das versões de di versas testemunhas tanto na delegacia quanto na pretoria. Entre estas testemunhas que corroboram a versão do acusado e postulam a “perversida de” — ou
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in submissão — do ofen dido, temos cinco portugueses e um italia no, sendo que, desses seis estrangeiros, quatro eram pe quenos proprietários estabe lecidos na rua onde se deu o crime. Dessa forma, o antago nismo entre estes pequenos proprietários e seus fregueses combinase com preconceitos de raça e nacionalidade para de terminar que estas testemunhas ofereçam versões do crime do meganha Bruno que levariam com certeza à sua absolvição.
Mas provar que Bruno matou o preto desconhecido em legítima defesa não foi tão simples assim. O juiz percebeu que existia uma clara contradição entre a autópsia e a prova teste munhal. De acordo com a autópsia, o ofendido havia levado quatro tiros; portanto, não podia ser verdade que os dois pri meiros tiros disparados pelo acusado tivessem sido para o alto, sem o intuito de ferir a vítima, como declaram as testemunhas referidas e o próprio acusado. O juiz, então, percebe que houve algum tipo de “armação” nos autos — que teria ocor rido, é óbvio, entre os depoentes estrangeiros, em sua maioria pequenos proprietários, e os policiais — e resol ve pronunciar o réu. A vítima, no entanto, não viveu para ofe recer uma outra versão para os fatos, e o júri acatou o argu mento de legítima defesa, absolvendo unanimemente o meganha.
Em outro processo, o sargento da força policial Joaquim Frei tas, baiano, de 29 anos, casado, tenta acabar com uma discussão dentro de um botequim, mas termina por irritar o preto Honório de tal, de 30 anos, que repele a intervenção do meganha e acaba levando um tiro deste. Joaquim Nogueira, português, de 22 anos, solteiro, empregado no bote quim de um seu patrício na freguesia do Espírito Santo, onde se deu o crime em questão, narra como se formou mais este “rolo”:
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[...] servia [...] a freguesia no botequim [...] onde é em pregado, quando entrou um fuzileiro naval e sentandose a uma mesa pediu café; que na ocasião em que atendia ele testemunha ao fuzileiro, entrou um preto, que mais tarde ele testemunha soube chamarse Honório e começou a provocar o fuzileiro, diri gin do lhe mesmo alguns insultos; que no meio da discussão Honório tirou o gorro do fuzileiro e o inuti lizou, dizendo que isso fazia para que ele pagasse oito mil réis ao corpo; que continuando Honório a dirigir insultos ao fuzileiro e em altas vozes, foise reunindo muita gente, até que chegando o acusado presente [...] a ele dirigiuse com o intuito de acalmálo, mas Ho nó rio dizendo que não o conhecia como homem, deulhe uma cabeçada e sacando de uma faca investiu contra o acusado.46
Aqui, como no processo anterior, estavam presentes no botequim cinco portugueses, entre eles o caixeiro Joaquim Nogueira, e todas estas testemunhas prestam depoimentos bastante semelhantes, explicando o crime a partir da conduta do preto Honório e afirmando que o meganha agira em legítima defesa. O relatório do delegado é inteiramente favorável ao acusado, e o advogado de defesa se refere a Honório como “desordeiro temido e assaz conhecido nos anais do crime como facinoroso”. O ofendido Honório sobreviveu aos ferimentos recebidos, mas suas declarações não constam dos autos. Desta vez, como não há aparente contradição entre o conteúdo dos depoimentos e os laudos técnicos, o juiz absolve o sargento sem mandálo a júri.
Um editorialista do Correio da Manhã escreve em 26 de janeiro de 1905:
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A falta de confiança na imparciali dade da Jus tiça é, não há duvidar, um sentimento profundamente enraizado na alma popular. Os tribunais são considerados, geralmente, o inferno dos pobres e humildes, que encaram a má solução dos seus pleitos e dos seus processos como re sul tância pura e simples da miséria e da ausência de proteção .47
Este sentimento de desconfiança dos populares em relação à Justiça era sem dúvida bastante profundo e generalizado, especialmente num período de rápidas e violentas transfor mações urbanísticas. Havia a consciência clara de que “não eram bons os negócios com a justiça”, e este sentimento, apesar de raramente expresso em palavras, é facilmente percebido por certos atos de nossos personagens.48 Era comum tentar escapar de todas as formas ao inconveniente de ter de ir prestar declarações sobre uma ocorrência na delegacia. Maria Amélia, por exemplo, caminhava em direção à sua casa e “quando entrava no começo da rua, um moço de cor branca, que não conhece, aconselhou a ela declarante que não passasse no local do crime, pois o homem havia morrido e que ela declarante podia ser incomodada pela polícia, que a chamaria como testemunha”.49 Além disso, é raro o processo no qual as autoridades judiciárias conseguem reinquirir todas as testemunhas arroladas no inquérito ou flagrante policial. Muitos processos rolam durante meses nas pretorias simplesmente porque as testemunhas arroladas não são encon tradas nos endereços dados e não podem ser localizadas para depor.50 Ficase com a impressão, na verdade, de que a polícia tem muitas vezes de levar as testemunhas para a delegacia praticamente presas junto com o acusado.51
Há, no entanto, de se fazer uma certa distinção entre a violência judiciária e a policial. A primeira é uma violência
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mais racional e contida, proveniente da tentativa de aplicação de leis criminais elaboradas para a perpetuação de um determinado tipo de dominação de classe. No entanto, como este corpo de leis é concebido pelas autoridades judiciárias como expressão dos interesses de toda a sociedade, os magistrados não se concebem geralmente como pontasdelança de dominação de classe. De qualquer forma, a violência do judiciário sobre os homens pobres se distingue claramente da violência policial, pois esta é mais abusiva e muitas vezes corporal.52 É assim, portanto, que vemos com freqüência, como já foi indicado, que o interrogatório do juiz na pretoria visa não só ao esclarecimento do crime em questão como também a uma certa fiscalização sobre o procedimento dos policiais no inquérito.
Na consciência popular, portanto, a desconfiança em relação à autoridade não se exprimia tanto por uma percepção de que as leis eram feitas para garantir os privilégios de uns poucos, mas sim pela constatação prática de que a autori dade mais visível, o meganha, estava nas ruas e nos botequins da cidade para reprimir os homens pobres, e não para arbitrar seus conflitos. A violência policial parecia tão generalizada e desmesurada na cidade do Rio de Janeiro na primeira década do século XX que é impossível subestimar o papel do aparato repressivo policial enquanto elemento constitutivo essencial da estratégia de formação de um mercado capitalista de trabalho assalariado.
Assim, o Correio da Manhã, jornal oposicionista no período — com uma postura explícita de crítica às “oligarquias” —, lançase no ano de 1905 numa campanha sem tréguas contra as “arbitrariedades policiais”. O jornal publica notícias seguidas de violências policiais, sob títulos como “Desumanidade”, “Autoridade arbitrária”, “Polícia que es
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panca”, “Tiros contra o povo” etc. e denuncia a ocorrência de prisões ilegais e torturas contra presos nas delegacias sob forma de fome, sede e, obviamente, espancamentos.53 As críticas mais diretas eram feitas contra o chefe de polícia no período, o sr. Cardoso de Castro, pejorativamente chamado de o “neurastênico Cardosinho”. O trecho abaixo, por exemplo, é parte da introdução “moralizadora” de uma notícia de violência policial:
Não raro têm os jornais a registrar espancamentos de po bres indivíduos, criminosos ou não, que caem no de sagrado de qualquer cafajeste guindado à altura de auxiliar do Cardosinho.Entretanto, tais fatos não devem admirar. O chefe de polícia sancionaos, o ministro da justiça aplaudeos, o Sr. Rodrigues Alves “não quer incomodarse”. E vão o che fe, delegados, suplentes, inspetores, agentes, guardacivis espancando à vontade e a quem bem lhes parece.Os heróis da façanha policial que hoje nos ocupa são dois agentes e a vítima um homem morigerado, português e trabalhador [...].54
Estas breves observações, portanto, fornecem um contexto mais adequado para a compreensão das práticas comuns nas delegacias de forjar ou distorcer depoimentos de testemunhas, assim como a sua contrapartida, isto é, a práti ca de populares de prestar declarações articuladas no sentido de desagravar ou inocentar um companheiro. Os processos seguintes mostram casos mais extremados do que os comentados até aqui desta luta contínua entre policiais e po pulares. De um lado, temos processos que mostram claramente a rivalidade existente entre policiais e indivíduos com antece dentes criminais ou tidos como desordeiros, o que acaba ensejando práticas policiais de prisões arbitrárias
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e forjamento de flagrantes e inquéritos. Por outro lado, temos processos que mostram companheiros de um determinado grupo de vizinhança superando possíveis rivalidades internas e se po si cionando unanimemente no esforço de livrar um companheiro das mãos dos meganhas ou das malhas da justiça.
Muitas vezes, a ação contínua de vigilância e repressão do aparato policial acabava criando rixas sérias com membros de um determinado grupo de vizinhança. Tornavamse comuns, então, a troca de provocações e os eventuais conflitos entre os meganhas da delegacia local e os rapazes das re dondezas. Assim, por exemplo, num domingo de julho de 1906, dia de festa de são Pedro, ocorre um conflito entre policiais e um grupo de rapazes na freguesia de Santana. João José da Silva, conhecido como “João Vagabundo”, bra sileiro, de 26 anos, solteiro, operário, dá sua versão dos fatos:
[...] que quase próximo à rua da União [...] foi alveja do por um tiro de revólver contra ele declarante dis pa rado por João Ferreira da Silva, praça de força poli cial, que nessa ocasião vinha à paisana, isto às quatro horas da tarde cujo tiro atingiulhe a virilha direita; que na ocasião em que foi alvejado pelo tiro vinha conversando com outros, a respeito mesmo da dita praça agressora, que antes, na festa de Santo Cristo, havia portadose inconvenientemente com suas provo cações; que a mesma praça antes de vi timarlhe já ou tros tinham também sido vítimas de sua sanha; que João Ferreira da Silva é seu desafeto por questões que ig nora, porquanto já por muitas vezes o tem ameaçado de morte, embriagandose até para pro vocálo [...].55
O meganha, obviamente, devolve as acusações de João Va gabundo, dizendo que este o perseguia havia muito tem po
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e que já o havia até agredido a tiros meses antes. João Vagabundo é acusado ainda de chefe de “um grupo de desordeiros”, e os outros depoimentos do processo sugerem que o conflito não se deu apenas entre o meganha e João Vagabundo, e sim entre dois grupos de indivíduos chefiados por estes dois acusados. Um inspetor de polícia explica
que ele testemunha soube ter havido grande conflito e muitos tiros de revólver [...] tiros esses que não lhe disseram terem sido unicamente disparados pelos acusados presentes; que na sua qualidade de autoridade policial ele testemunha pode afirmar que em Santo Cristo e adjacências quando se dá uma luta entre duas pessoas daí sempre essa luta é generalizada pela intervenção no conflito de outras pessoas.
Em outro processo, policiais prendem um indivíduo “por desconfiarem que [...] era um dos malandros a quem eles sempre procuram para prender”.56 Na verdade, o tal in divíduo, chamado Malaquias, era um velho conhecido dos policiais da delegacia da freguesia de Santa Rita, já tendo cum prido pena por roubo e ofensas físicas cometidas na quelas redondezas. Os policiais dizem que Malaquias dis parou contra eles sem motivo algum; Malaquias afirma exatamente o oposto. Na verdade, o caso parece uma ingênua “armação” dos policiais: os depoimentos anotados na delega cia são quase que rigorosamente idênticos, com todas as testemunhas afirmando que viram Malaquias cometer o crime. Já na preto ria, as declarações são mais matizadas, com a maioria das testemunhas que não eram também policiais declarando que apenas ouviram os tiros. O acusado foi absolvido no júri.
Estas arbitrariedades e violências policiais, quando manipuladas por um hábil advogado de defesa, acabam condu
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zindo facilmente à absolvição dos acusados. O trecho seguinte é de uma defesa de um rapaz que se havia envolvido em um conflito na porta de um clube, depois de uma festa que havia varado a noite. O rapaz parecia ter alguns recursos e pôde contratar um bom advogado, que se utilizou da má reputação da polícia para desmoralizar debochadamente as provas contra o réu contidas no flagrante policial, obtendo assim uma fácil e unânime absolvição de seu cliente no júri.
As testemunhas todas, numa unanimidade que surpreenderia se não fosse cotidiana a desmoralização dos flagrantes policiais, proclamam a falsidade do flagran te do presente processo, e a pretensa prova do alve ja mento da pseudovítima José Constantino da Silva. José Constantino da Silva, que o flagrante das fls. quis à força fazer passar por ofendido, é o próprio a der rocar o castelo infirme, a escangalhar a igrejinha policial![...] os tiros desferidos pelo Alferes Nelson Lyrio, o foram para o ar, com o cano de revólver voltado para cima. Ora, é óbvio que só poderia haver tentativa de homicídio em tal caso, se algum aeronauta passasse àquela hora matutina por sobre as cabeças do jovem acusado e do grupo palestrador de que falam os autos [...].Examinemos a prova do processo. Não consideraremos tal o pândego flagrante, destruído inteiramente pelo sumário de culpa; este é que é a prova, e só quando ele confirma e ratifica o flagrante, é que pode ter alguma importância. Se o flagrante fizesse prova judi cial, seria desnecessário procederse a sumário de cul pa; em tal hi pótese, ai dos acusados! ninguém escapa ria: a mão do escrivão a escorregar na mesma toada pelo alvo e passivo papel, que — coitado! — aceita o que se lhe deita, e todos — acusados e testemunhas; como dóceis carneirinhos, a assinarem os monótonos, probantes e iguais depoimentos saídos da cachola do escrivão policial! Que horror! Não haveria ninguém, ninguém que escapasse.
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A Casa de Correção regor gitaria de gente, o Estado não ganharia para alimentar e alojar os milhões de condenados [...].57
Talvez o nosso advogado exagere um pouco as “façanhas” policiais na ânsia de obter a absolvição de seu cliente, mas com certeza comete um engano ao generalizar a atitude de populares envolvidos em processos na condição de testemunhas e acusados como sendo sempre a atitude de “dóceis carneirinhos”. As evidências, na verdade, são abundantes no sentido diametralmente oposto. Testemunhas e acusados não hesitam em denunciar na pretoria que suas declarações foram adulteradas na delegacia, ou que foram ameaçados e espancados para prestar declarações que não desejavam ou confessar crimes que não cometeram. Casos deste tipo são nu merosos e se, por um lado, confirmam a ocorrência generalizada de violências policiais, por outro, a virulência das denúncias também é reveladora do rancor popular em relação à autoridade policial. Antônio Riachuelo, baiano, pre to, de 29 anos, viúvo, cocheiro, conta na pretoria que cami nhava por uma rua da freguesia de Santana quando viu, próximo a um botequim, “um agrupamento de populares e várias pra ças de polícia”. Sem dúvida levado pela curiosidade, aproximouse
e por essa ocasião acercouse dele informante um anspeçada da Força Policial que o convidou para ir à delegacia servir de testemunha de um crime, que segundo dizia o anspeçada, tivera ali lugar, crime este que o infor mante não sabe qual foi, pois não viu luta, uma vítima e tampouco o acusado de tal delito; que como o informante não aquiescesse ao convite que lhe era feito, o anspeçada ameaçouo de prisão e chegando por sua vez um comissário de polícia [trecho ilegível] o informante à
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delegacia, tendo mandado que uma praça o acompanhasse; que aí, perguntado o informante declarou nada saber do fato nem mesmo por informações [...]; que as declarações constantes do inquérito policial como prestadas pelo informante não lhe foram lidas nem mesmo por ocasião de lhe ordenarem que as assinasse [...].58
Mas a coragem do cocheiro Antônio de denunciar os procedimentos arbitrários da polícia está longe de ser isolada. João Felipe, natural da capital federal, de 19 anos, solteiro, catraieiro, queixase na pretoria de “que foi intimado por uma praça de cavalaria para ir à delegacia”, onde foi coagido a assinar “qualquer coisa sem que tivesse feito qualquer declaração”.59 Já Manoel da Silva, pernambucano, de 49 anos, viúvo, “negociante volante”, protesta com veemência que não declarou “absolutamente” na delegacia que conhecia o acusado do crime sobre o qual depunha como “vagabundo, desordeiro conhecido e de instintos perversos”. Manoel reclama ainda que chegou à delegacia às três e trinta da manhã e que só foi depor às oito e trinta, assim mesmo “na ausência do delegado”.60 O funcionário público Waldemar, solteiro, de 21 anos, também afirma que suas declarações foram dis torcidas pelo escrivão na delegacia.61 Antônio Reis, natural do estado do Rio, de 29 anos, casado, também empregado público, reclama que não prestou as declarações que constavam dos autos e que “seu depoimento prestado na polícia não lhe fora lido pelo escrivão, depois de lhe perguntar sobre o fato; que o doutor delegado estava na delegacia mas não se achava na sala em que ele depunha”. Ainda no interrogatório desta mesma testemunha, o advogado de defesa neste processo insinua que o delegado havia ameaçado os depoentes — alguns deles funcionários da Estrada de Ferro Central do Brasil — dizendo que estava de
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combinação com um secretário do diretor da dita companhia e que “aquele que não declarasse ter assistido ao fato criminoso seria demitido do serviço da referida estrada”.62 E, para encurtar uma lista que poderia ser ainda mais longa,63 fica registrado aqui o protesto dolorido e estridente do acusado Adão Reder, um sapateiro de 22 anos, polonês, naturalizado brasileiro, solteiro:
[...] que não foi inquirido pelo delegado de polícia, o qual ouviu no inquérito as testemunhas na sua ausência; alega mais que não foi inquirido na delegacia, como também se tendo recusado a assinar o papel que lhe foi apresentado pelo delegado, foi no mesmo momento agarrado pela gola do casaco por um inspetor a quem neste momento ouviu chamar de Câmara, e enquanto este o agarrava, uma praça de polícia o espancava com o cinturão, dizendo então o delegado “Assina ou não assina?” Que então assinou [...].64
Resistir à autoridade policial, portanto, era o comportamento que predominava entre os populares quando se enfrentavam com os meganhas nas ruas e botequins da cida de, ou com os delegados, inspetores e escrivães nas delega cias. Os membros das classes populares possuíam um conhecimento prático de que tinham de desconfiar da autoridade constituída, boicotar sua ação e resistir com violência quando possível. E, às vezes, esta resistência era bemsucedida. Além de homens pobres espancados e feridos por guar dascivis e inspetores, o testemunho histórico também registra casos de meganhas vaiados, surrados e perseguidos por populares. Depois, era só contar com a solidariedade dos companheiros, e o acusado acabava se livrando da enrascada em que se metera. Assim, o meganha Belarmino
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Vianna, pardo, de 22 anos, solteiro, conta a corrida que levou de alguns populares na freguesia de Santo Antônio:
[...] que estando hoje de serviço na rua Paraíso [...] viu um indivíduo que, na ladeira do Senado espancava um cão e proferia obscenidades; que dirigiuse para o local em que estava o citado indivíduo e intimouo a ficar sossegado, no que foi atendido; que, porém, assim que o declarante se afastou o referido indivíduo continuou nos mesmos desatinos o que fez com que o declarante voltasse para intimálo a vir a esta delegacia; que foi en tão o declarante agredido pelo mesmo indivíduo o qual vibroulhe uma cabeçada que o atirou de encontro a uma parede, que vendose agredido o declarante avançou para ele e procurava trazêlo pela ladeira abaixo, quando alguns indivíduos que se achavam nas proximidades avançaram contra o declarante, sendo evitada a agressão, por parte de tais indivíduos, por um outro que correu em auxílio do declarante; que logo em seguida apareceu um indivíduo, armado de um revólver e disparou contra o declarante um tiro o que fez com que ele declarante abandonasse o preso e corresse pela ladeira abaixo [...].65
Nesta versão, portanto, vemos um meganha tentando im por a ordem e populares resistindo à prisão de um companheiro e colocando o praça de polícia para correr. Como é freqüente em casos que envolvem praças de polícia, os depoimentos anotados na delegacia incriminam uniformemente o réu, o italiano Caetano Grossi, cocheiro, de 28 anos, casado, acusado de ter disparado o tiro. Na pretoria, contudo, algumas testemunhas, confirmando que diversos populares participaram das ações contra o meganha, confundem as autoridades judiciárias e auxiliam o acusado dizendo não pode rem afirmar com certeza quem havia disparado o tiro.
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O caixei ro Francisco, natural da capital federal, de 30 anos, por exemplo, declara apenas que ouviu falar “que o acusado não tinha sido o autor das detonações e sim um outro que diziam ser seu irmão”. Já o ambulante José Damigo, italiano como o acusado, declara que “não sabe quem foi o autor dos dis pa ros”. O menino Pacheco, de 16 anos, natural da capital federal, aprendiz de estucador, vai mais longe, afirmando que não se recordava de ter visto o denunciado no local e que “ouviu dizer, por diversos moradores, que o referido denunciado não havia tomado parte na agressão”. E o português Rodrigues, de 23 anos, caixeiro como tantos outros patrícios seus, além de dizer que não sabia quem havia dado os tiros, conta que conhece o acusado “há tempos e pode afirmar ser ele labo rioso, bom chefe de família e cumpridor de seus deveres”. Diante deste coro em defesa de Caetano, o juiz não teve outra alternativa e acabou impronunciando o réu.
No processo seguinte, o pernambucano Francisco Muniz, pardo, de 30 anos, solteiro, trabalhador, uniuse ao português Bernardo Guedes, de 32 anos, casado, barbeiro, numa luta contra o meganha Lucas Padilha, brasileiro, bran co, de 24 anos, casado. Antônio Dias, português, de 27 anos, viúvo, canteiro, dá sua versão do ocorrido na pretoria:
[...] achavase no botequim [...]; que momentos depois chegou o acusado Muniz, entrando no mesmo; que do lado contrário vinha o ofendido [o meganha Padilha], que atravessando a rua chamou o acusado para fora, dizendo quero te dar um tiro; que o Senhor No gueira dono do referido botequim, vendo a atitude do ofendido, empurrou da [ilegível] fora o acusado Muniz; que este, então disse ao ofendido que fosse embora que ele acusado tinha família, tendo como res posta do ofendido,
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que ou tu me matas ou então eu te mato; que na mesma ocasião, o ofendido sem ter res posta do acusado, deu neste um tiro, indo a bala ferir um menor que mora junto a uma quitanda; que logo após o tiro o acusado Muniz defendeuse da agres são recebida, atracandose com o ofendido [...] [que os acusados eram] homens trabalhadores e mori gerados [...]; que quanto ao ofendido, conheceo como valente, abusando da autoridade que tem. [...] Rein quirido disse que na delegacia se viu impossibilitado de depor a verdade, por ter sido ameaçado de ser recolhido ao xadrez, se fizesse declarações contra o ofendido [...].66
O caso em questão mostra uma das raras ocasiões em que ocorre, na documentação coligida, a união entre um brasileiro de cor e um português na luta contra um inimigo comum que, significativamente, era um guardacivil. Por outro lado, na versão de Antônio Dias, temos um outro exemplo de pequeno proprietário zelando pela ordem — isto é, pelo capital investido — em seu estabelecimento: o “Senhor Nogueira” empurrou Muniz para fora de seu boteco quando viu que o meganha Padilha vinha agredilo. Outros depoimentos esclarecem que a rivalidade entre o meganha Padilha e os acusados era bem antiga, sendo que o próprio guardacivil afirma que “a intriga desses dois indivíduos contra ele declarante é já antiga desde o tempo em que fazia ronda no Rio Comprido, sendo que em virtude de contí nuos desacatos desses dois desordeiros tinha sido transferido para outro ponto [...]”. A explicação do guardacivil é inte ressante, na medida em que sugere que ele foi transferido para outro local porque sua ação estava sendo continuamente obstaculizada por membros de uma determinada comunidade local. E, com efeito, uma testemunha simpática ao
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meganha — tratavase de um estudante de direito, segundo declarou — afirma que os acusados Pernambuco e Bernardo “se arrogavam de fazer reclamações e ponderações atrevidas quando este efetuava ali qualquer prisão, encorajando assim, os vagabundos e desordeiros que por ali transitam”. Na verdade, até Bernardo e Pernambuco e seus companheiros confirmam a inimizade deles, acusados, com o meganha Pa dilha, mas, na sua visão das coisas, a inimizade contra o meganha era mais geral na comunidade local, e a culpa era do próprio guardacivil: uma das testemunhas afirma que o guarda Padilha “é muito implicante quando exerce suas funções”; e o acusado Muniz diz que Padilha “conta ali no Rio Comprido, muitos inimigos”. Finalmente, também neste caso ve mos a testemunha Antônio Dias, cujo depoimento foi transcrito acima, reclamar de ameaças sofridas na delegacia e, efe tivamente, é notório nos autos que os depoimentos na pre toria são substancialmente favoráveis ao réu, o que não ocorre com as declarações anotadas na delegacia. Esta solidariedade expressa nas declarações dos compa nheiros foi va liosa para os réus, que foram facilmente absolvidos no júri.
No processo seguinte, porém, temos um caso no qual o juiz justifica a pronúncia do réu notando as contradições das testemunhas no inquérito e no sumário e sugerindo que elas mudaram seu depoimento na pretoria para proteger o réu. Neste caso, portanto, a solidariedade dos amigos parece ter complicado ainda mais o acusado. Os autos em questão tratam do assassinato do português João de Oliveira, de 24 anos, solteiro, carroceiro, que teria sido morto por Alfredo Moreira, natural da capital federal, de 22 anos, casado, pintor. O núcleo de fatos comuns a todos os depoimentos é que Alfredo e mais três companheiros haviam ido fazer “um piquenique nas Furnas” e, na volta, pararam numa venda onde
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entraram em uma desavença qualquer com indivíduos que lá estavam. Mais do que isto, temos apenas o cadáver de João de Oliveira estendido na Rua Marquês de São Vicente. Na delegacia, os três companheiros de Alfredo contam que, após a discussão na venda, o grupo seguia seu caminho quando mais abaixo na estrada foi recebido em emboscada por dois indivíduos “armados de varapaus” e que se encon travam na venda que haviam deixado momentos antes. Alfredo trazia um revólver e disparou contra os agressores, matando João de Oliveira. Já na pretoria, os mesmos rapazes dizem que efetivamente pararam numa venda, onde havia um grupo de portugueses. Segundo esta nova versão unânime dos compa nheiros de Alfredo, estes portugueses da venda haviam visto que o grupo trazia consigo algum dinheiro e resol veram, então, preparar uma emboscada “para roubálo”.
O corpo de João de Oliveira, estendido na Rua Marquês de São Vicente (processo criminal no qual foi réu Alfredo Gomes Moreira, s.no, maço 895, galeria a, 1911).
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O corpo de Tifu, encontrado num matagal em Bangu (processo criminal no qual foi réu Manoel Paulo Taveira, no 1.061, maço 895, galeria a, 1911).
Agora, no entanto, o ataque havia sido feito por quatro inimigos, dois atacando pela frente e dois investindo por trás. O juiz sumariante, no entanto, não acreditou na nova versão, justi ficando assim a pronúncia do réu:
Considerando que as testemunhas, aliás companheiros de passeio do acusado à Gávea, referemse no inqué rito apenas a dois indivíduos, sendo um deles a vítima que foram esperálos no caminho depois de uma desavença que haviam tido numa venda onde naquele local se encontraram, tendo os primeiros se achado na iminên cia de uma agressão por parte dos dois últimos sem que absolutamente nem o acusado nem qualquer de seus companheiros, fizesse a mais leve referência a um assalto com o fim de roubo e entretanto depondo no sumário modificam os seus depoimentos anteriormente prestados na polícia para declarar que foram atacados no caminho
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por quatro indivíduos um dos quais era a vítima; que os assaltaram para roubar [...].67 (grifo no orig.)
Ressaltese, finalmente, como conclusão desta parte, que esta atitude de desconfiança e resistência à autoridade entre os populares está longe de se manifestar apenas em casos isolados de ações individuais e de pequenos grupos como os analisados neste capítulo. Na verdade, esses exemplos mi croscópicos de insubmissão em relação à autoridade constituída parecem se inserir numa tradição já relativamente longa de protesto popular entre os homens livres pobres da cidade.
Em estudo sobre a “Revolta do Vintém”, ocorrida na cidade do Rio de Janeiro em 1880, a historiadora Sandra Graham mostra que há evidências de uma participação ativa de membros da classe trabalhadora nos tumultos ocorridos na ocasião. O episódio em si está relacionado à cobrança do imposto de um vintém que seria feito aos passageiros dos bondes da cidade. Era em geral reconhecido na época que os pobres não tinham poder aquisitivo suficiente para utilizar re gularmente os serviços dos bondes, tanto assim que o início dos protestos contra o imposto do vintém — passea tas e comícios, até mesmo uma tentativa, frustrada pela repressão policial, de entregar um manifesto ao impera dor — contou principalmente com a participação de pessoas de rendimentos relativamente modestos, mas regulares, decentemente vestidas e alfabetizadas — pequenos burocratas e comerciantes, por exemplo. No entanto, o movimento acabou tomando rumos não previstos, evoluindo para confrontos abertos entre policiais e populares nas ruas da cidade, e, nestes tumultos, parece ter sido ativa a participação de trabalhadores pobres, membros da “classe baixa de nossa po
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pulação”, ou “pessoas de pouca importância”, como diziam as autoridades encarregadas da repressão às manifestações. No final, um saldo de muitos bondes destruídos por populares para servirem de barricadas, algumas poucas dezenas de feridos, três mortos estendidos na Rua Uruguaiana e, segundo Sandra Graham, uma mudança decisiva na “cultura política”: pela primeira vez na história recente do Rio de Janeiro, um debate político alcançou as ruas e praças da cidade e alguns políticos mais astutos perceberam que havia uma fonte estridente de poder fora do Parlamento, nestes citadinos descontentes com os problemas sociais causados pelo crescimento rápido e desordenado da corte e centro político do Império.68
Mas toda esta agitação, combinada com o resultado prático da abolição efetiva do imposto do vintém meses depois, além de instruir políticos preocupados com a questão social, também deve ter deixado suas sementes entre os membros da classe trabalhadora em formação: a partir daí, parece que os populares percebem cada vez mais que podem resistir à imposição de medidas injustas por parte das autoridades constituídas. Tanto os políticos preocupados com os problemas sociais quanto os pobres urbanos mostraram ter assimilado as lições da Revolta do Vintém, utilizandose fartamente da agitação política direta na campanha abolicionista dos anos 1880. Já na década de 90 temos as primeiras tentativas mais concretas de organização de um movimento operário, que iria culminar com as sucessivas greves e confrontos das primeiras duas décadas do século XX.
Mas talvez tão importantes quanto todas estas tentativas conscientes de membros da classe trabalhadora de organizar suas lutas reivindicatórias sejam as evidências de que, paralelamente a isto, haviase arraigado profundamente entre os
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populares em geral a idéia de que se podia, e até se devia, resistir à autoridade constituída todas as vezes que esta parecia se exceder claramente no exercício de suas funções. É este sentimento popular que parece se manifestar nestas diversas situações microssociais de confrontos entre meganhas e populares que analisamos nas páginas anteriores, e é, sem dúvida, este o sentimento popular que, combinado à insatisfação geral dos pobres urbanos com os problemas sociais causados pelo delírio “progressista” da administração de Pereira Passos, ajuda a compreender o episódio da Revolta da Vacina na cidade do Rio de Janeiro em 1904.
Entre o muito que havia de se fazer para “civilizar” o Rio de Janeiro, os donos do poder entendiam que se devia dar um combate sem tréguas às doenças endêmicas que assolavam a capital federal, como a febre amarela, a disenteria, a varíola e outras.69 Se o objetivo em si parece suficientemente louvável, os métodos utilizados para conseguilo foram os mesmos postos em prática no período para realizar as mais deslavadas usurpações por parte da grande burguesia carioca. Da mesma forma como se demoliam casarões e cortiços no centro da cidade para valorizar áreas visando à especulação imobiliária e a obter vantagens para o comércio de importação e para as indústrias nascentes — deixando ao relento, quase que de passagem, milhares de pessoas — a principal medida visando ao combate às doenças endêmicas foi aprovar uma lei que dava plenos poderes aos organismos sanitários de ordenar a demolição de construções sempre que estas lhes parecessem insatisfatórias. Obviamente, seguiuse um frenesi de derrubada maciça de casas em bairros pobres, arrombamentos e entradas à força em residências de membros das classes populares e outras violências do gê nero. As vítimas ensaiam reações esparsas, resistem isoladamente,
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mas as manifestações passam a ser de maior agressividade a partir da lei sobre a vacina obrigatória.
Em outubro de 1904 estava sancionada uma lei que tor nava “obrigatória, em toda a República, a vacinação e a re va cinação contra a varíola”. Para populares cansados de tantas ar bi trariedades e insuflados ainda pela ação de políticos opo sicionistas, a nova terapêutica parecia mais uma vio lên cia inaceitável. E os distúrbios começam a 10 de novembro, com os manifestantes quebrando lampiões da iluminação pública e entrando em choques esporádicos com policiais. Nos dias seguintes, os combates de rua aumentam no centro e nos su búrbios, com os manifestantes derrubando carroças para se protegerem e resistirem às cargas da cavalaria, tiroteios contínuos, quebra de combustores de iluminação, destruição de fios de telefone etc. A cidade se transforma por al guns dias em um enorme campo de batalha, com grande número de mortos e feridos. E, ao que parece, pequenos proprietários e trabalhadores pobres estavam unidos na resistência:
Na rua, o entusiasmo transmudouse em agres si vi dade, e os manifestantes travaram conflito com a po lí cia. Não houve mais meio de conter o populacho. Ti ra vam ripas e varas do material das construções no vas; arrancavam paralelepípedos; tomavam, de as sal to, sacos de rolhas de cortiça na soleira dos arma zéns, e ven deiros portugueses, for retas capazes de ne gar um pão por esmola, davamlhe quero sene, às latas, para os incêndios.70
O sentimento de desconfiança em relação à autoridade, portanto, rebentou em resistência violenta quando estes trabalhadores pobres avaliaram uma determinada medida go vernamental como abusiva e lesiva a seus interesses. E
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a resis tência popular teve seu símbolo de luta, o “Porto Artur” — referência à fortaleza russa que durante meses resistiu ao cerco dos japoneses —, localizado sintomaticamente no bair ro da Saúde, local habitado por grande número de estiva dores e trabalhadores portuários em geral. Mas, além de fortalezasímbolo, o trecho abaixo mostra que os populares tiveram também o seu herói:
Na cidade só se falava em “Porto Artur”, nome que deram ao entrincheiramento da praia e rua da Harmonia, e onde, desde a noite passada, não chegava nenhuma força legal, ante as hostilidades freqüentes ali infringidas. Essa trincheira, de mais de um metro de altura, era constituída de sacos de areia, trilhos arrancados à linha, postes telefônicos, fios de arame, paralelepípedos, troncos de árvores, madeiras de casas velhas, bondes e carroças. Ali, armados de carabinas, com grande profusão de munições, revólveres e dinamite permaneciam esses homens numa constante amea ça à ordem pública. Nos morros do Livramento e da Mortona, fortificamse igualmente com os mesmos elementos de resistência [...]. O bairro estava inteiramente entregue a essa gente, pois, assaltada e invadida a 3a Delegacia Urbana, as autoridades e o des tacamento tiveram de abandonála [...]. Do largo da Harmonia em diante, até à venda denominada Varanda, na esquina da rua da Gamboa, seguiamse as outras trincheiras, em grande número, até Porto Ar tur, onde estava reunido o estadomaior dos amotina dos. Ali, de momento a momento, soavam toques de corneta dando ordens e recomendando sentido [...]. Nos morros próximos haviam estabelecido verdadeiras baterias de canos cheios de dinamite, bombas, pedras e munições. Pouco de pois de 4 horas da tarde, nume roso grupo abandonou as fortificações e enca mi nhou se para o posto de bombeiros da rua Gamboa, tentando assaltálo (e travase batalha, com mortes). Antes desse tiroteio ocorrera outro
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fato de interesse no largo do Depósito, até onde avançara numeroso grupo de amotinados da Saúde. Travouse um tiroteio entre eles e uma força de polícia e do Exército ali de serviço. A luta foi tremenda e, no meio dos turbu lentos, avultava em denodo, numa bravura de verdadeira fera, um crioulo reforçado, que era o chefe dos grupos da Saúde. Esse indivíduo empunhava um revólver em cada mão e desfechavao seguidamente sobre a força, e quando esta pôs o grupo em debanda da ainda ficou ele a lutar, em resistência aos soldados, dos quais prostou [sic] um morto e dois gravemente feridos [...]. Afinal, ao cabo de tenaz e cega resis tência, foi o sinistro crioulo preso [...]. Esse crioulo tem a alcunha de Prata Preta e, pela sua conhecida bravura como famoso desordeiro, fora proclamado chefe dos sublevados da Saúde. Nos embates ali trava dos foi sempre visto nos pontos mais perigosos, atirando contra a força.71
Lazer e ritual (I): o surgimento da rixa e a preparação do conflito
A vulgaridade da populaça! Há por aqui, entre esses marçanos fortes, gente boa. Há também ruim. Estão fatalmente destinados ou a apanhar ou a dar, desde crian ças. É a vida. Alguns são perversos: provocam, matam. Vais ver.
João do rio72
E. P. Thompson, em seu estudo sobre o processo histórico de formação da classe trabalhadora inglesa no período entre 1790 e 1830, acaba enumerando uma série de fatores bem gerais reveladores de tal processo e que podem servir pelo menos como parâmetros iniciais de reflexão sobre a
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formação de classes trabalhadoras em outros países do mundo ocidental em processo de transição para o capitalismo. Thompson menciona, primeiramente, o crescimento da consciência de classe, ou seja, da consciência de que há uma identidade de interesses entre os diversos grupos de trabalhadores — identidade esta que se define fundamentalmente contra os interesses de outras classes. Em segundo lugar, temos o crescimento de formas correspondentes de organização política e industrial — como sindicatos, sociedades de ajuda mútua, movimentos educacionais e religiosos, organizações políticas, periódicos etc. Thompson menciona ainda a existência de tradições intelectuais, padrões ou modelos de comunidade e uma estrutura de sentimentos típicos de uma determinada classe trabalhadora. E prossegue com a observação essencial de que a formação de uma classe trabalhadora é tanto um fato de história econômica quanto de história política e cultural.73
Assim, o processo específico de integração da economia brasileira às transformações do capitalismo internacional na segunda metade do século XIX e o processo interno de transição do trabalho escravo para o trabalho livre — com a conseqüente formação de um mercado capitalista de trabalho assalariado — foram os dois processos que — articulados ainda às transformações econômicas específicas da cidade do Rio de Janeiro na época — forneceram o contexto socioe co nômico para a formação histórica da classe trabalhadora carioca ao longo da segunda metade do século XIX e das primeiras décadas da República Velha. Enquanto fato de his tória política, a classe trabalhadora carioca marca sua presença no período através das práticas de protesto popular, das inúmeras organizações e sociedades de assistência mútua e, principalmente, através das lutas crescentes do
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movimento operário. Enquanto fato de história cultural — e definindo cultura neste contexto, seguindo Sidney Mintz e Richard Price, como “um corpo de crenças e valores, socialmente adquiridos e modelados”, que servem a um grupo ou classe social como “guias de comportamento”74 —, muito do que se escreveu até aqui revela a classe trabalhadora carioca, já na primeira década do século XX, como possuidora de formas culturais próprias e independentes, mesmo que forjadas continuamente, na verdade, pela dia lética entre os projetos ou modelos culturais feitos para ela e aqueles engendrados a partir de sua prática real de vida. Vimos, assim, como a classe trabalhadora vivenciava o valor fundamental do traba lho numa sociedade capitalista — isto é, o valor “competição”; vimos ainda como era vivida e interpretada a relação amorosa do ponto de vista dos populares, e já abordamos em parte, neste capítulo, a importância do botequim como reduto de lazer popular e a atitude de desconfiança e resistência dos nossos personagens em relação à ação dos me ganhas e das autoridades policiais e judiciárias.
Podemos, contudo, ir além na análise dos padrões culturais das classes populares cariocas no período. Argumentei mais atrás que, devido à atitude de descrença dos populares em relação à possibilidade de as autoridades policiais e judi ciárias agirem no sentido de arbitrar seus conflitos — descrença esta nutrida por uma experiência cotidiana de arbitrariedades e violências das ditas autoridades —, restava aos populares apenas, como alternativa desejável, a “privatização” desses conflitos, ou seja, a sua resolução de acordo com regras de comportamento próprias do grupo socio cultural em questão. Isso pressupõe a existência de elementos ordenadores das relações pessoais do cotidiano desses homens e mulheres e que estes elementos eram compartilhados
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e valorizados por eles. Assim, a ocorrência dos conflitos violentos entre membros das classes populares, registrada nos processos criminais analisados, é olhada aqui de um ponto de vista totalmente diverso daquele do jurista, ou mesmo do teórico da patologia social, que analisam os atos de tais personagens a partir de um sistema rígido de valores, procurando avaliar até que ponto eles se enquadram nas normas dominantes ou se constituem em indivíduos “criminosos” ou “desviantes”, desconsiderando, dessa forma, a possibilidade de esses indivíduos regerem sua conduta por normas ou padrões de comportamento alternativos àqueles valorizados pelos monopolistas da virtude. Penso que esse tipo de posicionamento é um nonsense epistemológico. Como este é, no entanto, um nonsense ilustre e tradicional, talvez convenha analisar mais detidamente seu “engen dra mento”.
É longa a tradição entre os estudiosos na área de ciências humanas de abordar o problema da criminalidade sempre do ponto de vista das grandes contradições estruturais que permeiam a sociedade em questão. Assim, por exemplo, ainda no século passado, Engels focalizava o problema do aumento da criminalidade entre as classes trabalhadoras inglesas da época a partir das mudanças estruturais cataclísmicas desen cadeadas pela Revolução Industrial. Engels estabelece uma relação direta entre a deterioração das condições de vida e mudanças observadas no comportamento social dos habitantes das grandes cidades inglesas: o crime traduzia uma primeira fase — ainda embrionária e com baixo nível de conscientização — da oposição do proletariado ao regime social vigente.75
A pista de Engels tem sido bastante trilhada pelos estudiosos brasileiros, parecendo haver um certo consenso de que a violência que permeia toda a história da nossa forma
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ção so cial — culminando nos índices assustadores da criminalidade atual — é resultado do próprio desdobramento das contra dições estruturais da sociedade brasileira ao longo do tempo.76
É claro que o enfoque mencionado passa pela verdade: condições socioistóricas mais amplas estão, sem dúvida, informando a ocorrência da violência em suas diversas formas — não só, portanto, a violência que é rotulada como “crime” — em uma determinada sociedade. No entanto, este enfoque, ao ser tomado como o único modo possível de abordar o tema da ocorrência do conflito violento ou da cri minalidade em geral envolvendo membros da classe traba lhadora, traz problemas e reduz a questão a apenas uma de suas faces. Como observa Maria Célia P. M. Paoli, este tipo de abordagem, ao manterse num nível muito abstrato e ge ral, pode até conspirar contra a própria postura crítica que se quer ter da sociedade estudada: se o crime é apenas produ to direto de contradições estruturais, isto é, produto da mi séria a que fica condenada grande parte da população, então será verdade que todos os miseráveis são potencialmente violentos ou criminosos?77 Através de pequeno truque lógico, então, reproduzse a ideologia da classe dominante e se fornecem novos elementos para justificar a opressão social.
Na verdade, pensar o problema da ocorrência de conflitos violentos entre os populares a partir apenas do ponto de vista dos condicionamentos socioistóricos mais amplos causa problemas teóricos e metodológicos sérios. Nesta perspectiva, o conflito violento em si deixa de ser um objeto relevante de estudo, pois em última análise ele pode ser en tendido e explicado a partir de fatores extrínsecos às próprias condições concretas de sua produção nas diversas situações microscópicas do social.78 Em outras palavras, o
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conflito não é percebido como um produto social, como uma “construção” de seres humanos concretos no bojo mesmo de suas relações cotidianas de vida, e sim como produto de grandes abstrações teóricas — as “estruturas” ou entidades se melhantes — que supostamente se contradizem e que são geradoras de realidade social.
Ora, dentro desta perspectiva teórica, é fácil perceber o porquê do fato de a ocorrência de conflitos violentos entre membros da classe trabalhadora ter sido tradicional mente abordada do ponto de vista do “desvio”, da “anomia” ou da “patologia social”. Partindo de abstrações teóricas geradoras de realidade social, o estudioso se exime de analisar a violência em si, em sua lógica interna manifesta nas ações dos protagonistas de carne e osso que se interrelacionam num determinado meio sociocultural. Assim, os teóricos da patologia social postulam que a pobreza a que fica condenada uma grande parte da população — pobreza esta oriunda das tais contradições estruturais — produz um estado de “anomia”, de “ausência de normas”, de “falta de padrões de com portamento” etc., que se manifesta através da desagregação da família, alto índice de criminalidade e outros fatores considerados sintomas de desajuste. O que ocorre aqui, por um lado, é a simples dedução de que um estado de pobreza ou miséria destrói padrões de comportamento, laços de família e solidariedade e estabelece o caos social entre as classes populares. Por outro lado, em vez de tentar compreender melhor o sentido e a racionalidade intrínsecos aos diferentes tipos de comportamento da classe trabalhadora, o que se faz é apenas julgar esses tipos de comportamento a partir de padrões que lhes são extrínsecos, ou seja, tentase impingir aos populares a camisadeforça dos padrões de comportamento da classe dominante.
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É necessário questionar, e agora de forma mais geral ainda, se os cientistas sociais que se preocupam com o estudo de classes populares se colocam realmente problemas significativos quando procuram avaliar o grau de violência em certa comunidade e, mais ainda, quando procuram relacionar violência com desagregação social, uniões informais e transitórias com promiscuidade etc. Estas colocações quanto à “promiscuidade” e “violência” das classes populares parecem preconceituosas e pouco científicas. Afinal, o que é ser violento? Será que ser violento é dar tiros e facadas de vez em quando, se é que este tipo de comportamento é tão generalizado entre populares quanto nos procuram fazer crer as festivas e pouco sérias reportagens de certos jornais e televisões? Esta ênfase carnavalesca em apenas determinados tipos de violência — esquecendose, “inocentemente”, de vio lências que provocam sofrimentos sociais muito mais intensos — dá um paralelo perfeito com outro mito social muito badalado e pouco conhecido: a malandragem. Qualquer indivíduo com um mínimo de perspicácia sabe que os verdadeiros malandros não moram nas favelas...
A leitura dos processos criminais de homicídio ou tentativa de homicídio envolvendo membros da classe trabalhadora carioca no início do século XX permite discernir uma regularidade impressionante nos antecedentes e nas condições gerais da produção social de cada conflito. Os homens e mulheres presentes na cena de um crime de homicídio, seja na condição de agentes, pacientes ou testemunhas do ato, pareciam ter seu comportamento largamente orien tado por uma série de normas ou regras conhecidas e valorizadas pelos membros da comunidade onde se dava a contenda. Isto é, o comportamento dos protagonistas do
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conflito, assim como de seus assistentes ou coadjuvantes, estava programado socialmente, o que dava às ações das pessoas envolvidas no episódio significados sociais precisos e compreensíveis para os membros do microgrupo sociocultural onde se desenrolava a luta. A ação violenta seguia etapas previsíveis pelos membros desses microgrupos socioculturais — o surgimento da rixa, a escalada das tensões, o desafio e a luta propriamente dita —, apresentando, portanto, um código ou um programa comum a todos os membros da comunidade. É lógico que este código ou programa apresenta margens de liberdade sob a forma de opções ou va riações lícitas e, afora isso, os participantes, além de agirem de acordo com o código aprendido, modificamno parcialmente através das ações recíprocas exercitadas entre eles. Não se pode pensar, portanto, que o comportamento de nossos per sonagens esteja regulado por um determinismo do tipo que os biólogos postulam para as abelhas e as formigas: em sentido mais geral, devese pensar que os homens executam programas porque necessitam se servir de sistemas de signos sociais verbais e nãoverbais, préconstituídos. Os homens, para se comunicarem, para transmitirem mensagens, utilizamse dos códigos existentes e que são resultado de trabalho humano passado — códigos estes que, logicamente, possuem dimensão histórica e se transformam continuamente.79
O restante deste capítulo, então, é uma tentativa de discernir as diferentes etapas e “decifrar” o código do conflito violento entre os nossos protagonistas. Procuraremos mostrar, assim, que a desconfiança e a resistência dos popula res em relação à intervenção das autoridades policiais e ju diciárias em sua vida têm um sentido cultural profundo, enraizado no próprio modo de vida da classe trabalhadora: os populares estavam imbuídos de normas próprias reguladoras
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de suas desavenças, possuíam noções próprias de justiça e, quando envolvidos em situações de conflito, seguiam rituais de conduta que mostravam apego a valores muitas vezes opostos àqueles prezados pelas classes dominantes.80
O surgimento das rixas na hora do lazer e o botequim como “observatório popular”
Maria Sylvia de Carvalho Franco, em estudo baseado em crimes ocorridos entre caipiras de parte da região cafeeira do Vale do Paraíba no século passado XIX, pensa a rixa como o motivo, geralmente fútil e superficial, que serve de causa imediata para a precipitação de um conflito. Neste contexto, a violência é percebida como algo que irrompe num momento, sem ser precedida de uma situação de tensão. A autora observa que, nos conflitos analisados por ela, “a oposição entre as pessoas envolvidas, sua expressão em termos de luta e solução por meio da força, irrompe de relações cujo conteúdo de hostilidade e sentido de ruptura se organizam de momento, sem que um estado anterior de tensão tenha contribuído”.81
Essas observações provocam interrogações importantes sobre o caráter bastante complexo do estudo das causas ou das motivações que levam à perpetração de crimes de homicídio a partir da análise de processos criminais. O historiador William B. Taylor questiona o valor objetivo, a veracidade do que declaram a esse respeito os acusados, ofendidos e testemunhas.82 Taylor argumenta que o que freqüen temente passa como a causa da agressão, nos estudos de crime em processos, são geralmente apenas os antecedentes imediatos do conflito aberto — discussões por causa de jogo, embria
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guez, brincadeiras, desafios à masculinidade etc. Taylor caracterizase até por um certo ceticismo, afirmando que os motivos alegados para a agressão nos processos criminais são um fato social relevante apenas no sentido de que revelam idéias populares sobre questões pelas quais é justificável o recurso a meios violentos para a resolução de tensões em um determinado grupo social. As declarações quanto ao motivo da agressão não podem ser tomadas como as “razões reais” do recurso aos ajustes violentos; para ele, essas “razões reais” são “razões psíquicas”, em geral incognoscíveis.
Na verdade, não é necessário definir a rixa como o motivo fútil que serve de causa imediata para a precipitação de um conflito, tampouco cabe compartilhar do ceticismo de Tay lor. Na documentação coligida e analisada a rixa seria mais bem definida como a situação de tensão mais ou menos prolongada no tempo que levará ao desafio e, finalmente, ao con flito direto entre os contendores. Há uma distinção relevante a fazer, portanto, entre os conceitos de rixa e de desafio: o desafio pode ser visto como o último estágio de uma escalada contínua de tensões específicas ativadas a par tir do surgimento da rixa. O desafio precede imediatamente o conflito e o anuncia aos membros de um determinado meio sociocultural; a rixa surge da própria dinâmica de funcionamento e ajuste de tensões dentro do microgrupo sociocultural estudado. Neste contexto, a violência não é algo gerado es pontaneamente num dado momento, mas sim o resultado de um processo discernível e até previsível pelos membros de uma cultura ou sociedade.
Quanto ao ceticismo de Taylor, ele se justifica talvez por uma necessidade de aprofundar mais a discussão sobre o signi ficado do surgimento da rixa dentro de um determinado contexto sociocultural. Há de se enquadrar a rixa
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dentro de uma perspectiva teórica que a apreenda enquanto expressão da própria dinâmica do interrela cio namento entre membros de um microgrupo social dado. Como já foi visto no primeiro capítulo e exemplificado repe tidamente ao longo da exposição, é necessário perceber a rixa como um aconteci mento político no interior de um determinado microgrupo sociocultural. O trecho abaixo, do antropólogo J. van Velsen, parece perti nente neste contexto:
[...] em qualquer sociedade, o estudioso provavel mente encontrará uma enorme categoria de conflitos onde a disputa diz respeito basicamente à questão de quais de um certo número de normas mutualmente con flitantes deveriam ser aplicadas aos “fatos” estabe lecidos do caso. Dentro deste ponto de vista, tornase importante obter relatos e interpretações dos conflitos ou outros eventos particulares que sejam provenientes de pessoas diversas, ao invés de procurar o relato ou a interpretação correta dos eventos.83
O trecho de Velsen é relevante, de um lado, porque chama a atenção para o fato de que, mesmo que as situações de con flito em um determinado grupo sociocultural estejam informadas por um código amplo de orientação da conduta dos protagonistas e coadjuvantes da ação, o código contém em si mesmo normas conflitantes que muitas vezes são utilizadas pelos personagens para justificar o conflito em curso. Por ou tro lado, Velsen desnuda com precisão o caráter da “verdade” na análise destas situações microssociais, reve landoa como uma construção de agentes sociais inseridos em lutas políticas que são parte constitutiva essencial da teia de relações sociais na qual esses agentes se inserem em sua vida cotidiana.
Num dos processos criminais analisados, o advogado de defesa se empenha em mostrar a parcialidade da testemu
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nha de nome Luiz José Correa, português, de 44 anos, dono de uma venda na freguesia do Engenho Novo, que declara em seu depoimento nada saber, nem por ouvir dizer, de um conflito ocorrido nas redondezas. O advogado procura provar que a testemunha havia mentido em suas declarações com o argu mento de que o negociante Luiz, “um dono de venda, isto é, de um verdadeiro observatório popular [...] seis meses após um fato passado na vizinhança, às portas do mesmo negócio, nem dele ouviu, sequer, falar!”84 (grifo no orig.)
O argumento utilizado pelo advogado revela o papel do botequim ou da venda como centro aglutinador e difusor de informações entre os populares. E, mais do que isso, a refe rência à venda como “observatório popular” sugere que este é um ponto privilegiado, uma espécie de janela aberta, para o estudo de padrões de comportamento dos homens po bres em questão. Com efeito, a venda ou botequim é cená rio para o surgimento e desenrolar de rixas e conflitos pelos mais va riados motivos, desde os problemas ligados ao traba lho e ha bitação, passando pelas questões de amor e de rela ções entre vizinhos, até as contendas por motivos mais especifica mente ligados ao lazer, como os jogos, o carna val ou a bebi da.
A variedade enorme dos motivos alegados por populares para o surgimento e desenrolar de rixas no botequim pode ser ilustrada por um tropel de exemplos. Aqui vão alguns: o co cheiro Joaquim explica a agressão que sofreu de José no “bo tequim do Damião” como conseqüência de “uma pequena questão [...] motivada em serviço de carroceiro que ambos são”;85 um grupo de empregados de um depósito de car vão vai a um botequim num dos intervalos da jornada de trabalho e dois deles entram em conflito devido à “divergência [...] do modo de pensar acerca do serviço deles”;86
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já a briga entre Eurico e o estivador Oscar, ocorrida em frente a uma casa de pasto, alguns depoentes pensam ter sido “por motivo de tra balho”, outros pensam “que fora a ques tão mo tivada pela rifa de um revólver”;87 Salvador e Ma noel se desentendem “por questões antigas” dentro de um botequim, isto é, ao que pa rece, Salvador havia dado uma medalha para Manoel vender, mas este último replica “que não tinha dinheiro nem meda lha”;88 já “Manoel da Pinga” diz que a briga da qual par ticipou no botequim começou “por brincadeira”;89 em outro caso, dois rapazes brigam numa esquina em frente a um bo tequim, ao que parece “por causa de namoradas”;90 e, para terminar esta pe quena lista de exemplos, temos a briga entre o carregador Alfredo e o padeiro Graffion dentro de uma casa de pasto — para algumas testemunhas, os dois homens come çaram a discutir sobre quem “pagaria a despesa”, mas o caso pode ser também uma briga entre um casal homossexual: Graffion declara que, ao ficar desempregado, foi para a casa de Alfredo, e ambos passaram a dormir “no mesmo quarto e na mesma cama”, mas se queixa ao delegado de que “ontem [...] acordou verificando que Alfredo procurava servirse dele para a prática de atos imorais e de perversão”.91
Os motivos alegados pelos contendores ou pelas testemunhas para explicar o surgimento das rixas ou questões que deram origem aos conflitos são, portanto, bastante variados. No entanto, é preciso utilizar essas alegações dos depoentes com cuidado: com freqüência, o que aparece nos processos criminais como as causas últimas dos conflitos são apenas seus antecedentes imediatos. Este problema pode ser em par te evitado com a leitura exaustiva e comparativa dos autos, o que acaba explicitando quase sempre o que está efe ti vamente em jogo na contenda, ou seja, a leitura atenta
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do processo esclarece geralmente o caráter político do surgimento das rixas e dos conflitos nestas instâncias microscópicas do social.
O processo seguinte — um conflito entre vizinhos — mostra bem que a análise do problema das causas do conflito não pode se ater exclusivamente ao que os depoentes identificam como suas causas nas declarações às autoridades. Na verdade, todas as informações contidas nos testemunhos a respeito da dinâmica de funcionamento destes microgrupos socioculturais são relevantes para o estudo das causas do re curso ao ajuste violento. Assim, João Figueiredo, brasi leiro, viúvo, 43 anos, porteiro de uma repartição pública e morador no Bexiga teve uma questão com Matheus de Abreu, brasileiro, solteiro, 25 anos, também morador no Bexiga, aparentemente porque defendeuse com um tiro do assédio dos cachorros de Matheus, que ameaçavam mor dêlo. Após troca de insultos quando do episódio dos cachorros, Figueiredo e Matheus voltaram a se encontrar mais tarde em um bo tequim das vizi nhanças. Na presença de um grupo de cerca de 20 pessoas, os dois discutiram, brigaram e Fi gueiredo desfechou um tiro contra Matheus, errando o alvo. Isto é tudo que revelaria uma leitura superficial dos depoimentos. A situação, contudo, é claramente bem mais complexa. Muitos dos depoentes, em sua maioria jovens lavradores, declaramse inimigos do ofen sor, dizendo, por exemplo, “que a vizinhança não gosta do acusado Figueiredo, por ser desordeiro, e o ofendido é homem pacífico e trabalhador”. Figueiredo é acusado ainda de ser provocador e estar sempre envolvido em questões. Outras tes temunhas, porém, declaram que Matheus é que havia dirigido insultos a Figuei redo. Interrogado, o acusado atribuiu a de núncia a rixas antigas, afirmando que alguns dos moradores do lugar — in divíduos
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desordeiros, segundo ele — não que riam que ele ali permanecesse. Em sua defesa, Figueiredo anexou cartas de pes soas influentes da região, inclusive a de um certo “coronel”.92
O processo acima ilustra o caráter profundamente político do surgimento das rixas entre os homens pobres em ques tão e exemplifica bem a conveniência do conceito de “ política do cotidiano”, desenvolvida por Velho e Becker, neste tipo de análise.93 Vemos primeiro que os depoentes explicitam como causa do conflito o problema em torno dos cachorros. No en tanto, a análise dos testemunhos em seu conjunto torna claro que o problema com os cachorros foi apenas o estopim para a explosão de tensões muito mais profundas. Assim, temos os declarantes divididos quase que em blocos, sendo que a maio ria apoiava o ofendido e uns poucos eram simpáticos ao acu sado. Há uma óbvia troca de acusações entre as partes em confronto: chamamse mutuamente de “desordeiros”. E, fi nalmente, o caráter político da luta é simbolizado ainda pela atitude do acusado ao incluir cartas de pessoas influentes da vizinhança em sua defesa. Já nesta altura, estamos bastante distantes da aparente futilidade de um conflito supostamente ocorrido por causa de tiros desfechados contra cachorros.
O jogo a dinheiro no botequim também era uma situação que tornava explícito algumas vezes o caráter político das ri xas entre vizinhos ou companheiros de trabalho. Podemos lembrar, por exemplo, que um jogo a dinheiro parece ter sido um dos antecedentes imediatos da morte de Zé Galego, nar rada na introdução. Zé Galego havia perdido algum dinheiro e, inconformado, teria sacado um revólver e exigido de Case miro, outro estivador, a devolução da quantia. Galego conse guiu seu intento, já que, de acordo com Paschoal, “ali no jogo, o mais forte sempre saía ganhando”.94
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Havia também o problema da competição pelo do mí nio dos pontos de jogo nos botequins. O trecho abaixo, pu blicado no Correio da Manhã, em 31 de agosto de 1908, é a introdução a uma notícia de briga entre jogadores profissio nais:
Não basta, às vezes, ao espírito exaltado de um jogador que perde, uma ligeira explicação do banqueiro para acalmálo. E é sempre nos centros, onde a jogatina impera, onde o dado rola, sob a impressão profunda dos muitos olhos que sobre ele pairam, que se dão pequenas questões, cujos desfechos são em sua maioria trágicos.Nos grandes centros, onde à roda do pano verde sentamse jogadores da alta sociedade, estas questões deslindamse com o consolo de um ou outro ao parceiro mais caipora. Nos meios baixos, porém, onde se encontram tipos já afeitos aos crimes, uma ligeira troca de palavras dá lugar a uma cena de sangue, reluzindo a lâmina do punhal e os canos dos Smith e Wesson, manejados por mãos entendedoras.95
Esta introdução informa muito mais a respeito das concepções que um jornalista burguês possuía sobre os “meios baixos” do que propriamente uma compreensão sobre o que estava realmente na origem da disputa entre “Antonico BullDog”, um português de 27 anos, solteiro, e “Cara de Velho”, de 32 anos, solteiro, ambos exploradores de pontos de jogo. A leitura dos autos revela que os dois con tendores eram jogadores profissionais muito conhecidos e respeitados na freguesia de Sacramento. Em torno deles reuniase sempre um grupo numeroso de indivíduos, que tiravam sua sobrevivência, pelo menos em parte, das atividades dos patrões como controladores de pontos de jogo. Segundo uma das testemunhas, a rivalidade entre Antonico BullDog e Cara de Velho começara quando o último, que havia conseguido
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dominar o ponto de jogo de um determinado botequim das redondezas, resolve abandonálo para tentar a exploração de um outro ponto que achava mais promissor. Mas a nova empreitada não deu certo, e Cara de Velho resolveu tentar reconquistar seu antigo ponto, agora dominado por An to nico BullDog. Os depoimentos nos autos mostram o desen rolar de um longo ritual de provocações envolvendo os dois homens e seus respectivos capangas, e que culmina no desafio e luta da qual resultou a morte de Cara de Velho.96
Além do jogo, o carnaval era outra fonte eventual do sur gimento de rixas associadas ao mundo do lazer popular. Intrépidos e irreverentes, os foliões entusiasmados desta “festa de plebe” — como a define Luiz Edmundo — gostavam de provocar os guardascivis cantando debochadamente:
Eu vou bebê, Eu vou me embriagá,Eu vou fazê baruioPrá puliça me pegá.A puliça não quéQue eu dance aqui,Eu danço aquiDanço acolá.97
Os “brinquedos de carnaval” estão às vezes na origem de agressões sérias. Assim, Arthur da Cruz, pardo, de 28 anos, casado, pintor, desentendeuse com Lucílio de Alcântara, natural da capital federal, 26 anos, solteiro, também pintor — os dois já haviam até trabalhado juntos. Lucílio dá a sua versão dos fatos:
[...] que ontem à noite realmente atirou extrato de um lançaperfume em Arthur e ele por isso maltratou muito ao depoente; sendo que três vezes, ontem esse homem
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maltratou ao depoente; que hoje às quatro horas da tarde encontramse novamente na rua 24 de Maio esquina de Magalhães Castro e Arthur novamente insul tou ao depoente sendo então que o depoente quis ir em bora e foi perseguido por Arthur então fez uso de seu revólver [...].98
Outros depoentes no processo mostram ter acompanhado o desenrolar das provocações trocadas pelos dois rapazes nas horas que se seguiram ao episódio do lançaperfume. O próprio ofendido, Arthur, diz que quando se encontrou com o acusado este “interpelouo, dizendo se não queria espan carlhe, pois ele acusado havia sabido ter ele informante isso dito [...]”. Este ritual de troca de provocações entre os con ten dores antes do conflito e a participação ativa de outros membros da comunidade neste processo de preparação da luta — assistindo à troca de provocações entre os oponentes e servindo de mensageiros dos desafios trocados, como a promessa de espancamento que teria sido feita por Arthur no caso acima — são traços comuns nos conflitos entre nossos protagonistas e serão analisados mais deta lha damente logo adiante.
Luiz Edmundo, em sua colorida descrição do “ carnaval de outrora”, dá certa ênfase à rivalidade existente entre as so ciedades carnavalescas da época — agremiações onde se reu niam as “moçoilas e rapazelhos” humildes que habitavam os “casebres que se dependuram como gaiolas de pássaros” pelas encostas dos morros cariocas. Os preconceitos de classe do cronista, aliados ao seu antilusitanismo ferrenho, fornecemlhe uma teoria explicativa das causas dessas rivali dades:
A rivalidade existente entre esses grupos glorifi ca dores de Momo é coisa velha e conhecida. Emulação ativa, concorrência, por vezes, provocadora e peri gosa. O que
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caracteriza as camadas inferiores da nossa sociedade ainda é aquele espírito bárbaro e irrequieto, vindo de velhos tempos de domínio estrangeiro, quando se tomava como matériaprima para colonização entre elementos raciais opostos, a massa triste dos degredados, que a justiça portuguesa para cá viveu sempre a enviar.99
Não era obviamente assim, no entanto, que os personagens de um conflito envolvendo membros de sociedades carnavalescas rivais percebiam as ações nas quais tomavam parte. Manoel Leite, por exemplo, português, de 20 anos, solteiro, açougueiro, justifica no depoimento abaixo os tiros que disparou contra Oswaldo Jacques, brasileiro, de 17 anos, solteiro, carpinteiro, e Antônio Monteiro, português, também de 17 anos e solteiro, alfaiate:
[...] soube que Oswaldo Jacques e Albino Nunes Monteiro a quem conhece pelo vulgo de “alfaiate” propalaram que haviam esbofeteado a ele acusado e que as sócias do Grupo Estrela da rua Larga, da qual ele acusado faz parte eram putas; que hoje às oito horas da noite [...] foi agredido com uma bofetada vibrada por Oswaldo Jacques que se achava em companhia de ou tros e a fim de os intimidar apontou contra o seu revól ver, mas não o detonou e Jacques e seus companheiros amedrontados fugiram [...].100
Houve depois um novo encontro, no qual o acusado efetivamente disparou tiros, saindo ferido Antônio Mon teiro, irmão de Albino. Segundo o depoimento de Manoel, são duas as razões que o levam ao conflito: primeiro, procura defender a reputação da sociedade carnavalesca à qual pertence — Estrela da Rua Larga — contra as afirmativas feitas pelos membros de outra sociedade carnavalesca — Oswaldo Jacques, Antônio e Albino pertencem à sociedade Chuveiro
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do Inferno — de que as sócias da sociedade Estrela são putas; segundo, ele tenta defender seus predicados masculinos de ser corajoso e sem medo de rixas, não admitindo, assim, que outros indivíduos andem propalando que lhe deram bofetadas. Fica claro, também, tanto pelo depoimento de Manoel quanto pelos outros depoimentos incluídos nos autos, que a rivalidade entre os contendores era antiga e que o ritual de provocações evoluía constantemente através dos desafios mútuos à masculinidade dos envolvidos. Veremos agora então, um pouco mais de perto, este período de escalada de tensões que sempre se segue ao surgimento da rixa e precede o desafio final anunciador do início da luta e, paralelamente, tentaremos compreender o significado social do código machista de conduta que parece ser a linguagem norteadora do ajuste violento entre esses homens.
A escalada das tensões: o papel do machismo; o significado do desafio
— Então vosmecê tem a corage de pô os mocotó na minha Chica seu galego? Vamo vê isso. Arresponda dereito porque de carqué forma eu tenho mesmo de lhe que brá a sem vergonha da cara.— Lá de insultare naon, retruca o outro, que cando me pus aqui tanto me pus plu baim duma cuma d’oitra. Essa é que é a burdade! Mas cá indiscunsiderações não nas admito, fique o cabra sabendo, isso, naim que benha de mó pai!E, antes de receber o que já espera, desfere, logo, o murro.Engalfinhamse os dois.
luiZ edmundo101
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Logicamente, o aparecimento da rixa não significava que o processo teria continuidade e desembocaria necessariamente em um homicídio, uma tentativa de homicídio, ou mesmo em um conflito menos grave. Caso o processo tivesse seguimento, no entanto, havia uma grande diversidade de maneiras através das quais os contendores preparavam o confronto. Os antecedentes dos crimes estudados têm o aspecto de um ritual de permuta de provocações e ameaças mais ou menos veladas entre os rixosos, ritual este que na grande maioria das vezes envolvia ativamente outros membros do grupo humano em questão. Entre as provocações mais ou menos indiretas, as fofocas e as intrigas eram, talvez, as mais comuns, e seus conteúdos variavam de acordo com os motivos alegados para as desavenças. Um de nossos contendores ficou furioso ao saber que o seu oponente vivia espalhando que ele era “vagabundo”.102 Outro recebeu uma carta anônima revelando que sua mulher o traía.103 Outro revelava a todos que havia “tomado a amante” de seu desafeto.104 E um outro ainda contava a todos a bofetada que havia dado em seu opositor na véspera.105 O botequim era quase sempre o pon to central destes eventos. Um homem disse numa casa de pasto que iria buscar a mulher — de quem estava separado e que trabalhava como doméstica — e que, se ela não o quisesse, a sua garrucha “havia de comer carne”: o homem acaba matando o patrão da mulher quando vai buscála.106 Um dos contendores numa briga de amor teria anunciado em um botequim das redondezas “que ia tirar uma desforra ” de alguém naquele dia.107 Outro ainda chegava a avisar a to dos no boteco “que naquela noite talvez tivesse de dormir no xa drez ou de ficar no necrotério”, anunciando assim sua dis posição de resolver suas desavenças com o oponente em bre ve.108 Se havia alguém disposto a contar a um dos rixo
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sos o que o outro dizia dele, o conflito geralmente ocorria quan do a parte atingida pelas intrigas ou fofocas ia tomar satisfações.
Havia formas de provocação que envolviam mais diretamente os rixosos. João Eufrosino estava enfurecido com Geraldino Maciel, mas não parecia ainda decidido pela agressão. No dia seguinte, contudo, cruzou com Geraldino na rua e este lhe “atirou olhares provocadores e de pouco caso”.109
João nada fez naquele momento, mas desfechou diversos tiros contra Geraldino horas depois. Já Antônio BullDog diz para Cara de Velho, dentro de um botequim cheio de fregueses, que este último “não fazia medo a todos”.110 Em outro processo, os carroceiros Antônio e João, que já tinham rixa antiga, descobriram que eram amantes da mesma mulher. Certa noite, os dois homens e a mulher em questão se encontraram na casa de amigos que tinham em comum. Alice, parda de 21 anos por cujos encantos os dois jovens se defrontavam, resolveu voltar para casa em companhia de João. Enciumado, Antônio perseguiu o casal a distância durante todo o tempo que estiveram juntos, atirandolhes olhares ameaçadores. Os dois jovens se encontraram no dia seguinte, saindo Antônio baleado.111
O fato de um ritual de provocações estar em andamento nem sempre significa que uma cena de sangue é perce bida como iminente. As provocações e ameaças podem durar me ses e até anos. É o que sugere o caso seguinte: Luiz e Ma noel, trabalhadores da Fábrica de Tijolos Santa Cruz, viviam atracados; Manoel se valia do fato de ser mais jovem e forte do que Luiz para dirigirlhe muitos insultos e algumas bofe tadas. Certo dia, no entanto, Luiz cravou uma faca de co zi nha em Manoel, matandoo na hora. As testemunhas não se mostraram surpresas com o ocorrido, “pois entre
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aqueles ho mens havia rixa antiga”, mas também não haviam dado mui ta importância quando viram os dois homens discutindo, pois ouviam “a vítima e o acusado sempre a ques tionarem”.112
Não há necessidade de multiplicar ainda mais os exemplos deste ritual preparatório do conflito final. O que interessa notar é que essas provocações, se não são interrompidas por algum motivo, têm um efeito cumulativo de tensões e acabam desembocando no desafio aberto entre os con tendores — indicando, agora sim, a iminência de um desenlace violento. O desafio significa que as tensões chegaram a um tal ponto que só podem ser resolvidas com a derrota flagrante de um dos rixosos. Todo o período de escalada de tensões é mais ou menos marcado pela valorização da linguagem e dos preconceitos machistas, mas, no momento do desafio — o momento da troca de palavras e insultos que precede imedia tamente o desfecho —, os conceitos ma chistas de coragem pessoal e destemor contaminam inteiramente o ambien te. O apelo aberto a tais conceitos parece indicar aos cir cun dan tes que a tensão é agora irredutível e o conflito é pratica mente inevitável. Assim, Bernardino e Antônio, ambos brasi leiros, de 22 anos, tiveram uma desavença porque Antô nio acusava Bernardino de estar surrando um menor. O preto Bernardino dizia, porém, que apenas brincava com o pe que no. Mas a ques tão continuava, já com diversas pessoas ao redor, e An tônio esbravejava, diz uma testemunha, que Ber nardino “estava espancando e que nenhuma das pessoas presentes naque la rua seria homem para continuar o trabalho encetado por ele, que isto deu lugar a se acalorar a discussão, puxando o acusado presente [Antônio] um revólver disparando contra o indivíduo com quem discutia”.113 Notase, portanto, que a própria testemunha viu na referên
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cia aos valores machistas o divisor de águas, o último estágio antes da agressão armada .
Numa briga entre dois portugueses na “venda do Manoel”, um dos contendores teria dito “Vou darlhe na cara”114 antes de agredir seu desafeto. Em outro caso ainda, Honório desafiou o seu oponente dizendo “que não o conhecia como homem”.115 Nesses insultos trocados imediatamente antes e durante a luta estavam também fortemente presentes as alusões aos predicados sexuais dos contendores ou de suas genitoras:116 “filho da puta” e “corno” podiam encabeçar a lista.117 Outras vezes, as alusões a preconceitos machistas ou sexuais misturavamse a insultos de conteúdo racista ou de rivalidade nacional: o português Manoel chamou o negro Faustino de “negro à toa, semvergonha, filho da puta, safado”, e “Eugênio Mulatinho” diz a seu oponente: “seu branco tu tens medo de morrer”.118 Pior ainda do que os insultos, a bofetada em público era um tipo de afronta que não devia deixar de ser vingada. Diziase na época que “uma bofetada só se desafronta com um tiro”, ou ainda, em uma outra versão, que “uma bofetada não se leva para casa”.119 De forma alguma o preceito cristão de oferecer o outro lado da face podia ser aqui encontrado.120 Vejamos, por exemplo, como Alcino Floriano, branco, natural de Minas Gerais, de 16 anos, explica na delegacia a briga que teve com Alfredo Magalhães, também natural de Minas Gerais, de 17 anos, sendo que os dois contendores eram carregadores empregados numa mesma padaria na Rua Voluntários da Pátria:
[...] o depoente achavase na padaria Estrela onde é empregado trabalhando quando seu [...] companheiro Alfredo começou a contar suas proezas; que o depoente disselhe que ele era um prosa e que de nada valia;
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que Alfredo retrucou ser ele acusado um puto e que se duvidasse davalhe uma bofetada; que o depoente disselhe que desse; que Alfredo vibroulhe então duas bofetadas e o depoente afastouse procurando de fenderse e foi em busca do revólver e trazendoo alvejou Alfredo detonando a arma duas vezes [...].121
O depoimento de Alcino mostra como as brincadeiras de cunho machista entre ele e seu companheiro de trabalho acabam se azedando, sendo que a competição verbal dá lugar à luta aberta quando um deles duvida que o outro tivesse a coragem de lhe vibrar uma bofetada. Alcino, atingido pela bofetada, faz valer o ditado popular e reage com tiros que não acertaram seu oponente. Na pretoria, acusado e testemunhas confirmam o teor da discussão entre os contendores, mas o acusado afirma que atirou apenas para amedrontar seu oponente, enquanto as outras testemunhas dizem que os tiros foram “por brincadeira”. O ofendido, porém, mantém que os tiros foram disparados “contra ele”. De qualquer for ma, parecia geral a noção de que um homem não podia “levar uma bofetada para casa”. Em um processo bastante revelador, um advogado de defesa consegue a absolvição de um réu que se desa frontou de uma bofetada disparando cinco tiros contra seu agressor. Os dois parágrafos abaixo são o início apoteótico do discurso do dito advogado:
Entre as muitas ofensas que um homem de brio e de dignidade não pode receber sem que a vergonha o force a reagir de qualquer modo, está a bofetada. Aquele que tem a infelicidade de receber tamanha afronta, não pode nem deixar de reagir, de qualquer forma que seja, sob pena de se ver o escárneo de todos, e, essa necessidade tanto mais urgente se torna quanto mais público é o local onde se der a ofensa.
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O infeliz que não tem bastante hombridade e coragem para reagir, nunca mais poderá fazer jus ao conceito de seus amigos, que serão os primeiros a dele escarnecerem. A cada passo lhe dirão estes “não tens brio”, e, em qualquer emergência da vida, terá estampada no rosto a mancha vermelha que sofreu e não soube apagar, como um espantalho. Triste situação!122
Em suma, o desafio aberto precede imediatamente a agress ão física. Mais do que isso, o desafio é a indicação se gura de que o ajuste violento já é previsível e praticamente ine vitável. O significado mais profundo do desafio é que um con fronto específico surgido das tensões provenientes das lutas políticas cotidianas de um determinado microgrupo sociocul tural já parece ter esgotado a sua possibilidade de solução pacífica. O predomínio da linguagem machista no momento crucial do desafio informa aos presentes que a cena de sangue está próxima. Em outras palavras, o machismo é fundamen talmente a linguagem de símbolos através da qual se expri mem ou se explicitam as tensões inerentes aos mi crogrupos socioculturais estudados.
O machismo é também um corpo de va lores que induzem os nossos personagens à ação. O homem despossuído constrói sua identidade social a partir do que faz, e não, obviamente, a partir do que tem, pois, por definição, ele nada ou pouco tem. Sendo assim, para ele, ser é fazer, e não possuir. Por isso, a ideologia machista como recons trução dos despossuídos revestese de todo um sentido de ação, de normas do agir na comunidade social. O machismo, porém, como conjunto de normas que induzem e orientam as ações dos homens, é um fenômeno social profundamente dialé tico. De um lado, o machismo é o código que norteia a dra matização e a ritualização dos conflitos entre os homens pobres
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em questão, permitindo, assim, que os microgrupos socioculturais estudados construam um sentimento coletivo e uma identidade social relativamente autônomos e originais. Mas, por outro lado, o código de conduta machista, ao oferecer seu prêmio à valentia e ao destemor, acentua a percepção que cada homem tem de si enquanto indivíduo, em oposição e interação contínua com outros indivíduos, inibindo, assim, a percepção que o homem despossuído possa ter de si enquanto elemento dentro de um conjunto — isto é, de um grupo de vizinhança ou de trabalho, por exemplo, mas, principalmente, de uma classe social. O machismo, então, se contribui para a criação de uma estrutura de sentimentos relativamente típica dos membros da classe trabalhadora, também ajuda a criar uma estrutura de sen timentos tal que limita a aproximação mais efetiva entre esses homens, facilitando, dessa forma, sua submersão nas leis impessoais da exploração do trabalho numa sociedade capitalista.123
Lazer e ritual (II): a prática do delito e suas seqüelas;o comportamento dos circundantes
Vezes, quando tudo parece repousar, o trânsito como que suspenso, as lanternas das hospedarias de última ordem lançando sobre as pedras das calçadas, em tons mortiços, laivos avermelhados, um grito — Ai! e um — Pega! Matou! Matou! Apitos.
luiZ edmundo124
Feito o desafio, em geral a luta começava imediatamente. No caso de luta física desarmada ou no caso em que os contendores se encontravam armados de faca, a luta era
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quase sempre acompanhada de uma troca de palavras que representava a continuação do desafio durante o desenrolar da luta. Um dos acusados dirigiu as seguintes palavras a sua vítima, após desferirlhe o golpe inicial: “A primeira tu levaste”.125 Outro acusado partiu para seu oponente gritando: “Vou darlhe na cara”,126 e outro ainda, mais ameaçador, avisava: “Preparese que vai morrer”.127 Mesmo quando arma dos de revólver, os contendores às vezes tinham tempo de trocar palavras desafiadoras. Assim, um dos acusados exclamou após disparar um tiro: “Se pegou, pegou, se não pegou, pegasse”.128 E o carroceiro Cândido, numa cena inesperada para os indivíduos presentes no botequim, continuou a provocar sua vítima mesmo depois de esta ter sido esfa queada e posta fora de combate: em gestos metódicos descritos com de talhes por quase todas as testemunhas, Cândido se agachou, molhou os dedos no sangue da vítima e levouos à boca, exclamando, segundo uma testemunha: “Isso não é sangue humano, é sangue de abelha, porque é doce”; de acordo com outra: “Que mel de abelha doce”; outra testemunha escutou: “O sangue era doce mas que ainda era pou co”; e outra ainda ouviu Cândido comentar: “Como isto está doce”.129 O fato de todas estas testemunhas relatarem esta cena ocorrida logo após a luta — e com esta já encerrada — com tantos detalhes indica, ao que parece, uma certa perplexidade dos presentes com relação ao gesto de Cândido. Os companheiros do botequim acharam, provavelmente, que Cândido se havia ex cedido ao continuar provocando seu oponente mesmo depois de têlo derrotado. A análise que se segue parece confir mar esta hipótese.
É a observação do comportamento dos circundantes que fornece as pistas mais reveladoras para a compreensão das normas que regulam a luta propriamente dita. Geral
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mente, o comportamento dos espectadores dos conflitos é no sentido de não interferir neles.130 Assim, Severo estava furioso com Oscar porque ele “tinha falado mal dele Severo com outra pessoa”.131 Severo dirigiuse à casa em que morava Oscar e disse que estava ali para “tomarlhe satisfações”. Enquanto isso, avistou Oscar na venda da esquina e para lá se dirigiu. Os dois rapazes discutiram sob a vista de diversas pessoas, atracaramse em seguida e, finalmente, Severo deu um tiro em Oscar. Apenas aí os circundantes procuraram in tervir, para socorrer o ofendido. Severo fugiu.
Um outro caso revelador é o do homicídio ocorrido entre membros da União Operária dos Estivadores.132 Os estivadores estavam realizando uma assembléia em sua sede quando surgiu forte discussão entre dois de seus membros: o caboclo nordestino Antônio Figueiredo e o preto Henrique Gomes. Os dois tinham rixa antiga devido a questões políticas internas da União Operária a que pertenciam. Depois de áspera discussão, os rixosos desceram para a rua. Apesar dos esforços do presidente da organização, a assembléia teve de ser interrompida porque todos queriam acompanhar a questão entre Henrique e Antônio. Continuando a contenda na rua, e sob a vista de grande número de estivadores, Antônio acabou desfechando diversos tiros em Henrique. Consumado o crime, algumas pessoas correram para Henrique, que logo morreu, e outras perseguiram o ofensor, aos gritos de “Pega! Pega o assassino!”.
Este comportamento no sentido de não interferir inicialmente na luta revela pelo menos dois pontos importantes: primeiro, esses homens consideram a luta uma das possi bilidades legítimas de solucionar certos conflitos; se gundo, a interferência dos circundantes quando uma das partes está inferiorizada ou incapaz de continuar a se defender sugere
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uma concepção de justiça segundo a qual a luta é válida e legítima enquanto há equilíbrio de forças entre as partes em confronto. Daí, portanto, a estranheza que Cândido parece ter causado a seus companheiros quando continuou a provocar a vítima mesmo depois de a haver derrotado. A luta, então, também é claramente programada e obedece a certos parâmetros ou normas estabelecidas e aceitas socialmente.
Apesar de a nãointervenção ser o comportamento dominante, os circundantes optam às vezes pela intervenção, e as conseqüências de tal opção são também mais ou menos previsíveis. Quando a intervenção ocorre para interromper uma luta em curso e ainda não definida, o foco da agressão com freqüência se desloca para a pessoa do mediador.133 Assim, por exemplo, Florêncio e Armindo eram antigos inimigos.134 Certo dia, Armindo estava com seu amigo Symphronio quando encontrou o pardo Florêncio. Os dois rapazes começaram a discutir e, ato contínuo, a trocar bordoadas, armados de pedaços de pau. Symphronio “tentou apartálos sendo então agredido com um pau pelo ofendido Florêncio”. No seguimento da luta, os contendores já não eram os mesmos: Symphronio foi quem disparou um tiro em Florêncio.
Cessada a luta, os circundantes têm dois cursos de ação pos síveis em relação ao acusado: tentar a sua prisão ou assistir à sua fuga. Para citar apenas dois exemplos extremos: o acusado João José da Silva, vulgo “João do Cavaignac”, deixou a cena do crime caminhando serenamente;135 já Antônio, o ofensor no caso mencionado de homicídio entre esti vadores, foi perseguido implacavelmente até ser preso.136 Parece que tudo dependia da relação do acusado com os espectadores da cena de sangue: João teve seu crime assistido por poucas pessoas, sendo as testemunhas mais ou menos neutras em relação ao conflito; Antônio, por outro
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lado, tinha muitos inimigos políticos entre os estivadores da União Operária e estes cuidaram de não deixar que ele escapasse. Outros fatores podiam ainda influenciar na decisão de tentar prender ou não o acusado: a intimação de um guardacivil e o estado grave ou morte instantânea da vítima tornavam mais provável a opção pela perseguição ao ofensor.
Outro fato de interesse são as repercussões do conflito na comunidade local. Não são muitas as informações contidas nos processos a este respeito, pois os interrogatórios policiais e judiciários eram mais dirigidos para esclarecimentos em torno dos antecedentes da luta e seu desenrolar propriamente dito. De qualquer forma, era relativamente comum que testemunhas baseassem seus depoimentos naquilo que sabiam “por ouvir dizer” a respeito de um certo crime ou de seus protagonistas. Estes depoimentos “por ouvir dizer” mostram como os conflitos repercutiam rapidamente nas vizinhanças: o aglomerado de pessoas que se reunia no local do crime detonava uma infinidade de informações sobre a ocorrência, e os populares discutiam avidamente nos dias seguintes todas as circunstâncias da luta. Essas discussões se caracterizavam por um grande “engajamento” dos participantes, ou seja, todos ofereciam sua “leitura” das causas e condições do conflito, posicionandose, assim, não só em relação ao conflito em si, mas também em relação às tensões inerentes ao microgrupo sociocultural do qual participavam. Algumas tes temunhas de um crime passional, por exemplo, declaram que em diversas “rodas” onde conversavam ouviram dizer que a mulher do acusado “procedia mal”.137 Em outro processo, dois homens brigam em um botequim. A luta ter mina sem vítimas, mas, no dia seguinte, o cadáver de um dos conten dores foi encontrado estendido na linha do trem. Teria sido um acidente ou um assassinato? As opiniões se dividem,
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como nos informa o português José Pereira, lavrador no subúrbio de Cordovil, onde se deu o conflito: “[...] que no trem em viagem mais tarde ouviu diversas opiniões: umas que José Caboclo tinha sido vítima de um desastre, outras era de que a morte de José Caboclo era devido a pancadas [...]”.138
O processo seguinte, devido a várias circunstâncias espe ciais, acaba nos fornecendo muitas informações sobre as repercussões do desaparecimento de um morador da localidade de Sepetiba, supostamente assassinado. Manoel Lyra, brasileiro, padeiro, de 26 anos, dá a sua versão dos fatos:
[...] que foi muito amigo do menor Dorselino seu ex companheiro de infância. Que há doze anos mais ou menos, achavase ele declarante na ilha da Madeira, fazendo uma pescaria, quando soube que Dorselino havia desaparecido de Sepetiba da noite para o dia; que apesar de todos os esforços empregados não só por seus parentes como também por seus amigos nunca foi possível saberse com segurança o fim que tivera Dor selino. Que ultimamente ouviu dizer em Sepetiba, que um espiritista dissera que o autor da morte de Dor selino fora Elias Netto e que essa referência fora feita em uma venda por Manoel Joaquim de Almeida, que ouvira ao próprio espiritista. Que não tem motivo para acreditar em semelhante fato, isto é, na responsabilidade de Elias, razão pela qual abstémse de fazer qualquer juízo a respeito [...].139
O caso, portanto, trata do desaparecimento de um menor de cerca de 15 anos ocorrido em Sepetiba 12 anos antes do inquérito policial em questão, que foi iniciado em dezembro de 1903. Um dos irmãos de Dorselino foi informado por um alfaiate da localidade que Manoel de Almeida havia dito numa venda ou botequim do lugar — num dia em que es tava embriagado — que sabia por um rapaz espírita
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que Elias havia matado Dorselino e que ele mesmo, Ma noel, havia sido forçado a ajudar a enterrar o corpo do menor. Tomando conhecimento destas declarações de Ma noel, o irmão de Dorselino vai à delegacia e faz uma denúncia contra Elias. A polícia abre o inquérito e inicia a tomada de depoimentos. No nível mais “concreto” do social, o que se extrai dos depoimentos é o seguinte: Elias era inspetor seccional quando do desaparecimento de Dorselino e, segundo Manoel de Almeida, “no exercício de tais funções [...] mostrouse sempre violento e perseguidor, não faci litando em mandar esbordoar a qualquer”. De qualquer forma, os dois irmãos de Dorselino que prestam declarações no inquérito e mais outra testemunha contam que Elias e Dor selino haviam tido “uma questão” na véspera do de sa pa recimento do menor, o que justificaria a suspeita de que Elias estivesse envolvido no caso. Mas havia ainda na lo cali da de quem pensasse que Dorselino havia morrido num nau frágio.
O caso, porém, tem também o seu lado místico: o fato é que uma boa parte do inquérito trata das denúncias de um “espírito”, pois diversas testemunhas afirmam que era desse modo que Manoel justificava o conhecimento que supostamente tinha do autor da morte de Dorselino. Num certo ponto, o duelo dos irmãos de Dorselino e seus amigos com o acusado Elias se expressa inteiramente através de uma linguagem transcendental; Elias presta novo depoimento e declara que
tendo uma moça por nome Emília Maurão, atualmente residente em Itaguahy, assistido a uma sessão espí rita em casa de Faustino Gaspar Gonçalves, mestre de linha da Estrada de Ferro Central do Brasil, aí ouvira dizer que tendo o referido Faustino invocado um espírito en carna do em Dorselino, menor a que já se referiu em
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suas declarações anteriores, este disse ter sido Arão Antonio d’Oliveira quem mandara matar o dito menor [...].
Elias, portanto, invoca o depoimento do próprio espírito de Dorselino para lançar a suspeita de assassinato sobre outro habitante de Sepetiba. O mais surpreendente de toda a história é que o processo tem prosseguimento, sendo encaminhado à pretoria para a tomada de novos depoimentos. O caso rola na Justiça por dois anos, sendo a denúncia declarada improcedente em novembro de 1905.
Duas circunstâncias especiais, pelo menos, combinamse para explicar a duradoura e profunda repercussão do caso Dorselino. Primeiro, o fato se deu em Sepetiba, uma localidade bastante pequena na época, a ponto de o acusado Elias, por exemplo, declarar “conhecer a todos os seus moradores, que não são muitos”. Segundo, e talvez mais importante, pensavase que Dorselino estava morto, mas seu cadáver não havia sido encontrado. Uma das características da documentação coligida é a ausência quase completa de referências à religiosidade popular. Como aparecem nos processos, os conflitos são completamente secularizados e, se no caso Dorselino temos um exemplo único de desavenças que se exprimem de certa forma através de sessões espíritas, a Igreja católica está quase que completamente ausente dos autos. Era comum, por exemplo, que os advogados dos réus procurassem indicar à Justiça depoentes que pudessem testemunhar sobre a “boa índole” de seus clientes; pois bem, em geral eram convocados pequenos proprietários, patrões, ou amigos dos réus que tivessem reputação de “trabalhadores morigerados”, mas não há sequer um exemplo no qual o pároco da igrejinha da vizinhança tenha sido convocado, mesmo nas freguesias rurais mais distantes da
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cidade. É geralmente em torno da morte que existem referências ocasionais à religiosidade popular: há o caso único no qual o ofendido agonizante pede “um padre para confessar”;140 e há o costume, exemplificado em diversos processos, de acender velas em torno do cadáver e varar a noite velando o morto. Esta preocupação com a morte talvez ajude a explicar a repercussão profunda do caso Dorselino, cujo fantasma ainda parecia rondar a localidade de Sepetiba. E talvez seja também significativo que as superstições ou crenças em torno do caso se tenham exprimido através dos “espiritistas” do local e não através de seus padres.141
Em suma, a análise do comportamento dos indivíduos presentes na cena de um conflito indica que o desenlace vio lento era visto por nossos protagonistas como uma possibilidade legítima de solucionar certas desavenças. No entanto, isso não autoriza a concluir que a violência era o principal mecanismo de ajuste entre esses homens. Os processos criminais são uma documentação especializada em violência e, portanto, não nos permitem nenhuma perspectiva quanto às outras modalidades de confronto e ajuste de tensões nos grupos humanos estudados. Além disso, tudo o que foi discutido mostra amplamente que a própria ocorrência da vio lência é algo normatizado, com os indivíduos envolvidos de sempenhando papéis socialmente previstos e aceitos. Ao con trário do que pensava João do Rio, por exemplo — e com ele a grande parte da elite brasileira passada e presente —, os homens de quem tratamos não são “perversos” nem simples “animais de instintos impulsivos”,142 mas sim homens comuns que fazem parte de uma dada cultura e que agem de acordo com regras de conduta preestabelecidas.
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noTas
1 K. Marx e F. Engels, “Manifesto of the Communist Party”, in Robert C. Tucker (ed.), The Marx-Engels reader. Nova York: W. W. Norton, 1978, p. 477.
2 E. P. Thompson, “Tiempo, disciplina de trabajo y capitalismo industrial”, in Tradición, revuelta y consciencia de clase. Barcelona: Crítica, 1969, pp. 271 e 288.
3 C. Brinton et al., A history of civilization: 1715 to the present. New Jersey: PrenticeHall, 1976, p. 671.
4 Benjamin Cohen, A questão do imperialismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1976, p. 23.
5 Nicolau Sevcenko, Literatura como missão: tensões sociais e criação cul-tural na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 43.
6 Eric J. Hobsbawm, A era do capital: 1848-1875. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 139.
7 Paul Singer, “O Brasil no contexto do capitalismo internacional: 18891930”, in Boris Fausto (org.), O Brasil republicano: estrutura de poder e economia: 1889-1930. São Paulo: difel, 1977, vol. 8, p. 352, coleção História Geral da Civilização Brasileira.
8 Sevcenko, op. cit., p. 45.9 Oswaldo Porto Rocha, A era das demolições: cidade do Rio de Janeiro:
18701920. Dissertação de mestrado, Universidade Federal Fluminense. Rio de Janeiro, 1983, p. 68.
10 Sevcenko, op. cit., p. 27.
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11 Eulalia M. L. Lobo, História do Rio de Janeiro (do capital comercial ao capital industrial e financeiro). Rio de Janeiro: ibmec, 1978, vol. 2, p. 449.
12 Idem, op. cit., p. 450.13 Sevcenko, op. cit., p. 28.14 Luiz Edmundo, O Rio de Janeiro do meu tempo. Rio de Janeiro: Con
quista, 1957, vol. 1, p. 33.15 Sevcenko, op. cit., p. 28.16 H. Pereira da Silva, Lima Barreto escritor maldito. Rio de Janeiro: Civi
lização Brasileira, INL, 1981.17 Lima Barreto, “O homem que sabia javanês”, in Clara dos Anjos. Rio de
Janeiro: Edições de Ouro, s.d., pp. 22736.18 Sevcenko, op. cit., p. 30.19 Lima Barreto, Recordações do escrivão Isaías Caminha. Rio de Janeiro:
Edições de Ouro, s.d., p. 82.20 Idem, Clara dos Anjos, op. cit., p. 188.21 Comentário de Maria Stella Bresciani ao artigo de Peter Linebaugh,
“Crime e industrialização: a GrãBretanha no século XVIII”, in Paulo S. Pinheiro (org.), Crime, violência e poder. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 139.
22 Idem, op. cit., p. 140. Sobre este assunto, ver ainda, no mesmo volume organizado por P. S. Pinheiro, o artigo citado de Peter Linebaugh e o artigo de Boris Fausto, “Controle social e criminalidade em São Paulo: um apanhado geral (18901924)”, pp. 193210. Especificamente sobre a polícia do Distrito Federal, ver Gizlene Neder e Nancy P. Naro, “A instituição policial na cidade do Rio de Janeiro e a construção da ordem burguesa no Brasil”, in vários autores, A polícia na corte e no Distrito Federal: 1831-1930. PUC–RJ, pp. 229307, Série Estudos, no 3.
23 Sidney Mintz, apud Herbert Gutman, Work, culture and society in in dus-trializing America: essays in American working class and social history. Nova York: Alfred A. Knopf, 1976, p. 16. Ver, ainda, Sidney Mintz e Richard Price, An anthropological approach to the Afro-American past: a Caribbean perspective. Filadélfia: Institute for the Study of Human Issues, 1976.
24 Esta hipótese geral de trabalho foi elaborada a partir da leitura de uma série de estudos que partem de preocupações teóricas semelhantes em contextos históricos distintos. Além dos dois trabalhos citados na nota
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anterior, podemos acrescentar: D. Hay, P. Linebaugh e E. P. Thompson, Albion’s fatal tree. Londres: Allen Lane, 1975; E. P. Thompson, Tradición, revuelta y consciencia de clase, op. cit.; idem, The making of the English working class. Londres: Penguin Books, 1968; idem, Whigs and hunters: the origin of the Black Act. Londres: Allen Lane, 1975; David Jones, Crime, protest, community and police in nineteenth century Britain. Londres: Routledge & Kegan Paul, 1982; J. Clarke, C. Critcher e R. Johnson, Working-class culture: studies in history and theory. Londres: Hutchinson & Co., 1979.
25 Correio da Manhã, 17 jul., 1906, p. 3.26 Luiz Edmundo, op. cit., vol. 1, p. 113.27 Idem, op. cit., pp. 11217; e Nosso século. São Paulo: Abril Cultural,
1980, vol. 1, p. 35.28 Luiz Edmundo, op. cit., p. 140.29 Idem, op. cit., p. 115.30 Idem, op. cit., p. 126.31 Francisco Ferreira, vulgo Chico da Cordoaria, no 710, maço 881, gale
ria a, 1907.32 Severo dos Santos Silva, no 4.984, maço 880, galeria a, 1906.33 Faustino José da Silva, no 601, galeria a, 1905.34 Adelino Fernandes, no 704, maço 881, galeria a, 1907.35 Manoel Joaquim Torres, no 4.945, maço 878, galeria a, 1904.36 Victor Fernandes, no 5.000, maço 880, galeria a, 1907.37 José de Jano, vulgo Pepino, no 737, maço 883, galeria a, 1908.38 Apolinário José Soares, no 4.936, maço 878, galeria a, 1905.39 Luiz Edmundo, op. cit., pp. 1045.40 Antônio Sebastião da Cruz e Álvaro Salles Pacheco, no 616, maço 876,
galeria a, 1905.41 Maria Célia P. M. Paoli, “Violência e espaço civil”, in vários autores, A
violência brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 55.42 Oscar Gomes da Silva, no 1.514, maço 906, galeria a, 1908. 43 Roberto Ozório, no 5.058, maço 886, galeria a, 1909.44 Marc Bloch já escrevia, há algumas décadas, que a mentira “é à sua
maneira um testemunho”. Ver Marc Bloch, Introdução à história. Publi
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cações EuropaAmérica, 1974, pp. 8485. Mais recentemente, Le Goff afirmou que “um documento é uma mentira se for adoptado no sentido positivista, pois que se esquece que a sua verdade está quase toda nas suas intenções”. Ver Jacques Le Goff, Reflexões sobre a história. Lisboa: Edições 70, s.d., p. 87.
45 Bruno Affonso de Mello, no 727, maço 883, galeria a, 1908.46 Joaquim Simões da Silva Freitas, no 5.013, maço 882, galeria a, 1907.47 Correio da Manhã, 26 jan., 1905, p. 3.48 A queixa contra a Justiça contida nesta frase foi feita pelo lavrador por
tuguês José Cunha, processo de Manoel Bonifácio da Silva e outros, no 4.935, maço 878, galeria a, 1906. Um réu declara que “defendeuse de uma agressão que lhe foi feita por inveja e que pobre e preso não pode produzir testemunhas em sua defesa”, processo de Manoel Joaquim dos Santos, no 5.161, maço 890, galeria a, 1910. Outro réu, a quem se perguntou: “Tem fatos a alegar em sua defesa?”, queixase que “achase preso à disposição deste juízo há dois meses sem ter cometido crime algum”. Com efeito, esse réu foi logo depois absolvido sem nem sequer ir a júri, processo de João Francisco Lucas, vulgo Contramestre, no 5.169, maço 890, galeria a, 1910.
49 Celeste Lauriano José de Souza, no 731, maço 883, galeria a, 1908.50 Para um caso extremo, no qual todas as testemunhas “somem”, im
pedindo a continuação do processo, ver Bonifácio Paim, no 714, maço 883, galeria a, 1905.
51 Casos nos quais testemunhas denunciam maustratos recebidos nas ruas e especialmente nas delegacias são comentados mais adiante.
52 Sobre este assunto, ver Mariza Corrêa, Morte em família. Rio de Janeiro: Graal, 1983, pp. 4349.
53 Correio da Manhã, 15 fev., 1905, p. 2; 15 jul., 1905, p. 2; 20 mar., 1905, p. 2; 12 fev., 1906, p. 2; 13 fev., 1905, p. 2; 9 jul., 1905, p. 2; e, sobre o tratamento aos presos, 18 maio, 1905, p. 3.
54 Correio da Manhã, 20 mar., 1905, p. 2.55 João José de Freitas ou João José da Silva, no 708, maço 881, galeria a,
1906.56 Malaquias Joaquim da Silva, no 4.988, maço 880, galeria a, 1906. Para
outro caso deste tipo, José Ângelo Evangelista, no 716, maço 883, galeria a, 1908.
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57 Nelson Lyrio, no 686, maço 881, galeria a, 1907. Para outro processo com uma estratégia idêntica de defesa, ver José Ezequiel Ferreira, vulgo Delegado, e Pedro Borges Pires, no 4.950, maço 878, galeria a, 1905. Em outro caso, a defesa procura desautorizar as declarações das testemunhas de acusação dizendo que estas eram “mais ou menos dependentes da polícia”, Benjamim Ignácio, no 4.941, maço 878, galeria a, 1905. No processo de Antônio Pessoa, no 713, maço 883, galeria a, 1907, o réu confessa o crime na delegacia, mas o advogado de defesa argumenta que “fêlo, porém, para evitar que a autoridade policial o coagisse pelos processos postos em vigor em tais ocasiões. Esta sua declaração na delegacia, filha do medo arrancado pelo pavor que lhe inspira os contínuos, intermináveis e suplicantes interrogatórios policiais, V. Exa. Juiz, conhecedor da lei bem sabe que não tem valor [...]”. Evaristo de Moraes também questiona a autenticidade da confissão do réu num dos processos em que atua, Arthur Frederico de Noronha, no 717, maço 883, galeria a, 1908. Outro advogado de defesa afirma ainda que “foi escandalosamente armado o tal auto de flagrante”, Manoel da Costa Carvalho, no 5.053, maço 884, galeria a, 1908.
58 Francisco Ferreira, vulgo Chico da Cordoaria, no 710, maço 881, galeria a, 1907.
59 Joaquim Gonçalves Servos, no 1.046, maço 893, galeria a, 1909.60 Adão Reder, no 4.959, maço 879, galeria a, 1906.61 Edmundo Pfaltzgraff de Oliveira Paranhos, no 5.059, maço 886, galeria
a, 1908.62 Herculano Pereira Soares, no 1.055, maço 895, galeria a, 1911.63 Para mais dois casos deste tipo, ver Mário da Rocha Pereira, no 1.066,
maço 895, galeria a, 1911, e Alexandre José da Trindade, no 1.076, maço 895, galeria a, 1911. Neste último, o advogado de defesa apenas alega que as testemunhas “queixamse [...] de haverem sofrido violências praticadas pela autoridade policial”.
64 Adão Reder, no 4.959, maço 879, galeria a, 1906.65 Caetano Grossi, no 1.063, maço 895, galeria a, 1911.66 Francisco Cordeiro Muniz, vulgo Pernambuco, e Bernardo de Souza
Guedes, no 1.041, maço 893, galeria a, 1910.67 Alfredo Gomes Moreira, s.no, maço 895, galeria a, 1911. Para outros
casos, além dos já citados, nos quais as testemunhas parecem mudar
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seus depoimentos por ocasião do sumário na pretoria para auxiliar o réu, ver Manoel Garrido, no 605, maço 876, galeria a, 1905, e Antônio Martins, no 1.064, maço 895, galeria a, 1911. No último caso, o juiz impronuncia o réu, considerando que “quase todas as testemunhas se retrataram de declarações prestadas no inquérito”.
68 Todo este relato é baseado no artigo de Sandra L. Graham, “The vintem riot and political culture: Rio de Janeiro, 1880”, Hispanic American Historical Review, 60 (3), 1980, pp. 43149.
69 Sobre a revolta da vacina, ver Edgar Carone, A República Velha: evolução política (1889-1930). Rio de Janeiro, São Paulo: difel, 1977, pp. 21329. Para dois relatos mais recentes e elaborados, ver Nicolau Sevcenko, A Revolta da Vacina: mentes insanas em corpos rebeldes. São Paulo: Brasiliense, 1984, coleção Tudo é História; e José M. de Carvalho, “A Revolta da Vacina”, seminário Rio Republicano, Fundação Casa de Rui Barbosa, out., 1984.
70 José Vieira, O bota-abaixo. Rio de Janeiro: SelmaEditora, apud Edgar Carone, A Primeira República: texto e contexto. Rio de Janeiro, São Paulo: difel, 1976, p. 43.
71 Jornal do Commercio, 17 nov., 1904, apud Edgar Carone, A República Velha: evolução política (1889-1930), op. cit., pp. 22627.
72 João do Rio, “As crianças que matam”, in Histórias da gente alegre (org. J. C. Rodrigues). Rio de Janeiro: José Olympio, 1981, p. 40.
73 E. P. Thompson, The making of the English working class, op. cit., pp. 21213.
74 Sidney Mintz e Richard Price, An anthropological approach to the Afro-American past: a Caribbean perspective, op. cit., p. 4.
75 F. Engels, A situação da classe trabalhadora em Inglaterra. Porto: Afrontamento, 1975.
76 Ver, para um exemplo recente, Alberto Passos Guimarães, As classes perigosas: banditismo urbano e rural. Rio de Janeiro: Graal, 1982.
77 Maria Célia P. M. Paoli, op. cit., p. 47.78 Idem, op. cit., p. 45.79 Sobre a programação social dos comportamentos, ver F. RossiLandi et
al., Diccionario teórico-ideológico. Buenos Aires: Editorial Galerna, 1975.80 Obviamente, esta ritualização do conflito não se restringe a situações
ocorridas durante os períodos de lazer dos populares, como ficará claro
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na exposição que se segue. A sua inclusão neste contexto devese a razões teóricas — a preocupação, neste capítulo, de mostrar a existência de uma cultura popular largamente independente e insubmissa na cidade do Rio de Janeiro em processo de transição para uma ordem burguesa — e empíricas — o botequim é uma presença marcante em todas as etapas do ritual da luta, como se verá nas páginas seguintes.
81 Maria Sylvia de Carvalho Franco, Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo: Ática, 1976, p. 23.
82 W. B. Taylor, Drinking, homicide and rebellion in colonial Mexican vil-lages. Stanford: Stanford University Press, 1979, pp. 9097.
83 J. van Velsen, “The extendedcase method and situational analysis”, in A. L. Epstein (ed.), The craft of social anthropology. Londres: Tavistock, 1967, p. 147.
84 José Antônio Cardozo e Joaquim Pereira Rangel, no 5.072, maço 886, galeria a, 1908.
85 José Vairo, no 71, caixa 270, galeria a, 1907. 86 Miguel Nunes de Paiva, no 690, maço 881, galeria a, 1907. 87 Oscar Antônio da Costa, no 1.043, maço 893, galeria a, 1910. 88 Manoel Corrêa Villela, no 734, maço 883, galeria a, 1908. 89 Manoel Bonifácio da Silva e outros, no 4.935, maço 878, galeria a, 1906. 90 Severo dos Santos Silva, no 4.984, maço 880, galeria a, 1906. 91 Graffion Louis Jean Baptiste Edouard, no 2.958, maço 2.123, galeria
a, 1908. 92 João Patrício de Oliveira Figueiredo, no 709, caixa 760, galeria a, 1899. 93 Sobre o conceito de “política do cotidiano”, ver capítulo.94 Antônio Paschoal de Faria, no 2.029, maço 995, galeria b, 1907. Para
outros exemplos de brigas durante jogos no botequim, ver Francisco Peixoto, no 96, caixa 1.148, galeria a, 1910, e Manoel Garrido, no 605, maço 876, galeria a, 1905.
95 Correio da Manhã, 31 ago., 1906, p. 3. 96 Antônio Rodrigues da Silva, no 4.961, maço 879, galeria a, 1906. 97 Luiz Edmundo, op. cit., vol. 4, p. 807.98 Lucílio de Alcântara, no 1.040, maço 893, galeria a, 1911. 99 Luiz Edmundo, op. cit., vol. 4, p. 822.
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100 Manoel Pereira Leite, no 4.980, maço 879, galeria a, 1906. 101 Luiz Edmundo, op. cit., vol. 2, p. 400. 102 João Bandeira, no 2.902, maço 2.191, galeria a, 1908. 103 Mariano Solanez Alegret, no 5.063, maço 886, galeria a, 1909. 104 Antônio Paschoal de Faria, no 2.069, maço 995, galeria b, 1907. 105 João Eufrosino, no 5.168, maço 890, galeria a, 1908. 106 Joaquim de Andrade Bastos, no 5.061, maço 886, galeria a, 1908. 107 Sebastião Pereira da Silva e outro, no 2.775, maço 2.120, galeria a,
1907. 108 Antônio Rodrigues da Silva, no 4.961, maço 879, galeria a, 1906. 109 João Eufrosino, no 5.168, maço 890, galeria a, 1908. 110 Antônio Rodrigues da Silva, no 4.961, maço 879, galeria a, 1906. 111 João José da Silva, vulgo João do Cavaignac, no 1.515, maço 906,
galeria a, 1907.112 Luiz José de Faria, no 4.995, maço 880, galeria a, 1910. 113 Antônio Marinho, no 1.992, maço 913, galeria a, 1910. 114 Joaquim Bernardo Pereira Florindo, no 1.495, maço 905, galeria a,
1908. 115 Joaquim Simões da Silva Freitas, no 5.013, maço 882, galeria a, 1907. 116 Taylor, op. cit., constata algo semelhante para o México colonial (pp.
8182). M. S. C. Franco, op. cit., também enfatiza o conteúdo machista do desafio; ver especialmente pp. 4752.
117 Manoel de Abreu, no 1.437, maço 903, galeria a, 1907.118 Faustino José da Silva, no 601, maço 876, galeria a, 1905, e Mário da
Rocha Pereira, no 1.066, maço 895, galeria a, 1911. 119 João Eufrosino, no 5.168, maço 890, galeria a, 1908.120 Franco, op. cit., faz constatação semelhante para o mundo caipira (p.
51).121 Alcino Floriano, no 1.038, maço 893, galeria a, 1910. 122 João Eufrosino, no 5.168, maço 890, galeria a, 1908. 123 Para uma análise da dialética indivíduo–pessoa no Brasil contemporâneo,
ver Roberto Da Matta, Carnavais, malandros e heróis: para uma sociolo-gia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
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124 Luiz Edmundo, op. cit., vol. 1, p. 195.125 João José da Silva, vulgo João do Cavaignac, no 1.515, maço 906,
galeria a, 1907.126 Joaquim Bernardo Pereira Florindo, no 1.495, maço 905, galeria a,
1908.127 Jorge Frederico de Paiva ou Jorge de Paiva Frederico, no 4.953, maço
878, galeria a, 1905.128 João Patrício de Oliveira Figueiredo, no 709, caixa 760, galeria a, 1899.129 Jorge Frederico de Paiva ou Jorge de Paiva Frederico, no 4.953, maço
878, galeria a, 1905.130 Ver também Franco, op. cit., p. 52.131 Severo dos Santos Silva, no 4.984, maço 880, galeria a, 1905.132 Antônio Francisco de Figueiredo, no 1.108, maço 897, galeria a, 1906.133 Ver também Franco, op. cit., p. 53.134 Symphronio Carvalho da Silva Júnior, no 150, maço 2.128, galeria a,
1906. 135 João José da Silva, vulgo João do Cavaignac, no 1.515, maço 906,
galeria a, 1907.136 Antônio Francisco de Figueiredo, no 1.108, maço 897, galeria a, 1906.137 Edmundo Pfaltzgraff de Oliveira Paranhos, no 5.059, maço 886, gale
ria a, 1908.138 Manoel Bonifácio da Silva e outros, no 4.935, maço 878, galeria a,
1906.139 Elias Antônio da Silva Netto, no 4.955, maço 878, galeria a, 1904.140 Bernardino Francisco de Almeida, no 609, maço 876, galeria a, 1905.141 E isto apesar de “praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios” etc.
ser crime previsto no Código Penal de 1890 (cap. 3 — Dos crimes contra a saúde pública, artigo 157). Para exemplo de um processo deste tipo, ver Maria de tal e outra, no 143, caixa 1.901, galeria a, 1899.
142 João do Rio, “Os livres acampamentos da miséria”, in op. cit., p. 81.
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Epílogo
a volTa de Zé galego e seus comPanheiros,
ou a reinvenção da hisTória
A sociedade da metade do século XX, com os problemas que se colocam diante de nós, como a atitude diante da vida, a atitude diante da morte, os contraceptivos etc., são para mim fontes históricas. Não posso fazer abstrações das observações que faço quando saio na rua. A vida de todos os dias é apaixonante e quanto mais ela for cotidiana mais ela será apaixo nante. Talvez seja essa, para mim, a maneira de entrar na História. Não digo que seja o fundamental. O fundamental é mais, como já disse, o desejo de encontrar um mistério central, mas nunca estamos dian te do mistério central, estamos no meio da rua. Então, eu caminho por um mundo que é um mundo de curiosidade, excitando constantemente minha curiosidade, algumas vezes maravilhandome: por que tal ou qual coisa? E é isso que me faz pular para o passado: eu penso que
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nunca segui um comportamento histórico que não tivesse como ponto de partida uma questão colocada pelo presente.
PhiliPPe ariès1
As palavras simples e diretas de Philippe Ariès captam com precisão os dois impulsos constitutivos fundamentais da curiosidade do historiador: sua inserção no presente e sua capacidade de “estranhar”. Já há mais de duas décadas o historiador E. H. Carr, utilizando uma fórmula hoje em dia um tanto trivial — o que não a torna, contudo, menos relevante —, afirmava que a história “é um processo contínuo de interação entre o historiador e seus fatos, um diálogo sem fim entre o presente e o passado”.2 Neste sentido, o ponto de partida desta pesquisa relacionase estreitamente com o meu viver na cidade do Rio de Janeiro em nosso tempo, com o viver o cotidiano de uma cidade ataviada por sua po breza, injustiça e violência — e, ainda assim, paradoxalmente adjetivada de “maravilhosa”. O ponto de partida é, portanto, distante de qualquer originalidade, mas é um ponto de partida simplesmente humano e existencial — não o existencial que causaria horror aos “cientistas”, mas sim aquele reservado ao ser político, potencialmente transformador das coisas e das vidas.
Partese, portanto, do olhar, do sentir, da capacidade de “estranhar” — de “recriar a admiração”, no sentido empregado por Febvre.3 Tratase, simplesmente, de “estranhar”, num caminhar atento pela cidade: que muitas pessoas peçam esmolas, que outras dêem esmolas; que muitas pessoas equilibrem suas casas nas encostas dos morros, que outras estejam solidamente instaladas aqui embaixo; que muitas das pessoas penduradas nas encostas tenham a pele de cor escu
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ra, que as daqui de baixo sejam quase todas de pele branca; e assim por diante, indefinidamente. Tratase, simplesmente, de tentar entender como e por que coisas e pessoas se fizeram assim, e não de qualquer outra forma.
Partindo destes impulsos iniciais, penso que a história pode obter resultados relevantes. Gostaria de argumentar, em forma de polêmica, que a história serve, em última instância, para complicar a vida, ou seja, ao explorar sistemati camente o “estranhamento” inicial, o historiador cria condições para a percepção do real como construção, como “invenção” de seres humanos concretos em processo de in teração e luta entre si. Em outras palavras, a história nos instiga a pensar o social — passado, presente e futuro — como processo tecido na contradição e na luta, e não como “anestesia”, como “mes mice”, isto é, como ponto de chegada necessário de um cami nhar linear, harmônico e teleológico.
Para o historiador, então, Zé Galego, Paschoal e Júlia vivem. Eles vivem porque a recuperação de alguns de seus movimentos significou também reconhecermos aspectos relevantes da nossa própria existência. Mais do que isso, Zé Galego, Paschoal e Júlia nos complicaram a vida. Eles nos fizeram compreender que existem diversas versões para os movimentos de sua vida e que sua vida tem sido geralmente construída ou inventada apenas a partir de certas versões. Assim, Zé Galego e seus companheiros nos passam a noção de que nossa própria vida está sendo continuamente in ventada e que, mais ainda, há sempre a possibilidade — que se procura sistematicamente amputar — de reinventarmos nossa existência a partir da ênfase em versões e atos alternativos àqueles ansiosamente esperados de nós.
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noTas
1 Trecho de entrevista de Philippe Ariès concedida originalmente ao Nouvel Observateur e transcrita na contracapa de Philippe Ariès, História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
2 Edward H. Carr, What is history? Nova York: Vintage Books, 1961, p. 35.3 Lucien Febvre, “Febvre, in memoriam de Marc Bloch. Lembrança de
uma grande história”, in Carlos Guilherme Mota (org.), Febvre. São Paulo: Ática, 1978, p. 161. Mais recentemente, numa breve introdução geral a uma história das ideologias, François Châtelet observa que tal estudo poderia nos ajudar a perceber quanto “agora também é estranho”. Ver François Châtelet (org.), Les idéologies. Paris: Marabout, 1981, p. 11.
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Anexo
um quarTo numa casa de cômodos
O segundo capítulo deste livro, no item intitulado “Mulheres ‘da gandaia’?”, narra em certo momento o fim trágico e controvertido da relação amorosa envolvendo Joa quim Verçosa Callado e Aristea Lins. Aristea aparece morta com um tiro no ouvido no quarto da casa de cômodos onde o casal residia. O caso suscitou uma demorada investigação da polícia, pois Joaquim afirmava que sua amásia se havia suicidado, enquanto os outros moradores da casa de cômodos falavam em assassinato. O “auto de exame de local”, realizado pelos peritos do Serviço MédicoLegal da polícia, descreve minuciosamente o quarto da casa de cômo dos, assim como os objetos lá encontrados, incluindo ainda três fotos excelentes da cena da tragédia. O quarto descrito e foto grafado parece típico das casas de cômodos da cidade do Rio de Janeiro do início do século XX, e o trabalho dos peritos da polícia no caso acabou nos legando um documento bastante detalhado sobre uma fatia importante do modo de vida de um bom número de nossos personagens.
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Seguemse o trecho principal do auto de exame do local e a reprodução das fotos que constam do processo criminal movido contra Joaquim (no 5.040, maço 884, galeria a).
A duas horas e dez minutos da tarde, do dia onze de Outubro de mil novecentos e oito, em presença da Autoridade respectiva, foi procedido, pelos peritos, acima mencionados, médicos legistas da Polícia do Distrito Federal, exame de local em um quarto do prédio número cinqüenta e cinco da rua de Santa Anna, cuja porta de acesso se achava fechada e devidamente lacrada, tendo a rubrica do Doutor Delegado do Décimo Quarto Distrito Poli-cial. Mede o aposento: dois metros e noventa centímetros de largura, três metros e noventa centímetros de comprimento, e três metros e noventa e sete centímetros de altura. Achando-se, aí, neste aposento, encostados à parede situada à direita de quem entra, onde existem duas janelas, meio vidraça e veneziana, que dão para uma área da casa: primeiro, uma mesa, sobre a qual se encontram pratos com alimentos, uma pequena caixa de cos-tura, um ferro de engomar, uma vasilha com café, um fogareiro a álcool, talheres, uma garrafa com vinho e outra com espírito. Por baixo dessa mesa, acham-se dois baús velhos, um cesto de vime para roupa usada e uma bacia de folha de flandres. Segundo: uma mesa, sobre a qual existem uma xícara das de chá e uma outra de café, sujas deste último líquido, um açucareiro e um bule com café, e dois fragmentos de rosca. Terceiro: uma cadeira onde repousa uma lata com fumo e papéis finos próprios para cigarros. Quarto: duas malas de madeira sobrepostas de forma paralelogrâmica. Junto à parede, à esquerda de quem entra, acham-se: Primeiro, uma mala grande de madeira; segundo, um cabide com roupas e chapéus de homem; terceiro, um violão; quarto, uma cama de casal, cujo colchão mede um metro e trin-
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ta de largura por um metro e setenta e dois de comprimento. Sobre esse colchão, despido de lençóis, se encontram quatro tra-vesseiros com fronhas brancas, sem manchas notáveis. Na porção correspondente aos travesseiros, à esquerda da pessoa que se deita, e à quarenta e três centímetros para dentro do bordo do colchão, que se acha fora da parede lateral esquerda do quarto, e a vinte e dois centímetros abaixo do bordo inferior do travesseiro de bai-xo, acham-se três manchas recentes de sangue que se ligam, entre si, por pequenos raios centrífugos e que medem, a maior, em baixo, dez centímetros em seu maior comprimento e sete em sua maior largura; a superior, situada mais para fora, dois por dois; e, a terceira, um pouco para dentro desta, três por um cen-tímetros. Debaixo da cama, na face inferior do colchão, nas tá-buas desse móvel nenhuma outra mancha de sangue se encontra. No assoalho repousam: um vaso com urina, já em decomposição; duas es car radeiras, com pontas de cigarros; um baú de folha; uma caixa de papelão; um cesto de taquara; um par de botinas de pelica marrom e um par de chinelos amarelos. Junto à parede que fica em frente à pessoa que entra acham-se; primeiro, uni-da à cama, uma cadeira; segundo, à cinqüenta e sete centíme-tros do bordo livre da cama, uma mesa, sobre a qual existem li-vros, pentes, escovas, uma caixa de folha, tinteiro e penas, um copo para água e outros objetos que tomam a superfície superior desse móvel; terceiro, uma cadeira, sobre a qual repousam duas moringas de barro e uma caixa de folha. Junto à quarta parede do aposento, a que separa o quarto do corredor, existem: primeiro, um lavabo, com bacia cheia d’água; segundo, um pequeno armário de madeira, com substâncias alimentícias; terceiro, um cabide, com roupas de uso; quarto, um cesto de roupas sujas, com peças de vestuário; quinto, um oratório, com diferentes imagens religiosas. Decoram a parede que faz frente para quem entra: um retrato do Marechal Floriano Peixoto, ladeado por duas
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cápsulas de bala de canhão revólver; dois quadros, retratos em grupo de “ Guardas-Civis”; um espelho; dois vidros de perfumes; um relógio desper tador, parado em duas horas e quarenta e dois minutos; e várias outras fotografias e cromos, que também se acham pregadas na parede esquerda do aposento. As malas de madeira que foram descritas juntas à parede lateral direita, sob o número quatro, distam um metro e sessenta e três centímetros do bordo livre da cama. Nenhuma mancha de sangue se verifica, além das que já foram descritas em todo o aposento, cujo exame não desvenda sinais de luta que por acaso aí se tivesse passado. Nada mais havendo...
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Manuscritos
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Decreto no 4.764 de 5 de fevereiro de 1905: “ Regulamento da Secretaria de Polícia do Distrito Federal”
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Recenseamento do Rio de Janeiro realizado em 1906
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Autor
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Editoração eletrônica
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TipologiaNúmero de páginas
Trabalho, lar e botequimO cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque
Sidney Chalhoub
José Emílio MaiorinoRicardo LimaEva Maria MaschioEdnilson TristãoAna Paula GomesKatia de Almeida RossiniEva Maria MaschioRossana Cristina BarbosaSirleide Rios VitorAna BasagliaLygia Arcuri ElufAna Basaglia14 x 21 cmOffset 75 g/m2 – mioloCartão supremo 250 g/m2 – capaGalliard BT368
esta obra foi impressa na gráfica rettec
para a editora da unicamp em julho de 2012.
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Muitos livros são bons. raríssimos são eternos. Poucos podem ser lembra-dos como marcos importantes pelos contemporâneos. trabalho, lar e bo-tequim faz parte desse seleto grupo. A oportuna reedição vem sanar a inex- plicável ausência, nas livrarias, de um texto que foi capaz de apontar cami-nhos para os especialistas de sua gera- ção: no interior de uma história social voltada quase exclusivamente para movimentos sociais ou propostas de revolução, sidney Chalhoub foi buscar histórias de amor, brigas de botequim, tensões entre indivíduos, grupos ét-nicos e nacionalidades, a trama do dia-a-dia, as formas de ganhar a vida no rio de Janeiro da chamada belle époque, para descobrir, no cotidiano da classe, um outro lugar da política. Escrito na metade da década de 1980, o livro constitui um exercício exemplar com processos criminais. Com eles, devolveu a personagens anônimos a capacidade de falar sobre si mesmos para revelar valores, formas de soli-dariedade ou de conflito — e nos fa-zer sentir o seu inconfundível “cheiro de carne humana”, como dizia lucien Febvre. Mas Paschoal, Júlia, Zé Galego e outros que povoam estas páginas deixam entrever também, além dos significados históricos que o autor evi-dencia, o notável talento para a pes-quisa e a narrativa histórica que marca o conjunto da sua obra.
Maria Clementina Pereira Cunha
sidney Chalhoub nasceu na cidade do rio de Janeiro em 1957. É professor de história na unicamp desde 1985. Publicou, além de trabalho, lar e botequim (1986), visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte (1990), Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte imperial (1996) e Machado de Assis, historiador (2003). Participou da orga-nização de quatro livros coletivos: A História contada: capítulos de história social da literatura no Brasil (1998), Artes e ofícios de curar no Brasil (2003), História em cousas miúdas: capítulos de história social da crônica no Brasil (2005) e trabalhadores na cidade: cotidiano e cultura no rio de Janeiro e em são Paulo, séculos XiX e XX (2009). É pesquisador do Centro de Pesquisa em História social da Cultura (Cecult–unicamp).
Sidn
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O cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque é o tema central desse grande livro [...] Em meio à escravaria recém-libertada, o Rio de Janeiro se civilizava, com a ajuda de um urbanismo despótico que limpava o po-pulacho de toda a cidade. Em 1890 [...] 34% da população eram negros. As classes cultas fingiam não ver, para não empanar um Champs Elysées tropical.
[...]
Que as classes dominantes tentassem enquadrar os popu-lachos nas suas disciplinas, nada a espantar. O que Sidney Chalhoub mostra com elegância (criticar sem destroçar o acumulado de conhecimento) é a que ponto o esforço da ideologia dominante penetrou as análises acadêmicas. Não se pretende dizer que tudo antes de Chalhoub pere-ça: simplesmente muitas pesquisas sobre as classes tra-balhadoras ganham novos e estimulantes significados.
[...]
Não se trata de celebrar a “sabedoria” popular, mas re-cuperar a contradição, o conflito, a inovação, a invenção. Tudo escrito com a seriedade de um folhetim, onde o rigor não empana o gozo da leitura.
Paulo Sérgio PinheiroExtraído de “Viagem ao lado escuro da belle époque carioca”,
Folha de S. Paulo, Ilustrada, 4 de maio de 1986
Sidney Chalhoub
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