UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA
LABORATÓRIO DE ANTROPOLOGIA SOCIAL
NÚCLEO DE IDENTIDADES DE GÊNERO E SUBJETIVIDADES
GÊNERO, FEMINISMO E CIÊNCIAS
Relatório final apresentado para a
disciplina de Prática de Pesquisa I,
sob coordenação do professor Scott
Correl Head no segundo semestre do
ano de 2012.
ALUNA: Bruna Klöppel
ORIENTAÇÃO: Profa Dra Miriam Pillar Grossi
FLORIANÓPOLIS, dezembro de 2012.
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SUMÁRIO
GÊNERO, FEMINISMO E CIÊNCIAS _______________________________________ 1
SUMÁRIO _______________________________________________________________ 2
1. Introdução _______________________________________________________ 3
2. Discussões ________________________________________________________ 3
2.1 21/09/2012 __________________________________________________________________ 3
2.2 28/09/2012 __________________________________________________________________ 6
2.3 05/10/2012 __________________________________________________________________ 8
2.4 19/10/2012 __________________________________________________________________ 9
2.5 26/10/2012 _________________________________________________________________ 11
2.6 30/11/2012 _________________________________________________________________ 13
2.7 07/12/2012 _________________________________________________________________ 14
2.8 14/12/2012 _________________________________________________________________ 16
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1. Introdução
O presente relatório trata das principais discussões suscitadas ao longo do
semestre durante a minha participação no Grupo de Estudos Gênero, Feminismo e
Ciências, sob coordenação da bolsista PNPD CAPES Caterina Rea, pós-doutoranda no
Núcleo de Identidades de Gênero e Subjetividades (NIGS), coordenado pela professora
Dra. Miriam Pillar Grossi. As reuniões aconteceram às sextas-feiras, das 18h30 às
20h30 na sala 317 do Centro de Filosofia e Ciências Humanas, nas quais foram
discutidas diversas correntes feministas e sua relação com temas diversos, além de
discussões acerca do campo conhecido como Gênero e Ciências. Foram oito encontros
ao longo do semestre, nos quais em quatro deles foram discutidos textos relativos aos
temas, apresentados em forma de seminários pel@s própri@s participantes do grupo.
Nos outros quatro, palestrantes convidad@s falaram sobre suas experiências de
pesquisa em áreas afins. O grupo existe sob essa coordenação desde o início de 2012,
que foi quando dei início à minha participação, ainda que conste nesse relatório apenas
as atividades do segundo semestre.
As discussões serão trazidas no relatório através da divisão em oito partes do
subtítulo de mesmo nome, que correspondem aos encontros do grupo, e nas quais serão
relatados os principais debates e questões levantados no dia. Tais partes serão
intituladas com a data do encontro, e nelas serão colocados os textos lidos e discutidos
na semana seguido de resumo da apresentação realizada ou, quando for o caso, um
resumo da palestra ou mesa redonda.
2. Discussões
2.1 21/09/2012
Na primeira reunião do grupo de estudos realizada no semestre, tivemos o privilégio
de uma mesa redonda intitulada "Feminismo, Arte e História da Ciência", composta
pela Dra. Rosa Blanca, que tratou da queerização dos códigos binários, e pelo
mestrando Vinícius Kauê Ferreira, que está fazendo um trabalho comparativo sobre a
Antropologia na Índia e a indologia francesa.
4
A apresentação de Rosa Blanca tinha como objetivo problematizar o código binário,
acrescentando às perspectivas de Michel Foucault, Judith Butler e Beatriz Preciado
sobre as corporificações identitárias, uma análise própria. Tinha como argumento que
esses são processos que se executam através de informações visuais, o que denomina
“regime epistemológico visual”.
Como sua principal atuação é na área das Artes, Blanca busca em Gloria Anzaldua
inspiração, ainda que essa tenha sua produção centrada na literatura. Enquanto pioneira
dos estudos queer, essa autora busca superar todas as fronteiras, sejam elas raciais,
nacionais, sexuais e também disciplinares. Rosa Blanca a tem como uma referência
importante para o que seu trabalho objetiva. Outro aporte utilizado por ela é a
genealogia de Nietzsche e Foucault, já que essa permite entender e resgatar como um
conceito é usado em um contexto particular e num quadro epistemológico mais geral,
sem focar em um ponto de onde seria descendente direto.
Rosa divide sua fala em três partes, sendo elas “pressupostos (i)lógicos”, “breve
genealogia do código binário” e, por fim, “queerizando através da arte”. No primeiro
dos pontos, Rosa coloca uma forte crítica à ciência, realizada tanto pelos estudos
feministas quanto pel@s teóric@s queer, questionando sua divisão disciplinaria e a
forte categorização que conduz, acabando por reafirmar fronteiras no lugar de desfazê-
las, que é o que propõe a teoria queer, radicalizando as ideias feministas. No segundo
ponto, utiliza-se da teórica Cherie Zalaquett, que faz uma separação entre
epistemologias legítimas e bastardas, sendo as primeiras as construídas dentro do
modelo científico racional e ocidental e as segundas aquelas que se contrapõem a ele.
Ainda, busca autores como Carl Von Linné e Charles Darwin, colocando-os como
importantes precursores dos binarismos. Por fim, no terceiro ponto, Blanca coloca
algumas produções artísticas que questionam o código binário, queerizando-o. Um dos
projetos do qual fala é de Margarita Ariza, intitulado Blanco Porcelana, que reflete
sobre o racismo. Além disso, Rosa nos mostrou sua produção fotográfica que objetivava
a mesma queerização quanto às normas de gênero.
Já o trabalho de Vinícius Ferreira, intitulado "Antropologia, alteridade e
ambivalência : notas sobre a Antropologia na Índia (e na França)", foi inspirado em
teóricas feministas como Sandra Harding e sua "objetividade robusta"1, Mariza Corrêa e
1 A objetividade robusta de Sandra Harding não questiona a própria objetividade, mas a ideia de que o
conhecimento se produz a partir de algum lugar, o qual deve ser explicitado pel@ cientista. Contrapõe-se
à objetividade fraca que parte de uma suposta neutralidade.
5
sua reconstrução da Antropologia a partir da margem2 e no documentário de Miriam
Grossi e Carmen Rial intitulado "Mauss segundo suas alunas" que, a partir de uma
perspectiva de gênero, resgata uma parte importante da história da antropologia
francesa3.
Inspirado por Shiv Visvantham4, Ferreira pretende refazer a trajetória da
Antropologia indiana e as narrativas históricas sobre suas principais correntes. Essas
narrativas incluem também um ponto de vista ocidental sobre a Índia, legitimada sob a
figura de Louis Dumont, importante representante da indologia francesa. A questão
principal é, portanto, problematizar as disputas de prestígio e legitimidade refletindo
antropologicamente sobre a Antropologia feita na e sobre a Índia.
Quanto ao método e campo de pesquisa, Vinícius se propõe a fazer uma etnografia
do campo acadêmico, partido de uma análise particular a uma análise comparativa. Isso
porque, sua experiência no campo francês, onde faz o mestrado, fez com que sua visão
sobre a Índia fosse permeada pela produção francesa sobre o país. Por ainda não ter
realizado o campo na Índia, tem-se atido ao estudo de obras coletivas representativas
dos movimentos teóricos indianos.
Após fazer um breve resumo sobre a narrativa hegemônica sobre a história da
Antropologia na Índia, coloca-se a questionar onde estão as histórias não contadas.
Identifica, enfim, uma perspectiva não brâmane que faz uma crítica a toda produção
antropológica brâmane, provenientes de movimentos anticastas, em que as mulheres
estão no centro do debate. Quanto ao campo francês, percebe que há uma
predominância de Louis Dumont, que informa todos os estudos na França sobre a Índia.
Esse autor contrapõe uma ideologia igualitária e universalista que corresponderia ao
ocidente a uma ideologia holista produzida na Índia. Contudo, a cosmologia igualitária
teria alcance universal, englobando a ideologia holista. Isso acaba por dizer muito da
Antropologia, que é produzida em contexto igualitário. Apesar dessa visão ser
ultrapassada em contexto francês, há nela pressupostos que sustentam a produção
francesa, fundamentando o debate. Isso fica demonstrado através de uma assimetria
percebida através dos qualificativos utilizados pel@s pesquisador@s frances@s sobre
2 CORRÊA, Mariza. Antropólogas e Antropologia. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. 3 O documentário pode ser assistido online no sítio http://vimeo.com/14828727. 4 VISVANTHAM, Shiv. Hegemonia oficial y pluralismos contestatarios. In: RIBEIRO, Gustavo L;
ESCOBAR, Arturo. Antropologias del mundo. Transformaciones disciplinarias dentro de sistemas de
poder, Envión Editores, 2008.
6
autor@s indianos, que incluem "identitaristas", "narcisistas", "carnaval acadêmico",
dentre outros.
Por fim, coloca que essas centralidades e marginalidades são posições moventes,
incessante e relacionamente produzidas. Até o presente momento da pesquisa, tem
identificado três posições principais além da hegemônica da Índia, quais são: a d@s
subalternistas, que têm origem nas altas castas beneficiadas pelo colonialismo e
impedidas de contato com as baixas castas; a perspectiva não brâmane, de orientação
marxista, que se opõe fortemente ao bramanismo; e, por fim, a visão da produção
francesa sobre a Índia.
2.2 28/09/2012
Texto: FALQUET, Jules. CURIEL, Ochy. El patriarcado al desnudo. Tres feministas
materialistas. Editora Brecha lésbica, 2005.
Apresentação por Caterina Rea.
O principal tema trabalhado nesse dia foi a corrente feminista materialista
francesa. Essa corrente é contrária ao pensamento diferencialista (ou french feminism),
entendido como aquele defendido por Luce Irigaray, Hélène Cixous, Julia Kristeva,
Geneviève Fraisse e Françoise Héritier. O feminismo materialista tem como principais
representantes Monique Wittig, Christine Delphy, NicoleClaude Mathieu, Colette
Guillaumin, Emanuelle de Lesseps, Paola Tabet e Monique Plaza. Essas feministas
entendem que homens e mulheres são como classes sociais e que, uma vez superado o
patriarcado, não irá mais existir "mulheres" e "homens" como existem hoje. Têm como
referência fundamental Simone de Beauvoir5, colocando que "a mulher" como categoria
universal não existe. Essa corrente teve como contexto a década de 1970 e esteve
associada ao Movimento de Liberação das Mulheres.
Para essas autoras, o embate constitui os grupos, que não existem anteriormente
a ele. Isso serve tanto ao antagonismo proletariado e capitalistas, quanto para o homens
e mulheres. Com isso, tentam mostrar a especificidade do patriarcado que, apesar de
próximo do capitalismo, não é idêntico a ele, exigindo uma luta própria. Não há,
portanto, uma hierarquia das lutas, na qual aquela contra o capitalismo fosse a essencial
e a contra o patriarcado apenas um apêndice. Segundo as autoras, capitalismo e
5 Principalmente o livro “O Segundo Sexo”, de 1949.
7
patriarcado constituem duas lógicas de opressão diferentes, ainda que andem juntas na
nossa sociedade.
Ao utilizar como método o materialismo histórico, têm como ponto de partida os
feitos materiais e as relações sociais concretas. Ainda que acreditem existir um plano
simbólico e ideológico, o ponto inicial da análise é sempre as divisões sociais, os
conflitos de interesses e as relações de trabalho. A diferença entre homens e mulheres e
entre seus papeis e posições sociais seria, portanto, efeito da dominação masculina e não
da natureza. Ainda, não uma separação entre teoria e prática, sendo que toda posição
intelectual é produto de uma situação concreta. Aqui, há já uma crítica da
universalidade científica, pontuando que a neutralidade não existe já que serve para
proteger certos laços de poder. Dessa forma, as reivindicações de universalidade do
saber sempre vêm de pontos de vista específicos e esses devem ser questionados a fim
de se descobrir de onde fala o sujeito presumido da ciência. Discutem, ainda, a questão
do racismo, e colocam-se contrárias à proibição do uso do véu na França, já que essa
seria apenas uma forma de preconceito disfarçado contra determinada minoria.
Um dos pontos interessantes da apresentação de Caterina foi que chamou
atenção para o fato de que muito do que hoje se atribui à Judith Butler e à teoria queer
já foi antecipado por essas feministas materialistas na década de 1970, ainda que não
tenham o devido reconhecimento. Refere-se a teses como a de que tanto gênero quanto
sexo são politicamente construídos. Rea coloca ainda que, para a materialista Delphy,
que não aprova a teoria queer, os atos performativos de Butler não dão conta de resolver
o problema, porque são relações materiais e de poder consolidadas e cristalizadas por
milênios de história.
Ainda, Caterina colocou alguns dos objetivos do feminismo materialista. Dentre
eles, tem-se a supressão do gênero enquanto sistema de opressão e hierarquia social; a
igualdade entre homens e mulheres e a eliminação da lógica mesma da dominação, e a
eliminação da oposição entre privado e público enquanto esta protege os privilégios da
classe dominante dos homens. Para essas teóricas, por fim, o patriarcado é também um
sistema econômico, pois é fruto da divisão do trabalho. Além de, como no caso das
outras formas de dominação, no patriarcado as relações sociais de poder motivam-se no
benefício do grupo dominante devido à inferiorização do grupo dominado.
Ao fim da explanação de Caterina, perguntei se uma diferenciação possível entre
as feministas materialistas e Judith Butler se dava em função de que, para Butler, não se
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pretende a eliminação do gênero como forma de poder ou uma sociedade sem gênero,
mas na constante renegociação das suas normas. Ao que Caterina respondeu que sim.
2.3 05/10/2012
Texto: DUPONT, Christine. O inimigo principal. In: DURAND, Emmanuèle et AL
(org.). Liberação da mulher: ano zero. Tradução: Sônia Roedel e Liliana Santos.
Belo Horizonte: Interlivros, 1978.
Apresentação por Camila Laurindo e Izabela Liz Schlindwein.
Na apresentação, Camila e Izabela continuam expondo acerca do feminismo
materialista francês, do qual Christine Dupont é representante. Um dos pontos que
frisam é que essa foi a primeira corrente teórica a instituir a categoria de gênero como
categoria política, ou seja, é o gênero que cria o sexo.
Questionam-nos também sobre a relação entre machismo/homofobia e classe
social, colocando a pergunta se esses são mais recorrentes na periferia. Também
apresentaram alguns dados sobre a política brasileira e avanços no Brasil em relação às
mulheres. Conversamos também a respeito da realidade no sul do Brasil; Izabela
colocou a realidade da comunicação e eu coloquei alguns exemplos da burguesia de
Blumenau, cidade onde nasci.
Texto: GUILLAUMIN, Colette. “Enquanto tivermos mulheres para nos darem filhos”: a
respeito da raça e do sexo. Revista Estudos Feministas, Rio de Janeiro,
CIEC/ECO/UFRJ, no especial, 1994.
Apresentação por Arianna Sala.
Em sua apresentação, Arianna colocou alguns pontos importantes sobre a
relação entre sexo e raça a partir do texto. Primeiramente, pontuou que as pessoas não
brancas e as mulheres compartilham a violência e a inferioridade social. Além disso,
coloca que racismo e sexismo são formas particulares de relações sociais baseadas no
controle e exploração.
Quanto ao racismo e o sexismo como sistemas sociais de controle e exploração,
expõe que há uma construção discursiva que constroi os dominados como diferentes. A
pergunta a ser feita então é: diferente do quê? Segundo o texto, é o próprio racismo e o
sexismo que inventam a existência de raças e sexos diferentes na espécie humana.
Essencializam a diferença, colocando-a como a-histórica e a-social. Sendo a diferença
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"natural", não há possibilidades de mudança e é essa a grande força da essencialização,
colocando no corpo o signo da opressão.
Coloca, ainda, que dentre todas as possíveis características físicas que poderiam ser
utilizadas para a diferenciação, só algumas são colocadas, ou “inventadas”, para
justificar as diferenças. Tais características marcam a discriminação (estabelecem o
lugar social das pessoas e dos grupos) e a dominação/exploração (as pessoas com essas
marcas são explorad@s fisicamente). Para essa teórica, o traço físico em si é
indiferente, e só faz sentido dentro de uma relação social de exploração e
descriminação. Geralmente, as teorias de raça e sexo sobre tais discriminações e
exploração são posteriores a elas, e são ferramentas discursivas que visam justificá-las.
Pontua então uma diferença fundamental entre os dois sistemas de controle e
exploração, colocando que o racismo intervém nas relações sociais entre grupos que são
constituídos como heterogêneos, enquanto o sexismo intervém nas relações sociais entre
pessoas do mesmo grupo social. A especificidade do sexismo estaria no fato de que as
mulheres não têm legitimidade social pois não tem direito de decisão sobre as estruturas
coletivas. Em todas as sociedades, as mulheres são bens a serem destruídos (ex.
estupros nas guerras) ou controlados. Por isso, conforme Guillaumin, a independência
econômica verdadeira das mulheres ainda não foi alcançada.
Por fim, coloca a novidade que traz o feminismo.Ainda que sempre tenha havido
formas individuais de revolta, é desde então que há movimentos de mulheres que,
organizadas, lutam por sua emancipação. No século XX (e mais no XXI), esses
movimentos estão se organizando trans-nacionalmente e transcomunitariamente. Isso
permite às mulheres querer conquistar e defender direitos que não são sequer
questionados.
2.4 19/10/2012
Texto: BIDASECA, Karina. “Mujeres blancas buscando salvar a las mujeres color
café”: desigualdad, colonialismo jurídico y feminismo postcolonial. In: BIDASECA,
Karina; LABA, Vanesa Vazquez. Feminismos y poscolonialidad. Buenos Aires:
Ediciones Godot, 2011.
Apresentação por Arianna Sala.
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Trata-se de uma crítica ao feminismo heterossexual, branco e burguês.
Questiona a categoria "patriarcado" como forma de dominação masculina universal,
ahistórica e essencialista. Bidaseca coloca que é necessário abordar racismo,
colonialismo, elitismo conjuntamente com a crítica ao sexismo. É essa a articulação que
o feminismo pós-colonial propõe.
Essa autora questiona a própria cateogoria gênero, ao dizer que essa não dá
conta das relações que são criadas na cosmovisão indígena andina. Acredita que a
patriarcalização e a colonização aparecem ao mesmo tempo, estando fortemente
interligadas. Além disso, utiliza-se de Spivak6, ao colocar que @ subaltern@ é aquel@
que não pode falar pois carece de um lugar de enunciação.
Basicamente, Bidaseca contrapõe a visão nativa e a ocidental através de uma
história de um homem de 28 anos que "violenta sexualmente" a filha de 10 anos de sua
companheira. Na comunidade em questão, a partir da menarca, a criança/mulher pode
ter relações sexuais com o homem que quiser. Essa menina escolheu e teve a aceitação
da comunidade. Na história que nos conta, faz-nos perceber que há várias vozes
sufocadas e outras muito altas. Dentre as sufocadas, estão a da menina-adulta que pede a
liberação do pai do seu filho, a da mãe da menina convencida a denunciar pela diretora
da escola, a do acusado que teve o consentimento da comunidade e as vozes da própria
comunidade, que pedem a liberação do acusado e reivindicam autoridade para julgá-lo.
Já dentra as vozes altas, encontra-se a da mulher branca e diretora da escola, que
interpreta a gravidez como consequência de uma violência, a voz do Código Penal, d@s
juíz@s, d@s antropólog@s e das mulheres acadêmicas.
Tivemos ainda no mesmo dia, uma apresentação da Dra. Caterina Rea sobre
sua pesquisa a respeito do feminismo cigano. Primeiramente, coloca que, até então, a
pesquisa vem sendo realizada a partir da internet e particularmente na rede social
facebook, na qual associações, organizações e personalidades ciganas militantes são
muito ativas. A questão principal trata da constituição de movimentos sociais e políticos
ciganos, de um ativismo militante no qual el@s são atores e protagonistas das linhas de
ação e da direção deste ativismo. Em particular, Caterina coloca o foco na constituição
de movimentos que se auto-denominam como feministas (ou talvez de mulheres) ou em
favor da diversidade também em matéria de sexualidade.
6 SPIVAK, Gayatri. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998.
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Caterina colocou ainda que uma das questões mais controversas que encontrou
em sua pesquisa foi a respeito da existência de um movimento propriamente cigano-
feminista. Uma de suas informantes a relatou que a diversidade dentro do povo cigano é
ainda complicada, que a comunidade é bastante patriarcal, não restando espaço para um
movimento desse tipo. Existiria, assim, um patriarcado, na medida em que as mulheres
ciganas são colocadas sempre na condição de mães ou esposas, e somente isso. Haveria
também um forte sistema binário baseado nas regras de pureza/impureza. Contudo,
Caterina identifica algumas reivindicações do movimento cigano que poderiam ser
caracterizadas como feministas: produção de conhecimento sobre a comunidade cigana
para romper preconceitos e estereótipos; gerar conhecimento sobre as mulheres ciganas
para abrir novas possibilidades de trabalho; consideração das mulheres ciganas como
motores de mudança cultural; desenvolvimento de um proceso dialógico; colaboração
com profissionais nas áreas de gênero e recursos sociais; compromisso com a educação,
entre outros.
Por fim, Caterina pontuou que, em sua pesquisa, descobriu já houve três
conferências internacionais de mulheres ciganas e a quarta está para acontecer em
outubro de 2013 na cidade de Helsinki (Finlândia).
2.5 26/10/2012
Texto: SEGATO, Rita Laura. Género y colonialidad: en busca de clave de lectura y de
um vocabulario estrategico descolonial. In: BIDASECA, Karina; LABA, Vanesa
Vazquez. Feminismos y poscolonialidad. Buenos Aires: Ediciones Godot, 2011.
Apresentação por Bruna Klöppel
A autora do texto propõe uma “antropologia por demanda”, que seria a produção de
conhecimento e reflexão como resposta às perguntas colocadas com quem, na
perspectiva clássica, seriam “objetos” de observação e estudo, na intenção de percorrer
um caminho descolonial. A autora comenta os argumentos anti-relativistas e anti-
indígenas utilizados para a defesa de punimento de agentes estatais que nada fizessem
frente a infanticídios em aldeias indígenas. Para combater esses argumentos, a autora
defende ser necessário a construção de um discurso que não recorra ao relativismo
cultural, nem às noções de cultura e tradição. Defende então a ideia de pluralismo
histórico, que diz que os sujeitos coletivos são os povos, com autonomia deliberativa
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para produzir seu processo histórico, ainda quando em contato com as experiências e
processos de outros povos. Nessa perspectiva, esses povos não seriam percebidos como
um patrimônio substantivo, estável e fixo de cultura, uma episteme cristalizada, mas
como um vetor histórico. Compartilhariam um projeto histórico, em que há passado e
futuro em comum conjuntamente com conflito de interesses e o antagonismo das
sensibilidades éticas e posturas políticas internas. Daí, teria-se a substituição de “uma
cultura” por “um povo”, sujeito vivo de uma história, em meio a articulações e
intercâmbios, que mais que “interculturalidade” desenha uma “inter-historicidade”.
Nesse sentido, um bom estado seria um estado restituidor da jurisdição própria e do
foro comunitário, garantindo a deliberação interna. É a brecha descolonial possível,
segundo a autora: a devolução da capacidade de cada povo implantar seu próprio
projeto histórico. A nação seria uma aliança entre povos, em que haveria a circulação de
ideias e interação entre historicidades.
Segundo a autora, com a chegada da modernidade ocidental, há um agravamento e
uma intensificação das hierarquias que formavam parte da ordem pré-intrusão, inclusive
àquelas que se referem ao gênero. Essas relações se modificam e a hierarquia se
intensifica na medida em que há uma cooptação dos homens como a classe
ancestralmente dedicada aos papeis públicos. Dessa forma, há uma forte perda dos
direitos políticos das mulheres. Isso porque há o sequestro de toda política (deliberação
sobre o bem comum) por parte da esfera pública e a consequente privatização do espaço
doméstico, sua marginalização (vida privada). Deixa as mulheres mais vulneráveis, sem
autoridade e valor. A autora então coloca que no mundo pré-intrusão, havia uma
dualidade, em que, ainda que desiguais, ambos os termos possuíam plenitude ontológica
e política. Já com a entrada da modernidade, insere-se um binarismo, em que o homem
é universal e a mulher é apenas resto, problema.
Texto: RIBEIRO, Matilde. Mulheres negras : uma trajetória de criatividade,
determinação e organização. Revista Estudos Feministas, 2008.
BARROS, Luiza. III Conferência Mundial contra o racismo, Revista Estudos
Feministas, 2002.
Apresentação por Bruno Cordeiro.
Os dois textos apresentados, como colocado por Bruno, não são muito teóricos,
porém são importantes por tratarem da história dos movimentos sociais no Brasil e, em
particular, do movimento negro e feminista. Sobretudo, mostram dados fundamentais a
13
respeito do processo de democratização e de cidadania no Brasil após a Constituição de
1988. Foi nesse ano, que aconteceu o Primeiro Encontro nacional de Mulheres Negras,
que dentre suas resoluções, tinha a de eliminar o racismo e o sexismo na sociedade
brasileira. Uma de suas principais pautas é a de considerar a esfera privada também
como política, já que afetam a coletividade. Foram fundamentais também na aprovação,
em 2005, da lei Maria da Penha.
Apesar de todos os avanços, constata que há ainda preconceito na sociedade
brasileira. A garantia de direitos muitas vezes acaba por ficar somente na esfera
abstrata, não se refletindo como deveria na realidade das pessoas, já que essa
discriminação provém de uma histórica e cristalizada relação de poder. A partir do
texto, o grupo acabou por discutir a política de cotas, vista como positiva para a
promoção cultural e social de grupos que sofreram historicamente o preconceito e a
discriminação.
2.6 30/11/2012
Nesse dia, tivemos a presença de Dra. Roselete Aviz, com a apresentação
“Escutando Zora Neale Hourston: quando as questões de gênero se relevaram como
motivo de atenção e preocupação a uma professora”. Em sua fala, contou-nos sobre a
obra de Zora Hourston (1891-1960), autora de literatura afroamericana. Era também
antropóloga e aluna de Franz Boas. Essas duas áreas se intercruzam em suas obras.
Escreveu quatro romances, sendo o mais importante o escrito em 1937, Seus Olhos
Viram Deus. Segundo Roselete, ao contar a história da heroína do romance, Zora acaba
por contar sua própria história, centrada na busca de sua própria identidade e
autoconfiança. A mesma característica também aparece na obra Mules and men, de
1935.
Roselete pontua algumas questões que orientam sua pesquisa sobre a autora.
Uma delas é o que compreendemos por “voz” e “fala”. Seria a mesma coisa? Como se
articulam? Como Zora pensa o tempo? O que significa ser mulher e negra em uma
cultura globalizada?
Para Roselete, em Zora, até mesmo o silêncio tem seu papel fundamental,
localizando-se entre o sentir e o pensar, como uma potencialidade de mesma
sonoridade. Não é necessariamente uma forma de repressão, mas também um exercício
de liberdade, em que a pessoa toma decisão sobre falar ou não. Roselete coloca também
14
que presenciou em sua pesquisa de doutorado, em Moçambique, o lugar do silêncio
carregado de expressividade na cultura desse país. Por fim, contou-nos um pouco sobre
sua experiência nesse país, em que também teve muitas dificuldades, enquanto mulher
não acompanhada por um homem, enquanto brasileira estigmatizada, enquanto
“mulata”. Apesar das dificuldades, conseguiu ganhar a confiança das pessoas e
observar, viver e participar das relações entre negr@s, que objetivava.
2.7 07/12/2012
Nesse dia, tivemos uma palestra muito importante proferida pela professora
Illana Lowy (CERMES – Paris), bióloga e historiadora das ciências, investigando
principalmente na área de biomedicina e gênero. Logo no início de sua palestra, Ilana
destacou duas perspectivas distintas de estudo. São elas: o estudo das mulheres na
ciência e o estudo propriamente de gênero e ciências.
O primeiro campo interroga o porquê de ser tão difícil para as mulheres
adentrarem o campo das ciências hard. Nesse campo, as pioneiras são Evelyn Fox-
Keller e Emily Martin (University of York). Esta ultima, em particular, destaca o caráter
sexuado (gendered-based) da mesma linguagem cientifica quando, por exemplo,
identifica o caráter ativo, dinâmico, competitivo e valioso do esperma em relação à
passividade dos ovócitos. A própria linguagem da ciência está carregada de uma
concepção negativa das mulheres e ajuda a reforçar estereótipos sexistas segundo os
quais o campo da competição é masculino.
Cita ainda outras importantes autoras nesse campo, como Michelle Le Doeuff,
filósofa feminista francesa, e Londa Schiebinger, historiadora da ciência de Stanford.
Conclui então que a história da produção do saber é sempre, ao mesmo tempo, uma
historia de co-construção da ignorância. A ignorância não é algo passivo, não é a
simples falta de saber, mas é também o fruto de uma construção histórica e social que
coage na produção do saber e das esferas da legitimidade. A demarcação e a fronteira
entre saber e ignorância, entre saberes legítimos e ilegítimos é uma produção social que
acompanha a instituição das formas de saber reconhecidas como científicas.
A segunda perspectiva estuda a articulação entre a construção do saber cientifico
e do saber sobre o gênero. Nesta perspectiva busca-se identificar uma co-construção
recíproca de campos de saber. Esta perspectiva é a mais difícil de desenvolver e,
conforme destaca Ilana, a produção neste campo segue sendo ainda fraca, tanto na
15
França como no Brasil. Na França, a resistência ao termo mesmo de gênero contribuiu a
obstaculizar o desenvolvimento desta área de estudos, assim como a falta de
desenvolvimento na área dos estudos sociais da ciência.
Ilana realça que a ciência é uma atividade humana, histórica e social, que muda
em diferentes épocas e contextos sócio-culturais. Sendo assim, não há apenas uma
biologia, mas uma grande diversidade de abordagens, dependendo do tempo e espaço
que são produzidas. Dessa forma, o sexo biológico mesmo não é algo fixo: foi em uma
época e espaço que foi definido o caráter fundamental e normativo da diferença entre os
sexos. Conforme destacam Ludwig Fleck e Thomas Laqueur, na historia da biologia e
da medicina, os órgãos sexuais foram diferentemente representados. Antes do século
XVIII, os órgãos das mulheres foram considerados como inferiores, pois eles eram
internos e considerados como frios em comparação aos órgãos masculinos que, sendo
externos, seriam supostamente enérgicos e vitais.
Como exemplo, Ilana cita os estudos endocrinológicos, nos quais diferencia-se
os hormônios masculinos e femininos como sendo duas dimensões diversas. Nessa
cosmologia, tem-se que a vida das mulheres é submetida a ciclos hormonais, sendo
sempre condiciona a eles. Já quanto aos homens, a dependência hormonal é
representada como menos fundamental. A referência à testosterona enquanto hormônio
masculino é associada à força e à agressividade, ainda que nem sempre homens com
muita testosterona sejam necessariamente agressivos. Essa ideia de que o corpo
feminino é determinado por sua vida interna e por seus órgãos reprodutivos foi um
tópico constante na história da biologia, da medicina e até da psicanálise.
Continuando a refletir sobre os hormônios, Ilana conta-nos que, em 1920,
quando os estudos a respeito começaram, acreditava-se que esses eram sexuais e
sexuados, sendo diferentes e específicos nos dois sexos. Logo, descobriu-se que os dois
tipos de hormônios existem em ambos os sexos e a estrutura química e funções não são
tão diferentes como se acreditava. Essa história mostra como o próprio conhecimento
científico teve um papel importante na determinação de marcadores sociais de sexo.
Segundo a palestrante, ainda hoje essa associação é continuamente realizada.
São exemplos o tratamento hormonal da transexualidade e a hormone therapy, feita em
mulheres na menopausa. Coloca que, ainda recentemente, na França, mais de 50% das
mulheres em menopausa tomavam hormônios na esperança que este tipo de tratamento
as ajudasse a restabelecer e re-fabricar a sua “feminilidade” anterior. Ilana destaca os
riscos associados à utilização massiva de hormônios relativos à possibilidade de
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desenvolver câncer de mama ou enfermidades cardiovasculares. Este mito da eterna
juventude associado a um bem estar feminino ligado à utilização de hormônios não faz
senão expor ao risco uma população. Os estudos mais recentes na área de gênero e
ciência centrados na co-construção de saberes ajudaram a limitar hoje os abusos das
terapias hormonais para mulheres em menopausa. Segundo ela, a insistência sobre o
caráter limitante da menopausa é um efeito da cultura sexista que separa público e
privado e que associa as mulheres à natureza dos hormônios: enquanto nas mulheres o
fenômeno da menopausa é considerado como uma doença e uma deficiência, no caso
dos homens, as marcas do envelhecimento são mais facilmente associadas ao stress do
trabalho e às responsabilidades assumidas por eles.
Por fim, coloca ainda que, no campo de gênero e ciências, destacam-se os
trabalhos da socióloga Adele Clarke sobre a articulação entre gênero e história das
ciências da saúde, da bióloga Diane Lang e de Nelly Oudshoorn sobre tecnologias
dinâmicas nas ciências da saúde na ótica de uma co-construção de tecnologias médicas
e usuários. Há ainda o sociólogo da ciência Michel Callon, que Ilana considera como
um autor de grande importância para o desenvolvimento de uma teoria social e cultural
da ciência. Para Callon, é preciso que a ciência saia dos laboratórios e dos círculos
fechados. Trata-se então de dessacralizar o trabalho da ciência segundo a perspectiva já
aberta por Bruno Latour. No Brasil, temos o trabalho de Emilia Sanabria, sobre a co-
construção de praticas corpóreas e práticas biomédicas. Em um estudo etnográfico
conduzido em Salvador, a pesquisadora mostra como as fronteiras corporais no caso das
mulheres são continuamente produzidas e reproduzidas em relação a intervenções
biomédicas.
2.8 14/12/2012
Nesse dia, tivemos a presença da professora Luzinete Minella (UFSC), que tem
pesquisado na área de gênero e ciências, mais especificamente na medicina. Iniciou sua
fala discorrendo sobre sua trajetória. Falou sobre sua entrada tardia no campo de gênero
e que, onde fez seu doutorado (México), não havia espaço para esses estudos. Durante
muito tempo, estudou saúde das mulheres sem acreditar estudar gênero, até que Miriam
Grossi e Joana Pedro a chamaram para participar de uma edição do Fazendo Gênero e,
logo depois, para a revista de Ciências Humanas. Outro ponto importante que coloca
sobre sua trajetória é que foi durante muitos anos a única pessoa afrodescendente
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trabalhando no Departamento de Sociologia da UFSC, e durante 25 anos como
professora, teve apenas três alun@s negr@s, sendo que os três vindos da África.
Perguntava-se onde estavam seus iguais.
Luzinete tem estudado medicina e gênero, pensando em fazer futuras
comparações. Ao observar o prédio em que estudam Medicina na UFSC, percebe que
houve a entrada de mulheres, mas não negras e indígenas. @s estudantes parecem de
camadas médias e há muitos carros estacionados na área. A ideia dela é comparar a
UFSC, a UFBA e a UNIVILLE. Assim, pode ver diferenças entre universidades do
capital e do interior, do sul e do nordeste, e públicas e privadas. A pergunta será como
os contextos regionais interferem nesse perfis.
Após esse momento, Luzinete comentou sobre seu trabalho de balanço da
literatura do campo de gênero e ciências, a ser publicado nos Cadernos Pagu. Tenta
perceber, em um esforço reflexivo, quais são as pioneiras brasileiras que começaram a
estudar as pioneiras mulheres na ciência. Localiza principalmente, Maria Lucia de
Barros Mote, Monica Schpun, Julie Hahner (EUA) entre os anos 1990 e 2000. Já desde
2000, tem-se Elizabeth Carraro, Maria Aparecida de Lima Vieira, dentre outras. A
maior parte delas tem formação em História, são brancas de classe média, de famílias de
imigrantes assim como aquelas que pesquisam, e são de uma mesma geração. Chamou a
atenção de Luzinete a riqueza das fontes consultadas por essas pesquisadoras.
Ao fim da apresentação, o grupo ainda voltou ao debate das cotas, com alguns
estudantes contando de suas experiências na Universidade. Luzinete também comentou
como o debate sobre racismo é apaixonado no estado da Bahia. Chegamos à conclusão
que, apesar dos avanços, ainda há um longo caminho a ser percorrido.
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