FLORA MARIA GOMIDE VEZZÁ
REFLEXÕES SOBRE A PRÁTICA DA CONSULTORIA EM ERGONOMIA
Dissertação apresentada à Escola Politécnica da Universidade de São Paulo para obtenção do Título de Mestre em Engenharia
São Paulo
2005
FLORA MARIA GOMIDE VEZZÁ
REFLEXÕES SOBRE A PRÁTICA DA CONSULTORIA EM ERGONOMIA
Dissertação apresentada à Escola Politécnica da Universidade de São Paulo para obtenção do Título de Mestre em Engenharia
Área de Concentração: Engenharia de Produção
Orientador: Prof. Doutor Mauro Zilbovicius
São Paulo
2005
FICHA CATALOGRÁFICA
Vezzá, Flora Maria Gomide
Reflexões sobre a prática da ergonomia / F.M.G. Vezzá. --
São Paulo, 2005. 82 p.
Dissertação (Mestrado) - Escola Politécnica da Universidade de São Paulo. Departamento de Engenharia de Produção.
1.Ergonomia I.Universidade de São Paulo. Escola Politécnica. Departamento de Engenharia de Produção II.t.
“O rejuvenescimento da percepção médica, a
iluminação viva das cores e das coisas sob o
olhar dos primeiros clínicos não é, entretanto, um
mito; no início do século XIX, os médicos
descreveram o que, durante séculos,
permanecera abaixo do limiar do visível e do
enunciável. Isto não significa que, depois de
especular durante muito tempo, eles tenham
recomeçado a perceber ou a escutar mais a
razão do que a imaginação; mas que a relação
entre o visível e o invisível, necessária a todo
saber concreto, mudou de estrutura e fez
aparecer sob o olhar e na linguagem o que se
encontrava aquém e além de seu domínio. Entre
as palavras e as coisas se estabeleceu uma nova
aliança fazendo ver e dizer; às vezes, em um
discurso tão´ingênuo’ que parece se situar em um
nível mais arcaico de racionalidade, como se se
tratasse de um retorno a um olhar finalmente
matinal”.
MICHEL FOUCAULT, O
Nascimento da Clínica
AGRADECIMENTOS
A Mauro Zilbovicius, orientador, por sua dedicação, profissionalismo e gentileza.
A Leda Leal Ferreira, amiga de muito tempo, pelo apoio, incentivo e
questionamentos preciosos.
Aos professores Laerte Sznelwar e Fausto Mascia, meus companheiros de trajetória.
A todos os trabalhadores que generosamente levantaram o véu de suas atividades.
A meus pais, que me ensinaram o valor do trabalho e do respeito ao outro.
Ao Norberto, Caio e Valentina.
SUMÁRIO
LISTA DE TABELAS
LISTA DE SIGLAS
INTRODUÇÃO 1
A AET 3
As Questões 4
Estrutura desta Dissertação 8
CAPÍTULO 1 – QUAL PRÁTICA? 9
As Consultorias – Geografia da Prática 12
LER/DORT e as Consultorias 13
As Áreas Estudadas 14
Os Contratantes 17
Duração dos Contratos 19
CAPÍTULO 2 – O MÉTODO DA AET 21
Ergonomia e Análise Ergonômica do Trabalho 21
As etapas da AET 23
A Análise da Demanda 25
O Funcionamento da Empresa 26
Análise do Processo Técnico e das Tarefas 28
Análise da Atividade 29
Diagnóstico e Elaboração de Recomendações 33
CAPÍTULO 3 – AET EM CONSULTORIAS 38
Uma Prática Clínica 38
O Diagnóstico 42
Trabalho e Valor do Trabalho 44
Interlocução 50
Grupos de Acompanhamento de Projeto 51
Grupos de Operadores 53
CAPÍTULO 4 – CLÍNICA E REPRESENTAÇÃO 56
Abordagem Clínica em Ergonomia 56
Representação e Mudança de Representação 62
Na Análise da Atividade 65
Na Construção e Apresentação do Diagnóstico 68
CAPÍTULO 5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS 77
Questões em aberto 78
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 80
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 – Empresas atendidas pelas consultorias e áreas estudadas 12
Tabela 2 – Apresentação dos casos segundo a área estudada, queixa
inicial e contrato firmado 14 Tabela 3 – Áreas contratantes e áreas responsáveis pelos setores
com ocorrência de LER/DORT 17
Tabela 4 – Categorias de discurso / não discurso acessíveis através da verbalização 65
LISTA DE SIGLAS
AET – Análise Ergonômica do Trabalho
LER/DORT – Lesões por Esforços Repetitivos / Distúrbios Osteomusculares
Relacionados ao Trabalho
PPP – Perfil Profissiográfico Previdenciário
SEESMT – Serviço Especializado de Engenharia de Segurança e Medicina do
Trabalho
CAT – Comunicação de Acidente de Trabalho
PPR – Participação por Resultados
DRT – Delegacia Regional do Trabalho
CIPA – Comissão Interna de Prevenção de Acidentes
INTRODUÇÃO
A ergonomia, especialidade ligada à melhoria das condições de trabalho,
tornou-se bastante conhecida e difundida nos últimos anos, através de cursos de
formação de profissionais e da atuação destes profissionais em consultorias a
empresas, em organismos governamentais (federais, estaduais e municipais), ou
ainda como contratados por algumas empresas. Uma de suas características é a de ser
uma especialidade que pode ser buscada por profissionais de formações e áreas
diferentes, como médicos, engenheiros, fisioterapeutas, enfermeiros, terapeutas
ocupacionais, assistentes sociais, designers e arquitetos.
Como especialidade, seu aprendizado envolve o domínio de conhecimentos
distintos, principalmente aqueles relativos ao homem e seu funcionamento, suas
características físicas, fisiológicas e mentais. Também são vistos conteúdos relativos
às condições materiais do trabalho, como dispositivos técnicos, ferramentas,
ambiente, mobiliário. Dependendo da formação, são abordados aspectos referentes à
organização do trabalho e da produção e às relações sociais. Tais conhecimentos
situam-se em áreas de estudo muito diversas, como a psicologia e fisiologia, além da
engenharia, sociologia, antropologia, ciências da administração, entre outras.
O emprego destes conhecimentos na prática profissional é balizado por
formas de ação que podem diferir bastante, segundo a linha de formação. Duas
grandes correntes são em geral reconhecidas (Hubalt, 2004a; Wisner, 2004;
Daniellou, 1998):
• A ergonomia de Human Factors, originária dos países de língua inglesa,
em especial EUA, cuja característica é a avaliação das situações de
trabalho através de grades de análise (check lists) e o estudo experimental
dos aspectos identificados como relevantes na situação de trabalho;
• A Análise Ergonômica do Trabalho (Wisner, 2004) – AET, ou ergonomia
da atividade (Daniellou, 1998), originária dos países de língua francesa,
cuja característica é a análise da atividade de trabalho desenvolvida pelos
trabalhadores.
O objetivo desta dissertação é fazer uma reflexão sobre a prática da
ergonomia com base na AET, apoiada na experiência adquirida em seis anos de
atuação como consultora para empresas. As razões que levaram à escolha deste tema
são várias. Em primeiro lugar, este método permite que se apreenda a situação de
trabalho estudada com uma grande riqueza de detalhes, e busca formar um panorama
capaz de relacionar o que se passa nos postos de trabalho com características da
empresa como um todo. A AET exige uma investigação clínica das situações
estudadas, através da qual o ergonomista confronta a observação de uma situação
particular a seus conhecimentos de base, e coloca dificuldades particulares em sua
aplicação, devido à multiplicidade de interlocutores, às nuances de cada situação e ao
jogo de forças que agem na determinação das condições de trabalho. Esta
investigação, como afirma Wisner (1987), é uma arte. Assim, a discussão da arte da
prática pode ser de interesse não só aos ergonomistas, como a fisioterapeutas e
engenheiros, entre outros.
Em segundo lugar, a análise do trabalho coloca o prático frente a fenômenos
que se situam no ponto de convergência de muitos campos de conhecimento, e que
ainda não são totalmente compreendidos. Como compreender o trabalho, em toda a
sua complexidade? Como avaliar suas relações com o adoecimento (pois as
consultorias lidaram com situações de adoecimento de trabalhadores, como será
explicado mais adiante) frente a todos os aspectos envolvidos – aspectos muito
diversos, como o mobiliário, os equipamentos, os sistemas informatizados, as escalas
de trabalho, e também as relações entre os indivíduos, a comunicação entre pessoas,
os produtos?
No caso das consultorias, o ergonomista é um agente externo inserido no
contexto da empresa para estudar uma situação e dar um parecer técnico que oriente
as discussões e decisões sobre mudança e melhoria das condições de trabalho. A
inserção deste agente externo provoca modificações na situação e no ambiente.
Muito embora existam indicações sobre como proceder a cada etapa, há ainda pouca
discussão sobre aspectos concretos da aplicação deste método, sobre as interações
entre ergonomistas e representantes da empresa, sobre os efeitos modificadores
provocados pela consultoria. Estes fenômenos são críticos para o desenvolvimento da
consultoria, como também para determinar seus resultados possíveis. Assim, esta
dissertação aponta tais fenômenos e investiga teorias que auxiliem sua compreensão.
Finalmente, e em decorrência das anteriores, esta reflexão pode servir para
indicar as lacunas existentes no embasamento teórico sobre a prática da ergonomia, e
apontar áreas de interesse para o desenvolvimento de estudos aprofundados.
A AET O método utilizado ao longo da prática junto às empresas atendidas pelas
consultorias (cujos casos serão descritos no capítulo 1) foi a Análise Ergonômica do
Trabalho. Seu aspecto central é o estudo da atividade real de trabalho, inserido em
um conjunto de etapas que estabelece um roteiro de investigação cujo desenrolar é
adaptado às características de cada situação estudada. “Essencialmente, o que este
método propõe é um caminho de raciocínios e ações que parta de uma problemática
(a demanda) e chegue a uma solução (recomendações de mudança)” (Ferreira,
1996).
As demandas colocadas pelas empresas atendidas nas consultorias foram
investigadas segundo as etapas propostas por Wisner (1987), e também por Guérin et
al (2001). A partir da demanda, o trabalho e suas condições são investigados “in
vivo”, para que se possa compreender como aspectos específicos de uma dada
situação de trabalho interagem para produzir o problema em questão. Parte-se do
princípio de que cada situação de trabalho é única, e como tal deve ser estudada,
numa abordagem clínica que busca, através da observação e da investigação,
conhecer a situação para saber as causas do problema – elaborar um diagnóstico – e
propor soluções: as recomendações para transformação do trabalho.
Cada uma das etapas do método é levada a cabo em um processo de estreita
interação com trabalhadores de diversos níveis hierárquicos da empresa, através de
entrevistas, oficinas e observações. As formas de interação são objeto de negociação
e contrato firmado entre a empresa e os consultores, e são vias de mão dupla. De um
lado, os consultores obtêm um panorama da empresa e das representações sobre o
problema enfrentado e suas causas, bem como o acesso ao trabalho ali realizado. De
outro lado, os membros da empresa (em todos os níveis hierárquicos) podem
perceber as representações dos ergonomistas sobre as questões tratadas – pela
escolha dos temas como pelas discussões sobre eles. Neste processo, ocorre de parte
a parte a definição de um ‘mapa social’. O resultado de cada etapa e a própria
definição dos próximos passos depende destas interações.
As Questões Este método e sua forma de proceder apresentam ao ergonomista questões
desafiadoras, a começar por seu aspecto central: a análise da atividade humana no
trabalho. Como afirma Ferreira (1993) “a atividade, isto é, o que o trabalhador faz
concretamente, num dado quadro temporal e espacial para responder às exigências
de sua tarefa, [é] o elo entre o trabalhador, com todas as suas especificidades, e a
situação de trabalho na qual ele [está] inserido, com suas condições tecnológicas e
formas próprias de organização”. A proposta de analisá-la coloca o ergonomista
frente a uma realidade complexa e multifacetada, para a qual as bases teóricas ainda
são exíguas. O que é a atividade humana? Como interagem os vários sistemas
orgânicos para dar uma resposta adequada ao ambiente? O que é trabalho? Quais são
as especificidades da atividade de trabalho, contraposta à atividade de forma geral?
Como, numa atividade de trabalho, pode-se produzir adoecimento – questão esta
particularmente relevante no caso dos Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao
Trabalho (LER/DORT)1? Qual é a melhor forma de estudá-la? Quais são as maneiras
de relacionar a análise da atividade e seus resultados com os problemas enfrentados
pela empresa?
Em segundo lugar, este método é empregado em uma situação social, inserida
em um contexto determinado. A empresa é influenciada, em sua estrutura interna e
na forma como reage às pressões externas, pelo ambiente social e legal com relação
ao trabalho. Nela coexistem muitas pessoas, com atribuições e posições hierárquicas
diferentes, que percebem e avaliam a empresa e o trabalho sob óticas distintas. Há
um jogo de forças entre seus diferentes setores; a realização da consultoria representa
a entrada na situação de uma nova força. A ação do ergonomista, nestas bases e
1 As consultorias realizadas junto a empresas foram provocadas pela ocorrência de LER/DORT, como será apresentado no capítulo 1.
empregando tal método, constitui-se na interlocução com diferentes segmentos
sociais, cada qual com um conjunto de posições definidas.
A posição do ergonomista, o objetivo de sua ação, é a transformação do
trabalho, para que este não prejudique as condições de saúde dos trabalhadores a ele
submetidos. Alguns autores defendem que o papel do ergonomista é construir o
“ponto de vista da atividade” (Lima, 2000). Outros afirmam que “a análise do
trabalho permitirá ‘corrigir’ [essas] ‘representações redutoras’ do homem” (Guérin
et al, 2001). A tarefa do ergonomista seria, segundo estes autores, ir a campo para
construir, através da análise da atividade e das outras etapas de seu método, uma
nova ‘representação’, uma nova visão sobre o trabalho humano, para interlocutores
diversos, que seriam transformados por ela. Esta transformação os levaria a
compreender de que forma o trabalho afeta a saúde, aceitar que o trabalho deve ser
transformado e engajar-se nesta transformação.
Se aceitas estas proposições, o ergonomista prático teria à sua frente uma
tarefa quase que sobre-humana: compreender um objeto pouco definido teoricamente
– a atividade de trabalho – através de um jogo de interações com interlocutores
diversos, para apresentar-lhes um relato que tenha um impacto transformador
suficiente para modificar posições muitas vezes derivadas de sua formação e papel
na empresa. Pode-se imediatamente perguntar: o que é o ponto de vista da atividade?
O que são as representações? Do que dependem? É possível mudar representações?
Como? Estas mudanças seriam todas benéficas? E as representações do ergonomista,
também mudam? Tem a consultoria força suficiente para provocar este impacto
transformador?
O próprio roteiro de etapas da AET coloca-se como uma questão no exercício
da prática. Apesar de haver indicações no método sobre as etapas necessárias e como
elas podem ser encadeadas no tempo, não há receita a seguir. Quais são os resultados
esperados em cada uma delas? Como proceder da melhor forma para obter estes
resultados? Como estes devem ser usados para orientar as etapas seguintes? Como o
conjunto de informações obtidas em cada uma delas contribui para os objetivos da
análise?
A realização da AET e da análise da atividade envolvem a participação do
ergonomista na situação, muitas vezes na forma de observação, durante a qual ele
goza de um status particular. Sua presença significa a introdução de um elemento
estranho no sistema estabelecido da situação de trabalho, que a modifica por sua
própria presença. Este aspecto do método é muito pouco discutido. Há algumas
referências aos aspectos éticos da conduta do ergonomista na obra de Guérin et al
(2001), mas as implicações de tal método e seus aspectos concretos ficam relegados
à ‘arte’ de cada um.
Há ainda a discutir a questão das interações entre a equipe externa e os
membros da empresa, questão que se desdobra em várias outras. Qualquer
consultoria realizada em uma empresa exigirá interações entre os externos e seus
funcionários. No entanto, o objeto e as bases desta interação podem ser comuns: na
introdução de maquinário ou novos softwares, por exemplo, trata-se de inventariar o
que já existe e o que será introduzido, para chegar a um ponto comum que organize a
intervenção.
No caso da consultoria em ergonomia, a interação concorre para desencadear
a reflexão sobre os temas propostos pelo ergonomista e por seus interlocutores no
diálogo. A própria constituição de um repertório de temas está relacionada aos
diferentes pontos de vista sobre o que está em jogo, tanto do ergonomista como dos
outros atores sociais. Aí também há várias perguntas: há formas melhores ou piores
para que elas aconteçam? Como se preparar para atuar nelas? Baseado em que
teorias?
O ponto de vista sobre o trabalho depende de vários aspectos, como a posição
hierárquica, a relação com o fazer, a formação individual, o espaço existente para
reflexão sobre o trabalho associado às tarefas desempenhadas. Ele não é estanque e
acabado, pelo contrário, existe em um espaço social que evolui no tempo, dentro de
normas estabelecidas, segundo racionalidades distintas e influenciadas pelo contexto
técnico e social.
Dentro deste quadro, a entrada da consultoria na empresa é determinada por
um contratante (com o aval de sua direção) que, recebendo queixas (direta ou
indiretamente) de problemas que afetam os trabalhadores, busca um parecer técnico
para responder a estas queixas. A demanda, proveniente dos trabalhadores ou de
outros agentes, atinge o ergonomista através do contratante. A partir de sua entrada, e
à medida que se desenrolam as etapas do método, o ergonomista estabelece uma
relação direta com os trabalhadores, que é fundamental para que sua análise seja
realizada. Finalmente, é preciso notar que os resultados da AET, embora envolvam
alguns aspectos essencialmente técnicos – como avaliações de ambiente, avaliações
dimensionais de postos de trabalho e equipamentos – são baseados em grande parte
em uma leitura da situação a partir do conhecimento sobre o funcionamento humano,
o trabalho realizado e seus determinantes, e apresentam um relato sobre a atividade
humana observada. A linguagem é sua ferramenta de trabalho, tanto na busca das
informações que lhe permitirão construir este relato, como na apresentação de sua
análise à empresa. A incorporação de elementos da realidade observada na análise da
atividade ao discurso do ergonomista pode levar a que ele seja visto como um
representante dos trabalhadores.
Estas questões exprimem as inquietações que surgiram durante a prática da
autora como ergonomista e consultora de empresas junto a uma equipe de
ergonomistas. Esta dissertação é fruto destas inquietações, e propõe uma reflexão
sobre a prática, a partir dos casos que a constituíram. É preciso deixar claro que tais
casos não foram desenvolvidos para esta dissertação. Pelo contrário, foi o exercício
da arte da ergonomia que levou a tentar estruturar questões que parecem
fundamentais para a compreensão e o enriquecimento da prática. Assim, os casos
fornecem a base empírica sobre a qual se assenta a discussão. Eles não serão
analisados individualmente, mas sim de forma transversal, para ilustrar como o
emprego do método da AET se concretiza, quais as dificuldades, como as
particularidades da situação determinam a prática e influenciam seus resultados,
quais são as bases teóricas que sustentam esta prática e quais são os pontos sobre os
quais ainda é preciso um estudo aprofundado.
Estrutura Desta Dissertação O capítulo 1 apresenta um painel do período no qual ocorreram as
consultorias, dando elementos para que se compreenda alguns dos determinantes
externos às empresas que tiveram um papel possível em sua ocorrência. A seguir, os
casos estudados serão brevemente apresentados, em suas similaridades e diferenças.
No capítulo 2 é apresentado o método da AET, com destaque para seu objeto
e pontos críticos. O capítulo 3 apresenta uma discussão aprofundada da aplicação
deste método, recorrendo a exemplos concretos ocorridos nas consultorias.
O capítulo 4 investiga outros quadros teóricos que poderiam contribuir para a
epistemologia da prática. Finalmente, o capítulo 5 faz um resumo dos pontos críticos
e das conclusões, apresentando linhas de pesquisa sugeridas por este trabalho.
CAPÍTULO 1
QUAL PRÁTICA?
Ao longo dos anos 90, em São Paulo, muitas empresas procuraram
consultorias externas de ergonomia, entre elas empresas da área financeira (bancos,
cartões de crédito, seguradoras) e de serviços. As razões que conduziram a isso estão
ligadas a circunstâncias particulares daquela década.
De um lado, o segmento de serviços no Brasil (como em outros países) entrou
em expansão. No caso das empresas financeiras, de forma geral ocorreu um aumento
na base de clientes, no volume de negócios e nos resultados obtidos. A introdução da
tecnologia de telefonia celular determinou a abertura de um novo ramo de serviços e
conseqüentemente a criação de novos postos de trabalho. Os empregos ligados ao
atendimento à distância – como centrais de atendimento telefônico – aumentaram em
números absolutos e em participação no número de empregos total. Outras empresas,
investindo em novas tecnologias de atendimento a clientes, promoveram uma
redução no número de postos de trabalho que envolviam contato presencial com o
cliente, como caixas de banco, e criaram postos de trabalho em atividades de
retaguarda – como o processamento de envelopes de auto-atendimento, no caso dos
bancos. Apesar da expansão dos negócios, e mesmo da criação de novos postos de
trabalho ligados ao atendimento à distância, este período caracterizou-se por uma
redução brutal no número total de empregos, que passou de 811.425 postos de
trabalho em 1989 para 463.329 em 1997 e atingiu 408.209 em junho de 1999
(segundo estimativas do DIEESE).
De outro lado, no que tange à saúde, observou-se no mundo ocidental uma
modificação nas causas de afastamento por doenças ocupacionais. A partir do fim da
década de 70, as chamadas LER/DORT (Lesões por Esforços Repetitivos/ Distúrbios
Osteomusculares Relacionados ao Trabalho)2 começaram a produzir afastamentos.
2 LER/DORT é a denominação dada a um conjunto de diferentes patologias músculo-esqueléticas (por exemplo tendinites, tenossinovites), ou patologias compressivas dos nervos periféricos (por exemplo síndrome do túnel do carpo, síndrome do desfiladeiro torácico), que acometem principalmente os membros superiores e são provocadas ou agravadas pelo trabalho.
Sua prevalência aumentou de forma contínua durante os anos 80, e estas se tornaram
a maior causa de afastamento (Kuorinka e Forcier, 1995), ocupando o lugar das
lombalgias, que haviam sido o principal distúrbio músculo-esquelético a acometer os
trabalhadores durante a maior parte do século XX.
Este fenômeno também foi observado no Brasil. Na década de 1980, muitos
trabalhadores envolvidos com a entrada de dados em sistemas informatizados
(digitação) foram acometidos por tendinites e tenossinovites dos membros
superiores. Em resposta a isso, assistiu-se a uma mobilização de sindicatos e órgãos
governamentais para compreender as causas e fazer frente ao adoecimento.
Trabalhou-se inicialmente na elaboração de uma norma que regulamentasse o
exercício profissional dos digitadores, em particular abordando a questão de
“prêmios de produção, a ausência de pausas, a prática de horas-extras e a dupla
jornada de trabalho, dentre outros” (Brasil, Ministério do Trabalho e Emprego,
2002), mas seu escopo foi ampliado para incluir outros aspectos ligados às condições
de trabalho, como “o mobiliário, a ambiência térmica, a ambiência luminosa e o
nível de ruído” (idem). Deste movimento resultou a elaboração e aprovação da
Norma Regulamentadora 17 – Ergonomia (NR-17), do Ministério do Trabalho, em
1990.
O objetivo desta norma é o estabelecimento de “parâmetros que permitam a
adaptação das condições de trabalho às características psicofisiológicas dos
trabalhadores” (Ministério do Trabalho e Emprego, 2002). Para tal, ela define quais
aspectos da situação de trabalho podem ser compreendidos como condições de
trabalho: “levantamento, transporte e descarga de materiais, [..] mobiliário, [...]
equipamentos e condições ambientais do posto de trabalho e a própria organização
do trabalho” (idem). Além disso, a norma estabelece que os empregadores, “para
avaliar a adaptação das condições de trabalho”, devem “realizar a análise
ergonômica do trabalho” (idem).
É interessante notar que a inclusão da organização do trabalho na redação da
norma despertou imediata reação da classe patronal, como relatado no Manual de
Aplicação da Norma Regulamentadora Nº 17 (MTE, 2002):
“Após a publicação, a classe patronal, principalmente a Federação
das Indústrias do Estado de São Paulo – FIESP e Federação
Brasileira dos Bancos – FEBRABAN se deram conta das
possibilidades abertas pela nova redação e que as alterações não se
limitavam à área de processamento de dados. Foi solicitada
imediatamente uma discussão dos técnicos do Ministério do Trabalho
e de representantes dessas instituições para modificar seu conteúdo.
[...] A equipe de fiscalização em ergonomia realizou debates com
uma legião de advogados e outros representantes da FIESP e da
FEBRABAN, principalmente nos aspectos da organização do
trabalho” (Brasil, Ministério do Trabalho e Emprego, 2002).
No entanto, a redação foi mantida e a Norma aprovada. Dois aspectos devem
ser ressaltados: ela instituiu a análise ergonômica do trabalho3 como método de
estudo, e incluiu a organização do trabalho no escopo das condições de trabalho a
serem avaliadas e passíveis de melhoria.
Estas circunstâncias levaram muitas empresas, espontaneamente ou
respondendo a forças externas – mobilizações sindicais, fiscalização e autuação por
parte das DRTs (Delegacias Regionais do Trabalho, órgãos de fiscalização do
Ministério do Trabalho) – a solicitarem estudos de ergonomia para postos de trabalho
ou departamentos nos quais havia a ocorrência de casos de LER/DORT, risco de
problemas de saúde, ou ainda a existência de queixas variadas.
3 Note-se que trata-se aqui de análise ergonômica do trabalho, em minúsculas, e não da AET. É interessante notar também que a norma não explicita o que é esta análise ergonômica do trabalho.
As Consultorias – Geografia da Prática Neste cenário, participei de várias consultorias de ergonomia, junto a
empresas da área de serviços de massa (cf. Salerno, 2001), entre os anos de 1994 e
2000, como membro de uma equipe externa às empresas. A composição da equipe
foi variável neste período, e incluiu, além dos ergonomistas, engenheiros, sociólogo,
psicólogo, conjunta ou separadamente. Sete empresas foram atendidas durante este
período, conforme a tabela 1.
Tabela 1: Empresas atendidas pelas consultorias e Áreas Estudadas Empresa Áreas Estudadas
Cartão de crédito Duas consultorias para estudo das atividades de atendimento telefônico a clientes (aproximadamente 700 funcionários), separadas por um período de aproximadamente um ano
Banco 1 Duas consultorias, para estudo da atividade de caixa bancário, e de atendimento telefônico a clientes (aproximadamente 300 funcionários)
Banco 2 Consultoria relativa às atividades de caixa de retaguarda (processamento de documentos colocados em envelopes de auto-atendimento) (aproximadamente 200 funcionários)
Companhia de telefonia celular
Estudo da atividade de atendimento telefônico a clientes, seguido posteriormente por um contrato para desenvolvimento de protótipo de móvel em parceria com uma indústria moveleira
Banco 3 Estudos sobre o mobiliário do posto de caixa bancário, que envolveram 3 contratos diferentes: avaliação de dois tipos de mobiliário em uso no banco, e desenvolvimento, em parceria com uma indústria moveleira, de um protótipo de mobiliário a ser adotado por toda a empresa
Seguradora Estudo das atividades de técnico de seguros (aproximadamente 190 funcionários) e de analistas de sistema (aproximadamente 70 funcionários), com o objetivo de estabelecer o Perfil Profissiográfico Previdenciário (PPP4) e fazer uma avaliação de risco
Banco 4 Estudo sobre o mobiliário do posto de caixa bancário
Dentre estas empresas, a operadora de cartões de crédito era líder de
mercado, com a maior base de clientes do país (aproximadamente 4 milhões de 4 PPP = Perfil Profissiográfico Previdenciário: formulário do Ministério da Previdência Social para comprovação da exposição a agentes nocivos químicos, físicos, biológicos ou uma associação de agentes prejudiciais à saúde ou à integridade física.
clientes na época). Os bancos 1 e 2 estão colocados entre os quatro maiores do país,
sendo que um deles é também proprietário da seguradora estudada. A companhia de
telefonia celular, sediada em São Paulo, operava em grande parte do território
nacional. O banco 3 vinha da aquisição de uma rede regional no nordeste do país, e
por ocasião do término das consultorias foi adquirido pelo banco 2. Excetuando-se a
empresa de telefonia celular, que havia sido criada recentemente através de uma
joint-venture entre um banco nacional e uma empresa estrangeira, as outras eram
empresas maduras, que viviam um período de expansão dos negócios e melhoria dos
resultados econômico-financeiros.
LER/DORT e as Consultorias Todas as empresas recorreram à consultoria de ergonomia motivadas pela
ocorrência de LER/DORT em algumas áreas – aquelas atendidas pelos estudos. Há
apenas uma exceção: na área de tecnologia da seguradora, as queixas de saúde eram
variadas, e as LER/DORT não eram a queixa principal.
Os problemas citados pelas empresas referiam-se à existência de casos de
adoecimento antigos e novos (em algumas empresas falava-se de verdadeiras
epidemias, que atingiam 10 a 15% dos efetivos das áreas), a dificuldades de gestão
frente a afastamentos por doença ocupacional e à realocação de trabalhadores com
restrições, a notificações legais de órgãos de fiscalização governamentais, a pressões
por parte de sindicatos. Algumas delas buscavam informações que permitissem
aperfeiçoar o processo de seleção de trabalhadores e a contratação de pessoas imunes
às doenças, e outras ainda respondiam a pressões internas e tentavam antecipar-se ao
agravamento da situação, como foi o caso na seguradora.
As Áreas Estudadas A tabela 2 apresenta os casos agrupados por área estudada, a demanda
inicialmente colocada e o contrato firmado.
Tabela 2: Apresentação dos casos segundo a área estudada, demanda inicial e contrato
firmado Área estudada Empresa Demanda inicial Objeto do contrato Central de Atendimento Telefônico
Cartão de Crédito
LER/DORT Diagnóstico e avaliação de protótipo de móvel(1º contrato)
Cartão de Crédito (2º contrato)
LER/DORT Diagnóstico
Banco 1 LER/DORT Diagnóstico Telefonia Celular
LER/DORT Diagnóstico
Telefonia Celular (2º contrato)
LER/DORT Avaliação de protótipo de móvel
Caixa
Banco 1 LER/DORT Avaliação de protótipo de móvel em teste e análise da atividade para diagnóstico
Banco 3 Notificação da DRT por LER/DORT
Avaliação de móvel em uso (2 tipos) Desenvolvimento de protótipo
Banco 4 LER/DORT Avaliação de móvel em uso
Caixa de retaguarda
Banco 2 LER/DORT Diagnóstico
Técnicos de Seguro e Analistas de Sistemas
Seguradora
LER/DORT e outras queixas
Avaliação de risco para subsidiar o PPP
A tabela permite identificar que a ocorrência de LER/DORT nas empresas
levou-as a estabelecer contratos que respondessem a:
• Problemas relacionados ao posto de trabalho, em particular o mobiliário:
este grupo engloba os bancos 1, 3 e 4, e o segundo contrato da telefonia
celular.
• Busca de um diagnóstico da situação: este grupo inclui as empresas que
contrataram estudos em suas centrais de atendimento telefônico (cartão de
crédito, banco 1 e telefonia celular), e na área de caixas de retaguarda
(banco 2).
• Avaliação de risco e subsídios para preenchimento do PPP: o estudo
realizado na seguradora, que se destaca das outras empresas atendidas
neste aspecto, nas áreas estudadas e também por aspectos referentes ao
conteúdo das tarefas.
Esta classificação dos objetos de contrato faz refletir sobre os processos
internos às empresas que antecederam a contratação de uma equipe externa. No caso
dos estudos de mobiliário, algumas empresas estabeleciam claramente seu interesse e
o escopo de resposta da consultoria pretendido, devido à própria situação que
resultou na consultoria, como no caso do banco 3. Este banco, tendo adquirido uma
rede de agências no nordeste do país, fez instalar nelas um novo móvel de caixa,
desenvolvido por famoso escritório de arquitetura e diferente daquele em uso na
maior parte de suas agências (este, um móvel com 20 anos de uso, anterior à
informatização desta atividade). Logo após a instalação do novo mobiliário, o banco
foi alvo de autuação pela DRT, que avaliou o móvel como inadequado e anti-
ergonômico. De nada adiantou um laudo obtido pela empresa que declarava o móvel
adequado; a DRT não concordava com ele. O departamento de arquitetura recorreu
então a uma consultoria que lhe ajudasse, ao mesmo tempo, a responder ao processo
de autuação e a compreender porque o novo móvel era considerado inadequado. Um
problema específico, um contrato específico.
Um exemplo contrário ocorreu no banco 1. O estudo contratado previa um
diagnóstico da situação e também a avaliação de um protótipo de mobiliário. No
entanto, a área responsável pela compra do móvel já havia estabelecido o contrato de
compra antes que a avaliação tivesse sido realizada.
No caso das centrais de atendimento telefônico o panorama interno das
empresas – tal como apreendido pelos consultores nas negociações que antecederam
o estabelecimento do contrato – era diverso. Havia um grande número de casos de
LER/DORT e de afastamentos formais (com CAT – Comunicação de Acidente de
Trabalho5). As áreas que lidavam com estes trabalhadores (Recursos Humanos e
5 A CAT é um documento emitido pela empresa para caracterizar a doença como relacionada ao trabalho – e portanto habilitar o paciente a receber a seguridade junto ao INSS, que neste caso tem características diferentes daquela outorgada a uma doença
Serviços Especializados de Engenharia de Segurança e Medicina do Trabalho –
SEESMTs) enfrentavam dois debates: um interno a elas, e que ia no sentido de
compreender, mapear e tentar prevenir o adoecimento, com resultados modestos que
contribuíram para as contratações; outro externo a elas, junto às gerências
responsáveis pelas áreas nas quais este ocorria, tentando obter seu engajamento na
busca de soluções (ver mais abaixo a tabela 3). Havia também, naquele momento,
pressões oriundas da sociedade: sindicatos em alguns casos (banco 1), ameaça de
pedido de indenização por parte do INSS dos benefícios pagos aos afastados, e
mesmo a ameaça de processos cíveis por lesões corporais. Embora o problema fosse
claro (o adoecimento), havia menos consenso sobre quais as suas causas e que
resposta dar a ele, daí a contratação de estudos de diagnóstico da situação. Além
disso, o trabalho do atendente nestas centrais era um trabalho novo, ao contrário do
trabalho dos caixas.
No último caso, da seguradora, o departamento de RH recebia muitas queixas
de saúde de analistas de sistema, que vinham acompanhadas de relatos de estresse e
insatisfação com seu trabalho na empresa. Ao mesmo tempo, havia algumas queixas
(menos numerosas que as de analistas) de LER/DORT na área de operações, sem que
isso se traduzisse na formalização dos casos através de CAT. A modificação de
rotinas administrativas do INSS referentes à avaliação de exposição a riscos no local
de trabalho, e a criação de um novo formulário para tal (PPP – Perfil Profissiográfico
Previdenciário) foi o elemento desencadeador da consultoria, que atendia assim aos
vários problemas enfrentados pela área de RH.
Deve-se destacar que os problemas de saúde identificados nas empresas não
ocorriam de forma aleatória entre seus funcionários. Pelo contrário, estavam
concentrados em áreas específicas, entre os atendentes de centrais de atendimento
telefônico e caixas, e entre os analistas de sistema e, em menor grau, técnicos de
seguro. Isto será retomado no capítulo 3.
comum. A CAT tem também o papel de alimentar o sistema de informações do Ministério da Previdência, que controla as estatísticas nacionais de acidentes de trabalho.
Os Contratantes A tabela 3 indica as áreas das empresas que contrataram os serviços de
consultoria, bem como as áreas nas quais havia incidência de LER/DORT ou outras
queixas e o tempo de duração de cada contrato.
Tabela 3: Áreas contratantes e áreas responsáveis pelos setores com ocorrência de LER/DORT.
Empresa Gerência que firmou o contrato Gerências / áreas de ocorrência dos casos
Cartão de Crédito Recursos Humanos Atendimento a Clientes Telemarketing Cobrança Retention
Banco 1 – Caixas Vice-presidência de Recursos
Humanos
Diretoria de Recursos Operacionais
Banco 1 – Central Recursos Humanos e
SEESMT
Atendimento Telefônico
Telefonia Celular SEESMT e Recursos Humanos
Atendimento a Clientes
Banco 2 Recursos Humanos Multiagência – caixas de retaguarda
Banco 3 Departamento de Arquitetura Caixas
Banco 4 Departamento de Arquitetura Caixas
Seguradora Recursos Humanos Operações Tecnologia
A respeito disso, podemos tecer algumas considerações. Um aspecto comum
a todas as empresas atendidas é que elas adotavam, quanto à estrutura de operação,
um modelo clássico de projeto do trabalho, baseado em divisões funcionais e vários
níveis hierárquicos. Quanto à produção, identificou-se a fragmentação dos processos
em tarefas de conteúdo restrito e repetitivo, com indicadores de produtividade
calcados nos resultados individuais e no tempo de execução das tarefas.
Os contratantes, na maior parte dos casos, pertenciam à área de Recursos
Humanos. Nestes casos, a negociação dos contratos envolveu discussões com
representantes de outras áreas da empresa (aquelas afetadas pelos problemas
apontados pelo RH) para operacionalizar as etapas e práticas que seriam adotadas na
realização do estudo. Isto foi necessário porque o cliente inicial – RH, Departamento
de Arquitetura ou SEESMT – não era responsável hierárquico da área na qual ocorria
o problema. Os casos de LER/DORT atingiam funcionários que estavam sob a
responsabilidade de outros gerentes e administradores.
Uma das características do modelo clássico de organização é que a lógica de
atuação de cada área da empresa apóia-se em racionalidades técnicas distintas,
ligadas ao tipo de trabalho que nela se faz, e que são permeadas pelo ambiente da
empresa, suas estratégias, metas e resultados esperados. O problema de adoecimento
enfrentado pela empresa também é formulado de maneiras distintas pelos
representantes das diversas áreas. Pode-se dizer que não há um problema, mas vários,
de acordo com as conseqüências que traz para cada indivíduo e cada uma das áreas, e
também que não há apenas um cliente, mas vários. A contratação de uma consultoria
pode, neste campo social, significar a união de várias áreas para fazer frente a um
evento externo à empresa – como no caso do banco 3, em resposta a uma notificação
da DRT – ou, pelo contrário, a formalização de conflitos de lógica entre as áreas –
principalmente entre as responsáveis por saúde e segurança ou recursos humanos e as
áreas de produção (como na cartão de crédito e na telefonia celular).
Neste contexto, o recurso a um interlocutor externo, por meio da consultoria,
significava não apenas a busca de novos elementos sobre a situação enfrentada –
como informações sobre o adoecimento, sua prevenção, os sistemas de controle
epidemiológico, formas de pensar a realocação a postos de trabalho adaptados –
como também, em algumas empresas, a procura de um aliado, uma força neutra nas
relações internas da empresa, que reforçasse a necessidade de engajamento da
hierarquia das áreas afetadas na busca de uma solução.
Duração dos contratos O tempo de duração dos contratos variou bastante, em função do escopo da
análise proposta – contratos para estudo do mobiliário tendiam a ser mais curtos do
que os contratos para diagnóstico – mas também da negociação entabulada com as
empresas e da própria experiência da equipe. O primeiro estudo sobre centrais de
atendimento telefônico, realizado na cartão de crédito ao longo de um ano, foi
bastante aprofundado e deu à equipe uma base sólida de conhecimento sobre este
tipo de situação de trabalho. Nas consultorias seguintes dedicadas a este tipo de área,
foram negociados prazos menores.
A variação não ocorreu apenas na duração estabelecida em contrato. Na
prática, a dinâmica ao longo do estudo interferiu com o prazo estabelecido, por
causas diversas e de formas diferentes. Mais comumente, o prazo foi estendido,
principalmente por dificuldades de agendar reuniões com os representantes da
empresa e em programar datas de observação junto aos funcionários, devido a
restrições da empresa (momentos de pico de produção, por exemplo). A consultoria
junto à telefonia celular foi o maior exemplo disto. O contrato inicial previa a
realização da análise em três meses, porém as dificuldades em agendar reuniões,
oficinas e datas de observação junto à empresa levaram à extensão deste prazo para
12 meses. Esta dilatação do contrato fez com que as recomendações de mudança
fossem apresentadas à empresa em um cenário totalmente diferente do cenário inicial
– a estruturação das áreas mudara, novas gerências haviam sido criadas, os ocupantes
das diferentes gerências eram outros, os resultados da empresa neste período
pioraram.
Um exemplo contrário foi o banco 1, que fechou um contrato de um ano para
uma análise aprofundada do trabalho de caixas bancários. Neste, o primeiro passo era
uma avaliação de protótipos de mobiliário instalados em uma agência interna (só
atendia a funcionários do próprio banco), que devia resultar em um relatório
intermediário imediatamente após a avaliação, dois meses após o início. Tal relatório
julgou o móvel em questão inadequado, mas a licitação para a produção já tinha sido
feita, e mil unidades deste móvel tinham sido encomendadas pelo banco. O parecer
da equipe de ergonomia resultou na suspensão de todas as etapas previstas para o
restante do contrato.
Estas dificuldades, ligadas à volatilidade dos arranjos organizacionais e a
conflitos entre áreas da organização que agem separadamente sobre o mesmo
problema – avaliação e licitação de mobiliário, no exemplo citado – são
significativas na aplicação do método e na determinação dos resultados das
consultorias. Este assunto será retomado posteriormente.
CAPÍTULO 2
O MÉTODO DA AET
Este capítulo tem por objetivo apresentar o método de Análise Ergonômica do
Trabalho, seu objeto de estudo, e as implicações de tomar tal objeto como central.
Inicialmente, define-se ergonomia e seu objeto. A seguir, são apresentadas as etapas
do método da AET (Wisner, 1994; Guérin et al, 2001) com destaque, a cada uma
delas, para os pontos críticos de sua formulação que são relevantes para a reflexão
desta dissertação.
Ergonomia e Análise Ergonômica do Trabalho
Segundo Wisner (1987), a ergonomia pode ser definida como “o conjunto de
conhecimentos científicos relativos ao homem e necessários à concepção de
instrumentos, máquinas e dispositivos que possam ser utilizados com o máximo de
conforto, segurança e eficiência”. Complementando esta definição, Laville
acrescenta que “se ela é, de início, uma tecnologia, isto é, um corpo de
conhecimentos sobre o homem aplicáveis aos problemas levantados pelo conjunto
homem-trabalho, ela tem, contudo, métodos específicos de estudo e pesquisa sobre a
realidade do homem no trabalho que definem um tipo de pensamento que lhe é
próprio, colocando questões às diversas ciências sobre as quais se apóia
(principalmente à Fisiologia e à Psicologia) e suscitando pesquisas no terreno do
homem em atividade” (Laville, 1977, p.6, grifo meu). Esta definição atende à
vertente descrita inicialmente como ergonomia da atividade.
Eis aí estabelecido o objeto de estudo – o trabalho humano – e a indicação de
que os métodos empregados são específicos e, mais importante, definem um tipo de
pensamento que é próprio da ergonomia. Para compreender tal objeto, o ergonomista
se propõe a fazer a análise da atividade humana em situação de trabalho, através da
observação da realização do trabalho. A atividade de trabalho é fruto de uma situação
determinada: o homem usa ferramentas e equipamentos específicos, num local
estabelecido para tal, em um quadro temporal pré-estabelecido. A situação determina
o trabalho, como aponta Braverman (1981): “Isento das trilhas rígidas ditadas pelo
instinto nos animais, o trabalho humano torna-se indeterminado, e seus diversos
determinantes constituem, daí por diante, produtos não da biologia mas das
complexas interações entre ferramentas e relações sociais; tecnologia e sociedade”.
A definição deste objeto de análise tem implicações metodológicas, e as
etapas propostas pelo método da AET para que a situação em estudo seja conhecida e
analisada respondem a tais implicações. Se os determinantes do trabalho não são
produtos da biologia, é necessário conhecer a tecnologia e o ambiente social no qual
ele se dá. As etapas preconizadas pela AET requerem que o ergonomista explore o
funcionamento da organização, sua base tecnológica e os processos realizados, a
população de trabalhadores e as tarefas atribuídas a cada um, com o intuito não de
produzir um conhecimento genérico sobre o trabalho, mas de compreender o trabalho
tal como ele se realiza naquela empresa, naquela situação, e estabelecer seus
determinantes – os aspectos mais significativos na produção do fenômeno estudado,
seja ele desconforto, acidentes ou doença, ou ainda problemas de produção.
A premissa do método é que a situação de trabalho é única, e nela os
elementos formam um todo indissociável, maior do que a soma de suas partes. A
ocorrência de LER/DORT pode ser usada como exemplo desta afirmação. A
literatura aponta que tarefas fragmentadas e repetitivas estão na origem deste tipo de
patologias (Kuorinka, 1995; Ministério da Saúde, 2001). Ora, nas empresas
estudadas a organização do trabalho adotava um processo produtivo estruturado
sobre várias tarefas fragmentadas e repetitivas. Seria então de se esperar que a
ocorrência de LER/DORT fosse disseminada entre todas as áreas que apresentam
este tipo de tarefa, em particular quando as outras condições de realização –
mobiliário, ambiente, equipamento – fossem as mesmas. Não foi isso que se
constatou nas consultorias. Em várias empresas (na cartão de crédito, na telefonia
celular) a produção era obtida a partir de tarefas fragmentadas e repetitivas, as
condições materiais de realização eram muito semelhantes entre todas as áreas
(ambiente e mobiliário), mas a ocorrência de LER/DORT não!
Para compreender esta singularidade, para ter acesso à atividade humana, não
se pode abrir mão do discurso das pessoas envolvidas naquela situação. Isto inclui
entrevistar, observar e receber explicações rápidas sobre sua atividade dadas no local
de trabalho, bem como explicações detalhadas em outros locais. A busca desta
compreensão abriu o método ergonômico à subjetividade dos envolvidos, e este é um
de seus aspectos críticos que serão discutidos mais adiante.
Portanto, faz parte da arte do ergonomista conhecer cada situação que estuda,
de forma a descobrir o que a torna única, e como estas características se relacionam
com o conhecimento científico já estabelecido sobre o ser humano e o trabalho, para
que ele seja capaz de elaborar o diagnóstico sobre a origem dos problemas
enfrentados. A compreensão deste todo indissociável através da AET é uma prática
clínica. As implicações desta afirmação serão discutidas no capítulo 4.
As etapas da AET O método propõe os passos necessários ao desvelamento desta realidade, que
serão adaptados ao contexto de cada estudo realizado. Segundo Wisner (1994), as
etapas a serem cumpridas são a análise da demanda e proposta de contrato; a análise
do ambiente técnico, econômico e social; análise das atividades e da situação do
trabalho e restituição dos resultados; as recomendações ergonômicas; a validação da
intervenção e eficiência das recomendações.
Os autores do livro Conhecer o Trabalho para Transformá-lo detalham
mais algumas destas etapas e introduzem na metodologia duas diferenças básicas em
relação ao que foi descrito anteriormente. A primeira é a formulação de hipóteses,
em dois momentos: para orientar a escolha das situações a analisar (Hipótese de nível
1) e para a formulação de um pré-diagnóstico (Hipóteses de nível 2). Segundo estes
autores, os resultados de observações sistemáticas realizadas após as observações
globais da atividade permitem validar as hipóteses de nível 2. O objeto deste segundo
nível de hipóteses diz respeito aos determinantes da atividade, ou seja, os aspectos da
situação de trabalho responsáveis pelo fenômeno expresso na demanda, os quais
devem ser transformados para que as condições de trabalho sejam melhoradas. A
segunda diferença introduzida no método de AET por estes autores é que a partir daí
passa-se a falar em diagnóstico da situação – “produto essencial da análise efetuada
pelo ergonomista” (Guérin et al, 2001, p. 175) – e não em recomendações
ergonômicas.
A elaboração de hipóteses é questionada por alguns autores, como Fernande
Lamonde (2000), e não foi central na prática da equipe na qual trabalhei. Por outro
lado, a formulação de um diagnóstico da situação como resultado principal da
consultoria foi uma das características do trabalho da equipe. Assim, o método será
aqui apresentado através de suas etapas principais tal como descrito por Wisner,
exceto no que tange ao diagnóstico.
A primeira etapa será sempre a análise da demanda, que é o elemento que
desencadeia a relação entre o ergonomista e a organização e estrutura o contrato que
será firmado. Uma vez firmado o contrato, o ergonomista procede às outras etapas e,
a partir dos conhecimentos nelas obtidos, formula um diagnóstico da situação, cujo
objetivo é apontar quais são os pontos mais importantes – os determinantes da
situação expressa na demanda – que devem ser objeto de transformação, e as
recomendações de mudança.
Como já foi dito na introdução, este método oferece ao prático um roteiro de
ação, mais do que uma receita, pois o cumprimento das etapas propostas por si só
não garante a obtenção de um diagnóstico preciso. É nisto que consiste a arte da
ergonomia – a exploração das etapas e o estudo dos resultados obtidos em cada uma
delas em função dos objetivos perseguidos e do problema colocado. A ação do
ergonomista será variável, em função do contrato firmado e dos resultados obtidos a
cada passo, mas deve ser direcionada a investigar vários tipos de informações, sob o
fio condutor da demanda que lhe foi colocada.
Além da articulação variável das etapas, as próprias ferramentas de análise da
atividade a serem empregadas devem ser escolhidas de acordo com a situação, ou
mesmo desenvolvidas especialmente para ela. É o contrário do que se propõe na
abordagem através de uma lista de verificação, da linha anglo-saxã, na qual a
situação de trabalho é investigada através de sua comparação a vários itens
identificados anteriormente como possíveis fatores de risco para a saúde e o conforto.
A grade de análise independe da situação específica, é anterior a ela, e parte da
premissa de que o conhecimento científico existente é suficiente para permitir a
adequação do trabalho. No caso da AET o caminho é inverso. É a demanda colocada
e o conhecimento da situação de trabalho que remetem a pontos específicos que
deverão ser investigados em profundidade para fundamentar o diagnóstico sobre a
raiz do problema.
A Análise da Demanda
Esta é a denominação da etapa inicial dos contatos entre o(s) ergonomista(s) e
a empresa, que antecede o estabelecimento de um contrato e estende-se aos contatos
iniciais após sua formalização. Segundo Wisner (1987), “Este tipo de análise é uma
fase sempre importante do estudo ou da pesquisa: deve-se analisar a
representatividade do autor da demanda, a origem da demanda (demanda real e
demanda formal), os problemas (aparentes e fundamentais), as perspectivas de ação,
os meios disponíveis”. Este é um momento crucial para o desenrolar da AET, por
permitir que o ergonomista compreenda o que está em jogo, e por estabelecer as
bases daquilo que será realizado nas etapas subseqüentes.
Toda consultoria envolve uma negociação, de custos, de prazos, de
resultados. Porém, no caso da consultoria em ergonomia, particularmente quando o
método utilizado é o da AET, trata-se de uma negociação com particularidades que
devem ser destacadas. Para o ergonomista, compreender o que está em jogo significa
obter informações, de diferentes interlocutores na organização, sobre o problema
enfrentado. Significa também estruturar sua proposta de trabalho com base nestas
informações e entrar no jogo de relações sociais estabelecidas na empresa, propondo-
se a investigar e apresentar uma análise que se fundamenta na atividade humana de
trabalho. A negociação implica em obter reconhecimento da legitimidade deste
método para tratar do problema, além daquela oferecida pela NR-17, como
discutimos no capítulo 1.
Além disso, há muitos envolvidos nesta negociação. Muitas vezes o contrato
é firmado com representantes da área de RH, que não são os responsáveis diretos
pelas áreas nas quais o problema se manifesta. Isso dá origem a uma série de
interfaces entre as diferentes áreas da empresa, entre a equipe consultora e tais áreas,
entre a empresa e forças organizadas da sociedade, entre chefias, trabalhadores e
consultores... O consultor é um terceiro que entra em uma organização social e
politicamente determinada, que exerce a arte da negociação em permanência, ao
longo de toda a consultoria. Dependendo de seus resultados, a própria consultoria é
posta em cheque, como aconteceu no banco 1 a propósito do mobiliário de caixa.
Finalmente, o contrato firmado ao fim da análise da demanda institui também
as “condições indispensáveis ao êxito da ação ergonômica” (Guérin et. al, op. cit., p.
97), e que garantem, de um lado, o acesso às situações, aos meios técnicos e
informações necessárias para a AET, e de outro a instituição de estruturas de
acompanhamento, como grupos de trabalho e comitês de acompanhamento, que
formam a base de interlocução da equipe de ergonomistas. Nas consultorias
realizadas, foram estabelecidos grupos de trabalho e de acompanhamento, exceto
junto aos bancos 3 e 4. Este ponto é significativo para vários fenômenos que serão
descritos posteriormente.
O Funcionamento da Empresa
Nesta etapa do estudo, a equipe de ergonomia busca informações sobre a
população de trabalhadores, a tecnologia e organização da produção adotadas pela
empresa, e por índices referentes à produção (quantidades, qualidade, momentos de
pico, por exemplo) e à saúde (dados sobre o adoecimento e afastamentos). Guérin et
al. (2001) afirmam que esta etapa “é orientada pela demanda e guiada pela
necessidade de se elaborar um pré-diagnóstico. Caracteriza-se por uma abordagem
global e deve permitir que se articulem aspectos do funcionamento da empresa para
melhor se compreender o que está em jogo na demanda” (p.100). Trata-se de
investigar a empresa a partir da premissa de que o problema citado na demanda –
adoecimento, no caso das consultorias realizadas – é um dos resultados da estrutura
existente na empresa num determinado momento. Sob esta ótica, o ergonomista vai a
campo buscar informações que relacionem o trabalho, suas condições e resultados
(inclusive o adoecimento) com as características da empresa e da população de
trabalhadores cuja atividade é estudada. Além disso, busca-se conhecer os projetos
de evolução da empresa, seja para incluí-los na reflexão sobre as possibilidades de
transformação, seja para identificar momentos oportunos para que as recomendações
sejam implementadas.
Muitas vezes, esta investigação pode revelar que alguns dos dados procurados
pelo ergonomista são inexistentes na empresa. Até serem solicitados pelo
ergonomista (e algumas vezes também depois disto), tais dados não foram objeto de
sistematização em um conjunto ordenado. No caso das empresas estudadas, com
processos de trabalho apoiados em tecnologia informatizada capaz de gerar relatórios
gerenciais muito minuciosos, isso parece exprimir sua pouca importância do ponto
de vista gerencial. Vários exemplos foram encontrados ao longo das consultorias.
Alguns se referiam ao adoecimento e sua contabilidade, como dados referentes aos
custos provocados por problemas de saúde ocupacional, sobre horas-extras realizadas
para cobrir faltas e afastamentos, dados sobre o número de doentes, tempo de
afastamento... Outros eram relacionados ao gerenciamento das áreas e ao controle
das intercorrências entre diferentes áreas, e exprimem a lógica funcional derivada do
modelo clássico de gestão da produção, o isolamento administrativo entre áreas
distintas. Por exemplo, no caso das centrais de atendimento telefônico, muito embora
fosse anedótica e recorrente a ocorrência de picos de chamadas de clientes
provocados por ações do marketing da empresa, dados detalhados sobre elas eram
inexistentes.
A inexistência de dados, ou seu papel de menor importância no
gerenciamento das situações que foram objeto de análise através da consultoria, é a
expressão de uma diferença fundamental na forma de raciocínio sobre o trabalho por
parte dos consultores, de um lado, e da empresa e suas áreas de outro. A reflexão do
ergonomista é orientada por seu objeto, o trabalho, a saúde. A reflexão da empresa é
puxada por seu objeto, a produção e o lucro, indicadores de desempenho de áreas e
gerências... O papel que o trabalho desempenha para a empresa é visto a partir de um
ponto de vista radicalmente diferente daquele que orienta o ergonomista, e este
conflito de lógicas, que tenderá a se aprofundar durante o processo de análise, é um
dos pontos cruciais que devem ser discutidos a respeito do método da AET.
A respeito desta etapa, Wisner (1987) esclarece que “É preciso [...] que o
ergonomista situe sua ação no limiar das estruturas técnicas, econômicas e
sociais...” E ele define o uso feito da palavra estrutura:
“A palavra estrutura é empregada aqui no sentido adotado pela
escola estruturalista, e bem explicitada por Piaget (1968): ‘numa
primeira aproximação uma estrutura é um sistema de transformação
que comporta leis enquanto sistema (por oposição às propriedades
dos elementos) e que se conserva e se enriquece pelo próprio jogo de
suas transformações, sem que elas ultrapassem suas fronteiras ou
utilizem elementos externos. Em resumo, uma estrutura compreende
assim as três características de totalidade, de transformação e de
auto-regulação. [...] A análise das estruturas técnicas, econômicas e
sociais que restringem a atividade ergonômica não pode depender de
um estudo superficial, pois se trata de compreender a constituição de
vastos conjuntos e suas leis de transformação”.
Mas Wisner advertia que o ergonomista devia identificar e estudar tais
estruturas, “mas [sobre elas] ele não procurará agir diretamente, a fim de
proporcionar uma plena eficácia à sua própria ação” (Wisner, 1987, p.43).
Este é um ponto de divergência entre ele e outros autores, como Guérin et al.
(op. cit.), Maurice de Montmollin (1986), Lima (2000) e Hubalt (2004a), que
afirmam que a perspectiva de ação sobre a organização do trabalho é fundamental
para que se possa transformar de maneira eficiente as condições de trabalho.
Análise do Processo Técnico e das Tarefas
A distinção entre a investigação das estruturas técnicas da empresa e aquelas
relativas ao processo técnico é de escala. Numa metáfora cinematográfica, até aqui as
informações obtidas permitem uma vista panorâmica da empresa. A análise do
processo técnico e das tarefas relativas ao foco da demanda iniciam o zoom, a
aproximação do plano de filmagem, que se completará com a análise da atividade.
A compreensão das tarefas, daquilo que se estabelece na empresa como
objetivo do trabalho de outrem, é um ponto fundamental da AET para distinguir “o
que se solicita ao Homem (a tarefa) e o que isto, para ser realizado, solicita a ele”
(Hubalt, 2004a) – sua atividade. O projeto do processo de produção, a escolha da
tecnologia e a definição das tarefas necessárias à sua realização determinam a
estrutura na qual a atividade se constrói, suas regras e limites, suas normas.
Faz-se a investigação da tarefa prescrita pela empresa e sua confrontação com
a atividade, tal como observada durante sua análise, para evidenciar a distância entre
elas e os efeitos que esta distância possa provocar sobre os resultados do trabalho,
tanto em termos de saúde como em volume e qualidade da produção.
A estruturação da tarefa expressa o modelo que seus administradores e
chefias têm de como os diferentes recursos (matéria-prima, equipamentos e recursos
humanos ou força de trabalho) devem ser articulados de forma a obter uma produção
determinada, e de como sua eficácia pode ser contabilizada.
A tarefa concretiza os cálculos efetuados para a gestão do trabalho enquanto
recurso abstrato, genérico, e permite que seus resultados sejam avaliados
economicamente. Ela faz parte do universo da empresa, é o ponto de encontro entre
este universo e a subjetividade de cada um que a transforma de prescrição em ação,
que engaja seus recursos individuais para transformá-la em uma conduta.
Análise da atividade
A análise da atividade envolve duas fases distintas. Inicialmente, são feitas
observações livres, durante as quais o ergonomista acompanha a execução do
trabalho junto a um ou mais operadores que estejam cientes da análise e seus
objetivos, e que para ela tenham dado seu consentimento. Este momento envolve a
observação de situações reais, e não de demonstrações ou simulações. Mas, como
dissemos antes, a observação não é muda. Não é suficiente conhecer o que o
operador faz – seu comportamento – mas compreender sua conduta, saber porque ele
o faz daquela forma. Nisto a observação feita na AET difere de outras observações
que compõem métodos de análise do trabalho, como o estudo de tempos e
movimentos, por exemplo. Seu objetivo não é identificar o que é feito, julgar se é o
mais adequado e propor um novo método melhor. A partir daquilo que é visível ou
perceptível por qualquer outro sentido, o observador vai interpelar (imediata ou
posteriormente) o trabalhador sobre as razões que determinaram tal ou qual ação, os
objetivos de tal gesto ou verbalização, o significado deste ou aquele sinal, pois sua
intenção é compreender aquilo que vê.
A interação verbal com os operadores permite que se tenha acesso não apenas
ao momento observado, mas também a uma outra classe de situações, aquelas às
quais o operador se refere, para comparar ou exemplificar, além de permitir também
que o ergonomista se familiarize com o jargão específico daquela situação. A partir
deste conhecimento, tenta-se estabelecer os determinantes deste trabalho, que podem
ser de ordens diversas: ligados à tecnologia utilizada e seu estado de funcionamento,
ao ritmo de trabalho, a variações relativas à matéria-prima, a volumes de produção,
ao estado interno do operador, às relações com os clientes...
Esta etapa é seguida por observações sistemáticas, durante as quais procura-se
evidenciar alguns dos determinantes apontados, de forma a quantificá-los ou registrá-
los para discussão e apresentação. Wisner (1987) aponta que tais observações
sistemáticas podem estar relacionadas a atividades motoras (subdivididas em
atividades motoras de ação, de observação e de comunicação) e posturas, à
investigação de fontes de informação utilizadas, mas também a levantamentos que
apreendam o tempo, o espaço percorrido, o caráter seqüencial das atividades –
deslocamentos, interrupções, comunicações verbais, programação das atividades e
sua realização.
Guérin e seus colegas, após apresentarem categorias de observáveis e técnicas
possíveis de seu registro, destacam que “só se pode observar a atividade por meio de
suas traduções manifestas: visíveis por um observador ou registráveis por aparelhos
de medida. Assim, se a observação pode ser considerada como o meio mais
irrefutável para chegar a um conhecimento da atividade real, em vários casos
mostra-se insuficiente para compreender os motivos dessa atividade, os raciocínios e
os conhecimentos em que se baseia. É, no entanto, um apoio indispensável para
produzir explicações por parte dos operadores: é a partir de casos concretos que
podem ocorrer trocas detalhadas a respeito de eventos e ações efetivamente
constatados pelo observador e vividos pelo operador” (op.cit., p. 164). As
verbalizações dos operadores serão então usadas para ampliar a compreensão do
ergonomista sobre a atividade, as condições nas quais ela se realiza e suas
conseqüências.
Tanto as observações como as verbalizações colocam dificuldades
metodológicas ao ergonomista, desde o registro e reorganização dos resultados das
observações até a compreensão das diferentes dimensões da verbalização – sua
formulação em termos julgados de interesse para o interlocutor, a dificuldade de
expressar conhecimentos e experiências antigos, muitas vezes com um componente
corporal importante, o acesso a conteúdos diversos e subjetivos. Este assunto será
retomado nos capítulos seguintes.
Os métodos de análise da atividade adotados pela equipe nas consultorias
realizadas compreendiam condutas individuais e coletivas. Procedia-se a observações
individuais junto a voluntários (e a seus clientes, em alguns casos) e eventualmente
eram solicitados registros individuais de eventos, como um ‘diário de bordo’ de
eventos específicos (por exemplo, dificuldades ou casos tipo) escolhidos de comum
acordo entre consultores e operadores. Também eram constituídos grupos
homogêneos (mesmo nível hierárquico) de voluntários que trabalhavam junto à
equipe consultora. Estes critérios de formação dos grupos tentavam garantir a livre
expressão dos participantes, minimizando restrições ligadas às relações de poder e os
constrangimentos provocados pela presença de um observador. Nestes casos,
cuidava-se de negociar a suspensão do controle de produtividade individual durante
os períodos de observação e reuniões.
Os grupos acompanhavam toda a realização da análise, através de reuniões
com finalidades variadas, como apresentações iniciais nas quais eles contavam aos
consultores em que consistia seu trabalho, debate de temas específicos (sistemas de
controle e avaliação, dificuldades técnicas com equipamentos e ferramentas,
avaliação do mobiliário em uso e eventualmente de protótipos em teste),
esclarecimento de dúvidas oriundas das observações individuais. Em algumas
empresas, recorreu-se a levantamentos sistemáticos realizados pelos próprios
operadores, em duplas ou trios, cujos resultados foram analisados em grupo. Próximo
ao fim do estudo, fazia-se reuniões para validação dos resultados e discussão de
sugestões de modificação.
Com relação a esta etapa do método, duas características devem ser
destacadas por sua importância para o ergonomista e influência nas relações entre ele
e a empresa. A primeira delas diz respeito aos operadores que acompanharam os
consultores, e que foram levados a falar sobre seu trabalho. Esta verbalização,
inicialmente pobre (como o atestam inúmeros autores – Guérin et al, op.cit.; Teiger
1993; Ferreira,1993), gradualmente se enriquece e aprofunda, e produz não apenas
uma descrição, mas uma reflexão sobre ele. Estas verbalizações permitem aos
consultores conhecer o trabalho dos operadores, e também dão acesso a outras
dimensões desta atividade. Assim, podem vir à tona as emoções provocadas pelo
trabalho e em relação a ele; a expressão de dimensões éticas relativas ao trabalho que
tornam mais fácil ou difícil tolerá-lo; a expressão também da avaliação subjetiva da
produção, em seus resultados para cada um, para o coletivo e para a empresa. Este
processo foi muito mais acentuado quando grupos foram constituídos do que na
interação individual entre ergonomista e o trabalhador.
A segunda característica está ligada ao fato de que os resultados da análise,
levada a cabo junto a um operador ou a um grupo pequeno deles, devem ser passíveis
de generalização para o conjunto dos envolvidos naquele trabalho. O processo de
generalização provoca um risco concreto de que particularidades das outras situações
sejam perdidas.
Estas características colocam grandes dificuldades ao ergonomista. Como
lidar com a subjetividade? Que estatuto tem estas manifestações? Como incorporá-
las a sua análise técnica? Como passar da esfera individual para a esfera do coletivo
de operadores? Estes são pontos críticos do método para o prático da ergonomia.
Diagnóstico e Elaboração de Recomendações
Guérin et al (op.cit.) insistem em que o resultado da AET deve ser a
formulação de um diagnóstico relativo às situações estudadas, que possivelmente
“fornecerá também elementos para um diagnóstico mais geral, abrangendo certos
aspectos do funcionamento global da empresa” (p. 175). Tal resultado seria mais
adequado do que a elaboração de ‘recomendações ergonômicas’, cuja formulação,
segundo eles, não seria suficiente para garantir a transformação efetiva da situação de
trabalho devido a duas razões.
A primeira é que nem sempre as recomendações atingiriam as pessoas que, na
empresa, poderiam ter um papel efetivo em sua implementação, ou que não seriam
“redigidas de maneira pertinente para esses interlocutores” (p. 178). A segunda
razão é que a introdução de transformações implica sempre em um trabalho de
concepção, que impõe “compromissos [...] entre os objetivos fixados pelas
‘recomendações’ e o que está disponível nos catálogos dos fornecedores, ou que
possa ser facilmente fabricado. Os projetistas nem sempre têm condições de,
sozinhos, avaliar as conseqüências destes compromissos sobre a atividade dos
operadores”. E acrescentam: “Em vez de ir embora após ter deixado suas
‘recomendações’ é desejável que o ergonomista possa acompanhar o processo de
transformação. Esse objetivo condicionará a maneira como formulará seu
diagnóstico global e o divulgará na empresa” (idem, ibidem, grifo dos autores).
Percebe-se, pelas citações acima, a preocupação dos autores em apresentar
um resultado que consiga engajar a empresa no processo de transformação, e tornar o
ergonomista parte deste processo. É nesta perspectiva que, ao discutir o diagnóstico,
os autores reafirmam que, a par das transformações locais, com as quais “ele tem
obrigação de contribuir” para que sejam rápidas, o ergonomista “tem a
responsabilidade de não limitar seu diagnóstico aos fatores imediatamente
constatados na situação de trabalho envolvida e de chamar a atenção da empresa
para certos aspectos de sua gestão, de sua organização ou de seus processos de
concepção” (p. 179).
Reconhecendo a característica de negociação que esta posição envolve, os
autores sugerem que o diagnóstico seja formulado de forma específica segundo seu
escopo, e restituído a grupos de atores diferentes, envolvidos tanto na esfera local
como na esfera de políticas de longo prazo da empresa.
Foi uma prática da equipe a elaboração de um diagnóstico da situação
analisada que apontava os elementos responsáveis pelo problema estudado e
apresentava propostas de transformação referentes ao posto de trabalho e ao projeto
do trabalho.
* * * * * Ao longo deste capítulo, apresentamos o método de Análise Ergonômica do
Trabalho e apontamos questões pertinentes à discussão da prática do ergonomista
que usa tal método. Seu aspecto fundamental deriva do objeto de estudo escolhido –
o trabalho humano, que desvela algumas de suas faces sob o escrutínio da análise da
atividade. A escolha deste objeto, como foi dito, tem implicações metodológicas que
condicionam a conduta do ergonomista e sua forma de investigar os problemas que
lhe são colocados.
A análise do trabalho exige uma investigação clínica. O ergonomista inicia
seu trabalho dispondo de uma bagagem teórica, mas despido do saber relativo à
situação única que se lhe apresenta. Ele será instruído por sua ação, pelas
observações que conduz, pela interação com os envolvidos, por tudo aquilo que estes
dizem, mas também por tudo aquilo que não dizem, pela relação entre quem diz e o
que diz, em si e na comparação com outros. Sua formação profissional, a par de
formá-lo naquilo que sabe, dotando-o de seu cabedal teórico, também o forma para
perceber o que ele não sabe, e que deve procurar aprender – os aspectos únicos de
uma situação. Ele deve ser um observador atento do espetáculo.
Esta investigação clínica apresenta dificuldades àquele que a pratica. Para
começar, não se trata de uma clínica voltada para um indivíduo, mas para uma
situação social. O ergonomista investiga situações que envolvem muitas pessoas
diferentes, com posições hierárquicas e objetivos distintos. Há uma condição
contratual que regula seu exercício e determina quem é o cliente inicial – o
contratante. Mas ao longo da consultoria a relação com interlocutores diversos
estabelece vínculos entre eles e a ação do ergonomista, que os colocam como clientes
desta ação – clientes não previstos no contrato que rege a consultoria.
A forma de investigação clínica se constrói a cada estudo. O caso específico
sob análise é único, e a “terapêutica” que pode ser proposta pelo ergonomista não é
universal; pelo contrário, também é única. Ser única não quer dizer que há apenas
uma possível, e sim que ela não existe pronta. A ergonomia da AET advoga que ela
deve ser fabricada, preferencialmente com a participação de todos os envolvidos,
para que consiga incorporar elementos que respondam a suas necessidades e
requisitos. Mais do que advogar isto, o ergonomista busca ativamente obter um
consenso que permita o engajamento de seus diversos ‘clientes’ na transformação do
trabalho, pois ele é fundamental – o consultor, externo à empresa, não tem poder para
mudar.
Assim, temos alguém externo à situação (o consultor), usando um método
clínico (distinto de métodos de análise do trabalho empregados comumente nas
empresas, como será discutido nos capítulos seguintes) para investigar um problema
único cuja solução não está pronta – deve ser construída por indivíduos inseridos em
uma situação social, permeada de relações de poder e submetidos a avaliações de
desempenho distintas.
Estas características decorrem do método da AET e da escolha do trabalho
como objeto de estudo. Destacou-se a necessidade constante de negociação, em
alguns aspectos semelhante a todo processo de consultoria em que um terceiro
ingressa em um ambiente determinado – a empresa, a organização – para a execução
de trabalhos contratados, mas ao mesmo tempo diferente e singular. As diferenças e
singularidades desta negociação dizem respeito ao debate instituído pelo conflito
entre lógicas distintas para pensar o trabalho: momento em que o homem,
produzindo os resultados objetivos de sua tarefa, produz-se também a si próprio –
corpo e mente, saúde e doença,... – ou, ao contrário, o uso de recursos (humanos)
para agregar valor ao produto (ou não), em atividades pouco qualificadas e simples,
parte do núcleo do negócio ou periféricas... Este conflito de lógicas permeia cada
etapa de aplicação do método, e exige do ergonomista uma habilidade de
interlocução que não é técnica, não faz parte explícita de sua formação profissional.
Além das implicações metodológicas, existem outras. O ergonomista se lança
a campo, durante sua atuação na empresa, para conhecer e apresentar o trabalho.
Várias características de seu método contribuem para isso, a começar por sua entrada
na empresa como especialista em condições de trabalho. Para compreendê-lo, o
ergonomista se propõe a ouvir não só os níveis mais altos da hierarquia, mas também
o trabalhador, e não só ouvi-lo como aprender com ele a respeito do trabalho – ou
seja, admitir que ele sabe, e que pode contribuir para sua análise e melhoria. Seu
diagnóstico particulariza o trabalho, apresentando-o em seus aspectos concretos. Isto
influencia o discurso, o relato do ergonomista, que nela incorpora elementos que
foram obtidos da expressão dos próprios trabalhadores. As sugestões de
transformação que ele apresenta não estão prontas, não são algo que seu contratante
possa comprar e instalar com facilidade e com isso resolver o problema. Elas exigem
esforço e reformulação, novas práticas que não fazem parte do elenco das soluções
comumente adotadas para os problemas da produção.
Assim, os critérios de análise e ação – clínicos, centrados no homem –
posicionam o ergonomista do lado do trabalho, numa situação social marcada pelo
conflito de interesses entre “universos heterônomos”6 – a empresa e o indivíduo, o
capital e o trabalho.
Este posicionamento implica em um risco para os resultados da consultoria. A
mediação inicial que o ergonomista foi contratado para fazer, entre seu contratante e
a queixa bruta, não lapidada, que o atingia de forma difusa, pode ter seu sentido
invertido. De representante da direção para compreender o problema, o ergonomista,
pela lapidação da queixa e a revelação de suas várias facetas, pode parecer, aos olhos
daqueles que o contrataram, um representante dos trabalhadores – situado, portanto,
em um campo antagônico.
Estas questões devem ser vislumbradas e enfrentadas por aqueles que se
dedicam à prática da ergonomia, e serão discutidas a seguir, com base na experiência
obtida nos casos apresentados no capítulo 1.
6 Hubalt, apresentação oral, 2004b.
CAPÍTULO 3
AET EM CONSULTORIAS
Até aqui, foi apresentado um panorama geral da prática de consultoria com base na
AET, a começar pelas questões que tal prática levantou e que esta dissertação tenta
organizar.
No capítulo 1, o conjunto das consultorias foi apresentado, com referência a suas
semelhanças e diferenças, bem como a certas características do contexto sócio-
econômico do período em que foram realizadas. A seguir, foi apresentado o método
nelas empregado, e destacados alguns pontos críticos de sua formulação.
Neste capítulo, pretende-se aprofundar o debate sobre estes pontos fundamentais do
método, recorrendo-se a exemplos concretos de sua aplicação nas empresas descritas.
O intuito é discutir as potencialidades e limites desta prática, tanto aqueles devidos
ao método utilizado (ou a seu objeto), como aqueles ligados ao contexto no qual ele é
empregado – a consultoria. Assim, nada poderá ser dito a respeito do emprego do
método de AET em contextos diferentes – pesquisa, contratos com órgãos de
representação dos trabalhadores ou associado a situações de fiscalização.
Uma Prática Clínica Ao longo do capítulo 2, mostrou-se como o objeto central da AET influencia
a forma de estudar as questões que lhe são apresentadas. A demanda colocada pela
empresa é o ponto de partida, mas o conhecimento sobre o trabalho e seus
determinantes só é obtido pela intervenção na situação de trabalho, esta realidade
particular e histórica. É esta historicidade e a singularidade do objeto que configuram
uma prática clínica. O trabalho, sendo histórico e determinado socialmente, é um
objeto de estudo que não pertence ao mundo natural, mas ao mundo social, no qual
vários agentes estão presentes, com pontos de vista diferentes, que o ergonomista vai
tentar conhecer.
Por outro lado, o ambiente da empresa é planejado, implantado e gerido por
profissionais em sua maioria formados no quadro das ciências tecnológicas e
econômicas ou das engenharias, que analisam o trabalho sob o ponto de vista da
eficácia, de forma genérica e abstrata. Zilbovicius, a respeito da atuação dos
engenheiros de produção, aponta que sua atuação é elaborada na perspectiva da
Administração Científica – “aplicando métodos emprestados das ciências exatas à
organização da produção e do trabalho” (1999, p.103-4). Este autor destaca, como
uma das características relevantes da Administração Científica, que
“O emprego do método predominante nas hard sciences, derivado
para a administração, implica a construção de um objeto-“fábrica”,
como um dispositivo capaz de executar prescrições. Para operar
desta forma, este dispositivo precisa estar isento de sujeitos e de
aleatoriedades. O objeto é então construído à semelhança dos objetos
encontrados na natureza (por exemplo, o sistema solar), nos quais
não há sujeitos, mas leis gerais de funcionamento, descobertas pela
Ciência por meio de seu método” (Zilbovicius, op. cit., p. 109, grifo
meu).
Zilbovicius afirma ainda que, além de implicar na utilização de um modelo
abstrato, pré-existente, no qual a solução ótima pode ser encontrada através do
método ‘científico’, a Administração Científica oferece um modelo que “opera, para
os tomadores de decisão a respeito da organização da produção, [...] [como]
referência a ser atingida, tornando-se paradigmático, isto é, não passível de
mudança ou questionamento, a menos de forte refutação; no caso da administração,
a refutação se dá por meio de demonstração da existência de outro modelo mais
eficaz do que o vigente” (idem, p. 110). Embora este autor aponte que vivemos em
um período de mudança deste paradigma, provocado pela introdução, no cenário da
manufatura (especialmente automobilística) do modelo japonês de produção,
acreditamos que no setor de serviços o paradigma predominante ainda é o da
Administração Científica7.
7 A este respeito, vide a análise feita por Zarifian (1990), que vê na administração de serviços a introdução do que ele denomina o neo-taylorismo.
A prática clínica da ergonomia para investigar o objeto histórico e social, e a
prática da empresa, derivada de ‘leis gerais de funcionamento’ que antecedem o
objeto, reúnem na situação de consultoria critérios fundamentalmente diferentes para
analisar o trabalho e seus resultados. O conflito aparece desde a construção do
objeto. A aceitação da subjetividade dos agentes sociais antepõe-se à busca da
‘isenção de sujeitos’. E, se a refutação do modelo exige a comprovação de maior
eficácia, a AET discute a eficiência, especialmente no aproveitamento e
desenvolvimento dos ‘recursos humanos’, de forma a preservar a saúde.
A questão do adoecimento por LER/DORT, foco das consultorias e fio
condutor da análise na maioria das empresas, é um exemplo desta diferença de
critérios. Para a equipe de ergonomistas, o adoecimento é central, tanto pelo contrato
estabelecido quanto por seus princípios e objetivos de atuação. Por outro lado, nas
empresas, LER/DORT é um dos dados da situação, cuja relevância depende da
posição hierárquica e do que faz cada interlocutor. Esta questão pode ser vista como
marginal quando se considera a saúde econômica da empresa ou a evolução de seus
resultados; pode ser proeminente para as áreas que lidam com os funcionários e sua
saúde – levando-os inclusive a contratar uma consultoria; e pode ser central para
aqueles que devem gerenciar o dia a dia ao redor do adoecimento – por correrem o
risco de adoecer ou pelo fato de já estarem doentes, por terem que lidar com as metas
de desempenho apesar dele.
O adoecimento, do ponto de vista da ergonomia, é compreendido como
expressão de um resultado (indesejável, é certo) entre todos os resultados possíveis
da atividade de trabalho – quantidade e qualidade da produção para a empresa, saúde
e competência para cada indivíduo. E para as empresas, do que ele resulta?
Na Central de Atendimento a Clientes do banco 1, as gerências e supervisores
avaliavam que mais de 90% dos casos existentes eram devidos a simulação,
considerando legítimos apenas os casos graves que apresentavam sinais visíveis,
como edema nas mãos e braços ou cicatrizes de cirurgia. O adoecimento foi descrito
muitas vezes como expressão de falta de comprometimento dos trabalhadores com o
trabalho e com a empresa, e resultado da ação de incitamento por parte do sindicato,
que se traduzia na simulação de sintomas inexistentes para obter benefícios como
estabilidade no emprego após afastamento, ritmos de trabalho menos intensos ou
realocação para áreas melhores. Apesar do exemplo referir-se a uma empresa
específica, este tipo de raciocínio sobre o adoecimento estava presente em todas as
empresas, em maior ou menor grau, e não se restringia aos diferentes níveis da
hierarquia: uma parcela dos próprios trabalhadores tinha esta avaliação, como
mostraram Sznelwar e Massetti (2000).
Uma outra forma de encarar as LER/DORT, muito difundida nas empresas
estudadas e que explica vários contratos firmados, é que elas são o resultado direto
da ação de uma causa única. Pode ser a fragilidade dos trabalhadores; a empresa
busca então na consultoria elementos para aprimorar seu processo de seleção – para
contratar pessoas ‘imunes’ à doença. Pode ser o mobiliário inadequado. Neste caso,
basta a modificação e adequação do mobiliário para eliminá-las. Problema claro,
resposta pronta! O consultor é chamado a implementar a solução por seu
conhecimento técnico sobre o assunto, ou como auxiliar do contratante no
convencimento de outros membros da empresa de que tal solução é a mais adequada.
Mas o consultor, antes mesmo de trabalhar no desenvolvimento de mobiliário
adequado, avisa à empresa de que o mobiliário irá certamente melhorar as condições
de trabalho, mas não necessariamente resolverá o problema do adoecimento.
Isto foi visto com clareza nas duas consultorias à Cartão de Crédito. O
primeiro diagnóstico apontava várias inadequações, relacionadas ao conteúdo das
tarefas, que contribuíam para o adoecimento, por exemplo a pressão de tempo, a
tensão de querer fazer um bom atendimento e resolver o problema do cliente em um
tempo determinado e com autonomia insuficiente para permitir resolutividade. Ao
mesmo tempo, ao longo do estudo procedeu-se à substituição do mobiliário em uso
por móveis reguláveis, que permitiam uma melhora significativa do ponto de vista da
postura e biomecânica. O diagnóstico apontava que esta melhoria seria insuficiente
para resolver o problema se não fosse aliada às outras transformações apontadas
como necessárias.
Um ano depois, novo contato para consultoria, pois a prevalência de casos
começara a crescer regularmente seis meses após a troca do mobiliário. Parecia à
equipe que este fenômeno, que comprovava o diagnóstico feito, era a refutação
necessária para que a empresa aceitasse rever o projeto de trabalho. Mas o segundo
contrato solicitava novo diagnóstico, e não transformação.
Pode parecer paradoxal o recurso a uma consultoria para diagnóstico da
situação quando o diagnóstico já está dado – seja, neste caso pela consultoria
anterior, seja pela avaliação de que a troca do mobiliário é suficiente. Neste caso, o
que se espera da consultoria? Uma parte da resposta está relacionada à aprovação da
NR-17 e à exigência de realização da análise ergonômica do trabalho. Mesmo que o
problema parecesse claro à empresa, era necessário dar uma resposta às pressões
sociais, seja fiscalização, seja adequação à legislação. A contratação da consultoria,
independente do método empregado, é a resposta necessária. Quando os resultados
explicitam o conflito de critérios, o conflito entre o trabalho e a saúde, eles são
ignorados.
Neste sentido, a consultoria de ergonomia entra em cena com os resultados
possíveis já estabelecidos. O método da AET é um complicador da situação, e vai
oferecer respostas a perguntas não colocadas.
O Diagnóstico
Uma exceção neste panorama foi a consultoria junto ao Banco 3. Neste caso,
o contratante – a área de arquitetura – estava interessado em compreender porque o
mobiliário instalado nas agências do Nordeste era julgado inadequado pela DRT e
adequado por um consultor em ergonomia previamente contratado. O debate
instituído ao longo dos dois primeiros contratos deixou claro quais eram as
inadequações (o diagnóstico) e foi convincente para que o contratante
compreendesse e a empresa aceitasse a necessidade de mudança (transformação)
para a melhoria das condições de trabalho e o cumprimento da legislação.
Consultores, contratante e fornecedores de mobiliário trabalharam então no
desenvolvimento de um protótipo, que foi aprovado por todas as partes (incluindo os
trabalhadores, que participaram do processo ativamente e o testaram em situação
real).
No entanto, o mobiliário não chegou a ser implantado, pois o Banco 3 foi
adquirido pelo Banco 2, e este tinha outros projetos que não incluíam esta
substituição de mobiliário.
Neste ponto, tocamos em outro aspecto relevante. A abordagem clínica
resulta em um diagnóstico, uma delimitação do problema que o circunscreve e
relaciona aos fenômenos por ele responsáveis. Ele significa a formulação de uma
leitura particular da situação, que se propõe a dar conta dos fenômenos observados
em sua relação com os aspectos revelados ao longo da investigação clínica, em
especial o estudo da atividade e o conhecimento da empresa. O diagnóstico em
ergonomia não define um estado de normalidade ou anormalidade, e sim uma relação
de causa e efeito – dadas tal atividade e tais condições, o resultado é o fenômeno
observado. Mas ele expressa um julgamento de valor quanto a este resultado, que
pode ser considerado nocivo à preservação da saúde, causador de dificuldades na
realização da atividade ou determinador de esforço que supera as capacidades
humanas, ou, pelo contrário, benéfico. Quanto aos resultados da empresa, o valor
refere-se à eficiência do processo, indo além da eficácia para refletir sobre a
utilização feita dos ‘recursos humanos’. A formulação do diagnóstico é distinta e
mais abrangente do que as formulações anteriores sobre o problema enfrentado pela
empresa, pois incorpora os elementos obtidos na análise da empresa e da atividade de
trabalho. Mas, além disso, esta formulação também se propõe a indicar a
‘terapêutica’ a ser adotada para transformar o trabalho.
No caso citado acima, podemos dizer que a clínica conduziu a um diagnóstico
preciso, e a terapêutica indicada para o problema foi aceita pelo ‘paciente’ (o que não
quer dizer que foi implementada). Mas a precisão do diagnóstico não
necessariamente conduz a que a terapêutica seja aceita, desde o início da consultoria.
Muitos contratos firmados tinham por objeto a realização do diagnóstico. Como
dissemos acima, a obtenção do diagnóstico era um fim em si.
Para a equipe de ergonomia, esta situação é fonte de frustração. O estudo foi
bem feito, o diagnóstico é preciso, mas eles não levam à consecução de seus
objetivos, a melhoria das condições de trabalho, à participação no desafio de projetar
um trabalho adaptado às características humanas.
Trabalho e Valor do Trabalho O trabalho e o valor a ele atribuído, como dissemos, são pontos sobre os quais
ergonomistas e empresas posicionam-se de forma distinta, porque partem de
premissas diferentes. Este foi o caso nos trabalhos avaliados pelas consultorias.
A concepção destes trabalhos, de acordo com o modelo da organização
clássica, ou do neo-taylorismo (Zarifian, 1990), estabelece um processo de produção
apoiado em tarefas simples e repetitivas. Assim é para os atendentes de centrais de
atendimento telefônico, para os caixas de retaguarda e de agências. No caso dos
caixas de retaguarda, dependendo do documento trabalhado, tempos de ciclo de 3 a 5
segundos. No caso do atendente, a prescrição detalhada do modo operatório incluía o
“script” das comunicações verbais (com fórmulas definidas para saudação, para pedir
e passar informações, para terminar a ligação), a forma de navegação do sistema
(consulta obrigatória de determinadas telas). Para todos, o desempenho individual era
estritamente controlado, devendo atingir metas de tempo e de quantidade.
Para as centrais de atendimento da cartão de crédito e da telefonia celular, o
pressuposto era de que o oferecimento deste serviço não era um ‘diferencial
competitivo’ que concorria para ‘agregar valor’ ao produto principal – crédito,
comunicação telefônica. Além disso, estimava-se que a porcentagem de clientes que
usavam o serviço era pequena em relação ao número total de clientes.
A AET mostrou que a maior parte destes trabalhos, apesar de repetitivos em
certos aspectos, não era simples. Por exemplo, os atendentes de centrais de
atendimento telefônico empregavam em seu trabalho um tratamento intelectual
complexo, que envolvia a interpretação do discurso do cliente para compreender a
solicitação e obter os elementos que orientariam suas ações – exploração e análise
das informações constantes no sistema informatizado (ou em outras fontes); a
avaliação das regras estabelecidas e de seu conhecimento sobre o estado
momentâneo da empresa e da produção (picos, falhas técnicas,...); a elaboração da
resposta ao cliente, de forma que esta fosse adequada a critérios múltiplos – da
empresa (exigências de produtividade e qualidade), seus (produtividade, qualidade,
fadiga, avaliação do cliente,...) e do próprio cliente; em algumas situações, os
atendentes eram solicitados pela empresa a digitar o registro do atendimento ao
mesmo tempo em que falavam com o cliente.
Nos dois casos citados (cartão de crédito e celular), a AET mostrou também
que o contato com os clientes que enfrentavam algum tipo de problema e recorriam à
Central permitia a identificação de uma série de informações que poderiam ser úteis
para a melhoria dos processos internos, ou para a detecção precoce de falhas de
operação. Isto determinava um potencial de contribuição para ‘agregar valor ao
produto’, ou para reduzir custos operacionais, mas a estrutura organizacional não
permitia a exploração deste potencial. Este trabalho, de escopo e autonomia
limitados, era realizado por uma população jovem, com elevado nível de instrução
(um dos requisitos de contratação era ter concluído o segundo grau, e muitos
cursavam o terceiro grau), capazes de dominar sistemas informatizados complexos.
Assim, pode-se dizer que o trabalho dos atendentes tinha um grande potencial que
não se realizava, como veios inexplorados: era potencialmente útil à empresa, mas
não realmente, visto que não havia canais que permitissem sua expressão. Da mesma
forma, ele era potencialmente útil ao cliente, mas a limitada autonomia atribuída aos
atendentes e a estrutura funcional do processo de produção não permitiam que
resolvessem os problemas a eles colocados. E era potencialmente útil aos próprios
atendentes, para sua realização pessoal e desenvolvimento de competências, mas não
realmente, pois limitava-os em suas possibilidades de ação e de expressão.
O diagnóstico formulado apontava às empresas a necessidade de
reconsideração do valor do trabalho em seu processo de produção, sem a qual as
transformações necessárias para fazer frente ao adoecimento não seriam possíveis.
No entanto, esta proposição origina-se de uma base lógica que tem como ponto de
partida o homem; que avalia o valor do trabalho por critérios de saúde e conforto, de
oportunidades de desenvolvimento pessoal; que vislumbra, através da análise da
atividade, do conhecimento de situações reais que ocorrem no dia a dia, o potencial
inexplorado de contribuição da atividade à produção. Sua aceitação pressupõe a
reflexão sobre uma forma de valoração diferente, que amplia os critérios de custo, de
valor agregado; esta reflexão indica que uma revisão de toda a base conceitual de
gerenciamento é necessária.
Ao mesmo tempo, a lógica da valoração do trabalho proposta pela AET
concorre com outras formas de consideração e ação sobre o trabalho que não
colocam em questão os paradigmas de concepção. As consultorias de ergonomia,
contratadas pelas áreas de RH ocorriam concomitantemente a processos de
certificação ISO e programas de ´benchmarking’ e de Qualidade Total, deflagrados
pelas gerências de operações. Estes processos, voltados para a definição detalhada de
procedimentos do trabalho – as tarefas – têm aceitação crescente na área de serviços,
e conservam o espírito da Administração Científica.
Seria possível pensar que esta questão está restrita ao debate sobre tarefas
fragmentadas e repetitivas, que o ergonomista quer provar complexas. Acreditamos
que não é assim, e a consultoria levada a cabo na seguradora pode levantar outras
questões interessantes para debate.
As atividades estudadas na seguradora estavam no quadro de dois trabalhos
muito diferentes entre si, e também daqueles abordados em outras consultorias.
Como foi dito no capítulo 1, a demanda vinha da área de Recursos Humanos da
empresa, que aproveitava a necessidade de elaboração do Perfil Profissiográfico
Previdenciário para o INSS (PPP) para tentar compreender a raiz dos problemas
enfrentados nas duas áreas. Apesar das queixas, o número de afastamentos não
configurava situações críticas como as observadas nas outras empresas; também não
havia fortes pressões sociais externas atuando, tanto dos sindicatos como da
fiscalização. Aqui, a contribuição do trabalho para a concretização do produto era
evidente. Os técnicos de seguro eram os responsáveis por sua finalização; o produto
(cobertura em caso de sinistro) iniciado em outras áreas – desenvolvimento,
marketing, vendas – era finalizado por eles, mesmo que houvesse etapas posteriores
de configuração material (impressão em papel, envio das apólices ao cliente...). A
complexidade do trabalho – expressa no longo período estimado pelas gerências para
que um técnico adquirisse as habilidades necessárias (1 ano) – era reconhecida pela
área de operações, bem como o engajamento dos funcionários com as metas de
qualidade e produtividade. O mesmo pode ser dito do trabalho dos analistas de
sistema. Sua atuação no desenvolvimento de sistemas e programas permitia a
comercialização de novos produtos, contribuindo para a implantação de novos
processos e para dar à empresa competitividade por inovação (Bolwijn e Kumpe,
1990). Além disso, eles garantiam o bom funcionamento da base informatizada da
companhia no dia a dia, fundamental para operacionalizar a rotina diária de milhares
de pessoas em todo o país que a utilizavam para vender ou consultar os produtos. No
entanto, os interlocutores da hierarquia mais alta referiam que estas áreas eram
consideradas áreas meio, que não agregavam valor ao produto.
Os trabalhos de ambos (técnicos de seguros e analistas de sistemas) estão
intimamente relacionados: a boa qualidade dos sistemas desenvolvidos garante uma
operação cotidiana com menos panes e problemas para todos na empresa. Além
disso, os analistas constroem (ou deixam de construir) as ferramentas utilizadas pelos
técnicos na ‘fabricação’ de seus produtos. Boas ferramentas facilitam esta
‘fabricação’, ferramentas inadequadas aumentam seu esforço.
Que conflito pode haver aqui no debate sobre critérios de avaliação do valor
de trabalhos reconhecidamente complexos e centrais no processo de produção? A
resposta está associada, de um lado, ao lugar ocupado por eles no contexto da
corporação do qual a seguradora faz parte, e de outro às práticas de gestão adotadas.
A corporação (que possui também o banco 2, como apontado anteriormente)
vinha crescendo continuamente à época da consultoria, num processo que incluía a
compra de outros bancos e seguradoras. Com isso, a base tecnológica não só
aumentou como se diversificou, com hardwares e softwares diferentes cujo
funcionamento conjunto exigia adaptações – e gerava mais problemas. Quanto mais
problemas aconteciam, maior a porcentagem do tempo dos analistas alocada à sua
resolução; maiores as dificuldades enfrentadas no desenvolvimento de sistemas
(menos tempo, mais interrupções, necessidade de horas-extras), com efeitos diretos
sobre sua qualidade. O crescimento resultou também no adensamento da população
em suas instalações. As condições físicas dos postos de trabalho de todas as áreas
deterioraram-se, pois o número de pessoas por andar dobrou, as mesas muito
próximas contribuíam para aumentar o ruído ambiente (especialmente de conversas,
com prejuízo direto da concentração), não havia locais para reuniões, faltava espaço
para armazenar documentos.
Mas a política de expansão da corporação é decidida em níveis hierárquicos
distantes daqueles em que estes problemas aparecem. Não há canais de comunicação
de baixo para cima e o trabalho, que não aparece, só é visto como recurso abstrato.
Este tipo de problema tende a ser visto como contingencial e marginal; sua resolução
inscreve-se no plano de mudanças futuras provocadas pela fusão, ao lado de ajustes
do número de funcionários (que neste caso significa redução de postos de trabalho
assim que se domine os produtos e tecnologia), equiparação salarial e de plano de
carreira.
Com relação às práticas de gestão, há vários aspectos que poderiam ser
apontados como relevantes para a discussão. Vamos destacar apenas dois – a adoção
de uma política de terceirização das atividades de desenvolvimento de sistemas e a
modificação do plano de carreira e de avaliação de resultados, que incluiu a
introdução de um Programa de Participação por Resultados (PPR).
A terceirização havia sido adotada para minimizar custos de desenvolvimento
de sistemas na seguradora. As entrevistas com os analistas de sistemas revelaram que
esta prática aumentava suas dificuldades e insatisfação com o trabalho. Dificuldades
porque os sistemas, tendo sido desenvolvidos externamente à empresa, eram “caixas-
pretas” para eles, que tinham que viabilizar seu funcionamento. Insatisfação porque
esta atividade ‘nobre’ era dada a outros, enquanto eles ficavam reduzidos a “apagar
incêndios”. As verbalizações davam conta de que os analistas sentiam que sua
competência profissional, seu conhecimento profundo da empresa, dos sistemas
técnicos, dos processos de trabalho, tudo isso era desprezado, desvalorizado pela
empresa. O trabalho de analista, para o qual eles tinham se qualificado durante
longos anos, ficava muito aquém de suas expectativas. Ao mesmo tempo, o PPR
representou a substituição do programa de bônus anteriormente existente por um
sistema de premiação por metas alcançadas. No caso dos analistas, as metas
referiam-se principalmente aos prazos estabelecidos, sem que houvesse instrumentos
adequados para avaliação da qualidade de seu trabalho. Para cumprir as metas, que
representavam ganhos importantes, eles geralmente tinham que realizar um trabalho
que eles próprios consideravam ´mal-feito´, que não lhes dava satisfação íntima –
muito embora atendesse às expectativas da empresa.
No caso dos técnicos, as metas (que na verdade não eram passíveis de
negociação nos níveis mais baixos da hierarquia) estavam ligadas a volumes/tempo,
e eram revistas regularmente, aumentando assim que eram atingidas. Mas, para estes,
o prejuízo da qualidade não era uma opção, pois a aprovação de uma proposta mal
feita ou o não-cumprimento dos prazos de aprovação resultava em custos imediatos e
facilmente contabilizados pela companhia, além de afetar diretamente as metas de
venda de corretores e funcionários do banco que vendiam estes produtos. Para uns e
outros, o cumprimento das metas estava na dependência de outras áreas pelas quais
eles não eram diretamente responsáveis, e determinava picos de produção a
intervalos regulares, exigindo o prolongamento da jornada de trabalho (contabilizado
em bancos de horas, e não pagos como horas-extras) e uma intensificação do ritmo.
Já o plano de carreira afetava mais diretamente os técnicos de seguro. A
´modernização´ dos sistemas de gerenciamento tinha eliminado os critérios de
senioridade, que reconheciam o tempo de trabalho e sua excelência e eram
incorporados ao salário, diferenciando os técnicos antigos dos que iniciavam a
carreira. Na época do estudo, os gerentes faziam uma avaliação anual de sua equipe,
e atribuíam prêmios aos que se destacaram. Mas o número de premiações era
limitado e determinado por sua hierarquia, e não permitia que eles reconhecessem a
todos os que julgavam merecedores. Tanto quanto a perda financeira, os técnicos
lamentavam que seu conhecimento e experiência, seu saber-fazer, não fossem mais
reconhecidos.
Nesta empresa a discussão levantada nos grupos de operadores referia-se
principalmente a estes aspectos subjetivos do trabalho. As condições materiais de
realização pareciam ter uma importância menor do que o retorno subjetivo sobre o
seu trabalho. Eles sentiam que poderiam fazer muito mais do que faziam, do que lhes
era permitido fazer, e isso gerava insatisfação. O mesmo pode ser dito sobre o
reconhecimento público de seu empenho, sua habilidade e perícia, quando era
insuficiente. Este fenômeno não foi isolado. Nos outros casos em que se recorreu a
grupos de trabalhadores – em particular nas centrais de atendimento telefônico –
havia muito mais discussão sobre o conteúdo do trabalho, sobre as formas de
avaliação de seus resultados, sobre como seu trabalho poderia ser usado para
melhorar os processos de produção do que sobre seus aspectos materiais
propriamente ditos. Isto não é surpreendente, tendo sido observado em estudos
clássicos, por exemplo no levantamento sobre a neurose das telefonistas levado a
cabo por Le Guillant e equipe (publicado em português em1984).
A AET permitiu o acesso a um universo subjetivo no qual revelou-se a esfera
dos valores individuais, relativos à “atividade industriosa” (Schwartz, 2004), a seus
resultados, às responsabilidades para com seus pares e clientes, e que não é
desvinculada da esfera dos valores referentes à vida fora do trabalho8.
Interlocução De tudo o que foi dito a respeito da consultoria que se estrutura a partir da
AET, depreende-se que a interlocução com os agentes sociais da empresa é de
fundamental importância para seu desenvolvimento e resultados, pois o acesso às
informações relevantes é obtido através dela. Nas consultorias, a prática da equipe
incluía a instituição de grupos de operadores e grupos de acompanhamento ou de
projeto, com algumas exceções. Este foi o caso dos estudos de mobiliário dos Bancos
3 e 4. Nestes bancos, a análise foi realizada em agências pequenas, com poucos
funcionários, e não se justificava o estabelecimento de grupos. Os resultados finais
destas análises foram apresentados em reuniões que congregavam, além dos
contratantes, outras áreas interessadas, seja pelo poder de decisão sobre o mobiliário,
seja por estarem relacionadas a modificações de tecnologia ou de perfil do cargo.
A criação de instâncias formais de interlocução atende aos objetivos de
análise da atividade e de informação dos gestores sobre o andamento do trabalho e
seus resultados, como foi dito no capítulo 2. As diferenças entre estes grupos não se
referem apenas à sua finalidade. O processo de constituição, a freqüência de reuniões
e os fenômenos por eles provocados merecem comentários.
Grupos de Acompanhamento de Projeto
A negociação do contrato muitas vezes previa a constituição destes grupos,
com um número variável de pessoas e que incluía, em geral, os responsáveis pelas
áreas a serem estudadas, o contratante ou seus representantes, além dos membros da
equipe de ergonomia. Como já foi dito, este cuidado visava tanto obter o acordo para
a investigação e realização das observações e impedir conflitos entre as áreas da 8 Para um aprofundamento sobre a questão dos valores relativos à atividade industriosa e sua comunicação com as outras esferas de valores do ser, ver o texto de Schwartz indicado no texto.
empresa, como garantir um foro privilegiado para a apresentação do diagnóstico e
recomendações. Por exemplo, na telefonia celular, a primeira consultoria estabeleceu
um grupo de acompanhamento do projeto, composto por gerências ligadas ao
SEESMT e à área de atendimento. A segunda consultoria, para desenvolvimento de
protótipo de mobiliário, estabeleceu um grupo de projeto que incluía, além dos já
citados, arquitetos, supervisores e operadores das áreas, responsáveis de compras e
fabricantes do móvel. A consultoria do banco 1 era acompanhada por representantes
da alta hierarquia da corporação. Na cartão de crédito, criou-se um grupo de
acompanhamento similar ao da telefonia celular, e na seguradora, recursos humanos
e gerências das áreas.
Uma característica do funcionamento destes grupos foi o fato de que a
periodicidade de reuniões, mesmo que tivesse sido objeto de contrato, muitas vezes
não era respeitada, pois dependia em grande parte da disponibilidade da empresa. Em
geral as primeiras reuniões eram feitas e as seguintes acabavam sendo adiadas, por
razões diversas – das quais a mais comum referia-se a dificuldades de agendamento.
Este fato – as dificuldades de implementação efetiva de grupos de
acompanhamento – deve ser destacado por suas implicações sobre a prática da
consultoria. Embora a importância deste tipo de fórum de debate seja destacada por
Guérin et al. (op.cit.), e de certa forma também por Wisner, que discute a
participação do ergonomista nas etapas de concepção do dispositivo técnico (1987, p.
18), sua concretização não depende apenas da equipe consultora. Ela está sujeita à
disponibilidade e vontade dos representantes da empresa.
Consideramos que a disponibilidade (ou a falta de) para participar de um
comitê de acompanhamento não depende apenas do tempo disponível. É certo que a
intensificação dos ritmos de trabalho provocada por políticas de redução de efetivos
atinge todos os níveis hierárquicos, inclusive gerências e supervisores, reduzindo o
tempo disponível para participar de reuniões, que serão atendidas de acordo com as
prioridades estabelecidas. Mas a disponibilidade depende também da avaliação das
possibilidades de contribuição da consultoria de ergonomia para os objetivos
individuais, e da abertura para considerar possível seja a inclusão de parâmetros
diferentes para pensar o trabalho, seja a reflexão sobre a refutação de que tratamos
mais acima.
A este respeito, um relato de reunião pode ser elucidativo. Ele refere-se à
reunião para apresentação do diagnóstico da primeira consultoria à Telefonia Celular.
Já dissemos que este contrato estendeu-se muito além do prazo previsto. Quando
fizemos esta reunião, o Serviço de Atendimento a Clientes (a área analisada) estava
prestes a se desmembrar. A superintendente da área já estava acompanhada dos
novos gerentes que assumiriam. Uma destas gerentes havia sido entrevistada por nós,
pois em suas funções anteriores havia acompanhado de perto os problemas de
funcionários adoentados.
No diagnóstico, um dos pontos negativos enfatizados a respeito do conteúdo
das tarefas dos atendentes foi a exigência de que estes digitassem no computador o
registro do atendimento ao mesmo tempo em que falavam com o cliente. Esta tarefa
dupla com alto conteúdo significativo – tratamento de discurso em duas formas
diferentes – havia sido apontada pelos operadores como extremamente penosa. Esta
gerente surpreendeu-se com nossa afirmação e verbalizou seu espanto sobre o fato de
que uma ação gerencial bem sucedida em aumentar a produtividade (pois reduziu
significativamente o tempo entre ligações, anteriormente reservado ao registro)
tivesse contribuído para aumentar o sofrimento genuíno que ela havia acompanhado,
lamentando-o. Mas, imediatamente o fez, recompôs-se e disse que sabia que devia
pensar como gerente, não se deixar levar pelos sentimentos e sim analisar friamente a
questão.
Este momento é emblemático. Ele mostra a influência das estruturas sociais
nas quais a pessoa está inserida sobre a disponibilidade e a forma de pensar os
problemas e questões que se lhe apresentam. Estas estruturas não apenas oferecem o
repertório ao qual novos fatos são comparados, mas também um ideal a ser atingido;
elas provocam um movimento ativo para entrar em consonância com hábitos e
valores considerados adequados a elas.
Há outros limites. Mesmo que o fórum seja efetivamente criado, o
engajamento da empresa na mudança e melhoria de condições de trabalho pode não
depender apenas daqueles que interagem com os consultores, mas de esferas
decisórias mais altas. Um bom exemplo é o caso do banco 1, em que o grupo de
acompanhamento reuniu-se com a periodicidade estipulada, mas os resultados foram
a interrupção do projeto, como foi descrito no primeiro capítulo a respeito da análise
da atividade de caixa bancário. Trata-se de um limite concreto encontrado na
aplicação do método, que independe deste e, de certa forma, da ação dos consultores.
Exemplos disso são também os casos de desenvolvimento de protótipo de
mobiliário. Tanto para a telefonia celular como para o banco 3, o fim do projeto foi a
definição de um mobiliário ergonômico, com possibilidades de regulagem, adequado
às tarefas nele realizadas, que atendia à legislação (NR-17) e avaliado como
confortável pelos operadores durante o período de uso em situação real. No entanto,
os dois mobiliários não foram implantados nas empresas. No caso da telefonia
celular, a decisão de compra ficou em suspenso e, neste ínterim, a empresa optou
pela terceirização da central de atendimento telefônico, transferindo o ônus das
condições de trabalho a outra empresa. Já o Banco 3 foi comprado pelo Banco 2 e o
projeto abandonado.
Grupos de Operadores
Se os grupos de acompanhamento e projeto são a instância formal na qual
vem à tona o conflito de critérios e premissas, o que acontece no grupo de
operadores?
É indispensável dizer, antes de tudo, que a resposta técnica dos consultores
não só era dependente da colaboração dos operadores, mas também era
inegavelmente enriquecida por sua participação. A avaliação e melhoria dos
protótipos de mobiliário é um exemplo disso. O conhecimento técnico sobre os
requisitos biomecânicos que devem ser atendidos não é suficiente para determinar
qual é o mobiliário ideal naquela situação. É indispensável que seus usuários o
avaliem, pois eles sabem exatamente todas as possibilidades de utilização. Além
disso, a equipe só tem acesso ao conteúdo das atividades se os trabalhadores se
dispuserem a falar de seu trabalho. Para que isto aconteça, é preciso que uma relação
de respeito, de interesse e de confiança se estabeleça. O compromisso de preservar o
sigilo das trocas entre a equipe e os trabalhadores é fundamental. E este contrato
estabelecido é tão importante como aquele assinado com a empresa.
Dissemos, no capítulo 2, que quando tal prática foi instituída teve-se acesso a
um conteúdo muito mais aprofundado e também mais carregado de subjetividade,
que desnudava à equipe os sentimentos provocados pelo trabalho. Este tipo de
discussão em grupo tinha grande aceitação entre os operadores, em particular quando
a tarefa delineada para estes operadores era essencialmente individual. A
oportunidade de discutir livremente entre seus pares era única; ela funcionou em
várias ocasiões como um espaço de aprendizagem de ‘macetes’ técnicos como, por
exemplo, formas mais fáceis de navegação do sistema que nunca foram objeto de
treinamento formal. Este aprendizado era normalmente dificultado pelas restrições à
comunicação entre operadores, seja devido ao ritmo intenso de trabalho, seja a
proibições formais, prática de várias das empresas acompanhadas. O grupo criava um
espaço coletivo de expressão que não existia antes.
Esta dimensão coletiva, que depende dos saberes dos operadores, estrutura as
informações sobre a atividade de trabalho de forma não só a apontar os problemas,
mas também as soluções percebidas como possíveis neste nível hierárquico. E
também outras dimensões do trabalho muito maiores do que o ergonomista pode dar
conta, como sentimentos de frustração e prazer com o conteúdo do trabalho, ou
conflitos éticos que estão presentes no dia a dia. No caso dos trabalhos que têm
contato com o público, muitos operadores expressaram sua angústia em adotar
procedimentos indicados pela empresa que, no seu entender, eram injustos com os
clientes. Ou também relatos de situações em que as normas foram quebradas, com o
risco de punição por parte da empresa, para solucionar um problema do cliente que
se arrastava há tempos. Ou as ocasiões em que foi necessário mentir para esconder
uma falha da empresa que prejudicou o cliente.
Esta dimensão coletiva e a estruturação de seus saberes para elucidar as
questões colocadas pela equipe de ergonomistas parece ter um efeito transformador
sobre os participantes. Retomaremos esta questão no capítulo seguinte.
A análise da atividade coloca o ergonomista frente a vários dilemas. Um deles
é a dificuldade de trabalhar este material vasto, carregado de subjetividade. Como
passar das características individuais ou do pequeno grupo de operadores para uma
generalização das conclusões? Que recorte fazer nesta realidade de forma a
apresentá-la para a empresa sem que ela seja desfigurada, de forma a contribuir para
a evolução das condições de trabalho? Como respeitar os compromissos
estabelecidos com os diferentes clientes?
CAPÍTULO 4
CLÍNICA E REPRESENTAÇÃO
Introdução
Neste capítulo, procuramos aprofundar algumas das questões levantadas nos
capítulos anteriores. Discutiremos inicialmente que características definem uma
abordagem clínica e quais são as peculiaridades da prática clínica nas consultorias. A
seguir, discutiremos quais seriam os resultados possíveis da aplicação do método da
AET em consultoria a empresas.
Abordagem Clínica em Ergonomia
A apresentação da AET e de elementos dos casos que serviram de base a esta
reflexão permitem evidenciar algumas características fundamentais da prática de
consultorias usando tal método.
Dissemos que a base deste método é a análise das atividades e da situação de
trabalho. Isto a diferencia de outras abordagens, pois situa seu objeto de
conhecimento dentro da situação estudada. Com efeito, a opção feita pela ergonomia
de linha francesa de observar a realização do trabalho e de buscar a explicitação de
seus determinantes instituiu um ponto de inflexão tanto nas formas de atuação da
ergonomia como nos resultados possíveis desta atuação.
A ergonomia de linha anglo-saxã aborda a situação de trabalho como ponto
de aplicação de saberes obtidos pela regra da experimentação científica – em um
terreno neutro, o laboratório, cuja complexidade é artificialmente controlada
(Daniellou, 1998). Os resultados desta forma de ação são “conselhos precisos,
resultados claramente demonstráveis, [...] num tempo curto, sem atrapalhar o
trabalho industrial” (Wisner, 1994, p. 90). Neste tipo de abordagem, a metodologia
de investigação do trabalho não se coloca como questão, pois é anterior à situação.
As check lists estruturam o olhar de quem se lança a campo pelas particularidades
dos diferentes riscos a serem investigados. A integração de todos os elementos da
situação de trabalho, efetuada na atividade dos que nela trabalham, extrapola o
quadro de análise.
A AET, por seu lado, faz um movimento oposto. Ao situar o centro de sua
análise na atividade realmente desenvolvida, ela transfere sua fonte de conhecimento
para o real, em toda a sua complexidade e diversidade. A estruturação de seu olhar
sobre o trabalho é decorrente daquilo que a ela se apresenta – a situação única,
investigada clinicamente.
Mas o que exatamente queremos dizer por clínica? A singularidade do objeto
da ação do profissional é o seu aspecto fundamental. A clínica é a investigação de
uma questão única, um problema específico, proveniente de uma realidade
determinada e histórica, colocado por alguém a um profissional que, acredita-se,
tenha a competência necessária para resolvê-lo. Esta questão pode ser relativa a
diferentes campos do conhecimento: um pedido de projeto a um engenheiro, um
problema de saúde que se quer investigar e tratar, uma dor que se quer eliminar.
A clínica é desencadeada pelo problema que leva uma pessoa a procurar
alguém (um ‘clínico’, sem que este termo implique aqui na necessidade de um saber
médico ou de saúde) autorizado por um saber específico ou por uma legitimação
social (ou ambos) para resolvê-lo. Os pressupostos aqui são de que existe para
alguém um problema, que a pessoa que tem este problema reconhece o saber do
clínico como válido e suficiente e que a relação estabelecida entre eles em princípio
dará origem a uma resposta, uma solução.
A confecção da solução, a elaboração da resposta, é feita pelo clínico a partir
de seus conhecimentos e experiência, do tempo de que dispõe e das informações
sobre o problema que ele busca, referentes aos elementos que lhe parecem
necessários para a compreensão do problema (um diagnóstico) e a proposição de
uma resposta adequada – um ‘tratamento’, uma solução. Este proceder, esta prática, é
uma arte: a criação de um quadro mental que permita de um lado a obtenção de um
diagnóstico e a elaboração da resposta, e de outro a criação de uma forma de ação
específica e única para construir tal quadro, criação que traz a marca pessoal de quem
a constrói, não apenas no que toca a sua experiência e conhecimentos, mas também a
sua personalidade e seus valores, como aponta Daniellou (1992, apud Daniellou,
1998).
Quando a AET institui a observação9 do trabalho real como fonte de
conhecimento fundamental para a compreensão dos problemas relativos às condições
de trabalho, faz a opção explícita por um método clínico. “A clínica pede ao olhar
tanto quanto a história natural. Tanto e até certo ponto a mesma coisa: ver, isolar
traços, reconhecer os que são idênticos e os que são diferentes, reagrupá-los,
classificá-los por espécies ou famílias” (Foucault, 2003, p. 100). Falar em clínica é
falar em observação, em ver para saber, a partir de um olhar preparado e capaz de
identificar os signos relevantes, como explica Michel Foucault:
“...Os privilégios que a clínica acaba de reconhecer na observação
[...] são ao mesmo tempo os privilégios de um olhar puro, anterior a
toda intervenção, fiel ao imediato, que ele retoma sem modificar, e os
de um olhar equipado com toda uma armadura lógica que exorciza
desde o início a ingenuidade de um empirismo não preparado
(Foucault, 2003, p. 121).
[...] Observação e experiência se opõem sem se excluir: é natural que
a primeira conduza à segunda, mas com a condição de que esta só
interrogue no vocabulário e no interior da linguagem que lhe foi
proposta pelas coisas observadas; suas questões só podem ser
fundadas se são respostas a uma questão sem pergunta, a uma
resposta absoluta que não implica nenhuma linguagem anterior
porque é, no sentido estrito, a primeira palavra.“ (Foucault, idem,
ibidem, p. 122).
Cada campo de conhecimento e exercício profissional tem características
distintas quanto à clínica que nele se exerce. Quais são as particularidades da clínica
da ergonomia na consultoria?
9 “[...] A arte de observar ‘seria uma lógica para os sentidos que ensinaria mais particularmente suas operações e seus usos. Em uma palavra, seria a arte de estar em relação com as circunstâncias que interessam, receber as impressões dos objetos como nos são oferecidas, e delas tirar as induções que são suas justas conseqüências. A lógica é a base da arte de observar, mas esta arte poderia ser vista como uma das artes da Lógica, cujo objeto seria mais dependente dos sentidos’ “(Senebier, 1802, apud Foucault, 2003, p. 123).
Uma das características mais importantes deste proceder clínico é o grande
número de pessoas envolvidas durante a realização da AET. Mesmo que todas elas
estejam envolvidas com o problema, isto se dá a partir de estatutos e objetivos
diversos. O contrato institui uma terceira parte – o consultor – que é chamado pelo
contratante para estudar uma queixa, fenômenos ou problemas situados na esfera de
outros agentes sociais – adoecimento e/ou afastamento de trabalhadores, fiscalização
das Delegacias Regionais do Trabalho (DRT) – mas que têm repercussões sobre o
contratante. O adoecimento de uma pessoa em princípio só diz respeito a ela e seus
próximos. Mas o adoecimento de várias pessoas, que trabalham no mesmo lugar,
além de ter efeitos sobre cada uma delas individualmente, diz respeito a todos os
envolvidos com a situação de trabalho, de formas diferentes. O problema inicial se
desdobra em vários outros, diferentes segundo o agente social envolvido e que, por
sua natureza distinta, demandam ações diferentes.
A intervenção do terceiro é buscada para produzir efeitos sobre a esfera de
ocorrência dos problemas: a melhoria das condições de trabalho, uma resposta à
DRT. É isso que o contratante espera. A resolução de sua questão passa pelo
oferecimento de algum tipo de solução para outras pessoas (dentro de uma gama
limitada de opções). Os efeitos esperados da intervenção deste terceiro não se
realizarão nos contratantes, mas sim sobre outros – entre os quais podem estar
incluídos os agentes externos à empresa.
Outra característica da abordagem clínica na ergonomia, decorrente da
primeira, diz respeito à avaliação do(s) cliente(s) sobre a ação profissional.
Se, como dissemos ao definir a característica fundamental da clínica, o
recurso a um profissional que utiliza como forma de ação uma prática clínica
pressupõe um reconhecimento inicial, por parte do demandante, da capacidade
técnica (válida e suficiente) deste profissional para lidar com sua questão, este
reconhecimento não é outorgado de forma imutável. Ele será regularmente
reavaliado, em função da adequação de sua conduta e resultados aos critérios e
exigências do demandante. Por exemplo, quando um paciente procura um médico
para investigar um problema, há dois conjuntos distintos mas relacionados contidos
na resposta: um se refere ao diagnóstico, e outro ao tratamento. O diagnóstico é um
conjunto fechado e reflete a compreensão do profissional sobre o problema. O
tratamento é um conjunto aberto, na medida em que pode, até certo ponto, ser
negociado. O paciente pode questionar a competência do diagnóstico, ou pode aceitá-
lo como válido mas decidir que não quer seguir o tratamento recomendado, seja por
acreditar que há outro tratamento menos agressivo, seja porque naquele momento ele
opta por não tratar o problema.
Note-se que, para exemplificar a questão do reconhecimento da competência
do saber profissional para cuidar do problema, tornamos a usar um exemplo de
conduta clínica que diz respeito a um número reduzido de agentes – o médico e seu
paciente10. Nas situações estudadas pela ergonomia, esta relação se multiplica pelo
número de pessoas envolvidas, que têm relações diversas com o problema, com os
consultores (tanto como pessoas quanto como representantes de outrem – o
contratante, os trabalhadores observados...) e também com outros agentes da
empresa. Neste caso há vários níveis de julgamentos possíveis. O primeiro, visto já
na análise da demanda, refere-se a qual é o ‘verdadeiro’ problema. Como não há um
único problema, mas vários, teremos julgamentos diferentes. Além disso, cada um
dos interlocutores construirá, ao longo da consultoria, outros julgamentos, que se
fundamentam parcialmente na esfera individual (objetivos, afetos e valores) e
parcialmente na esfera coletiva – nas relações entre indivíduos, nas forças de ação e
poder características daquela situação de trabalho.
Da mesma forma que coexistem vários problemas, segundo o estatuto e
objetivos dos envolvidos, também coexistem representações distintas sobre o que são
condições de trabalho e que temas devem ser abordados para sua consideração (e
transformação). Durante a análise da demanda, o debate inicial entre equipe e
empresa permite que se atinja um acordo sobre o escopo e procedimentos da
investigação. Este acordo é fruto de uma negociação, é o reconhecimento de
legitimidade da forma de investigação proposta – obtida no debate. Mas a
investigação interfere com o objeto (como será visto a seguir), e o modifica: a
inserção de um observador transforma a situação observada, como apontado por
10 Esta simplificação grosseira, que não pretende negar a importância das relações entre o paciente (ou solicitante de serviço) e seus próximos, é feita para realçar que na consultoria lida-se com um número muito maior de pessoas, e que as relações entre elas são de natureza diversa.
Wacquant (2002). O desenrolar da consultoria cria uma nova situação, que requer
outra negociação dos critérios que serão usados para o julgamento da competência
do clínico para solucionar a questão e da utilidade da resposta.
Assim, mesmo que o contratante e os outros interlocutores reconheçam
inicialmente a competência do saber especialista chamado a intervir, frente a suas
representações de quais são os problemas, a continuidade deste reconhecimento
dependerá do julgamento sobre o que se passa posteriormente. O julgamento não é
monolítico e estável. Mesmo que se avalie que o trabalho foi analisado em
profundidade e se reconheça a competência da análise, isto não implica
necessariamente no reconhecimento da competência para indicar o ‘tratamento’ (as
recomendações de transformação), nem na disponibilidade para aceitá-lo.
A discussão sobre o julgamento de quem buscou um profissional ‘clínico’ é
um dos lados da questão. O outro lado diz respeito à investigação em si.
Reconhecemos que o objeto analisado é complexo e multifacetado e que a clínica
requer um olhar preparado. Quais são os saberes necessários para que o ergonomista
exerça esta clínica? A ergonomia está situada no cruzamento de várias disciplinas,
como já apontava Metz em 1965 (apud Wisner, 2004); Pacaud (1970, apud Wisner
2004) preconizava que os conhecimentos necessários à ação do ergonomista,
oriundos de várias disciplinas, deveriam ser empregados “no espírito
interdisciplinar” (op. cit., p. 35). São os conteúdos desenvolvidos e a formação
adotada nos cursos de especialização adequados para tal? Não se pode esquecer que
os profissionais que se especializam em ergonomia são formados inicialmente em
áreas diferentes, e portanto já desenvolveram uma práxis profissional. O recurso à
AET exigirá uma modificação desta práxis, para que se atenda às características da
abordagem clínica em ergonomia. Estas questões não serão aprofundadas aqui,
entretanto são bastante relevantes neste momento em que a Associação Brasileira de
Ergonomia trabalha para registrar os ergonomistas em atuação e estabelecer a reserva
de mercado para o exercício profissional.
Estas características do emprego da AET são decorrentes, como dissemos, do
recurso à observação, e da concepção da situação de trabalho como objeto único. Se
a singularidade encerra a chave para o problema, ela encerra também o germe da
solução. O julgamento do contratante e de outras instâncias dentro da empresa sobre
a forma de ação e sobre os resultados de tal prática clínica orientará as ações que se
seguirão ao diagnóstico. Este par – o julgamento e a ação dele resultante – é um
momento crítico para os profissionais: o engenheiro ou arquiteto que elaboraram um
projeto querem que seu cliente se decida a realizá-lo; o médico quer tratar o paciente,
e curar o problema de saúde que identificou; o ergonomista quer transformar o
trabalho.
Trata-se de um par que pode ser discutido sob outra denominação: o
julgamento é uma representação mental elaborada individualmente em função de
fatos e informações que são percebidas, avaliadas e integradas a conhecimentos
anteriores.
É sob esta forma – representação e ação – que continuaremos a discussão,
abordando a análise técnica da AET e a questão dos resultados possíveis de seu
emprego.
Representação e Mudança de Representação
Como dissemos, vários autores (Lima, 2000; Guérin et al., 2001) postulam
que os resultados principais da AET são a criação do ponto de vista da atividade e a
formulação de um diagnóstico e recomendações que corrijam representações
errôneas do trabalho real executado e do ser humano, responsáveis pela inadequação
das condições e meios de trabalho (cf. Guérin, op. cit., p. 5).
Trata-se de afirmações que recorrem a conceitos amplos e vagos. O que se
quer dizer quando se fala de ponto de vista da atividade, representações errôneas?
Sem pretender dar a resposta, tentaremos discutir tais afirmações, a partir de uma
investigação sobre o conceito de representação e do que foi percebido na experiência
prática.
Foge ao escopo desta dissertação o aprofundamento sobre os processos
cognitivos envolvidos na criação e transformação das representações mentais. No
entanto, Catherine Teiger (1993) estabelece uma definição e distinções que nos
permitem o esclarecimento necessário para iniciar a discussão. Segundo ela,
representação e ação estão em uma dupla relação, na qual uma está a serviço da
outra. A representação é a base para a ação, que se desenrolará de acordo com o
universo por ela desenhado. A ação, por sua vez, dá origem a uma (nova)
representação. Para evitar as ambigüidades possíveis ao falar de representação,
palavra cujo espectro semântico cobre tanto os processos como os resultados (cf.
Héran, apud Teiger, 1993), esta autora faz a distinção entre:
“A representação-ferramenta [...] concebida como uma construção
mental ativa e estruturante feita pelo sujeito inteligente que se
manifesta a partir do estado sensório-motor (Piaget, 1970). Este
processo de representação está constantemente em trabalho, em
recomposição contínua pela integração de informações novas,
modificações mesmo pequenas dos objetivos e do contexto da ação.
Trata-se de uma representação pela ação”.
“A representação-produto ou representação-objeto [...] [é] produto
de uma construção subjetiva na qual a atividade interna própria de
interpretação do sujeito se manifesta, em particular através dos
‘filtros’ que ele utiliza em função de suas experiências passadas e de
suas intenções atuais. Ela não pode, portanto, ser um reflexo,
decalque ou espelho da realidade...” (Teiger, 1993, p. 316, grifos da
autora).11
São estas últimas as representações para a ação. Teiger as considera “redes de
crenças, de conhecimentos, de saberes, de ‘savoir-faire’ e de sensações
experimentadas, construídas, selecionadas ao longo da história do sujeito, a partir
da experiência, da intenção e das necessidades da ação” (p. 317, grifo nosso). Elas
teriam uma dupla característica de invariância e de variação de seus componentes,
que respondem a um “critério de operatividade, fundado sobre uma relação de
coerência com o real” (p. 317, grifo da autora). Já as primeiras, representações pela
ação, evoluem no tempo pela tensão entre um pólo passivo e um ativo, entre o que
11 Este trecho, bem como todas as citações subseqüentes da mesma autora, são traduções livres do original em francês.
permanece invariável e aquilo que é atualizado e transformado no transcorrer da
ação.
Se, como dissemos, o julgamento a respeito da ação e de seus resultados é
crítico para o ergonomista, e trata-se de uma representação mental da situação que
orientará a ação subseqüente, vale a pena explorar um pouco mais as teorias sobre
sua elaboração. De acordo com Teiger, a elaboração e desenvolvimento das
representações-objeto envolvem pelo menos três tipos de processos cognitivos:
- “memorização e evocação dos conhecimentos, dos saberes
adquiridos a partir de sensações-percepções e informações
diversas;
- esquematização, abstração, simbolização, não somente dos
saberes adquiridos mas dos dados atuais que permitem que se
faça uma idéia da situação específica na qual se está inserido
e de confrontá-la às representações memorizadas, às quais
ela se integrará ou não;
- antecipação permitindo considerar as transformações da
situação e as regras sobre as quais se conectarão os saberes e
‘savoir-faire’ utilizados na ação” (Teiger, idem, p. 317).
A partir destas definições, é possível tentar compreender melhor o que se
passa durante a AET, em dois momentos particulares: durante a análise da atividade
e na formulação e apresentação do diagnóstico.
Na Análise da Atividade
Fizemos referência às práticas desenvolvidas nesta etapa da AET junto aos
operadores, que foram constituídas por observações individuais, entrevistas
concomitantes ou a posteriori sobre as observações realizadas e práticas coletivas em
grupos de operadores.
Eram comuns nestas situações as expressões de surpresa, por parte dos
operadores, perante a tomada de consciência de que sabiam e faziam muito mais do
que haviam percebido até então. Parece claro que se trata aqui de uma mudança de
representação sobre o trabalho realizado, provocada pelo questionamento e
discussão, com o ergonomista e eventualmente com seus pares. Este processo induz a
elaboração verbal de saberes em grande parte inacessíveis à consciência, seja por seu
conteúdo sensório-motor, seja por se tratar de conhecimentos implícitos ou
adormecidos, “isto é, certos conhecimentos que são não-conscientes simplesmente
porque o sujeito ou as pessoas em torno deles nunca se perguntaram sobre eles”
(Ferreira, 1993, p. 18, em referência a Vermersch, citado também por Teiger, 1993,
p. 320).
Para conhecer a atividade, o ergonomista precisa compreender as relações
entre os fatos observados, pois estas guiam a execução e o encadeamento de
condutas (conforme Teiger, p. 335). Ele só tem acesso a isso pela explicação dos
operadores, que, muitas vezes pela primeira vez, elaboram estas relações
verbalmente. Esta elaboração verbal, provocada pela AET durante a análise da
atividade, seria um dos fatores que concorrem para a mudança de representação, pois
provoca a “tomada de consciência de suas ações e de toda a perícia de que
necessitam para realizá-las, assim como das dificuldades que aparecem” (Ferreira,
1993, p. 18).
Acreditamos que este processo se desenrola tanto nas interações individuais
como nas coletivas, mas estas últimas parecem amplificar o processo e ao mesmo
tempo acentuar outras características. Em muitas das situações estudadas, a
oportunidade de falar sobre o trabalho era inédita, pois em geral não há fóruns
organizados para tal. O grupo parece facilitar a expressão dos afetos mobilizados
pelo trabalho, em seus aspectos negativos e positivos. Para isso pode concorrer o que
Teiger aponta como um processo de desindividualização (p. 336), no qual se percebe
que aquilo que se experimenta individualmente é em grande parte generalizável ao
grupo.
Através das verbalizações, o ergonomista tem acesso a conteúdos de
diferentes tipos – não só a fatos objetivos, mas subjetivos, e relativos a normas de
conduta, valores... E, se dissemos que a verbalização pode conduzir à tomada de
consciência, não é só quem interroga que tem acesso a isso. A verbalização tece e
traz a público o conhecimento, levantando o véu para quem fala também. Estes
momentos são de grande delicadeza e exigência para o ergonomista, pois, como
aponta Teiger (op. cit., p. 328), o discurso (e o não-discurso) é influenciado por
fatores relacionados à psicologia, à psicologia social e à psicopatologia. A tabela 4
sumariza as categorias de discurso a que se tem acesso ao lidar com as verbalizações.
As características das várias categorias e as razões que fazem com que
determinados conteúdos estejam como que ‘protegidos’ da verbalização imediata,
exigem tratamento cuidadoso por parte do ergonomista, pois a ação inadvertida pode
expor seus interlocutores a situações que coloquem em risco seu bem estar,
especialmente psicológico. Além disso, há os aspectos éticos ligados ao respeito, ao
sigilo, à confiança que permitiu o acesso a estes conteúdos. “Jamais houve um
contrato tão carregado de exigências tácitas como um contrato de confiança”
(Bourdieu, 1997b, p.9). Aqui a questão da metodologia de intervenção aparece em
toda sua complexidade para o ergonomista, e reforça as características clínicas da
abordagem. Como conduzir a análise da atividade, “como ter acesso de forma séria,
nós íamos dizer de forma respeitosa, a esta atividade de um homem ou mulher [...]”
(Dupont et Duraffourg, apud Schwartz, 2004)? Como retrabalhar estes relatos para
apresentá-los a outros? Como protegê-los “dos perigos aos quais exporíamos suas
palavras, abandonando-as, sem proteção, aos desvios de sentido” (Bourdieu, 1997b,
p. 9)? Como cumprir as exigências tácitas da relação de confiança e lançar mão deste
material para apresentá-lo em seu diagnóstico? Isto remete novamente à reflexão
Tabela 4: Categorias de discurso / não discurso acessíveis através da verbalização Categoria de Discurso Características
Aquilo que é dito
É da ordem do consciente Tem relação de congruência frouxa com o real, que pode ser alterada:
• Voluntariamente – mascaramentos diversos • Involuntariamente – interiorização de estereótipos culturais ou
sociais Exige a interpretação do sentido
Aquilo que pode ser dito sob
condições
São representações conscientes ou conscientizáveis
Exigem uma elaboração cognitiva e um trabalho de formulação em palavras, por diferentes razões: • Nunca foram formuladas (conscientes mas lingüisticamente
pouco formatadas) • São representações e processos que sustentam as atividades
cotidianas (especialmente atividades sensório-motoras), e podem ser objeto de tomada de consciência durante a análise do trabalho
• São “encapsulados”, isto é, conhecimentos estereotipados que é preciso primeiro desconstruir.
Aquilo que não pode ser
dito imediatamente
Próximo da categoria anterior
Indizível imediatamente devido a razões afetivas:
• De sofrimento (ex: problemas de saúde, dificuldades de relacionamento)
• De medo (ex: práticas oficialmente proibidas) Indizível imediatamente devido a razões cognitivas sobre aspectos ignorados ou do domínio do impensável (ex: relações trabalho / saúde) As condições para torná-lo passível de verbalização são mais
difíceis de preencher
Aquilo que não pode ser
dito definitivamente
Refere-se a aspectos da atividade sensório-motora ou cognitiva
cuja natureza impede a formulação em palavras, mesmo sendo
conscientes (por exemplo automatismos motores muito
conscientizados no esporte, na música, no trabalho repetitivo...)
Aquilo que não é dito Conteúdos omitidos por razões diversas: autocensura, sistemas de
defesa ou ignorância
Adaptado de Catherine Teiger, 1993.
sobre o conteúdo da formação nesta especialidade, e aponta também o risco de que,
perante a complexidade de seu objeto, o leque de campos de conhecimento
necessários à preparação do olhar amplie-se sem cessar. É possível a um profissional
conhecer (com o aprofundamento necessário) tudo o que pode ser relevante? Se a
resposta é negativa – como parece ser o caso – como remediar isso?
Uma última consideração se faz importante. Toda a discussão de Teiger é
feita a propósito de um trabalho de formação em ergonomia de “délegués de
CHSCT” (função semelhante à de membro da CIPA – Comissão Interna de
Prevenção de Acidentes). O objetivo expresso da formação era transformar suas
representações, a fim de que pudessem incorporar elementos da AET em sua atuação
profissional. No caso das consultorias, o objetivo era totalmente diferente. As
interlocuções entre ergonomistas e operadores visavam conhecer a atividade de
trabalho para a construção de seu diagnóstico. A mudança de representação ocorre
provocada pela investigação da AET – e talvez o conhecimento da atividade não seja
possível sem que isto ocorra – mas não é seu objetivo. E ela pode colocar um
paradoxo: a representação (para a ação) dos trabalhadores se transforma, mas o
quadro no qual esta ação se insere não. O que é feito dela uma vez finda a
consultoria? Se isto resulta em uma maior insatisfação com o trabalho, ou se os
efeitos são benéficos para os indivíduos, individual e coletivamente, não temos
elementos para dizer.
Na Construção e Apresentação do Diagnóstico
Se parece possível afirmar que a investigação provoca mudanças na
representação sobre o trabalho junto aos operadores que participam das práticas
ligadas à análise da atividade, o que pode ser dito sobre as outras etapas do método,
particularmente na apresentação do diagnóstico e recomendações de mudança?
O debate que antecede o estabelecimento do contrato de consultoria e o
escopo de investigação da AET poderia ser responsável por uma mudança de
representação sobre o que são condições de trabalho? A interlocução com os
representantes da empresa ao longo das etapas, a busca de informações sobre a
empresa e seus processos de produção, em que medida isso contribui para uma
mudança de representação? De quem? Sobre o quê?
Há uma diferença capital entre o que se passa na análise da atividade e no
restante das etapas. Na primeira, o ponto de partida para a interlocução é o trabalho
observado. Trata-se de fatos concretos que foram vistos ou trazidos à baila no
debate, e que dizem respeito diretamente àqueles que debatem – é o seu trabalho;
para o ergonomista, o seu objeto de estudo. A discussão é feita sobre a atividade
como fato histórico (Hubalt, 2004a).
Quando os resultados desta análise são apresentados a outros interlocutores
da empresa a situação é diferente. A equipe consultora produz um relato sobre aquilo
que é em grande parte invisível na empresa. Quando ele torna a atividade visível em
seu diagnóstico, é a atividade de outros, apresentada para pessoas que se relacionam
apenas indiretamente com ela; trata-se aqui de uma discussão sobre um fato virtual
(Hubalt, op. cit., p. 122). E não só isso – ele o faz para pessoas cuja função – cuja
atividade – muitas vezes é pensar e agir sobre este trabalho, mas em outro registro –
não o trabalho apresentado a partir da realidade observada, mas o trabalho genérico,
isento desta realidade, abstraído das características individuais de cada um que o
realiza. A invisibilidade do trabalho está no princípio de sua utilização como recurso
produtivo. A ação da hierarquia apóia-se em representações sobre o trabalho como
recurso – enquanto que a ação do ergonomista, ao contrário, baseia-se na
representação do trabalho como meio de construção da saúde e da individualidade.
Tais representações são construídas ativamente pelo sujeito ao longo de sua
história, de sua formação profissional e das experiências vividas e, como afirmou
Teiger, são selecionadas através dos filtros do sujeito: “não respondem
necessariamente a critérios de verdade” (p. 317), mas sim aos objetivos de ação. Os
processos cognitivos empregados em sua formação envolvem uma transformação
dos elementos de uma dada situação (esquematização, abstração, simbolização) em
relação com as representações já existentes na memória, “aos quais ela se
integrará ou não” (idem, ibidem, grifo nosso).
A confrontação com o diagnóstico elaborado sobre a situação não é o
momento de uma revelação messiânica, no qual a verdade se descobre e o ‘ponto de
vista da atividade’ desvenda a percepção de todo um universo ignorado, que se
descortina subitamente, subvertendo as crenças e valores anteriores. É um momento
em que um profissional, cuja atividade é agir sobre ou a partir do trabalho alheio,
depara-se com um conjunto de informações que o apresentam sob uma descrição
nova, diferente, que ele confronta com os saberes que têm, com as representações
existentes na memória, através dos processos cognitivos descritos na formação da
representação-objeto. Inclusive da antecipação, da consideração das transformações
da situação, de suas regras, e da relação disto com seus objetivos pessoais.
O episódio apontado no capítulo 3 – da reunião final junto à operadora de
telefonia celular – é exemplar para ilustrar estes processos. Tratava-se da
apresentação do diagnóstico e recomendações de mudança, e a equipe de consultores
apontava que a dupla tarefa dos operadores era um dos fatores implicados no
adoecimento. A verbalização da gerente citada, como um raciocínio em voz alta,
tornou possível perceber como (confrontada com a idéia de que a prática gerencial
bem sucedida em termos de produtividade dos recursos provocava sofrimento e
ultrapassava os limites de funcionamento humano) ela trabalhava esta informação em
vários níveis diferentes. Inicialmente como conhecimento novo, surpreendente; a
seguir colocando-a em relação com seu próprio conhecimento sobre o sofrimento dos
funcionários adoentados, e pelos afetos mobilizados por ele. A surpresa da
descoberta de uma relação trabalho / saúde até então ignorada é gradualmente vista
sob uma nova luz; estas informações são consideradas com relação a seus objetivos
de ação como profissional de gerência e a representações de como um gerente deve
analisar as situações profissionais que se lhe apresentam. Em poucos momentos
assistiu-se a um arroubo de emoção seguido por uma análise mais racional, na qual
os elementos afetivos são retirados pelo filtro da prática esperada de um gerente, ou
por sua representação de como deve ser a prática do gerente.
Este exemplo permite vislumbrar os processos cognitivos ativos em obra na
construção das representações individuais, envolvidos nesta situação de confronto de
representações. Mas quando a gerente em questão se refere ao modo como um
gerente deve pensar a questão, ela está se reportando a uma representação
socialmente aceita. Há um outro nível de análise possível aqui, que ultrapassa a
esfera individual e introduz a questão de como a inserção social do indivíduo
contribui para modular sua visão de mundo.
Este tema foi tratado por Pierre Bourdieu (1997a), que introduziu conceitos
que podem ser úteis na reflexão sobre a influência do ambiente social na apreensão
da realidade, na visão de mundo e na construção das representações. Como foi o caso
no debate sobre estas últimas, não temos a pretensão de apresentar de forma
aprofundada as bases teóricas daquilo que Bourdieu denomina sua “filosofia da
ação”. Mas alguns de seus conceitos fundamentais, em particular o conceito de
habitus, parecem-nos úteis para compreender melhor os fenômenos com os quais
nos deparamos ao longo da prática. Tal conceito é formulado no quadro de um
modelo teórico que se propõe a compreender a lógica do mundo social,
estabelecendo suas estruturas e mecanismos não a partir de propriedades que seriam
devidas a uma essência biológica ou social, mas a partir das relações entre os agentes
sociais e das práticas por eles adotadas. A ação dos agentes sociais só pode ser
entendida, segundo Bourdieu, a partir de sua posição em um determinado espaço
social, historicamente situado e datado, posição que é determinada por seu capital
econômico, cultural ou global – que combina os dois.
Este espaço das posições sociais “se retraduz em um espaço das tomadas de
posição através de um espaço intermediário das disposições (ou dos habitus)”
(Bourdieu, p. 22, grifo do autor). Mas o que vem a ser este conceito de habitus?
“Os habitus são princípios geradores de práticas distintas e
distintivas – o que come um operário e sobretudo sua maneira de
comê-lo, o esporte que ele pratica e sua maneira de praticá-lo, as
opiniões políticas que são as suas e sua maneira de exprimí-las
diferem sistematicamente dos consumos ou das atividades
correspondentes do chefe de indústria; mas são também esquemas
classificatórios, dos princípios de classificação, dos princípios de
visão e de divisão, dos gostos, diferentes” (Bourdieu, op. cit., p. 23).
O habitus orienta “as tomadas de posição, as ‘escolhas’ que os agentes
sociais operam nos mais diferentes domínios da prática, na cozinha ou no esporte,
na música ou na política, etc” (p. 19, grifos do autor). Ele é fruto da posição ocupada
por um indivíduo no espaço social, que determina sua forma de apreensão da
realidade, suas “categorias de percepção, de esquemas classificatórios, de um
gosto, que lhe permite estabelecer diferenças, discernir, distinguir [...]” (p. 24). A consideração da influência das estruturas sociais e de aspectos coletivos
que interferem nos processos de formação e transformação das representações pode
contribuir para uma compreensão mais clara, por parte do ergonomista, da economia
do que está em jogo quando se procura transformar o trabalho, das diferentes
categorias de classificação que coexistem em um momento dado (como as propostas
pela AET e por uma certificação ISO, por exemplo), e da competição entre elas.
“[...] Se o mundo social, com suas divisões, é algo que os agentes sociais devem
fazer, construir, individual e sobretudo coletivamente, na cooperação e no conflito, é
entretanto verdade que estas construções não se operam no vazio social [...]: a
posição ocupada no espaço social, isto é, na estrutura da distribuição das diferentes
espécies de capital, que são também armas, comanda as representações deste espaço
e as tomadas de posição nas lutas para conservá-lo ou transformá-lo” (Bourdieu,
op. cit., p. 28, grifo do autor).
A reflexão sobre o que são as representações, quais são os processos que as
constituem e transformam, como se viu, é de profundo interesse para a ergonomia da
atividade – como também para outros campos profissionais que têm uma ação
clínica. A ação do ergonomista se constrói sobre o enigma da atividade humana, de
seus determinantes e resultados, e o desafio de colocar esta ação no centro de debate
sobre as condições de trabalho. Mas é impossível ignorar – e o método da AET se
organiza ao redor disso – que toda ação humana inscreve-se em um jogo de relações
que ultrapassa a esfera individual. Na esfera coletiva, a inserção social, como aponta
Bourdieu, tem um peso preponderante nas representações. No momento do
diagnóstico e das recomendações de transformação, o julgamento que se faz sobre a
resposta não depende apenas da qualidade da análise que foi feita, ou das habilidades
retóricas da equipe de ergonomista, ou mesmo da efetividade dos grupos de
acompanhamento em seguir passo a passo o desenvolvimento da consultoria. O
julgamento é fruto do confronto entre a representação sobre os procedimentos e a
resposta formulada pelo ergonomista e outras representações, pré-existentes ou em
formação.
* * * * *
A contratação de uma consultoria e a introdução de um terceiro em uma
situação de trabalho estabelece uma rede de intermediações entre contratantes,
ergonomistas e trabalhadores. O contratante espera obter, através da intervenção do
ergonomista, efeitos (sobre outros) que lhe serão benéficos. O conhecimento sobre a
situação estudada e seus problemas é obtido inicialmente através da representação do
contratante e de outros interlocutores envolvidos indiretamente. No entanto, a forma
clínica da investigação efetuada durante a realização da AET coloca os ergonomistas
em contato direto com os trabalhadores, buscando um saber que só eles têm: só eles
podem levantar o véu que revelará o trabalho que fazem.
Para constituir seu conhecimento sobre o objeto, a AET ultrapassa a barreira
do anteriormente enunciado – as tarefas – e investiga o invisível, que se opera na
intimidade do sujeito que age em seu trabalho. O relato produzido sobre este trabalho
– o diagnóstico – encadeia os aspectos da realidade em uma relação que pretende
explicar a produção do fenômeno estudado; ele é tingido pelos elementos desta
realidade, que são usados como evidências do diagnóstico. Enunciar aquilo que era
invisível, trazer a público é, como nos lembra Schwartz (2004), uma decisão de
existência, é a criação de um espaço de realidade. Isto, espera o ergonomista, pode
contribuir para a reconfiguração dos espaços sociais nos quais esta atividade se
desenvolve – a transformação do trabalho.
Seu método de investigação e o relato que ele produz colocam o ergonomista,
durante sua atuação na empresa, como um apresentador do trabalho. Mas a distinção
entre ser apresentador do trabalho e representante dos trabalhadores é tênue. Assim,
ele pode passar a ser visto como mediador dos trabalhadores junto à hierarquia (ou
ver-se neste papel), numa inversão de sua posição inicial de mediador da hierarquia
– os contratantes – junto aos trabalhadores. No entanto, se o contrato autoriza o
ergonomista como investigador, a análise não o autoriza como representante ou
como porta-voz. A expectativa do contratante de produzir efeitos sobre a outra parte,
por intermédio da consultoria, é apenas parcialmente atingida. Se o outro a ser
modificado não pertence à empresa, como no caso de resposta a notificação legal,
atinge-se o resultado. Se o outro pertence à empresa, como no caso de gerências de
área de ocorrência de adoecimento, pode ocorrer o contrário do que se esperava. A
percepção dos ergonomistas como representantes dos trabalhadores os situa em
campo antagônico. O diagnóstico, ao invés de indicar mudanças precisas (entre as
quais a mais aceita seria talvez a prescrição de novas formas de trabalho, por sua
adequação ao habitus) tenta modificar sua representação sobre o trabalho e validar a
tese de que o projeto de trabalho deve ser repensado, ou seja, questiona a práxis
adotada até ali, apontando seus pontos fracos. Além disso, neste último caso o
antagonismo se acentua, pois o ergonomista, representante de outra área da empresa,
vem criticar a forma de atuação profissional das gerências.
O julgamento sobre a resposta considera o conteúdo da análise, mas não
apenas isso. Considera também a adequação deste conteúdo ao que se entende como
pertinente à especialidade. A ergonomia é um campo relativamente jovem que abriga
uma grande diversidade de práticas. Alguns temas lhe são associados pelo senso
comum: mesas e cadeiras ‘ergonômicas’, ginástica laboral... Da mesma forma,
condições de trabalho são comumente associadas com os aspectos materiais do posto
de trabalho. A inclusão de temas que extrapolam este senso comum, em particular de
aspectos ligados à organização da produção e à concepção do trabalho, tanto na
investigação do problema feita através da AET como na proposição de soluções,
pode fazer com que se julgue que a resposta dada pelo profissional à empresa
ultrapassou o escopo da especialidade, mesmo que inicialmente se tenha dado o aval
a que eles fossem investigados. Mais que isso, pode-se julgar que a resposta
ultrapassou a esfera das perguntas formuladas. É uma resposta a uma pergunta que
não só não foi formulada, como muitas vezes não se coloca como questão. Por que
iria uma empresa que tem ‘saúde de ferro’, cujos negócios estão em plena expansão,
cujos lucros satisfazem aos acionistas, considerar cabível repensar toda a organização
do trabalho e da produção em função do adoecimento, ainda mais quando este
adoecimento é questionado em sua veracidade ou é marginal, não organizado?
Quanto à solução, também ela será julgada em comparação com as
representações existentes. Segundo o habitus, o estudo do trabalho deve resultar em
uma elaboração de prescrição, fruto de um saber autorizado. Contudo, o resultado da
AET é a elaboração, no diagnóstico, de conflitos existentes no trabalho, entre seu
conteúdo e os limites do ser humano, entre o valor a ele atribuído pela empresa,
medido quantitativamente, e o valor que ele tem para o ser humano, que só pode ser
aferido no registro qualitativo. Desta elaboração não pode surgir uma resposta
formulada em um quadro anterior à constituição do objeto, como no caso da
ergonomia de linha anglo-saxã. A solução, como o problema, é única, e como ele
deve ser construída na ação das partes envolvidas, com a participação de todos os
envolvidos, sugestão que também difere do habitus.
Os ergonomistas, como dissemos, são terceiros chamados a investigar uma
situação. Externos à situação, não têm poder para transformar nada, a não ser – talvez
– as representações, mas estas não dependem apenas de sua ação. A questão do
trabalho e de suas condições extrapola os limites da AET e da empresa. Ela se
inscreve no mundo social, em um momento histórico situado, no qual forças
organizadas estão em conflito e embate. As possibilidades de transformação (das
representações, do trabalho) não dependem apenas da ação do ergonomista – e esta
afirmação não pretende diminuir a importância de sua contribuição através da
realização da AET, e sim colocar em perspectiva sua ação no escopo da consultoria –
mas dos agentes sociais diretamente ligados à situação e dos mecanismos sociais de
regulamentação, de pressão, de contenção.
A contribuição da AET no debate sobre as condições de trabalho reside em
sua capacidade de investigar a atividade humana, em conhecê-la e apresentá-la em
seus aspectos concretos, pois este conhecimento permite um debate fecundo a todas
as disciplinas envolvidas na determinação do trabalho e na consideração de seu papel
sobre a saúde e o conforto dos trabalhadores.
CAPÍTULO 5
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta dissertação fez uma reflexão sobre a prática de consultorias em
ergonomia usando o método da Análise Ergonômica do Trabalho. Para fundamentar
esta reflexão, apresentou-se um painel dos casos que foram atendidos pela autora,
junto a uma equipe constituída por ergonomistas e profissionais de outras
especialidades, bem como do método da AET.
O campo da ergonomia abriga formas diferentes de abordar a situação de
trabalho, de acordo com a relação que a disciplina mantém com os conhecimentos
científicos que formam seu corpo teórico. A abordagem da AET se organiza em
torno da análise da atividade e faz a opção de investigar a situação de trabalho como
fonte de conhecimento, não como local de aplicação de conhecimentos produzidos
em condições controladas. Como discutimos no capítulo 2, o método da AET é um
roteiro de investigação. Cabe ao profissional decidir, frente às características da
situação, qual é a melhor forma de proceder para ter acesso a informações relevantes,
qual é o melhor encadeamento das etapas, como fazer uma análise da atividade que
lhe ajude a compreender o trabalho e a oferecer explicações relevantes para o
fenômeno estudado. Isto exige uma abordagem clínica. No caso da consultoria, é
alguém externo à empresa que realiza esta investigação; cada etapa exige não só a
negociação das práticas mas também a explicitação dos critérios de análise que as
justificam.
Os pontos fundamentais da aplicação deste método foram apresentados e
discutidos no capítulo 3. A consultoria reúne agentes sociais diversos que têm visões
diferentes sobre qual é o problema cujo estudo a equipe de ergonomia foi chamada a
fazer. A AET, desenvolvida com base na interlocução e negociação com tais agentes
(em todos os níveis hierárquicos), investiga o trabalho a partir de critérios centrados
no ser humano para, com seu diagnóstico e recomendações, contribuir para a
melhoria das condições de trabalho. Neste contexto, as diferenças entre os critérios
utilizados pelos ergonomistas em sua análise e aqueles que embasam as ações
gerenciais foram destacados, bem como alguns fenômenos percebidos na
interlocução com os operadores, ligados aos efeitos provocados pelo falar sobre o
trabalho.
Finalmente, foram abordados os resultados possíveis da consultoria usando o
método da AET. Para tal, discutiu-se inicialmente as características da clínica em
ergonomia, em particular aquelas ligadas ao julgamento da resposta elaborada pelo
profissional. Para compreender como a elaboração deste julgamento é feita,
investigamos o conceito de representação mental, sua formação e modificação, e
discutimos como as práticas envolvidas na realização da AET interferem nestes
processos, em particular durante a análise da atividade e na construção e
apresentação do diagnóstico. Durante a análise da atividade, a oportunidade de falar
sobre o trabalho, individual ou coletivamente, parece promover os processos ligados
à constituição e/ou transformação de representações mentais sobre o trabalho junto
aos operadores que dela participam. Na apresentação do diagnóstico aos
representantes da hierarquia, este processo parece ser mais claramente modulado
pelas disposições (ou habitus) derivadas de sua inserção social.
Questões em Aberto
A opção metodológica de estudar a atividade de trabalho parece colocar
muito mais perguntas que respostas a quem pratica a ergonomia. Neste trabalho,
tentamos organizar questões colocadas pelo exercício de uma prática profissional
construída nas relações entre pessoas, com base na distinção entre o prescrito e o
real. Esta escolha, de reconhecimento e investigação de uma dimensão do trabalho
que só é vista em uma análise do detalhe, não é isenta e neutra. É a escolha de
colocar o ser humano no centro do debate sobre o trabalho e, a partir dele,
reposicionar as categorias de análise envolvidas.
Isto implica na colocação de questões às disciplinas de base, a partir dos
fenômenos observados na situação de trabalho. Há uma infinidade de questões que
podem ser investigadas pelos campos mais diversos do conhecimento. Os distúrbios
músculo-esqueléticos e sua relação com o conteúdo do trabalho devem ser estudados
de forma mais ampla do que os modelos baseados em “fatores de risco” permitem. O
que explica que o adoecimento esteja concentrado em áreas específicas, como nas
centrais de atendimento telefônico? Os modelos apoiados na biomecânica ou
fisiopatologia têm utilidade limitada na explicação da realidade. É necessário buscar
novos modelos que considerem o movimento de forma menos mecanicista, que se
disponham a abordar a complexidade do ser humano não apenas na inter-relação
entre os diferentes sistemas fisiológicos (muscular, ósseo, circulatório) como também
nas relações entre corpo e mente, entre os aspectos psicológicos e afetivos ligados ao
exercício da atividade de trabalho e a modulação que estes exercem sobre o corpo.
As ciências ligadas à gestão de processos produtivos também se deparam com
questões relevantes, particularmente no setor de serviços. A consideração da
atividade concreta de trabalho na avaliação da produtividade e eficiência pode
contribuir para o desenvolvimento de projetos organizacionais estruturados por
processos, que reúnam grupos de profissionais envolvidos com uma linha de
produtos. Da mesma forma, pode-se buscar desenvolvimentos tecnológicos, em
particular na área de sistemas informatizados, que contribuam para facilitar a
atividade humana.
Estas linhas de pesquisa têm como elemento implícito a exigência de atuação
interdisciplinar, e o desenvolvimento de formas de trabalho que favoreçam a troca
entre as diferentes disciplinas.
No campo teórico específico da ergonomia, a análise da atividade de trabalho
é a questão central. A busca de um modelo que dê conta desta atividade, que a
explique e dê conta de seu papel na construção da individualidade, da subjetividade e
da saúde, é uma tarefa que deve ser enfrentada.
Além disso, a formação dos profissionais que buscam este campo do
conhecimento como especialidade deve ser objeto de reflexão, tanto no que se refere
aos conhecimentos que serão privilegiados na formação, como também no tipo de
estrutura de ensino para que as habilidades clínicas necessárias à prática sejam
estimuladas e desenvolvidas.
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