Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 24 – Aquisição de Português como segunda língua.
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PRONOMES CLÍTICOS NA GRAMÁTICA DE CRIANÇAS FALANTES DE CRIOULO
Ana Maria MADEIRA1 Maria Francisca XAVIER
Maria de Lourdes CRISPIM RESUMO Um dos aspectos problemáticos na aquisição do português europeu (PE) por estrangeiros refere-se à realização e colocação dos pronomes clíticos. Em estudos anteriores efectuados com estudantes universitários estrangeiros aprendentes de PE, encontrou-se evidência de que, após uma fase caracterizada pela omissão de pronomes clíticos e pela sua substituição por outras formas (quer sintagmas preposicionais quer pronomes fortes), os diferentes padrões de colocação começam a ser adquiridos de acordo com uma sequência fixa. O estudo aqui apresentado visa investigar a aquisição dos padrões de colocação de pronomes clíticos, em PE como língua não materna (L2), por crianças falantes de crioulo cabo-verdiano e guineense, procurando dar resposta às seguintes questões: (1) Quais são os padrões de desenvolvimento que caracterizam a aquisição destes padrões por crianças? (2) Qual é o papel da língua materna (L1) no desenvolvimento das propriedades distribucionais dos clíticos pronominais em crianças? Com o objectivo de procurar resposta para estas questões, foi realizado um estudo com base em dados de juízos de gramaticalidade. Os resultados obtidos foram comparados com os resultados de três grupos de controlo, um constituído por crianças falantes de PE L1 e dois que incluíam crianças falantes de outras L1s. Verificou-se que o percurso seguido na aquisição dos pronomes clíticos pelas crianças falantes de crioulo é distinto quer do observado na aquisição de PE L1 quer do de falantes não nativos adultos descrito em estudos anteriores, registando-se algumas diferenças entre os diferentes grupos de aprendentes. Tal facto sugere que, embora não haja transferência directa da L1, esta desempenha um papel indirecto no desenvolvimento destas propriedades, podendo influenciar o ritmo e possivelmente o percurso de aquisição. Este estudo proporciona um melhor conhecimento do modo como os aprendentes estrangeiros adquirem as propriedades gramaticais do PE e dos efeitos de influência da L1 no processo de aprendizagem, oferecendo oportunidades para uma reflexão sobre os benefícios que tal conhecimento poderá trazer para o ensino de português a estrangeiros. PALAVRAS-CHAVE aquisição; língua não materna; influência da L1; clíticos; ênclise/próclise
1 UNL, Centro de Linguística da Universidade Nova de Lisboa, Departamento de Linguística, Avenida de Berna, 26-C, 1061-069 Lisboa, Portugal, [email protected]
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Introdução
Um dos aspectos problemáticos na aquisição do português europeu (PE) por
estrangeiros refere-se à realização e colocação dos pronomes clíticos. Em estudos
anteriores efectuados com aprendentes adultos de PE (MADEIRA; CRISPIM;
XAVIER, 2006; MADEIRA; XAVIER, 2009), encontrou-se evidência de que, após
uma fase inicial caracterizada pela omissão de pronomes clíticos e pela sua substituição
por outras formas, os diferentes padrões de colocação começam a ser adquiridos em
sequência, ao mesmo tempo que são adquiridas as marcas morfológicas de género,
número e Caso.
O estudo aqui apresentado visa investigar a aquisição dos padrões de colocação de
pronomes clíticos, em PE como língua não materna (L2), por crianças falantes de
crioulo cabo-verdiano e guineense, procurando compreender os padrões de
desenvolvimento que caracterizam a aquisição desta propriedade gramatical por falantes
de crioulo, bem como determinar se existem diferenças significativas no
desenvolvimento desta propriedade gramatical entre crianças e adultos. Ao mesmo
tempo, procurar-se-á investigar qual o papel da língua materna (L1) no desenvolvimento
dos padrões de colocação dos clíticos pronominais em crianças.
O estudo baseia-se em dados recolhidos, através de um teste de juízos de
gramaticalidade, em instituições de ensino nas áreas de Lisboa e Setúbal. Os dados do
grupo de falantes não nativos são confrontados com os dados de três grupos de controlo:
um grupo de crianças falantes nativas de EP e dois grupos de crianças, aprendentes de
PE L2, mas com L1s distintas das do grupo de teste.
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Padrões de colocação de clíticos em português europeu
As condições que determinam os padrões de colocação dos clíticos em PE são distintas
das observadas em outras línguas românicas. Enquanto, por exemplo, em línguas como
o espanhol e o italiano, a alternância entre ênclise (ordem verbo-clítico) e próclise
(ordem clítico-verbo) é determinada pela finitude do verbo (ocorrendo a próclise com
formas finitas e a ênclise com formas não finitas do verbo) e, numa língua como o
francês, próclise é generalizada em todos os contextos com excepção das imperativas,
em PE, os dois padrões de colocação são determinados por condições sintácticas muito
específicas (para uma descrição mais detalhada, bem como diferentes propostas de
análise, ver, entre muitos outros, MATEUS et al., 2003; MADEIRA, 1993; DUARTE;
MATOS, 2000). Ênclise, ou a ordem verbo-clítico (cf. (1) abaixo), ocorre apenas na
ausência de certos elementos em posição pré-verbal, tais como negação frásica e outros
constituintes negativos (cf. (2)), quantificadores (cf. (3)), certas classes de advérbios (cf.
(4)), complementadores (cf. (5)) e constituintes-Qu (cf. (6)).2
(1) A Cláudia escreveu-me / * me escreveu uma carta
(2) A Cláudia não / nunca me escreveu / * escreveu-me uma carta 2 Vários autores (FROTA, 1994; DUARTE; MATOS, 2000; MATEUS et al., 2003) têm observado que, especialmente entre as gerações mais jovens, se tem vindo a assistir a uma generalização do uso de ênclise na presença de elementos proclisadores, particularmente em orações subordinadas finitas, mas também em frases com advérbios e quantificadores pré-verbais e em interrogativas-Qu. Este facto poderá explicar os resultados, referentes a estes tipos de contextos, do grupo de falantes nativos, descritos neste artigo.
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(3) a. Alguém me escreveu / * escreveu-me uma carta
b. Todos os meus amigos me escreveram / * escreveram-me uma carta
(4) A Cláudia também / já me escreveu / * escreveu-me uma carta
(5) O João pensa que a Cláudia me escreveu / * escreveu-me uma carta
(6) a. Quem me escreveu / * escreveu-me uma carta?
b. A amiga que me escreveu / * escreveu-me uma carta chama-se Cláudia
As análises propostas na literatura para explicar as propriedades distribucionais dos
clíticos nas línguas românicas podem dividir-se em dois grandes grupos: análises que
assumem que os clíticos são projectados directamente nas suas posições de superfície
(e.g STROZER, 1976; SPORTICHE, 1996); e análises que propõem que os clíticos são
gerados em posições argumentais, sendo as suas posições de superfície derivadas por
movimento para categorias funcionais (e.g. KAYNE, 1975, 1991). A maioria das
análises sintácticas dos padrões de colocação de clíticos em EP adoptam esta segunda
perspectiva (MADEIRA, 1993; ROUVERET, 1992; MARTINS, 1994;
URIAGEREKA, 1995; DUARTE; MATOS, 2000; etc.) e assumem movimento do
clítico para um núcleo funcional (e.g. C(omplementador), em MADEIRA, 1993;
W(ackernagel), em ROUVERET, 1992; Σ [Sigma], em MARTINS, 1994; F
[Funcional/Foco], em URIAGEREKA, 1995; AgrS [Concordância de Sujeito] (no caso
de proclíticos) / AgrO [Concordância de Objecto] (no caso de enclíticos), em DUARTE;
MATOS, 2000). Os padrões de ordem específicos do EP são derivados quer da
existência de categorias funcionais que não ocorrem na estrutura frásica de outras
línguas românicas (e.g. ROUVERET, 1992) quer da presença de traços específicos nas
categorias funcionais relevantes em EP (e.g. MARTINS, 1994).
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Neste artigo, adoptaremos uma análise de movimento, assumindo que os clíticos, em
EP, são gerados em posições argumentais, alcançando as suas posições derivadas
através de uma operação de movimento. De igual modo, assumiremos que as
propriedades de colocação específicas dos clíticos em EP se podem derivar da proposta
que o EP possui determinadas propriedades funcionais ausentes em outras línguas
românicas (sejam elas núcleos ou traços funcionais). Dados estes pressupostos,
consideramos que uma investigação sobre o processo de aquisição das propriedades de
colocação dos clíticos em EP L2 poderá contribuir para uma melhor compreensão dos
modos como se desenvolve o conhecimento de propriedades do domínio funcional ao
longo do percurso de aquisição.
Clíticos na aquisição de L2 de outras línguas românicas
Existem vários trabalhos que se debruçam sobre a aquisição de L2 dos pronomes
clíticos em línguas românicas como o espanhol, o francês e o italiano (ver, entre outros,
LICERAS, 1985; LICERAS et al., 1997; DUFFIELD; WHITE, 1999; BELLETTI;
HAMANN, 2000; WHITE, 1996; DUFFIELD et al., 2002; LEONINI; BELLETTI,
2004). Em geral, estes estudos concluem que não se registam diferenças significativas
entre falantes de línguas maternas distintas, os quais apresentam um idêntico percurso
de desenvolvimento na aquisição das propriedades sintácticas dos clíticos, semelhante
ao observado na aquisição de L1 destas línguas. Este percurso caracteriza-se por um
recurso frequente a estratégias alternativas, tais como omissão do clítico ou substituição
por um SN pleno, nos estádios iniciais, com um desenvolvimento rápido dos padrões de
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colocação dos clíticos, nos estádios seguintes, com colocação dos clíticos
predominantemente em posições apropriadas.
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Aquisição de clíticos em português europeu língua materna
O percurso de desenvolvimento observado na aquisição de clíticos em PE língua
materna difere claramente do verificado em outras línguas românicas (DUARTE;
MATOS; FARIA, 1995; FROTA, 1994; MATEUS et al., 2003). Assim, ênclise é o
padrão de colocação preferido em todos os contextos até por volta dos 42 meses. Veja-
se os exemplos em (7) e (8),3 em que o pronome ocorre em posição enclítica numa frase
negativa e numa interrogativa-Qu:
(7) não chama-se nada (20 meses)
(8) porque é que foste-me interromper? (29 meses)
Próclise torna-se o padrão predominante em frases negativas e em orações subordinadas
finitas por volta dos 48 meses.
De entre as principais características observadas na aquisição de pronomes clíticos em
PE L1, destacam-se a omissão do clítico (COSTA; LOBO, 2009) – cf. exemplo (9) –,
‘leísmo’, ou seja, substituição do pronome acusativo de 3ª pessoa pela forma dativa (cf.
exemplo (10)), e duplicação do clítico, ou seja, a sua ocorrência simultânea em posição
pré- e pós-verbal (cf. (11)).
(9) o menino estava a chamar (5 anos)
(10) depois atirou-lhe # ele # para o rio (5 anos)
(11) não te engasgas-te nada! (29 meses) 3 Os exemplos nesta secção são retirados de Duarte, Matos & Faria (1995).
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Aquisição de clíticos em português europeu língua não materna
Estudos realizados com base em dados de produção e de juízos de gramaticalidade,
provenientes de aprendentes adultos de PE L2, falantes de línguas com clíticos (línguas
românicas) e de línguas sem clíticos (línguas germânicas) (MADEIRA; XAVIER;
CRISPIM, 2006; MADEIRA; XAVIER, 2009), revelam, à semelhança do que tem sido
observado na aquisição de outras línguas românicas, ausência de efeitos significativos
de influência da L1 no desenvolvimento das propriedades sintácticas dos clíticos.
Independentemente da existência ou não de clíticos nas L1s dos aprendentes, observou-
se a presença de clíticos (em posições distintas daquelas em que ocorrem pronomes
fortes), em dados de produção, desde os níveis mais elementares de proficiência,
recorrendo os aprendentes, de forma pouco significativa, a estratégias de omissão ou
substituição dos clíticos por outras formas (quer sintagmas preposicionais quer
pronomes fortes). Além disso, ao contrário do que se verifica na aquisição de PE como
língua materna, os aprendentes demonstram, desde muito cedo, conhecimento da
distinção entre ênclise e próclise, embora, nos níveis elementares, não tenham ainda
adquirido todas as condições que determinam os dois padrões de colocação e
manifestem uma preferência clara por ênclise, ao contrário do que se verifica na
aquisição de L2 de outras línguas românicas, e tal como se verifica na aquisição de
português L1.
No desenvolvimento dos padrões de colocação dos clíticos, embora se verifiquem
algumas diferenças entre aprendentes, atribuíveis à influência da L1, estas diferenças
manifestam-se sobretudo, a nível do ritmo de desenvolvimento, observando-se um
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percurso idêntico para todos os aprendentes na aquisição gradual das condições que
determinam próclise em PE (verificou-se, por exemplo, que a preferência por próclise
na presença de elementos proclisadores surge primeiro em contextos de negação).
Estes resultados são consistentes com um modelo que assume não existir transferência
da L1 no domínio funcional, sendo o desenvolvimento da gramática de interlíngua
caracterizado pela construção gradual da estrutura sintáctica (de baixo para cima) ao
longo do processo de aquisição (Hipótese das Árvores Mínimas, VAINIKKA &
YOUNG-SCHOLTEN, 1996). Assumindo a análise de Duarte & Matos (2000),
segundo a qual os pronomes enclíticos ocupam uma posição mais baixa na estrutura que
os proclíticos, prevê-se, assim, que a ênclise surja, no processo de desenvolvimento,
mais cedo que a próclise.
Questões
Neste trabalho, procuraremos investigar as seguintes questões:
(1) Quais são os padrões de desenvolvimento que caracterizam a aquisição dos padrões
de colocação dos pronomes clíticos por crianças, em PE L2?
Se as crianças apresentam um desenvolvimento paralelo ao observado em português L1,
esperaremos encontrar ênclise generalizada nos estádios iniciais, seguida de aquisição
gradual dos contextos que determinam próclise. Por outro lado, se as crianças falantes
não nativas seguem um percurso idêntico ao verificado em aprendentes adultos, prediz-
se variação nos estádios iniciais, com recurso aos dois padrões de colocação, embora
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com preferência inicial por ênclise em todos os contextos, e aquisição gradual de
próclise nos contextos adequados.
(2) Qual é o papel da L1 no desenvolvimento dos padrões de colocação dos clíticos
pronominais em crianças?
Se, ao contrário do que se observou em aprendentes adultos, se observam efeitos de
influência da L1 na aquisição de PE L2 por crianças, espera-se que o percurso de
desenvolvimento desta propriedade gramatical seja predominantemente determinado
pelas características da sua L1. Tanto em crioulo de Cabo Verde (cf. exemplo (12))
como em crioulo da Guiné-Bissau (cf. os exemplos em (13)), os clíticos de objecto
ocorrem exclusivamente em posição pós-verbal, parecendo ter uma natureza afixal.
(12) nha mai sabe ki n odja-bu onti
minha mãe sabe que 1SG ver-2SG ontem
“A minha mãe sabe que eu te vi ontem.” (BAPTISTA, 1997, p.257)
(13) a. karu yara m aja l
carro quase matar 3SG
“O carro quase o matou.” (KIHM, 1994, p.28)
b. ningin ka pudi tuji ne l
ninguém neg poder proibir 1SG 3SG
“Ninguém me pode proibir de o fazer.” (KIHM, 1994, p.164)
Tal implica que, se se verificar que as crianças falantes de crioulo manifestam uma
preferência generalizada por ênclise em todos os contextos, isso poderá ser indicativo
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quer da presença de efeitos de influência da L1 dos aprendentes quer de um percurso de
desenvolvimento semelhante ao observado na aquisição de português L1.
Para evitar esta potencial ambiguidade dos resultados, decidiu-se incluir dois grupos de
controlo, constituídos por crianças falantes de outras línguas maternas: um grupo de
falantes de línguas eslavas (russo e ucraniano) e um grupo de falantes de romeno. Tanto
o russo e o ucraniano como o romeno se distinguem do crioulo (e do PE) quanto às
propriedades de elementos clíticos. As duas línguas eslavas, por um lado, apresentam
um sistema de formas clíticas muito restrito: “Ukrainian and Russian are the only
[Slavic] languages with a ‘poorclitic’ system in that only the form by used in
Conditionals is a clitic. On a non-standard level, Russian also has weak forms of the 2
P,SG pronominal and the Dative reflexive” (RIEMSDIJK, 1999, p.83). No romeno, por
seu lado, os clíticos pronominais ocupam uma posição pré-verbal, excepto se o verbo se
encontra no gerúndio ou no imperativo positivo (14).4
(14) a. Alexandru mi- l trimite astǎzi
Alexandru cl(dat-1sg) cl(acus-3msg) envia hoje
“Alexandru envia-mo hoje.” (MONACHESI, 1998, p.100)
b. dǎ-ni- l 4 Apenas o clítico acusativo feminino singular o constitui uma excepção, sendo enclítico ao verbo lexical com formas verbais compostas contendo o auxiliar ter: a. Îl / o / ii / le văd cl(acus-3msg) / cl(acus-3fsg) / cl(acus-3mpl) / cl(acus-3fpl) vejo “Eu vejo-o/a/os/as.” b. Am văzut- o tenho visto cl(acus-3fsg) “Eu vi-a.” c. L- / i- / le- am văzut cl(acus-3msg) /cl(acus-3mpl) / cl(acus-3fpl) tenho visto “Eu vi-o/os/as.” (MARIN, 2004)
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dá cl(dat-1pl) cl(acus-3msg)
“Dá-no-lo!” (MONACHESI, 1998, p.106)
No caso de se observar uma preferência generalizada por ênclise no grupo de falantes de
crioulo, a comparação com os resultados destes dois grupos de controlo permitir-nos-á
compreender até que ponto essa preferência é determinada pela influência da L1 dos
aprendentes. Assim, se for esse o caso, esperar-se-á observar resultados distintos nos
dois grupos de controlo. Se tal não se verificar, podemos concluir que tal preferência é,
de facto, consequência do percurso natural de aquisição destas propriedades, que será
idêntico para todos os aprendentes.
O estudo
Metodologia
Participantes
Participaram no estudo 12 crianças, falantes nativas de crioulo de Cabo Verde e da
Guiné-Bissau, com idades compreendidas entre 6 e 11 anos (média de idades: 7,8), que
frequentam estabelecimentos do 1º ciclo do ensino básico em Portugal (3 crianças
frequentavam o 1º ano, 5 crianças o 2º ano, 1 criança o 3º ano e 3 crianças o 4º ano).
Todas as crianças, com excepção de duas, nasceram em Portugal e começaram a
aprender português antes da entrada na escola.
Foram também constituídos três grupos de controlo, com crianças que frequentam o 1º
ciclo do ensino básico: (1) um grupo de 12 crianças, falantes nativas de PE, com idades
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compreendidas entre 7 e 11 anos (média de idades: 9), alunas do 1º ciclo do ensino
básico (3 crianças frequentavam o 2º ano e 9 crianças o 4º ano); (2) um grupo de 4
crianças falantes de línguas eslavas (4 falantes de russo e 1 de ucraniano), com idades
entre os 9 e os 10 anos (média de idades: 9,8); e (3) um grupo de 3 crianças falantes de
romeno, também com idades compreendidas entre os 9 e os 10 anos (média de idades:
9,3).
Tarefa
Os dados foram obtidos através de uma tarefa de juízos de gramaticalidade, obtidos
através de um teste realizado online. As frases eram apresentadas apenas oralmente, e
cada frase correspondia à resposta que uma personagem (o Stitch), que estava a
aprender português, dava a uma pergunta feita por uma outra personagem, que era
apresentada como o falante nativo (a ovelha). Após ouvir a frase, pedia-se à criança que
premisse um de dois botões, consoante considerasse que a personagem estava a falar
correctamente ou não.
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Figura 1: Imagem do teste de juízos de gramaticalidade
O teste era constituído por 24 frases de teste e 26 distractores. Foram testadas 4
condições:
1. Enclítico em contexto de ênclise (N=2)
(15) Tens aí o teu rádio?
Não, deixei-o em casa.
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2. Enclítico em contexto de próclise (N=10)
(16) Hoje fizeste o trabalho de casa sozinho?
Fiz, a minha amiga não ajudou-me.
3. Proclítico em contexto de próclise (N=10)
(17) Ontem foste aos anos do Pepe?
Fui, mas não lhe dei nada.
4. Proclítico em contexto de ênclise (N=2)
(18) Este jogo é muito difícil!
Não é nada! Eu te ensino a jogar.
Resultados
Num primeiro momento, calcularam-se as percentagens globais de respostas-alvo e de
respostas desviantes, para cada um dos grupos. Foram consideradas respostas-alvo as
respostas que correspondiam à aceitação de frases gramaticais e rejeição de frases
agramaticais, e respostas desviantes as que correspondiam à rejeição de frases
gramaticais e aceitação de frases agramaticais, sendo a gramaticalidade das frases
avaliada de acordo com as regras que determinam a colocação dos clíticos nos
diferentes contextos sintácticos, na gramática do português padrão. Estes resultados são
apresentados nas figuras 2 e 3 abaixo.
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77,1%
27,8%
75%
18,8%
94,4%
38,9%
95,1%
45,1%
0%
20%
40%
60%
80%
100%
Grupo crioulo Grupo eslavo Grupo romeno Grupo nativo
Aceitação de frases gramaticais Rejeição de frases agramaticais
Figura 2: Percentagens de respostas-alvo
22,9%
72,2%
25%
81,2%
5,6%
61,1%
4,9%
54,9%
0%
20%
40%
60%
80%
100%
Grupo crioulo Grupo eslavo Grupo romeno Grupo nativo
Rejeição de frases gramaticais Aceitação de frases agramaticais
Figura 3: Percentagens de respostas desviantes
Os resultados mostram que os grupos de falantes de crioulo e de línguas eslavas não
estabelecem uma distinção clara entre frases gramaticais e agramaticais.
Independentemente do estatuto gramatical das frases, os dois grupos apresentam
percentagens de aceitação entre 72,2% e 81,2%, e percentagens de rejeição entre 18,8%
e 27,8%. Ao contrário destes dois grupos, os grupos de falantes de romeno e de
português L1 apresentam resultados distintos para os dois tipos de frases, exibindo um
melhor desempenho nos juízos de frases gramaticais que de frases agramaticais.
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Relativamente às frases gramaticais, estes dois grupos demonstram conhecimento pleno
das condições relevantes, apresentando percentagens de aceitação que rondam 95% e
percentagens de rejeição rondando 5%. Contudo, na avaliação das frases agramaticais,
ambos os grupos manifestam dificuldades. No caso do grupo romeno, a percentagem de
aceitação destas frases (61,1%) é significativamente mais elevada que a percentagem de
rejeição (38,9%). Quanto ao grupo de falantes nativos, este apresenta valores muito
próximos de aceitação (54,9%) e rejeição (45,1%).
No intuito de compreender a natureza das dificuldades observadas, procedeu-se à
análise das respostas por tipo de contexto. Abaixo, representam-se as percentagens de
aceitação de ênclise e próclise em contexto de ênclise (figura 4) e em contextos de
próclise (figura 5). Na análise dos resultados que se apresentam nas figuras 4 e 5,
considerou-se que houve aceitação de um determinado padrão de colocação se, num
determinado contexto, os informantes (1) aceitam efectivamente esse padrão (frases
gramaticais); e (2) expressam rejeição do padrão alternativo (frases agramaticais).
68,7%
31,3%
56,3%43,7%
75%
25%
85,4%
14,6%
0%
20%
40%
60%
80%
100%
Grupo crioulo Grupo eslavo Grupo romeno Grupo nativo
ênclise próclise
Figura 4: Percentagens de aceitação de ênclise e próclise em contexto de ênclise
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46,7%53,3% 55%
45%
35%
65%
32,9%
67,1%
0%
20%
40%
60%
80%
Grupo crioulo Grupo eslavo Grupo romeno Grupo nativo
ênclise próclise
Figura 5: Percentagens de aceitação de ênclise e próclise em contextos de próclise
De modo geral, todos os grupos apresentam melhores resultados em contexto de ênclise
que em contextos de próclise. A preferência por ênclise nos contextos apropriados é
significativa em todos os grupos, com excepção do grupo eslavo, que apresenta valores
muito próximos para os dois padrões de colocação. Em contextos de próclise, a
preferência por próclise é menos marcada e, no caso do grupo eslavo, não existente.
Observa-se aqui, novamente, uma divisão bipartida entre os grupos crioulo e eslavo, por
um lado, e os grupos romeno e nativo, por outro: enquanto os primeiros não parecem
estabelecer uma distinção clara entre ênclise e próclise nestes contextos, apresentando
percentagens elevadas (e com valores muito próximos) de aceitação das duas opções, os
segundos manifestam uma preferência clara por próclise (embora com valores
relativamente elevados de ênclise).
Tendo-se verificado acima que os informantes apresentam resultados distintos para as
frases gramaticais e agramaticais, procedeu-se à separação dos resultados para cada um
dos contextos. Assim, as figuras 6 e 7 apresentam os dados obtidos, para os contextos
que elicitam ênclise, através de frases gramaticais (com pronome enclítico) e
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agramaticais (com pronome proclítico), respectivamente, e as figuras 8 e 9 apresentam
os dados obtidos, para os contextos que elicitam próclise, através de frases gramaticais
(com pronome proclítico) e agramaticais (com pronome enclítico), respectivamente.
66,7%75%
100% 100%
0%
20%
40%
60%
80%
100%
Grupo crioulo Grupo eslavo Grupo romeno Grupo nativo
aceitação de ênclise rejeição de ênclise
29,2%37,5%
50%
70,8%
0%
20%
40%
60%
80%
100%
Grupo crioulo Grupo eslavo Grupo romeno Grupo nativo
rejeição de próclise aceitação de próclise Figura 6: Percentagens de aceitação e
rejeição de ênclise em contexto de ênclise (frases de teste gramaticais)
Figura 7: Percentagens de rejeição e aceitação de próclise em contexto de ênclise (frases de
teste agramaticais)
79,2%75,0%
93,3% 94,2%
0%
20%
40%
60%
80%
100%
Grupo crioulo Grupo eslavo Grupo romeno Grupo nativo
rejeição de próclise aceitação de próclise
27,5%15%
36,7% 40%
0%
20%
40%
60%
80%
100%
Grupo crioulo Grupo eslavo Grupo romeno Grupo nativo
aceitação de ênclise rejeição de ênclise
Figura 8: Percentagens de rejeição e aceitação de próclise em contexto de próclise
(frases de teste gramaticais)
Figura 9: Percentagens de aceitação e rejeição de ênclise em contexto de próclise (frases de
teste agramaticais)
É notória a assimetria entre os resultados, não se verificando uma correlação entre a
aceitação de padrões gramaticais e a rejeição de padrões agramaticais, como seria de
esperar, se estas propriedades estivessem plenamente adquiridas. Se, com frases
gramaticais, as percentagens de aceitação do padrão alvo são elevadas em todos os
grupos (mais marcadas nos grupos romeno e nativo), nas frases agramaticais, a
tendência é bem diferente. Assim, em contexto de ênclise, assiste-se a percentagens de
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aceitação elevadas de próclise em todos os grupos de aprendentes, superiores às
percentagens de rejeição, nos grupos crioulo e eslavo, e idênticas, no grupo romeno.
Apenas o grupo nativo apresenta uma percentagem elevada de rejeição de próclise neste
contexto. Em contextos de próclise, as percentagens de aceitação de ênclise são mais
elevadas que as percentagens de rejeição, em todos os grupos, particularmente no
crioulo e no eslavo. Assim, embora se observe uma tendência para aceitação de próclise
em contexto de ênclise, em todos os grupos de aprendentes, é nos contextos de próclise
que se observa uma maior oscilação entre os dois padrões, não só nos grupos de
aprendentes mas também no grupo de falantes nativo.
Uma observação mais detalhada dos resultados em contextos de próclise confirma esta
tendência, bem como a existência de assimetrias entre os quatro grupos. Os resultados,
por grupo, estão representados nas figuras 10-13 abaixo,5 onde se apresenta a
comparação entre as respostas de aceitação de frases gramaticais e de aceitação de
frases agramaticais.
70,8%58,3%
87,5%70,8%
79,2%87,5%
75%83,3% 83,3%
62,5%
0%
20%
40%
60%
80%
100%
Neg Qu- Sub Q Adv
aceitação de próclise aceitação de ênclise
75% 75% 75%87,5%
62,5%
87,5%
62,5%
87,5% 100%87,5%
0%
20%
40%
60%
80%
100%
Neg Qu- Sub Q Adv
aceitação de próclise aceitação de ênclise Figura 10: Grupo crioulo Figura 11: Grupo eslavo
5 São utilizadas as seguintes abreviaturas: Neg = contextos de negação; Qu- = interrogativas-Qu; Sub = orações subordinadas (finitas); Q = frases com quantificadores pré-verbais; Adv = frases com advérbios pré-verbais.
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100%
33,3%
100%
50%
83,3% 83,3%100%100%
83,3%
50%
0%
20%
40%
60%
80%
100%
Neg Qu- Sub Q Adv
aceitação de próclise aceitação de ênclise
100%
29,2%
95,8%
37,5%
91,7%
70,8%
95,8% 91,7% 87,5%
70,8%
0%
20%
40%
60%
80%
100%
Neg Qu- Sub Q Adv
aceitação de próclise aceitação de ênclise
Figura 12: Grupo romeno Figura 13: Grupo nativo
Uma comparação dos resultados apresentados nas figuras 10-13 revela que a elevada
aceitação de próclise, observada acima (ver figura 8), caracteriza todos os contextos
proclisadores. A seguir ao grupo nativo, é no grupo romeno que se observam os valores
mais elevados de aceitação de próclise, seguido do grupo crioulo e do grupo eslavo.
Relativamente à aceitação de ênclise, observa-se, novamente, uma divisão bipartida
entre os grupos. Assim, nos grupos de falantes de crioulo e de línguas eslavas observa-
se uma elevada aceitação de ênclise em todos os contextos que despoletam próclise. Em
alguns contextos, os valores de aceitação de ênclise excedem mesmo os de aceitação de
próclise (subordinadas e quantificadores, nos dois grupos, e interrogativas-Qu, no grupo
eslavo). Os outros dois grupos, pelo contrário, manifestam uma preferência clara por
próclise em contextos de negação, em interrogativas-Qu e em frases com advérbios pré-
verbais. Nos restantes contextos, enquanto o grupo de falantes nativos continua a
preferir próclise (apresentando, simultaneamente, uma elevada aceitação de ênclise), o
grupo romeno apresenta valores idênticos para ênclise e para próclise.
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Conclusões
A análise dos resultados descritos acima indica que, na aquisição dos padrões de
colocação dos pronomes clíticos em PE L2, as crianças falantes de crioulo apresentam
padrões de desenvolvimento distintos dos verificados na aquisição de português L1, por
um lado, e também dos observados em aprendentes adultos investigados em estudos
anteriores. Assim, ao contrário do que acontece em aquisição de português L1, estas
crianças não apresentam evidência de um estádio inicial de ênclise generalizada. Por
outro lado, ao contrário do que tem sido observado em aprendentes adultos, embora se
registe variação entre os dois padrões de colocação, não se verifica um predomínio de
ênclise em nenhum dos contextos investigados. Observou-se que, quando se considera a
distribuição dos dois padrões de colocação globalmente, os falantes de crioulo
manifestam uma ligeira preferência por ênclise em contextos de ênclise (com uma
percentagem de aceitação de 68,7%) e valores elevados de aceitação em contextos de
próclise (46,7%). Contudo, quando se consideram as frases gramaticais e agramaticais
separadamente, observa-se, em contextos de ênclise, uma aceitação de ênclise de 66,7%
e uma aceitação de próclise de 70,8%, e, em contextos de próclise, uma aceitação de
ênclise de 72,5% e uma aceitação de próclise de 79,2%.
A ausência de uma preferência marcada por ênclise parece indicar a ausência de efeitos
directos de transferência da L1. Espera-se, pois, que todos os aprendentes exibam um
percurso idêntico na aquisição destas propriedades. Tal é confirmado pela comparação
dos resultados das crianças falantes de crioulo com os dos falantes de línguas eslavas.
Considerando a distribuição dos dois padrões de colocação globalmente, os falantes
eslavos revelam uma leve preferência por ênclise tanto em contextos de ênclise (56,3%)
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como em contextos de próclise (55%). Quando se consideram as frases gramaticais e
agramaticais separadamente, observa-se, em contextos de ênclise, uma aceitação de
ênclise de 75% e uma aceitação de próclise de 62,5%, e, em contextos de próclise, uma
aceitação de ênclise de 85% e uma aceitação de próclise de 75%. Assim, o facto de os
falantes de línguas eslavas, que são línguas que possuem um sistema de clíticos
extremamente pobre, como se descreveu acima, exibirem um desempenho semelhante
ao dos falantes de crioulo, com oscilação entre os dois padrões de colocação (e com
valores ligeiramente mais elevados de aceitação de enclíticos no grupo eslavo), permite
excluir transferência de propriedades da L1. Os resultados mostram que ambos os
grupos evidenciam conhecimento da existência dos dois padrões de colocação dos
clíticos, mas a ausência de uma preferência marcada por ênclise ou próclise, observada
em todos os contextos, sugere que os aprendentes não desenvolveram ainda
conhecimento das condições e das propriedades funcionais que determinam cada um
dos padrões.
Em contraste com estes dois grupos de falantes não nativos, porém, o grupo de falantes
de romeno apresenta um desempenho próximo do dos falantes nativos, que parece
reflectir um percurso de desenvolvimento paralelo ao observado em falantes adultos.
Estes aprendentes apresentam resultados que os distinguem dos outros dois grupos de
aprendentes e os aproximam do grupo nativo, sugerindo que se encontram num estádio
mais avançado de desenvolvimento das propriedades funcionais relevantes. Assim,
considerando os resultados globais, tanto o grupo romeno como o grupo nativo
manifestam uma preferência marcada por ênclise em contextos de ênclise (com uma
percentagem de aceitação de 75%, para o grupo romeno, e 85,4%, para o grupo nativo)
e uma fraca aceitação de ênclise em contextos de próclise (35%, para o grupo romeno, e
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32,9%, para os falantes nativos). Considerando as frases gramaticais e agramaticais
separadamente, observa-se, em contextos de ênclise, uma percentagem de aceitação de
ênclise de 100%, para os dois grupos, e uma percentagem de aceitação de próclise de
50%, para os falantes de romeno, e de 19,2%, para os falantes nativos (esta é a única
diferença significativa que se observa entre os resultados dos dois grupos); em
contextos de próclise, as percentagens de aceitação são, para a ênclise, de 63,3%, para
os romenos, e 60%, para os nativos, e, para a próclise, de 93,3%, para os romenos, e de
94,2%, para os nativos. As semelhanças entre os dois grupos são confirmadas pela
análise dos contextos específicos de próclise, onde se observa, no grupo de falantes
romenos, uma aquisição gradual de próclise nos contextos adequados, com uma
preferência por próclise mais marcada em contextos de negação.
Estas assimetrias entre os diferentes grupos de aprendentes sugerem um efeito indirecto
de influência da L1, que, no caso dos falantes de romeno (uma língua que apresenta
maiores semelhanças relativamente ao PE que quer o crioulo quer o russo e o
ucraniano), poderá facilitar a aquisição e acelerar o desenvolvimento das propriedades
relevantes em PE L2.
Contudo, não é claro se as diferenças observadas entre os três grupos de crianças
aprendentes de português L2, que parecem ser condicionadas pelas suas L1s, reflectem
apenas diferenças no ritmo de aquisição ou poderão ser consequência de diferentes
percursos de desenvolvimento das propriedades sintácticas. Ao mesmo tempo, não ficou
claro, a partir da análise dos resultados obtidos, se as diferenças observadas entre o
percurso de crianças falantes de crioulo e o percurso observado em adultos, em estudos
anteriores, será consequência do factor idade ou poderá ser explicado pela influência da
L1 (uma vez que os adultos que constituíram o objecto desses estudos eram falantes de
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outras línguas maternas). Estas são questões que permanecem em aberto e que deverão
ser exploradas em trabalhos futuros.
Para rematar, é importante referir que o estudo apresentado neste artigo se deparou com
algumas dificuldades de carácter metodológico, que poderão ter contribuído para que os
resultados obtidos não tenham sido tão claros como seria de desejar. Em primeiro lugar,
por razões práticas, não foi possível determinar, de forma fiável, o nível de proficiência
dos informantes, o que constituiu um obstáculo para a avaliação da homogeneidade de
cada um dos grupos, bem como da comparabilidade dos diferentes grupos. Em muitos
casos, também não foi possível determinar a idade com que as crianças tinham
começado a aprender português e em que condições essa aprendizagem tinha decorrido,
que constituem aspectos importantes da caracterização linguística dos participantes no
estudo. Por outro lado, o facto de dois dos grupos de controlo (eslavo e romeno) serem
constituídos por um menor número de crianças levanta também algumas dúvidas quanto
à legitimidade da comparação dos resultados. Apesar destas questões metodológicas,
parece-nos que os resultados deste estudo levantam questões e sugerem pistas que será
interessante explorar em trabalho futuro.
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