Poltergeist211
POLTERGEIST: QUEM TEM MEDO DE ΦΑΝΤΑΣΜΑΤΑ? (PHLEG. MIR. 1-3 EM
CONSIDERAÇÃO)
Reina Marisol Troca Pereira Universidade da Beira Interior
[email protected]
Resumen El presente artículo contiene breves observaciones con
respecto a la mitología como elemento recurrente en la Antigüedad
Clásica. Además de suministrar realidades y acontecimientos
inauditos, la paradoxografía también nos ofrece episodios de
apariciones fantasmagóricas. Una mirada más atenta sobre Mirabilia
1-3, de Flegón, provee información relativa a fenómenos
sobrenaturales en el mundo griego antiguo. Palabras clave: muerte -
resurrección - fantasma - aparición - terror - miedo
Abstract This paper contains summarized observations regarding
mythology as a recurring presence in Classical Antiquity. Besides
the accumulation of realities and events never heard of,
paradoxography also presents episodes of phantasmagoric
apparitions. A closer examination of Phlegon’s Mirabilia 1-3
provides us with information about supernatural phenomena in the
Ancient Greek world. Keywords: death – ressurrection – phantom –
apparition – terror - fear
Revista de Estudios Clásicos 43, 2016, 211-232 ISSN 0325-0465 –
ISSN (en línea) 2469-0643
Fecha de recepción: 17/06/15 - Fecha de aceptación: 08/07/15 Esta
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Qui mori timore nisi ego? […] Vt larua intraui, paene animam
ebulliui, sudor mihi
per bifurcum uolabat, oculi mortui, uix unquam refectus sum.
(Petr. 62)
“Alguém poderia estar mais morto de medo do que eu? […] Entrei
[em
casa] como um cadáver e quase perdi a alma; o suor escorria pelas
minhas
pernas, os meus olhos estavam mortiços; dificilmente poderia ser
reavivado.”
Introdução Tomando como ponto de partida o dualismo ontológico do
ser
humano e a sobrevivência da alma (cf. Pl. Men. 81b: φασ γρ τν ψυχν
το νθρπου εναι θνατον, “diz-se que a alma humana é imortal”) após o
natural e imperioso perecimento da componente física1, importa
considerar de perto fenómenos de
1 Mediante o epicurismo, a morte é absoluta. Já outras matrizes
filosóficas, sobretudo de cariz órfico e estóico, apontam noutro
sentido. Neste âmbito, as raças divina e humana distinguem-se,
desde logo, pelo facto de a primeira ser imortal (cf. θνατοι) e a
segunda corresponder aos mortais (θνατοι/ βρτοι), pese embora a
existência de formas de garantir a imortalidade possível para um
ser humano (e.g. ρετ. Vd. κλος φθιτον, “glória imperecível”, Il.
9.412-416). Cf. h.Cer.11: θαντοις θεος | θνητος νθρποις, “deuses
imortais | homens mortais”. E, na realidade, ainda que o período de
vida possa ser mais ou menos dilatado, o seu fim é imperiosamente
(cf. Pi. O. 1.82) equitativo, abrangendo todos os sexos, idades,
condições sociais, riqueza, cultura (cf. μς παντες: Pi. I. 7.42; D.
258), enquanto forma de pagamento de uma dívida ancestral contraída
pelos antepassados titânicos, em virtude do desmembramento de
Zagreu/Diónisos (cf. OF 320; A. fr. 228 Radt)
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poltergeist2, no âmbito das culturas da Antiguidade Clássica3. Em
continuidade, ganha pertinência também a temática da ressurreição4,
mesmo antes do advento do paradigma judaico-
e herdada pelos descendentes humanos, conforme referem autores a
exemplo de Platão (Men. 81b: ποιν παλαι. Cf. Opp. H. 5.4-7).
Importa, ainda assim, considerar o ciclo nascimento-vida-morte sob
matrizes órficas, substituindo- se por OF 463: βος, θνατος, βος |
λθεια | Δι(νυσος, “Vida, morte, vida | verdade | Diónisos
[renascido. Cf. πλιν γγνεσθαι], donde a realidade tradicionalmente
apelidada de ‘morte’ poder entender-se como uma utopia da vida,
correspondendo a uma etapa de libertação, verdade (λθεια. Cf. Pl.
Phaed. 65b), felicidade (εδαιμονα), uma vez ultrapassada a fase
marcada por simulacro, dolo, contingência (cf. Heracli. fr. B 62) e
aprendizagem a partir de múltiplos sofrimentos advenientes da τχη
(cf. πθει μθος, A. A. 177, 928-929; S. OT 1528-1530). Eis, por
conseguinte, as afirmações de autores como E. fr. 833 Kannicht: τς
δ οδεν ε ζν τοθ κκληται θανεν, | τ ζν δ θνισκειν στ; “Quem sabe se
a vida não é morte e a morte não é vida?” Cf., no mesmo sentido,
Pl. Grg. 493a; E. fr. 638 Kannicht, fr. 833 Kannicht. Vd. Biles
(2006-2007); Henrichs (2010); Zeitlin (1991); Jaeger (1959). Cf.
Rudhardt (1991); Segal (1989); Henrichs (2011). 2 Vd., em termos
linguísticos, aparições - εδωλον -()εδος, ‘forma’, εδω, ‘ver’,
perf. οδα – subst. ψις; εδομαι, ‘parecer’; ψυχ, σκι, νδαλμα, φσμα /
φντασμα. Cf. φω, φανω, ‘ver’ / monstrum, manes, umbra, effigies,
simulacrum, imago. Cf. Dodds (1951). 3 Cf. Dodds (1971); Dingwall
(1930). 4 A ressurreição detém um estreito laço, por um lado, com
concepções de imortalização da alma; por outro, com ideologias
órficas, pitagóricas e a suposição de um ciclo de três episódios
evolutivos de reincarnação/transmigração da alma, conforme expõe
Píndaro (fr. 133); por outro ainda, em certa medida, com o
evemerismo. Considere-se, a propósito da ressurreição, no cenário
clássico, Hdt. 4.13-16, 94-96; Pl. Chrm. 156d; Apollon. Mir. 2.2,
relativamente à ressurreição de Zalmoxis, episódio que justifica o
paralelismo com Jesus. Cf. Orígenes, Contra Celsus 2.55, face à
compreensão de milagres (cf. Apolónio de Tiana) e o processamento
de alguns mirabilia hagiográficos. A reaparição ou resgate (cf. Ar.
Ran.) inclui figuras lendárias (e.g. Er: Pl. R.10.614–10.621) /
mitológicas ficcionadas (e.g. Eurídice: Apollod. 1.3.2) e outras
reais (e.g. Nero: Tac. Hist. 1.2, 2.8; Suet., Nero 57. Para outros
casos, vd. Plin.; Plut.). As alegadas ‘ressurreições’ admitem um
maior entendimento da morte enquanto
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cristão. Na realidade, o topos revela extrema ambiguidade, quando
se procura delimitar, face a crenças/religiosidade (viz.
cerimónias5 necromânticas/místicas/propiciatórias6 a figuras/
entidades ctónicas. Cf. Invocação de Dario, A. Pers. 681-693);
oráculos (cf. Hdt. 5.92g.2: νεκυομαντεον); fraudes; receios;
remorso; justiça; oportunismos. Ademais, fica sem resposta cabal a
questão de saber se existiram de facto tais fenómenos, ou se os
eventos reportados não passariam de mera ficção7, em
mudança de lugar, donde a ‘morte’ infligida a deuses (entidades à
partida imortais) como Úrano e Crono, relegados para o Tártaro;
Zagreu/Diónisos. De considerar, então, na ficção novelesca,
renascimentos devidos a taumaturgos, uns ficcionados, outros
considerados reais, cujo impulsionamento se atribui ora a
divindades (cf. Asclépio: Apul. Fl. 19; Orígenes, Contra Celsum
3.24), ora a médicos/curandeiros/ervas (Cf. a propriedade de certas
ervas, Plin. HN 25.5.14. E.g. Palaeph. 26. Cf. Ísis: D.S. 1.25). De
realçar que vezes houve em que o preço de uma vida implicava outra.
Assim, Alceste, por Admeto: E. Alc.; os Dióscoros: Plin. H.N.
2.5.17. De igual modo, contam-se particularidades étnicas, como
apresenta, outrossim, D.L. prlg 9: κατ τος Μγους φησ τος νθρπους κα
θαντους σεσθαι, κα τ ντα τας ατν πικλσεσι διαμενεν. τατα δ κα
Εδημος διος στορε. “[Teopompo] afirma, a propósito dos Magos, que
irão viver numa vida futura e serão imortais e que o mundo
aguentará graças às suas invocações.” Ficará por saber até que
ponto relatos desta natureza corresponderiam a um gosto
generalizado da audiência, ou implicariam também crença. Importará,
então, constatar relatos de animais que ressuscitam (e.g. Plut. De
sollertia animalium 973e-974a), assim como as dúvidas e ironia que
a ressuscitação desencadeia. Cf., com cariz religioso, o conceito
de ‘reincarnação’ (cf. metempsicose). Vd., neste sentido, Petron.
140. Vd. Beagon (1992); De Jong (1997). 5 Vd., na Cultura Grega,
cerimónias como Anthesteria; na Cultura Romana, Lemuria, a título
meramente ilustrativo. 6 Cf. Considerações respeitantes a lapis
manalis, a pedra colocada sobre um fosso repleto de milho, em
homenagem aos mortos, levantada três vezes no ano. A. Ch. 1. Cf.
Cic. Tusc. 1.16. 7 Cf. Pl. R. 2.381e, a respeito das criações
fantasmagóricas efectuadas por poetas. Para a discussão, cf., a
título exemplificativo, Cássio, o epicurista vs. Bruto: Plu. Brut.
37.1.
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alguns casos com interesses e aproveitamento literário8. A
literatura conserva notícias de diversos tipos de aparições,
supostamente a título (pseudo-)histórico. Eis, pois, a manifestação
da alma de Agripina diante do seu filho Nero (Suet. Nero 34; Apul.
Met. 9.31). Ainda que presente na literatura mais recuada, a
exploração do maravilhoso9 acentua-se de forma particular com a
paradoxografia (cf. παραδοξολογω, ‘contar maravilhas’). Nos
diversos períodos conhecidos no desenvolvimento do género10 criado
no séc. III a.C., constata- se a importância da colonização grega
desenvolvida no
8 Considere-se o topos utilizado como expediente numa trama
literária, Pl. Most. 497-504. Do logro criado pelo escravo Tranião
(Pl. Most. 497-504) importa reter os efeitos causados pela
aparição. Cf. os modelos gregos autores de obras intituladas Φσμα
(vd. Lat. Mostellaria: mostellum - ‘spectrum’; dim. monstrum -
mo(n)strellum –aria), designadamente , Menandro, Teogneto, Filémon.
Facto é que o motivo literário da ‘casa abandonada assombrada’ é
explorado em diversos autores (e.g. Plut. Cim. 1.6; Sueton. Aug. 6;
Luc. Philops. 30-31). 9 Vd. Considerando o espólio literário da
Antiguidade Grega hodiernamente disponível, o testemunho mais
vetusto com o termo ‘paradoxógrafo’ pertence ao bizantino Tzetzes
(H. 2.151), aludindo a Antémio de Trales: Ανθμιος μν πρτιστον,
παραδοξογρφος. Uma sumária observação linguística permite, desde
logo, posicionar o campo semântico da literatura do maravilhoso -
παρδοξος (‘incrível’, ‘inesperado’, ‘contra a δξα maioritária’) -
παραδοξολογα (vd. Aeschin. 72.14; Plb. 3.47), παραδοξολογω (vd.
Str. 626), no oposto a νδοξος (‘esperado’. Cf. Pl. R. 472a). Em
termos semânticos, o género serve-se de termos como: θαμα
(‘assombro’); παρδοξος; πιστος (‘incrível’. Cf. lat.
Mirabilia/Admiranda), διος (‘peculiar’); τερατδης, (τρας/
monstrum); περιττς; ξιος (vd. θης ξιος, λγου ξιος, μνμης ξιος). 10
Na Antiguidade, a paradoxografia contou com diversos autores,
muitos dos quais votados ao anonimato ou ocultos na
pseudoepigrafia, cujas obras, na sua maioria, se perderam, tendo
chegado a sua notícia através de fragmentos e (ou) informação de
forma indirecta, em manuscritos medievais. Cf. Schepens - Delcroix
(1996); Giannini (1964).
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Mediterrâneo, c. VIII a.C., e da historiografia jónia11. Assim, a
sequência das conquistas de Alexandre Magno, o confronto com novas
realidades e experiências (viz. espaços, rios, plantas, animais,
pedras, meteorologia, etnografia), muitas das quais sem explicações
fornecidas pela ciência, nas mais diversas áreas, conduz a um
reequacionamento de posições que torna cada vez mais difícil a
delimitação entre os domínios de factualidade e ficcionalidade12.
De facto, a paradoxografia configura um espaço de compromisso entre
mito e razão. Por conseguinte, num período histórico marcado por
curiosidade, exotismo, estranheza e assombro face ao conhecimento
de novas realidades assiste-se ao avolumar de opiniões, informações
e justificações pseudo-científicas, donde o fulgor literário de
topoi fantásticos e a aproximação a outras áreas, como novelística,
literatura periégica; historiografia, filosofia; etnografia;
ciências da natureza. Neste sentido, não se assiste à abolição da
mitologia13, mas antes à divulgação certificada14 de
11 Dos vários os momentos possíveis de demarcar numa análise da
paradoxografia da Antiguidade, vejam-se o século III a. C.; depois,
o período dos séculos III/II a. C.; também os séculos II/I a.C.; e
ainda o período Imperial - 27 a.C. – 565 d.C. 12 Confrontem-se
considerações reducionistas ao ponto de julgarem a complexa e
multifuncional realidade mitológica como mera confabulação,
defendendo uma dicotomia entre mythos/ ψευδς (‘falso’) e λγος
(‘razão. Cf. sentido no séc. V a.C.) / λθεια (‘verdade’). Cf.,
neste âmbito, Pl. Grg. 523a. Vd. Gabba (1981); Pajón Leyra (2012).
13 Cf. Miller (2014). 14 Ora, os paradoxógrafos assumem-se como
fontes segundas, o mesmo equivale a afirmar, compiladores de
aspectos alheios alegadamente vivenciados e reportados por outros
(donde o recurso a formas declarativas como φησ, φασ, λγει,
λγεται), trabalho que se inscreve no domínio dos catálogos, ditos e
anedoctas alexandrinistas, recolhidos no período helenístico. Vd.
Jacob (1983); Schepens-Delcroix (1996). Para a actividade
dos pseudógrafos, cf. συναγωγ, ‘recompilação’ (e.g. ριστοτλους
συναγωγς, ‘Recompilação de Aristóteles’ – vd. Arist. HA 9); κλογ,
‘selecção’. Ora, a distinção entre
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realidades e eventos, bem como a tentativas de racionalização de
histórias tradicionais mitológicas/mirabilia (cf. logografia)15,
sob uma égide de verosimilhança/plausibilidade (e. Palaeph. 2: Τ δ
ληθς χει δε, “A verdade da questão é a seguinte”), que a mais não
correspondia do que a apresentações de outras
leituras/interpretações sobre os mesmos aspectos e até, sobretudo
no período Helenístico, a compilações.
De tudo isto, certo é o assombro e o receio extremo que as
aparições desencadeavam, ao ponto de se julgarem tais reacções como
fruto de cobardice (cf. Thphr. Char. 16.1-2: μλει δεισιδαιμονα
δξειεν ν εναι δειλα πρς τ δαιμνιον, “Seguramente, a superstição
parecerá cobardice face ao sobrenatural”). Os retratos são comuns e
transversais, quer em tempo, quer em domínios culturais (viz.
cultura grega e cultura romana). De facto, a experiência do
sobrenatural deixava fortes marcas físicas e psicológicas, conforme
atesta, a título ilustrativo, o retrato de Petrónio que serve de
epígrafe ao presente artigo. A sua atitude desencadearia o
comportamento do seu hóspede soldado, que considerou tratar-se de
um lobisomem, não obstante reclamar a veracidade dos factos (ego si
mentior, genios uestros iratos habeam, “que todos os teus anjos me
punam, se estiver a mentir”).
Ora, embora tais histórias advenham frequentemente de rumores e se
inscrevam no folclore tradicional, em certos casos, porém,
aventam-se depoimentos que presenciaram; convida-se à autópsia;
constata-se a afirmação do testemunho presencial
ambos os termos parece ter-se dissipado. Julgue-se pois, a título
de exemplo, Antig. Mir. 60. Apesar de o paradoxógrafo em causa
apresentar a sua obra como κλογ, o título constante no manuscrito
Pal. Gr. 398 refere-a como συναγωγ: Ιστοριν παραδξων συναγωγ,
Compilação de Histórias Admiráveis. 15 Cf. Hawes (2014).
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por parte do autor (e.g. Phleg. Mir. 35: ε τις πιστε, δναται
στορσαις, “quem for céptico pode examinar pessoalmente”), com
finalidades de índole retórica e de credibilização16.
Se há casos que denotam a procura de almas por parte de alguns
sujeitos, cuja valentia lhes assegura heroicidade, como
exemplificam Ulisses e Eneias, nas suas catábases17; outros há que
decorrem de invocações e até configuram actividades sociais,
a
16 De facto, também os autores do género paradoxográfico demonstram
cuidados face ao antagonismo generalista de tradicional
mythos/logos. Considerando a recepção desses dois vectores, um
apontamento paradigmático relativamente ao fantástico surge no
Prefácio de Περ πστων, Sobre fenómenos inacreditáveis, de Paléfato.
Reconhecem-se, nesse escrito, duas posições face ao mito,
distinguindo, por um lado, indivíduos crédulos e pouco científicos,
que acreditam nas histórias tal qual lhes são apresentadas e, no
oposto, com mais experiência e saber, os que não conferem
factualidade aos mitos. Porém, Paléfato apresenta ainda uma
terceira hipótese, transformando a questão num problema filosófico.
Parte do princípio icónico dos mitos (nihil ex nihilo), cujo
aparecimento tivera origem em factos históricos (histórias e
factos/trabalhos – λγοι/ργα) e (ou) em nomes (νματα), transmitidos
e conservados de forma deturpada pela repetição, uso e tempo.
Tratar-se-ia, pois, de uma linguagem enigmática capaz de preservar
a memória de certos eventos, fazendo uso da imaginação e do
fantástico e apelando para a descodificação, ultrapassando
interpretações literais. Assim, em todas as histórias convém
efectuar um exercício de exegese, de forma a perceber a mensagem
velada. A ideia é constante e preserva-se em épocas posteriores, já
no âmbito do período judaico-cristão (e.g. Plut. 8.8.3: τοτοις
λλνων γ τος λγοις ρχμενος μν τς συγγραφς εηθας νεμον πλον, ς δ τ
ρκδων προεληλυθς πρνοιαν περ ατν τοινδε λμβανον: λλνων τος
νομιζομνους σοφος δι ανιγμτων πλαι κα οκ κ το εθος λγειν τος λγους.
“Quando comecei a escrever a minha história, estava inclinado a
considerar estas lendas como absurdas, mas, ao chegar à Arcádia,
ganhei um maior apreço por elas, que é este: nos antigos tempos os
que eram considerados sábios entre os gregos expunham os seus
dizeres não de forma directa, mas por enigmas.”). Vd. Pajón Leyra
(2012); Sanz Morales (1999). 17 Cf. Tirésias em Od. 11.134-137;
sombra de Anquises, Verg. A.4.351-353, 5.722-739.
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julgar pelos sacerdotes18; outros, encontros, que, todavia, tentam
evitar-se o mais possível. Na realidade, em todo o caso, constata-
se a violação invasiva de espaços por entidades que não lhes
pertencem19. E não obstante o antropomorfismo reconhecido às almas,
extensivo a aspectos como atitudes, voz, roupas; a falta de
substância física, o seu retrato vulgarizado enquanto figuras
escuras e tenebrosas (cf. Paus. 6.6.11: χραν τε δεινς μλας κα τ
εδος, “negra em cor e medonha em aparência”), bem como a ignorância
e receio natural face ao desconhecido (Pl. Ap. 29a-b), reforçados
pelo tradicional negativismo homérico (Pl. R. 3.386) justificam o
terror experienciado.
Aparições: ecos literários Regra geral, as almas eram descritas
como espíritos perturbados
à procura de reparação/direitos (honras/celebração20,
funeral,
18 Cf. também oráculos; sinais; experiências de quase-morte (cf.
Mito de ER, Pl. R. 10.614-10.621); sonhos (e.g. A. 2.270-279. Entre
sonhos e epifanias. Vd. espírito de Siqueu, A. 1.355),
frequentemente interpretados como maus omina (considere-se, a
propósito, a ligação entre Thanatos, ‘Morte’, e Hypnos, ‘Sono’).
Assim, exemplificando, a interpretação de profetas, face à figura
feminina que surge em sonhos a Ulisses, segundo Díctis de Creta
(6.14). De facto, todos se encontram sujeitos a tais perturbações,
como demonstra Ausónio, Cupido Cruciatus com a aparição (onírica)
de heroides atormentadas e castigadoras de Cupido. Vd. Felton
(1999). 19 Acerca do mundo ctónico, cf. Il. 23.100: κατ χθονς.
Considerem-se o Hades; as Ilhas dos Bem-Aventurados (Νσοι των
Μακρων); o paraíso Elísio; Tártaro/Orco. Este apresentava-se como o
último local de castigos, situado sob o Hades, albergando figuras
divinas, como os Titãs, Úrano, Crono, assim como demónios e
monstros, como Tífon; e figuras humanas votadas a suplícios
eternos, a exemplo de Tântalo, Ixíon, Sísifo (cf. Pl. Grg. 523b).
Os heróis não empreendiam catabaseis a esse domínio. Vd.
Sourvinou-Inwood (1981); Calvo Martinez (2000). 20 Nem sempre a
aparição do espírito reclamava honras pessoais. Casos houve que
reportam arrependimentos e reparações. Cf. Paus. 9.23, a propósito
da
Poltergeist: Quem tem medo de φντσματα? (Phleg. Mir. 1-3 em
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justiça). Surgem retratadas como sombras negras, com vestes pretas
(Paus. 6.6.11), por vezes com marcas físicas (Il. 23.64)21. Outros
fenómenos reportados resumem-se apenas a sons (Paus. 1.32.4. Cf.
Luc. Pharsalia 1.568, 569: gemuerunt ossibus urnae; fragor
armorum), o que, aliás, corresponde ao sentido da designação
relativa a recontos de fenómenos sobrenaturais -poltergeist-
‘espírito ruidoso’22. E se a visão é tenebrosa, a ausência de
qualquer imagem, num ambiente por norma escuro adensa a imaginação
e, com ela, o pavor.
Resta, pois, constatar se as aparições conferem credibilidade a
versões tradicionais, traduzindo a infelicidade das almas presas no
escuro Hades, surgindo no mundo dos vivos, por vezes de forma
recorrente, enquanto espíritos malignos (cf. λστωρ, ‘espírito mau’,
A. Pers. 354). Tão atormentados quão atormentadores (cf. And. 1.30;
Luc. Pseud. 21), mostram-se plenos de inveja/ressentimento (Luc.
DMort. 29), denotando saudosismo e (ou) sentido justiceiro, por
vezes aconselhando rectificação (face a faltas/crimes)23; noutras
ocasiões até clamando
imagem de Prosérpina, recorrente nos sonhos de Píndaro, reclamando
o facto de nunca ter sido celebrada nos seus poemas. Após a sua
morte, uma década depois, o espírito do poeta teria encarnado numa
velha parente, a recitar um hino a Prosérpina. 21 Na generalidade,
os espíritos apresentam-se com imagem física do falecido no momento
do óbito. Sem corpo, os sinais de envelhecimento e degeneração não
progridem. 22 O cenário mais comum para aparições escolhe a solidão
do ‘agraciado’; a falta de luz e ruídos (Cf. Plut. Cim. 1.6 φωνς
ταραχδεις; Paus. 9.38.5; Luc. Philops. 15). 23 Para melhoe
entendimento, veja-se o fantasma (εδωλον) de Clitemnestra, figura
sedenta de justiça reributiva, acordando as Erínias para a
perseguição do seu filho Orestes, pelo seu assassinato, A. Eu.
94-139. Cf. Stesich. fr. 219 PMG, A. Ch. 549-550, E. Or.618. Cf.
Cic. Div. 1.27; Cass. 68. 25; Apul. Met. 8.8.
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reposições (e.g. honras fúnebres)24 - justiça cósmica (por vezes
com contornos de vingança - e.g. Liv. 3.58.11: Virginia). Ademais,
contam-se relatos de actos maléficos perpetrados por algumas almas
(e.g. Paus. 6.6.8, a propósito do espectro de um companheiro de
Ulisses, em Temesa)25. As aparições perniciosas não se limitavam a
errar apenas sobre os túmulos dos mortos (Phaed. 81d), o que alarga
os locais de possíveis manifestações, os seus motivos e a ocasião.
Queda por apurar, de forma
24 Considere-se, a título ilustrativo, a exigência de honras
fúnebres por parte de Pátroclo a Aquiles (Il. 23.65-92). Entre
outras solicitações, cf. a manifestada pela sombra de Aquiles (E.
Hec. 35-41), pedindo o sacrifício de Políxena, enquanto prémio pela
sua time guerreira e evitando ventos necessários à navegação, qual
Atena esquiliana. No caso, a informação provém de uma fonte
privilegiada, designadamente de outro espírito - Polidoro, a pairar
sobre a sua mãe: πντες δ χαιο νας χοντες συχοι θσσουσ π κτας τσδε
Θρκας χθονς: Πηλως γρ πας πρ τμβου φανες κατσχ χιλλες πν στρτευμ
λληνικν, πρς οκον εθνοντας ναλαν πλτην: ατε δ δελφν τν μν Πολυξνην
τμβ φλον πρσφαγμα κα γρας λαβεν.
(Entretanto, todos os Aqueus permaneciam ociosamente nas costas da
Trácia, porquanto o filho de Peleu, Aquiles, apareceu por cima do
seu túmulo e fez parar todo o exército da Grécia, quando estavam
para retornar a casa pelo mar, requerendo a minha irmã Políxena
como oferta junto ao seu túmulo, como recompensa). Cf., para as
mesmas exigências em testemunhos literários tardios, Dares da
Frígia, De Excidio Trojae Historia 27, 30, 34, 41, 43; Díctis
Cretense, Ephemerides belli Trojani 3.2. Vd. S. Papaioannou 2007.
25 Cf, outrossim, Apul. Met. 9.29-30, a propósito de ‘magia negra’.
Vd. ainda casos de pessoas possuídas por espíritos (vd. evidências
miasmáticas), como acontece com o filho de uma mulher, possuído
pelo espírito de um homem falecido havia já três anos, porém,
ressentido com o novo matrimónio da esposa (Philost. VA 3.38).
Justificam-se, consequentemente, cerimónias (e.g. Festival Romano
de Pales) e rituais de purificação (februa, Ov. Fast. 2.19-28). Cf.
Fowler (1911); Burriss (1931); Luck (2006); Burkert (1985); Faraone
(1991); Ogden (2002); Mudry (2004).
Poltergeist: Quem tem medo de φντσματα? (Phleg. Mir. 1-3 em
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absoluta, a existência de correlação entre mortes violentas (cf.
Ov. Fast. 2.503) e as almas que se manifestam, envergando, na
generalidade, marcas dos ferimentos contraídos, que acentuam o
carácter horrendo e tenebroso dos espectros (Il. 23.64. Vd.
Aparição onírica de Heitor a Eneias, A. 2.270-279; de Siqueu a
Dido, A. 1.353-356). Ainda assim, fica patente, nessas almas, a
incapacidade de total abnegação do mundo sensível, em termos de
(res)sentimentos, posses e de acontecimentos, o que denuncia um
fluxo de comunicabilidade e continuidade entre esferas, num aporte
cumulativo sempiterno de culpas e castigos26.
Cultura Fantasmagórica em Flégon Traliano Conferindo prosseguimento
ao topos do fantástico sobrenatural,
o escravo liberto letrado do circuito de Adriano, século II, Flégon
de Trales27 disponibiliza três histórias de cariz novelesco28,
na
26 De facto, a tradição conserva a preservação de ressentimentos
pelas almas, no mundo ctónico (e. g. Dido, Verg. A. 450-476; Ájax,
Luc. DMort. 23 Fowler). 27 Cf. φ 527: Φλγων, Τραλλιανς, πελεθερος
το Σεβαστο κασαρος, ο δ δριανο φασιν: στορικς. γραψεν λυμπιδας ν
βιβλοις ις’ <an ιε’>: στι δ μχρι τς σκθ’ λυμπιδος τ πραχθντα
πανταχο: τ δ ατ ν βιβλοις η’: κφρασιν Σικελας, Περ μακροβων κα
θαυμα- σων, Περ τν παρ ωμαοις ορτν βιβλα γ’, Περ τν ν μ τπων κα ν
πικκληνται νομτων, πιτομν λυμπιονικν ν βιβλοις β’, κα λλα. “Flégon
de Trales, liberto de Augusto César, mas alguns dizem de Adriano:
historiador. Escreveu Olimpíadas, em 16 livros. Até à 229ª
Olimpíada, contêm tudo o que se fez em todos os lugares. E isto em
8 livros: Descrição da Sicília; Sobre pessoas maravilhosas de longa
vida; Sobre festins dos Romanos, 3 livros; Sobre lugares em Roma e
os nomes por que são apelidados; Epítome de vencedores Olímpicos,
em 2 livros, entre outras obras”. Estas informações reproduzem uma
notícia um pouco mais desenvolvida por parte de Phot. 97, autor que
se confessa leitor da obra de Flégon, que teria sido dedicada a
Alcibíades, um guarda do Imperador Adriano. Vd. Fein (1994). Cf.
Hansen (1996). 28 Cf. Influência futura para autores como Goethe,
Die Braut von Korinth.
Reina Marisol Troca Pereira
223
sua obra Περ Θαυμασων, Sobre Maravilhas. Embora subsista apenas por
via de um escrito truncado logo na secção inicial do codex unicus
(Codex Palatinus Graecus 398, fol. 216r-236r, séc. IX, por escribas
de Constantinopla), tal não parece ter grandes implicações para a
compreensão generalizada da história29.
Não tendo implementado inovações de realce, Flégon dá continuidade
a elaborações similares30, umas divulgadas com o mesmo título31,
outras dispersas na literatura, o que denuncia
29 A obra estrutura-se em diferentes categorias de thaumata,
transgressoras de limites naturais (e.g. vida/morte; sexo, raça),
designadamente pessoas novas que retornam à vida (1-3);
hermafroditas e mudanças de sexo (4-10); ossadas de grandes
dimensões (11-19); nascimentos fora da normalidade (20- 21,
25), descendência humana animalesca (22-24); gestações masculinas
(26- 7); nascimentos múltiplos (28-31); envelhecimento (32-33);
centauros (34- 35). Para uma maior credibilização, o autor apela a
confirmações pessoais e alude a diversas autoridades literárias,
como Antígono, Antístenes, Apolónio ( γραμματικς), Dicearco,
Doroteu, Eumaco, Hesíodo, Hipóstrato, Calímaco, Clearco, Crátero,
Megástenes, Teopompo. 30 Considerem-se autores próximos, em termos
temporais, como Plin. 7.27. Numa missiva a Sura, Plínio comenta a
respeito da credibilidade a conferir a aparições espíritas. Para
tanto, reporta três histórias distintas. Com tonalidades distintas,
verifica-se o aumento do horror nos topoi recorrentes arrolados e
da creditação das fontes, evoluindo desde ‘profecias de morte’ num
cenário pacífico, com uma bela aparição feminina a Curtius Rufus,
de início governador a África; passando pelo motivo da ‘casa
assombrada’, situação resolvida de forma mais racional e destituída
de emotividade supérflua, por um filósofo recém-chegado -
Atenodoro. Por fim, sem dúvidas passíveis de colocar- se
relativamente às fontes de informação e quiçá para proveito
pessoal, aproveitando a credibilidade já instaurada no espírito dos
ouvintes, o episódio com um escravo seu, que lhe terá valido um
processo. Cf. Westermann (1839); Stramaglia (1995); Stramaglia
(2011); Brodersen (2002). 31 Cf. Antígono de Caristo, Θαυμσια;
Aristandro, στοραι θαυμσιαι; Mónimo, Θαυμασων συναγωγ; Fílon de
Heracleia, Περ θαυμασων; Ps.-Aristóteles Περ θαυμασων κουσμτων;
Arquelau de Quersoneso, Πeρ tν θaυμasων; Apolónio, Mirabilia
/ Historiae Mirabiles. Vd. Lanza- Longo (1989); Vanotti
(1981).
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um gosto32 por uma secção do âmbito do fantástico caracterizada por
assuntos tétricos, assombrosos e macabros.
No conto inicial33, expõe-se uma história de fantasmas, à
semelhança de outras, reportadas por autores como Hierão de
Alexandria ou de Éfeso, a propósito da Etólia, conforme indica
Flégon. Em grande parte testemunhada presencialmente pelo autor,
verifica-se a repetição de uma morte, como se o acto estivesse
sujeito a repetição (cf. τοσατα εποσα παραχρμα γνετο νεκρ ξεττατ τε
π τς κλνης μφανς τ σμα. “Logo após dizer estas palavras, morreu e o
seu corpo ficou estendido sobre a cama.”), e também do sofrimento e
dos rituais
32 Cf. Phot. Bibl. 130. Embora se refira a Flégon num outro
capítulo (97), é relativamente a Damáscio de Alexandria que alude a
obras versadas sobre o fantástico e ao deleite que podia fruir-se
com esse tipo de literatura: νεγνσθη Δαμασκου λγοι δ’, ν μν πρτος
πιγραφν χει περ παραδξων ποιημτων κεφλαια τνβ’, δ δετερος παραδξων
περ δαιμονων διηγημτων κεφλαια νβ’, δ τρτος περ τν μετ θνατον
πιφαινομνων ψυχν παραδξων διηγημτων κεφλαια ξγ’, δ τταρτος κα
παραδξων φσεων κεφλαια ρε’. ν ος πασιν δνατ τε κα πθανα κα
κακπλαστα τερατολογματα κα μωρ κα ς ληθς ξια τς θετητος κα
δυσσεβεας Δαμασκου, ς κα το φωτς τς εσεβεας τν κσμον πληρσαντος,
ατς π βαθε σκτ τς εδωλολατρεας κθευδε.
(Li uma obra de Damáscio, em quatro livros, o primeiro dos quais,
com 352 capítulos, intitulado Acerca de Acontecimentos Incríveis; o
segundo, com 52 capítulos, Acerca de Incríveis Recontos de
Demónios; o terceiro, com 63 capítulos, Sobre Inacreditáveis
histórias de Almas aparecidas após a Morte; o quarto, com 105
capítulos, Sobre Inacreditáveis Aspectos Naturais. Continham todos
recontos impossíveis, inacreditáveis, monstruosidades, feitos de
insensatez, como se fossem verdades, dignos do homem ateu e ímpio
que foi Damáscio, o qual, quando a luz da piedade alumiava o mundo,
se escondeu sob a profunda treva da idolatria). Cf.
Schepens-Delcroix (1996); Stramaglia (2006). 33 Cf. Procl. in R.
2.115-116.
Reina Marisol Troca Pereira
225
associados. Exposta fica a inadequação de atitudes manifestada
pelos progenitores, desde falta de parcimónia, respeito por regras
e repetição de faltas. Na realidade, as almas que aparecem, ainda
que não detenham necessariamente essência divina, nem poderes
absolutos, apresentam-se com permissão dos novos senhores ctónicos,
aos quais passaram a obedecer (cf. alegada ‘permissão divina’: ο γρ
νευ θεας βουλσεως λθον ες τατα. “É que não foi sem existir vontade
divina que eu vim até aqui.”).
O cenário doméstico apenas é perturbado por atitudes descontroladas
(vd, ama, pais). De outra forma, um romance amoroso correspondido.
Apenas quando o caos ditado pela consciência e entendimento
racional sobre os factos se implementa, surge uma carga negativa de
sentimentos intolerável: assombro, terror, curiosidade,
estranheza/anormalidade. Assim se tolda a ‘normalidade’ em
‘anormalidade’: é a alma de um morto que convive no mundo dos
vivos, dando largas a desejos eróticos desmedidos, incontrolados e
desviantes. A história depara-se com elementos recorrentes, tais
como a pouca iluminação; a incredibilidade; as reacções (vd.
Cárito, mãe da jovem - soltou um grito, rasgou as roupas, retirou a
touca da sua cabeça e caiu no chão sem palavras e em pânico com a
aparição); o secretismo34; a necessidade de confirmação. No que
respeita ao espectro, a jovem (Filínion) mantinha feições e roupas,
aliás reconhecidas por Cárito, bebia comia, o que se completa uma
cena de anagnorisis, proporcionada por uma inversão do topos
tradicional - é a jovem que deixa ao hóspede (Macates) elementos
facilitadores do seu reconhecimento (anel de ouro,
34 Cf. Parténio, ρωτικ Παθματα (2: Polimela, 5: Leucipo, 17:
Periandro; 31: Dimetes, 35: Eulímene). Considere-se, na literatura
Romana tardia, o mito de Cupido e Psique (Apul. Met. 4. 28 - 6.
24)
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consideração)
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cinta de peito), qual retorno de um filho pródigo. O desengano,
todavia, acarreta a sofrida reposição dos factos: a morte da jovem
(re)ocorre; os elementos de anagnorisis outrora facultados pelo
hóspede à sua amada são vistos no túmulo (anel de ferro , copo
dourado de vinho); o relacionamento amoroso termina de forma
trágica (suicídio do amado) e realizam-se rituais fúnebres a
conselho do profeta Hilo (cremação; purificação dos presentes;
sacrifícios apotropeicos a Hermes Ctónio; às Euménides; a Hermes,
Zeus Xenios e Ares).
Os dois episódios seguintes são distintos, ainda que com alguns
elementos repetidos. Face ao primeiro, o nível de terror e de
pormenores tétricos aumenta.
O segundo caso alude a Polícrito, face à atitude discriminatória
dos seus compatriotas. Perante o seu descendente hermafrodita
nascido após a sua morte, pretendia a população erradicar a
diferença. Por seu turno, a sombra de Polícrito, envergando vestes
pretas, manifesta uma atitude que varia, desde aparição conciliante
da sombra (eu desculpo-vos); à crítica do povo e de profetas
conselheiros (cf. ο γρ νδχετα μοι περιιδεν κατακαυθν τ παιδον φ’ μν
δι τν τν μν μντεων ποπληξαν, “É que não me é permitido deixar que a
criança seja fulminada por vós, simplesmente devido à loucura dos
profetas que vos anunciaram isso”); à profecia de um futuro
calamitoso, caso não obedeçam; até uma resolução radical (não me é
permitido demorar muito, devido aos que mandam debaixo da terra).
De lição, fica a forma inadequada como o povo lidou com vectores de
perturbação do habitual. Assim, a mácula (carácter discriminativo)
do povo; o cariz necessariamente fugaz das aparições; o confronto
entre medidas selváticas de justiça popular (cf. fulminação;
lapidação) e a justiça ‘do além’, inicialmente na figura do
espectro, que põe cobro, desmembra e degusta a ‘diferença’/criança
hermafrodita; e, de seguida,
Reina Marisol Troca Pereira
227
com a parte remanescente do desmembramento - a cabeça do jovem, que
emite profecias de desaire (noite; chuva de sangue, morte). De uma
forma geral, o jovem hermafrodita parece representar um expediente
que simboliza o fruto resultante de relacionamentos interculturais,
que dá azo ao desenvolvimento de atitudes por parte de um povo
fechado, tirânico e elitista. A atitude à época considerada mais
apropriada apresenta-se enquanto justiça irrevogável de um destino
divino calamitoso pré-determinado, divulgado pelas figuras
falecidas.
Por fim, a última história, com a autoridade do filósofo
peripatético Antístenes. Ramificada por eventos distintos, possui
como estrutura condutora a figura de Antíoco. Ainda que
militarmente derrotado por Pórcio Cato e Lúcio Valério Flaco, o seu
futuro fica conectado com as atitudes que viriam a desenvolver-se
de episódios fantásticos. Primeiramente, as profecias e morte de um
dilecto seu - Buplago (Βοπλαγος), que conduzem os Romanos a
realizar sacrifícios a Zeus Apotropaio; a inquirir o oráculo de
Delfos, donde o abandono da guerra. Na sequência da realização dos
rituais, a loucura do general Públio revela-se profética de
desgraças futuras, em versos, depois clarificadas35 num discurso em
prosa, num estado de enthousiasmos (νθουσιασμς)36 motivado por
Apolo Linceu, conforme se entende pelos derradeiros momentos. De
facto, há um lobo (λκος) que ataca e devora o general,
assistindo-se, no final, à celebração de um pacto com Antíoco; à
construção de um templo a Apolo Lício (Λκιος) e um altar onde jazia
a cabeça remanescente do general.
A bem ver, o enfoque das histórias fantasmagóricas detém-
35 Cf. ambiguidade. Vd. McBing-Parke (1988); Heirmann (1975). 36 Um
estado de enthousiasmos, mediante o qual um deus, ou uma entidade
com qualidades sobre-humanas (e.g. psyche de Pátroclo Il.23.62)
entra num corpo humano (cf. a loucura profética de Cassandra, A.
1072-1330).
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se sobre o homem. Acreditando-se ou não nas aparições reportadas,
fica patente, nessas mensagens enigmáticas de propensões
didácticas, a insolência generalizada dos vivos (figuras das mais
diversas categorias e estatutos sociais, e.g. povo, militares,
governantes, profetas, pais). Do outro lado, o cariz justiceiro das
almas dos mortos, já livres das afecções do corpo e mais próximas
do divino, donde a exposição de profecias. O seu uso não é blasfemo
nem desrespeitoso37, porquanto ficam salvaguardados e afastados
destes recontos fantásticos divindades e oráculos de referência
(cf. oráculo de Delfos). Para garantir a
aceitabilidade/plausibilidade, importa, todavia, aceitar, quer a
componente de escolha, culpa e responsabilidade humana; quer o
conceito base de destino (moira), ao qual os humanos não poderão
escapar, revelando- se reparador, face aos comportamentos
desadequados que apresentam.
Conclusão Exposições frequentes de recontos fantasmagóricos
constituem
um apontamento tradicional de folclore terrífico, que percorre
transversalmente, de forma mais ou menos desenvolvida, pela
37 Importa atentar sobre considerações antigas que, não sendo
necessariamente blasfemas, por não desautorizarem as revelações
divinas, colocam dúvidas sobre a credibilidade e o sentido ético de
alguns profetas. Veja-se, exemplificativamente, a propósito do
profeta Calcas Testórida, sobre a alegada exigência do sacrifício
de Ifigénia por Ártemis, E. IA 520-521: γαμμνων - τ μαντικν πν
σπρμα φιλτιμον κακν. | Μενλαος - † κοδν γ χρηστον, οδ χρσιμον παρν.
†, “Agamémnon - Toda a classe de profetas constitui uma praga pela
sua ambição. Menelau - Sim, imprestável e sem serventia, quando
entre nós.” Afinal, um sacerdote é também um homem (IA 956-958).
Cf. outrossim, na literatura latina, Zatchlas, profeta que propunha
trazer de novo à vida figuras mortas, pelos honorários a combinar
(Apul. 2.28). Vd. Souter (1936); Westmoreland (2007); Troca Pereira
(2013).
Reina Marisol Troca Pereira
229
literatura das Culturas Grega e Latina da Antiguidade Clássica. Nem
mesmo o advento do paradigma judaico-cristão colocou cobro a tais
testemunhos, muitos dos quais alegadamente verídicos, com
aproveitamento literário, enquanto topoi. Ainda que, em diversos
momentos disponibilizados estejam envoltos num envergonhado
secretismo, configuram motes associados a magia, tautologia e até a
crendices populares sacrílegas/ apóstatas. Chega, aliás, a rever-se
de forma crítica um conjunto de conceitos relacionados com a esfera
dos milagres e também com a figura de Jesus.
Por fim, a ideia da morte enquanto tempo e espaço de descanso
eterno choca com o refluxo de espíritos ressabiados e perturbados.
Entendendo as histórias expostas na literatura em geral e os três
episódios de Flégon aqui em apreço, de forma particular, como
recontos alegóricos de sentidos e mensagens cujo assombro ajuda a
cativar na memória, compreende-se a vitalidade transversal do
topos, de certa forma ainda com alguma vigência na
actualidade.
Haverá, no futuro certo a toda a humanidade, ocasião para
ressentimentos, justiça/vingança, ódios, inveja? Admitir a
existência de aparições fantasmagóricas não configurará, por certo,
uma religião; porém, verifica-se quiçá crença e (ou) no mínimo
admissão de dúvida, face ao considerável número de episódios
relatados, sem confirmação possível ... Será?!
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