8/7/2019 Os Segredos de Uma Noite - Debora Mariano
1/273
8/7/2019 Os Segredos de Uma Noite - Debora Mariano
2/273
8/7/2019 Os Segredos de Uma Noite - Debora Mariano
3/273
''alguemcerta vez ME FALOU QUE EM CIDADE PEQUENA NO EXISTEM SEGREDOS.ESSE ALGUEM, CERTAMENTE, JAMAIS PASSOU POR monte Seco... eu passei.''
8/7/2019 Os Segredos de Uma Noite - Debora Mariano
4/273
Captulo 1 Conto de farsas.
Bom e ruim. O ltimo dia de aula sempre assim, dbio. Bom por que Melanie poder,
enfim, dar um tempo de matemtica, fsica e gramtica. No necessariamente, das matrias,
mas de Nair, Cida e Vitrio, os professores que as lecionam e que hora sim, hora no,acham pequenos motivos para pegar no seu p. Ruim, porque vai ficar longe da escola, da
biblioteca e dos amigos. Claro, no precisar sentir saudades das amigas mais prximas,
porque essas ainda estaro presentes, certamente, em quase todos os dias das frias. Ainda
tero as tardes no shopping, os fins de semana na praia, os shows e as festinhas de
aniversrio. Mas sentir falta sim, da sala de aula em geral. Das brigas por maquiagem ou
qualquer outra razo ainda mais banal, das disputas pelos melhores lugares nos jogos e
apresentaes da equipe de natao, das brincadeiras que s ela e as amigas conseguiam
entender. Daquela menina doida, Renatinha, que no tirava o mesmo moletom com capuz.
Do menino, que toda semana recebia um novo apelido e que s sabia dormir na carteira. Da
outra menina, Mayah, que s sabia falar da mesma bandinha de rock. Afinal, eles todos
tambm eram para Melanie como uma banda. No podia faltar nenhum que a msica
desafinava.
- Mel, j deu minha hora. Disse Carol, oferecendo o rosto para o beijinho de sada. No
esquece depois das sete, no Messenger, hein.
- Combinado. - Respondeu Melanie enquanto retribua o beijo.
- Olha l. Todo mundo vai entrar na mesma hora.
- Ok! Pode deixar.
Carol saiu distribuindo beijos e sorrisos. Alegre e comunicativa, a amiga de Melanie, era
sempre o centro das atenes. Nascera para ser miss popular. J Melanie, sabia que jamais
poderia ocupar esse posto. Era mais introspectiva. Mais na dela. Amigas por acidente, era
como Melanie considerava essa relao. At estranhou ter feito amizade, justamente, com a
mais popular de todas as meninas. Quando chegou no colgio chamou ateno, sim.
Melanie ainda usava a cor roxa no cabelo. Na verdade, a maioria de suas roupas contm,
mesmo que um pequeno detalhe, da sua cor predileta. Hoje, seus cabelos voltaram ao
castanho escuro, mas o roxo ainda no saiu da sua vida. Sempre est l, ou na estampa da
camiseta, ou no inseparvel All Star.
8/7/2019 Os Segredos de Uma Noite - Debora Mariano
5/273
Melanie sentiu que estava na sua hora. Deu uma olhada geral na galera, sugeriu um tchau
meio sem graa e saiu. A garota sentia o corao pesado ao atravessar, pela ltima vez,
naquele ano, o porto da escola. Olhou com candura os desenhos pintados, pelos prprios
alunos, no muro do colgio. Ela no havia participado da criao do desenho, que fora feitono incio do ano, nas aulas de arte, mas simpatizava com ele. O tema escolhido foi
preconceito e ela sabia muito bem, como as pessoas podem ser rudes, quando ainda no te
conhecem. Melanie tinha conscincia de que mais difcil do que fazer as novas amizades,
era ter que abandon-las pelos prximos meses. A garota entrou no meio do ano, quando
todos estavam bem entrosados e ela, outra vez, se sentia uma intrusa na colmia. A me,
Flvia, tinha o pssimo habito de mudar de emprego e conseqentemente de cidade. Isso
dificultava para Melanie, que sempre precisava iniciar novas amizades. Era um processo
cansativo, afinal tem pessoas de todo jeito. Algumas favorecem a aproximao, j outras
parecem ter algum tipo de repelente natural sobre a pele. Namorado ento, nem pensar. Sequisesse manter um namoro mais duradouro, teria que ser com algum dos garotos das sries
de TV.
Melanie cruzou a rua e logo avistou o carro da me. Um Fiesta 4 portas, prata, j h quase 5
anos na famlia. Com um saliente amassado do lado direito, perto da porta. Flvia tinha dito
que, um descuidado qualquer, bateu no carro e deu no p. Mas Melanie sabia que a estria
poderia ser outra, j que conhecia muito bem, a condio de barbeira da me.
- Quero que a garotinha fique sabendo que faz vinte minutos que estou te esperando. Disse Flvia querendo parecer irritada. Melanie sabia que no deveria fazer nem cinco.
- ltimo dia, me. Esqueceu? Respondeu Melanie ainda parada do lado de fora.
- Quer um convite impresso para entrar?
- No. S estou dando uma ltima olhadinha. Quem me garante que ser neste colgio que
irei estudar ano que vem?
- O futuro a Deus pertence minha filha. Agora rapa pra dentro, que a mim s pertence o
direito de chegar na hora.
A tal olhadinha que Melanie se referia, tinha nome: Bruno. Tpico garoto im. Aquele
que atrai todas as atenes para si. Durante esses meses ele fora seu sonho de consumo da
8/7/2019 Os Segredos de Uma Noite - Debora Mariano
6/273
vez. Bonito, de sorriso conquistador e popular. Alm de Melanie e suas amigas, noventa e
nove por cento das mulheres do colgio eram a fim dele. No um por cento restante, se podia
colocar a diretora, as professoras, as atendentes e faxineiras. Se bem que aquela
professorinha de ingls, demonstrava ter uma queda bem acintosa para o lado do bonito.
Melanie antes de sair viu que Bruno ainda estava no ptio, perto da cantina, na jtradicional rodinha de amigos.
Ela desejava, agora, neste instante, antes de entrar no Fiesta, poder v-lo s mais uma vez.
Poderia manter essa imagem final guardada na memria, durante os prximos meses.
- Meu Deus, Mel! Tenho hora! Disse Flvia agora irritada de verdade. E ainda tenho
que passar na escola do Nicolas.
- Ok! Calma que j estou indo.
Melanie d a volta no carro, mas sem perder a ateno no porto de sada. Foi o mais
devagar possvel. Mas era um Fiesta, um carro pequeno, no um Hammer. Nem sinal de
Bruno. Teria que entrar de qualquer jeito.
Ah! Que bobagem! Ficar esperando um cara que no me deu moral nenhuma nesses cinco
meses. Pensou Melanie enquanto entrava no carro.
- At que enfim. - Disse Flvia ligando a chave e a seta para sada. Pensei que queria criarrazes ai fora.
- J disse. S estava me despedindo. Respondeu um pouco chateada Melanie Agora,
ento j pode ir, Schumacher.
Flvia balana a cabea sorrindo.
Instantes depois estavam as duas seguindo pelas avenidas de Curitiba. O colgio de
Melanie dava uns vinte minutos, mais ou menos, da escola onde Nicolas, seu irmo,
estudava. Que por sua vez, dava vinte minutos da casa onde moravam. A escola do garoto
ficava entre os dois pontos. Nicolas, na verdade, era meio irmo de Melanie. Era filho de
Edgar, ex de Flvia, que a abandonou uns dois anos atrs, para voltar com a ex-mulher que
j tinha abandonado para ficar com uma outra mulher, antes de conhecer Flvia. Parece
doideira. Confuso. Mas a vida.
8/7/2019 Os Segredos de Uma Noite - Debora Mariano
7/273
O garoto estava do mesmo jeito, parado, sozinho, encostado no muro, esperando. Ele v o
carro e corre para encontr-las. Flvia nem havia estacionado direito e Nicolas j estava a
postos para entrar.
- Viu, isso ser eficiente. Disse Flvia com orgulho contido.
- No, me. Isso ser anti-social. Refutou Melanie enfatizando a conduta do irmo. J
que, toda vez ele est no mesmo lugar, sozinho, esperando as duas, enquanto que os seus
colegas esto sempre em grupos, esperando os pais.
- Nossa, menina! Te morderam na escola hoje?
- Difcil, me. Para morder tem que se arriscar a chegar perto.
- Em pensar que voc est estudando para um dia, quem sabe, virar chefe disse Flvia
olhando pelo retrovisor se o filho havia colocado o cinto. Ai daquele que for teu
subalterno.
Bem que poderia ser aquele garoto metidinho da escola. Pensou Melanie, considerando
ser uma boa alternativa para se vingar de Bruno.
- Como foi na escola hoje, filho? Perguntou Flvia mais uma vez olhando para o filho
pelo retrovisor.
- At que foi bom, me. Respondeu Nicolas Me acertaram uma pedrada na cabea.
Flvia olhou rapidamente para trs, quase se desconcentrando do trnsito. Ela tentava
visualizar algum ferimento. Melanie olhou para o irmo pensando:
Se esse foi um dia bom, dia ruim s se cair um satlite da Nasa na cabea dele.
- Machucou voc, meu filho? Perguntou preocupada Flvia, agora olhando a cada instante
pelo espelho.
- No me. Eu estou legal. Disse Nicolas despreocupado.
- Por que fizeram isso? Perguntou Melanie.
8/7/2019 Os Segredos de Uma Noite - Debora Mariano
8/273
- Eu bati em um menino.
Melanie riu e recebeu um olhar de reprimenda da me.
- Por que voc fez isso, garoto? Perguntou Flvia no escondendo a irritao.
- Ele falou que voc e meu pai so separados por culpa minha.
Flvia mordeu os lbios. Melanie percebeu que essa situao mexia com o nimo da me.
Nunca foi uma situao fcil nem para ela e nem para Nicolas. Apostou num
relacionamento que s lhe trouxe complicaes. Mas, o que mais o fedelho poderia querer?
Ele sempre podia ver o pai quando quisesse. Era s ligar. Edgar mora em outra cidade, mas
ainda assim era perto. Agora ela no tinha a mesma sorte. Nem mesmo a voz do pai portelefone poderia ter. Nem uma foto sequer para olhar. Assim mesmo, de vez em quando,
sentia falta do homem que nunca conheceu.
A casa onde moravam, atualmente, era um pouco menor. Melanie, mesmo assim, a
apreciava mais do que a anterior. Era na entrada da cidade, de quem vem de Campo Largo,
pouco depois do Parque Barigi. A cor bege claro da casa, contribua na preferncia da
garota. Tinha apenas dois quartos e o bsico. Sala, cozinha, banheiro, mas j era suficiente
para Melanie sentir-se bem. No tinha boas lembranas da ltima casa que morou, da
ltima cidade de onde vieram: Londrina. Sofreram uma invaso que traumatizou a todos.
Um marginal entrou na casa, mesmo eles estando dentro e dormindo. O bandido no
roubou nada. Nem mesmo a polcia soube explicar como ele entrou, j que nada foi
arrombado. Mas Melanie ainda lembra da real presena de uma pessoa, dentro do seu
quarto, a observando dormir. A garota acordou por dois motivos: era uma noite quente de
vero e ela sentiu o corpo todo gelar de repente. Tambm, por ter o sono leve e pde sentir
uma respirao descompassada e ofegante prximo a ela. Estava escuro. No conseguiu
visualizar o rosto daquele que estava oculto pelas sombras. O pequeno facho de luz que
entrava pela janela, apenas revelava sua postura. Com um terno, parecendo requintado, ele
estava sentado na cadeira, ao lado do armrio, com as pernas, elegantemente cruzadas.
Melanie teve o mpeto de clamar por socorro. O invasor pareceu perceber e levantou-se.
8/7/2019 Os Segredos de Uma Noite - Debora Mariano
9/273
Melanie fechou os olhos e gritou. Quando novamente abriu os olhos, o invasor no estava
mais l. Flvia acordou e correu em desespero para o quarto da filha. Chamou a polcia e
tempo depois eles vieram. Remexeram tudo e nada encontraram. Chegaram a sugerir que
era apenas um sonho, um pesadelo. Mas Flvia tinha o discernimento de saber quando a
filha no falava a verdade. O que, certamente, no era o caso. Melanie no se contentousomente com o crdito recebido da me. Utilizando seu instinto, adquirido por algumas
horas assistindo CSI, encontrou algo que os policiais no perceberam. Debaixo da cadeira,
bem escondida no assoalho, algumas gotas de um lquido que lembrava sangue. Melanie
sabia que at antes de se deitar no havia ali gota de coisa alguma. Talvez o tal invasor
estivesse ferido. Ou pior, tivesse ferido algum. Dias depois, ela sentiu falta de um objeto.
Uma caixinha de msica que mantinha guardada. Era de sua me, que passou para ela
quando nasceu. Estava guardada por que tinha quebrado e a sua melodia, to familiar
Melanie, no podia mais se ouvir.
Como de costume, a chave da porta sempre emperrava. Flvia girava com cuidado, com
medo de quebr-la. Depois daria um trabalho ter que trocar a fechadura, por causa do
pedao da chave que ficaria emperrado. Era servio para homem, e o nico homem da casa,
mal sabia consertar os Transformers que possua. Melanie j entrou abandonando a mochila
no sof enquanto procurava o controle remoto da TV. Nicolas corre para o banheiro.
- Hei, mocinha. Disse Flvia e apertando o boto da secretria eletrnica. No sabe
onde guarda isso, no?
- Claro que sei, me Disse Melanie pegando de novo a mochila. E isso uma
mochila.
Flvia apenas faz mais um gesto apontando a porta do quarto. Melanie segue arrastando a
mochila, enquanto ouve a voz mecnica da secretria avisando que tinham duas mensagens.
Curiosa, como sempre, Melanie pra no corredor para ouvir.
Oi, Flvia... a Leonora... - Leonora colega de trabalho de Flvia.
Seguinte, uma e meia tem reunio aqui na imobiliria.
Flvia j trabalhou em muitos ramos de atividades. Inclusive j foi revendedora de
cosmticos e at trabalhou com massoterapia. Atualmente trabalhava como corretora de
imveis. Uma de suas tantas habilidades adquiridas forosamente.
8/7/2019 Os Segredos de Uma Noite - Debora Mariano
10/273
E j vou adiantando... - A mulher diminuiu o tom da voz como se cochichasse. - O Seu
Mathias est fulo da vida com voc. Acho que voc j de v saber o que irritou tanto o
homem, no ?
Flvia at gostaria de no saber. Mas o seu fraco desempenho, depois de tantas promessas
de timos negcios, alardeado por ela no incio da contratao, seria a razo do mau humor
do chefe.
Beijo querida... Que j estou indo almoar. At depois.
Melanie pensou depois do click final da mensagem que seria bom que o almoo de hoje
fosse com talheres de plstico. Imaginando j, antecipadamente, que o mau humor de
Flvia eclodiria por qualquer detalhe. Talvez a segunda mensagem pudesse amenizar as
coisas. Poderia ser uma boa notcia. Melanie lembrou que sua me tinha um tique nervoso,principalmente quando era por motivos de raiva. Flvia piscava, sem parar. A garota
reparou que a me j parecia o cursor do Word, quando apertou o boto para ouvir a
segunda mensagem.
O que vinha do telefone assemelhava-se a uma respirao, quase inaudvel, somado ao
barulho de quando algum passa o aparelho de uma orelha para outra. Mais nada. Por
alguns longos segundos a mesma coisa.
- Tem gente que na tem o que fazer. Disse Flvia considerando ser um trote, ou coisaassim. Ela aponta o dedo indicador no boto de apagar.
- Ol...
Uma voz fraca. Grave. Daquelas que se demora um pouco a identificar se de homem ou
mulher, fez-se ouvir.
Sou eu...
Era uma mulher, aparentando idade avanada. Ela no mencionou o nome, mas Melanie
percebeu que Flvia j havia a identificado, j que foi se soltando levemente no sof, como
se estivesse com medo de cair.
Sei que no devia ligar... Mas no sei o que fazer...
8/7/2019 Os Segredos de Uma Noite - Debora Mariano
11/273
Flvia levou a mo na boca. Sua mo tremia. Nicolas saiu cantarolando do banheiro e
seguia para sala. Melanie o segurou pelo brao, quando passava por ela e tapou-lhe a boca.
- O que foi? Disse Nicolas.
Melanie apontou para a me e fez sinal para que o garoto permanecesse em silncio.
Tudo est mudando por aqui... No tenho mais condies de passar por tudo aquilo de
novo... -
A mulher pronunciava com dificuldade as palavras entre tosses fortssimas. - Preciso que
voc me ajude agora... Por favor... Assim como eu te ajudei um dia...
A mulher foi tomada de uma tosse ininterrupta que a dificultava de pronunciar qualquerpalavra. A nica coisa que se pde ouvir antes do telefone desligar foi um Venha! Flvia!
Depressa!
Flvia desligou, empurrando a secretria eletrnica, com repulsa. Parecia que tinha criado
nojo dela. Flvia afundou as mos nos cabelos e permaneceu imvel. Para Melanie, j era
mais do que suficiente perceber o estado que a me ficara depois de ouvir a mensagem, mas
a mulher idosa sabia pra quem tinha ligado. Ela disse um nome no fim da gravao. Disse o
nome de Flvia. Com certeza, no era um trote.
Durante seus 16, quase 17 anos de vida, Melanie j estava mais do que habituada com o
jeito da me. Sabia o que a deixava feliz, triste, magoada e com medo. Definitivamente, o
medo a estava dominando. Ficou sentada l no sof um bom tempo, quase na mesma
posio. Melanie improvisou o almoo, um macarro bsico e uma salada rpida, j que
isso era sempre a me que providenciava. Flvia no almoou, nem veio mesa. Melanie
serviu Nicolas e at colocou comida em um prato para si mesma, mas j sabendo que seria
perda de tempo. No tinha fome tambm. Melanie ficou pensando em quem seria aquela
mulher? E por que apenas de ouvir sua voz em menos de um minuto de gravao, Flvia,
ficou transtornada desse jeito? A garota no sabia nem por onde comear a encontrar
respostas, alm das que poderiam ser dadas pela prpria me. Mas ela no teria coragem de
perguntar nada.
Melanie esperou Nicolas terminar e sair da mesa. Neste perodo ficou ali, sentada,
separando com o garfo a comida no prato. Detestou o clima pesado que se instaurou na casa
8/7/2019 Os Segredos de Uma Noite - Debora Mariano
12/273
quela hora. Estava absorta em seus pensamentos quando Flvia entrou na cozinha, com
uma expresso nada amistosa.
- Vou sair. Preciso resolver algumas coisas. Disse Flvia arrumando o interior da bolsa
como que procurando algo. Cad minhas chaves?
- Esto na sua mo, me. Respondeu Melanie notando que Flvia estava ainda bastante
nervosa. - Tudo bem com voc? Arriscou perguntar a menina.
- Est sim Respondeu Flvia, esforando-se para soar verdadeira. Fique tranqila. S
cuide bem do seu irmo.
- Isso eu fao sempre. Completou Melanie percebendo tardiamente que no era uma boa
hora para instigar a me.
Flvia deu um beijo em Nicolas que estava fazendo um desenho sobre a mesa e na
seqncia ficou de frente com Melanie e a abraou apertado. A garota ficou com os braos
esticados, imveis, envolvidos pelos da me. Ela estranhou essaa repentina manifestao de
afeto. Flvia a olhou nos olhos e saiu. Melanie considerou que hoje, realmente, no estava
sendo um dia normal.
Tinha passado mais de meia hora, quando Melanie lembrou do combinado da galera da
escola de estarem todos no mesmo horrio no Messenger. Mas no tinha mais importncia.Ela agora estava preocupada com a demora da me, que j deveria estar em casa uma hora
atrs. Ela sentou-se na frente de casa, na elevao da mureta, segurando o celular na
esperana de receber uma chamada, j que o celular da me s dava na caixa postal.
Alguma coisa aconteceu. Flvia nunca se atrasa. Melanie deixou Nicolas vendo TV. Ele
ficava entretido por horas, assistindo Discovery Kids. O seu desejo era ver logo o carro
prateado dobrar a esquina. Era horrio de vero e a cor avermelhada do horizonte estava se
dissipando, dando lugar a um cu negro, cravejado de brilhantes.
Alguns minutos se passaram e a garota se levantou. Sentiu-se um pouco tonta. Aquela
sensao de ficar vendo pequenas luzes depois que se levanta subitamente, se apossou dela.
Labirintite, coisa assim. Um barulho estranho chamou sua ateno. Parecia duas espadas
trocando golpes.
8/7/2019 Os Segredos de Uma Noite - Debora Mariano
13/273
Ah! Esse peste. Ta assistindo filme violento de novo. Pensou seguindo para dentro de
casa. Depois sai batendo nos colegas de escola e no sabe por que.
Entrou na sala e o som cessou. Nicolas estava deitado no sof vendo os desenhos. Ele nem
tinha se mexido. No poderia mudar rapidamente de canal, mesmo por que o controle daTV estava longe. Era estranho, mas Melanie deu de ombros e saiu novamente.
A rua da casa onde moravam bem tranqila. Arborizada. Inclusive tem uma grande rvore
bem na frente do muro, quase de frente com o porto. Se isso dificulta para quem est fora
olhar quem est dentro, o mesmo acontece ao inverso; por isso ela estava do lado de fora do
muro, na calada. Quanto antes ela visse a me chegando, acabaria logo sua angustia.
Passou mais uma hora e j roia as unhas sem parar. Entrou novamente e Nicolas dormia,
mesmo com o som alto da Tv. Saiu outra vez. Melanie estava muito nervosa e ficava aindamais a cada tentativa em vo para o celular da me. O nico movimento de carros e de
pedestres eram a alguns quarteires adiante, numa rua transversal. Uma avenida. Na frente
da casa, o nico movimento alm do da garota, eram dos pequenos besouros batendo,
insistentemente, contra as lmpadas dos postes. De repente ela ouve um rudo, como som
de passos. Olhou para a direo de onde o som partiu e viu um sujeito parado na esquina.
Ele parou de perfil, em cima do meio-fio, igual quando algum espera para um carro passar,
mas no havia carro nenhum vindo por aquela rua. Colocou as mos nos bolsos. Estava
bem vestido. Jeans preto, camisa branca e usava sapatos caros. Tinha cabelos castanhos.Quase loiros. Desgrenhados, mas na moda. Bonito. Charmoso. At demais. Tanto que
Melanie no conseguiu tirar os olhos dele.
Nossa! O que o irmo mais novo do Brad Pitt est fazendo aqui? Pensou Melanie . Ele
riu. Baixou a cabea levemente e a olhou por baixo.
Credo! Ser que eu falei alto demais? Pensou de novo. Ele continuou olhando. Ela,
evidentemente, s o observava com o canto dos olhos. Ele tinha um sorriso enigmtico.
Uma mistura de cinismo e pureza. Satisfao e desejo. Era mais do que um garoto im: era
irresistvel. Ele tirou algo do bolso, parecia um chaveiro de carro. Apertou o boto e o
alarme de um carro estacionado um pouco mais longe, desligou. Nervosa pela demora da
me, Melanie, nem havia notado o carro importado estacionado. Um Lamborghini
Gallardo, vermelho. Imponente. Daqueles que difcil de se ver por a. Melanie olhou na
direo do belo estranho. Ele permanecia olhando.
8/7/2019 Os Segredos de Uma Noite - Debora Mariano
14/273
O que ele est pensando? Por que no pra de olhar pra mim? Pensou a garota. Logo
ela, uma garota simples. Sentada sozinha em frente da casa. De cabelo preso e cara lavada.
De calo jeans, camiseta bsica e chinelo. Chinelo. Ela se sentia uma piada.
Melanie estava a ponto de entrar. Ela queria ficar ali, observando e sendo observada por
aquele estranho. Mas estava com vergonha de si mesma. Ficou pensando porque as pessoas
ficam to desleixadas quando esto em casa. Nunca se imagina que coisas como essas iro
acontecer? De repente o Fiesta prata 4 portas converge para o lado da casa. Era Flvia.
Graas a Deus. Agradeceu Melanie.
Aliviada, ela olha na direo da esquina e o belo estranho no estava mais l. A garota
percebeu o farol do Gallardo ligar. Flvia estacionou bem em frente da casa. Melanielevantou por que o Fiesta ficou bem na sua frente. O carro importado estava vindo. Ele, o
estranho, passou com o vidro do carona abaixado e olhando para Melanie. Lanou sobre ela
mais uma vez seu sorriso enigmtico. Depois seguiu pela direo contrria de onde Flvia
tinha vindo. Flvia, desconfiada, desceu do carro e percebeu para onde os olhos da filha
endereavam.
- O que isso, Mel? Disse ela batendo a porta.
- Isso o qu, me?
- Quem era esse ai? Perguntou Flvia desconfiada.
- Como eu vou saber. Devia estar s passando pela rua. Respondeu desconversando
Melanie.
Flvia fez um sinal para que Melanie olhasse para dentro do carro. A garota ento se deu
conta que tinha uma pessoa dentro. Leonora. Melanie bloqueava a sada da amiga de
trabalho de Flvia. A filha at tinha estranhado a me no ter pedido para que ela abri-se o
porto para guardar o carro. Melanie retirou-se da frente da porta e Leonora saiu. Era bem
baixinha e magra. Estava usando um tailleur marrom, com uma saia evas e um coque no
cabelo. Parecia que tinha tomado banho de perfume.
8/7/2019 Os Segredos de Uma Noite - Debora Mariano
15/273
- Oi. Leonora. Melanie cumprimentou a mulher chamando pelo nome. Ela havia dito que
detestava quando a chamavam de Dona ou Senhora.
- Oi lindinha. Respondeu Leonora to efusiva que Melanie pensou que a mulher apertaria
as suas buchechas.
- A Leonora est aqui por que veio me dar uma ajudinha. Disse Flvia. Leonora sorriu
tanto que a garota pde ver a amlgama dos seus dentes do fundo.
- Vamos entrar, ento. Sugeriu Flvia.
A amiga do trabalho entrou por primeiro. Ela passou por Melanie que quase tonteou, ao
sentir o forte perfume entrar em suas narinas. Flvia entrou atrs de Leonora e olhou para
filha com uma careta, seguido de um sinal abanando o nariz. A garota imaginou o que ame deve ter sofrido dentro do carro.
Melanie estava prestes a entrar quando olhou na direo de onde o belo estranho ficou
parado. Algo no cho lhe chamou a ateno. Ela olhou para a porta de entrada da casa.
Leonora e a me j tinham sumido.
Vou ver o que . - Pensou j mudando o primeiro passo na direo da esquina.
Quando chegou perto, se abaixou e a pegou. Era uma rosa. Uma linda rosa vermelha.Melanie a cheirou. A sua fragrncia era marcante. Seria possvel que havia se misturado
com o cheiro do belo estranho? Ao menos, tinha cheiro de mistrio.
Ela entrou escondendo a rosa. Conhecendo bem a me, ela sabia que seria submetida a um
batalho de perguntas. Flvia estava junto ao sof, custando a acordar Nicolas. Leonora se
ps sentada no sof menor, olhando um lbum de fotos.
- Faz tempo que ele dormiu aqui? Perguntou Flvia lanando aquele olhar do tipo No
te pedi pra cuidar dele.
- Acho que sim. Respondeu Melanie ainda com as mos atrs das costas. Eu estava l
fora esperando voc dar um sinal de vida.
8/7/2019 Os Segredos de Uma Noite - Debora Mariano
16/273
Nicolas acordou ainda muito sonolento. Flvia considerou por bem no discutir com a filha.
Afinal, tinha uma pessoa, praticamente, estranha dentro de casa. Era tambm uma coisa
muito pequena pra se iniciar uma discusso. J que as duas tem conhecimento que Nicolas
vive se jogando nos cantos pra dormir. E mais ainda, que Melanie tinha razo. Ela, Flvia,
sumiu e no deu satisfao nenhuma a respeito, at agora.
- Ento senta ai que precisamos conversar. Disse Flvia sem escolher as palavras.
Ah! No. Pensou, imediatamente, Melanie; j ciente o que essas palavras queriam
dizer. As tinha ouvido diversas vezes.
- No vou ficar de p. Respondeu j prevendo a prpria reao. Pode falar.
- Trouxe a Leonora aqui. Flvia continuou. Por que vamos precisar ficar longe uns diase ela vai cuidar da nossa casa.
A mulher parou de ver as fotos e ficou olhando para Melanie como querendo ouvir palavras
de agradecimento por seu gesto.
- O qu? Perguntou a garota num tom mais alto, levando as mos para frente, esquecendo
que segurava a rosa. Longe uns dias? Como assim?
Leonora levantou e veio em sua direo. Ela envolveu a rosa com as minsculas mos.
- Nossa! Que linda. Disse a mulher cheirando-a.
Melanie ficou atenta, preocupada que ela a tocasse com mais fora e a despedaa-se.
Leonora a olhou, sorrindo e voltou a sentar. Melanie ficou imaginando se a atitude da
mulher foi de algum que nunca recebeu uma rosa se quer, em toda a vida.
- Aconteceu uma coisa e preciso que vocs me acompanhem. Continuou Flvia olhando
para rosa.
- Mas para onde a gente vai? Perguntou Melanie colocando as mos para trs novamente.
- Quando a gente chegar l voc v, Julieta. Respondeu Flvia com a cara torta.
8/7/2019 Os Segredos de Uma Noite - Debora Mariano
17/273
S que a Julieta, pelo menos, sabia o nome do Romeu. Pensou a garota.
- Bom... Sendo por alguns dias. Beleza.
- S por uns dias sim. Eu j conversei com a Leonora e expliquei tudo para ela comofunciona aqui. Ela vai dar comida para os peixinhos do Nic. Vou deixar dinheiro para as
contas que forem vencer... Essas coisas.
Leonora gesticulou com a cabea demonstrando que tinha tudo anotado.
- Se tiver uma recomendao pode dizer. Falou a prestativa Leonora.
Melanie a olhou com um olhar grato. Afinal, ela cuidaria das suas coisas.
Com certeza, essa viagem repentina era algo relacionado ao trabalho da me. Ela prometeu
mundos e fundos para o tal Seu Mathias. Agora estava mais do que na hora de cumprir.
Claro, que obviamente, se estivessem de volta o quanto antes.
Mesmo acordando mais tarde do que nos outros dias, Melanie, sentia-se um trapo. Obrigou-
se a dormir tarde, j que a amiga da me, Leonora, foi embora depois da meia noite.
Ficaram ela e Flvia jogando conversa fora e tomando vinho. Era um vinho que Flviaguardava j desde os tempos de Edgar. Depois de uma garrafa inteira o volume das
conversas e risadas se alteraram, ficando cada vez mais alto. Nicolas, para variar, dorme at
com uma britadeira, funcionando a mil, do lado da cama. Melanie j no tem essa sorte.
Mesmo que seu quarto fosse blindado ela no conseguiria dormir com tanto barulho. A
risada de Leonora era estridente. E quando ela comeou a falar as primeiras bobagens, de
carter mais adulto, Flvia sugeriu que precisava dormir. Chamaram um txi e a desmedida
e feliz Leonora foi para casa cantarolando.
O momento do caf da manh no era o que Melanie tinha planejado durante toda uma
semana. Imaginou no seu primeiro dia de frias, iria acordar feliz, pronta para um dia cheio
de atividades com as amigas. Mas no, sem antes, de manh ainda, dar uma passadinha na
biblioteca municipal, para garantir uns dois bons romances. Depois compraria mais outros
dois em uma livraria. Afinal, o dinheiro que ela ganha da me, para cuidar da casa e do
irmo enquanto Flvia trabalha, a possibilita gastar um pouquinho com suas maiores
8/7/2019 Os Segredos de Uma Noite - Debora Mariano
18/273
paixes. Dependendo do livro ela l em trs ou quatro dias. Mas leva muito mais tempo
para se livrar da sensao, boa ou ruim, que ele lhe traz. Adora se fazer passar pelas
heronas das estrias que l. Mesmo daquelas que tem as estrias mais tristes.
Tombou seu corpo na cadeira e ficou olhando para a xcara na sua frente. Melanie desejavater neste momento o poder da telecinese. Colocaria assim, seus olhos sobre a garrafa
trmica e ela se abriria, seguindo j quase deitada at a sua xcara e a encheria de caf.
Nicolas tomava o caf como todos os dias fazendo os mesmos barulhos irritantes. Flvia
estava de p, parada, com uma xcara na mo, olhando pela janela. Ela nem notou a filha
chegar. Estava entretida em seus pensamentos.
- A mame falou que ns vamos viajar. Disse Nicolas.
Grande coisa. Pensou Melanie, o respondendo com uma careta. A me virou-se, enfimpercebendo sua presena.
- Dormiu bem? Perguntou Flvia, tomando em seguida, um gole do caf.
Pela cara que fez o caf j devia estar frio a muito tempo.
- Dormi. Respondeu Melanie no querendo importunar a me com seus problemas.
- Ainda tenho umas coisinhas para resolver. Depois a gente pega a estrada.
- Posso saber do que se trata?
Ela permaneceu pensativa. Parecia que ainda no tinha uma resposta.
- So coisas... Ela pensou mais um pouco. Do meu trabalho.
- E por que a gente precisa ir tambm?
- Por que so meus filhos. Vou ficar uns dias fora e quero vocs debaixo da minha viso.
- Eu quero ir junto. - Disse Nicolas.
8/7/2019 Os Segredos de Uma Noite - Debora Mariano
19/273
Puxa saco - Pensou Melanie, enquanto observa a me passando a mo pelos cabelos
arrepiados do irmo.
- Preferia ficar aqui. Disse Melanie mesmo ciente que no haveria outra soluo para ela.
- A sua amiga no vai cuidar da casa? Ento, cuida de mim tambm.
- De jeito nenhum. Flvia respondeu j dando indcios que o mau humor da manh a tinha
alcanado bem naquela hora. Vocs dois vo comigo. A Leonora s vem dar uma
passadinha aqui, dia sim, dia no.
Melanie considerou melhor no prosseguir com a discusso. Ela sabia que iria perder. O
argumento da me sempre o mais eficiente: o tom de voz mais alto.
Flvia antes de sair pela manh, avisou os filhos que, dependendo das circunstncias, noviria para o almoo. De fato, ela no veio. J tinha passado das duas da tarde e Melanie
estava, completamente, aborrecida, em frente TV, passando um a um dos canais. Nada lhe
prendia a ateno. At que surgiu na sua mente a imagem do estranho de ontem noite.
Possivelmente, foi a primeira e nica vez que o veria. Foi at o seu quarto. Colocou uma
cala jeans. Depois procurou uma blusinha que gostasse.
Jogou longe o chinelo e colocou um tnis. Parou diante do espelho. Soltou os longos
cabelos castanhos escuros e ajeitou com cuidado os fios. Pegou seu estojo de maquiagem efez uma produozinha bsica. Estava pronta para sair. Passou pelo pequeno corredor em
direo a sala e notou que Nicolas jogava no computador. Esse era mais um dos seus
hbitos saudveis.
- J volto. Avisou para as paredes, j que Nicolas nem se mexeu alm de apertar os botes
do teclado, enquanto mordia a lngua com o canto da boca.
O movimento durante o dia mais vigoroso. Carros e pessoas passam mais constantemente.
Durante a quase meia hora que ficou ali, Melanie no viu nem sinal do carro vermelho ou
do seu dono. Sentiu-se uma idiota, ali fora, esperando um cara passar. Um cara que nem
mesmo conhecia. Entrou chateada.
Vou para um outro mundo mais feliz. Pensou j seguindo para sua coleo de livros,
desejando tomar o lugar de uma das suas fiis companheiras em seus mundos perfeitos.
8/7/2019 Os Segredos de Uma Noite - Debora Mariano
20/273
No deu tempo nem de pegar o primeiro livro e o telefone tocou.
Minha me. Pensou. Nicolas estava concentrado demais na disputa do jogo. Ele sempre
o primeiro a sair correndo e atender. Melanie foi at o aparelho.
- Al! - Do outro lado da linha o silncio. - - Al! Repetiu.
Nenhum sinal.
- Ok! Vou desligar. Melanie utiliza sempre a mesma ttica. Fala que vai desligar e
continua ouvindo. Numa dessa, a pessoa se manifesta. Ningum respondeu. S tinha uma
alternativa, desligar de verdade. O telefone j estava a alguns centmetros, distante da sua
orelha, quando ouviu um pigarro. Era um pigarro que ela j tinha ouvido antes. Era o da
mulher da ligao de ontem.
- Quem ? Perguntou Melanie um pouco nervosa. A mulher talvez tenha percebido a
alterao na sua voz e entendeu que ela a tinha reconhecido.
- Voc a filha da... A mulher hesitou um pouco e concluiu com aquela voz rouca.
Cavernosa. Flvia?
- Sou. Respondeu Melanie. - O que a senhora quer com a minha me? A garota jogou
logo a pergunta.
- Querida. Tem muita coisa que preciso resolver com sua me. A mulher tinha
dificuldades para dizer frases com mais de trs ou quatro palavras, sempre as finalizando
com uma tosse. Ela ouviu meu recado ontem?
- Ouviu sim. Nunca vi minha me daquele jeito.
- Onde ela est agora?
- Foi trabalhar... Eu acho.
- Voc sabe me dizer se ela est vindo me encontrar?
- Acredito que no senhora. Acho que s foi trabalhar.
8/7/2019 Os Segredos de Uma Noite - Debora Mariano
21/273
- Ela comentou algo sobre uma viagem?
- Comentou. Ns vamos viajar em breve.
- Disse para onde vocs iro?
- No senhora.
- Ento ela est vindo para c mesmo. A mulher falou como se estivesse afirmando para
si mesma. E vai trazer a filha.
- Claro que eu vou junto. Minha me no me deixaria... Nem deu tempo de terminar e
Melanie ouviu o barulho do telefone sendo desligado. A mulher mal educada desligou nasua cara.
Quando Flvia chegou Melanie considerou melhor no mencionar o telefone da mulher
misteriosa. No gostaria de ver a me do mesmo jeito que ficou quando ouviu a mensagem.
- Ento, meus lindos. Entrou dizendo Flvia, enquanto beijava a cabea dos filhos.
Sentiram falta da mame aqui?
- Eu senti. Disse Nicolas sorridente, ganhando mais um beijo da me. Melanie olhou parao irmo e balanou a cabea. - Como consegue ser to puxa saco, moleque? Pensou.
- Algum ligou pra mim? Perguntou Flvia.
- No. Respondeu Melanie sem mirar nos olhos da me. Se assim o fizesse, com certeza,
entregaria que estava mentindo.
- Ligaram sim Disse Nicolas com ar superior. Aquela mesmo mulher que no pra de
tossir.
Ferrou! Pensou Melanie se encolhendo no sof. Esse fofoqueiro ouviu.
- Quem de vocs que atendeu? Irritou-se Flvia.
8/7/2019 Os Segredos de Uma Noite - Debora Mariano
22/273
Nicolas acenou com a cabea apontando Melanie.
Peste! Voc me paga Prometeu Melanie fuzilando com os olhos o irmo.
- No acredito, Melanie! Explodiu Flavia. Voc no ia me dizer nada?
- Claro que no, me. Respondeu gesticulando Melanie. No se lembra de como voc
ficou da ltima vez?
- Voc no pode esconder essas coisas de mim. Esbravejou Flvia segurando a filha pelos
braos. Nunca mais tente esconder nada de mim.
- Calma me - Respondeu assustada Melanie. s uma ligao.
Flvia a soltou e percebeu o quanto tinha se alterado.
- Ela ligou, eu atendi, ela perguntou por voc e eu disse que voc no estava. Explicou
Melanie. Ela desligou. S isso.
Flvia passou as mos pelos cabelos e respirou fundo. Em seguida olhou para Melanie e
passou a mo pelos cabelos da filha.
- Est bem. Disse Flvia calmamente. Mas quando essa mulher ligar e eu no estiveraqui, no fale mais com ela. Entendeu?
Melanie anuiu com a cabea positivamente.
- S eu falo com ela. Flvia mordeu os lbios. S eu!
Flvia respirou fundo outra vez, pegou a pasta da imobiliria. Teve a inteno de sair da
sala. Antes de passar pela porta virou-se para os filhos.
- Ns vamos amanh. anunciou Flvia No posso mais esperar.
Flvia saiu. Melanie olhou para o irmo. Nicolas lhe mostrou a lngua.
8/7/2019 Os Segredos de Uma Noite - Debora Mariano
23/273
- Isso mesmo, seu cobrinha. Sussurrou Melanie. Qualquer dia desses, eu corto fora essa
lngua afiada.
Nicolas deu de ombros e voltou a ver TV. Melanie colocou os neurnios para funcionar. O
que Flvia tinha de to grave para esconder? Afinal, ningum estoura assim s por umsimples telefonema. Seja como for, poderia estar prximo dela descobrir alguma coisa. J
que a tal viagem de amanh, no parecia mais ser coisa s do trabalho da me. Mais parecia
ter a ver com a mulher da ligao.
Captulo Dois Carpe Diem?
Melanie sabia que a me no tolerava dirigir a noite, nem quando est chovendo. Eram
quase dez horas da noite, chovia forte e elas estavam no interior do Fiesta, na estrada. Agarota recebia no prprio corpo toda a tenso que sua me estava sentindo, ao se concentrar
no pequeno vislumbre da rodovia, que dava para ver atravs da densa camada de gua, que
escorria pelos pra-brisas. Estava no banco do passageiro, fingindo que estava tranqila,
ouvindo msica em meu mp4. Mas, por muitas vezes, apertou o p contra o carro, como se
fosse ela mesma que estivesse dirigindo. A me estava muito concentrada pra notar isso,
alis, Melanie considerava que j h muito tempo ela no vem notando muita coisa que ela
tem feito. Estava para sair de mais um emprego. O quarto em menos de dois anos. Flvia
sempre demonstrou ser irrequieta contrastando com o jeito passivo que Melanie possua.
Mas dessa vez, a garota pressentia que algo no ia bem, s no sabia o qu.
- Tenho que ir para uma outra cidade. Preciso resolver algumas coisas, mas por pouco
tempo. Preciso que voc e Nicolas entendam. Disse a me para Melanie, enquanto
assistiam novela.
Como eu posso entender? E os meus planos? E as coisas que eu teria que resolver? Como
ficaro? - Pensou Melanie lembrando da conversa.
Que m... Ia pensar um palavro quando ouviu um ainda pior da boca da me. Sentiu os
solavancos. Ela havia sado da estrada outra vez e quase bateu em um barranco. Tirou os
fones e tentou parecer natural, apesar de estar com muito medo. A me a olhou rapidamente
com aquele olhar, querendo dizer:
8/7/2019 Os Segredos de Uma Noite - Debora Mariano
24/273
O que foi? Falei! E da? Eu posso sou sua me. - Mas disse outra coisa. - Mel! Veja a
como est o seu irmo.
Melanie olhou para trs e constatou que Nicolas, dormia pesado.
- Est bem! Respondeu Melanie Para variar est dormindo.
Flvia ouviu e continuou concentrada. A luz forte de outro carro que seguia na direo
contrria, cegou Melanie por alguns instantes. Instintivamente ela colocou as mos sobre os
olhos.
- Eu sei que est cansada tambm. Disse Flvia sem tirar a ateno da estrada A gente j
est chegando.
Ela pareceu hesitar e Melanie percebeu. A garota ficou em silncio. A me tentou alcanar
seus pensamentos examinando-a com o canto dos olhos.
- Entendo que voc est chateada por toda essa viagem repentina Continuou Flvia Mas
eu precisava mesmo fazer isso. E afinal, j estamos aqui. No d mais pra voltar. Pelo
menos, no por enquanto.
Melanie continuou em silncio, engolindo muitas palavras que gostaria de dizer. Mas
sabendo que em algo, realmente, a me tinha razo. No d mais pra voltar.
- Quem sabe voc at goste de l. Prosseguiu Flvia Vai ser por poucos dias. Alem do
mais, muito bonita a cidadezinha.
Cidadezinha. Isso fez Melanie lembrar, de certa vez, quando ainda devia ter a idade do
irmo. Uns oito ou nove anos, talvez. Quando ouviu o nome desta cidade pela primeira vez.
Monte Seco. Lembrou, por que riu quando ouviu, achando o nome engraado. A me, na
poca, falava com algum no telefone tambm. Melanie no sabia quem era. Depois de
algum tempo ela comeou a ficar irritada e repetia em tom spero que jamais voltaria a por
os ps em Monte Seco. Jamais. Depois disto, nunca mais ouviu o nome outra vez. At
semana passada, quando soube que a tal cidade de nome engraado, no mais pareceu to
engraado assim.
8/7/2019 Os Segredos de Uma Noite - Debora Mariano
25/273
- No consigo entender uma coisa Resmungou Melanie Porque ns vamos pra esse fim
de mundo?
- J te falei. Eles precisam da minha presena por l, pra resolver algumas coisas. -
Respondeu Flvia - Fique tranqila, no que tudo se acerte, em seguida a gente d meiavolta. Arrumei um lugarzinho bem famlia pra ficarmos. Vai ser bom pra vocs tambm.
- Nada disso. Respondeu Melanie no ato - No que isso vai fazer bem pra mim?
- Vai sim. Voc vai ver.
- Claro! Vou ver a minhas frias afundar. Eu bem que poderia ter ficado na casa de uma das
minhas amigas.
- Meu Deus, Melanie! Voc est parecendo uma criana mimada. - Flvia olhou
rapidamente para filha e voltou a concentrar-se na estrada. Eu sei que voc no assim.
Melanie sabia que nisso Flvia tambm tinha razo. Ela no era de agir assim. Tinha mais
conscincia e juzo do que muito de suas amigas. Mas essa reviravolta repentina, alm de
mudar seus planos, a fez mudar de outra forma. Ficou mais amarga. Mais triste.
- Como as aulas ainda vo demorar uns dias pra comear, vocs dois vo ter tempo de sobra
pra conhecer a cidade, fazer novos amigos antes de voltarmos.
Flvia parou bruscamente de falar percebendo o desinteresse de Melanie na conversa.
- Por que no tenta dormir? Prosseguiu.
- No vou conseguir.
Flvia colocou a mo sobre a perna da filha e logo a retornou ao volante.
- Ta bom. Suspirou no conseguindo esconder a tenso. S continue prestando ateno
no seu irmo.
Melanie percebeu neste instante que alm de estar preocupada com o perigo da estrada a
me tambm estava sentindo medo. Alguma coisa estava tirando a paz de Flvia, mas ela
8/7/2019 Os Segredos de Uma Noite - Debora Mariano
26/273
no queria dividir com ningum o que a estava preocupando. Tinha tambm outro
agravante, recaa sobre ela a responsabilidade das coisas darem certo novamente, j que
seus planos no dessem certo, teria que procurar outro emprego quando retornassem .
Nas prximas quase duas horas que se seguiram, Melanie permaneceu em silncio, ouvindo
as poucas palavras esboadas pela me, a respirao do irmo no banco de trs e o barulhoda chuva que diminua gradativamente, at cessar por completo. Pararam em um posto de
combustvel e Flvia no demorou-se a descer pra pedir informao, colocar gasolina e
comprar alguma coisa pra comerem. Nicolas acordou.
- A gente j chegou? perguntou bocejando.
- Ainda no.
- Falta muito?
- Acho que no. Mame foi ver.
- Ser que fica muito longe? - Repetiu a pergunta
- No sei garoto. - Melanie respondeu esbravejando.
- Quero ir no banheiro.
Melanie lembrou de quando se mostrava mais atenciosa no cuidado do irmo. Ao contrrio
de muitas crianas que ficam enciumadas, com o nascimento de um irmo mais novo, ela o
amou desde o primeiro dia. Apesar de, ultimamente, o irmo estar se tornando um saco, ela,
assim mesmo, o ama sem medidas. Fazendo o papel de irm mais velha ela olhou para
porta de onde supostamente seria o banheiro, estava semi-aberta. Era perto de onde o carro
estava estacionado.
- Desce e vai l. Apontou a direo. - S no demore.
Nicolas abriu a porta do carro e seguiu at o banheiro, arrastando os braos, parecendo um
pouco arqueado pelo sono. Ele sempre faz isso toda manh. Era sua marca registrada.
Melanie observou-o entrar no banheiro e olhou para loja de convenincia na tentativa de
avistar a me. No a viu. Provavelmente, ela estaria comprando comida ou conversando
com o atendente. Encostou a cabea no vidro e fechou os olhos por alguns instantes.
8/7/2019 Os Segredos de Uma Noite - Debora Mariano
27/273
Instantes depois, sentiu a cabea pendendo para frente e se segurou pra no dormir. No
havia percebido o quanto estava cansada. Seu corpo doa. Os olhos pesavam. Estava quase
adormecendo quando foi tomada por uma sensao que nunca antes havia experimentado.
Era como um choque. Parecia que uma corrente eltrica a envolvia por inteira. Acordou de
sobre-salto. Olhou na direo do banheiro, onde Nicolas estava e viu flashes de luzessaindo pela fresta da porta. Era estranho. Como se fosse o flash de muitas mquinas
fotogrficas ao mesmo tempo. Olhou pra loja de convenincia e no viu sua me. Desceu
cambaleante do carro. As luzes continuavam dentro do banheiro. Melanie notou que uma
placa de publicidade que anteriormente agitava-se histrica pelo vento, agora estava parada.
Nem vento mais tinha. Nem barulho de nada. Tudo estava muito quieto. Seguiu para o
banheiro e s conseguia ouvir o barulho dos prprios passos. Ela tinha a impresso de estar
caminhando em slow motion.
- Nicolas!
Chamou pelo irmo antes de entrar. Ele no respondeu. Aproximou-se da porta e devagar
foi abrindo-a. As luzes se intensificaram. Melanie morria de medo, mas precisava entrar.
Podia ouvir o bater acelerado do seu corao. Ela tremia. Entrou chamando por Nicolas de
novo e no ouviu resposta. Ento, escutou algo indescritvel, talvez como se muitas espadas
travassem uma disputa. As luzes eram muito fortes e piscavam intensamente. Ela se
segurou na parede pra no cair e gritou:
- Nicolas!
Tudo girou ao seu redor. Ela sentiu suas pernas bambearem.
- No temas!
Uma voz suave, quase inaudvel, sussurrou levemente em seu ouvido. Sentindo como se
fosse desmaiar, Melanie teve a percepo que alguma coisa lhe amparava encostando-a na
parede. Tentou olhar ao redor. Estava escuro. As luzes haviam cessado. Sentiu algum
passar e esbarrar em seu corpo combalido. No conseguiu identificar o que era. Apenas viu
o vulto saindo pela porta.
- Mel!
Ela ouviu a voz do irmo enquanto se recuperava escorando-se na parede.
8/7/2019 Os Segredos de Uma Noite - Debora Mariano
28/273
- voc, Nicolas? -Perguntou ainda bastante zonza.
- Claro que sou eu.
Nicolas veio ao seu encontro. Melanie j podia vislumbrar os olhos inocentes do irmo. Ele
a abraou e os dois saram do banheiro.
Estava muito escuro l dentro. Aquele homem ali ficou comigo pra eu no ficar com
medo Nicolas apontou em direo a uma caminhonete velha que estava estacionada. Deu
tempo de Melanie ver o homem que entrava nela.
- Quem esse homem?
- Eu no sei. Ele estava l dentro. Respondeu Nicolas. - Ele perguntou um monte de
coisas pra mim.
Ouvindo um barulho de motor Melanie olhou de novo para onde estava a caminhonete. O
homem a encarou e mesmo um pouco distante, ela conseguiu ver a negritude dos seus
olhos. Ele sorriu. Era um sorriso sarcstico. Ele acenou na direo deles e saiu para estrada.
- Voc j sabe Nicolas. No pode falar com gente que voc no conhece. perigoso.
- O que perigoso?
Flvia chegou e escutou apenas o fim da frase. Melanie compreendeu que no deveria falar
nada pra me, pelo menos, no por enquanto. Ela sabia que se falasse alguma coisa, Flvia
iria querer sair atrs de polcia, ou pior, do prprio homem da caminhonete.
- Lugar escuro, me. -Melanie tentou contornar. -O Nicolas queria fazer xixi no banheiro. -
Ela olhou para Nicolas para que ele concordasse com a estria.
- Estava escuro l dentro. - Continuou, enquanto Nicolas acenava com a cabea dando
crdito para a narrao da irm. - Falei pra ele fazer ali no cantinho mesmo.
8/7/2019 Os Segredos de Uma Noite - Debora Mariano
29/273
Flvia no engoliu muita a estria, mas fez sinal pra que entrassem no carro. Os filhos
obedeceram e ela tambm entrou segurando uma sacola. Ps sobre o colo de Melanie,
enquanto colocava a chave na ignio.
- O rapaz me falou que falta menos de trs quilmetros de asfalto e mais uns cinco deestrada de cho por um desvio e chegamos.
Melanie abriu a sacola plstica e viu bolachas, chocolates e refrigerantes.
- Eu sei o que voc est pensando. - Disse Flvia dando a partida e colocando a marcha.
Mas hoje eu fao uma exceo. Podem comer essas bobagens. s isso que eles tinham l
mesmo.
Instantes depois eles estavam novamente na estrada. S que agora Melanie refletia econsiderava que sua me havia se enganado desta vez. Ela realmente olhava para o interior
daquela sacola, mas na verdade, o que ela estava pensando, era sobre tudo que acontecera
agora pouco, naquele banheiro.
O carro foi parando. Isso fez com que Melanie, desperta-se. Abriu com dificuldade os olhos
e ainda deu tempo de ver a me estacionar. Ela olha para trs e Nicolas a encara sorrindo.
- Chegamos. - Disse o garoto parecendo realmente no se importar por toda mudana que
estava passando.
J era hora. - Respondeu Melanie tentando identificar onde estavam.
- Vamos ficar aqui esses dias. - Disse Flvia apontando para uma casa grande e velha.
Melanie olhou com desapreo para o lugar. Pareceu-lhe aquelas pousadas administradas por
velhas senhoras, com cara amarrada e olhar desaprovador pra tudo que o hspede faz.
Principalmente os da idade dela e do irmo.
- Vamos descendo. Sugeriu Flvia Por que amanh vai ser um dia muito cheio e
precisamos descansar um pouco.
Desceram e seguiram na direo da entrada. Flvia carregava uma pequena bolsa com
documentos e roupas. Passaram em silncio pelo porto e continuaram at a porta da
pousada. Era uma casa enorme de madeira, e apesar da pouca luminosidade, Melanie notou
8/7/2019 Os Segredos de Uma Noite - Debora Mariano
30/273
que foi pintada com um verde musgo que a deixou ainda mais desagradvel. Ostentava uma
rea que se estendia por toda a frente. Alguns poucos vasos pendurados com samambaias
eram os nicos enfeites. A porta de entrada era grande e seu tom amarronzado
compartilhava para denunciar o mau gosto do proprietrio do local. Ouviu-se o barulho da
chave sendo girada. Melanie olhou na direo da fechadura e concluiu que, com certeza,sua fabricao no era deste sculo. A porta abriu lentamente e o rosto sorridente de uma
menina, de uns seis ou sete anos, apareceu.
- Dona Flvia? Perguntou a garotinha.
- Isso mesmo Respondeu Flvia retribuindo o sorriso.
- Oi! Eu sou a Raissa! Fizeram uma boa viagem? - A menina escancarou a porta. Minha
av est esperando vocs.
A menina deu as costas e entrou. Olhando para Flvia, Melanie identificou o motivo do seu
leve sorriso de contentamento. Possivelmente ela estaria fazendo comparaes em sua
mente. o que sempre ela faz quando depara com uma garotinha precoce. Pelo que
Melanie sabe e a me no a deixa esquecer, que j foi espontnea e prodgio desse jeito.
Uma Lisa Simpson.
Entrando por ltimo, Melanie, perguntava-se que assuntos teria a me para resolver numa
cidade como essa. No poderiam ser resolvidos por telefone? Por e-mail, quem sabe? Ela
corre os olhos pela grande sala de entrada. Mveis antigos. Quadros antigos. Tudo antigo.Uma TV pr-histrica, daquelas que parecem preto-e-branco, estava desligada no canto. Se
a TV era assim, computador ento, se existisse um por ali, claro, deveria funcionar a
manivela. Melanie olhou para o sof coberto por uma capa com estampas florais, e este,
pareceu exercer sobre a jovem uma fora de atrao muito grande. Vencida por ela,
Melanie sentou-se pesadamente, no desconfortvel sof. Cruzou os braos e paralisou os
msculos do corpo permanecendo inerte. Flvia e Nicolas entraram pelo corredor que
levava aos demais cmodos da casa, seguindo a efusiva Raissa. O que uma menina na idade
dela estaria fazendo acordada at essa hora? Na verdade, isso no interessava a Melanie.
Afinal, agora, ela s nutria o desejo de dormir. Seus olhos pesaram novamente e ela foi
soltando-se vagarosamente no sof, encostando a cabea na lateral e recolhendo as pernas
sobre ele. Fechou os olhos.
- No temas!
8/7/2019 Os Segredos de Uma Noite - Debora Mariano
31/273
Melanie deu um sobressalto e sentou-se no sof. Seu corao disparou. Ela no soube
discernir se ouviu aquela mesma voz suave sussurrar no seu ouvido novamente ou apenas
lembrou do momento que vivenciou naquele banheiro do posto de gasolina.
- O que foi?
Ela olhou na direo de onde partiu a voz. Raissa com a cabea levemente inclinada para o
lado, depositava os olhos azuis inquisidores, fixados nela.
- Nada! - Respondeu Melanie sem ainda compreender o que sentiu.
A garotinha sorriu e Melanie notou a perfeio dos seus dentes. Pareceu-lhe que, pelo
menos, eles devem ter dentista na cidade.
- Aqui no! Mas tem um que vem toda semana. Dr. Marcos. Disse Raissa enquanto
olhava a garota deitada sobre o sof. Depois meneou a cabea e saiu saltitante.
Nem deu tempo de Melanie digerir o que acabou de acontecer e sua me, ladeada de um
Nicolas sonolento, entrou na sala. Uma senhora idosa, segurando a mo de Raissa, entrou
na seqncia. Vestindo uma camisola e um penhoar azul, ela sustentava um ar nada severo.
Bem ao contrrio do que Melanie havia imaginado. culos de aros grandes, cabelos
totalmente brancos e possua um andar confiante, apesar da idade avanada.
- Essa a minha filha Melanie. - Frisou Flvia apontando na direo da filha, que
imediatamente se levantou, esboando um sorriso endereado a velha senhora.
- Seja bem vinda minha filha. Disse a mulher num tom cordial.
- A Dona Carmlia a proprietria daqui j h muitos anos. Completou Flvia E vai
cuidar muito bem da gente.
Sem saber o que dizer. Ou no querendo mesmo. A garota concordou com um aceno de
cabea.
- Vocs devem estar muito cansados. Querem ir pro quarto agora?
- Por favor, Dona Carmlia. Concordou Flvia.
8/7/2019 Os Segredos de Uma Noite - Debora Mariano
32/273
- Por aqui. - A velha senhora apontou o caminho.
E o resto das nossas coisas no carro? - Pensou Melanie enquanto seguia a feliz comitiva.
Deixa l. Acho que nem ladro existe neste fim de mundo.
- Voc engraada! Disse Raissa rindo.
Melanie olhou surpresa para menina um pouco a sua frente. Raissa estava olhando para
ela, com os luminosos olhos azuis.
- Fim de mundo... Repetiu a garotinha.
Flvia dormiu mais do que o costume. Estava, realmente, cansada. Dirigiu por muitas
horas. Quase atravessaram o Estado. Nicolas tambm acordou tarde. Como pode caber
tanta sonolncia num s corpo? Melanie se perguntava. Ela, por sua vez, acordou por
primeiro e se ps em seguida a olhar pela janela. As manhs em lugares assim, to
buclicos, so lindas. Melanie at estranhou o desejo que sentiu de sair por ai, dar uma
volta. A impresso que Melanie tinha criado do lugarejo na noite de ontem, poderia se
dissipar com a luz do sol. A noite fica difcil visualizar as belezas que uma cidade tem, por
mais minscula que possa ser. Monte Seco no deveria ser diferente. A garota precisaria
ento tirar a prova nesta manh.Antes mesmo de chegar cozinha, Melanie sentiu o caracterstico e delicioso aroma de
caf. Parecia que ela estava em uma fazenda. S estava faltando ouvir o som de uma vaca,
ou o relincho de um cavalo. Ela passou pelo longo corredor e olhava as fotos penduradas na
parede. Fotos antigas. Possivelmente com pessoas da famlia da proprietria. Parou diante
de uma que lhe chamou a ateno. Era um grupo pequeno de pessoas enfileiradas e
sorrindo. Certamente, todos da mesma famlia. Ela imaginava, apontando com o dedo sobre
a pessoa, o que cada um poderia representar dentro do crculo familiar. O homem de
bigode, que usava chapu e um terno velho deveria ser o pai. A mulher de vestido simples,
era a me. O senhor mais velho, com a bengala e suspensrios, era o av. Na frente duas
menininhas muito sorridentes. A mais velha, que usava um vestidinho mais claro, abraava
a possvel irm mais nova. O seu rosto era um pouco familiar para Melanie. Parecia que j
tinha visto a foto dessa menina. A mais nova sorria mostrando os dentes que faltavam na
boca. Ela era muito engraadinha. Antes de seguir para cozinha, outro detalhe chamou a
8/7/2019 Os Segredos de Uma Noite - Debora Mariano
33/273
ateno de Melanie. L no fundo uma outra mulher, mais velha, com a cara fechada,
observava a famlia que estava em primeiro plano. Ela tinha um olhar nada amigvel.
Se queria ser penetra na foto, pelo menos, sorrisse. - Pensou Melanie.
- Bom dia, criana. Cumprimentou Dona Carmlia.
Melanie virou-se e deu de cara com a amistosa senhora no fim do corredor, que dava acesso
a cozinha.
- Bom dia senhora. Respondeu ainda tmida Melanie.
- Gosta de fotos antigas?
- Mais ou menos. Respondeu sem graa a garota So da sua famlia?
- Digamos que sim. Respondeu a senhora ajeitando o quadro que parecia estar um pouco
torto. Se moram nesta cidade, ou mesmo temporariamente, nesta pousada, ento so da
minha famlia.
Melanie sorriu por se sentir includa na famlia da boa senhora. A mulher retribuiu o
sorriso.
- Quer saborear um cafezinho que eu mesma torrei? Perguntou, com certo orgulho, Dona
Carmlia.
Melanie respondeu positivamente com vrios balanares de cabea.
- Eu garanto que voc nunca tomou um caf to saboroso.
Dona Carmlia deu meia volta e entrou na cozinha, seguida por Melanie.
Experimentou o caf, os pes, os bolos, as bolachas caseiras e outros quitutes colocados em
sua frente pela sorridente Dona Carmlia. Como ela poderia dizer um no quela
senhora? Saiu da cozinha como se estivesse almoado. Estava indo tomar um ar, quando
deparou-se com Flvia e Nicolas no corredor.
- Opa! Achamos a desaparecida. Brincou Flvia olhando para Nicolas.
8/7/2019 Os Segredos de Uma Noite - Debora Mariano
34/273
- Eu estava na cozinha. Respondeu Melanie. Vou dar uma volta por ai. Reconhecimento
de territrio.
- No v se perder. Brincou mais uma vez Flvia seguindo com Nicolas para cozinha.- Como se isso fosse possvel?
Flvia abraou o filho e seguiram pelo longo corredor. Melanie estava na porta de entrada
quando olhou para trs e viu a me parada diante da mesma foto. A garota abriu a porta e
saiu.
A pequena cidade ainda mais pequena do que ela imaginou, quando sua me a comunicou
de sua intrpida deciso. Minscula. Sufocante. Andou algumas quadras e a cidade
terminou. O carro mais novo que viu era o deles. E ele j tem mais de dez anos de uso.Mas, ainda sim, tinha os seus atrativos. Poucos, mas tinha. As casas na maioria muito
simples, eram aconchegantes. Ao redor da cidade, podia se notar, vrios montes que quase
a circulavam, formando uma barreira natural. Um fator preponderante, poucas pessoas na
rua. Bem poucas.
Melanie estava voltando pela rua paralela, da qual, caminhou. Olhou uma placa com letras
escritas a mo Mercadinho do Joo.
Oh! Criatividade do povo do interior. Pensou entrando no mercado.
Uma prateleira pregada na parede continha os itens de mais extrema necessidade. Arroz,
feijo, sal, acar, trigo. Em geral, s alimentos. Tambm alguma coisa de limpeza e
higiene. Uma mesa virou um improvisado balco. Atrs dele um homem, possivelmente o
Joo, atendia uma garota, que aparentava a mesma idade de Melanie.
Melanie se aproximou e notou que a garota a olhava de canto. Parecia envergonhada. O
homem lanou em sua direo um olhar seco e balanou a cabea como dizendo: O que
voc quer?
Melanie deu um sorriso amarelo, indicando que o homem atendesse a outra garota
primeiramente. O homem voltou ateno para os produtos em cima do balco e os
relacionava em um caderno.
- Pode levar, menina. Disse ele para a garota a sua frente.
8/7/2019 Os Segredos de Uma Noite - Debora Mariano
35/273
Ela juntou os produtos rapidamente e saiu, quase correndo, sem mesmo olhar para Melanie.
O homem fez o mesmo gesto que havia feito anteriormente. O balanar de cabea
indicando: O que voc quer? Ela concluiu que deveria ser o jeito sutil e amigvel que ele
costumava a atender as pessoas.
- O senhor tem Trident? Perguntou olhando pelo balco na tentativa de encontrar o que
desejava.
- No. Respondeu seco o homem.
No? Pensou Melanie. At no Plo Norte deve ter chicletes.
- Obrigada ento. Agradeceu Melanie pela simpatia do homem e saiu lhe desejando todas
as bnos do mundo.
Na rua, Melanie avistou ao longe a menina seguindo na direo da pousada e apertou o
passo, tentando alcan-la. Quando chegou a alguns metros de distncia, Melanie gritou:
- Hei! Espere.
A menina olhou para trs e comeou a andar mais rpido. Melanie diminuiu a passada.
Nossa ser que tenho lepra e no sei? Pensou desgostosa Melanie. Ela ainda viu agarota arredia entrar na casa ao lado da pousada.
Acabei de sair e j estou aqui de volta. Concluiu Melanie ao verificar que estava,
novamente, em frente pousada. A garota torceu o lbio e procurou um lugar mais
tranqilo, como se tudo ali j no fosse calmo, para sentar e dar um tempo antes de entrar.
Evitaria um irnico J voltou?, vindo da parte da me. Ela olhou mais adiante, seguindo
pela rua que d na auto-estrada, um campo aberto, com uma grande rvore solitria no
centro. Era um pouco longe, teria que vencer uma subida no muito convidativa, mas pelo
menos indo at a rvore, gastaria mais uma meia hora de tempo ficando por l, antes de
entrar.
Melanie estava debaixo daquela rvore que crescera sozinha naquele espaoso terreno.
Quem a plantou no imaginou que aquela rvore, que Melanie no sabia identificar de qual
8/7/2019 Os Segredos de Uma Noite - Debora Mariano
36/273
procedncia pertencia, representaria a garota da cidade grande, perdida e sozinha, que veio
parar num lugar to tedioso.
No vai fugir de mim, vai? Gostaria de perguntar para a rvore.
Ela se obrigou a sentar e se encostar, no tronco largo da rvore. Poderia ficar ali um bom
tempo, ouvindo msica, mas acabou esquecendo o mp4 na pousada. O jeito era ficar
olhando para o movimento da estrada, que de vez em quando, recebia um carro, passando
em alta velocidade.
O vento soprava os galhos da rvore solitria e esta parecia danar, contente, pela presena
incomum de uma pessoa usufruindo de sua sombra. Melanie olhava para pousada e pensava
quanto tempo teria que permanecer ali, naquela cidade. Suas amigas deveriam estar cheiasde planos. Ela, por enquanto, no fazia parte deles. Pensou em levantar e voltar ao quarto,
para ficar ainda mais aborrecida, mas algo mudou sua inteno. Passando a uns 100 metros
a sua frente estava o maior homem que ela j tinha visto. Um poste ambulante. Devia ter
bem mais que dois metros. Ele at caminhava com dificuldade. Melanie ficou de boca
aberta vendo aquele homenzarro passar ao longe.
- Wladmir! Espere!
Melanie percebeu que algum chamava o grandalho. Ele parou e, muito lentamente, foivirando-se. Parecia que tinha uma grande dificuldade em se equilibrar. Melanie viu quem o
havia chamado. Era um sorridente rapaz. Moreno de cabelos castanhos escuros, quase na
altura do ombro. Era bonito. Estava sem camisa e vestia uma cala cqui. Ele parou ao lado
do imenso homem e parecia um ano. Melanie riu. O garoto mal alcanava a cintura do
homem.
- No fica chateado, no, gigante. Melanie ouviu o rapaz falar. Mas que no precisa
voc ficar atrs de mim toda hora.
Hum. Devem ser de circo, sei l. Pensou Melanie.
O rapaz devia ser algum artista que o grandalho precisava proteger, ou coisa assim. Tem
muita coisa estranha neste mundo. Neste caso, Melanie olhou bem para o homem para tirar
a prova de que ele no estaria usando uma perna de pau. Quem sabe? No dava indcios
8/7/2019 Os Segredos de Uma Noite - Debora Mariano
37/273
disso. Sua excessiva altura pertencia a ele mesmo. Um carro surgiu na estrada e o motorista
quando avistou o grandalho, foi diminuindo a velocidade e passou ao lado dos dois com a
ntida expresso de espanto.
- Vamos embora, gigante. Disse o rapaz olhando o carro seguir e retomar sua velocidadenormal. J est chamando a ateno de novo.
O homem grande concordou com um aceno de cabea. O rapaz sorriu e pulou em suas
costas. Foi uma cena engraada e Melanie no agentou e, mesmo sem querer, riu alto.
Os dois olharam para a garota, que at ento no tinham notado, debaixo da rvore.
Melanie corou e baixou os olhos. O rapaz desceu das costas do grandalho. Ele ficou
parado por alguns segundos olhando para Melanie. Ela o espiava discretamente e estava
ficando angustiada pelo olhar insistente do rapaz. Ele no se moveu at fazer um gesto
esquisito. Sorveu o vento que seguia na sua direo e que passava por Melanie, balanandoas folhas da rvore.
Que cara estranho. Pensou ela.
- Temos que ir. Disse o grandalho e Melanie identificou seu sotaque. Era russo.
- J vamos, gigante. Disse o rapaz ainda olhando para Melanie.
- Ir agora! Frisou o russo.
O rapaz olhou para o homem e em seguida desviou seu olhar para Melanie. Parecia que
tinha a inteno de falar alguma coisa, mas se arrependeu. Lentamente seguiu at onde
estava o grande homem que, equilibrando-se em suas enormes pernas, andava pela estrada
na direo da cidade. Melanie notou que o rapaz a cada dois ou trs passos olhava para trs,
at entrarem em definitivo em Monte Seco.
Cada maluco. Pensou aliviada Melanie.
A garota esperou uns dez minutos, mais ou menos, e levantou-se. Nem sinal da dupla de
esquisitos. J estava mais do que na hora de retornar a pousada.
8/7/2019 Os Segredos de Uma Noite - Debora Mariano
38/273
Captulo Trs Julian
O garoto ficou parado quase uma meia hora, alheado, olhando para o horizonte. Em sua
mente irrompia a imagem perfeita: a linda menina, com seu tnis All Star roxo, sentadadebaixo da rvore solitria. Ainda em seus ouvidos ele experimentava o som magistral de
sua risada. Ela tinha uma fragrncia peculiar; um cheiro que ele jamais havia apreciado.
- Est pronto garoto. Disse o homem da oficina S levar.
O garoto voltou a olhar para o interior da pequena oficina montada no quintal de uma casa
e viu a velha caminhonete da famlia. O russo de dois metros e dezoito centmetros, sorria
magnificente, ao lado da F-100.
- Obrigado Seu Carlos. Respondeu o garoto. Minha av manda o dinheiro e o mel
depois.
Esse conserto, assim como os das outras vezes, seria pago metade em dinheiro e metade em
mel, que era produzido na fazenda que o garoto morava.
- No se preocupe. Respondeu o homem batendo na caminhonete. Ela est firme como
antes.
- Valeu Seu Carlos. Por isso que a minha av gosta muito do senhor.
- Mande um abrao pra ela. S diga que no fui eu mesmo levar a caminhonete e fazer uma
visitinha, por que no seria bem recebido... O homem deu uma pausa. Voc sabe por
quem.
- Que isso, Seu Carlos? Minha av ficaria feliz em receber o senhor. Ningum dessas
bandas vai visit-la, o senhor sabe.
-. As pessoas daqui no a conhecem como eu. Levam suas vidas se baseando por essas
estrias antigas.
- Eu sinto isso na pele todo dia.
8/7/2019 Os Segredos de Uma Noite - Debora Mariano
39/273
O homem concorda com um aceno de cabea pondo fim na conversa.
O garoto Julian dirigia a velha, mas firme F-100, pelas ruas de terra que dariam na fazenda
onde mora com a av e seus outros familiares. Wladmir, o gigante, ficava sempre na
carroceria por dois motivos. Era muito mais confortvel para suas longas pernas e por queamava sentir o vento fresco no rosto. O vento era o nico toque de carinho que recebia. No
seu pas o vento congelava; quase quanto o olhar das pessoas. Julian conhecia aquelas
curvas da estrada de cor, desde menino transitava por elas. Mas no era esse o motivo pelo
qual dirigia quase que automaticamente; era por que no parava de pensar na garota que
nem mesmo sabia o nome. Julian olhou pela janela traseira da caminhonete e viu Wladmir
rindo sozinho recebendo o vento no rosto.
- Me responda, gigante Disse Julian - Como algum pode saber quando est diante da
garota da sua vida? Daquela que no existe outra igual?
Wladmir encolheu os ombros. Definitivamente, no saberia responder ao garoto. Ele nunca
tinha feito uma pergunta desse assunto para o russo.
- Wladmir no saber responder Disse sincero o russo.
- Mas voc nunca esteve diante de uma garota que voc nunca tinha visto antes e sentiu o
mundo parar? Disse Julian.
Wladmir abaixou os olhos. Tinha sentido algo semelhante uma vez, na Rssia. Mas seu
tamanho desproporcional, somado ao seu rosto disforme, no permitiu que sua amada
sentisse o mesmo. Apesar de compreender o que Julian estava tentando dizer, Wladmir no
saberia transformar em palavras.
- Fala pra mim, gigante. Continuou Julian. normal isso que eu estou sentindo?
- J disse no saber.
- Me d uma luz. Disse Julian olhando para trs. Voc nico com quem posso falar
essas coisas.
- Mas garoto nunca falar antes essas coisas com Wladmir.
8/7/2019 Os Segredos de Uma Noite - Debora Mariano
40/273
Julian pensa por alguns instantes.
- Tem razo, amigo. Completou Julian que isso novo pra mim tambm.
Julian avistou o grande porto que d acesso a fazenda da famlia. Estava na hora de voltar rotina de sempre. Mas amanh seria um outro dia e poderia voltar at aquela rvore.
Quem sabe a garota, de cheiro agradvel, estaria sentada debaixo de seus galhos.
O singelo canto de pssaros prximo a janela. Foi isso que acordou Melanie naquela
manh. Pra quem dormia sem se incomodar com barulho dos motores de nibus. Afinal,
eles j chegaram a morar quase ao lado de um terminal rodovirio. E toda manh aquela
correria de pessoas transitando, falando alto, xingando o motorista, distribuindo-se pra l e
pra c e at os insuportveis alarmes, quando se usa a r nos nibus, j fizeram parte da
trilha sonora dos sonhos de Melanie.
Procurou o celular pra ver que horas eram e notou que estava sozinha no quarto. Na
verdade, depois de alguns dias j estava acostumando-se com o novo habitat. Velho e com
coisas velhas assim como o resto de tudo na pousada. Bem diferente do seu quarto. No que
ele fosse uma maravilha, mas pelo menos, tinha a sua cara. Sonolenta ela concluiu que os
outros dois membros da famlia deviam ter acordado faz tempo. Apesar de no saber que
horas eram, sentiu que dormira muito, como se fosse por quase toda sua juventude. E
dormir o que mais tem feito esses dias. Considerando que no tem nada pra fazer nesta
cidade. A TV pega apenas o canal de novela e com uma imagem, quase sempre,indefinvel. A rdio fm da cidade mais prxima s rola msica sertaneja e ainda conseguiu
concentrar os piores locutores do planeta. As pessoas da cidade ento, sem condies de
interao. At as da sua idade, as poucas que manteve contato, no caberiam no seu crculo
de amizades. No que ela se imagine chata no sentido de renegar algum de ser meu amigo,
mas as prprias pessoas no cedem muito para aproximao. Outro dia, tentou puxar papo
com a menina que mora na casa ao lado da pousada. Ariela, a garota do mercadinho; mas
ela nem sequer a respondeu corretamente. Raissa lhe disse que por que Ariela sente-se
mal por ser gordinha. Melanie no liga pra isso. Ela tinha uma amiga assim na escola. E
aqueles dois estranhos, ento? O cara grande e o garoto sem camisa. Bom, pelo menos o
garoto a ficou encarando. De repente queria at fazer amizade; mas no falou nada e
Melanie sabia que se tratando de garotos, era muito tmida. No seria ela a puxar papo por
primeiro.
8/7/2019 Os Segredos de Uma Noite - Debora Mariano
41/273
Ento s lhe resta ficar no quarto, fechada, ou lendo os mesmos dois livros que trouxe.
Melanie j tinha acabado Razo e Sensibilidade e estava lendo novamente Orgulho e
Preconceito. Ou relia os livros novamente, ou o que mais triste, ficaria olhando pela
janela, por horas, na direo de casa. Tomou um banho demorado e trocou de roupa. Ficou
paralisada diante do espelho olhando a si mesma tentando imaginar um timo do que ofuturo poderia lhe reservar. Desembaraou mecanicamente os longos cabelos pretos. O
brilho que provinha dos seus olhos castanhos no era o mesmo de antes. Ela
definitivamente era uma garota de cidade cosmopolita. Desceu imaginando as possveis
outras caras que teria de encarar e cumprimentar. Afinal, a pousada tem outros hspedes.
Se pudesse, ficava no quarto o dia todo. Quem sabe seja at uma boa idia dar meia volta,
mas seu estmago no iria concordar e tambm desejava saber o que estariam fazendo a
me e o irmo. Antes de entrar na cozinha percebeu que a foto que tinha notado ontem no
estava mais ali; foi substituda por uma mais recente da menina Raissa. Melanie no
conseguiu imaginar o que teria acontecido. Entrou na cozinha percebeu o homem careca,que sempre mantinha a gola da camisa plo abotoada at em cima, concentrado, lendo um
jornal. Dona Carmlia estava onde se podia apostar que uma senhora como ela estaria: no
fogo j iniciando os trabalhos para o almoo. Pensou em perguntar sobre a foto, mas no
fez. Considerou melhor fazer essa pergunta quando Dona Carmlia estivesse sozinha. Do
outro lado da mesa Nicolas e Raissa perceberam sua presena.
- At que enfim, dorminhoca. - Falou Nicolas.
Se estivssemos s ns dois ele iria ver a dorminhoca. - Pensou Melanie. Mas apenaslimitou-se a fulminar o irmo com o olhar. A senhora idosa olhou para trs e sobre os
culos a encarou. O careca nem se mexeu.
- Bom dia! Quer caf, criana?
Criana. Detesto quando ela me chama assim. Pensou mais uma vez Melanie.
- Criana no v! Exclamou a menina Raissa Melanie!
A garotinha inclinou-se na direo da av e colocando uma das mos no canto da boca
sussurrou:
- Ela no gosta que a chamem assim.
8/7/2019 Os Segredos de Uma Noite - Debora Mariano
42/273
Dona Carmlia percebeu a interrogao no rosto de Melanie sobre as atitudes da neta.
- Raissa, vai brincar l fora. Disse a mulher.
A menina bufa e sai, seguido por Nicolas. Dona Carmlia coloca uma xcara na frente dajovem.
- Pode servir-se.
Ela aponta uma garrafa trmica sobre o centro da mesa, que est quase toda ocupada por
pes, bolos, broas e demais quitutes que possivelmente no sero to apreciados por
Melanie, como foram na primeira manh.
- A senhora sabe da minha me?
- Ela saiu faz um tempinho. Disse que ia resolver algumas coisas importantes.
Melanie tomou seu caf silenciosamente. Evitando at de fazer o barulho da xcara
repousando no pires. Quem sabe assim ningum falaria com ela. Foi mais rpida do que de
costume e saiu. Passou rapidamente pela rea de entrada e seguiu at o porto, no queria
ouvir a voz de Nicolas e nem de sua nova amiga. Quando chegou na rua pensou: Ou saio
dar uma volta por ai ou retorno pra clausura que aquele quarto.
A rua que passava atrs da pousada era a rua principal da cidade. Foi por ela que seguiu atchegar na pracinha. Cruzou com poucas pessoas pelo caminho. Todos a olharam com certa
curiosidade contida. Ficou esperando que algum a cumprimentasse, ningum se preocupou
de faz-lo; tambm ela no se preocupou. Sentou no nico banco que no estava totalmente
quebrado. Colocou seus cotovelos sobre as pernas e ficou imaginado quando aquela bola de
vegetao, que o vento carrega no deserto, iria passar pela sua frente.
E se eu for at aquela rvore? Pensou entediada Melanie. No. Vou ficar aqui
mesmo.
O que faz uma pessoa se interessar por outra? E quando isso acontece inesperadamente, o
que est por trs? Melanie era uma garota que nunca acreditou muito em coincidncias. Pra
tudo existe um porque ela pensava. E, talvez, estivesse certa. Menos de dez minutos depois
foi s ela desviar seu olhar por instantes em outra direo que algo chamou a sua ateno.
Era quase meio dia, o sol reinava absoluto no cu. Ela sentia o suor sobre a sua testa. Ento
8/7/2019 Os Segredos de Uma Noite - Debora Mariano
43/273
no foi capaz de avaliar a razo, pelo qual, aquele cara seguia, solitrio, na sua direo
vestindo um longo e pesado casaco preto. Ela procurou o adjetivo mais infame possvel
para classific-lo, mas no conseguiu. Em um sol escaldante destes quem ousaria trajar uma
roupa pesada como essas?
A gente v cada coisa neste mundo. - Pensou. Achou melhor olhar novamente para o
encasacado antes que ele estivesse bem perto, assim poderia rir da cara dele em seus
pensamentos depois que ele passasse por ela. Olhou com o canto dos olhos e ele estava
mais perto do que ela havia suposto. Estava bem perto. Moveu a cabea rapidamente para o
outro lado e permaneceu assim. Sentiu-se incomodada de repente. No pelo fato de ser uma
pessoa totalmente estranha que passaria em sua frente. Ela poderia fingir que estava
concentrada em alguma coisa e ignorar. Mas algo diferente, angustiante, realmente mexeu
consigo.
- Ola!
Sentiu a voz do encasacado bem junto dela. Olhou na direo dele e o viu parado quase na
sua frente. Era o garoto que estava com o homem grande. Notou que ele estava sem camisa,
de novo, debaixo do casaco e s depois vislumbrou o seu rosto. Era jovem, imberbe e no
deveria ter mais do que vinte anos. Seus olhos tinham uma tonalidade diferente, quase
como um cinza claro. Certamente, era bonito, daqueles de encher os olhos. Possua um
magnetismo, evidenciado pelo sorriso cativante que somava-se ao estilo incomum que
possua. Melanie o imaginou na escola, no primeiro dia de aula. Mas no vestido do jeitoque estava agora. Se estivesse com uma cala jeans, mesmo que surrada, e uma camiseta
qualquer, ai sim, causaria suspiros em Melanie e seu grupo de amigas. Mas ele estava ali,
agora, somente diante dela, esperando uma resposta.
- Oi. Respondeu Melanie, mas sua voz quase no saiu.
- Voc tem horas ai? Perguntou o desconhecido.
Muito original Ironizou Melanie em seus pensamentos.
- Tenho! - Respondeu a garota pegando o celular no bolso de trs. Falta vinte pro meio
dia.
8/7/2019 Os Segredos de Uma Noite - Debora Mariano
44/273
- Hum. Ele pronunciou ficando em silncio alguns instantes como que procurando alguma
coisa pra dar seqncia na conversa. Melanie limitou-se a ficar olhando para o display do
celular.
- Eu sou Julian.
Ela viu sua mo estendida em sua direo. Hesitou um pouco, mas a apertou.
- Melanie. - Revelou a garota enquanto soltava, tmida, a mo do rapaz.
- Eu te vi embaixo daquela rvore depois da estrada. Disse ele na tentativa de continuar a
conversa. Melanie apenas moveu a cabea. - Vai ficar muito tempo na cidade?
Ela respondeu negativamente com um aceno de cabea.
- Vai morar aqui? Insistiu o rapaz.
O que isso? O cara do FBI? Vai ficar me interrogando? - Pensou Melanie.
- Por uns dias. Respondeu ela imaginando um infelizmente no fim da frase.
- Ento, seja bem vinda a Monte Seco, Melanie.
Pela primeira vez ela sentiu-se encorajada e olhou fixamente na direo do seu rosto.
Encontrou seus olhos encarando-a.
- Obrigada. - Respondeu ela agora ainda atnita com a sensao desconfortvel que estava
sentindo. Sempre passava por isso, justamente quando algum chamava sua ateno.
- Est na pousada?
- Sim.
- Eu moro naquela direo. Apontou para onde havia vindo. Uns dois quilmetros mais
ou menos. Saindo da estrada. Depois do velho seminrio.
Ela esboou um leve sorriso como que entendendo o que ele explicou.
8/7/2019 Os Segredos de Uma Noite - Debora Mariano
45/273
- Voc parece incomodada com alguma coisa. Continuou Julian.
Melanie esboou mais um sorriso sem graa.
- Bom. J vou indo. Disse Julian desapontado. - Desculpa se incomodei voc.
Melanie percebeu o quanto estava sendo hipcrita. Desde que chegou s sabia reclamar dos
habitantes do lugar, considerava-os anti-sociais. Agora estava agindo da mesma maneira e
justamente com a nica pessoa que quebrara essa regra. Mas no estava fazendo isso por
mal; sentia-se desconfortvel nos primeiros contatos com rapazes desconhecidos. Ela
precisaria passar por cima da timidez e tratar convenientemente o rapaz.
- No. Eu que peo desculpas. Disse Melanie se levantando.
No se preocupe. Completou sorridente Julian - As vezes eu falo demais.
- Isso bom, j que por aqui ningum costuma usar o dom da palavra.
- As pessoas so muito caladas, realmente. Mas isso o que, geralmente, acontece em
cidades como essa. As pessoas so mais reservadas.
- Ento. Estou h alguns dias aqui e j estou agindo assim.
- Cuidado! Logo voc estar falando ! De casa ou Bo tamem.
Melanie riu contida. O rapaz alm de bonito e educado parecia ter bom humor. Os melhores
atributos para um homem, considerou ela. Ele percebeu o seu sorriso e a encarou
profundamente. Parecia que estava querendo penetrar na sua mente.
- Bom... Preciso ir agora. Estou indo at o mercadinho. Falou Julian imaginando ser
melhor no chatear mais a garota, para no perder a oportunidade de falar com ela outra
hora. - At depois.
- At depois. Respondeu ela desviando o olhar.
8/7/2019 Os Segredos de Uma Noite - Debora Mariano
46/273
Julian a analisou por inteiro mais uma vez e saiu. Melanie observou-o retornando o
caminho anterior. Ela demorou a perceber que apesar do calor, estava com as mos
congeladas. Ficou de cabea abaixada por alguns segundos e lentamente olhou na direo
de onde ele seguia. Ele caminhava com um porte ligeiramente elegante, como se flutuasse
sobre o cho. Ela o acompanhou com o canto dos olhos at ele desaparecer no fim daestrada.
Melanie sabia que havia ficado impressionada. At depois foram as ltimas palavras do
rapaz. Ela ficou imaginado quando isso seria. Passou toda a tarde pensando no estranho,
que usava um sobretudo, no auge do calor do dia. Ele lhe disse o nome: Julian. Mais do que
tudo, ficou impressionada consigo mesma. Normalmente esse o tipo de cara que no a
atrairia. Era bonito e atraente, mas geralmente ela se dava bem com os menos bonitinhos.
No tinha tanta presso sobre eles e ela no precisaria disput-los com a miss escolar.
Por volta das trs da tarde Flvia retornou. Melanie, como sempre, estava absorta,debruada sobre o peitoril da janela. Agora no mais depositava sua ateno na direo da
cidade onde morava e sim na direo da pracinha onde conheceu Julian.
- Roendo as unhas de novo, menina. Alertou Flvia percebendo Melanie concentrada na
janela. Pare com isso, j te falei. Vai comer todos os dedos assim.
Melanie tirou o dedo da boca. Realmente ela tinha esse hbito horrvel.
- De novo trancada neste quarto, menina? Repreendeu Flvia mais uma vez - Vai definharassim.
- Eu j sai. Respondeu Melanie. - Fui dar uma volta hoje de manh.
- Hum! Bom sinal. Alguma surpresa?
- Comigo no. E com voc?
- Se est me perguntando o que eu fui fazer. Respondeu Flvia jogando-se na cama
Fique calma que j est tudo se resolvendo e j estaremos sumindo daqui. Flvia deu
nfase, prolongando ainda mais no sumindo, somado a um gesto de decolar, como se eles
fossem sair dali de avio.
Melanie analisou as palavras da me. Era tudo o que ela desejaria ouvir. Antes, obviamente,
daquela manh que enfim decidiu sair. Algo mudou sua vontade urgente de partir: Julian.
8/7/2019 Os Segredos de Uma Noite - Debora Mariano
47/273
Captulo Quatro Cidade dos Segredos
Ao contrrio dos primeiros dias e das primeiras horas que vivenciou na pequena cidade.
Melanie observava agora que o tempo parecia, teimosamente, correr mais depressa. H
alguns dias deparou-se com um desconhecido e agora suas perspectivas j eram outras.Quanta diferena aquele sobretudo fez. Se fosse um carinha do estilo gtico de cidade
grande, v l. Mas um caipira desfilando em plena luz do meio dia como se estivesse no
filme do Batman. Com certeza, seria motivo para um comentrio maldoso feito na rodinha
de amigas quando voltasse. Mas era mais do que isso. O comentrio, entre amigas, poderia
at acontecer, mas no seria engraado. Melanie
Recommended