OFÍCIO DE TREVAS
POEMAS DE
CARLOS MARIA DE ARAÚJO
1960
LIVROS DE PORTUGAL
RIO DE JANEIRO
«I shall sit here serving tea to friends»
T. S. Eliot
(«Portrait of a lady»)
Déjà le papier manque au temps mort du délire.
Garçon de quoi écrire
Aragon
(«Les mots m’ont pris par la main»)
I
Jogo no ar os meus versos
como quem joga uma flor
Que o sinta, que o entenda
quem entender o meu gesto
11
II
Oh! A terra
vermelha
do meu corpo,
que tantos pés
já pisaram
em ritmo apressado
e em todos os sentidos,
mas onde
jamais alguém ficou
sequer por um instante
adormecido
sonhando
12
III
PEQUENO BILHETE DE EXÍLIO
Se tua noite fôsse a minha noite
e meu fôsse o teu dia
se teu caminho fôsse o meu caminho
e tua casa a minha
se teu pão e teu sal fôssem os meus
e teu fôsse o meu vinho
não choraria as lágrimas que choro
e a saudade não me queimaria
Quando a tua vida começa
meu amigo
eu morro a minha morte, cada dia
13
IV
O nevoeiro verde
é uma tôrre
imprecisa nos contornos
mas exata
Tem vinte e sete entradas
na muralha
conduzindo a urna escada
circular
Mas a escada não tem fim
nem tem princípio
pois seu último degrau
é o primeiro
14
V
ELEGIA
Os dedos
que percorrem meus cabelos
e aquietam os meus olhos
que afagam os meus lábios
e seguram minha mão
que afastam minha angústia
hoje
não são
15
VI
E NO DIA DA VOSSA IRA
De quem afogou a ninhada de cachorros
lembrai-vos, senhor
De quem abortou na volta de uma escada
lembrai-vos, senhor
De quem arrombou o cofre da ermida
lembrai-vos, senhor
De quem fecundou a prostituta
lembrai-vos, senhor
De quem violou a sepultura
lembrai-vos, senhor
17
De quem mentiu aos cegos e aos loucos
lembrai-vos, senhor
Do sedutor de moças e meninos
lembrai-vos, senhor
De quem urina sôbre as flôres
lembrai-vos, senhor
E se houver tempo ainda
senhor
lembrai-vos do sal
e do carvão nas minas
18
VII
O verso
se esconde em mim
com mêdo de ser verso
É como a ave
noturna
que emudece
à luz pequena da manhã
O verso
tem mêdo de ser verso
em minha boca
19
VIII
Os passos vão e vão:
luas antigas
E o silêncio:
novas fontes
claras
novos rios
20
IX
ANTE-MANHÃ
A hora é ana menos dois minutos
faltam dois minutos para ana
sinto que faltam apenas dois minutos
mas o vento cheira ainda a maresia
e nos olhos dos gatos há fogo verde ainda
faltam dois minutos para ana
sinto que faltam apenas dois minutos
mas a flor está ainda anoitecida
e a côr do céu é côr de vinho ainda
21
é impossível que não faltem dois minutos
ia jurar que nem faltam dois minutos
para ana
e meu corpo está ainda em agonia
e o meu verso é em penumbra ainda
22
X
Porque nunca fôste nostalgia
porque nunca fôste insônia
febre de aventura
navio
porque nunca fôste a lua
vento noturno
agonia
23
porque nunca fôste desatino
luzir de faca
cilício
porque és penumbra e quietude
capela nua
vigília
és tu esta poesia
minha amiga
24
XI
Já foi um barco à vela
êste meu corpo
hoje um madeiro, algas e salsugem
já foi proa de aventuras
e em seu seio
vozes cantaram e arderam lumes
rasgou-lhe o peito o amor
um desespero
um arrecife sem nome, de tão grande
já foi um barco à vela
êste meu corpo
hoje nudez, hoje ausências, hoje brumas
25
XII
O dia vai e noutro se encadeia
e êste meu querer mais se liberta
de gestos, palavras, outras peias,
para ser
apenas
uma idéia
26
XIII
Lá vem o touro vermelho
lá vem o touro correndo
nos cornos a lua nova
nas patas o sol morrendo
em seu dôrso vai um pranto
que já às nuvens subindo
se desgarra e vem caindo
num arco-íris de espanto
lá vai o touro vermelho
lá vai o touro correndo
nos cornos a estrêla dalva
nas patas o sol nascendo
27
XIV
Os anjos vêm voando
do fim da noite escura
olhos amarelos
e asas de penumbra
28
XV
Vem até mim
a noite que eu não quero
e cobre-me o rosto com um lenço vermelho
em asas de silêncio
traz-me o espanto:
rio de fogo, cavalo
acossado pelo vento,
agoiro, canto indistinto
pois que é presságio ainda
vem até mim
a noite que eu não quero
e cobre-me o rosto com um lenço vermelho
tecido fio a fio de meu peito
29
XVI
Ainda se caíssemos como a noite
ainda se o vento nos levasse
em suas longas crinas de cavalo
ainda se fôssemos um gesto
de mar se alongando para o longe
ainda se não fôssemos semente
do grande mêdo que se levanta em nós
30
XVII
EM VOZ BAIXA E EM GRANDE AFLIÇÃO
Creio no senhor deus padre poderoso
criador das aves e das flôres
e desta minha angústia
sudário friíssimo em que me vejo
embora viva ainda
E creio em seu filho jesus cristo
nascido de uma virgem
que foi crucificado, morto
e sepultado
e depois subiu no vento ate aos céus
32
Creio ainda que serei julgado
No dia em que o forem os mortos e os vivos
e os que estiverem
como eu
em agonia
Creio também no santo espírito
sobretudo porque êle é uma pomba
e também, porque não, na santa mãe igreja
e na comunhão dos anjos
e dos santos
Creio ainda
ah, senhor, antes não crêsse
na ressurreição da minha carne em febre
E porque tenho a mui secreta esperança
creio na remissão de todos os pecados
e numa outra vida que não esta.
33
XVIII
De longe
não se sabe se é orvalho
se são contas de vidro
se apenas a tristeza
e uma flor...
34
XIX
É o olho redondo e amarelo
de um galo
imóvel na tempestade
É a cabeça de um peixe
brasa verde e fria
ardendo entre mil flôres
É um cavalo
de ventre aberto
as raízes de sangue
luzindo à luz do sol
É um incêndio
correndo como um rio
desvairado por muita chuva
O mêdo
é o ciciar das fôlhas na floresta
é um chicote uivando
é uma nuvem
35
XX
O tédio de céu a céu, colar de melancolia
Não há reis nem leões naquela nuvem
O tédio de céu a céu, colar de melancolia
Ainda se ventasse ainda se chovesse
O tédio de céu a céu, colar de melancolia
As formigas são sempre diligentes
O tédio de céu a céu, colar de melancolia
As aves outrora parece que falavam
O tédio de céu a céu, colar de melancolia
As flôres as flôres por que razão as flôres
O tédio de céu a céu, colar de melancolia
Há o rio das mortes e há o rio negro
O tédio de céu a céu, colar de melancolia
O fogo consumiu a ponte e o caminho
O tédio de céu a céu, colar de melancolia
36
XXI
E plantaram a palmeira em cima do telhado
Antes que o vento enterrasse a casa
quem nela mora sepulto-se em vida
e em noites de verão pensará que é fogo-fátuo
ao assomar à janela para ver a rua
o vôo dos pirilampos e a lua
37
XXII
E no mais alto da tôrre, um galo de ouro fino
mas quanto sol, quanta chuva
quantas pedras
descarnaram ossos,
quantas aves do céu fugiram para longe
quantas flôres
oh, quantas flôres morreram
E no mais alto da tôrre, um galo de ouro fino
mas quantas dôres
senhor
mas quantas dôres?
38
XXIII
OFÍCIO DE TREVAS
A nossa fome
senhor
quotidiana
a nossa sêde
de água
e de justiça
39
a carnagem do sal em nossos pés
as raízes da noite em nossos olhos
nosso caminho
senhor
senhor
nosso caminho
em nossas mãos
abertas
nosso grito
40
XXIV
É preciso que tragam a bandeira
É preciso que alguém vá até o fim da noite
e desenterre a bandeira
Se já não tiver mãos
que rasgue a terra com os dentes
mas que traga a bandeira
Se já não tiver dentes
que afunde os olhos nessa terra
e lhe arranque a bandeira
que nela está sepulta
É preciso que os tambores anunciem a chegada da
[bandeira
Se não houver tambores
que os mortos se alevantem
e façam rufar seus ossos
em sol altíssimo à chegada da bandeira
42
Iluminem Iluminem Iluminem o
caminho da
[bandeira
Se as nuvens de baionetas forem
trevas no
[caminho da bandeira
que incendeiem a noite com as pedras da rua
mas que haja luz à passagem da bandeira
para que os olhos vazados vejam a bandeira
para que as bocas rasgadas cantem a bandeira
para que os ferros caiam à passagem da bandeira
43
XXV
CINCO CANTOS DE BOTUCATU
1
É um anel de ferro
êste silêncio
que me entra pelos olhos como um rio
e que a pouco e pouco
me confunde
com o verde que vai anoitecendo
É um anel de ferro
êste silêncio
que me entra pela bôca
pelos dedos
e em gestos de prodígio me transforma
em água
pedra lisa
vento
44
2
O vermelho e o rôxo
junto à terra
e o verde se alongando como um rio
e no ar
e balouçando
o meu navio
Os cavalos e os anjos
descobertos
e o touro de perfil, guerreiro antigo
e no ar
e balouçando
o meu navio
As formigas e as foices
inquietas
e o silêncio como a flor se vai abrindo
e no ar
e balouçando
o meu navio
45
3
A égua
se abre como um lírio
e o sol
fecunda-lhe as entranhas
46
4
A chuva canta
e cantam os cavalos
e as rosas brancas
no alto dos espinhos
A terra cheira
a vinho derramado
É uma nuvem só
e são quatro caminhos
47
5
Os patos de máscara vermelha
e a nuvem pouco a pouco uma serpente
o sol é um pão de fogo,
consumido
Já a noite, os avisos, se pressentem...
48
XXVI
Sete braços
sete espadas
sete colinas
de ferro
sete clamores
de penumbra
sete cavalos
de guerra
49
Sete anjos
sete lumes
sete caminhos
de pedra
um arco-íris
de angústias
e sete mantos
de treva
50
XXVII
CANTO
à maneira de Nicolás Guillen
Levanta o clamor
levanta
O peixe
suor e rêde
e o sal
suor e mar
O ferro
suor e fogo
e o pão
suor e foice
51
A noite
suor e febre
e a mão
suor e ossos
A morte
suor
e canto
Levanta o clamor
levanta
52
XXVIII
Pelo fogo
em fogo
e vento
Pela água
em água
e nuvem
Pela terra
em terra
e flor
53
Pela morte
em pedra
e canto
Beberás a água
em sua fonte obscura
E as raízes do trigo
cantarão em tua boca
54
ÍNDICE
I –
II –
III –
IV –
V –
VI –
VII –
VIII –
IX –
X –
XI –
XII –
XIII –
XIV –
XV –
XVI –
XVII –
XVIII –
XIX –
XX –
XXI –
XXII –
XXIII –
XXIV –
XXV –
XXVI –
XXVII –
XXVIII –
Jogo no ar os meus versos ............................................
Oh! A terra ...................................................................
PEQUENO BILHETE DE EXÍLIO ............................
O nevoeiro verde ..........................................................
ELEGIA .......................................................................
E NO DIA DA VOSSA IRA ........................................
O verso .........................................................................
Os passos vão e vão .....................................................
ANTE-MANHÃ ...........................................................
Porque nunca fôste nostalgia ........................................
Já fui um barco à vela ...................................................
O dia vai e noutro se encandeia ....................................
Lá vem o touro vermelho ..............................................
Os anjos vêm voando ....................................................
Vem até mim
.................................................................
Ainda se caíssemos como a noite .................................
EM VOZ BAIXA E EM (GRANDE AFLIÇÃO ..........
De longe
........................................................................
É o ôlho redondo e amarelo ..........................................
O tédio de céu a céu, colar de melancolia
.....................
E plantaram a palmeira em cima do telhado .................
E no mais alto da tôrre, um galo de ouro fino ...............
OFÍCIO DE TREVAS ..................................................
É preciso que tragam a bandeira ...................................
CINCO CANTOS DE BOTUCATU ............................
Sete braços ....................................................................
CANTO ........................................................................
Pelo fogo
.......................................................................
11
12
13
14
15
17
19
20
21
23
25
26
27
28
29
30
32
34
35
36
37
38
39
42
44
49
51
53
Poesia Sempre
ESTE LIVRO
DÉCIMO VOLUME DA COLEÇÃO
POESIA SEMPRE
*
FOI IMPRESSO NA GRÁFICA OLÍMPICA EDITORA
DO RIO DE JANEIRO
EM ABRIL DE 1960
PARA A EDITORA
LIVROS DE PORTUGAL, S. A. DA MESMA CIDADE
*
RETRATO
E
ILUSTRAÇÕES
DE
CLÓVIS GRACIANO