i
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
VANESSA ANDRADE MARTINS PINTO
OFICINAS TERAPUTICAS EM SADE MENTAL:
UM OLHAR NA PERSPECTIVA DOS USURIOS DO CAPS
RIO DE JANEIRO
2011
ii
VANESSA ANDRADE MARTINS PINTO
OFICINAS TERAPUTICAS EM SADE MENTAL:
UM OLHAR NA PERSPECTIVA DOS USURIOS DO CAPS
Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Enfermagem, Escola de Enfermagem Anna Nery,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisitos parcial
obteno do ttulo de Mestre em Enfermagem.
Orientadora: Lilian Hortale de Oliveira Moreira
Doutora em Enfermagem/EEAN/UFRJ
RIO DE JANEIRO
2011
iii
Pinto, Vanessa Andrade Martins
Oficinas Teraputicas na Sade Mental: um olhar na perspectiva dos
usurios do CAPS/ Vanessa Andrade Martins Pinto. Rio de Janeiro:
UFRJ/ EEAN, 2011.
103f.: il.; 31 cm.
Orientadora: Lilian Hortale de Oliveira Moreira
Dissertao (mestrado) UFRJ/ EEAN/ Programa de Ps-Graduao
em Enfermagem, 2011.
Sade Mental. 2. Indicadores de Qualidade em Assistncia
Sade. 3. Enfermagem Psiquitrica. I. Moreira, Lilian Hortale de Oliveira. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de
Enfermagem Anna Nery, Programa de Ps-Graduao em Enfermagem.
III. Ttulo.
iv
VANESSA ANDRADE MARTINS PINTO
OFICINAS TERAPUTICAS EM SADE MENTAL:
UM OLHAR NA PERSPECTIVA DOS USURIOS DO CAPS
Dissertao de Mestrado submetida ao Programa de Ps-Graduao
em Enfermagem, Escola de Enfermagem Anna Nery, Universidade
Federal do Rio Janeiro, como requisitos parcial obteno do ttulo de
Mestre em Enfermagem.
Aprovada em:______________________________
Prof Dr. Lilian Hortale de Oliveira Moreira Presidente
(EEAN/UFRJ)
Prof. Dr. Manoel Olavo Loureiro Teixeira
(IPEC/FIOCRUZ)
Enf Phd. Dra. Jaqueline Da Silva
(EEAN/UFRJ)
Prof Dra. Lys Eiras Cameron
(EEAN/UFRJ)
Prof Dr. Rosane Mello
(EEAP/UNIRIO)
v
Dedicatria
A Deus, meu guia espiritual, que me impulsiona, motiva, inspira, abenoa, encoraja
para realizao de todas as minhas misses, realizando milagres e ddivas na minha pequena
caminhada...
minha Famlia, minha me, minhas irms Sabrina e Deriane, meu sobrinho Pedro Henrique
que alegra os meus momentos, agraciando-me com seu belo e doce sorriso. E, em especial ao
meu Tio Carlos que me apoiou, apostou e acreditou no meu crescimento desde o inicio da minha
trajetria.
Aos meus Tios Z e Ftima pelo amor e carinho nas horas difceis.
memria de meu Pai que sempre se orgulhou muito de mim...
vi
Agradecimentos Especiais
minha orientadora Prof Dr. Lilian Hortale de Oliveira Moreira, por compartilhar comigo
seus conhecimentos e, em muitos momentos, me tranqilizar e me encorajar a seguir em
frente.
Ao LAPPEPSM pela oportunidade de participar das discusses e desenvolver esse estudo.
Aos meus colegas de trabalho, que tambm compartilharam algumas angstias,
medos, alegrias, como Paulo, Elisangela, Elias, Antonio, Sade, Arlete, Iara, Cileni, Sueli, Lucinda, Patrcia,
Zlia, principalmente, s minhas chefias Z Carlos, Emiliane, Evelyn, Simone e Walter, sempre flexveis
e prestativos.
A toda equipe do CAPS Torquato Neto, nas pessoas de Patrcia, Dona Lcia e Sonia Segadas, em
especial aos usurios, por estarem sempre disponveis, para o desenvolvimento do estudo.
A Bianca pela disponibilidade e belo trabalho na transcrio das entrevistas.
Ao NUPENH pelo acolhimento do Projeto de Pesquisa.
Aos Professores do Mestrado, por todos os espaos oferecidos para reflexo e aprendizados.
Aos colegas de turma, especialmente Janana e Thays, pois o sentido de estarmos nesse
momento juntas, no foi por acaso, obrigada pela companhia de vocs nas viagens para
congressos nacionais e internacionais.
Aos amigos, que de alguma maneira, direta e indiretamente, estavam e, eu sei que
esto, orando e impulsionando-me, representados por Grazi, Fabiana, Patricia, Ain, Andrea, Mariza,
Gilza.
...que Deus derrame todas as suas bnos e ddivas, sempre iluminando o melhor passo, caminho, ao, a
todos vocs que fizeram, fazem e faro sempre parte da minha vida.
vii
RESUMO
PINTO, Vanessa Andrade Martins. Oficinas Teraputicas em Sade Mental um olhar na
perspectiva dos usurios do CAPS. Rio de Janeiro, 2011. Dissertao (Mestrado em
Enfermagem) Escola de Enfermagem Anna Nery, Universidade Federal do Rio Janeiro, Rio
de Janeiro, 2011
Estudo descritivo, de natureza qualitativa, acerca da narrativa dos usurios do Centro
de Ateno Psicossocial II sobre as caractersticas de qualidade das oficinas teraputicas em
sade mental. Utilizamos como guia os Indicadores de Qualidade de Projeto (IQPs), conjunto
de tcnicas elaboradas e testadas na rea educacional, que possuem a finalidade de avaliar
projetos educacionais. Este nos propiciou atender aos nossos objetivos que foram: descrever
as caractersticas de qualidade das oficinas teraputicas, a partir da narrativa dos usurios,
utilizando como guia os IQPs; discutir os IQPs como guia para a construo de critrios de
qualidade nas oficinas teraputicas em sade mental; analisar as oficinas teraputicas,
enquanto dispositivo assistencial, a partir do olhar dos usurios. O estudo fundamentou-se em
conceitos da Reabilitao Psicossocial e de estudiosos do Campo da Sade Mental. Nossas
reflexes basearam-se nos dados obtidos de vinte entrevistas realizadas em trs oficinas
teraputicas (Bijuteria, Expressiva e Rdio) de um Centro de Ateno Psicossocial II,
localizado na Zona Norte do Rio de Janeiro. Atravs da anlise dos dados, pudemos perceber
que os doze IQPs esto presentes nas oficinas estudadas, mas que alguns IQPs so essenciais
como critrios de qualidade de uma Oficina Teraputica (Oportunidade, Transformao,
Coerncia, Apropriao, Eficincia, Harmonia), enquanto outros so mais especficos
dependendo do objetivo da Oficina (Oficina de Bijuteria - Cooperao, Oficina Expressiva -
Criatividade, Oficina de Rdio - Protagonismo). Ainda, para os usurios, independente dos
objetivos de uma oficina teraputica existe pontos chaves para que uma oficina tenha
caractersticas de qualidade: modificaes relativas ao quadro psquico e comportamental.
Acreditam que uma oficina possui caracterstica de qualidade quando facilita o
desenvolvimento de habilidades cotidianas, e faz com que eles alcancem o desejo de
sentirem-se melhor, mais valorizados, com liberdade de fazer suas tarefas e escolhas no dia-a-
dia, sem que seja necessria a autorizao de terceiros e a convivncia tem um lugar central
nesse dispositivo teraputico. Ressaltamos que essa apenas uma aproximao possvel
dentre outras. No queremos a generalizao das oficinas, mas apresentar questes instigantes
na aproximao dos IQPs com os conceitos de Reabilitao Psicossocial e Oficina
viii
Teraputica, enquanto dispositivo assistencial. Recomendo, portanto outros estudos em
cenrios e oficinas diferentes para que possamos estudar e comparar o que estamos
produzindo nesses espaos a partir de quem os utiliza como recurso teraputico. E a partir da
criar espaos de conversa entre os usurios e os profissionais de sade mental, visando
dialogo aberto, negociao e qualidade dos servios.
Palavras-chave: Sade Mental. Indicadores de Qualidade em Assistncia Sade.
Enfermagem Psiquitrica.
ix
ABSTRACT
PINTO, Vanessa Andrade Martins. Oficinas Teraputicas em Sade Mental um olhar na
perspectiva dos usurios do CAPS. Rio de Janeiro, 2011. Dissertao (Mestrado em
Enfermagem) Escola de Enfermagem Anna Nery, Universidade Federal do Rio Janeiro, Rio
de Janeiro, 2011
This study is characterized by a qualitative and descriptive approach about the users
narrative from the Psychosocial Care Center II on the quality of therapeutic workshops on
mental health. The Quality Indicators Project (QIPs), a set of techniques developed and tested
in the educational area with the purpose of evaluating educational projects was used as a
guide. This allowed us meet our goals, which were: to describe the quality of therapeutic
workshops, from users narrative, using the QIPs as guide; discuss QIPs as a guide for
building quality criteria in therapeutic workshops on mental health, to analyze the therapeutic
workshops, as an assistance device, from the users point of view. The study was based on
concepts of psychosocial rehabilitation and studies in the mental health field. Our
considerations were based on data obtained from twenty interviews in three therapeutic
workshops (Jewelry, Expressive and Radio) of the Psychosocial Care Center II, located in the
north of Rio de Janeiro. By analyzing the data, we realized that the twelve QIPs are present in
the workshops studied, but some are essential as quality criteria for a therapeutic workshop
(opportunity, transformation, coherence, ownership, efficiency, harmony), while others
depend more on the specific objective of the workshop (Costume Workshop - Cooperation
Workshop Expressive - Creativity Radio Workshop - Protagonist). Still, for users, regardless
of the goals of therapy there is a workshop with key points that a shop as quality features:
changes related to psychological and behavioral context. They believe that a shop has quality
characteristic as facilitates the development of life skills, and makes them reach the desire for
feel better, more valued, with freedom to make choices in their tasks and day to day, without
requiring the consent of third parties and coexistence is a central place in this therapeutic
device. We emphasize that this is only one possible approach among others. We do not want
to generalize the workshops, but to present intriguing questions on the approach to the
concepts of QIPs, Psychosocial Rehabilitation and Workshop Therapy, While assistive
device. I therefore recommend further studies in different scenarios and workshops so that we
can study and compare what we are producing in these spaces from those who use them as a
x
therapeutic resource. And from there to create spaces for conversation between users and
mental health professionals in order to open dialogue, negotiation and quality of services.
Key Word: Mental Health; Quality indicators, Mental Health; Psychiatric Nursing.
xi
LISTA DE SIGLAS
BDEN Base de Dados de Enfermagem online
BIREME Biblioteca Regional de Medicina base de dados online
CAp/UFRJ Colgio de Aplicao da Universidade Federal do Rio de Janeiro
CAPES Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior
CAPS Centro de Ateno Psicossocial
CPCD Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento
IV CNSMI IV Conferncia Nacional de Sade Mental Intersetorial
IPUB Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro
IQPs Indicadores de Qualidade de Projeto
LAPPEPSM Laboratrio de Projetos e Pesquisa em Psiquiatria e Sade Mental
MEDLINE Base de dados online da literatura internacional da rea mdica e biomdica
NUPENH Ncleo de Pesquisa em Enfermagem Hospitalar
PIBIC Programa Institucional de Bolsas de Iniciao Cientfica
PSYCOINFO Base de dados online para psicologia, cincias sociais, comportamentais e da
sade.
PUBMED Base de dados online para pesquisa bibliogrfica em mais de 17 milhes de
referncias de artigos mdicos
xii
LISTA DE FIGURAS
LISTA DE GRFICOS Pg
Grfico 1 Faixa etria dos usurios entrevistados 63
Grfico 2 Sexo dos usurios entrevistados 64
Grfico 3 Grau de escolaridade dos usurios entrevistados 64
Grfico 4 Tempo (anos) que os usurios freqentam as oficinas teraputicas 65
LISTA DE QUADROS Pg.
Quadro 1 Aproximao dos Indicadores de Qualidade de Projeto (IQPs) aos 55
Norteadores de Qualidade das Oficinas Teraputicas em Sade Mental
(MONTEIRO, 2007, p.55)
Quadro 2 Motivo para participao nas oficinas estudadas 65
Quadro 3 Perguntas do Roteiro Semi-Estruturado de Entrevista e 66
seus respectivos norteadores
Quadro 4 IQPs, Narrativas dos Usurios nas Oficinas Bijuteria, Expressiva 67
e Rdio e a Observao Participante.
Quadro 5 Oficinas Bijuteria, Expressiva e Radio e oferta aos usurios tendo 85
como guia os IQPs
xiii
SUMRIO
CAPTULO
1. CONSIDERAES INICIAIS 15
1.1. Questes norteadoras 19
1.2. Objeto 19
1.3. Objetivos 19
1.4. Relevncia do estudo 20
2. SOBRE A PSIQUIATRIA E A REFORMA PSIQUITRICA BRASILEIRA
2.1. Da loucura doena mental: o nascimento da psiquiatria 22
2.2. Da doena mental sade mental: o processo da Reforma Psiquitrica 24
Brasileira
2.3. Por que Reabilitao Psicossocial? 26
3. OFICINAS TERAPUTICAS: REFAZENDO O PERCURSO HISTRICO E
ATUALIDADES
3.1. O uso do trabalho e da atividade no campo geral da psiquiatria:
da fase pr-psiquiatrica s novas propostas de desinstitucionalizao 29
3.2. O uso do trabalho e da atividade no contexto psiquitrico brasileiro:
do sculo XIX aos tempos atuais 36
4. O TRABALHO DE ENFERMAGEM NOS CENTROS DE ATENO
PSICOSSOCIAL 50
5. INDICADORES DE QUALIDADE DE PROJETOS E NORTEADORES
DE QUALIDADE DE OFICINAS TERAPUTICAS
5.1. IQP Um Instrumento Criativo e Inovador 53
5.2. Quadro facilitador do entendimento da aproximao dos instrumentos 54
6. ABORDAGEM METODOLGICA
6.1. Tipo de Estudo 56
6.2. Cenrio do estudo 56
6.3. Descrio do cenrio do estudo 57
6.4 Descrio das oficinas estudadas 58
6.5 Sujeitos do estudo 58
6.6 Procedimento da Coleta de Dados 59
6.7 Aproximaes e afastamentos 60
6.8 Desafios e dificuldade 60
xiv
6.9 Custos da Pesquisa 62
7. DESCRIO E ANLISE DOS DADOS
7.1. Descrio dos Dados 63
7.2. Anlise dos Dados: AS CARACTERSTICAS DE QUALIDADE DAS 73
OFICINAS TERAPEUTICAS APONTADA PELOS USURIOS
8. CONSIDERAES FINAIS: MUDANA DE RUMO OS USURIOS 88
APONTAM O CAMINHO
REFERNCIAS 91
ANEXO
A - Protocolo de Aprovao do Comite de tica 96
APNDICES
A - Roteiro de Observao Participante 97
B - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido 99
C - Roteiro Semi-estruturado de Entrevista 100
D - Cronograma 101
E - Oramento 102
F - Plano de Disseminao 103
15
CAPTULO 1
CONSIDERAES INICIAIS
A trajetria que venho desenvolvendo na rea de sade mental teve incio em 2003,
enquanto aluna do Curso de Especializao em Enfermagem em Sade Mental e Psiquiatria
(nos moldes de Residncia) da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro UNIRIO.
Em 2004 comecei a atuar como enfermeira supervisora das enfermarias feminina e
masculina do Instituto de Psiquiatria da Universidade do Brasil (IPUB), atual Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Aps o trmino do curso de especializao, objetivando dar
continuidade s reflexes para o aprimoramento de minha prtica cotidiana comecei a
freqentar o Laboratrio de Projetos e Pesquisa em Psiquiatria e Sade Mental
LAPPEPSM1.
Durante um tempo participei como ouvinte do LAPPEPSM. Agora, seguindo a linha de
pesquisa sobre Arte e Sade Mental, prossigo com o estudo iniciado por Monteiro
intitulado Avaliao do estatuto teraputico da Oficina de Costura do IPUB, atravs dos
Indicadores de Qualidade de Projeto (IQPs). Esse estudo objetivou avaliar os resultados
teraputicos da oficina A linha e o linho, que ocorria diariamente na enfermaria feminina do
IPUB, e tambm verificar a aplicabilidade dos IQPs rea de sade mental.
O IQP uma tecnologia registrada pelo Banco de Tecnologia Social do Banco do Brasil e
ser a metodologia escolhida para orientar a discusso desse trabalho, visto que pode nos
ajudar a refletir e identificar se os dispositivos em sade mental atendem s necessidades de
tratamento dos usurios, ou seja, se h qualidade na realizao do dispositivo que lhes est
sendo oferecido.
O termo usurio foi introduzido pela legislao do Sistema nico Sade (Leis n.
8.080/90 e 8.142/90) no sentido de destacar o protagonismo do que anteriormente era apenas
um paciente. A expresso acabou sendo adotada com sentido bastante singular no campo da
sade mental e ateno psicossocial, na medida em que significava um deslocamento no
sentido do lugar social das pessoas em sofrimento psquico. Atualmente o termo vem sendo
criticado pelo fato de ainda manter uma relao do sujeito com o sistema de sade. Por este
motivo sempre o utilizarei entre parnteses. Este um importante indcio do movimento
1LAPPEPSM/IPUB/UFRJ, criado coordenado pela Prof. Dr. Cristina Loyola em 1996 e de onde emergem,
desde ento, as idias e as pesquisas de Graduao e Ps-Graduao orientadas e/ou realizadas pelos seus
integrantes.
16
permanente de reflexo e construo no campo da reforma psiquitrica (AMARANTE, 2007,
p.83).
Embora o estudo referido acima tenha sido uma investigao realizada por uma aluna do
Programa Institucional de Bolsas de Iniciao Cientfica (PIBIC), com todas as dificuldades
que a aproximao pesquisa cientfica comporta, o trabalho resultou em algumas discusses
instigantes. Identificou contrastes e semelhanas em cada macro-indicador para os trs grupos
de depoentes (usurios, familiares e profissionais que conduziam a oficina), o que despertou
um olhar crtico para os efeitos que as atividades teraputicas desencadeavam em cada sujeito
estudado (MONTEIRO, 2004).
Dentre os problemas que foram percebidos nesse estudo destaca-se o item Oportunidade2,
que visava observar as possibilidades de opo. A anlise das entrevistas realizadas revelou
que a Oficina de Costura estudada apresentava oportunidades bem limitadas, na perspectiva
dos usurios. Uma vez que seu produto no era exposto e apreciado pelo pblico fora do
hospital, como desejavam os usurios, o que os deixava bastantes desestimulados
(MONTEIRO, 2004, p.12).
Posteriormente, em 2007, foi desenvolvida pela mesma autora a dissertao de Mestrado
O Refresco da Cabea: Qualidade de Oficinas Teraputicas segundo os usurios, realizado
tambm no IPUB, no Hospital-dia. Na Psiquiatria, este servio funciona ainda dentro de uma
instituio, visando reinsero social de pessoas com transtornos mentais graves e
persistentes.
Este apontou as caractersticas de qualidades das oficinas teraputicas, a partir da fala dos
usurios e, avaliou as atividades desenvolvidas no Hospital-dia, pela importncia de saber se o
usurio que freqenta as oficinas est recebendo o cuidado esperado para um melhor exerccio
da cidadania e alcance de maior autonomia social e de vida. Tal estudo mostrou que a
participao dos usurios nestas oficinas pode estar associada a quatro desejos principais:
melhores relaes sociais, diminuio dos sintomas, ajuda com respeito e alguma
remunerao.
Propus-me a desenvolver esse mesmo estudo em um Centro de Ateno Psicossocial
(CAPS) no municpio do Rio de Janeiro, tendo em vista que esse servio considerado hoje
como um dos reguladores da assistncia em sade mental e que tem como uma das principais
formas de tratamento as oficinas teraputicas. Conforme o redirecionamento para o modelo
assistencial de sade mental proposto pela Lei n. 10.216, de 06 de abril de 2001.
2 Esse e os outros onze IQPs sero melhor apresentados no captulo 5.
17
No campo da sade mental, as oficinas teraputicas so atividades que visam
integrao social e ressocializao das pessoas com sofrimento mental, nos contextos familiar
e social; e ainda, estimular e desenvolver o potencial individual (MONTEIRO, 2007, p.12).
Ainda, segundo Rangel (2006, p.12) so atividades que podem colaborar com o objetivo da
reforma psiquitrica, de dar problemtica da loucura uma outra resposta social, aquela que
possibilite a incluso social do sujeito.
A prtica das oficinas pode auxiliar os portadores de transtornos mentais na aquisio e no
manejo das caractersticas subjetivas de viver como, por exemplo, as sensaes de felicidade,
prazer e bem-estar. Os IQPs trabalham justamente nessa rea de sobreposio
objetivo/qualidade, em que o subjetivo, antes somente observado, torna-se palpvel e
quantificvel. O campo social tem se mostrado mais sensvel a estas questes que o campo da
sade mental. Na verdade, estes objetivos intangveis da educao aproximam-se das
variveis-sombra (SARACENO, 1999, p.96) dos servios, no que diz respeito qualidade do
atendimento.
Ter maior auto-estima, maior capacidade de socializao e de expressar sentimentos de
felicidade, alegria e prazer, deveriam ser decorrncia de qualquer tratamento em ateno
psicossocial; caso contrrio, corre-se o risco de nos perdermos na escolha de mtodos e
processos e assim, sermos incapazes de nos haver com os resultados obtidos. No que tudo
seja perfeito, mas procurar atravs de pequenas maisculas melhoras3 na vida diria construir
um espao de tratamento que contribua para o usurio encontrar sadas mais apropriadas do
que seus sintomas para enfrentar o sofrimento inerente a sua dor de existir (Leite, 2000).
Na nossa vivncia, enquanto profissionais de sade mental, notamos que nas oficinas so
produzidos resultados de natureza subjetiva, visivelmente valorizados pelos pacientes.
Entendemos que os dados que sero obtidos podero representar um reforo dos mesmos,
melhorando o lao com a assistncia e merecendo, assim, maior ateno. Portanto, a inteno
dar voz aos usurios para que, na perspectiva e vivncia deles, seja possvel descobrir quais
as caractersticas de qualidade de uma oficina teraputica.
Todavia, o que vivenciamos hoje nos recursos teraputicos dos servios em sade mental,
so mudanas realizadas a partir de discusses de profissionais, que no envolvem os
usurios. No que as reunies e discusses de profissionais no sejam importantes e/ou
capazes de mostrar as evolues dos usurios, mas faz-se necessria a utilizao de um
3 Termo cunhado pela Prof. Cristina Loyola nas reunies do LAPPEPSM, no qual ela refere os pequenos
avanos que tornam-se significantes no cotidiano de viver das pessoas com sofrimento mental.
18
instrumento que expresse a demanda do usurio, para ficarmos mais prximos do que eles
desejam ter ao participarem das oficinas.
Vasconcelos (2000, p.269) traz a tona o termo empowerment como de grande importncia
para as discusses sobre a sade mental e a construo de suas prticas do cotidiano. O
referido autor define o termo valorizao do poder contratual dos usurios nas instituies e
do seu poder relacional nos contatos interpessoais na sociedade. Seria muito interessante que
o significado deste termo permeasse a prtica de cuidados nos espaos teraputicos das
oficinas, pois acreditamos que este seja o verdadeiro sentido de fazer oficinas. Trazendo o
usurio para o centro da cena para que possamos juntos refletir sobre o que estamos
oferecendo nesses espaos.
importante a realizao de estudos que verifiquem as caractersticas de qualidade dos
novos dispositivos em sade mental, tendo em vista o perodo decorrido, ainda recente, que
vm sendo construdos em nmero crescentes no pas desde o incio dos anos 2000 em
decorrncia do aprofundamento e ampliao das experincias substitutivas ao modelo
manicomial no final dos anos 1980, denominado como Reforma Psiquitrica (Amarante,
1995, p.50); que considerem, no apenas as formas como os sujeitos se estruturam
atendimentos mdicos, grupos teraputicos, cuidados de enfermagem, oficinas, centros de
convivncia mas que possam, sobretudo, discutir o tratamento clnico que eles se propem a
realizar.
Para contextualizao do objeto de estudo realizei uma reviso sistemtica com o
objetivo de fazer um levantamento sobre as caractersticas de qualidade do dispositivo oficina
teraputica em sade mental, segundo a narrativa dos usurios, nas bases de dados LILACS,
MEDLINE/PUBMED, BDEN/BIREME E PSYCINFO. Ressalto que oficina teraputica e
grupo teraputico no so descritores em Cincias da Sade. Ento, utilizei como descritores:
Servios de Sade Mental, Avaliao dos Servios de Sade, Indicadores de Qualidade em
Assistncia Sade, Satisfao do Paciente, Enfermagem Psiquitrica. No foi delimitado o
perodo a fim de permitir uma reviso ampliada. Exceto nas bases de dados
MEDLINE/PUBMED que disponibilizava as pesquisas no perodo de 1997-2010. Os acessos
foram viabilizados atravs do portal CAPES.
Aps a realizao dessa reviso nas bases de dados citadas pude constatar que na sade
mental, a disponibilidade de recursos avaliativos ainda pequena. Dos estudos encontrados, a
maioria aborda a avaliao do servio substitutivo Centro de Ateno Psicossocial (CAPS) e
apenas trs o dispositivo oficina teraputica especificamente, todos no Brasil.
19
Desses trs, dois deram enfoque a opinio dos usurios e um a opinio dos familiares.
Porm, apenas um retrata a qualidade das oficinas teraputicas segundo os usurios que foi o
estudo realizado no LAPPEPSM conforme descrito anteriormente. O outro identifica as
funes, os objetivos e as propostas das oficinas em sade mental, atravs da representao
dos usurios.
Em outros pases at o momento no foi encontrado estudos relacionados diretamente a
qualidade das oficinas teraputicas na sade mental. Apenas sobre a avaliao dos usurios,
familiares e profissionais a respeito dos servios de sade mental da rede bsica (ambulatrios
e moradias assistidas) e da rede hospitalar (internao psiquitrica).
Esta contextualizao entre IQPs na Educao e IQPs nas Oficinas Teraputicas em
Sade Mental, pretende situar novamente certa ousadia desta pesquisa que centrar seu foco
neste impalpvel e quase no avaliado campo das prticas de cuidado em sade mental.
1.1 Questes norteadoras:
- Como os usurios relatam que deve ser uma oficina teraputica com caractersticas
de qualidade?
- O que eles esperam obter de intangvel, considerando os IQPs como guias, ao
freqentarem estes espaos?
1.2 Objeto:
A narrativa dos usurios do CAPS sobre as caractersticas de qualidade das oficinas
teraputicas em sade mental.
1.3 Objetivos
- Descrever as caractersticas de qualidade das oficinas teraputicas, a partir da
narrativa dos usurios, utilizando como guia os IQPs;
- Discutir os IQPs como guia para a construo de critrios de qualidade nas oficinas
teraputicas em sade mental;
- Analisar as oficinas teraputicas, enquanto dispositivo assistencial, a partir do olhar
dos usurios.
20
1.4. Relevncia do estudo:
A relevncia deste estudo est diretamente ligada possibilidade de propor uma
discusso que esclarea as caractersticas de qualidade das oficinas teraputicas, na
perspectiva dos usurios de um CAPS, a fim de permitir que os dispositivos assistenciais
faam sentido e sejam capazes de movimentar a vida dos mesmos. Incluindo o enfermeiro
como um agente facilitador do protagonismo dos usurios e contribuindo para um cuidado de
enfermagem implicado com a perspectiva da reabilitao psicossocial, valorizando a fala dos
usurios e no o sintoma de sua doena.
O Relatrio da IV Conferncia Nacional de Sade Mental Intersetorial (IV CNSMI)
realizada em Braslia, entre os dias 27 de junho a 01 de julho de 2010, indica que o
aprofundamento do processo de desinstitucionalizao da loucura da Reforma Psiquitrica
Brasileira requer a implementao de novos mecanismos de sistematizao, monitoramento e
avaliao das informaes da rede de sade mental para viabilizar um planejamento adequado
das aes nessa rea. A participao do controle social no processo de planejamento,
monitoramento e avaliao das prticas cotidianas de trabalho e do funcionamento dos
servios de sade mental, dando visibilidade aos indicadores, de forma a democratizar as
informaes a todos os agentes sociais da sade, a reivindicao central das propostas no
subeixo: Cotidiano dos servios e fortalecimento do protagonismo dos atores.
Apoiar o trabalho com oficinas teraputicas na ateno em sade mental, visando
promoo, proteo, tratamento e reabilitao da sade dos usurios e implementar processos
avaliativos de efetividade, qualidade de atendimento e grau de satisfao em relao aos
servios de sade junto a usurios e familiares so tambm alguns apontamentos feitos no
Relatrio da IV CNSMI.
Ainda contribuir para produo de conhecimento no Ncleo de Pesquisa em
Enfermagem Hospitalar - NUPENH, no Laboratrio de Projetos e Pesquisa em Psiquiatria e
Sade Mental - LAPPEPSM e subsidiar outros estudos de avaliao dos dispositivos
assistenciais de Sade Mental indo ao encontro de outro apontamento feito no Relatrio da IV
CNSMI a universidade em sua funo de pesquisa e de extenso deve contribuir para o
rompimento do modelo manicomial, desenvolvendo projetos e aes substitutivas que
promovam a qualidade de vida dos cidados.
Este estudo tambm poder contribuir para a otimizao dos custos dos servios de
sade, uma vez que abordar a melhoria da qualidade dos recursos utilizados nos servios
21
substitutivos de sade mental o que poder reduzir conseqentemente o nmero de
(re)internaes.
Segundo o Departamento de Informtica do SUS DATASUS, rgo da Secretaria
Executiva do Ministrio da Sade no ano de 2010 a produo ambulatorial no Brasil para o
procedimento ATENDIMENTO EM OFICINA TERAPUTICA SADE MENTAL foi
840.406. Na regio sudeste 579.798 (maior de todas as regies do pas) e s na regio
metropolitana do Rio de Janeiro 142.650.
22
CAPTULO 2
SOBRE A PSIQUIATRIA E A REFORMA PSIQUITRICA BRASILEIRA
2.1 Da loucura doena mental: o nascimento da psiquiatria
A loucura, desde a Idade Clssica at a Modernidade, passou por uma srie de
modificaes quanto sua abordagem at que, a partir do sculo XVIII, tornou-se sinnimo
de doena mental. Foi somente a partir do sculo XIX que a loucura passou a ser diferenciada
dos tipos marginais, que ameaavam a ordem social, processo este que inaugura a constituio
de um saber especfico, mdico-cientfico, sobre a loucura, a psiquiatria.
O hospital moderno, locus da nascente cincia, era instrumento de trabalho dos
mdicos (MENDES, 1990, p.42) e local necessrio para o exerccio de suas prticas, para que
o desenvolvimento tecnolgico da poca pudesse ser aplicado e acompanhado de modo mais
intenso, rumo consolidao de uma prtica psiquitrica.
Segundo Resende (1987 p.35), no sculo XVIII, os ideais do Iluminismo e da
Revoluo Francesa, assim como aqueles propagados pela Declarao dos Direitos do
Homem nos Estados Unidos, impulsionaram movimentos contestatrios aos
enclaurusamentos arbitrrios dos loucos. As bases humanitrias destes ideais foram
fundamentais para que os princpios alienistas fossem adotados na maior parte do mundo,
fazendo do asilo o local indicado para os loucos, os despossudos da razo.
Amarante (1995, p.23) considera que este espao tornou-se o maior e mais violento
espao de excluso, sonegao e mortificao das subjetividades. Pelicier (1973, p.84)
considera que a obra cientfica e a ao filantrpica de Philipe Pinel tiveram importante papel
na mudana da maneira pela qual a loucura vinha sendo tratada, institucionalizada e ordenada
o espao asilar, a partir do tratamento moral. Mas percebemos que o regime moral, em alguns
casos, trouxe resultados ruins, principalmente quando pensamos nos hospitais que mantinham
grande quantidade de doentes, submetidos a um sistema regular de disciplina, que os limitava
progressivamente.
Neste momento, a percepo da loucura foi dirigida pelo olhar cientifico, em que so
estabelecidos os saberes prticos e tericos, ou seja, neste contexto surge a disciplina
Psiquiatria, em que a patologia a doena mental.
Para a poca, a criao do hospital psiquitrico, por Pinel, trouxe benefcios se
pensarmos nas condies em que viviam os doentes. No entanto, a longo prazo, esta inovao
gerou um aprisionamento do louco em suas condies psquicas, permeando uma cultura de
23
excluso e punio em decorrncia da falta da razo (Amarante, 1995, p.23). A partir de
Pinel, a clnica e a nosologia estiveram em evidncia e associadas, fazendo com que o sculo
XIX fosse marcado pela busca da teraputica especfica, ou seja, aquela indicada a cada caso
especificamente, que acabou por afirmar a necessidade do paciente ser mantido sob
vigilncia, isolado, aonde era possvel observar seus sintomas e serem estabelecidas as
condutas especficas: Se Pinel operou um redimensionamento de prticas e saberes no que
diz respeito loucura, sua reforma transformou o enclausuramento indiscriminado em
segregao em nome da cincia ( Tenrio, 2001, p.123).
Depois de Pinel, sucederam-se movimentos de contestao das prticas concernentes
loucura. O prprio modelo pineliano foi severamente criticado, devido a seu carter fechado e
autoritrio. A partir da segunda metade do sculo XIX, o mtodo anatomo-clnico tornou-se
hegemnico na medicina e, conseqentemente, na psiquiatria, fazendo do organicismo a base
de orientao para toda a produo nosolgica e a teraputica psiquitrica.
Na descrio de Amarante (1995, p.27), [...] a psiquiatria seguir a orientao das
demais cincias naturais, assumindo um matiz eminentemente positivista. Tal procedimento,
criado com vistas a garantir emergente psiquiatria credibilidade cientfica, resultou em
segregao como mtodo teraputico e investigativo.
A excluso social do sujeito, como ponto central da teraputica, prevaleceu apesar das
reformas sofridas pela psiquiatria. O ato de Pinel, que acabava por inaugurar a psiquiatria
enquanto saber mdico foi contestatrio, reformista, em relao forma segregadora e
indiferenciada como a loucura estava sendo tratada. Mas sua resposta tambm foi a
segregao destes sujeitos.
Dentre as reformas contemporneas, podemos falar nas psiquiatrias reformadas, para
usar o termo proposto por Franco Rotelli (1990, p.92), ou seja, as comunidades teraputicas, a
psiquiatria de setor, a psiquiatria preventiva ou comunitria e a psicoterapia institucional, que
se implicaram em problematizar e buscar novas sadas para esta excluso.
Entretanto, a proposta mais radicalmente oposta segregao imposta pela psiquiatria,
foi aquela elaborada pela Psiquiatria Democrtica Italiana, liderada por Franco Basaglia.
Nesse sentido, Amarante (1995, p.52) afirma que a proposta de Basaglia era superar a
psiquiatria na qual o paciente ficava entre parnteses, onde todos se ocupavam do estudo da
doena tendo, por conseqncia, construdo um objeto fictcio, pois no existe doena sem o
sujeito de sua existncia. Para Basaglia (apud AMARANTE, 1995, p.54), seria necessrio
colocar a doena entre parnteses para poder ocupar-se do doente em sua experincia concreta
de sofrimento.
24
Como foi possvel observar, por muito tempo o sujeito adoecido foi mantido entre
parnteses, valorizando-se o estudo das doenas e, principalmente, a estrutura e o lugar onde a
loucura poderia ser instalada. Vale registrar que a fala dos doentes sobre si ainda muito
pouco valorizada quase inexistente na literatura cientfica, talvez pela cultura hegemnica da
razo que dita os fatos e a ordem, e em cujo jogo o discurso do paciente continua considerado
irracional.
A reviso situou-nos na forma como a loucura foi colocada no espao de excluso, e
apresentou os vrios momentos que impulsionaram a histria, na qual o doente mental foi
transformado em pessoa sem credibilidade e importncia diante da sociedade.
Nesta histria o isolamento, foi a maneira escolhida para tratar o sujeito ou para
livrar a sociedade do diferente, incoerente, insolvel e irredutvel, termos estes que cerceiam
o doente mental, mas que so utilizados por Rotelli (1990, p.95) quando define psiquiatria
como instituio que administra o que sobra.
O sucinto histrico psiquitrico mundial exposto acima pode nos ajudar a pensar o
percurso da psiquiatria no Brasil. Embora o caso brasileiro possua peculiaridades, sofremos
influncias das psiquiatrias francesas (sobretudo num perodo inicial), norte americano,
inglesa e, especialmente no mbito da reforma psiquitrica, da psiquiatria democrtica
italiana.
2.2 Da doena mental sade mental: o processo da Reforma Psiquitrica Brasileira
O campo da sade mental no Brasil, desde a segunda metade da dcada de 1970, vem
passando por mudanas relevantes em funo de um importante movimento de crtica
Psiquiatria (DELGADO, 1992, p.43; AMARANTE, 1995, p.88). Tal movimento constituiu a
chamada Reforma Psiquitrica Brasileira, processo de contestao e crtica Psiquiatria em
sua resposta social de constante segregao problemtica da loucura (TENRIO, 2001,
p.126).
A Reforma colocou em curso um posicionamento contrrio excluso do sujeito,
reproduzida e defendida pela lgica psiquitrica e manicomial. Uma excluso que no
significa somente retirada do convvio social, por meio do confinamento hospitalar
caracterstico do modelo asilar.
A lgica manicomial estende sua excluso a pertencimentos sociais diversos,
resultando, por exemplo, na no insero no mercado de trabalho e no retraimento da
sociabilidade. Estende-se tambm ao direito da cidadania, uma vez que esta se encontra
25
vinculada razo, algo do qual o louco seria destitudo o que atestam as idias de
incapacidade civil e inimputabilidade penal (TENRIO, 2001, p.124).
H ainda outra anulao, to sria e nefasta quanto as trs anteriores: a Excluso da
subjetividade. No h no modelo asilar, lugar para a singularidade, para uma existncia que
leve em considerao as particularidades inerentes a cada ser humano.
No cerne das reivindicaes da reforma Psiquitrica esto as idias do desmonte dos
dispositivos institucionais de cronificao, a desinstitucionalizao, a valorizao da
subjetividade, a ressocializao do louco, e, sobretudo, o resgate da cidadania (DELGADO,
1992, p.71; AMARANTE, 1995, p. 52). Isso se vincula a transformaes gerais em curso nos
planos ideolgicos e poltico, em momento no qual se punha o prprio exerccio da cidadania,
uma vez que o pas experimentava a abertura e democratizao aps anos de ditadura militar
(AMARANTE, 1995, p.93).
[...] no processo brasileiro da Reforma Psiquitrica, o contexto de redemocratizao
dos anos 80 um facilitador para o processo de contestao das prticas
psiquitricas, que foram to utilizadas como forma de opresso e represso. A
Reforma Psiquitrica surge sob o pano de fundo da redemocratizao das
instituies, tambm do projeto de Reforma Sanitria brasileira. (RESENDE, 1987,
p.32)
Sabemos que psiquiatria e Reforma so termos que caminham juntos desde o
nascimento da Psiquiatria. O gesto inaugural de Pinel, de humanizar o tratamento concedido
aos loucos, ao fundante da cincia psiquitrica, j era em si uma reforma (TENRIO, 2001,
p.129). O que h de novo ento na Reforma Psiquitrica Brasileira ocorrida nos anos 1980?
Sua caracterstica essencial a reivindicao da cidadania do louco, dos direitos do
doente mental. Segundo Tenrio, esta nova inflexo uma tentativa de dar loucura outra
resposta social ou seja, abrir para o louco outro lugar social.
[...] sua marca distintiva est no fato de que nas ltimas dcadas a noo de reforma
ganhou uma inflexo diferente: a crtica ao asilo deixou de visar ao seu
aperfeioamento ou humanizao, vindo a incidir sobre os prprios pressupostos da
psiquiatria, na condenao de seus efeitos de normalizao e controle. (Tenrio,
2001, p.20)
O rompimento que a Reforma estabelece incide no s sobre o modelo de tratamento
estabelecido pela Psiquiatria, mas principalmente, sobre o discurso e o saber psiquitrico que
produzem a excluso como o nico lugar social possvel para o louco (Macedo, 1997, p. 14).
A meta poltica e social uma transformao maior no cenrio da sade mental, passa a
enfocar a questo da cidadania dos pacientes. Trata-se de um processo histrico de
formulao crtica e prtica que tem como objetivos e estratgias o questionamento e a
26
elaborao de propostas de transformao do modelo clssico e do paradigma da Psiquiatria
(Amarante, 1995, p.91).
Como j foi dito, a reforma Psiquitrica Brasileira foi influenciada pelos movimentos
de contestao vindos da Europa, principalmente da Itlia, que j ocorriam desde a dcada de
1940. , sobretudo, nas experincias da tradio basagliana e na antipsiquiatria que a Reforma
Brasileira se apia (Amarante, 1995), sustentando a crtica ao modelo psiquitrico que, em
nome da cura, acaba por cronificar o sujeito. Sua crtica dirige-se, eminentemente, doena
da excluso social. Ao coloc-la em questo, nossa Reforma colabora para romper com o
paradigma doena-cura, dando lugar ao conceito existncia-sofrimento, que coloca o sujeito
no centro das atenes (Rotelli, 1990). No se trata mais de um objeto a ser estudado por um
saber que cataloga, descreve e classifica, mas sim de um sujeito em sua relao com o corpo
social (Costa-Rosa et al., 2003).
Dessa forma, houve tentativas de modificar a posio social da loucura que, para
Amarante (2005, p.62), podem ser traduzidas como objetivos da Reforma Psiquitrica
Brasileira, a fim de garantir a cidadania dos doentes mentais. Nesta perspectiva, temos
observado que os dispositivos teraputicos agora utilizados tm propiciado mudanas na
relao do louco com a sociedade, visto que favorecem o convvio e as trocas sociais,
diferentemente do confinamento social.
2.3 Por que Reabilitao Psicossocial?
A idia de Reabilitao Psicossocial constitui um avano no discurso sobre os
cuidados em sade mental. Sendo uma prtica espera de teoria, como afirma Benedetto
Saraceno (1996, p.23), ela abre um campo de reflexo que no deve ser abandonado:
Reabilitao Psicossocial implica numa tica de solidariedade que facilite aos
sujeitos com limitaes para os afazeres cotidianos, decorrente de transtornos
mentais severos e persistentes, o aumento da contratualidade afetiva, social e
econmica que viabilize o melhor nvel possvel de autonomia para a vida na
comunidade. (PITTA, 1996, p.8)
De acordo com Saraceno (1999, p.68), um processo de reconstruo, um exerccio
de cidadania e, tambm de maior contratualidade nos trs cenrios: habitat, rede social e
trabalho. A contratualidade social diz respeito s trocas sociais que o individuo faz em
sociedade, para atingir a liberdade de decidir sobre o que melhor para si.
Ainda, Saraceno (1999, p.71) esclarece que em espaos de negociao, que propiciam
trocas materiais e afetivas, o que deve ser colocado no centro da discusso a participao do
27
usurio, e no a autonomia, visto que o objetivo modificar as regras do jogo fazendo com
que os fracos e fortes participem do mesmo espao, realizando as trocas necessrias e
possveis. Dessa forma, no preciso transformar fracos em fortes para, ento, inseri-los no
jogo, que deve ser de diferentes, mas no necessariamente de desiguais.
Neste sentido tornar-se necessrio lutar por regras que permitam aos que tm menor
poder contratual na sociedade conviver com os contratualmente mais fortes, no tentando
transformar arbitrariamente todos os fracos em fortes. O conceito de reabilitao nos mais
til que o de tratamento, que conota uma interveno mdica, apontando para um combate
entre a sade e a doena. Ns sabemos que no se trata de cuidar de uma doena, mas de lidar
com uma particular condio do sujeito ou pelo menos de criar oportunidades para que o
sujeito venha surgir do horizonte de nadificao ou de destituio subjetiva (SAGGESE,
2008, p.241).
Sem retirar a responsabilidade dos usurios dos servios de sade mental de
escolherem seu prprio vis de insero social, so necessrias aes de negociao e
vinculao. Devemos criar espaos de maior diversidade, criativos, inovadores, dinmicos
para que os usurios possam exteriorizar sua existncia-sofrimento.
Dessa necessidade nasceu a idia da criao das oficinas teraputicas. Nome
consagrado pela prtica, mas que no cobre satisfatoriamente a realidade que se refere. A
expresso oficinas pode dar margem a uma interpretao tecnicista da prtica de
reabilitao. Pode-se pensar exclusivamente na implementao de uma srie de tcnicas,
formuladas por uma equipe e aplicadas sobre usurios que apresentam alguma desabilitao
social. Passaria despercebida nesse caso a parte mais importante do funcionamento de um
centro de ateno psicossocial: a relao com os sujeitos (SAGGESE, 2008, p.242).
Os usurios dos servios de sade mental no devem ser aprisionados no papel de
doentes e a equipe deve interagir com sujeitos, para alm de um perfil clinico individual. Mais
que estratgias postas em prtica em cada oficina, sobressai o clima geral do servio.
Saraceno (1999,p.95) reala que o servio e no o tratamento constitui a varivel (ou
conjunto de variveis) que influi no andamento do processo reabilitatrio. Levando s ltimas
conseqncias esse raciocnio, o autor afirma que o servio o tratamento.
O contato incidental entre os membros da equipe e os usurios dos servios de sade
mental tem o mesmo peso que as atividades programadas como oficinas (SAGGESE, 2008,
p.242, grifos do autor). Esse contato incidental caracterizado pelo autor como o resultado do
maior ou menor potencial do paciente de desenvolver relaes sociais e da suposio que os
que trabalham no servio apresentam uma maior disponibilidade para o contato social com
28
pessoas com dificuldades. Loyola (2008, p.68) coloca que a nossa prtica na ateno
psicossocial se faz da possibilidade de encontros e no h encontros se no houver
disponibilidade e abertura para o outro. A esse respeito:
Ainda precisamos avanar muito e superar o desafio que materializar o sonho de
que esses espaos de ateno um dia se transformem em dispositivos teraputicos
(de sentidos), porque so eles e no as oficinas, que estruturam o cotidiano da vida
(LOYOLA et al, 2010).
Ainda segundo Loyola (2008, p.67) reabilitar quer dizer reconstruir valores, construir
nexos para entrar em parcerias sexuais, amorosas, esportivas, cientificas e financeiras.
O levantamento bibliogrfico sobre o tema Reabilitao evidenciou que a psiquiatria
brasileira segue uma tradio da psiquiatria norte-americana (CORIN, 1988, p.71), na qual a
fala dos pacientes sobre si pouco valorizada ou mesmo empobrecida ao nvel do sintoma.
Esta autora enfatiza que reabilitar privilegiar o potencial de recuperao das pessoas,
colocando no centro das intervenes o sujeito e no seus dficits, ressaltando o papel de
protagonista que o prprio usurio deve ter nesse jogo de se restabelecer, privilegiando a fala
dos mesmos em todo o processo.
A Reabilitao Psicossocial, que utilizamos como conceito, um processo que
objetiva, no limite, uma qualidade de vida melhor. Significa passar de uma situao deficitria
em termos de felicidade, autonomia e sade mental e fsica, para outra situao em que estas
questes, todas ou apenas algumas, sero mais e/ou melhor atendidas.
Na Sade Mental, a proposta para promover reabilitao composta de um conjunto
de atividades, como oficinas, trabalhos em grupo e individuais, passando por atividades como
teatro e artes plsticas. Essas atividades devem ser executadas como um guia orientador para
realizar integrao, trocas sociais e afetivas, melhorar a auto-estima, entre outros. Ressalta-se
que o simples ato de entreter pode ser apenas um subproduto do trabalho, mas nunca seu
objetivo principal. Para Saraceno (1999, p.16):
[...] entreter tem o sentido de ter dentro, passar prazerosamente o tempo... na espera
de que a doena passe sozinha ou que o doente morra entretido, dentro do hospital
psiquitrico ( na enfermaria, na cela forte, dentro das faixas de conteno, dentro da
solido).
Neste novo modelo de ateno sade mental, entende-se que as oficinas teraputicas
no devem possuir o sentido da ocupao e do entretenimento, e sim de serem promotoras da
reinsero social por meio de aes que podem envolver o trabalho, a criao de um produto,
a gerao de renda e a autonomia do sujeito, para que no voltemos a cair numa nova
institucionalizao, que pode vir a criar outros crnicos (COSTA e FIGUEIREDO, 2008,
p.8).
29
CAPTULO 3
OFICINAS TERAPUTICAS: REFAZENDO O PERCURSO HISTRICO E
ATUALIDADES
3.1 O uso do trabalho e da atividade no campo geral da psiquiatria: da fase pr-
psiquitrica s novas propostas de desinstitucionalizao
Para que possamos entender as oficinas teraputicas hoje necessrio pensar suas
articulaes com prticas anteriores e tambm suas origens. Portanto, torna-se necessria a
reviso desta trajetria.
Sabemos que h muito tempo a atividade e o trabalho tm sido usados como recursos
diante da loucura. Guerra (2004, p.23) afirma datar do sculo XII a primeira referncia ao uso
da atividade e do trabalho como recurso teraputico para a loucura, ainda que distante do
modelo mdico-psiquitrico que se firmou posteriormente nesse campo:
Foi Bartolomeu, mestre da escola de Salerno primeira verdadeira escola de
medicina do Ocidente, que floresceu nos sculos XI, XII e XIII- que fundamentado
numa certa perspectiva, que hoje podemos denominar de moral ou psicolgica de
compreenso da loucura, sugeriu, em termos terpicos, [...]os doentes devem ser
revigorados e confortados e afastados de qualquer coisa que fosse, para eles fonte de
medo ou de pensamentos angustiados. Deveriam at ser alegrados pela msica e,
para alguns, seria conveniente achar uma ocupao. ( PESSOTTI, 1996, apud
GUERRA 2008, p.28, grifos do autor)
No sculo XVII, antes mesmo da instalao da psiquiatria no campo mdico, a
atividade e o trabalho tiveram a funo de auxiliar a manuteno da ordem social exigida pelo
novo modelo econmico estabelecido pela sociedade burguesa (RANGEL, 2006, p.30).
A Grande Internao, nas chamadas casas de trabalho e casas de correo, cumpriu
a funo de retirar da cena o grande contingente de improdutivos que a nova organizao
liderada pela burguesia acabou gerando (FOUCAULT, 1989, p.53). Tornado um imperativo,
o trabalho passou a ser usado como uma espcie de regulador social. Segundo Foucalt (1989,
p.67) a alternativa clara: mo de obra barata nos tempos de pleno emprego e altos salrios;
em perodo de desemprego, reabsoro dos ociosos e proteo social contra a agitao e as
revoltas. No entanto, estas funes econmicas do trabalho e da atividade no obtiveram o
xito esperado.
Foucalt (1989, p.65) ressalta que foi a significao tica concedida ao trabalho, recurso
de punio e salvao, que fez dele uma medida de eficcia, e que serviu para justificar a
retirada dos improdutivos do convvio social. O trabalho era, para o pensamento clssico, o
remdio para todos os males, que podiam ser definidos em uma s palavra: cio. Nesse
contexto, as internaes estavam justificadas. Ao mesmo tempo em que eliminavam das
30
cidades os desordeiros, submetiam-nos ao trabalho, salvao para o mal social do cio
(FOUCALT, 1989, p.71).
Guerra (2008, p.26) destaca uma observao importante de Foucault (1989, p.70) a
respeito das relaes entre ordem social, trabalho e internao: [...] dado que a preguia
tornou-se a forma absoluta da revolta, obrigam-se os ociosos ao trabalho, no lazer indefinido
de um labor sem utilidade nem proveito. O sem utilidade nem proveito ressalta a
incapacidade para o trabalho e para a atividade, assim como para a incapacidade destes
sujeitos de cumprirem o papel previsto no contrato social. Trabalho e atividade servindo
apenas para referendar a excluso, no abrindo quaisquer sadas, apenas silenciando
diferenas (RANGEL, 2006, p.31).
Ainda, segundo Guerra (2008, p.25), essa situao comea a delinear o territrio sobre
o qual a nascente psiquiatria se desenvolver futuramente, e, em seu seio, o uso da atividade e
do trabalho enquanto recursos teraputicos.
No final do sculo XVIII, os loucos foram separados dos outros tipos de excludos,
estabeleceu-se para a loucura uma outra forma especfica de tratamento, o tratamento moral.
Nasce a psiquiatria cuja crena na hegemonia da razo na constituio do sujeito transforma a
loucura em doena mental, alienao em relao razo. Sua funo orientar o louco, por
meio de embasamentos mdicos-cientficos, a um destino que possa resguardar a ordenao
do espao asilar. A loucura passa a ser associada ao erro tico gerado pela desrazo, a
psiquiatria de Pinel a considera como um desvio da corrente natural do pensamento racional,
que deve ser reconduzida novamente racionalidade, normalidade, graas a um tratamento
que implique reeducao moral pela razo (RANGEL, 2006, p.31).
Pinel ento inicia uma nova proposta para lidar com os alienados, o tratamento moral.
Atravs desse tratamento se daria a cura do alienado. Consistiria em normatizar o indivduo,
ou seja, traz-lo de volta ao mundo da realidade, das normas sociais, tentando restabelecer
suas relaes com os outros e o mundo sua volta. Este processo de normatizao se daria
atravs de um processo pedaggico, a pedagogia moral.
O discurso normativo do psiquiatra deveria se impor ao discurso inadequado do
alienado. Este seria colocado em asilos com objetivo de se criar um meio social para educar o
indivduo. Nesta proposta havia fundamentos de ordem e isolamento, regras, vigilncia e
castigo (CASTELO BRANCO, 2008, p.5).
A teraputica e a lgica pinelianas prevaleceram at meados do sculo XIX, quando
foram suplantadas, ao menos no campo das idias, pela lgica organicista da doena mental.
Ainda que ento tenham sido postas em discusso as causas da doena mental, na passagem
31
da corrente psicologicista para a organicista, no que diz respeito teraputica, o trabalho
continuou cumprindo a mesma funo: submeter os alienados e insanos ao funcionamento do
universo normal para que, assim, eles recobrassem a conscincia perdida. E tal
procedimento perdurou por bastante tempo. A assistncia psiquitrica mergulha novamente no
longo sono do perodo pr-pineliano, e no considero exagero afirmar que deste pesadelo s
comear a despertar na poca da segunda grande guerra (RESENDE, 1987, p.29).
Trabalho e atividade estiveram articulados psiquiatria desde a origem desta prtica
mdica, configurando um importante elemento da lgica asilar (LIMA, 2004, p.63 ). A partir
do final da primeira metade do sculo XX, no perodo do ps-guerra, surgem experincias na
Europa e Estados Unidos que buscam romper com a prtica excludente da psiquiatria, as
chamadas psiquiatrias reformadas. Termo proposto por Rotelli (apud NICCIO, 1990, p.
18) para mapear as experincias reformistas da psiquiatria na contemporaneidade.
Foi no mbito das psiquiatrias reformadas que se formalizou o campo de prticas e
saberes da Terapia Ocupacional. Por isso, os referencias tericos e experincias dessas
psiquiatrias so fundamentais para nossa discusso, j que as contribuies da terapia
ocupacional foram as bases das atuais oficinas teraputicas (COSTA & FIGUEIREDO, 2008,
p.7).
Birman e Costa (2004, p. 23) propem uma periodizao importante a respeito das
psiquiatrias reformadas, ao discutirem as propostas de cada uma destas experincias em
relao lgica asilar psiquitrica. Comentando o estudo desses autores, Amarante (1995,
p.71) prope a seguinte ordenao: 1) comunidades teraputicas e psicoterapia institucional
(reformas restritas ao mbito asilar); 2) psiquiatria de setor e psiquiatria preventiva (que
extrapolam as reformas do espao asilar); 3) antipsiquiatria e psiquiatria democrtica italiana
(que instauram uma ruptura com as prticas anteriores, questionando o dispositivo mdico-
psiquitrico, seu discurso e dispositivos teraputicos).
O estudo de Guerra (2000) aborda as premissas que embasam as experincias citadas
acima, bem como o uso do trabalho e da atividade nas mesmas. A autora, que tambm recorre
s anlises de Birmam e Costa (1994) e de Amarante (1995), afirma terem sido as propostas
de Simon, Sullivam, Bion e Menninger que determinaram o uso da atividade e do trabalho no
perodo em questo. Destaca ainda as influncias de Schneider, Paul Sivandon, Freud e Jung
segundo referncias encontradas na obra de Nise da Silveira (1976). Por fim, cita ainda
Delgado (1994), com sua referncia psiquiatria do trabalho francesa (tambm da escola de
Sivadon), e Simom como autores influentes. interessante conhecermos suas bases
epistmicas e operacionais (GUERRA, 2000, p. 52).
32
Guerra (2000, p.54) relata que as experincias das Comunidades Teraputicas, na
Inglaterra, e da Psicoterapia Institucional, na Frana, so tributrias da proposta de Simon (o
trabalho um estimulante geral, uma possibilidade de exerccio das funes psquicas
normais, que leva ao contato com a realidade). Outra influncia que ressalta de Sullivan e de
seu enfoque teraputico voltado para a integrao de pacientes em sistemas grupais, geradores
de possibilidades de comunicao entre os pacientes. Tambm Menninger aplicou a ttica da
terapia grupal para doentes mentais: problemas e solues eram debatidos em grupo, visando
a ressocializao. Quanto ao trabalho desenvolvido por Bion e Rickmann, Guerra (2000, p.55)
aponta sua orientao no sentido de uma necessidade de recuperar a mo-de-obra militar, que
fez do trabalho um aparato teraputico.
J Sivadon focaliza na doena mental a perturbao das funes de adaptao ao
ambiente onde vive o indivduo (GUERRA, 2000, p.56). A condio patolgica possuiria
graus diferenciados de dissoluo, e a relao do doente com o ambiente funcionaria de
acordo com esta gradao. A ocupao ser teraputica na medida em que vise reestruturar a
personalidade mrbida, levando o paciente a nveis funcionais mais elevados. necessrio,
para que os resultados alcanados sejam positivos, que os doentes se adaptem s atividades. E
a adaptao depender das caractersticas do grupo de trabalho, do tipo de ocupao, do ritmo
de trabalho, do material, do grau de relaes humanas que o paciente consegue estabelecer e
do grau de responsabilidade que a atividade exige (GUERRA, 2000, p.57).
Explicitadas as principais influencias, retornemos s psiquiatrias reformadas. Na
comunidade teraputica, os pacientes eram tomados como agentes sociais de sua existncia
hospitalar, por meio da organizao coletiva do trabalho e das discusses em grupo sobre as
atividades do hospital, a fim de se evitar a iatrogenia deste ambiente. Atravs do trabalho e
das atividades grupais, exercidas para o prprio funcionamento do aparato teraputico asilar,
os sujeitos poderiam recuperar a normalidade perdida (RANGEL, 2006, p.35).
Na psicoterapia institucional, a atividade um dos objetos institucionais que
estabelecem a mediao entre paciente e o coletivo. A criao de um coletivo, que possa
fornecer referncias ao paciente, o objetivo dessa psicoterapia (GUERRA, 2006, p.35).
Trabalha-se com a noo de que o coletivo no caso, a prpria instituio psiquitrica
propicia o melhor tratamento do paciente.
Quanto a psiquiatria de setor, Guerra (2000, p.59) afirma ser esta uma reforma de
cunho mais administrativo que tcnico ou terico pouco inovando quanto ao uso teraputico
da atividade e do trabalho.
33
A psiquiatria preventiva prope novas atitudes teraputicas, entretanto distancia-se do
trabalho com o paciente para atender s demandas que o trabalho comunitrio criou
(RANGEL, 2006, p.36).
Ao analisar as teorias e sistemas que influenciaram as experincias das psiquiatrias
reformadas, podemos perceber que, a partir delas se originaram determinadas premissas
adotadas pelas oficinas teraputicas atualmente.
Umas das funes dessas oficinas hoje como destacam Costa e Figueiredo (2008, p.8)
seu potencial em estabelecer o convvio entre os pacientes e entre pacientes e tcnicos, em
oposio ao isolamento afetivo e social que o transtorno mental acarreta. No se trata aqui
apenas do isolamento fabricado pela psiquiatria, mas de um isolamento inerente prpria
experincia da loucura.
Vale lembrar que Sullivam e Menninger e, conseqentemente, as experincias da
comunidade institucional (cf. Guerra, 2000) j apontavam e apostavam que a integrao de
pacientes em sistemas grupais gera a possibilidade de comunicao entre os pacientes. Foram
criticados, como sabemos, por se restringirem ao mbito asilar, sem romper com sua lgica
(RANGEL, 2006, p.36).
Retomemos, para uma anlise mais acurada, as convices adotadas antes das
psiquiatrias reformadas. A funo teraputica do trabalho em Pinel est articulada, como dito
antes, noo de loucura como desrazo, desvio da corrente natural do pensamento racional.
Assim sendo, a loucura deve ser reconduzida novamente racionalidade, normalidade.
Tendo o trabalho alcanado o status de parmetro para a normalidade para atender s
novas configuraes econmicas que vinham sendo estabelecidas desde a ascenso da
burguesia ser por meio dele que o louco conseguir recobrar a razo. O trabalho e a
atividade so teraputicos em si mesmos, pois a lgica pineliana v, na ordenao social
proposta pelo trabalho, a condio de melhora do doente mental (RANGEL, 2006, p.38). J
no mbito das psiquiatrias reformadas, sobretudo nas experincias da comunidade teraputica
e da psicoterapia institucional, o trabalho e atividade ficaram restritos ao universo asilar,
servindo para melhorar o funcionamento do hospital, servindo para reafirmar a instituio
asilar como o epicentro do tratamento teraputico.
Pode-se afirmar que nenhuma das duas lgicas acima se concilia com os objetivos das
oficinas teraputicas atuais:
Tomar a atividade em si como catalisadora da condio de melhora do paciente, sem
construir para ela algum destino, remete tanto ao tratamento moral de Pinel, quanto
garantia do bom funcionamento do aparato psiquitrico, preconizadas pelas
experincias da comunidade teraputica e da psicoterapia institucional. No primeiro
caso, pragmatismo torna-se sinnimo de Capacidade de executar uma tarefa, retorno
34
aos padres de normalidade; no segundo, sinnimo de garantia de que, entretido e
ocupado com a atividade, o paciente no afetar o bom funcionamento do servio.
(RANGEL, 2006, p. 36)
Se, por outro lado, o pragmatismo estimulado por algumas oficinas retira o sujeito de
uma posio de inrcia, ele tambm no deve se restringir a isso. Deve ir alm, estar dirigido
a algum outro tipo de insero.
Porque, muitas das vezes, na Ergoterapia, se produzem coisas que no servem a
ningum, eu acho que isto no pedaggico, eu no acho que se faa Sade Mental
ao produzir coisas inteis, muito embora possa a existir, certamente, um processo
de aprendizagem para o qual se pode utilizar diferentes formas, mas acho que
muito mais importante que uma pessoa se empenhe um ano para fazer uma coisa que
pode ser vendida do que ela empregar um dia apenas fazendo uma coisa que no
serve para ningum. (ROTTELI, 1994, p.154 apud GUERRA, 2000, p.64)
No que diz respeito s reformas que rompem com o discurso e as prticas
psiquitricas-asilares, podemos dizer que o trabalho4 tornar-se importante viabilizador da
busca pelo resgate da cidadania, no cerne das estratgias de reabilitao ou reinsero social.
O movimento da antipsiquiatria questionava o saber e a prtica, questionava a
racionalidade das cincias naturais quando aplicada s cincias humanas. A loucura estaria
entre os homens como fruto social, e no como mais dentro do homem como desvio de sua
razo. Seu mtodo teraputico valoriza a anlise do discurso atravs da metania, da viagem
ou delrio do louco, que no deve ser podada (AMARANTE, 1995, p.29).
Segundo Rangel (2006, p. 40) as atuais oficinas teraputicas buscam suas bases nas
noes difundidas pela Reforma Psiquitrica Brasileira e a experincia brasileira sofreu fortes
influencias da Psiquiatria Democrtica Italiana.
Sucintamente podemos dizer que a Psiquiatria Italiana toma por bandeira a idia de
que a liberdade teraputica e por discusso crtica a perspectiva institucional
enquanto conjunto que liga os saberes, as administraes, as leis, os regulamentos,
os recursos materiais, que estruturam a relao mdico-paciente. (AMARANTE,
1995, p.151)
Mais que humanizar a assistncia, parte de uma critica radical ideologia dominante
que busca destruir qualquer forma de diversidade em funo de uma exigncia de
produtividade das pessoas, onde as foras no produtivas terminam por serem
excludas, tendo na psiquiatria a legitimao dessa excluso em sua ao
manicomial de aparncia cientfica. (ROTTELI, 1994, p. 150 apud RANGEL, 2006,
p. 40)
Dessa maneira em lugar dos conceitos de doena ou sade mental, trabalha-se com a
noo de existncia-sofrimento do corpo em relao ao corpo social substituindo o
curar pelo cuidar, a partir da idia de autonomia. (MIRANDA Jr., 1994, p.07 apud
GUERRA, 2000, p.61)
4 interessante pensar, como lembra Guerra (2000, p.62) que tomando por base ter um trabalho, um salrio, em nossa
sociedade pode ser tomado como um elemento de Sade Mental, mas tambm um direito do cidado, o mesmo no deve ser transformado, segundo a vertente tica desse pensamento.
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Guerra (2000, p. 65) coloca que foi a experincia italiana que redefiniu a idia de
reabilitao mental, caracterstica do uso da atividade e do trabalho na psiquiatria. Props a
reviso da ergoterapia realizada nos manicmios italianos prticas que, na verdade,
promoviam a explorao da mo-de-obra dos internos para o bom funcionamento do
manicmio. Para transformar o status do trabalho no campo psiquitrico, que no deveria
mais ser estratgia de tratamento e to pouco de explorao, montaram-se as primeiras
cooperativas de trabalho. Inicialmente, foram contratadas pela prpria instituio, que passou
a pagar pelos servios dos internos. Esta atitude modificou as relaes entre os sujeitos que
habitavam o hospital psiquitrico, ou seja, tcnicos e pacientes.
Em um segundo momento, os pacientes comearam a ser pensados no apenas como
produtores, mais tambm como consumidores. Este novo papel permitiria, mais do que
apenas a funo de produtor, readquirir a capacidade de relacionamento com os outros. No
prprio hospital foram criados pequenos negcios que viabilizavam as trocas via consumo.
Com o desenrolar deste processo, as cooperativas vieram a articular o pblico e o privado,
buscando trabalhar qualidade do ambiente, do produto das relaes. E trabalhar a qualidade
significa ampliar o alcance da terapia, considerando-se que, no mundo da marginalizao,
somente a prpria qualidade pode fazer frente segregao.
Parece, portanto, que um certo uso do mercado e da qualidade so os eixos em torno
do qual a Psiquiatria Democrtica funda em seu interior o uso da atividade e do
trabalho com recurso teraputico. Nesse territrio, o teraputico passa a se
entendido como tudo aquilo que nos permite revisitar a qualidade de vida.
(ROTELLI, 1994, p.159 apud GUERRA, 2000, p.64)
A Psiquiatria Democrtica Italiana traz para o campo da sade mental novas e
importantes questes. Podemos destacar as transformaes sofridas pela noo de teraputico,
da idia de ampliao das possibilidades de troca na vida pblica, no que o aspecto poltico e
o clinico encontram-se associados, como ressalta Guerra (2000, p.71). Quanto utilizao do
trabalho e da atividade prope-se a incluso deles nos circuitos da qualidade e econmico,
onde as trocas sociais se estabelecem de fato.
Essa retrospectiva nos revela que o trabalho e atividade tiveram lugar certo nas
prticas que constituem a instituio psiquitrica desde o seu nascimento, como um
importante instrumento organizador da lgica asilar. Retomar esta trajetria fundamental
para (re)pensar as prticas contemporneas e refletir sobre seus impasses, encontrando novas
e criativas maneiras para no reproduzirmos os velhos modelos que tanto criticamos.
36
3.2 O uso do trabalho e da atividade no contexto psiquitrico brasileiro: do sculo XIX
aos tempos atuais
No captulo anterior vimos que na Europa a ruptura da ordem feudal e a ascenso do
capitalismo mercantil, trouxeram a necessidade de uma nova ordenao social, intolerante ao
que no lhe serve, instituindo medidas contra a desordem, como a loucura. Pr-condies
como urbanizao e industrializao dos meios de produo aportaram novas necessidades e
novos contratos sociais. Essas no eram as circunstncias do Brasil quando a loucura
ascendeu condio de problema social o que no nos permite a simples importao de
explicaes para o entendimento do processo brasileiro.
Resende (1985, p. 29) ressalta que, embora aqui tambm tenha ocorrido, como na
Europa, o seqestro da liberdade do louco devido, a motivaes socioeconmicas, devemos
considerar que as peculiaridades da vida econmica e social do Brasil colnia constituem um
diferencial importante. Por que teria o doente mental, no Brasil, surgido na cena social muito
antes de se ter alterado aquela mesma organizao, que at certo momento, lhe propiciou
extraordinria acolhida? (RESENDE, 1995, p.32). A vida econmica do Brasil colnia e o
trabalho baseado na atividade servil determinaram tais alteraes.
Segundo Rangel (2006, p.43) a utilizao dos escravos com suas conseqncias,
como a falta de trabalho para homens livres e o preconceito em torno do prprio trabalho,
associado a uma prtica inferior produz uma massa de desocupados, vagabundos e ladres,
enfim, de excludos, grupo que passa a atrapalhar a ordem social. Os loucos sero
identificados a este grupo, e para eles sero aplicadas as mesmas medidas. As Santas Casas de
Misericrdias, que at ento abrigavam apenas doentes pobres, velhos, rfos e mendigos,
passam a ter, tambm, os loucos e outros marginalizados como hspedes.
Desordem franca e ociosidade, perturbao da paz social e obstculos ao
crescimento econmico, esto ai as mesmas circunstancias sociais que, alguns
sculos antes, determinaram na Europa, o que Foucalt qualificou de o grande
enclausuramento, as diferenas residem apenas nas causas estruturais, aqui e l, e
que no foram poucas. (RESENDE, 1995, p.35)
Quanto ao tratamento dispensado aos loucos, era nos pores, sem qualquer tipo de
assistncia medica que seus delrios eram contidos com atos de violncia fsica. As prises
com igual tratamento, tambm acolhiam a loucura nessa poca (RANGEL, 2006, p.24).
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Podemos tomar com marco institucional5 da psiquiatria brasileira a construo em
1852 do primeiro hospital psiquitrico do pas, o Hospcio de Pedro II, na Praia Vermelha,
Rio de Janeiro. Posteriormente veio a receber o nome de Hospcio Nacional dos Alienados.
Surgiu em resposta aos reclamos gerais contra o livre trnsito de doidos pelas ruas da cidade;
acrescentem-se os apelos humanitrios, as denncias contra os maus tratos que sofriam os
insanos (RESENDE, 1987, p.38). Em um contexto de desordem e ameaa paz social, as
instituies psiquitricas brasileiras foram implementadas no intuito de controlar, segregar e,
posteriormente, tratar a loucura.
A localizao do primeiro hospcio brasileiro se deu em local afastado da cidade,
lgica que tambm determinar a instalao de outras estruturas psiquitricas asilares, as
colnias de alienados, que vieram a compor a assistncia psiquitrica brasileira. Outros
hospcios foram sendo inaugurados em outras partes do territrio nacional. A distancia e a
necessidade de asilamento se justificam por proposies que segundo Resende (1987, p.40)
so contraditrias entre si. De um lado, a indicao social que visava manuteno da ordem
e da proteo social, de outro, a indicao clnica e a inteno de cura.
No que diz respeito ao uso do trabalho e da atividade, nas colnias de alienados da
dcada de 1920, a motivao era interesses econmicos, ocupacionais e ordenadores, o que
colaborava para fazer dos chamados doentes mentais mo-de-obra nas lavouras (FARIA,
1995 apud RANGEL, 2006, p.44), sendo esta atividade entendida como teraputica.
Em hospitais psiquitricos da dcada de 1930 o trabalho tambm era considerado por
seus fins teraputicos, funcionando como um organizador da vida institucional (MIRANDA
Jr.,1994 apud RANGEL, 2006, p.44). necessrio ressaltar que o que se define como
teraputico deriva do que se entende por loucura sendo necessrio, portanto rever o
significado da funo teraputica do trabalho ou atividade conforme as diferentes formas de
entendimento acerca da loucura e do modelo de doena estabelecido.
A partir dos anos 1930, a psiquiatria Alem de base organicista se estabelece no Brasil,
principalmente por meio da figura de Juliano Moreira. Muito embora se possa afirmar que o
perodo imediatamente posterior Proclamao da Repblica tenha estabelecido uma diviso
entre a psiquiatria emprica do vice-reinado e a psiquiatria cientfica, s a partir da dcada de
1930 esta ultima se materializou. Segundo Guerra (2000, p.70) esse perodo se caracteriza por
utilizar o trabalho como recurso teraputico com trs finalidades: ocupar o tempo ocioso,
gerar renda para manuteno das colnias e asilos e manter a ordem social, no contexto
5 importante dizer que j em 1841, no Rio de Janeiro, havia um Asilo Provisrio, no mesmo local onde foi
construdo o Hospcio Pedro II.
38
conturbado da consolidao da Republica, do nascimento dos centros urbanos e da vida
citadina no pas.
importante lembrar que algumas propostas diferenciadas tambm ocorreram a partir
deste perodo, como o caso das experincias empreendidas por Osrio Cesar, em Franco da
Rocha, So Paulo, e Ulisses Pernambucano, em Recife, Pernambuco. No ano de 1929, Cesar
publicou o livro A Expresso Artstica dos alienados Contribuio ao Estudo dos Symbolos
na Arte, considerado sua obra prima. Trata-se de um estudo iniciado em 1923, realizado no
Hospital do Juqueri, no qual o mdico encontrara produo artstica pelos ptios e salas da
instituio (ADRIOLO, 2004 apud Rangel 2006, p.45).
Em 1925, Cesar publicara seu primeiro artigo sobre a temtica das atividades
artsticas, intitulado A Arte Primitiva dos Alienados. Foi com a motivao de condenar as
concepes sobre o exerccio mecnico da arte pelos loucos e acreditar no potencial artstico
dos trabalhos produzidos que Cesar publicou seus trabalhos e investiu na circulao destas
obras nos campos da arte e da psiquiatria. Cesar e Pernambuco so pioneiros no Brasil, na
utilizao da atividade com o enfoque artstico (RANGEL, 2006, p.45).
Rangel (2006, p.46) lembra que no campo das artes importantes transformaes
vinham ocorrendo, principalmente em funo do movimento modernista, cujas idias
valorizavam a espontaneidade e livre expresso, questionado o virtuosismo tcnico e o
academicismo nas artes. A qualidade plstica de doentes mentais e crianas passou a ser
valorizada, legitimada no contexto da arte.
Ainda Rangel (2006, p.47) destaca que Cesar no ficou restrito ao universo da
psiquiatria ao abordar a temtica das artes produzidas pelos habitantes dos hospitais
psiquitricos. Buscava sempre a articulao com artistas e pensadores de outras reas, fazendo
um intercambio entre o mundo de dentro o asilo e o mundo de fora a sociedade.
fundamental destacar na obra de Cesar sua atitude inovadora em colocar as obras dos artistas
que produziam no Juqueri no campo das artes, de ter para com elas, o mesmo olhar que, como
critico de arte, tinha com os artistas da arte formal.
Na dcada de 1940, outra importante figura da psiquiatria brasileira, Nise da Silveira,
introduziu um diferencial em relao funo teraputica da atividade e do trabalho. Este que
era, essencialmente, laborativo (alfaiataria, plantio, marcenaria) e voltado para a prpria
manuteno da instituio6, assumiu ento a funo de expressar aquilo que inconsciente.
6 Com exceo das experincias de Ulisses Pernambuco e Osrio Cesar, citadas anteriormente.
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Ao questionar a primazia do pensamento organicista na psiquiatria, Nise da Silveira
valoriza o uso da atividade como recurso teraputico, denunciando, ao mesmo tempo, os
desvios em sua utilizao e enfocando o respeito produo subjetiva dos pacientes e suas
manifestaes. Desse modo, subverteu a lgica vigente, colocando as atividades expressivas
em p de igualdade com as demais abordagens teraputicas (terapia medicamentosa,
eletrochoque e lobotomias), no mais submetidas manuteno da prpria instituio.
Alm disso, superou a viso anterior, segundo a qual a ocupao teraputica s era
destinada aos crnicos e, sobretudo, buscou garantir uma postura de respeito e ateno
produo subjetiva do louco. Assim, suas inovaes, verdadeiros cortes epistemolgicos
cultura que sustentava as prticas psiquitricas vigentes poca, foram de influencia decisiva
para concebermos o que hoje chamamos de oficinas (GUERRA, 2000, p.96).
Nas dcadas posteriores, de 1950 a 1970, o pas passou por um perodo marcado por
grande descaso e reduzidssimo investimento na rea. So caractersticas deste momento o
enfoque medicamentoso adotado pela psiquiatria tradicional fortalecido pelas multinacionais
da indstria farmacutica e por uma viso psicanaltica ortodoxa; a orientao organicista
predominante nos cursos de sade; a lgica privatizante na poltica de sade e a falta de
intencionalidade poltica de mudana da situao da institucionalizao da loucura nos
manicmios (GUERRA, 2000, p.94).
A atividade voltada para o campo, caracterstica das colnias agrcolas, ficou
destoante, uma vez que a industrializao ganhava cada vez mais alcance; por outro lado, o
trabalho tornou-se um arremedo de praxiterapia, constando de atividades montonas e
repetitivas, nas quais o doente no podia perceber qualquer sentido (RESENDE, 1989, p.28).
A Terapia Ocupacional de Nise da Silveira foi bastante enfraquecida e mesmo marginalizada
nesse perodo.
Na dcada de 1980, diante da situao critica em que se encontrava o campo da sade
mental no Brasil internaes desnecessrias, assistncia de m qualidade, privatizao
galopante e abusivamente lucrativa, carncia de infra-estrutura iniciou-se um processo de
combate a tal estado de coisas. Foi posto em questo o saber psiquitrico e sua prtica. No
centro das reivindicaes da Reforma Psiquitrica Brasileira estavam o resgate de cidadania
do louco e a construo de novas prticas sociais e assistenciais para lidar com a loucura.
A dcada de 1980 assistiu ainda ao surgimento de experincias institucionais bem-
sucedidas na arquitetura de um novo tipo de cuidados em sade mental. Ao menos duas delas
so consideradas marcos inaugurais e paradigmticos de uma nova prtica de cuidados no
Brasil: o Centro de Ateno Psicossocial Professor Luiz da Rocha Cerqueira, em So Paulo; e
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a interveno na Casa de Sade Anchieta, realizada pela administrao municipal de Santos
(SP), iniciando o processo que se constituiria no complexo e exemplar Programa de Sade
Mental daquela cidade. A experincia santista nasceu da interveno pblica realizada pela
nova administrao municipal na Casa de Sade Anchieta (TENRIO, 2002, p.28).
A Anchieta era uma clnica privada conveniada com o Inamps (isto , contratada e
financiada pelo poder pblico para prestar assistncia pblica populao) e funcionava h
quarenta anos absorvendo praticamente toda a demanda de internao asilar da regio. A
interveno, motivada pelas denncias (logo comprovadas) de mortes, superlotao,
abandono e maus-tratos, transformou-se em desapropriao por razes de utilidade pblica e
depois se desdobrou em aes para extinguir o manicmio na cidade, com a implementao
de um Programa de Sade Mental organizado em torno dos ento criados Ncleos de Ateno
Psicossocial (NAPS).
Os NAPS so estruturas abertas, regionalizadas, com responsabilidade por toda a
demanda da regio, independentemente de sua gravidade, oferecendo cuidados 24 horas,
todos os dias, inclusive acolhimento de tipo internao, cada unidade dispondo de seis leitos,
aproximadamente (LEAL, 1994, p.32). O servio deve oferecer o maior nmero possvel de
recursos diferentes e alternativas de cuidado: o mesmo espao prestando-se a funcionar como
hospital-dia, hospital-noite, aceitando freqncias variadas ou mesmo irregulares ao
tratamento e oferecendo desde consultas mdicas e psicolgicas s mais variadas atividades
grupais, alm de atender em regime de visita domiciliar aos pacientes com os quais por algum
motivo este seja o nico contato possvel.
Outro marco inaugural dos novos paradigmas de cuidados em sade mental no Brasil
o Centro de Ateno Psicossocial - CAPS Professor Luiz da Rocha Cerqueira, em So Paulo.
Funcionando desde 1987, o CAPS tornou-se uma espcie de exemplo irradiador de um novo
modelo de cuidados para a psiquiatria brasileira. diferena da experincia de Santos, que
consiste de todo um programa de polticas pblicas, o CAPS Luiz Cerqueira uma unidade
especfica da rede pblica do estado de So Paulo. O caminho de reflexo que veio a trilhar
situa-se mais estritamente no interior da clnica, o que no quer dizer que se reduza s meras
reformulaes tcnicas que caracterizaram a fase inicial da reforma, anteriormente citada. O
questionamento dos pressupostos do saber psiquitrico colocado no em uma perspectiva
externa psiquiatria, mas no sentido de, internamente ao campo, produzir um novo modo de
fazer e conceber a doena mental, seu tratamento e a cura.
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A clnica do CAPS, portanto, no dispensa a tradio, o saber e os instrumentos da
psiquiatria, mas subordina-os a uma nova apreenso do que seja a problemtica da doena
mental e do que seja o tratar.Basicamente, o CAPS um servio de atendimento-dia, em que
o paciente passa o dia e noite volta para sua casa. Vimos anteriormente que o ambulatrio,
na dcada de 1980, no funcionara como barreira prevalncia da internao como forma de
tratamento. O CAPS Luiz Cerqueira e os CAPS que nele se inspiraram partem da constatao
de que a especificidade clnica da clientela-alvo, sobretudo no que diz respeito s dificuldades
de vida gerada pela doena e s possibilidades de expresso subjetiva do psictico grave,
requer muito mais do que uma consulta ambulatorial mensal ou mesmo semanal.
Assim, os CAPS fundamentam-se na idia de que o tratamento dos pacientes
psiquitricos graves exige condies teraputicas que inexistem nos ambulatrios e hospitais
psiquitricos. (Goldberg, 1994, p. 22). O atendimento-dia, que possibilita que o paciente
comparea todos os dias da semana se necessrio, articula-se a outras caractersticas
especficas, como a oferta de atividades teraputicas diversificadas e a constituio de uma
equipe multiprofissional. Busca-se oferecer ao paciente a maior heterogeneidade possvel,
tanto no que diz respeito s pessoas com quem que ele possa se vincular, quanto no que diz
respeito s atividades em que possa se engajar.
O trabalho e atividade foram, em um primeiro momento, estratgias de reinsero e
reabilitao social, com vistas ao resgate da cidadania dos pacientes. Por meio do trabalho, os
sujeitos poderiam recuperar a capacidade de gerir as condies materiais mnimas de sua
sobrevivncia, a autonomia no campo social. Segundo Miranda Jnior (1994 apud RANGEL,
2006, p.49) o trabalho entra aqui como um dos agentes catalisadores de construo desta
cidadania/autonomia enquanto permite ao su