O PRINCPIO DA FUNO SOCIAL DA PROPRIEDADEE SUA REPERCUSSO SOBRE O SISTEMA DO CDIGO CIVIL
Rochelle JelinekPromotora de Justia/RS
Especialista em Direito Ambiental pela UFRGSMestranda em Direito pela PUCRS
Porto Alegre2006
SUMRIO
INTRODUO .............................................................................................................. 3
1. A CONSTRUO DE UM NOVO PARADIGMA NO DIREITO CIVIL .......... 4
2. O SURGIMENTO DOS FUNDAMENTOS JURDICOS DA FUNO SOCIAL
DA PROPRIEDADE .................................................................................................... 10
3.O PRINCPIO DA FUNO SOCIAL DA PROPRIEDADE NO DIREITO
CONSTITUCIONAL COMPARADO ....................................................................... 13
4. O PRINCPIO DA FUNO SOCIAL DA PROPRIEDADE NO DIREITO
CONSTITUCIONAL BRASILEIRO ......................................................................... 17
4.1. Nas Constituies anteriores a 1988..................................................................... 17
4.2. Na Constituio Federal de 1988.......................................................................... 19
5. FORMAS DA INCIDNCIA DA FUNO SOCIAL SOBRE O DIREITO DE
PROPRIEDADE........................................................................................................... 23
5.1. Privao de determinadas faculdades ................................................................. 24
5.2. Obrigao de exercitar determinadas faculdades .............................................. 26
5.3. Complexo de condies para o exerccio de faculdades atribudas .................. 27
6. A REPERCUSSO DO PRINCPIO CONSTITUCIONAL DA FUNO
SOCIAL DA PROPRIEDADE NO SISTEMA DO CDIGO CIVIL DE 2002..... 28
CONCLUSO............................................................................................................... 38
FONTES CONSULTADAS......................................................................................... 39
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INTRODUO
O tema da funo social da propriedade est intimamente ligado com a
contempornea inexistncia da dicotomia rgida entre o direito pblico e o direito
privado, a hermenutica e a interpretao conforme a Constituio, e a concretizao
dos princpios fundamentais, em especial da dignidade da pessoa humana e da justia
social.
Neste trabalho, aps uma anlise da superao da dicotomia direito
pblico/direito privado, examinam-se o fenmeno da constitucionalizao e da
despatrimonializao do direito civil, as dimenses do direito de propriedade no Estado
Liberal individualista e absolutista e no Estado Social com carter de
solidariedade, relatividade e funcionalidade. Nesta contempornea dimenso do direito
de propriedade, em razo da sua funo social, esse instituto mostrado como relao
funcional entre sujeito e objeto, e no como direito absoluto.
No mbito do Direito Constitucional comparado, verifica-se a previso do
princpio em comento em Constituies de outros pases e, no mbito do Direito
Constitucional brasileiro, a evoluo da previso da funo social da propriedade nas
Constituies anteriores a 1988 e a unio indissocivel entre a propriedade e a sua
funo social positivada em diversos dispositivos da Carta Magna vigente.
Com essa nova dimenso da propriedade, cuja definio inseparvel da sua
funo social, observam-se trs formas de incidncia do princpio em comento: vedao
ao proprietrio do exerccio de determinadas faculdades, obrigao de o proprietrio
exercer faculdades elementares do domnio e a criao de um complexo de condies
para o exerccio das faculdades atribudas pelo direito de propriedade.
Por fim, baseando-se na premissa de rompimento paradigmtico e
metodolgico da antiga viso do direito de propriedade, faz-se uma breve anlise de
algumas repercusses do princpio constitucional da funo social da propriedade no
Cdigo Civil de 2002, de modo a apreender-se a acepo das regras codificadas com
vistas construo de uma nova dimenso da relao de propriedade, para
concretizao dos fundamentos e objetivos do Estado Democrtico de Direito, em
especial a dignidade da pessoa humana e a justia social.
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1. A CONSTRUO DE UM NOVO PARADIGMA NO DIREITO CIVIL
Por volta do sculo XVIII, no chamado Estado Liberal, com a distino entre a
esfera das relaes econmicas e a esfera das relaes polticas, entre sociedade civil e
Estado, havia ntida dicotomia entre o direito pblico e o direito privado. Aquele era um
direito eminentemente governativo, que, atravs de Constituies liberais que eram
verdadeiros cdigos de direito pblico, disciplinava o Estado, sua estruturao e
funcionamento, com confuso entre interesses do Governo e interesse da
Administrao, enquanto o direito privado, consubstanciado em cdigo de direito
privado redigido para regular a vida social como documento completo e nico, era o
ramo do direito que disciplinava a sociedade civil, as relaes jurdicas entre os
cidados e o mundo econmico, sob a concepo do individualismo, do liberalismo
econmico e da propriedade privada absoluta, com excluso de qualquer interveno
estatal.1
Os cdigos civis desse perodo, tambm chamados constituies de direito
privado, caracterizavam-se por estarem centrados na propriedade, com nfase na
propriedade imobiliria, com carter absoluto e individualista, e na igualdade
meramente formal. As normas estatais protetoras do indivduo buscavam apenas
assegurar a liberdade econmica, protegendo o cidado contra o prprio Estado. As
limitaes aos direitos subjetivos, quando existentes, eram somente aquelas necessrias
para permitir a convivncia social. A ideologia jurdica predominante poca2
1 O direito privado, neste perodo, estatal e burgus. Estatal, porque, neste primeiro ciclo decodificaes, o legislador institui de forma sistemtica e abrangente o direito privado. Burgus, no sentidode que o direito privado passa a espelhar a ideologia, os anseios e a necessidade da classe scio-econmica que havia conquistado o poder em praticamente todos os estados ocidentais (a burguesia),passando a regular toda a sociedade a partir das necessidades e ideologias de uma frao dessa sociedade,representadas pelo liberalismo econmico, pela propriedade privada absoluta e pela ampla liberdadecontratual como instituto auxiliar para facilitar as transferncias e a criao de riqueza. FACCHININETO, Eugnio. Reflexes histrico-evolutivas sobre a constitucionalizao do direito privado. In:SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Constituio, Direitos Fundamentais e Direito Privado. Porto Alegre:Livraria do Advogado, 2003, p. 17-18.2 Facchini bem explicita a ideologia jurdica da poca: [...] podemos denominar de ideologia dos 3 cs:pretende-se que a legislao civil (leia-se, os cdigos) seja completa, clara e coerente. A ideologia dacompletude significa que a legislao (supostamente) completa, no possuindo lacunas; a idia delegislao caracterizada pela sua clareza significa que as regras jurdicas so facilmente interpretveis,no contendo significados ambguos ou polissmicos. E a ideologia da coernci8a afasta a possibilidadede antinomias. Tudo isso deriva do mito do legislador iluminista, inteligente, onisciente, previdente,capaz de tudo regular detalhadamente, antecipadamente, de forma clara e sem contradies. [...] aosjuzes, reservar-se-ia o papel de bouche de la loi, [...] nada criaria, apenas aplicaria o direito (j
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dispensava a interpretao sistemtica do direito, pois o direito civil e o direito
constitucional seguiam caminhos separados, cada um com seu prprio mbito de
incidncia.
A passagem do Estado Liberal para o Estado Social se deu com o
reconhecimento da ocorrncia da ampliao das desigualdades sociais e a necessidade
de garantir os direitos individuais e os direitos sociais aos cidados. O Estado, antes
voltado a conferir eficcia liberdade econmica, teve de assumir funes de regular as
relaes subjetivas e passou a intervir no processo econmico para estabelecer relaes
sociais mais justas, quer de forma direta, assumindo a gesto de determinados servios
sociais, quer de forma indireta, atravs da disciplina das relaes privadas relacionadas
ao comrcio e de outras relaes intersubjetivas que antes eram deixadas livre
autonomia privada. Ao contrrio da no-interveno reclamada pelos direitos
individuais absolutos consagrados no Estado Liberal, ao Estado Social incumbe atuao
pr-ativa no sentido de assegurar a fruio dos direitos individuais e sociais pelos
destinatrios, diante da qualificao de direitos prestacionais, que exigem, mais que a
absteno necessria ao respeito dos direitos-liberdade, tambm prestaes estatais
positivas para sua concretizao.3
Nas ltimas dcadas, percebe-se a interao entre pblico e privado e a
superao da dicotomia, chamada por Tepedino4 de summa divisio do direito pblico e
do direito privado5: cada vez mais o Estado se utiliza de institutos jurdicos do direito
previamente elaborado pelo legislador) ao caso concreto. O catlogo de todas as solues possveis jpreexistiria ao caso litigioso. FACCHINI NETO, Eugnio. Reflexes histrico-evolutivas..., p. 20-21.3 Na nova concepo de direitos fundamentais, diretamente vinculantes, a Administrao deve pautarsuas atividades no sentido de no s violar tais direitos, como tambm de implement-los praticamente,mediante a adoo de polticas pblicas que permitam o efetivo gozo de tais direit