O CURRÍCULO DE CIÊNCIAS E A CONSTRUÇÃO DE FRONTEIRAS
SOCIAIS
BORDINI, Santina Célia-UFPR [email protected]
SOARES, Edimara Gonçalves - UFPR
Área Temática: Educação: Currículo e Saberes
Agencia Financiadora: Não contou com financiamento Resumo As atividades escolares são norteadas a partir de um conjunto de elementos, tais como, livros didáticos, os conteúdos elencados para cada nível de ensino, as disciplinas, os objetivos, os métodos, as experiências, etc., que fazem parte do currículo escolar. Nesta pesquisa escolhemos os livros didáticos de ciências, como um dos componentes do currículo escolar, onde estão inscritas diferentes maneiras de ver e dizer sobre a sexualidade, o gênero, e a etnia, através de diversas linguagens: escrita, imagética, numérica. Esta pesquisa insere-se no campo dos Estudos Culturais, na vertente pós-estruturalista. Nossa proximidade com os aportes teóricos deve-se ao fato da cultura ocupar o centro das discussões, mas principalmente, por defenderem o pluralismo cultural e o respeito às diferenças. O objetivo central desta pesquisa consiste em examinar a construção de representações imagéticas inscritas nos livros didáticos de ciências dos anos iniciais sobre a sexualidade, o gênero e a etnia. Interessa-nos analisar como são construídas as fronteiras sociais que fixam noções particulares sobre o que é ser homem e o que é ser mulher, quais profissões são para homens e quais são para mulheres, quais etnias são incluídas e quais são excluídas, conforme a cor da pele. Nas análises feitas nas imagens inscritas nos livros didáticos de ciências, é possível evidenciar um discurso sexual apoiado no determinismo biológico, portanto, há uma sexualizacao dos lugares e funções. A etnia é representada conforme a cor da pele em lugares e atividades diferentes e desiguais. Os livros didáticos de ciências colocam em funcionamento uma maneira de aprender, de controlar significados culturais, de produzir e disseminar um sentido do que significa ser homem, mulher, branco, negro na sociedade. Palavras-chave: Gênero; Etnia; Sexualidade; Livros Didáticos de Ciências. Apresentando a Temática
As atividades escolares são norteadas a partir de um conjunto de elementos, tais como,
livros didáticos, os conteúdos elencados para cada nível de ensino, as disciplinas, os
objetivos, os métodos, as experiências, etc., que fazem parte do currículo escolar. Nesta
pesquisa escolhemos os livros didáticos de ciências, como um dos componentes do currículo
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escolar, onde estão inscritas diferentes maneiras de ver e dizer sobre a sexualidade, o gênero,
e a etnia, através de diversas linguagens: escrita, imagética, numérica. Essas linguagens
operam articuladas na produção e atribuição de significados para os sujeitos, buscando
demarcar aquelas características que devem ser vistas como normais, como corretas e
verdadeiras, portanto, entendemos o livro didático como um artefato cultural, que produz e
normatiza saberes e jeitos de ser e estar na sociedade.
Assim, é necessário e relevante olhar para os livros didáticos tentando localizar quais
formas de representação são legitimadas, quais formas de conhecer são válidas e quais não
são, quais grupos sociais podem representar a si mesmos e aos outros tomando a si próprio
como referência, como são construídos os sentidos de pertencimento e exclusão, e como são
estabelecidas as fronteiras sociais que estabelecem posições e funções ancoradas nas
diferenças relacionadas a sexualidade, ao gênero e a etnia, portanto, nesse movimento de
olhar e localizar os múltiplos elementos que estão em jogo para constituir identidades
culturais estamos empreendendo uma leitura analítica que nos possibilita questionar e
problematizar os cânones que consagram e sustentam concepções culturais hegemônicas,
fixas, estáveis, elitistas.
Nesse sentido, esta pesquisa insere-se no campo dos Estudos Culturais, na vertente
pós-estruturalista. Nossa proximidade com os aportes teóricos deve-se ao fato da cultura
ocupar o centro das discussões, mas principalmente, por defenderem o pluralismo cultural e o
respeito às diferenças. Trata-se de conceber a cultura não mais como um suposto
“conhecimento universal”, visto que esse conhecimento dito universal não pertence
propriamente a humanidade, mas aos homens brancos, letrados, de origem européia.
Compartilhamos com Hall (1997, p.26) que cultura significa “o terreno real, sólido, das
práticas, representações, línguas e costumes de qualquer sociedade histórica específica”, bem
como, as disputas, as tensões e contradições que estão implicadas na fabricação de sentidos e
posicionamentos dos sujeitos dos diferentes grupos sociais.
Assim, segundo essa concepção de cultura é possível verificar a existência de lugares e
ocupações desiguais na sociedade, no que se refere, as diferenças sexuais, de gênero e étnicas,
produzidas discursivamente e permeadas pelas relações de poder, portanto, analisá-las
significa concebê-las no terreno privilegiado da política cultural. Nesta pesquisa buscamos
aproximar a contribuição do filósofo Michel Foucault aos Estudos Culturais, por perceber que
há em comum o questionamento de uma verdade universal. Nos inspiramos em Veiga-Neto
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(2000) e Costa (2000) que nos oferecem profícuas possibilidades de utilizar simultaneamente
os Estudos Culturais e as ferramentas fornecidas pela obra de Foucault. Conforme Costa
(2000, p.34) as concepções de discurso e poder de Foucault “possibilitam expor mecanismos
de subordinação, controle, exclusão, que produzem efeitos cruéis nas arenas políticas do
mundo social”.
Nesta perspectiva o objetivo central desta pesquisa consiste em examinar a construção
de representações imagéticas inscritas nos livros didáticos de ciências dos anos iniciais sobre
a sexualidade, o gênero e a etnia. Também buscamos mostrar como as diferenças biológicas
dão ancoragem para posicionamentos desiguais entre homens e mulheres, e como a cor da
pele é acionada para marcar uma etnia de referência. Assim, interessa-nos analisar como são
construídas as fronteiras sociais que fixam noções particulares sobre o que é ser homem e o
que é ser mulher, quais profissões são para homens e quais são para mulheres, quais etnias são
incluídas e quais são excluídas.
Trilha da Investigação
A trilha percorrida para desenvolver essa pesquisa foi marcada por constantes idas e
vindas no material empírico e nos referencias teóricos. Entre as muitas possibilidades,
escolhemos 4 coleções de livros de ciências para os anos iniciais que fazem parte dos livros
aprovados pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD, 2007), e que estão no mercado
editorial, totalizando 16 livros, assim intituladas:
- Coleção 01 - Redescobrir Ciências de Janeth Wolff & Eduardo Martins;
- Coleção 02 - Ciências para crianças de Rosicler Martins Rodrigues;
- Coleção 03 - Ciências de Rosely Lembo & Isabel Costa;
- Coleção 04 - Terra, Planeta Vida: Ciências de Amélia Porto, Lízia Ramos & Sheila Goulart.
Nesta pesquisa, seguimos uma trilha, semelhante a metáfora do relógio utilizada por
Gvirtz (1997), seria como desmontar um relógio para mostrar seu funcionamento interno, para
ver como a sexualidade, o gênero e a etnia são produções culturais, são categorias reguladas e
reguladoras de uma maneira de ser e estar no mundo.
Sobre a metodologia dos Estudos Culturais (NELSON, TREICHLER, GROSSBERG,
1995, p. 9) assinalam que ela
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fornece uma marca igualmente desconfortável, pois eles, na verdade, não têm nenhuma metodologia distinta, (...) que possam reivindicar como sua. Sua metodologia, ambígua desde o início, pode ser bem mais entendida como uma bricolage. Isto é, sua escolha da prática é pragmática, estratégica e auto-reflexiva. A escolha das práticas de pesquisa depende das questões que são feitas, e as questões dependem de seu contexto.
Quanto à metodologia a ser adotada numa pesquisa Costa (1996, p.10) assinala que
“não importa o método que utilizamos para chegar ao conhecimento, o que de fato faz a
diferença são as interrogações que podem ser formuladas dentro de uma ou de outra maneira
de conceber as relações entre saber e poder”. Esta observação nos remete a possibilidade de
outras formas de investigar os objetos de pesquisa, procurando superar os saberes dogmáticos
e representações fixas que instituem significados, como verdades absolutas.
Encaminhamentos Teóricos
Esta pesquisa filia-se ao campo dos Estudos Culturais na perspectiva pós-
estruturalista. Não há uma definição/conceituação rígida do que são os Estudos Culturais, mas
é possível compreender os delineamentos dessa perspectiva de estudo, a partir das reflexões
feitas por vários/as autores/as. Conforme Nelson, Treichler, Grossberg (1995, p. 9) os Estudos
Culturais “se aproveitam de quaisquer campos que forem necessários para produzir o
conhecimento exigido por um projeto particular”, desde que forneçam formas de pensar,
estratégias de sobrevivência e recursos de resistência as metodologias tradicionais de análise
do conhecimento pelo viés cultural.
Ainda conforme os autores supracitados, os Estudos Culturais não são simplesmente
interdisciplinares, mas sim, antidisciplinares, pois são motivados por uma crítica as
disciplinas tradicionais e nutrem uma relação de constante desconfiança com o conhecimento
cristalizado. Acolhendo a argumentação de Costa (2000, p, 1) os Estudos Culturais “são
saberes nômades, que migram de uma disciplina para outra, de uma cultura para outra, que
percorrem países, grupos, práticas, tradições, e que não são capturados pelas cartografias
consagradas que têm ordenado a produção do pensamento humano”.
Para mostrar como são acionadas estrategicamente as diferentes posições sociais,
econômicas e culturais e destinadas para cada indíviduo conforme a sexualidade, o
pertencimento étnico e o gênero, nos utilizamos dos conceitos de discurso e poder fornecidos
por Foucault (1996). Na perspectiva foucaultiana o poder é disseminado, capilar, microfisico,
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portanto, se distancia da concepção de poder localizado num ponto fixo, como algo nefasto,
destrutivo, o poder é produtivo, a medida que produz representações e saberes impostos
politicamente, por exemplo: somente a mulher ocupando o espaço doméstico como resultado
da sua constituição biológica, portanto, o poder esta ligado a produção dos significados.
Na concepção de Foucault, (1996, p.10) “o poder não existe, existem sim práticas ou
relações de poder”. Esse caráter relacional do poder implica que as próprias lutas contra seu
exercício não possam ser feitas de fora, de outro lugar, do exterior, pois nada está isento de
poder. Portanto, não existe a exterioridade na força de uma relação, o poder é parte intrínseca
da relação. Assim, as representações imagéticas inscritas nos livros didáticos de ciências
fabricam e transmitem significados que remetem a normalidade, a regularidade sobre a
sexualidade, o gênero e a etnia.
O discurso na perspectiva foucaultiana é capaz de criar seu próprio objeto, sua própria
realidade, atribuindo significados e valores para suas invenções. O discurso torna verdade
aquilo que considera que deve ou deveria ser visto como verdade, portanto, por essa
capacidade de fabricar realidades, institiu efeitos de verdade sobre aquilo que é mostrado ou
dito sobre os povos e suas culturas. Conforme Foucault, (1997, p.56) o discurso é um
“conjunto de saberes e práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam”.
Assim, os discursos estabelecem as fronteiras sociais por onde homens e mulheres podem
circular e de como serão narrados/as e o lugar de cada etnia segundo a cor de pele.
A etnia neste estudo é entendida como uma construção histórica e cultual, e não como
as características biológicas das pessoas determinada pelos traços hereditários. Para
Gonçalves, (1996, p.426) “a etnia permite compreender uma realidade social mutante. São
realidades em movimento”. Assim, os significados construídos para etnia inscrito nos livros
didáticos de ciências podem ser contestados e desalojados.
Em relação ao gênero e sexualidade compartilhamos das definições conceituais de
LOURO (2001); LAQUEUR, (2001), entre outras/as. Não se trata de negar as diferenças
sexuais mostradas pela anatomia humana, mas sim, mostrar e questionar que tipos de posições
e funções são atribuídas as mulheres e aos homens a partir dessas diferenças. Essas autoras
rejeitam as características biológicas como únicas constituintes da masculinidade e da
feminilidade, e defendem que devem ser consideradas todas as representações sobre essas
características, portanto, tudo o que é mostrado e dito culturalmente sobre os sexos.
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Sexualidade, Gênero e Etnia: o que os livros didáticos de ciências não mostram
Nos livros didáticos analisados contamos atentamente quantas imagens humanas
representam o gênero masculino e quantas representam o gênero feminino, quantas
representam a etnia negra e branca, neste caso, independente da categoria de gênero.
Concomitantemente, localizamos e categorizamos os espaços de circulação de cada gênero e
etnia. As representações numéricas são mostradas na tabela 01.
Quadro 01: Representação numérica das imagens de Gênero e Etnia
COLEÇÃO 1 COLEÇÃO 2 COLEÇÃO 3 COLEÇÃO 4 Imagens do gênero masculino branco
347 – 69,3% 98 – 70,5% 258 – 70% 170 - 64%
Imagens do gênero feminino branca
154 – 30,7% 41 – 29,5% 116 – 30% 96 – 36%
Imagens de pessoas brancas
448 – 98% 121 – 87% 310 – 83% 214 – 80,5%
Imagens de pessoas negras.
53 – 11% 18 - 13% 64 – 17% 52 – 19,5%
Total de imagens 501 139 374 266 Org: Soares, 2008.
Através da tabela é possível evidenciar que existe uma regularidade quantitativa nas
representações acenando para uma constituição hegemônica de gênero e etnia, ou seja,
masculino de cor branca, independente do gênero a cor de pele branca é referenciada nos
diversos lugares e atividades mais prestigiados pela sociedade. A quantidade expressiva
dessas imagens produzem um saber conectado ao modelo desejável de sociedade, onde etnia
branca é instituída e valorizada, enquanto a etnia negra raramente aparece, quando aparece
afasta-se do modelo valorizado.
Nas análises feitas nas imagens inscritas nos livros didáticos de ciências, é possível
evidenciar um discurso sexual apoiado no determinismo biológico, o qual funciona como
marcador das diferentes posições e lugares da mulher e do homem, portanto, há uma
sexualização dos lugares e funções. A mulher e o homem estão posicionados em lugares e
funções diametralmente opostos, e a partir dessa oposição que vão sendo legitimadas relações
sociais desiguais e paulatinamente naturalizadas.
Assim, para entender essas desigualdades justificadas pela diferença sexual, “é
necessário demonstrar que não são propriamente as características sexuais, mas é a forma
como essas características são representadas ou valorizadas” Louro (2001, p.21). Assim,
aquilo que dizemos ou pensamos sobre as características construídas, é o que vai estabelecer
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as fronteiras do masculino e do feminino em uma dada sociedade, em um dado momento
histórico.
As imagens veiculadas nos livros de ciências analisados destinam à mulher o
desempenho das profissões domésticas, ainda que, atualmente as mulheres desconstruam as
fronteiras entre o público e o privado. Nos livros didáticos, elas continuam sendo capturadas
para o espaço doméstico. Elas aparecem com regularidade cuidando das crianças, limpando a
casa, cozinhando, enquanto eles, aparecem como médico, astronauta, piloto, cientista. A
consolidação de um discurso biológico sobre a natureza feminina como frágil, emotiva,
dependente, produz um saber ligada a incapacidade intelectual das mulheres. Tal observação é
mostrada na figura 1.
Figura 1: Profissão do gênero feminino Fonte: Wolff & Martins, 2007, p.116
Os homens aparecem em espaços opostos, desempenhando profissões prestigiadas, e
que remetem a valorização e maior remuneração. Conforme Bourdieu (1995) “a divisão
sexual do trabalho é evidenciada nos objetos técnicos ou nas práticas: por exemplo, na estrutura do
espaço, e em particular nas divisões interiores da casa (...) e mais amplamente, em todas as práticas”.
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Figura 2: Profissão do gênero masculino Fonte: Fonte: Wolff & Martins, 2007, p.36
Estas posições e funções assimétricas para o homem e a mulher inscritas nos livros
didáticos de ciências, remetem a construção de fronteiras sociais entre o público e o privado, e
elege quem pode se movimentar por uma ou por outra.
A família mostrada nos livros didáticos de ciências assinala o modelo ideal de família,
formada por um homem e uma mulher ambos de pele branca, com um filho e uma filha. As
pessoas aparecem desempenhando atividades caracteristicamente masculinas e femininas,
conforme figura 3.
Figura 3: Constituição da família Fonte: Wolff & Martins, 2007, p.05.
Nesse sentido, as imagens que mostram as mulheres somente no espaço do lar, como
se esse fosse um espaço quase exclusivo da circulação feminina, é uma estratégia sutil de
traçar os limites desiguais de circulação, nesse traçado estão inscritas relações de poder. É
essa a família brasileira? Porque as diversas etnias que compõem o nosso país estão ausentes
desse modelo de representação? Tal questionamento advém do fato de não encontrar nenhuma
imagem que mostre uma família negra, entendo que a ausência é denotativa do preconceito.
Os livros didáticos através de suas representações imagéticas realçam uma
extraordinária normalização do que significa ser menina e menino, as ações e
comportamentos que correspondem às formas hegemônicas de feminilidade e masculinidade.
Para as meninas as manifestações de cuidado e afeto envolvendo um contato físico são vistas
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como normais e aceitáveis, para os meninos há um afastamento dessas características, eles
representam a valentia, circulam por lugares abertos, portanto, as fronteiras comportamentais
parecem serem rígidas, tanto ela quanto ele, são vigiados para não atravessar os limites
construídos histórica e socialmente. Tais constatações são observadas nas figuras 4 e 5 .
Figura 4: Ser menina Figura 5: Ser menino Fonte: Wolff & Martins, 2007, p.05.
A imagem veicula uma concepção de autonomia dos meninos, eles podem jogar bola
na rua, andar de pés descalços, brincar nas poças d’água. Enquanto as meninas para as é
destinado o cuidado de algo, interpretando para mais além, o suposto cuidado com a prole
caberá a ela, isto é mostrado como tarefa exclusiva da mãe. Não estou querendo dizer que a
mulher não deve cuidar de seus filhos/as, o que estou questionando é que diante de uma
sociedade em constantes transformações socioeconômicas, onde muitos homens participam de
forma igual do cuidado dos filhos/as, isto continua sendo ocultado.
De acordo com Laqueur (2001), o sexo que nós conhecemos, ou seja, os dois sexos
como um novo fundamento de gênero, surge no século XVIII. O contexto para a articulação
dos dois sexos incomensuráveis não era nem a teoria do conhecimento nem os avanços do
conhecimento científico. O contexto era político. Havia lutas pelo poder e posição na esfera
pública, altamente ampliadas no século XVIII e, em especial, no século XIX pós-
revolucionário, entre homens e mulheres, entre feministas e antifeministas. O campo de
batalha do gênero mudou para a natureza, para o sexo biológico. A anatomia sexual distinta
era citada para apoiar ou negar todas as formas de reivindicações em uma variedade de
contextos sociais.
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No que se refere a etnia, elas são mostradas em atividades sociais de maneira distinta e
desigual. A etnia branca encontra-se posicionada, nos laboratórios, nos consultórios, ou seja,
nos espaços da atividade científica, enquanto a etnia negra quando aparece esta posicionada
no rural, no esporte, em atividades que se distanciam daquelas que remetem a inteligência, a
racionalidade. No capítulo que apresenta a utilidade das plantas para os seres humanos chama
nossa atenção o fato de que diversas plantas são mostradas sem a presença do ser humano.
Entretanto, ao mostrar uma lavoura de cana-de-açúcar aparece com naturalidade a imagem de
um homem negro trabalhando no corte da cana. Tais observações são mostradas nas figuras
06 e 07, respectivamente.
Figura 06: representação de etnia negra Figura 07: Representação de etnia branca Fonte: Rodrigues, 2007.
Nessa perspectiva, fica evidente que o papel endereçado para a etnia negra é
desempenhar uma função ligada ao esforço físico, ao trabalho manual, braçal, supostamente
legitimando pouca inteligência para o desempenho de outras atividades intelectuais ou ligadas
à ciência, visto que, não encontramos nenhuma imagem que mostre a etnia negra em espaços
considerados próprios da ciência, como, a medicina, a bioquímica, a geologia. Esta imagem é
uma das muitas formas utilizadas pelos livros didáticos de ciências para produzir e reforçar
estereótipos étnicos, sendo o estereótipo uma estratégia do discurso branco ocidental, “é uma
forma de conhecimento e identificação que varia entre o que está sempre no lugar, já
conhecido e algo que deve ser ansiosamente repetido”. (BHABHA, 2001, p.104).
A busca por uma marcador natural da diferença é a cor da pele, assim, os indivíduos
são posicionados em diferentes espaços, conforme a hierarquia socioeconômica, quanto
menos prestigiada for a atividade mais escura é a cor de pele ali posicionada. A cor da pele
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como algo que remete a superioridade ou inferioridade esta vinculada a carga de significados
construídos discursivamente e atravessados pelas relações de poder. Como no entender de
Veiga-Neto (2000, p.56)
Os significados não existem soltos no mundo, à espera de serem descobertos e formalizados lingüisticamente. Enquanto coisa deste mundo, o significado não preexite à sua enunciação. Ele só existe a partir do momento em que foi enunciado, passando a fazer parte de um ou mais discursos.
Essas imagens veiculam discursos que estão ligados à estruturas de poder, os quais
permitem construir verdades sobre aquilo que é mostrado. Nesse sentido, a etnia negra é
construída regularmente nas ‘bordas’, nos limites extremos, portanto, as linhas fronteiriças
são traçadas com efeitos perversos, pois, indicam para nossos/as estudantes o caminho da
discriminação.
Saindo da Temática
Num mundo onde as fronteiras nacionais tornam-se mais permeáveis, em que as
próprias identidades não são estáveis, fixas, absolutas e sim fragmentadas, situacionais,
híbridas, percebo, entretanto que as representações imagéticas dos livros didáticos de ciências
continuam produzindo e reforçando significados hegemônicos de gênero, etnia e sexualidade,
significados que aspiram a universalidade e o absolutismo, ou seja, as referencias estão
centralizadas na etnia branca, masculina, heterossexual.
Os livros didáticos como artefatos culturais moldam, influenciam e regulam
comportamentos e atitudes, mas também são moldados e regulados, portanto, são mecanismos
reguladores e regulados da cultura. Assim, os livros didáticos de ciências colocam em
funcionamento uma maneira de aprender, de controlar significados culturais, de produzir e
disseminar um sentido do que significa ser homem, mulher, branco, negro na sociedade.
Nossos/as estudantes vão aprendendo desde de cedo a reconhecer diferentes lugares e
as atividades desempenhadas em cada um deles, são estimulados a perceber que há um lugar
considerado adequado ao homem e mulher e que as profissões estão em oposição e
hierarquizadas. Aprendem que cada etnia conforme a cor da pele ocupa um lugar e uma
atividade diferente e desigual, e essa padronização social é comumente aceita como normal e
natural.
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REFERÊNCIAS
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