O “Antigo Regime” nas folhas periódicas de Minas Gerais
Alex Lombello Amaral
Mestre em História. Doutorando do PPG em História (UFJF). Minas Gerais
Resumo: O objetivo do artigo é identificar e analisar as diferentes representações sobre
o “Antigo Regime” que circularam na imprensa periódica produzida em Minas Gerais nas primeiras décadas do Império brasileiro. A pesquisa empírica centrou-se, sobretudo, no levantamento dos seguintes periódicos: Compilador Mineiro, Abelha do Itaculumy, Pregoeiro Constitucional, Constitucional Mineiro, Tareco Militar, Opinião Campanhense, Parahybuna, Popular, Despertador Mineiro, A Ordem e o Athenêo Popular. Ao construírem a oposição entre o tempo da “revolução” e o “tempo do Rei velho”, os redatores e correspondentes das folhas periódicas mineiras procuravam dar sentido às transformações em curso, publicizando os debates em torno de questões como a existência ou não de uma nobreza brasileira; a persistência de comportamentos e valores identificados como antiquados, “arcaicos”, dentre outros. Espera-se contribuir para a historiografia do período ao tomar Minas Gerais como espaço privilegiado de análise, sobretudo, se levarmos em conta que a maioria dos trabalhos historiográficos existentes sobre essa temática está focada no estudo do Rio de Janeiro e do nordeste.
Palavras chave: Antigo Regime; Independência do Brasil; Revolução; Imprensa; Nobreza da
terra. Abstract: The target of this paper is to identify and to analyze the different representations
of the “Ancient Regime” that circulated in the periodical press produced in Minas Gerais in the first decades of the nineteenth century. The empirical research focused on the study of the following newspaper: Compilador Mineiro, Abelha do Itaculumy, Pregoeiro Constitucional, Constitucional Mineiro, Tareco Militar, Opinião Campanhense, Parahybuna, Popular, Despertador Mineiro, A Ordem and the Athenêo Popular. The producers of these newspapers tried understand the ongoing changes, publicizing debates around issues such as the the existence or not of a Brazilian nobility, behaviors considered ancient, archaic, and others matters, drawing a contrast between the “Old King time” and the time of “revolution”.
Keywords: Brazil; Ancient Regime; Independency; Revolution; Press; Nobility;
A partir da constatação de que nossas fontes, as folhas periódicas produzidas
em Minas Gerais na primeira metade do século XIX, se representavam vivendo uma
revolução, nos propusemos a descobrir como elas representavam o Antigo Regime.
Optamos por não trabalharmos com um conceito de Antigo Regime, ou de Revolução,
anterior à pesquisa nas fontes.
Talvez ainda exista quem questione a validade da imprensa enquanto fonte,
mas para esses lembremos que todos “...os documentos são mentirosos porque são
sempre parciais. São sempre produzidos em atos de decisão e ação.”(LEVI, 2014,
Pág. 9) Sendo assim o que valem os documentos? Ora, dizer que uma opinião ou
informação do passado é “mentirosa” ou “parcial” é o mesmo que dizer que ela é
somente uma determinada representação da realidade, e não a própria realidade.
Porém, era com essas representações que se interpretava o contexto social, e com
elas se transformava esse contexto. Ademais, não se pode separar “os agentes e os
seus atos das imagens que aqueles têm de si próprios e dos inimigos”, ou seja, ao
representar o mundo conforme seus interesses, o autor da representação “se
entrega”. Ademais, “são as ações efetivamente guiadas por estas representações”, as
quais “modelam (...) os comportamentos”, “mobilizam (...) as energias”, “legitimam (...)
as violências”. (BACZKO, 1985, P.298) Isso vale até para as questões mais ínfimas,
como dados positivos, a exemplo da população de uma Província. Se esse número
estava correto ou não fato é que os que nele acreditavam, incluindo chefes políticos,
burocratas, militares, negociantes de grosso trato etc. por ele se guiavam, planejavam
etc. Além disso, foi preciso estudar essas folhas detalhadamente, investigar suas
origens, descobrir suas posições políticas, seus aliados e adversários, de forma a
entender cada citação adiante dentro do contexto do discurso de cada folha.
Periódicos das décadas de 1820, 1830 e 1840 publicados em Minas Gerais
referem-se constantemente a uma Revolução que estaria em curso. Em 1825 um
artigo do Abelha do Itaculumy, de Ouro Preto, reclamava que “...lá vão três anos de
desassossego, de perdas, e que em quase anarquia, o Brasil ainda não sabe o que
quer.” (Abelha do Itaculumy, 14/02/1825)1 Era a tal revolução citada casuisticamente
em diversos artigos falando de diferentes assuntos. Um correspondente que acha que
1 O Abelha do Itaculumy foi o segundo periódico de Minas Gerais, impresso em Ouro Preto, que circulou por todo o ano de 1825 e metade de 1826. Era partidário de Pedro I, como se nota em quase todos os números. Online na Biblioteca Nacional: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=778931&pasta=ano%20182&pesq=
“A massa do Povo vai indo numa ativa, e perseverante carreira de conhecimento, e
de inteligência que a revolução certamente lhe abriu” (Abelha do Itaculumy,
25/04/1825), um “pedrista” defendendo que “Sem Imperador, Brasileiros, na nossa
Revolução o entrecho seria infernalidade e a peripécia trágica aniquilação” (Abelha do
Itaculumy, 27/09/1824), ou defendendo a Constituição outorgada em 1824 porque
com ela “podemos muito bem concluir a grande obra da nossa Revolução, sem
desordens, sem perigos, e até, para assim dizer, sem derramar uma só gota de
sangue” (Abelha do Itaculumy, 23/02/1824), ou só mesmo para afirmar que “a
revolução no Brasil é ainda mais irrevogável que a das Colônias Espanholas” (Abelha
do Itaculumy , 14/03/1825).
Aliás, adiantemos que terminar “nossa revolução” era uma fixação dos mesmos
que a viam. Ela representava perigo, como no dizer de um correspondente, segundo
o qual “Vossas povoações, enquanto de todo não extirpar a morrinha revolucionária,
necessita vigilância...” (Abelha do Itaculumy, 23/02/1825). Outro perguntava “dormis
ainda hoje o sono da segurança?” (Abelha do Itaculumy, 16/02/1825). Essa revolução
chegava até ao interior dos lares, pois o mesmo correspondente pergunta “A
honestidade da esposa e a pudicicia da filha não vos assustam?” (Abelha do
Itaculumy, 16/02/1825). O medo, aliás, embora sempre se fortalecendo com as cenas
de sangue da Revolução Francesa, não era propriamente da violência revolucionária
pois até 1833 os mineiros podiam afirmar, como em 1825, que “nosso Solo ainda não
foi banhado nem de lágrimas, quanto mais de sangue exprimido pela revolução.”
(Abelha do Itaculumy, 20/04/1825)
Outra maneira de se referir aos perigos revolucionários era como custos. Para
alguns, eram muito altos,“Volvei o pensamento pelo que vos tem custado passar de
monarquia absoluta a monarquia constitucional” (Abelha do Itaculumy, 21/02/1825), e
para outros eram aceitáveis e esperados, “...se os Ingleses, por exemplo, temem
pouco do Governo, muito sangue se despendeu, muitas crises tumultuárias
precederam a esse estado...” (Pregoeiro Constitucional, 15/09/1830). Esse último era
o Pregoeiro Constitucional, para o qual os custos da Revolução não deviam parecer
tantos, afinal “...quanto tem melhorado de sorte a nossa pátria...” (Pregoeiro
Constitucional, 2/10/1830).
O Pregoeiro não era o único a considerar que a revolução trouxera vantagens,
afinal, ela colocara o Brasil no rol dos povos livres, pois “Em 1775 o número dos
homens livres, isto é daqueles que viviam debaixo de Governos livres, compunha-se
da maneira seguinte”, só Inglaterra, Holanda e Suíça, somando menos de 16 milhões
de habitantes. Já em 1823 a lista teria crescido, com o acréscimo dos EUA, França,
Bélgica, repúblicas na América do Sul (onde devem estar incluídas as república latinas
da América Central e do Norte), Brasil, Portugal e Espanha, esses dois últimos com
ressalvas pois tinham caído novamente sob “poder absoluto” (Compilador Mineiro,
7/11/1823).2
As transformações tinham atingido até as menores localidades, visto que,
primeiro, a Constituição previa um número de eleitores muito maior do que os dos
“homens bons” que anteriormente participavam, e a Assembléia Geral aprovou uma
nova Lei sobre as Câmaras Municipais em 1º de Outubro de 1828 (Pregoeiro
Constitucional, 1/12/1830). Um correspondente de Sabará, ao criticar a Câmara dessa
Vila, deixa claro que muitas pessoas antes eram meros espectadores e agora podiam
até vir a ser eleitos:
Dignando-se os Senhores do Senado deixar servir os honrosos Cargos da
Câmara aos beneméritos Cidadãos em geral, os quais deixando o Cargo de
mudos espectadores, de que tem servido até o presente, se esforçarão a
cumprir seus deveres. (Abelha do Itaculumy, 23/02/1825)
Mudanças e mais mudanças apareciam nas páginas dos periódicos mineiros.
Por exemplo, “...as desordenadas Ordenanças, felizmente quase extintas, estão hoje
reparadas pela instituição de Juízes de Paz...” (Pregoeiro Constitucional, 10/11/1830)
que tiraram o comando dessas milícias das mãos dos Capitães e Sargentos Mores de
segunda linha. Logo seriam extintos os capitães mores, que antes dirigiam as
ordenanças. Em Agosto de 1830 os testamentos e todos os assuntos a ele referentes
passam da justiça eclesiástica para a justiça secular (Pregoeiro Constitucional,
5/01/1831). Também em Agosto de 1830 são extintos os Juízes Almotocé (Pregoeiro
Constitucional, 5/01/1831). O “...horrível, sanguinário, e sempre detestável Livro 5º
das Ord. Felip., que por desgraça ainda nos rege” (Pregoeiro Constitucional,
17/11/1830) é substituído por um novo Código Criminal (Pregoeiro Constitucional,
12/01/1831). São só exemplos, nesse caso todos anteriores ao 7 de Abril.
2O Compilador Mineiro foi o primeiro periódico de Minas Gerais, no último trimestre de 1823, em Ouro Preto. Combatia os Andradas e o periódico Tamoio. Queria uma Universidade em Minas Gerais. Defendia a Assembléia Constituinte. Online no site da Biblioteca Nacional http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=740578&pasta=ano%20182&pesq=
Perturbadores para algumas pessoas se entendemos que “mudança e confusão de
estados são, para o homem moderno, sinais de perturbação social e de convulsão da
ordem política.” (HESPANHA, 2007, P.123)
Em artigo do Aurora Fluminense, republicado no Pregoeiro Constitucional, de
Pouso Alegre, sabemos que em uma seção da Câmara dos Deputados de meados de
Novembro de 1830 “O concurso era grande: devemos calculá-lo a perto de duas mil
pessoas...” (Pregoeiro Constitucional, 15/12/1830). Debatia-se o orçamento! Difícil
imaginar assunto menos atrativo. Duas mil pessoas era uma multidão para os padrões
da época, revelando forte desejo de participação política. Esse fato relatado pelo
Aurora é só um exemplo de que naquele momento podia-se de fato dizer que “as
autoridades são bem vigiadas como servos, e não como senhores da Nação”
(Pregoeiro Constitucional, 22/12/1830), e que “...hoje em fim responsáveis todos são
ao tribunal da pública Opinião...” (Pregoeiro Constitucional, 7/09/1830).
Claro que hoje sabemos que se aproximava o 7 de Abril, mas é interessante
notar que a tempestade não se formava só na Corte. No distante arraial de Pouso
Alegre, seu primeiro jornal, o supracitado Pregoeiro Constitucional, antes de saber da
queda de Pedro I já dizia: “Brasileiros, nós não temos mais governo...” (Pregoeiro
Constitucional, 13/04/1831). O governo de Pedro I não era mais reconhecido.
Semanas antes a Câmara Municipal tinha criado, adiantando-se à decisão nacional,
a Guarda Nacional de Pouso Alegre, preparando-se para uma guerra. O que um
promotor alegaria em caso de processo? Poderia alegar, com provas escritas, que os
réus estavam em armas desafiando o governo! Enquanto no Serro Ottoni se levantava
com homens em armas para marchar sobre o Rio de Janeiro, os pousoalegrenses
sabiam que no Rio as coisas já teriam se resolvido e revelavam a mesma disposição:
Se ai tivermos vencido, nossos Irmãos, e a Liberdade, agradecerão nossos
esforços: e se tivermos perdido, armados aqui os animaremos a combater,
iremos mesmo em seu socorro, se a luta for prolongada, e a vitória estiver
duvidosa. (Pregoeiro Constitucional, 13/04/1831)
Antes de nos adiantarmos precisamos voltar à Constituição de 1824. Vimos
acima que se acreditou que ela encerraria “nossa Revolução”. Isso não aconteceu, e
pelo contrário, essa Constituição, embora outorgada, só pode ser considerada uma
peça, fundamental, dessa Revolução. Os contemporâneos tinham grande esperança
de que ela garantia que “...jamais voltaremos ao antigo estado do odioso Despotismo”
(Abelha do Itaculumy, 28/01/1824). Em resumo eles diziam que:
temos uma Constituição que nos garante nossa liberdade política; a
igualdade de direitos; uma bem entendida divisão de Poderes; Jurados no
cível e crime; e outros objetos não menos importantes como os socorros, e
instrução pública; a liberdade de imprensa; e a liberdade d’a reformarmos em
tempo (Abelha do Itaculumy, 8/11/1824).
Como exemplo podemos nos referir ao artigo 126, que previa a possibilidade
da Câmara e do Senado deporem o Imperador. A oposição a Pedro I tomou essa
Constituição para si como escudo e como arma ofensiva, e vitoriosa em 1831 a
manteve, embora falando de reformá-la e fazendo o Ato Adicional em 1834.
Mas o 7 de Abril de 1831 também não finalizou a revolução. Em 1833, meses
depois de reprimida a insurreição de Ouro Preto, ou Revolta do Ano da Fumaça, um
artigo publicado por um jornal defensor dos rebeldes presos descrevia um sintoma
revolucionário, a quebra da hierarquia reinante, em que “Qualquer Soldado reformado
descompõem a quem quer, qualquer Sertanejo sinho de m.... diz o que lhe vem a
boca, qualquer Mestre Escola fala da vida, e honra, dos que foram seus benfeitores...”
(O Tareco Militar, 18/10/1833).3
Em 1839 o Parahybuna, de Barbacena, ainda falava de “...nossos tempos
revolucionários de partido extremos...” (O Parahybuna, 5/11/1839).4 Barbacena viveria
ainda a notícia da maioridade adiantada de Pedro II e em 1842 seria o local inicial do
movimento armado que se espalhou por dezenas de Cidades e Vilas de Minas Gerais.
Um jornal dos rebeldes de 1842 fez aos adversários uma advertência que nos faz
3 O Tareco Militar de Ouro Preto, circulou por poucos meses na segunda metade de 1833, o Ano da Fumaça, em que aconteceu um levante nessa mesma cidade. Defendia a anistia dos envolvidos, e sobretudo a soltura dos presos de baixas patentes. Era adversário dos Moderados, ou Liberais, e embora se dissesse igualmente inimigo dos restauradores, se mostrava simpático aos “tempos do Rei”. Online no site da Biblioteca Nacional http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=740926&pasta=ano%20183&pesq= 4 Primeiro periódico de Barbacena, O Parahybuna circulou entre 1836 e 1840, com duas fases distintas em que teve diferentes redatores. Era sobretudo anti Astro de Minas, primeira folha de São João Del Rei, cidade vizinha, mas de forma alguma por motivos regionalistas. Trazia no cabeçalho, nas duas fases, uma frase de Bernardo Pereira de Vasconcelos. Era inimiga dos Moderados, depois dos Progressistas e Liberais. Fez cerrada oposição a Feijó e defesa de Araújo Lima. Chegou a defender a maioridade de Pedro II antes de se iniciar o movimento maiorista, que no entanto seria feito por seus adversários. Online na BN: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=816612&pasta=ano%20183&pesq=
pensar: “...pela terceira vez vós já nos deveis a vida e segurança.”(O Despertador
Mineiro, 25/06/1842) 5
Difícil saber quais as outras duas vezes além de 1842 a que o Despertador
Mineiro se refere, pois entram no páreo 1822, 1831 e 1833, sendo provável que se
refira às duas primeiras datas posto que 1833 se limitou à capital, Ouro Preto, mas o
importante e realmente nos interessa na citação é que uma mesma geração tinha
passado por três momentos tensos, em que uma parte da população tinha se
levantado em armas contra a outra. Esse jornal, por fim, ao contrário do Echo da
Rasão, que nega estar fazendo revolução, a reivindica, por exemplo no artigo “A
Revolução de Minas” (O Despertador Mineiro, 28/06/1842).
Os contemporâneos dificilmente viam o processo como uma só revolução, mas
como “...as revoluções sucessivas por que temos passado, armando uns contra
outros...” (A Ordem, 3/12/1842).6 Mas certamente compreendiam tratar-se de um
período de revoluções. Reconheciam que o que viviam era parte de algo muito maior.
Era uma “revolução de toda a América” (Pregoeiro Constitucional, 11/09/1830). Mais
que isso, traçavam um caminho da “Liberdade”, “É da Inglaterra que os Estados
Unidos aprenderam a Liberdade; são os Estados Unidos quem a ensinou à França, é
a França, quem a tem ensinado a outros muitos povos.”(Compilador Mineiro,
7/11/1823). Essa a origem de ser “característico da presente quadra a mania de
reformar tudo” (Abelha do Itaculumy, 18/02/1824). Essa mania reformadora teria
tomado o mundo, pois até “As Potências Européias conhecem esta verdade; por todas
as partes o Gênero Humano se apresenta em marcha diante dos seus olhos,
5 O Despertador Mineiro de São João Del Rei, surgiu poucos meses antes do movimento armado de 1842. Teve a publicação encerrada pelo estado de sítio em que o Partido Conservador, no governo, colocou a cidade nas semanas anteriores ao levante. Voltou a circular logo que a Guarda Nacional de São João Del Rei se levantou e se uniu às tropas rebeldes de Barbacena, e se tornou uma das folhas do movimento. Deixou de circular quando seus redatores, derrotados militarmente, foram presos ou se esconderam “no mato” (p.ex. respectivamente Ottoni e Marinho). Online na Biblioteca Nacional: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=816655&pasta=ano%20184&pesq= 6 A Ordem de São João Del Rei começou a circular logo depois que o movimento de 1842 foi derrotado. Defendia duras punições para os envolvidos e que se ampliasse o número de indiciados. Circulou até 1844, quando seus adversários, derrotados militarmente em 1842, foram anistiados e voltaram ao governo. Criticava a anistia. Deixou de circular quando, nas vésperas de eleições, até as reuniões de Conservadores estavam sendo proibidas pelos Liberais que as acusavam de serem conspirações, e também os correios não estavam colaborando com a distribuição de folhas adversárias. Online na Biblioteca Nacional: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=816701&pasta=ano%20184&pesq=
clamando por novas Leis, por um outro sistema político...” (Abelha do Itaculumy,
28/03/1825).
Esses fragmentos que selecionamos não chegam a constituir novidades. N’O
Tempo Saquarema podemos encontrar Vasconcelos e Paulino, este último já em
1843, tentando, respectivamente, “parar o carro da revolução”, e “salvar o país do
espírito revolucionário” (Apud MATTOS, 1987, Pág 154-155). Mais recentemente o
assunto foi abordado diretamente pela historiografia, percebendo que essa revolução
“não representou apenas a separação política de Portugal” (OLIVEIRA; GRINBERG
org.; SALLES org., 2011, P. 31).
Para concluir essa primeira parte, nota-se que diferentes folhas e
correspondentes se referem a diferentes conceitos de revolução. O conceito oriundo
do exemplo francês, então recente e polêmico, já podia ser positivo ou negativo, e era
dominante mas ainda havia quem usasse o conceito mais antigo, calcado na
astronomia, de retorno ao mesmo ponto depois de uma volta completa, ligado portanto
a um conceito de tempo circular. Além dessas possibilidades, ainda se encontra o
termo usado simplesmente para se referir a desordens ou a quebra de hierarquias, o
que é nitidamente uma corruptela dos conceitos supracitados. Nas folhas que
estudamos é comum encontrarmos “nossa Regeneração” (Pregoeiro Constitucional,
9/10/1830)7 como sinônimo de “nossa Revolução”. São palavras muito diferentes, mas
quando se pensa no conceito de revolução circular (astronômico), como retorno ao
que devia ser, como recuperação de direitos, o termo se torna muito apropriado. Não
somos os primeiros a constatar esse uso, pois, por exemplo, o movimento de 1817,
em Lisboa, foi organizado por um Supremo Conselho Regenerador de Portugal, Brasil
e Algarves (NEVES, GRINBERG org, SALLES org, 2011, Pág. 112-113).
Vimos que as folhas que estudamos não debatem dessa forma, o conceito de
revolução, o que é uma revolução etc.. Elas (seus autores) manifestam que sentem
que estão vivendo uma revolução, elas se referem ao seu tempo como um tempo
revolucionário, e no muito elas descrevem essa revolução, ou representam diferentes
7 O Pregoeiro foi a primeira folha de Pouso Alegre, no sul das Minas, no final de 1830 e primeira metade de 1831. Era adversário de Pedro I, cuja deposição armada defendeu. Defendeu a república, mas aceitava uma monarquia constitucional como similar a uma república e defendeu o 7 de Abril. Defendeu o fim da escravidão quando poucos ousavam defender o fim sequer do tráfico de escravos. Defendeu a federação. On line na Biblioteca Nacional: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=749923&pasta=ano%20183&pesq=
acontecimentos como oriundos ou parte integrante dessa revolução. Nós respeitamos
essa característica das fontes e não nos demos ao trabalho de tentar adivinhar se o
conceito de revolução de cada autor de cada artigo era mais de acordo com o antigo,
ou mais de acordo com o francês. Muito mais modesto, nosso objetivo foi demonstrar
que os autores desses periódicos acreditavam viver uma revolução, para não dizer
que produziam uma revolução e, daí, um Antigo Regime. Produziam um Antigo
Regime não só na medida em que construíam um novo, mas também ao representar
o antigo, ou seja, ao desenhá-lo em cores sombrias ou benévolas em suas folhas,
única forma como podia ser conhecido e existir para as gerações mais novas.
Os tempos do “Rei velho”
Mas se foi feita uma revolução, contra o que? O que era o regime que caiu? Ou
se usavam o termo com seu significado anterior à Revolução Francesa, de
restauração, de volta ao ponto original, como na astronomia, o que estavam
restaurando, ou regenerando? O Brasil teria escapado do “pesadíssimo jugo
português” (Abelha do Itaculumy, 1/10/1824). Mas não foi só isso, essa revolução não
foi somente a separação de um reino em dois. Foi o fim do “...tempo do Rei velho, do
tempo da bota com sebo, do rabicho e cabeleira.” (O Parahybuna, 8/03/1837). Essas
duas coisas se confundem, e nas simplificações a separação entre Brasil e Portugal
muitas vezes ofusca o fim de um antigo regime, do qual já em 1843 se podia reclamar
que “...poucos documentos nos restam...” (O Athenêo Popular, 18/11/1843).8
Fazer parte do império português implicava estar incluído na divisão forçada do
mercado entre as partes desse império, ou seja, limitações diversas à economia
brasileira, que teoricamente seriam compensadas pelo fato de as outras partes do
império não poderem produzir os produtos de exportação brasileiros. Esses assuntos
econômicos permitiam chocar os leitores, pois “Quem acreditará, que tempos houve
em que se proibiu rigorosamente a plantação de Café no nosso País? Pois proibiu-se;
8 Devemos acrescentar, embora nos adiantando ao texto, que para o Athenêo isso se devia ao segredo com que tudo era feito no Antigo Regime, e não somente a perdas de documentos. Esse periódico circulou por pouco tempo. Só temos o número 3. Tentava ser uma escola impressa, em que os artigos correspondiam a matérias de um Ateneu. Era impresso na tipografia da folha Liberal, O Itacolomy, no momento em que se lutava por anistia para os envolvidos em 1842. Online no site do Arquivo Público Mineiro. http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/modules/jornaisdocs/viewcat.php?cid=17680
bem como se proibia direta, e indiretamente todo o desenvolvimento da indústria”
(Abelha do Itaculumy, 15/10/1824). Não eram só as folhas de Minas Gerais que davam
os exemplos condenatórios do regime caído, era a própria Coroa:
Desejando S. M. o Imperador promover, como convém a plantação, e cultura
das oliveiras, e vinhas, proibida pelos que seguiam as máximas danosas, e
princípios arbitrários do sistema colonial... (Abelha do Itaculumy, 31/12/1824)
Além disso, “Era alias proibido aos Brasileiros, que em Coimbra se aplicavam
à História Natural o regresso à sua Pátria” (Abelha do Itaculumy, 15/10/1824). Pois
para Lisboa “O Brasil reduzido desde a sua descoberta a estado de Colônia não
convinha, que possuísse outras riquezas mais, que aquelas, que eram objeto de
ambição de seus donos” (Abelha do Itaculumy, 28/04/1824). Em outras palavras “era
preciso que não reinasse nem arte, nem indústria” (Abelha do Itaculumy, 28/04/1824).
O progresso econômico da colônia prejudicaria a economia da metrópole, como nesse
exemplo:
Tem razão o Sr. Correspondente quando lamenta a necessidade de
comprarmos o Sal aos Estrangeiros, abundando as Costas do Brasil de
ótimas Salinas desde Cabo Frio para o Norte; mas e o Sal de Setubal, e de
Lisboa havia de ficar lá amontoado? (Abelha do Itaculumy, 30/04/1824).
Daí que a separação fosse vista como indispensável, e aos poucos assumiu
todo o significado da palavra “...Independência; sem a qual continuaríamos a ser um
povo miserável, sem artes, sem indústria, sem comércio...” (Pregoeiro Constitucional,
29/09/1830). Essa simplificação beneficiava os que queriam atribuir todas as
principais transformações econômicas aos príncipes, destacando-se a abertura dos
portos:
...até o faustíssimo Decreto de Fevereiro (segundo nossa lembrança) datado
da Bahia por El Rey D. João VI, somente Portugueses é que podiam vir
buscar ao Brasil o grande número de gêneros, por ele oferecidos ao comércio
do Mundo... (O Constitucional Mineiro, 2/11/1832) 9
9 O Constitucional Mineiro, de São João Del-Rei começou a circular em 1832 e terminou em 1833, quando aconteceu a revolta de Ouro Preto desse ano, atribuída a seus partidários, embora tenha condenado a revolta logo que soube de sua notícia. Era inimigo do Astro de
No decreto estimulando as vinhas e oliveiras, citado acima, nota-se que a
Coroa preferiu o termo “sistema colonial”, um termo mais econômico e separatista,
que “despotismo” ou “absolutismo”, muito usados na época, que são mais políticos. A
redução às questões econômicas permite outra redução, à separação entre dois
países. Mas as folhas nos falam de outros assuntos além dos econômicos e da
separação. Elas condenavam “o despotismo, sempre armado da força, e do engano,
fazia gemer em silêncio a este generoso, e fiel povo” (Abelha do Itaculumy,
28/07/1824). Esse despotismo seria um regime “regido por homens, e não pelas Leis”
(Pregoeiro Constitucional, 29/09/1830). Nele as coisa se faziam em “segredo, que até
agora se guardava na Administração dos diferentes Ramos de Renda Pública.”
(Abelha do Itaculumy, 28/01/1824).
O segredo não era somente das coisas do governo para o povo, mas também
ao contrário “...tudo se fazia com o maior sigilo, em que quase tudo era mistério,
porque o braço do déspota erguido desfechava o golpe de punição antes de verificada
a culpa...” (O Athenêo Popular, 18/11/1843). Nesse regime os habitantes, além de não
participarem, não seriam individualmente livres, “...não era dado ao homem livre por
natureza o opor-se a tantos vexames emitindo suas queixas, publicando justas
censuras contra seus opressores, e contra os opressores de sua Pátria...” (Pregoeiro
Constitucional, 7/09/1830). Em resumo, nos “tempos do Rei”:
...ouvieis falar em direitos de cidadão, liberdade, propriedade etc. entretanto
que não tínheis a mínima ingerência nos negócios da Pátria, sendo privado
do direito de nomear, quem por vós fizesse a lei, e de manifestar ao Público
os abusos das Autoridades; garantias sem as quais não é cidadão. (Pregoeiro
Constitucional, 27/10/1830)
Nesse regime a propriedade não era garantida, pois “víamos nossas pessoas,
nossos bens, e tudo o que nos era mais caro sujeito à tirania de gênios malfeitores, e
à voragem de inimigos sedentos de tudo o que era nosso...” (Pregoeiro Constitucional,
7/09/1830). E mesmo a vida comum do mais simples habitante era atingida pelo
“despotismo” visto, por exemplo, que as “...ferinas leis criminais Portuguesas, que não
Minas, e fazia cerrada oposição aos Moderados, tendo afirmado, semanas antes da revolta, que o governo de Ouro Preto era um governo ilegítimo. Online na Biblioteca Nacional: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=812757&pasta=ano%20183&pesq=
contentes de roubar ao homem a preciosa reputação em sua pessoa, envolviam na
mesma desgraça sua inocente posteridade...” (Pregoeiro Constitucional, 13/10/1830).
E piores eram também as cadeias onde “...obrigados pela fome, pela nudez, e pela
desesperação, sepultados nessa imunda caverna, em altas vozes insultavam, e
cobriam de impropérios, quantos cidadãos por ali passavam, proferindo as maiores
blasfêmias, e obscenidades em detrimento da moral pública, quando lhes era negada
a esmola que pediam.” (Pregoeiro Constitucional, 29/01/1831)
O “tempo do Rei velho” não era só o tempo de um governo ou mesmo de um
regime político diferente. A própria sociedade, em sua cultura, seria pior. Diz o
Pregoeiro Constitucional em 1830, que “...olhávamos como despojados da qualidade
de homem a todos aqueles que em matéria de Religião não pensavam como nós...” e
ainda que “...considerávamos como infame todo aquele, que era declarado como tal
por uma simples determinação Regia, ainda que o infamado fosse o mais honrado
defensor dos direitos do homem...” (Pregoeiro Constitucional, 13/10/1830). Mas esses
exemplos são pequenos quando se descobre que até a culpa de existirem muitos
crimes era d”esses bárbaros costumes herdados da antiga Metrópole.” (Pregoeiro
Constitucional, 29/01/1831) A própria corrupção dos brasileiros seria uma
conseqüência da resistência ao regime caído:
...nosso povo, acostumado a ver os antigos governantes consumirem em seu
particular proveito todas as rendas da Nação, e mesmo serem até
contrabandistas, deixou-se desgraçadamente imbuir da ideia que tendo de
contratar com velhacos favorecidos pela força, lhes cumpria auxiliar, ou ao
menos disfarçar os que a esses iludissem... (Opinião Campanhense,
16/04/1836)10
Como se nota, também se usava muito o termo “absolutismo” ou “poder
absoluto” para se referir, nesse caso a Aurora Fluminense republicada pelo Pregoeiro
Constitucional, ao “largo período em que fizemos parte da Nação Portuguesa, nós
perguntaremos o que fez o Poder absoluto, desde D. João IV até D. João VI, por
espaço de 180 anos, senão aviltar e aniquilar a Monarquia”? (Pregoeiro
Constitucional, 22/09/1830). O conceito de absolutismo que encontramos nessas
10 O Opinião Campanhense, de Campanha, circulou entre 1832 e 1837, quando seu redator se passou para o partido adversário. Temos dele somente dois exemplares. Online na BN: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=778370&pasta=ano%20183&pesq=
fontes é muito diferente do que posteriormente foi construído por historiadores e hoje
é criticado. Os historiadores estão hoje questionando uma visão de absolutismo
idealizada conforme as palavras “poder absoluto” ipsis litters, em que parece que o
monarca de fato tinha um poder absoluto. Essa “...suposta centralização típica do
absolutismo vem sendo cada vez mais posta em xeque com o surgimento de
pesquisas que indicam uma descentralização” (GOUVÊA; FRAZÃO; SANTOS, 2004,
p.99). Para o caso brasileiro, a relativa autonomia das Câmaras, que acreditávamos
ser uma especificidade colonial, se revelou uma característica de todo o Antigo
Regime português. Já as folhas mineiras do início do XIX estão falando de outro
assunto, muito mais simples e concreto, se o poder do Imperador deve ou não deve
ser limitado por leis e daí por parlamentos. Os que achavam que sim eram
“constitucionais”, e os que achavam que não, e existiam, eram chamados
“absolutistas”. Ainda em 1830 o Pregoeiro se dirigia a interlocutores que “...dizíeis que
a vossa cabeça era do Rei, que ele era a imagem de Deus na terra, e outra loucuras
desta natureza, que hoje não valem a pena ser refutadas...” (Pregoeiro Constitucional,
27/10/1830). Uma folha de 1833, defensora da libertação dos envolvidos na rebelião
desse mesmo ano, ironizava a lei, e se mostrava saudosa dos tempos em que o Rei
podia decidir sem ser limitado por leis - “Ora onde estava eu? a Lei, a Lei, pois nos
outros tempos bastava a palavra do Rei, e hoje sobra a Lei, e Lei” (O Tareco Militar,
27/07/1833). Também é interessante notar que a Aurora Fluminense define muito bem
um período absolutista português de 180 anos, não englobando todo o período de
existência da monarquia, mas somente os reinados que não convocaram as Cortes.
Pode não ser muito significativo mas isso mostra certo desapego do modelo
revolucionário francês por parte da Aurora, pois seria possível ser não-absolutista por
outros caminhos.
Longe de imaginarem que o absolutismo se reduzia ao poder do “Rei velho”,
seus críticos, nossas fontes, o atacavam também porque nesse regime existiria “uma
classe de ineptos Cidadãos, que por direito de nascimento tinham jus ao mais precioso
dos encargos civis” (Pregoeiro Constitucional, 11/09/1830) ou em outras palavras
“preferência de certas famílias para os cargos públicos” (Pregoeiro Constitucional,
29/09/1830). Ou seja, não acreditavam que o regime que combatiam e chamavam de
absolutismo era um regime caracterizado pelo poder “não partilhado” (GOUVÊA;
FRAZÃO; SANTOS, 2004, p.99) do Rei, mas pelo contrário, sabiam muito bem que
existiam “parceiros” e não gostavam dessa forma de “partilha”. Essa “classe de ineptos
Cidadãos” tinha até suas lideranças militares locais os “...capitães mores, nossos
pequenos déspotas...” (Pregoeiro Constitucional, 27/04/1831). E não eram só os que
defendiam mudanças e repudiavam “os tempos do Rei” que viam as questões sociais
da “nossa revolução”. Também de um ponto de vista conservador se perguntava,
“Podeis negar que o produto de vosso trabalho foi desfrutado por aqueles que há
pouco, em asco de sua abjeção, nem cortesia vos mereciam, e dos quais fostes depois
forçados a subir as imundas escadas?” (Abelha do Itaculumy, 16/02/1825)
A Pretensa Nobreza das Minas Gerais
Encontramos um único artigo que se refere a uma nobreza local nesses termos,
em Campanha, significativamente o mesmo artigo que trata do juramento da
Constituição de 1824 e suas comemorações públicas. Se jurava o documento pelo
qual “Já não há hoje essa distinção de nobre, e plebeu; todos hoje são Cidadãos iguais
perante a Lei...” (Pregoeiro Constitucional, 27/10/1830) uma vez que “...se por
exemplo um Marquez contrair alguma dívida com qualquer Cidadão, e não quiser
pagar, este pode chamá-lo ao Juiz de Paz, e ele deve necessariamente obedecer.”
(Pregoeiro Constitucional, 13/11/1830). Nesse mesmo momento, por suas práticas
durante as comemorações, e pelas palavras do correspondente que descreve os
festejos, tentam afirmar que apesar disso continuavam existindo distinções, que
reforcei em negrito:
Pelas 9 horas da manhã se congregaram nos Passos do Conselho os Oficiais
da Câmara, as Justiças da terra, o Vigário da Vara com os Párocos, e mais
Clérigos do seu Distrito, o luzido corpo das Ordenanças, mais de 80 Eleitores
de Paróquia, que então se achavam para nomear os Conselheiros do
Governo Provincial, e toda a nobreza da Vila... (Abelha do Itaculumy,
25/07/1824)
O termo é repetido algumas vezes, visto que as comemorações duram o dia
todo e “Pelas seis horas, e meia da noite tornando a reunir-se nos mesmos Passos os
seus Oficiais, e a maior parte da Nobreza, e Clero, que se havia congregado de
manhã, desceram a correr as principais Ruas, que se achavam iluminadas” (Abelha
do Itaculumy, 25/07/1825). Como “Os Oficiais da Câmara d’antemão tinham mandado
preparar a suis expensis um luzido chá oferecido a Nobreza, que se achava na Vila”
temos uma descrição dessa “nobreza” de Campanha que certamente não é nem de
longe idêntica à “nobreza da terra” do Rio de Janeiro ou das regiões canavieiras:
Mais de 70 Senhoras ricamente vestidas, e desafiando o melhor gosto da
Corte esperavam com prazer a Assembléia, que finalizava o seu giro; e
entrando na Casa o melhor de 200 Cidadãos, ocuparam as cadeiras, que em
diversas ordens se colocaram em torno das Senhoras... (Abelha do
Itaculumy, 25/07/1825).
Enquanto cerca de 300 pessoas participavam de um chá vestidos
provavelmente à européia, “numeroso povo, por não caber dentro do edifício se
extasiava na Rua” (Abelha do Itaculumy, 25/07/1825). Merece destaque a centralidade
das mulheres, que ficaram em posição central no evento, de acordo com o que já se
via nos salões lisboetas de finais do XVIII “onde a mulher assume uma certa
proeminência” (LOUSADA, 1998, 132). Essa proeminência feminina é atribuída à
localização desses “salões”, em casas de família, por elas dominadas, mas nesse
exemplo em particular elas tiveram a centralidade em um prédio público.
Embora sem utilizar o termo “nobreza”, as descrições das comemorações nas
demais cidades sempre falam de eventos limitados aos “mais conspícuos Cidadãos”
(Abelha do Itaculumy, 3/11/1824) ou “a gente opinada como a melhor” (Abelha do
Itaculumy, 20/12/1824). No Tejuco, meses depois do juramento da Constituição,
“distintos Cidadãos” fizeram um baile em homenagem ao aniversário e coroação de
Pedro I e as semelhanças com a descrição de Campanha são até nos números:
...gemia a grande Sala do seu Palacete com o inassueto [sic] pelo de
duzentas pessoas, pouco mais, pouco menos, número composto pelos
Cidadãos e quase todas as Senhoras, que compreendem-se nas mais
distintas Famílias do País, que assaz ricamente vestidas, e ornadas de
galas... (Abelha do Itaculumy, 20/12/1824)
Outro cronista da mesma festa informa que foram convidadas “as principais
Famílias do Arraial” (Abelha do Itaculumy, 11/02/1825). A necrologia de Doutor Luiz
José de Godoes Torres, de Mariana, diz que ele era “das primeiras Famílias da
Província” (Abelha do Itaculumy, 12/07/1824). Em resumo, as distinções são mantidas
apesar da igualdade prevista em lei, e para tanto não se hesitava em utilizar o principal
instrumento da revolução, que provavelmente era a imprensa. Ademais, usando o
termo “nobreza” ou algum similar a estratégia que se percebe em diferentes Vilas e
Cidades é a mesma, utilizar a sociabilidade para unificar determinadas famílias
consideradas “principais”.
Da pretensa nobreza de Campanha certamente podemos dizer como Fragoso
diz sobre a do Rio de Janeiro, “...tal grupo não possuía um estatuto legal dado pela
monarquia, portanto, a sua autoridade sobre a sociedade tinha de ser continuamente
produzida e recriada.” (FRAGOSO, 2007, p. 71). Essas pessoas se moviam dentro da
cultura portuguesa do Antigo Regime, no qual havia uma “...noção extremamente
ampla de nobreza, distinta da fidalguia, categoria sempre mais restrita.” (MONTEIRO,
2005, p.7). Nesse caso mais amplo a “regra” seria que “a nobreza prova-se por atos
que fazem o nobre diferente do plebeu” (HESPANHA, 2007, p. 134). Já para se tornar
membro da alta nobreza sem ter nascido nela era necessário receber um título do
próprio Rei, mas se enobrecer uma família conseguia com esforços e tempo,para o
que era preciso, sobretudo, “tratar-se à lei da nobreza” (MONTEIRO, 2005, p.7).
Os jornais nos permitem observar as atuações de vários homens que nos
parecem se encaixar perfeitamente em um comportamento típico do Antigo Regime,
seja em seus discursos, seja em tentativas de ganhar mercês, seja em atitudes em
que se destacam com seus títulos. Como diz Nuno Gonçalo Monteiro “...não obstante
a proclamada equiparação ou preferência das letras às armas, estas nunca deixaram
de ser privilegiadas nos imaginários nobiliárquicos. Os serviços feitos na guerra viva
nunca tiveram equivalente” (MONTEIRO, 2005, p.10) e assim discursava um oficial
para seus comandados, que seus serviços equivaliam a “condecorações, que os
distinguem, e condecoram suas famílias, que por este princípio gozam certas
primazias” (Abelha do Itaculumy, 7/05/1824). Outro oficial confirmava, discursando
aos comandados, que servir “é o distintivo de vossa nobreza.” (Abelha do Itaculumy,
30/07/1824) Esses homens não ficavam nas palavras. O Capitão Mor de Caeté, João
Baptista Ferreira de Souza Coutinho, enviou para o Rio de Janeiro “67 voluntários
prontos, e fardados à sua custa; iniciados na Tática, para o que os teve por algum
tempo em sua Casa” (Abelha do Itaculumy, 2/07/1824) e o Tenente Coronel Joaquim
Silverio de Castro Souza Medranho abriu mão de vencimento como Tem. Cel., e da
administração do Registro da Mantiqueira, para marchar com sua tropa para a guerra
(Abelha do Itaculumy, 11/08/1824). Eles estavam fornecendo ao Imperador o que Dom
João de Almeida, em carta para seu pai, primeiro Marquês de Alorna, chamou de “dois
móveis principais da guerra que são o dinheiro e a gente” (apud MONTEIRO, 2005,
p.12). Se era uma tática para depois pedir títulos e mercês, devia dar certo, porque o
Sargento Mor João Pereira de Araújo Pinto recebeu o Hábito da Ordem de Cristo por
seus serviços, que eram sobretudo de recrutador (Abelha do Itaculumy, 19/07/1824).
Ao publicarem seus discursos e serviços pela imprensa esses homens estavam
se expondo. O caminho militar não era o único para auto-exposição. O Capitão Mor
de Ordenanças José de Araújo da Cunha Alvarenga, de Sabará, fez Minas Gerais
toda saber que “fez celebrar na sobredita vila no memorável dia 22 do mesmo mês
[Janeiro], faustíssimo Aniversário Natalício de S. M. a Imperatriz” (Abelha do
Itaculumy, 12/03/1824). O Comendador Manoel Ribeiro Viana, de Sabará, doou 4
contos de réis ao tesouro público, mas não bastava que o monarca o soubesse
(Abelha do Itaculumy, 14/05/1824). “Os ofícios de capitão-mor e de sargento-mor
conferiam sempre nobreza vitalícia...” (MONTEIRO, 1997, p.342) e uma Comenda era
também uma distinção de nobreza. Se tivesse mais títulos, é provável que os
expusesse, como o fez:
Manoel de Cunha d’Azevedo Coutinho Souza Chichorro, Fidalgo Cavaleiro
da Casa Real, Cavaleiro da Ordem de Cristo, Coronel de Cavalaria de
Milícias, Bacharel Formado em Direito Civil, Opositor aos Lugares de Letras
e Secretário do Governo dessa Capitania Geral de São Paulo. (Abelha do
Itaculumy, 16/04/1824).
Acontece que em uma cultura política do Antigo Regime as divisões e
diferenças sociais seriam naturais, portanto teriam que ser visíveis:
Tratava-se de uma ordem natural, cuja configuração devia ser imediatamente
apreensível. Por isso, os poderes e as hierarquias legados pela história
reforçavam-se e legitimavam-se na medida em que podiam ser olhados e
ouvidos. Daí a enorme importância de que se revestiam os rituais de
afirmação e de visualização desses poderes, como as procissões, os autos
de aclamação, etc. (MONTEIRO, 2005, p.8)
Acrescentamos a imprensa como espaço tardio de afirmação e visualização
nobiliárquica. Também de acordo com os hábitos do Antigo Regime vimos acima que
um militar considerava que as famílias dos militares também eram condecoradas ao
ponto de receber privilégios, e assim também, quando recebe uma honraria, Francisco
Vicente Viana faz questão de publicar tanto no Diário quanto no Abelha e ainda
considera que a honraria também era capaz de “engrandecer a minha família,
elevando-me à dignidade de Grão Cruz da Imperial Ordem do Cruzeiro” (Abelha do
Itaculumy, 17/11/1824).
Enobrecer a família continua sendo uma fixação durante o Império, e o
Pregoeiro denunciava e questionava essa tendência, dizendo que Manoel Jacinto
“...tem conseguido o título de Baependy para seu filho, um moço, que nem cheirou o
pó das escolas, e que a seu favor só tem ser filho de um Marquez, e rico proprietário”
e João Vieira “hoje possui já uma pequena criança com a alcunha de barão.”
(Pregoeiro Constitucional, 15/01/1831)
Temos portanto uma luta, entre os que querem ser nobres e os que querem
extinguir a nobreza, e essa luta começa pela definição se existiam ou não o que para
o Pregoeiro eram “...vislumbres de aristocracia, que a gente mal intencionada quer
encarar como um objeto real...” (Pregoeiro Constitucional, 15/01/1831). Assim como
a nobreza, para existir, precisava se afirmar, aparecer, se destacar em posições
elevadas, o Pregoeiro e outras folhas queriam extingui-la pela negação:
Se a Aristocracia entre nós é de pouca, ou nenhuma influencia, se os frades
em geral não encontram apoio de seus vícios detestáveis nem mesmo entre
os idiotas, na nossa Província tudo isto jaz em completa nulidade: Um Queluz,
um Baependi não são lembrados senão para monumento de homens pouco
inclinados à justiça... (Pregoeiro Constitucional, 15/09/1830)
Esse debate, porém, percorreria todo o período monárquico, mesmo porque a
existência de uma nobreza estava culturalmente enraizada, seria para alguns, como
no Antigo Regime, “... um estado natural que residiria inclusivamente nas coisas
inanimadas (ouro, pedras preciosas), ou nos animais carentes de razão (falcão, boi,
leão) ou mesmo nas qualidades (como as cores).” (HESPANHA, 2007, p.134). Em
uma folha de São José Del Rei, O Popular, alto intitulada Progressista, em 1840, seria
natural, conforme o título do artigo, “A nobreza entre vários povos”, sendo estes os
“árcades”, os romanos, atenienses, egípcios, gôdos, suevos, portugueses, negros do
Congo, do Brasil e da Índia, astecas, e indianos (O Popular, 2/05/1840).11
Se em um primeiro momento, como vemos nas folhas da década de 1820, os
inimigos da “nossa Revolução” queriam manter a existência de uma nobreza, de seus
hábitos, seus valores, títulos etc., e se os que comemoravam os feitos dessa revolução
negavam que tal nobreza ainda existisse de fato, logo as posições se inverteriam. Em
1842, os rebeldes mineiros diziam combater o “partido da nobreza”, que portanto
existiria (Despertador Mineiro, 8/07/1842). Os promotores de revoluções precisavam
então afirmar que existia uma nobreza, ou uma aristocracia, ou uma oligarquia a
combater, e os contrários aos movimentos revolucionários desmentiam essas
afirmações e diziam que o Brasil não tinha uma nobreza de verdade, e portanto esse
não seria um motivo real para se fazer uma revolução. De certa forma essa inversão
mostra, não explica, só explicita, o fim tanto da Revolução quanto da nobreza. Da
Revolução porque para existir esta precisava das mesmas bandeiras de vinte anos
antes, já ineficientes, e da nobreza porque para existir esta precisava exatamente se
expor, “viver à moda da nobreza”, e não mais o podia para não provocar os
adversários.
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Fontes:
Todos os periódicos aqui citados podem ser encontrados online. Os originais
estão sob a guarda da Biblioteca Nacional e do Arquivo Público Mineiro.
http://bndigital.bn.br/hemeroteca-digital/
http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/modules/jornais/search.php?query=&and
or=AND&dt1=&dt2=¬acao=&nantiga=&ordenar=30&asc_desc=10&submit=Execu
tar+pesquisa&action=results&id_REQUEST=0a94dda04639b057c378d68c46f298c0