NAS TRAMAS DA MEMÓRIA, OS FIOS DA PROFESSORALIZAÇÃO
Jussara Midlej1
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS)
Marcos Villela Pereira2
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS)
Resumo
Ao expor o contexto e as ponderações acerca de uma investigação-formação
apresentamo-la inserida num campo subjetivo de formação humana a processar-se
vinculada a um estágio pós-doutoral junto à Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul (PUCRS). Sua primeira fase foi operacionalizada na Universidade
Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), através de ateliês (auto)biográficos com 17
professores, alunos de um curso de Pedagogia integrado ao Plano Nacional de
Formação de Professores da Educação Básica - Plataforma Freire (PARFOR). A
questão-base relaciona-se à compreensão de narrativas de si como um processo de
reconstituição da gênese de ser professor e dá-se na direção de ampliar probabilidades
de apreensão de percursos pessoais e profissionais, em movimentos de criação/formação
– de como se chegou a ser o que se vem sendo no exercício da profissão docente, de
como vem se constituindo a professoralização, de que modos os desvelamentos de cenas
virtuais do estar sendo professores poderão criar condições de acionamento de novas
composições de si e da professoralidade. Os procedimentos metodológicos relacionam-
se à abordagem (auto)biográfica e operacionalizam-se, cartograficamente, no sentido de
trazer à tona as orquestrações vitais e acontecimentos múltiplos em descontinuidades
que atravessam e compõem o mundo dos sujeitos. Em andamento há uma abertura a
entrecruzamentos de fatos e itinerários de vida e docência, individuais, a apresentar
indícios de que as escritas de si e suas socializações, ao favorecerem a reapropriação de
experiências de formação, parecem incitar os sujeitos à reorganização de si e da
professoralidade.
Palavras-chave: (Auto)biografia. Movimentos de professoralização. Professoralidade.
Aproximações e ressonâncias
“Aberto ao mundo, comunico-me
indubitavelmente com ele, mas não o
possuo, ele é inesgotável.”
Merleau-Ponty, 1994.
1 Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB).
2 Bolsista Produtividade do CNPq.
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"Há devires que operam em silêncio, que são
quase imperceptíveis."
Deleuze e Parnet, 1998.
Enunciações biográficas e seus registros de paisagens psicossociais – como
cenas da realidade humana – há muito nos instigam a estudos mais aprofundados; a
calhar, lançamo-nos na lida acadêmica na proximidade de temáticas relacionadas ao
percurso epistemológico da história de vida, numa abordagem biográfica e aos
movimentos de pesquisa pautados pela processualidade do ser e no delineamento
dinâmico da prática docente. O método (auto)biográfico3, enredado no âmago de
construções históricas individuais, rememorações, saberes autopoiéticos42e sentidos
particulares de acontecimentos, trouxe-nos perspectivas de narrações e de
formações/atuações no magistério revigorando-se a partir e dentro de realidades plurais.
No presente trabalho entram em composição os fios condutores da formação de
professores vinculados a um polo investigativo de entrecruzamento das histórias de vida
com os denominados movimentos de professoralização (PEREIRA, 2010a, b); neste, há
um sentido de ampliar possibilidades de entendimento de percursos formativos “que
acompanham e se fazem ao mesmo tempo que o desmanchamento de certos mundos [...
] e a formação de outros.” (ROLNIK, 1989, p. 15). As ações investigativas ocorrem
com um delineamento dinâmico, nos acontecimentos subjacentes a estas e, no interior
de realidades sempre em processo, nas quais os docentes se formam e atuam. Importa-
nos a aproximação das forças vivas do presente a convocar o passado e o futuro em
dimensões simultâneas advindas de conjunturas de professoralidade – da compreensão
de como os sujeitos vão se constituindo professores, de como se chegou a ser o que se
vem sendo no exercício da profissão docente, de como vem se constituindo essa
subjetividade que se professoraliza nas composições de si. (PEREIRA, 1996; 2010a, b;
2013; MIDLEJ, 2009).
Nesse sentido, o citado processo ocorre na sintonia com Pereira (op. cit.) para o
qual “[...] a escolha de ser professor passa, necessariamente, pela reconstituição de
alguns fatos que antecedem a essa decisão.” (PEREIRA, 2001, p. 32). Em tais bases, ao
problematizar, ele pesquisa “como se é professor?” “Por que se é professor?” ao invés
3 No Brasil, relacionada à área da Educação, convencionou-se grafar desse modo.
4 Autopoiese - Neologismo criado por Humberto Maturana e Francisco Varela, nos anos 1970. Do grego
(autos), próprio; (poiésis), criação, invenção, produção.
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de inquirir simplesmente “O que é ser professor?” e desvela que, ao se alinhar com
essas inquietações não se está em busca da identidade do professor e sim de marcas e
efeitos produzidos no (e pelo) sujeito em processos de individuação, de devir5 numa
realidade que ultrapassa o preestabelecido, o estável. No reconhecimento de que “a
consciência histórica é uma forma de autoconhecimento” (GADAMER, 1997, p. 316)
guiam-nos a busca de compreensões de tramas de vidas e interpretações interativas a
envolver certas fases do sujeito, no caso desta pesquisa, na condição de discentes –
numa instituição definida a partir de uma lógica que a antecede – também em processos
docentes, em dimensões formativas eivadas de historicidade. Interessam-nos fios
condutores de tramas de vida, as conexões entre eles, através de memórias existidas,
confrontadas e reconstruídas a relacionarem-se com as forças vivas do presente.
Importa-nos analisar possíveis sentidos, produzidos de forma intersubjetiva e
motivadores de processos autopoiéticos em ambientes coletivos, na pretensão de
analisar produções de subjetividade, possibilidades de composição e modificação de
figuras até então vigentes.
Os procedimentos metodológicos relacionados às histórias de vida, numa
abordagem (auto)biográfica, operacionalizam-se na presente investigação/formação, no
sentido de trazer à tona, através das narrativas de si, as orquestrações ontogenéticas de
territórios e acontecimentos múltiplos em descontinuidades que atravessam e compõem
o mundo dos sujeitos como um plano de experiência cartográfica6. Assim, num
processo de metaestabilidade - que envolve um complexo de forças processuais em
relações e ressonâncias do presente a convocar o passado e o futuro a se abrirem como
instâncias simultâneas e portadoras de sentido, proliferadoras de singularidades, de
acessos de individuação7 no ciclo de ser/vir-a ser. Há um sentido de estudar a
genealogia do ser8 humano não como algo fechado e, sim, em tramas de espaços/tempos
que se faz em devires, “em contextos que nos incluem e textos que, ao nos atravessar,
5 Devir como potencial de vir a ser algo ainda não sido.
6 A cartografia como um método, um expediente de escutas e registros de paisagens existenciais, de
acesso a experiências que se efetivaram e estão se efetivando. De graus de abertura à indeterminação, aos
processos de criação de si. Nesse sentido, como um movimento de acompanhamento e engajamento na
pesquisa.
7 Individuação como um processo vital, contínuo, numa composição que contém, em si, potencialidades
de ser.
8 A atividade genealógica articula as memórias com a descrição das forças históricas e seus
enfrentamentos. (CORAZZA; GARCIA, 2009).
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nos constituem.” (VOLNOVICH, 1991, p. 12). Inserem-se, em especial, na perspectiva
de encaminharem-nos epistemologicamente na direção de compreender distintos estados
de encadeamentos históricos e, nestes, a constituição da diferença nas relações consigo
mesmo, com o outro, com o mundo. Há uma busca pela processualidade que compõe os
fluxos existenciais, em especial os relacionados à formação docente em movimentos de
professoralização (PEREIRA, 2010a, b) como modos de compreensão da
professoralidade. (PEREIRA, 1996, 2001, 2010a, b, 2013; MIDLEJ, 2007, 2009). Tal
rede conceitual nos aproxima da “heterogênese, da vida como obra de arte, da estética
da existência” (PEREIRA, 2013, p. 113) e desdobra-se num plano compartilhado da
experiência, num campo híbrido de formação humana a partir de uma perspectiva
multirreferencializada de “[...] óticas e sistemas de referência diferentes (entre si)
aceitos como definitivamente irredutíveis uns aos outros e traduzidos por linguagens
distintas.” (FRÓES BURNHAM, 1993, p. 7).
Contextos operativos
“Só como fenômeno estético podem a
existência e o mundo justificar-se eternamente.”
Nietzsche (1872), 2007.
Nas citadas bases, esta investigação advém da realização de um estágio pós-
doutoral que vem sendo realizado na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul (PUCRS). Traz a perspectiva de reconstrução da experiência numa dimensão
processual da realidade - como artifício de criação, como poiesis9 e produção de tramas
(in)visíveis de forças humanas interagentes. Para compô-la convidamos,
indistintamente, 34 professores/alunos que, desde 2010, se encontram na condição de
acadêmicos num curso de Pedagogia, (Educação Infantil e Anos Iniciais do Ensino
Fundamental); são profissionais que possuíam, a esta época, apenas o nível médio de
escolaridade e se encontravam em efetivo exercício docente em redes públicas de ensino
da microrregião sudoeste da Bahia. Presencial e modular, o referido curso integra-se ao
Plano Nacional de Formação de Professores da Educação Básica (PARFOR) e foi
implantado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES) em regime de colaboração com a Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia
(UESB), no campus acadêmico de Jequié. A fim de garantir as participações recorremos
9 Poiesis é um substantivo que se forma do verbo grego poiein. Este assinala, no grego, a ação de fazer
diversificada, a questão da essência do agir, num sentido que hoje consideramos criação. (CASTRO,
2006) .
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a uma denominada colegialidade artificial (HARGREAVES, 1998) na qual as situações
de reciprocidade, no geral, ao não evoluírem espontaneamente, necessitam de atos de
persuasão e negociações como parte integrante do processo: o fato é que, embora o
reconhecimento da importância da ação proposta, as condições precárias de vida e
profissão dos citados professores de redes públicas municipais e alunos do PARFOR,
aliadas às inúmeras demandas de elaboração dos trabalhos de conclusão de curso (TCC)
e mais os estágios obrigatórios, desanimavam-nos a enveredar por uma nova tarefa
acadêmica a envolver processos de criação. Sem nos desesperançarmos, teimamos “em
manter ao revés e contra tudo, a força de uma deriva e de uma espera” (BARTHES,
2008, p. 27) e buscamos a coordenação do curso, no intuito de verificar se haveria
pendências quanto à obrigatoriedade do cumprimento das Atividades Acadêmico-
Científico-Culturais (AACC)10
. Constatada “a necessidade da prática de estudos e
atividades independentes, transversais, opcionais, de interdisciplinaridade,
especialmente nas relações com o mundo do trabalho” (MEC/CNE/CES, 2005) para 17
professores/alunos do referido grupo, propusemos a estes a realização de Ateliês
autobiográficos (DELORY-MOMBERGER, 2008, p. 99), também denominados de
ateliês de escrita (auto)biográfica por Passegi (2008, p. 45) os quais foram realizados
como atividades certificadas: negociamos, assim, que no decorrer de 2013,
realizaríamos quatro dessas ações, entre agosto e dezembro e, sempre que eles viessem
para os estudos modulares, abriríamos espaços de conversações relacionados à pesquisa
(auto)biográfica como prática de formação, método de investigação e intervenção social
(PINEAU, 2004; SOUZA; PASSEGI, 2008) nos quais os memoriais deveriam
funcionar como dispositivos de pesquisa de si-para-si-mesmos (RICOUER, 1995,
2007). Numa proposição criadora reiteramos, assim, a pretensão de uma partilha do
sensível (RANCIÈRE, 2005). Combinamos que a atuação deles deveria se dar não
apenas na condição de narradores de si ou espectadores, mas na perspectiva de
qualificar a percepção e ampliar a capacidade de afetação ao inédito de ser-sendo
professor.
A partir dos ateliês, paulatinamente, os memoriais deveriam ir se constituindo -
através de processos de escrita de si, em fluxos individuais de criação: configurar-se-
iam na linguagem, em cenários escolares e familiares, em perspectivas recuperadoras
10
Conforme exigência do Ministério da Educação (MEC/CNE/CES), de acordo com o Parecer 05/2005 -
Diretrizes Curriculares do Curso de Pedagogia no Artigo 8º § III.
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das potencialidades de acontecimentos e marcas subjacentes a estados de ser atuais,
visando ativar compreensões de como eles vinham se compondo na docência, de como
se tornaram o que vêm sendo no exercício da profissão e de que modos as cenas virtuais
do estar sendo o que são, poderiam indicar probabilidades de acionamento de outras
significações de professoralidade, de novos movimentos de professoralização.
(PEREIRA, 2010a, 2013).
Os memoriais nos ateliês de escrita (auto)biográfica
Nuança
“Meus caminhos, meus mapas,/ meus caminhos. / Tudo está em ordem em minha vida. /
Como se faltasse /alguma coisa.”
Antônio Brasileiro, 2005.
Os ateliês (auto)biográficos foram pensados na condição de experiências
microestéticas - como arranjos de forças vivas, pretensamente disruptoras, em sentidos
de recolha de compreensões e acionamentos de vividos e sentidos e, quiçá, gerar, como
potências de devires, estados de mutação, de desmanchamentos de figuras atuais e
produções de outras, de criação de estados de singularidade, de probabilidades de
redesenhamentos pessoais e profissionais. Foram inseridos no âmago deste processo
investigativo/formativo na perspectiva de acionarem, na memória projetiva11
dos
professores/alunos, as marcas que sobreviveram às práticas individuais e sociais
produzidas por acontecimentos, experiências, afetamentos nas formações existenciais,
nas relações de institucionalidade, nas intensidades dos vividos na profissão docente.
Nas enunciadas possibilidades, os ateliês aconteceram como concertos de
orquestrações humanas tendo o processo das escritas de si como um de seus vetores,
realizados em perspectivas cartográficas12
e em ambientes outros que não apenas o
acadêmico. Nos encontros, os memoriais foram acionados através das leituras das
narrativas, numa pluralidade de vozes e publicização de itinerâncias humanas a
provocarem a reatualização de marcas subjacentes a um estado de ser atual; as
narrativas, ao serem exploradas e mediadas, ativaram a oralidade do grupo em
11
A memória projetiva é feita de rupturas e lacunas e trabalha no sentido de ampliar progressivamente as
potências de ser. (PEREIRA, 2013).
12
O que envolve analisar a composição de subjetividades, “[...] desenhar a rede de forças à qual o objeto
ou
fenômeno está conectado, dando conta de suas modulações e de seu movimento permanente.”
(POZZANA & KASTRUP, 2009, p. 57).
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explicitações de experiências vividas na instituição escolar, desde que a esta se adentrou
na condição de discente. Os espaços de produção de si e articulação entre o individual e
o coletivo, se processaram, assim, para além da verticalidade que hierarquiza os
diferentes pela transversalidade (GUATTARI, 1981), como lugares sócio históricos de
produções de realidades e de experimentações das histórias de vida e de prática
profissional numa visão integradora. A arte, a perpassá-los, longe de ser tomada como
um valor em si, foi acionada na condição de linhas de composição a ativarem, nos
sujeitos-em-prática, uma atividade produtiva, uma recriação de informações e de outras
escutas do tempo em andamento, de genealogia deflagradora de forças visíveis e
invisíveis, de experiências intensivas com afetamentos, de conexões de sensações e
espaços de abertura a traços existenciais adormecidos. Nesse sentido, as linguagens -
como a fotográfica, a literária, as artes plásticas, o audiovisual, as composições musicais
– foram inseridas, neste processo, como situações evocativas de memórias, de ativação
de repertórios de lembranças, além de, pretensamente, abrir possibilidades de minar
forças de resistência a mudanças.
Efetivamente a expressão artística, aqui como um exercício de transgressão,
demonstrou um poder de acionar rememorações, de abrir subjetividades, revigorar
pontos de eclosão atualizadores de marcas, sintonias, afetos, produções de sentido e
forças de (re)invenção de realidades profissionais e psicossociais. As textualidades que
transpareceram das diversas experiências estéticas, em variados fluxos do tempo
passado e do tempo presente, foram criando significados interagentes entre vidas
pessoais, discências e docências parecendo conduzir, com isso, a mais nítidas
apreensões da “experiência (e da historicidade de sua experiência) e dos mundos-de-
vida, dos mundos de pensar e agir comuns.” (DELORY-MOMBERGER, 2012, p. 526).
Houve, nos ateliês, uma rica transversalização produzida pelas práticas de participação
em tessituras históricas - pessoais e coletivas - que vieram à tona na condição de
problematização dos vividos, em especial no campo da docência, parecendo funcionar
como possíveis provocadoras de produção de novos jeitos de ser/estar na vida, na
profissão. (PEREIRA, 1996, 2001, 2010 a, b, 2013). As narrativas de si, ao serem
atravessadas por um conjunto de acontecimentos e trazerem marcas subjacentes a um
estado de ser atual, sofreram mediações que ativaram as manifestações individuais,
ampliaram o grau de abertura comunicacional e trouxeram condições crescentes de
revigoramento de informações e de produção de subjetividades. Além disso, deram
margem a um processo de atribuição de sentidos às coisas do mundo a partir de
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múltiplas tramas interativas a constituírem-se como um corpo de explicitações da
multiplicidade de papéis: a itinerância pessoal, a dialogar com vivências discentes e
docentes, corroborou com latentes probabilidades de esgarçarem frestas e aspectos das
realidades narradas, sentidas, pensadas, interpretadas individualmente como sentidos de
abertura da experiência (GADAMER, 1997; NÓVOA, 2012) parecendo trazer para os
partícipes um alargamento de diferentes entendimentos de como os sujeitos se
produzem frente às funções inerentes ao papel social de ser-sendo professores. A
intensificação da subjetividade como criação13
, como marcas e fluxos em acepções
(auto)formativas, evolutivas, inacabáveis, transparecem nos fragmentos, transcritos
abaixo, de uma das narrativas. Eles expõem, numa dinâmica produção de múltiplos
devires, os ditos da professora/aluna I.J.A., uma das participantes deste processo
investigativo/formativo:
Já domei cavalo bravo, derrubei muito boi no campo. Na
roça não tinha escola e, com meu pai, aprendi quase tudo,
do ABC às contas. A palavra fui descobrindo ao escrever
cartas, a pedido de minha mãe, para meus irmãos, que
moravam em São Paulo. Nessa época um deles voltou e
foi nomeado para ser professor: a sala de aula era na
nossa casa, na roça. Pela manhã, crianças e à noite,
adultos. Eu me tornei aluna na classe das crianças e, à
noite, sempre que ele precisava se ausentar eu o
substituía: tomava a lição, ensinava a copiar letras,
palavras e números. Como não havia quadro, nem giz, eu
passava as atividades nos cadernos de cada um. Com o
tempo meu irmão me entregou a turma da noite e eu me
senti orgulhosa, aprendi ensinando. Tempos depois, pisei
numa escola pela primeira vez aos 17 anos e já entrei na
4ª série. Escola grande, com recreio, lá a professora
também tomava a lição e tinha sabatina de tabuada com
bolo de palmatória [...]. Quando cursava a 7ª série, o
prefeito da sede construiu uma sala de aula na roça e na
inauguração anunciou que eu seria a professora. Foi um
choque. Mais uma vez não escolhi ser professora, fui
escolhida. Não tinha banheiro, nem quadro, só cadeiras
[...]. Eu passava as atividades para os alunos, de várias
idades, do mesmo jeito que aprendi: tudo era criado na
hora, nos cadernos. Eu colocava os alunos para escrever
uma folha inteira só com seus nomes, outros era cópia do
livro, alfabeto ou palavras, também números de 1 a 100
ou continhas [...] todos os dias tinha leitura individual, eu
tomava a lição de cada um, quando aprendia a ler corrido,
mudava de lição. Para dizer a verdade muitos aprenderam
a ler e os pais agradecem até hoje [...]. Ao concluir o
13
Para Deleuze e Guattari a subjetividade é uma trama que não está dada, mas em composição contínua
com diferentes arranjos.
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magistério fui contratada, as aulas eram planejadas, mas
eu continuava aplicando os mesmos métodos [...] era
como copiar e colar. [...] Hoje estou no VII semestre de
Pedagogia, uma oportunidade que nunca pensei em
minha vida [...] este curso me mudou muito como pessoa
e como profissional [...] enquanto fui estudando, via os
alunos de outras formas, fui mudando minha prática:
sinto mais segurança e me apoio nas teorias. Aprendi a
usar outros modos de ensinar, antes eu pensava que todos
aprendiam de um mesmo jeito e quem não avançava era
porque tinha preguiça [...] sei hoje que tem aqueles mais
rápidos, outros mais lentos, mas que todos aprendem de
seus jeitos [...]. Na docência de hoje enxergo que antes eu
dava aula distante de coisas das vidas dos alunos e
achava que escrever se aprendia desenhando e copiando,
que ler se aprendia decorando as lições, até não gaguejar
mais. Sei que atropelei muitos alunos e hoje me enxergo
mais sabida e flexível, minhas aulas têm até ludicidade...
Ainda faço atividades de leitura e escrita, mas de outros
modos, mais interessantes e significativos. A vida vem
me ensinando novos jeitos de ser professora. (I.J.A).
Esta narrativa explana sentidos de recuperação de uma docência criadora de
diferença em fluxos históricos e, como tal, orquestrados pelas forças vivas do mundo a
conduzirem as experiências e seus próprios potenciais de transformação contínua. O
conjunto de devires, expressados, nos remete a Deleuze (1998, p. 157) quando este
afirma que “Toda vida é, obviamente, um processo de demolição.” Tais palavras
legitimam um processo de individuação no qual a professora evidencia de que modos,
permanecendo ela própria, se transforma: os registros permitem compreender diferentes
fases vitais a se desdobrarem, como formas de constituição de si, defasadas por
mediações internas e externas. Multiplicidades de acontecimentos, manifestados em
seus escritos, se propagam em renovadas gêneses históricas e culturais a se
circunscreverem e se atualizarem em novas composições, como potências de vir a ser
diferente do que ela vinha sendo. Nos desdobramentos de si, as marcas e os fluxos se
manifestam como legítimas potencialidades de atualização que desencadeiam
significações (auto)formativas, evolutivas, inacabáveis, como enunciações de
aprendizados. A experiência, perspectivada como produtora de efeitos e singularidades,
num complexo sistema metaestável e a partir dos acontecimentos relatados, evidencia
“[...] sua própria consumação não num saber concludente, mas nessa abertura à
experiência que é posta em funcionamento pela própria experiência” (GADAMER,
1997, p. 525) demonstrando que a professoralidade, não sendo uma identidade que um
sujeito constrói ou assume ou incorpora, é uma diferença que o sujeito produz em si.
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(PEREIRA, 2013). Há uma explicitação de que o que se está sendo, quando se é
professor, é um componente atualizado, de diferentes fases, num campo imanente de
potenciais de desterritorialização a se mostrarem como provocadoras de outras
potências na produção pessoal e profissional. (MIDLEJ, 2009). Os caminhos
investigativos, ainda a se processarem, levam-nos a criar um plano extensional de novas
recolhas de informações em diferentes contextos, com ativações de conversações e
análises de compreensões, através de novas conexões individuais, a fim de ampliar o
campo dos possíveis.
Acreditamos que a transversalidade que perpassa as contexturas desta
investigação/formação, multirreferencializada, vem produzindo encontros de forças que
agem sobre forças (DELEUZE, 1991) a pôr em relevo pressupostos epistemológicos e
metodológicos que seguem a subverter restritos modos de olhar a realidade. Por ora, a
tradução deste processo vivido é a de uma grande e valiosa aventura que traz, em seu
cerne, um complexo de tramas que se afetam umas às outras, torna obsoletas figuras
existentes e fornecem indícios de criar presumíveis potências e ressonâncias, marcas
novas de vir a ser outro(s) de si.
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