Mário E. Viaro (DLCV/FFLCH-USP) Fonética e Fonologia do Português (FLC 0275)
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O PERCURSO DO SOM À ABSTRAÇÃO
Os sons são entidades físicas empregadas para a comunicação interpessoal na maioria dos
sistemas linguísticos (outras entidades são o gesto, normalmente de função paralinguística,
mas essencial no caso das línguas de sinais empregadas para comunicação com indivíduos
surdos, como a Libras, ou do toque, no caso de línguas empregadas por indivíduos surdo-
cegos, como o Tadoma) embora não seja a única forma de expressão linguística (que pode
envolver outros sentidos, sendo talvez a visão a mais importante de todas alternativas, usada
nas escritas e nas artes). O estudo dos sons e de seus resultados em Linguística equivale a:
• o estudo da produção de um som, posterior à intenção da fala, que envolve o chamado
“aparelho fonador” (parte do sistema digestório e do sistema respiratório), cuja
descrição minuciosa advém de ciências como a Biologia e a Medicina, por meio de
estudos de Morfologia (no sentido biológico do termo e não no sentido linguístico) e
de Anatomia. Esse estudo, mais ou menos minucioso, é útil para o conhecimento dos
pontos e modos de articulação da Fonética Articulatória em que se baseia o Alfabeto
Fonético Internacional, assim como para os conhecimentos de Fonoaudiologia;
• o estudo do resultado da produção de um som, isto é, a formação das ondas e ruídos
que fazem parte da criação de um som, cuja descrição minuciosa advém dos métodos
da Física, por meio dos estudos de Acústica, como são os espectrogramas. Desse
modo, a parte da Fonética que trabalha com esse aspecto do som se chama Fonética
Acústica. O resultado da produção de um som é passível de transcrições menos
minuciosas que os espectrogramas da acústica, como os palatogramas, e é a fonte das
escritas tradicionais, do próprio Alfabeto Fonético Internacional e do alfabeto Braille
(voltado para indivíduos cegos).
• o estudo do resultado psíquico da onda sonora envolve sentido da audição (pouco
estudado, ciência que formaria uma chamada Fonética da Recepção) durante o
processo que se inicia nas primeiras fases da aquisição da linguagem pelos bebês, que
transforma sons (no ouvidos) em sinais elétricos armazenados biograficamente nos
indivíduos pertencentes a uma sociedade na forma de unidades mínimas abstratas da
linguagem, conhecidas como fonemas (unidades mentais) de um código de expressão
(sistema), isto é, de sua língua.
• estudo do elemento psíquico na produção de um som não se confunde com a Fonética
Articulatória, mas envolve o percurso desde a intenção do falante até a formação da
sua expressão na forma de sons específicos seguindo uma estruturação silábica,
acoplada a sentidos. Esse estudo sempre se confundiu com a própria ciência
linguística, sendo o Gerativismo a primeira linha filosófica da Linguística preocupada
na formalização teórica desse processo e não na descrição minuciosa do produto (em
que se fundamentam a Gramática e o Estruturalismo).
Os dois últimos estudos são partes de uma área distinta da Fonética, na Linguística, conhecida
como Fonologia (ou, segundo algumas linhas teóricas, Fonêmica).
Já estudamos o primeiro estudo. Vamos detalhar agora o segundo.
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TRANSCRIÇÃO AMPLA X TRANSCRIÇÃO ESTRITA
Um grafema é uma representação VISUAL (escrita tradicional) ou TÁTIL (escrita Braille,
por ex.) de entidades AUDITIVAS (“sons”) e será indicado abaixo sempre entre colchetes
uncinados < >.
Uma representação visual na escrita tradicional pode ser uma LETRA, um DÍGRAFO, um
TRÍGRAFO, um SILABOGRAMA (isto é, um elemento de um silabário: por exemplo, um
hiragana ou um katakana em japonês), um LOGOGRAMA (que mescla, em maior ou menor
proporção, também o significado de um signo, por exemplo, um ideograma chinês).
Um alfabeto fonético também é constituído de grafemas, no entanto, devido ao seu caráter
metalinguístico, suas unidades são representadas entre colchetes quadrados [ ]. O uso dos
símbolos utilizados pela Fonética, como vimos, é regulamentado pelo Alfabeto Fonético
Internacional (IPA).
Por outro lado, a fonologia, no sentido adotado por correntes linguísticas como o
Estruturalismo, tem como objeto de estudo entidades ABSTRATAS de um sistema
linguísticos específico, chamadas FONEMAS, que apenas indiretamente têm a ver com sons
e cujo estudo só ocorre por meio de modelos teóricos. Os fonemas são representados
visualmente por meio de barras / / e seus símbolos, ainda que muito parecidos com os do
IPA, são convencionados pela tradição bibliográfica da fonologia e não pelo IPA.
Assim sendo, <a> é uma representação tradicional da letra A, [a] é a representação do IPA
para um som vocálico aberto e central com características acústicas específicas, já /a/ é a
representação convencionada para uma unidade linguística mental básica que se opõe a
outras unidades (como o /i/ ou ou /u/) e que tem determinadas características na expressão,
como, por exemplo, a capacidade de formar centro de sílabas em uma determinada língua.
Uma transcrição fonética, estritamente falando, é a passagem de um som para caracteres IPA.
Assim sendo, é preciso que haja sempre um informante, caso contrário, uma transcrição
fonética não faz sentido. Por razões didáticas ou teóricas, também se convenciona que uma
transcrição fonética, no sentido amplo, também pode ser a passagem de grafemas tradicionais
para caracteres IPA, no entanto, essa prática pode gerar vícios, por exemplo, imaginar que
todo grafema <a> deva ser transcrito como [a], por exemplo. Ora, um grafema segue normas
prescritivas, no entanto, o bom emprego do IPA jamais pode ter esse elemento normativo.
Desta forma, o uso de grafemas tradicionais para representação da oralidade sempre gerou
transcrições mistas, imprecisas ou até mesmo falsas.
Fala-se, portanto, de equivalências parciais entre sistemas de grafemas e a representação do
IPA e não em transcrição fonética de um grafema tradicional para elementos do IPA, uma
vez que, como dito acima, o IPA também é um grafema. Um exercício didático de passagem
da escrita tradicional para a escrita fonética não é, stricto sensu, uma transcrição fonética.
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Além disso, desde a sua criação em 1886, não havia ainda uma clara distinção entre fonética
e fonologia, uma vez que o IPA surgiu como um alfabeto fonético específico para a
transcrição do inglês e como concorrente do Alfabeto de Lepsius (usado desde 1855).
Pesquisas sobre fonologia se concentravam no leste europeu desde 1875, inicialmente no
Círculo de Kazan e, bem mais tarde, no Círculo de Praga, na década de 30 do século XX.
Entre sua criação e a publicação da obra póstuma de Trubetzkoy, ou seja, entre 1886 e 1939,
havia a prática da transcrição por meio do IPA de duas formas, ainda usuais, embora de forma
pouco consciente nos pressupostos teóricos que se seguiram no Estruturalismo e no Pós-
estruturalismo:
• transcrição estreita (ou narrow transcription), que tem a intenção (sem sucesso,
obviamente) de representar TODOS os traços perceptualmente característicos de uma
língua. Por exemplo, um [t] pode ser apicodental, lamino-dental, lamino-alveolar ou
apicoalveolar. Esta diferença articulatória não só é difícil de ser percebida por um
falante do português, mas também varia de forma livre entre os falantes, quando não
ocorre no mesmo falante ou até mesmo numa mesma oração. Uma caracterização dos
dois sons é possível com símbolos do IPA: o [t] é, por definição, apicoalveolar e para
caracterizá-lo como apicodental é preciso usar um diacrítico, no caso [t̺]. No entanto,
é difícil confiarmos nas nossas impressões (pois o próprio desenvolvimento cognitivo
de abstração de nossa mente atrapalha mais do que nossa audição) e tal distinções só
são possíveis por meio do antigo expediente do palatograma ou então por meio de
análises acústicas (espectrogramas e outros tipos de gráfico). Parece razoável,
portanto, que a pessoa que faz uma transcrição precisa por meio desses diacríticos
use-os somente quando tiver certeza e não de uma forma “normativa” porque “sabe”
que os [t] numa determinada língua são apicodentais e não apicoalveolares. Desse
modo, a transcrição estreita é recomendada apenas para análises acústicas.
• transcrição ampla (ou broad transcription) é a mais adequada para quem trabalha
com fonética sem o instrumental da Fonética Acústica, isto é, pelo método de oitiva,
verificando não só a precisão de uma variação recorrente de um som empregado na
expressão de uma língua, mas também quando lidar com unidades maiores (sílabas,
moldes fônicos etc.) ou com vistas à teorização fonológica. Assim sendo, é uma
transcrição mais abstrata do que a transcrição estreita, porém mais adequada a quem
se serve apenas da percepção natural (isto é, da audição) e não de equipamentos de
Acústica. Nesse caso, sabe-se que há variação entre [t] apicoalveolar e [t̺] apicodental,
contudo usa-se a forma graficamente mais simples, isto é, sem o diacrítico, seguindo
o antigo preceito do Alfabeto Fonético Internacional de evitar diacríticos quando
possível. Nessa transcrição, diacríticos são necessários apenas para elementos que
têm valor fonológico, por exemplo, um som [ẽ] só faz sentido numa transcrição ampla
do português, não do espanhol ainda que ocorra eventualmente na fala de algum
indivíduo. Só faria sentido transcrever assim uma pronúncia do espanhol caso haja
necessidade de descrever uma norma específica, uma vez que as normas (no sentido
técnico dessa palavra, tal como utiliza o linguista Coseriu) são instâncias
intermediárias entre a langue e a parole saussurianas. Na langue estariam os fonemas
(com seus traços obrigatórios e distintivos), na parole os sons (com todos os seus
traços não-distintivos, tais como representados pela transcrição estreita) e na norma
estaria aquilo que é obrigatório, porém não-distintivo. Esse uso do termo “norma”
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não se confunde com o termo “norma culta”, que é apenas uma entre as muitas normas
da langue.
No caso da língua portuguesa, alguns elementos dificilmente perceptíveis, que normalmente
causam insegurança na sua transcrição que não seja ampla são:
- Diferenças de tensão nas plosivas e nasais;
- Diferenças de quantidade vocálica;
- Distinção de tons;
- Diferenças nos graus de abertura dentro da área abarcada pelo mesmo fonema
vocálico;
- Ensurdecimento vocálico, de consoantes nasais, laterais, tap/flap e trill;
- Gradações de ensurdecimento;
- Presença de tremulamento e murmúrio;
- Presença de golpes de glote;
- Distinção entre consoantes laringalizadas (com coarticulação glotal, isto, aspiradas
ou ejetivas);
- Distinção entre algumas aberturas vocálicas em sílabas átonas postônicas
- Distinção entre as realizações centrais aberta, semiaberta e semifechada
- Nasalidade das vogais antes de consoante nasal seguida de vogal;
- Presença de consoante nasal após vogal nasal, antes de consoante;
- Distinção entre o ponto de articulação apicodental e apicoalveolar;
- Distinção entre oclusivas palatais e velares;
- Distinção entre o tap alveolar, tap/flap retroflexo, aproximante alveolar e retroflexa;
- Distinção entre palatais e palatalizadas;
- Distinção entre velar, uvular e laringal.
Muitos desses elementos, contudo, são utilizados como elementos distintivos em outras
línguas e sua distinção é normalmente considerada “sutil” ou “difícil” para um falante de
língua portuguesa.
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FONÉTICA ACÚSTICA
INTRODUÇÃO
Os sons individualmente analisados pela Acústica nunca são idênticos, mesmo em duas
realizações seguidas de um mesmo fonema. Desse modo, a chamada transcrição estreita
(narrow transcription) requer conhecimento de Acústica, assim como o manuseio de
aparelhos. A aplicação da Acústica para o fenômeno da fala já é conhecido desde o século
XVII, quando Holder (1669) fez a distinção entre sons surdos e sonoros. Com os princípios
da sintetização da fala, chega-se na segunda metade do século XIX a estudo de ressonância
(Heimholz 1863) e dos formantes (Hermann 1890).
Um som utilizado na comunicação linguística é, do ponto de vista da Física o produto de uma
fonação e corresponde materialmente ao movimento de partículas do ar (de fato, no vácuo,
não existe produção de som) e pode ser estudado pela formalização da Mecânica e da
Dinâmica. A representação desse movimento tem a forma de uma onda e, portanto, tem um
comprimento e uma amplitude.
Pelo desenho, observa-se que, além do comprimento, uma onda tem uma amplitude, que
estão diretamente relacionados com a intensidade de um som, normalmente indicada em
valores em decibeis (dB), como se verá abaixo. O ir e vir de uma onda forma um ciclo. O
número de ciclos por segundo é a frequência de uma onda, medida em hertz (Hz).
Uma onda, contudo, é apenas uma representação bidimensional do movimento
tridimensional das partículas de ar. No mundo ideal, é possível pensar numa onda infinita,
mas como as ondas reais estão associadas à energia mecânica, depara-se com o atrito do
próprio meio aéreo, de modo que não atinge ouvidos a distâncias muito distantes. Esse
fenômeno se chama amortecimento do som. Se não houvesse amortecimento do som,
teoricamente, ouviríamos todos os sons produzidos desde sempre e por toda a eternidade,
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independentemente da distância das suas fontes produtoras. Dificilmente a evolução
desenvolveria órgãos de sentido para um fenômeno com essas características. Chama-se
reverberação ao tempo em que um som leva para decair e tornar-se inaudível. Num material
fibroso, há absorção do som e em material duro, há reflexão do som. Desse modo, ao produzir
um som durante a fonação, a reverberação encontra um conjunto heterogêneo de cartilagens,
ossos, músculos ao longo de um tubo, com idiossincrático formato individual, de modo que
equivale à produção de um som em um instrumento, descontadas essas reverberações
secundárias.
Um aparelho chamado espectrógrafo, hoje substituído por vários programas de computador
disponíveis online, grava o som, analisa as ondas e as representa visualmente por meio de
um espectrograma, do qual se depreendem duração temporal, intensidade e frequência. Uma
solução é marcar a duração temporal no eixo horizontal x e a altura de um som, representada
pela variação da sua frequência, no eixo y, enquanto a intensidade é representada por uma
gradação de cores ou de cinza. É preciso observar que um espectrograma, assim como a
escrita tradicional, a escrita Braille e o IPA, é apenas uma representação visual (embora
muitíssimo mais precisa) de um fenômeno sonoro, mas não é o som em si.
FREQUÊNCIA DA ONDA
Chama-se período o intervalo de tempo gasto na realização de um ciclo, isso é, no ir e vir de
uma onda. No caso de um diapasão (que produz o chamado tom puro), se o período demora
0,01 seg, então em um segundo produzirá 100 ciclos, o que é o mesmo que dizer que sua
frequência é de 100 Hz. Portanto, quanto maior a frequência, menor o comprimento da onda
(representada no gráfico acima como λ), pois em um segundo deverá haver um número maior
de ciclos. A distinção perceptiva entre grave e agudo advém da diferença relativa entre menor
e maior frequência de uma onda, respectivamente. Portanto, a frequência marcada em Hz tem
relação com a percepção auditiva da altura de um som.
Independentemente da intensidade, a audição humana percebe ondas de frequência entre 16
a 20.000 Hz. Abaixo dos 16Hz as ondas são consideradas infrassônicas. Acima dos 20.000
Hz são ondas ultrassônicas. Pessoas idosas não costumam ouvir, em média, sons muito acima
dos 8000 Hz. Um ato de fala oscila entre os 100 e 4000 Hz e é formado, na sua porção
periódica, por feixes de inúmeras ondas formando ondas sinusoidas que configuram os sons
harmônicos (basicamente os sons vocálicos), de silêncios e explosões de diferente duração
(consoantes oclusivas e pausas) e de ruídos, isto é, sons aperiódicos (demais sons
consonantais).
É possível decompormos o conjunto de ondas sinusoidais de um som vocálico (que é obtido
pela livre passagem do ar do pulmão até a boca sem qualquer tipo de constrição), pela Análise
de Fourier em suas frequências componentes. Como dito, uma vogal é um som harmônico,
composto de várias frequências, F0, F1, F2 etc. A frequência F0, gerada nas cordas vocais,
chama-se frequência fundamental: nos casos de indivíduos do sexo masculino, costuma valer
por volta dos 120Hz e, no caso das mulheres, por volta dos 220 Hz. A frequência fundamental
é muito importante, uma vez que uma lesão nas cordas vocais compromete a distinção (do
ouvinte) dos sons produzidos (pelo falante), prejudicando a comunicação: serve-se muitas
vezes do procedimento médico da laringectomia e a instalação de uma eletrolaringe nesses
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casos. Os sons harmônicos, como dito, são feixes de ondas, decomponíveis pela Análise de
Fourier em ondas simples, que constituem os formantes, ou seja, F0 constitui o primeiro
harmônico; F1 seria o segundo; F2 o terceiro e assim por diante. A proporção entre a distância
dos primeiros harmônicos na audição de um feixe de harmônicos é utilizada para o
reconhecimento e distinção de uma vogal. Um som com mesma frequência fundamental
também pode ter os demais harmônicos distintos e isso configura o chamado timbre.
Na decomposição de um som harmônico original obtém-se um conjunto de sons elementares
(isto é, frequências componentes, harmônicos ou parciais) que são frequências naturais da
vibração do trato vocal, uma vez que o aparelho fonador pode ser entendido quase como um
instrumento com tubos de diferentes circunferências equivalendo à laringe, à faringe, às
fossas nasais e ao maior ou menor fechamento da cavidade oral pela língua. Nos
espectogramas os formantes são representados por barras escuras até cerca de 4000-5000 Hz,
por exemplo:
Supondo que tenhamos os seguintes formantes iniciais:
F1 F2 F3
[i] 500 3200 3500
[u] 500 800 3000
[e] 600 2500 3000
[o] 600 800 2500
[ε] 700 2000 2500
[ɔ] 700 1000 2500
[a] 1000 1500 2500
Várias conclusões da Fonética Articulatória podem ser retiradas desses valores:
- Quanto menor o valor de F1, mais fechada a vogal;
- Quanto maior o valor de F1, mais aberta a vogal;
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- Quanto menor a distância entre F1 e F2, mais posterior é a vogal;
- Quanto maior a distância entre F1 e F2, mais anterior é a vogal;
- Quanto menor a distância entre F2 e F3, mais anterior é a vogal;
- Quanto maior a distância entre F2 e F3, mais posterior é a vogal;
Os valores não são absolutos, mas variam entre os falantes e até mesmo no próprio ato de
fala do indivíduo, embora as proporções sejam sempre mantidas.
Num gráfico que espelhe valores médios de uma coleta de dados, semelhantes a esses,
distribuídos de forma sui generis (a saber, o eixo x, em sua porção normalmente usada para
valores negativos, representando os valores da F2 e a porção do eixo y normalmente usada
para valores negativos, representando os valores de F1), teríamos algo como que a base para
a representação abstrata do famoso trapézio das vogais, usado pela Fonética Articulatória e
pelo Alfabeto Fonético Internacional (pautado no formato de uma boca e nas posições da
língua, em que o eixo x equivaleria à porção superior das mandíbula e o valor da vogal mais
aberta à base do trapézio). Nesse gráfico, os valores mais à esquerda são representações das
vogais mais anteriores e os mais à direita, das vogais mais posteriores. Se os valores acústicos
das vogais fossem rigidamente estipuladas, muitos diacríticos usados pelo IPA poderiam ser
utilizados de forma bastante rigorosa (e não relativa):
AMPLITUDE DA ONDA E INTENSIDADE
Além da frequência, um som tem amplitude, que equivale ao deslocamento espacial da onda
ao completar seu ciclo (marcado como y no gráfico acima). A amplitude, do ponto de vista
da percepção, influencia no chamado volume de um som, que decorre de uma grandeza física
chamada intensidade, medida em watt/cm2. No entanto a intensidade é uma grandeza
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envolvida com a pressão com que esse deslocamento que ocorre, a qual é mensurável em
dinas/ cm2. Dina é uma unidade de força em que se imprime velocidade de 1 cm/s durante 1s
numa massa de 1g. Duas pessoas falando a um metro de distância empregam uma intensidade
de 0,2 dinas/cm2 e um grito chega a ser 1.000.000 de vezes mais intenso que um sussurro.
Um ouvido humano chega a ser sensitivo a 1013 unidades de intensidade. Lida-se, portanto,
com valores muito grandes para determinar a intensidade de um som. Por isso, utiliza-se,
para fins práticos, uma unidade mais prática, ainda que não aceita pelo Sistema Internacional
de Unidades: o decibel (observe-se que um decibel é um décimo de um bel, unidade
raramente usada), cujo zero equivale ao valor do patamar de audição humana (0,0002
dinas/cm2, equivalente a 10-16 watt/cm2).
Um decibel é uma unidade que indica a proporção de intensidade em relação a um nível de
referência especificado ou implícito e uma relação em decibéis é igual a dez vezes o
logaritmo de base 10 da razão entre duas quantidades de energia. Por meio da fórmula XdB
= 10 log10 (X/X0) entende-se que X0 é a intensidade de referência e X equivale a X vezes o
valor de referência. Ou seja, um som de 90 dB de intensidade é um som 90 vezes maior que
o patamar da audição humana. Desse modo, o decibel, usado como uma escala logarítmica
da razão de intensidade sonora, se ajusta melhor à intensidade percebida pelo ouvido humano,
pois o aumento do nível de intensidade em decibels corresponde aproximadamente ao
aumento percebido em qualquer intensidade: um humano percebe um aumento de 90 dB para
95 dB como sendo o mesmo que um aumento de 20 dB para 25 dB. A cada 10 dB, no entanto,
dobra-se o volume: um som de 30 dB tem o dobro do volume de 20 dB; um som de 40 dB
tem o dobro do volume 30 dB e assim por diante.
Eis alguns parâmetros de intensidade:
Folhas 10 dB
Tic-tac 20 dB
Conversa a 1m 60 dB
Toque telefone 3m 75 dB
Grito 75 dB
Orquestra 100 dB
Buzina a 1m 120 dB
Limite da dor acima de 120 dB
Metralhadora 130dB
Segundo David Crystal, os sons do inglês têm, em média, a seguinte intensidade:
ɔː ɒ ɑː ʌ ɜː a ʊ 24-29 dB
e iː uː ɪ 22-23 dB
w r j l 20-21 dB
ʃ ŋ m tʃ n 15-19 dB
s z ʒ dʒ 12-13 dB
t g k 11 dB
v ð 10 dB
b d p f 7-8 dB
θ 0 dB
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PAUSAS, EXPLOSÕES E RUÍDOS
Diferentemente dos sons harmônicos, que constituem as vogais, o conjunto dos demais sons
utilizados numa fonação conhecido como consoantes forma um conjunto bastante variado de
fenômenos acústicos. Muitas tonsoantes não são harmônicas: são ruídos e têm gráficos que
revelam aperiodicidade: isso advém da maior ou menor fricção da língua, presente nas
fricativas, mas também em outros modos de articulação. Outras consoantes são formadas por
silêncio resultante da oclusão glotal ou vocal, seguidos, muitas vezes de uma explosão, típico
dos sons plosivos.
Representação de vogais em espectrograma
Representação de uma porção de uma elocução mediante uso de espectrógrafo
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FONÉTICA DA RECEPÇÃO
Na Fonética da Recepção, é importante distinguir os seguintes termos:
• Ouvir: capacidade natural da espécie (com pequenas variações individuais quando
não é algo patológico): não pode ser alterada a não ser mediante aparelhos (cf.
microscópio e telescópio).
• Perceber (ou “escutar”): envolve atenção; pode ser alterada mediante treino de
descondicionamento de certas indiferenças tidas como iguais durante a aquisição da
linguagem.
• Distinguir: transformar o som em algo instrumental (o significante), ou seja, uma das
facetas do signo, intrinsecamente ligada a significados. Não é passivo, mas torna-se
condicionado também.
O gráfico abaixo é obtido pelo método da Audiometria mostra dois limiares: no Limiar da
Audição da espécie humana (muito variável de espécie para espécie de ser vivo), dada a
anatomia de nossos ouvidos e consequências complexas de nossa cognição, a audibilidade
de um varia conforme uma combinação entre intensidade (medida em decibéis) e frequência
(medida em Herz): um som com intensidade de 80 dB é audível em frequências como 20Hz
mas não são audíveis em frequências de 100Hz; um som com intensidade de 10 dB é audível
em frequências de 500Hz mas não entre 500Hz e 10KHz, mas volta a ser audível acima de
10KHz. Sons com intensidade acima de 130dB, audíveis ou não, dependendo da frequência
fazem parte do chamado Limiar da Dor e podem danificar os tímpanos ou alterar o ponto
descendente-ascendente da curva de audição. O limiar da dor se inicia por volta dos 140 dB
(equivalente a 2000 dinas/cm2 ou 10-2 watt/cm2)
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Segundo David Crystal, a palavra inglesa como thorn “espinho” na pronúncia britânica [θɔːn]
tem, no primeiro segmento [θ], a intensidade de 0 dB; no segundo, [ɔː], de 29 dB e no terceiro,
[n], de 15 dB. Como a frequência de [θ] não é zero, esse segmento é audível. De fato, pelo
gráfico, percebe-se que só seria inaudível por volta de 5KHz, mas voltaria a ser audível acima
desse valor. Essa curva é característica da espécie humana e é determinante pela audiometria
na detecção de problemas de surdez.
Abaixo, detalhes anatômicos do órgão vestibulococlear (comumente chamado de orelha) e
do ouvido (que tecnicamente se refere à porção interna do aparelho auditivo). Observe que,
além da membrana timpânica, dispomos de três ossículos (bigorna, estribo e martelo) e de
outros elementos (labirinto, cóclea) e que há interligação com a faringe (por meio da trompa
de Eustáquio) quanto com o cérebro (por meio do nervo auditivo). A conversão do som
recebido na forma de energia mecânica em energia elétrica se dá pelo chamado órgão de
Colti. A partir daí, os estudos descritivos da Fonética cedem espaço para os estudos teóricos
da Fonologia.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Orelha
https://pt.wikipedia.org/wiki/Ouvido_externo
https://pt.wikipedia.org/wiki/Ouvido_m%C3%A9dio
https://pt.wikipedia.org/wiki/Ouvido_interno
https://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%93rg%C3%A3o_de_Corti
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ABSTRAÇÃO
Toda abstração remete a uma experiência de vida. Toda abstração está, portanto, em um
cérebro individual. Mesmo as abstrações provenientes de construtos sociais sofrem
reinterpretações individuais.
Mediante a linguagem compartilham-se abstrações, de modo que podemos imaginar que haja
“algo em comum” (supraindividual) na vivência de todos, de onde se depreenderiam
“diferenças individuais” em vários graus de uma sociedade. Abstrações podem ser aceitas ou
então questionadas dentro de uma sociedade.
Um fonema é uma abstração aceita durante a aquisição da linguagem sem questionamento.
Há uma propensão natural na espécie humana para entender dois sons diferentes com
diferença “inaudível” como sendo o mesmo som, contudo a imperceptibilidade de um som é
algo que não remete apenas à audição, mas também à percepção, que julga como iguais sons
que são socialmente indiferentes para o fenômeno da distinção. Dito de outro modo: se algo
não se distingue, pode até mesmo ser percebido mediante atenção, mas no papel instrumental
da linguagem, muitas vezes não o é.
Generalizar é uma forma de abstrair. A generalização conduz a uma postura teórica perante
um problema observado. Toda afirmação remete para uma abstração, cuja existência pode
ser confirmada por meio de exemplos ou refutada por meio de contra-exemplos. Algo como
“na região α do país β, o fonema /δ/ se realiza como [ζ]” é uma generalização muito comum,
tácita como premissa na mente e na postura dos falantes durante o ato de audição e percepção,
mas formalizada em estudos de Fonética e Fonologia à luz de modelos teóricos.
Uma segunda forma de abstrair é hierarquizar. Os paradigmas são baseados em um
hiperônimo, por meio do qual se subordinam alguns fatos linguísticos: sob o hiperônimo
abstrato “animal” rotulam-se hipônimos como cães, gatos, elefantes, pardais, caramujos e
estrelas do mar. Há também paradigmas de paradigmas, que revelam maior grau de abstração,
assim “animal”, antes hiperônimo, também pode ser hipônimo de um hiperônimo mais
abstrato, como “ser vivo” juntamente com plantas, fungos e bactérias.
Há, portanto, paradigmas semânticos e paradigmas morfológicos. Interessa-nos sobretudo a
existência de paradigmas sonoros na nossa mente e eles são de vários tipos: unidades
mínimas, estruturas silábicas, padrões acentuais, relações intersilábicas, relações de limite
vocabular, etc. Segundo o modelo estruturalista, um signo compõe-se de uma estrutura em
que se vinculam unidades dos paradigmas sonoros no significante com unidades dos
paradigmas semânticos e morfológicos no significado. Cumpre lembrar que um signo não é
necessariamente uma palavra, mas pode ser algo menor, intravocabular, como uma parte da
palavra com significado (um morfema), ou então algo maior, intervocabular, como uma lexia,
um sintagma, uma oração ou um texto. Os fonemas são os átomos de nossa expressão verbal.