UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO SOCIOECONMICO
DEPARTAMENTO DE CINCIAS ECONMICAS
CURSO DE GRADUAO EM CINCIAS ECONMICAS
PEDRO BUENO DE ALMEIDA
A MOEDA DESCENTRALIZADA NA SOCIEDADE CONTEMPORNEA: O CASO DA
BITCOIN P2P DIGITAL CURRENCY.
Florianpolis, 2013
PEDRO BUENO DE ALMEIDA
A MOEDA DESCENTRALIZADA NA SOCIEDADE CONTEMPORNEA: O CASO
DA BITCOIN P2P DIGITAL CURRENCY.
Monografia submetida ao curso de Cincias Econmicas da
Universidade Federal de Santa Catarina, como requisito obrigatrio
para a obteno do grau de Bacharelado.
Orientador: Prof. Dr. Roberto Meurer
FLORIANPOLIS, 2013
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CURSO DE GRADUAO EM CINCIAS ECONMICAS
A Banca Examinadora resolveu atribuir a nota 9,0 ao acadmico Pedro Bueno de Almeida na
disciplina CNM 5420 Monografia, pela apresentao deste trabalho.
Banca Examinadora:
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Prof. Dr. Roberto Meurer
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Prof. Dr. Joo Rogrio Sanson
--------------------------------------------------
Prof. Bruno Lorenzi Cancelie Mazzucco
RESUMO
ALMEIDA, Pedro Bueno de. A Moeda Descentralizada na Sociedade Contempornea: O
caso da Bitcoin P2P Digital Currency. 68 f. Curso de Cincias Econmicas, Universidade
Federal de Santa Catarina, Florianpolis, 2013.
A moeda um objeto que j est presente na humanidade h tanto tempo que a sua existncia
e funcionamento parece algo natural, como se sempre estivesse ali. O monoplio sobre a
emisso de moedas pelos Estados Nacionais tambm um fator que se mantm presente h
tanto tempo que o seu questionamento raramente ocorre. Porm, atravs de uma perspectiva
histrica possvel visualizar as mudanas que ocorreram no decorrer dos sculos e
principalmente as mudanas que esto ocorrendo neste exato momento na sociedade
contempornea. O avano tecnolgico na rea de computao e da internet nas ltimas
dcadas criou um novo ambiente de gerao de conhecimento e relaes sociais. A ausncia
de fronteiras no mundo virtual tem permitido o desenvolvimento de redes de comunicao
que abrange uma grande magnitude de pessoas em diversos pases. Neste ambiente virtual e
tecnolgico que a computao e o aprimoramento das redes tm possibilitado que surge a
Bitcoin P2P Digital Currency, uma moeda descentralizada de qualquer origem estatal,
funcionando inteiramente atravs das trocas de informaes entre computadores pela internet.
A pesquisa abordou as deficincias e eficincias que a utilizao da Bitcoin possibilita para as
relaes econmicas do mundo, alm de discutir o desenvolvimento da qual tem at o
momento se mostrado a moeda virtual tour de force em comparao com as outras
experincias de moedas virtuais que j existiram.
Palavras-chave: Moeda Descentralizada; Avano Tecnolgico; Redes de Comunicao;
Bitcoin.
ABSTRACT
ALMEIDA, Pedro Bueno de. The Decentralized Currency in the Contemporary Society:
The Bitcoin P2P Digital Currency case. 68 f. Curso de Cincias Econmicas, Universidade
Federal de Santa Catarina, Florianpolis, 2013.
The currency is an object that is present in humankind for so long that its existence and
functionality seems natural, as if it has always been there. The monopoly in the issuance of
money by the Nation States is also a factor that is present for so long that its questioning
rarely occurs. Nevertheless, through a historical perspective it is possible to see the changes
that have occurred over the past centuries and especially the changes that are occurring right
now in the contemporary society. The technological progress in computers and in the internet
over the past decades created a new environment for the development of knowledge and
social relations. The absence of boundaries in the virtual world has allowed the development
of network communications that covers a large magnitude of people in several countries. In
this virtual and technological environment, that the improvement of networks and computing
made possible, the Bitcoin P2P Digital Currency arises, a decentralized currency apart from
any government, functioning entirely through the exchange of information between computers
over the internet. This study addressed the deficiencies and efficiencies that the use of the
Bitcoin enables for economic relations in the world, and discusses the development of which
has so far proved to be the Virtual Currency tour de force in comparison with others
experiments of virtual coins that already existed.
Keywords: Decentralized Currency; Technological Progress; Network Communications;
Bitcoin.
SUMRIO
1. INTRODUO ...................................................................................................................... 3
1.1 Tema e Problema de Pesquisa ...................................................................................... 3
1.2 Objetivos ......................................................................................................................... 4
1.2.1 Objetivo Geral .......................................................................................................... 4
1.2.2 Objetivos Especficos ............................................................................................... 4
1.3 Justificativa ..................................................................................................................... 5
2. METODOLOGIA ................................................................................................................... 6
3. PARTE I: A MOEDA ............................................................................................................ 7
3.1 Viso Clssica ................................................................................................................. 7
3.2 Moeda em Roma .......................................................................................................... 11
3.4 Comrcio Medieval ...................................................................................................... 14
3.5 Liberdade e o Capital .................................................................................................. 18
3.5.1 Padro-ouro ............................................................................................................ 18
3.5.2 Viso Austraca ...................................................................................................... 21
3.5.3 Moeda privada na Amrica do Norte ..................................................................... 24
4. PARTE II: O VIRTUAL ...................................................................................................... 29
4.1 A internet ...................................................................................................................... 29
4.1.1 Surgimento da computao e a internet ................................................................. 29
4.1.3 Comunidades e Fruns ........................................................................................... 33
4.1.4 Conexo P2P .......................................................................................................... 35
4.1.5 Cypherpunks .......................................................................................................... 37
4.2 Bitcoin ........................................................................................................................... 39
4.2.1 Nascimento e proposta ........................................................................................... 39
4.2.2 Reaes e insero ................................................................................................. 45
4.2.3 A Bitcoin na Economia .......................................................................................... 53
5. PARTE III: ECONOMIA DESCENTRALIZADA ............................................................. 57
6. CONCLUSES .................................................................................................................... 62
REFERNCIAS ....................................................................................................................... 65
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1. INTRODUO
1.1 Tema e Problema de Pesquisa
O dinheiro como meio de troca, reserva de valor e unidade de conta est presente
desde muito tempo nas relaes comerciais da sociedade, onde o poder econmico foi usado
muitas vezes como forma de coero e domnio de uma populao, seja estampando a face do
prncipe nas moedas ou recolhendo tributos (ROTHBARD, 2006). A ideia de que o Estado o
detentor do poder legtimo de emitir moeda e controlar as relaes de troca algo que foi
culturalmente criado, parecendo muitas vezes um fato natural, digno, pro hominem.
Este trabalho tem a inteno de demonstrar, como uma moeda descentralizada
funcionaria na sociedade contempornea. A lgica do uso de uma moeda privada e sem
governo j foi amplamente explorada por Hayek (1990) na dcada de 1970, porm, com o
avano tecnolgico, muitos fatores que anos atrs pareciam utpicos agora j so passveis de
ocorrer, como o caso do uso de moedas virtuais. Na era da computao e da internet, muitos
dos elementos crticos de implementao de um sistema monetrio descentralizado, como os
altos custos e precariedade da engenharia matemtica computacional, foram superados com o
avano tecnolgico e mais precisamente com o aumento da rapidez das trocas de informaes.
Este trabalho analisa o uso da Bitcoin P2P Digital Currency como modelo de uma
moeda digital descentralizada, questionando a utilidade de uma moeda desatrelada de um
governo central, que no afetada por medidas de poltica monetria e no possui um banco
central como emissor de moeda. Ser discutindo temas relacionados com a liberdade de
comunicao no meio eletrnico atravs de softwares livres e programas de cdigo aberto que
influenciaram e deram origem prpria concepo da moeda Bitcoin.
A utilizao de uma moeda digital que no possui um sistema centralizado possibilita
uma reduo nos custos de transaes, uma vez que toda a engenharia necessria para efetuar
transaes funciona de forma pulverizada na rede, no sendo necessrio o uso de uma grande
organizao bancria e financeira intermediadora. Dessa forma, a funcionalidade de uma
moeda com essas caractersticas pode estar sinalizando o que um dia pode se tornar um novo
modelo de transaes comerciais, colocando o sistema financeiro atual em uma posio de
iminente obsolescncia.
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1.2 Objetivos
1.2.1 Objetivo Geral
Objetivo central do trabalho discutir as consequncias do uso de uma moeda
descentralizada, se existe a possibilidade, necessidade e utilidade na adoo de um meio de
troca que seja parte do controle governamental, tanto pelos princpios morais de liberdade
(MISES, 1987), quanto pela eficincia nas relaes comerciais pelos agentes do mercado.
1.2.2 Objetivos Especficos
Demonstrar as consequncias do uso da moeda em um contexto histrico, evoluindo
dos antigos filsofos gregos at pensadores atuais.
Utilizar do embasamento terico de vrios autores e economistas que buscavam
fundamentar o uso de uma moeda sem o controle do governo.
Discutir conceitos sobre o avano tecnolgico e ampliao da internet que
possibilitaram a digitalizao dos mercados financeiros.
Discutir temas relacionados com a criao de comunidades e fruns que possibilitam a
criao de softwares livres e de cdigo aberto.
Analisar o uso da moeda Bitcoin P2P Digital Currency em seu contexto de impacto
econmico, funcionalidade e utilidade como uma forma alternativa de moeda para
transaes financeiras.
5
1.3 Justificativa
O processo de digitalizao dos mercados financeiros que aconteceu no fim do sculo
XX possibilitou uma expanso muito maior do processo de globalizao (HALL, 2011). A
quase totalidade das transaes econmicas agora so feitas eletronicamente, tanto operaes
entre agentes como polticas monetrias. Ento, a elaborao de uma nova moeda precisaria
necessariamente interagir dentro deste novo padro de negociao. Assim, alm de analisar os
valores tericos da utilizao de uma moeda sem governo, busca-se compreender a utilidade
que essa moeda teria na sociedade contempornea, uma vez que com a reduo dos custos de
manuteno e o aumento da velocidade de comunicao, o cenrio atual tende a ser mais
propcio para o funcionamento de um sistema com moedas descentralizadas em comparao
com dcadas anteriores.
A partir de uma perspectiva histria, contextualizando a origem da moeda e o seu
desenvolvimento no decorrer do tempo, torna-se possvel apontar as mudanas e semelhanas
entre a proposta de uma moeda virtual descentralizada e outras experincias monetrias de
pocas passadas. Alm disso, uma contextualizao histrica permite apontar os fatores que
levaram as moedas descentralizadas a surgirem no sculo XXI e no em pocas passadas,
devido importncia que o avano tecnolgico tem ocasionado no crescimento das
comunicaes e desenvolvimento de tecnologias computacionais.
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2. METODOLOGIA
O mtodo de construo do conhecimento deste trabalho realizado utilizando o
processo de pesquisa exploratria, analisando fatos histricos atravs da leitura de ampla
bibliografia (SALOMON, 2004). Realizando comparaes tericas e avaliando possveis
desdobramentos do tema em anlise, sempre em sintonia com a teoria econmica e s
referncias escolhidas.
Em um primeiro momento demonstrando as caractersticas histricas e conceitos
relacionados origem da moeda e seu desenvolvimento. Em seguida, uma segunda parte onde
so tratados conceitos do mundo virtual, relacionando o desenvolvimento da internet com a
digitalizao dos mercados financeiros, assim como uma anlise sobre os novos modelos de
criao de conhecimento. Neste momento, j possvel explorar a moeda virtual Bitcoin P2P
Digital Currency em sua interao com a economia e a abertura de novas formas de
negociao. E uma terceira parte conclusiva onde discutidas questes a respeito do
desenvolvimento dos mercados financeiros mundiais, explorando conceitos sobre economia
descentralizada e as novas perspectivas em relao s moedas.
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3. PARTE I: A MOEDA
3.1 Viso Clssica
A anlise sobre uma moeda digital no se resume somente ao horizonte terico das
ltimas dcadas do nosso mundo contemporneo. preciso voltar origem das ideias e
pensamentos que embasam o mundo atual, a fim de evidenciarmos os processos-chave que
nos fazem interagir na economia do jeito que fazemos hoje. A moeda de qualquer pas possui
uma evoluo histrica que muitas vezes passa despercebida em meio s incontveis
transaes que perpetuam o sistema financeiro mundial. A moeda sempre teve a mesma razo
para existir, seja na simplicidade da antiguidade ou na complexidade dos mercados
financeiros atuais. Logo, antes de explorar o desdobramento das moedas virtuais devemos
voltar ao passado e analisar a moeda em sua histria.
A moeda surgiu como uma forma de facilitar as relaes comerciais entre os
indivduos, funcionando como um meio de troca para transao de produtos. Por possuir a
caracterstica de unidade de conta, foi possvel realizar o clculo exato das transaes; e por
ser reserva de valor, a moeda se tornava um bem valioso e intercambivel em vrios
territrios. A moeda precisava ser durvel, divisvel e fcil de ser portada e transportada pelas
pessoas. E por se encaixarem perfeitamente nessas caractersticas que os metais preciosos
foram amplamente utilizados para a confeco das moedas por tantos sculos em vrias partes
do mundo (FERGUSON, 2008).
Um dos primeiros indcios referentes origem da moeda tem como fonte a cidade de
Ldia, localizada na antiga regio da Anatlia, atual Turquia, durante o sculo VII a.C.. As
moedas eram compostas por um misto de ouro e prata, e possuam a imagem de um leo em
referencia ao smbolo do Rei Alyattes. Nos sculos posteriores, houve a disseminao da
utilizao de moedas para a Grcia e toda a regio do mediterrneo. A partir do momento que
a moeda comeou a fazer parte da sociedade grega, a sua relao com a filosofia sempre
esteve presente, onde vrios dos filsofos gregos questionavam a relao entre a moeda e a
sua sociedade (RHODES, 2010).
Ao voltarmos Grcia Antiga, encontramos os primeiros questionamentos sobre o
funcionamento da moeda na economia e das relaes humanas da sociedade. Para Plato, o
homem deveria ir contra as limitaes impostas pela natureza a fim de conseguir superar as
suas dificuldades e atingir um patamar sem limites. J para os aristotlicos, o homem uma
mera criatura como outra qualquer, no sendo eterno ou especial, mas sim mais um fator
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advindo da ordem natural em que se deu o mundo. Onde a lei natural aristotlica j praticava
o exerccio de ver o mundo de um ponto de vista lgico, usando princpios morais da natureza
humana para elaborar teorias e motivos que levam o homem a ser o que (SHIELDS, 2012).
Os Gregos viviam nas chamadas polis, que poderiam ser consideradas pequenas
cidades-Estado, e remonta quela poca o incio de um processo de democracia. No uma
democracia como temos hoje, pois apenas uma pequena parte da populao de fato escolhia
os rumos da poltica da polis, mas foi este modelo que serviu sculos depois como exemplo
para a formao dos Estados ocidentais modernos. Naquele perodo, alm do fomento de
ideias de justia, moralidade e at mesmo de alquimia, o desenrolar do pensamento filosfico
foi um extraordinrio avano de conhecimento que seria resgatado posteriormente pelos
percussores do pensamento econmico, seja pelos escolsticos medievais ou por Adam Smith
e David Ricardo. Mas mesmo naquela poca o impacto poltico que estes filsofos tinham
sobre os acontecimentos da regio era considervel, o prprio Aristteles discpulo de Plato,
discpulo de Scrates, foi mentor de quem anos mais tarde se tornaria um dos maiores
conquistadores do mundo, Alexandre, o Grande (ROTHBARD, 2006).
De acordo com Rothbard, depois de Aristteles a escola filosfica grega que merece
mais destaque so os Estoicos, fundada por Zeno of Citium1, a qual tem como caracterstica
mais marcante o estabelecimento sistemtico dos primeiros princpios de liberdade, tica,
moralidade e ordenamento da esfera jurdica. Enquanto Plato e Aristteles desenvolveram
suas filosofias em pleno contato com a polis grega, onde a verdadeira virtude humana era a
prpria cidade-Estado (ROSSI; TIERNO, 2009, p. 201), com a queda e subjugao da polis
aps Aristteles, os Estoicos comearam a desenvolver uma linha de pensamento muito mais
livre, que via a lei natural de uma maneira muito mais aberta e universal. Para os Estoicos, as
virtudes humanas em relao tica e aos direitos morais transcendiam as barreiras culturais e
polticas, onde todos os seres humanos dotados de racionalidade deveriam agir e ser tratados
da mesma maneira, no importando as ideologias ou regio geogrfica dos indivduos. O
pensamento originrio dos Estoicos se manteve presente por muitos sculos e influenciou
fortemente o Imprio Romano. Some Roman jurists declared that property rights were
required by the natural law. The Romans also founded the law merchant, and Roman law
strongly influenced the common law of the English-speaking countries and the civil law of the
1 Zeno de Ctio, viveu entre 334 a.C. e 262 a.C. na Grcia.
9
continent of Europe (ROTHBARD, 2006, p. 23)2. O domnio quase total da Europa por
Roma durante a primeira metade do primeiro milnio d.C. teve uma influncia gigantesca na
concepo dessas regies, tanto na questo cultural, da linguagem e arte, assim como em
relao poltica e aos moldes governamentais nas futuras naes do continente Europeu e
posteriormente nas colnias do novo mundo.
Durante o Imprio Romano, as moedas eram amplamente utilizadas, sendo forjadas
com figuras importantes da poltica romana, normalmente estampando a face do imperador
vigente em conjunto com figuras mitolgicas, como uma forma de legitimar o poder do
Estado (CARLAN, 2007).
As moedas no se restringiam somente regio mediterrnica, grega e romana, por
mais que os indcios mostrem que a origem da moeda tenha sido dessas regies. Na antiga
China, em aproximadamente 221 a.C., foi introduzidas moedas de cobre pelo imperador Qin
Shihuangdi (FERGUSON, 2008, p. 24), o qual foi responsvel pela unificao e consolidao
do imprio Chins. Foi da China tambm que se estruturaram algumas teorias que ficaram
restritas e quase esquecidas quele territrio durante muitos sculos. Alguns pensadores da
poca possuam certas noes de liberdade poltica e laissez-faire relativamente muito mais
avanadas que os outros continentes sequer tiveram por muito tempo. I take no action yet the
people transform themselves, I favor quiescence and the people right themselves, I take no
action and the people enrich themselves (...) (ROTHBARD, 2006, p. 24)3, palavras de Lao
Tzu, fundador da corrente de pensamento Taosta, o qual preconizava que o governo e as
instituies funcionavam em um sentido que prejudicava as relaes sociais dos indivduos,
reduzindo a felicidade e o livre arbtrio. Com uma viso radical, Lao Tzu defendia que todas
as instituies de controle deveriam de fato ser abolidas e o Estado deveria adotar uma
poltica de controle mnimo sobre a populao. The more artificial taboos and restrictions
there are in the world, the more the people are impoverished... The more that laws and
regulations are given prominence, the more thieves and robbers there will be (ROTHBARD,
2006, p. 23-24)4. Segundo os Taostas, o mais correto a ser feito seria manter o governo de
forma simples, para que as relaes sociais e econmicas se estabilizassem sozinhas.
2 Traduo nossa: Alguns juristas romanos declararam que os direitos de propriedade eram justificados pela lei
natural. Os romanos tambm fundaram a lei mercantil, e as leis romanas influenciaram fortemente as leis
comuns dos pases de lngua inglesa e a lei civil do continente europeu.
3 Traduo nossa: Eu no tomo nenhuma ao, mesmo assim as pessoas se transformam, eu favoreo a
quiescncia e as pessoas se endireitam, eu no tomo nenhuma ao e as pessoas enriquecem sozinhas.
4 Traduo nossa: Quanto mais tabus artificiais e restries existirem no mundo, mais as pessoas sero
pobres... Quanto mais leis e regulamentos so colocados em destaque, mais ladres e assaltantes existiro.
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A moeda foi o fator inicial facilitador das transaes comerciais, mas desde muito
tempo existiram sistemas de crdito que por mais arcaicos que fossem, funcionavam para que
as transaes fossem realizadas. Na regio da Mesopotmia, h cinco mil anos atrs, quadros
de argila eram usados para anotar transaes da agricultura local e mostrar quem que devia
para quem determinado produto e qual o preo negociado. Do ponto de vista do valor, as
argilas, ou as moedas da antiga Ldia, o papel-dinheiro atual, ou as moedas virtuais, nada mais
so do que uma conveno mtua de confiabilidade entre os indivduos que determinam se a
moeda utilizada possui valor ou no (FERGUSON, 2008, p. 24).
As pessoas utilizariam meros pedaos metlicos sem valores de uso precisos em troca
de produtos e servios reais em uma economia? Este um dos fatores que envolvem o
mistrio por trs das moedas, algo que vai alm das simples caractersticas fsicas do objeto
de troca. O ouro, a prata, o dlar ou qualquer outro meio de troca utilizado somente adquire a
funo de dinheiro no por causa de uma mudana fsica em suas caractersticas mas sim
por causa de uma conveno social que adota estes objetos como representaes de valor.
Este mistrio da moeda com o passar dos sculos tem se tornado cada vez maior,
principalmente devido ao fim do padro-ouro e o aumento da digitalizao dos mercados
financeiros (WHITE, 1999, p. 3).
O economista austraco Carl Menger, elaborou uma explicao de como as moedas
emergem espontaneamente e so adotadas pela populao em geral sem que algum tenha que
de fato cri-las. Tudo se baseia em uma conveno social criada atravs das experincias de
trocas adquiridas com o tempo. Em um mercado onde acontecem somente trocas diretas, ser
muito difcil que cada vendedor com um produto diferente consiga troc-lo por outro que
deseja. No exemplo de Menger, um vendedor A que deseja trocar aspargos por bacon somente
realizar a transao se encontrar um segundo vendedor B que deseja trocar bacon por
aspargos, algo que pode ser muito complicado dependendo do arranjo econmico do mercado
em questo. Porm, a partir do momento em que vrios vendedores e compradores entrarem
no mercado, com o passar do tempo determinada mercadoria ser a mais amplamente aceita
pelos comerciantes. Pois, embora os vendedores estejam dispostos a trocar as suas
mercadorias individuais por outras, existir alguma mercadoria em comum que a maioria dos
outros vendedores tambm esto desejosos em adquirir. Deste modo, alguns vendedores
analisando os moldes do mercado iro utilizar determinada mercadoria como seu principal
meio de troca. Assim, atravs de uma conveno social, os demais comerciantes tambm
percebero que determinada mercadoria est sendo amplamente aceita e a utilizaro, nascendo
assim um sistema monetrio.
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A teoria de Menger mostra que no preciso uma legislao ou consenso social
explcito para tornar determinada mercadoria em dinheiro, este fenmeno acontece
espontaneamente. A prpria concepo da unidade de conta tambm um fator que floresce
socialmente, no sendo necessria uma deciso coletiva sobre quais os valores que devem ser
atribudos a cada produto transacionado. Os vendedores sabero por si mesmos, ao analisar o
mercado e os demais vendedores, quais devem ser o preo e a unidade de conta utilizada para
as mercadorias que pretendem vender.
A transio do meio de troca das mercadorias commodities para as moedas se deu por
causa das propriedades fsicas dos metais e suas caractersticas que promoviam facilidade nas
transaes. O exemplo mengeriano de trocas e da conveno social convergiu para a adoo
de bens que facilitavam cada vez mais as relaes comerciais, surgindo ento o uso das
moedas metlicas como dinheiro. O avano para mecanismos mais complexos de cunhagem
vieram com o tempo, como uma forma de aumentar a autenticao das moedas, evitando
assim a princpio a manipulao fraudulenta em seu contedo metlico.
A cunhagem das moedas sempre esteve vinculada ao monoplio estatal que desde o
incio das primeiras relaes comerciais monetrias esteve presente controlando o fluxo de
dinheiro. Porm, segundo White (1999), no existem sinais de que a cunhagem devesse ser
um monoplio natural. O autor destacada que muito do interesse do Estado por trs do
monoplio no controle monetrio era com a inteno de adquirir os lucros advindos do
processo de senhoriagem, onde a fabricao de moedas acaba por gerar ganhos devido ao
baixo custo de produo em relao ao seu valor de mercado.
3.2 Moeda em Roma
O imprio Romano influenciou os hbitos, costumes e relaes sociais de grande
parte da Europa e dos arredores do mar Mediterrneo durante muitos sculos. A forma como
os romanos representavam o poder do Estado na cunhagem das moedas um fator
interessante de ser observado, onde atravs do uso de imagens e smbolos mitolgicos ou
religiosos o poder estatal sempre tentou colocar-se como um representante do poder divino.
A cunhagem de moedas e sua utilizao em Roma se deram mais tardiamente que
na Grcia e na sia. Um dos motivos destacados seria a falta de metais preciosos na regio,
onde somente aps a segunda guerra Pnica que de fato foi introduzido moedas de prata para
circulao. As moedas de ouro, denominadas de ureo, eram utilizadas primariamente como
unidade de conta do que de fato para transaes comerciais dentro de Roma. Somente em
12
casos de comrcio com outras regies e povos do mediterrneo que o ouro era
predominantemente utilizado (CARLAN, 2007, p. 112-114).
O processo de cunhagem e fabricao das moedas que continham metais preciosos
era restrito ao governo central romano, as demais provncias somente podiam cunhar moedas
para utilizao interna se houvesse necessidade. Foram inmeras as reformas monetrias
durante a glria romana. Segundo Carlan (2007), durante todo o perodo de dominao
romana houve a variao do contedo metlico das moedas utilizadas, tendendo quase sempre
para baixo. As reformas de aviltamento monetrio eram normalmente realizadas como uma
forma do Estado gerar riquezas para subsidiar guerras e as despesas com o exrcito. A forte
desvalorizao monetria gradativa durante sculos levou a um forte processo inflacionrio. A
regio da Itlia no possua grandes reservas de metais preciosos, dessa forma o ouro e a prata
vinham para Roma de outras regies, normalmente atravs dos saques e o domnio de outros
povos. Porm, com a estagnao da expanso romana, comeou a ocorrer a falta de metais em
seu territrio, fator que somado constante desvalorizao das moedas, um dos motivos
apontados para o declnio do Imprio Romano.
O fim da expanso romana levou escassez de mo-de-obra, onde conjuntamente
com a consolidao do cristianismo e o constante avano dos povos brbaros sobre seu
domnio, acabou resultando em uma modificao nas relaes de trabalho do imprio. Muitos
proprietrios de terras comearam a libertar seus escravos e a fornecer a eles territrios em
troca de parte da produo. Muitos camponeses livres que no podiam pagar os crescentes
impostos, nem evitar saques de seus campos, abandonaram suas terras, colocando-se sobre a
proteo de grandes latifundirios. Surgindo assim o colonato (CARLAN, 2007, p. 117-118),
estes fatores resultariam, nos sculos subsequentes, na consolidao do feudalismo.
Durante este perodo, existiu um forte embate entre as culturas antigas politestas
e a religio crist, esta ltima consolidada como a religio oficial do Imprio Romano durante
o governo de Teodsio I. O momento em questo acabava por ser representado nas moedas do
perodo, com a substituio dos deuses antigos por elementos cristos. De certa forma, a
numismtica nos mostra que a moeda por muito tempo serviu como um objeto que ia alm da
funo econmica, identificando povos e naes, assim como servindo de instrumento de
legitimao emblemtica do Estado, como ressaltado por Florenzano (1997):
um instrumento que atua na esfera do econmico, mas de um econmico
que no desvinculado da esfera social, poltica e religiosa. Ao contrrio, a
multiplicidade de usos - polticos, financeiros, religiosos/mgicos -
identificada pelos especialistas na moeda, oferece sustentao para uma
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viso de uma sociedade na qual os aspectos econmicos, polticos e
religiosos aparecem sobrepostos. Desta forma, a moeda adquire um
significado importante como suporte de uma nova maneira de pensar o
mundo, o poder, a vida em sociedade, maneira de pensar (...)
(FLORENZANO, 1997, p. 192).
A moeda pode ser encarada como smbolo que demonstrava tanto fatores sociais
como polticos de uma era. Como identificado por Carlan (2012, p. 68), a moeda era definida
"como um monumento oficial a servio do Estado." A humanidade possua a necessidade de
se identificar atravs de smbolos e as moedas serviram para essa funo com plenitude.
Durante momentos onde a troca de informaes era limitada, a estampa das moedas era a
forma mais promissora de propaganda. Como explorado pelo o filsofo alemo Ernst
Cassirer, antes de se identificar o ser humano como animal rationale, este deveria ser definido
como um animal symbolicum5, onde atravs do uso de smbolos, poderia depreender
interpretaes sobre a poca e a formao de determinadas naes, culturas e crenas. Em um
mundo onde existia forte analfabetismo, os smbolos desempenhavam uma funo primordial
de linguagem, utilizando do visual como principal forma de transmitir informaes, e nada
mais representativo do que a prpria moeda, que alm de representar a riqueza e prosperidade,
era utilizada cotidianamente por todas as pessoas da nao nas mais simples trocas
comerciais. Como explicado por Hayek (1990): The coins served, indeed, largely as the
symbols of might, like the flag, through which the ruler asserted his sovereignty, and told his
people who their master was whose image the coins carried to the remotest parts of his
realm (HAYEK 1990, p. 29)6.
De acordo com o Gibbon (2008), a Roma antiga perdurou por aproximadamente
doze sculos, passando pelo controle monrquico, pela repblica romana, at se consolidar
como um Estado autocrtico. Muitos foram os embates polticos e administrativos da regio,
principalmente durante o declnio do Baixo imprio que se estendeu entre os sculos III e V,
onde Roma foi assolada por revoltas internas e crises econmicas. Durante o sculo III, houve
intensas mudanas de imperadores durante um curto perodo de tempo, alguns que
governaram por poucos anos ou meses, fator que mostra a instabilidade do perodo. Os limites
geogrficos do imprio ficaram desprotegidos, uma vez que os imperadores se importavam
5 Aristteles se referia ao ser humano como um animal rationale (animal racional), j Ernst Cassirer definiu o
novo conceito de animal symbolicum que se referia ao ser humano como um ser diretamente influenciado pelos
smbolos historicamente criados em todos os aspectos da sua experincia.
6 Traduo nossa: As moedas serviram de fato, em grande parte como os smbolos do poder, como a bandeira,
atravs do qual o governante afirmou sua soberania, e disse a seu povo quem era o seu mestre, cuja imagem as
moedas transportavam para as partes mais remotas do reino.
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mais com a retomada do poder do que com a manuteno do territrio. Somente com a
ascenso de Diocleciano como imperador em 284 D.C. e a instaurao da Tetrarquia, que
dividia o imprio em quatro regies administradas por imperadores distintos, que houve a
volta da estabilidade poltica. Porm, com a nomeao de Constantino em 306 D.C. como
Augustus e imperador da Tetrarquia referente Bretanha, Glia e Espanha, novamente houve
a disputa interna pelo poder. Constantino guerreou com os demais membros da Tetrarquia at
concentrar todo o poder do imprio sob seu controle, desse modo revitalizou a cidade de
Bizncio na parte leste do imprio, a qual ficou mais conhecida como Constantinopla. O
imperador Constantino foi o primeiro imperador a se converter ao cristianismo e a fomentar o
livre culto da religio crist em territrio romano, principalmente aps o dito de Milo7.
O declnio do Imprio Romano do Ocidente se deu por vrios motivos, tanto do
ponto de vista econmico com a deteriorao do valor das moedas devido s constantes
reformas monetrias, quanto com o avano brbaro e huno que dominou seus territrios e
enfraqueceu os exrcitos; as novas crenas crists tambm repercutiram na forma como os
romanos viam as guerras, no mais to dispostos a abrir mo da prpria vida pelo Estado. Mas
foi somente em 476 D.C., marcado historicamente como o fim do Imprio Romano e incio da
Idade Mdia, onde Flavius Odoacer, um comandante brbaro, matou o ltimo imperador
romano do ocidente, Romulus Augustus, e se tornou Rei da Itlia. J o Imprio Romano do
Oriente, que possua a cidade de Constantinopla como poder central e administrativo do
imprio, perdurou por aproximadamente mais mil anos, permanecendo como o reino cristo
mais estvel durante a Idade Mdia (GIBBON, 2008).
3.4 Comrcio Medieval
Apesar do declnio romano e a queda de Roma aps o sculo V, o comrcio do
Mediterrneo pouco foi afetado pelo domnio brbaro da regio, o que se deu na verdade foi a
intensificao e o aumento do comrcio em cidades porturias como Veneza, Gnova e
Marselha. A cada sculo, estas cidades se tornavam mais importantes, virando verdadeiros
centros comerciais que serviam de ligao entre as mercadorias do oriente e do ocidente.
Porm, a Idade Mdia foi em muitas regies um perodo de estagnao. Com a
transformao do colonato em regime feudal, as relaes tanto econmicas quanto sociais
7 O dito de Milo (313 d.C.), tambm referenciado como dito da Tolerncia, declarava que o Imprio
Romano seria neutro em relao ao credo religioso, acabando oficialmente com toda perseguio sancionada
oficialmente, especialmente do Cristianismo (DITO DE MILO, 2013).
15
ficaram restringidas aos limites do feudo. Pouco era comercializado, prevalecendo a simples
troca de subsistncia entre as pessoas de cada feudo.
A mudana e crescimento do comrcio na Europa, com o estabelecimento de outras
cidades comerciais alm das porturias, aconteceram de forma gradativa no decorrer dos
sculos. Os acordos firmados entre os comerciantes e os reis ou senhores feudais para o
estabelecimento de feiras em determinadas rotas foi um dos fatores que levaram ao
crescimento de cidades como Poix, Lagny, Provins e Troyes (HUBERMAN, 1985, p. 30). Na
regio de Champagne na Frana, por exemplo, eram realizadas feiras semanais e anuais onde
eram trocadas mercadorias de vrias regies distintas, principalmente mercadorias asiticas
que eram amplamente cobiadas e possuam preos altos; tudo isso acontecia em um local de
salvo-conduto onde os comerciantes podiam transitar livremente e os impostos no eram
exagerados. Em um momento onde as estradas eram precrias e os saques eram frequentes, o
estabelecimento de um local comum para a realizao do comrcio, com as devidas
salvaguardas do rei, era de fato necessrio.
A moeda teve novamente um papel importantssimo durante este perodo, como uma
herana romano-bizantina. O sistema monetrio dos reis francos se assemelhava ao modelo de
Roma, mantendo as mesmas caractersticas de cunhagem e os seus valores simblicos
(PIRENNE, 1973, p. 18). Dessa forma, as feiras da Idade Mdia concentravam vrios
comerciantes de vrias regies distintas, consequentemente com moedas diferentes. Logo,
surgiu a classe dos trocadores de dinheiro, que se estabeleciam nas feiras e ficavam medindo e
pesando as moedas e realizando as trocas cambiais necessrias para o comrcio. Como
afirmado por Huberman (1985): As feiras tinham, assim, importncia no s por causa do
comrcio, mas porque a se efetuavam transaes financeiras (HUBERMAN 1985, p. 33).
Foi neste perodo em que houve o nascimento da classe dos bancrios e o aperfeioamento
das operaes financeiras.
Talvez uma das cidades medievais que merea mais destaque em seu desenvolvimento
foi a cidade italiana de Veneza. Com seu canal aberto para o mar Adritico, em uma
localizao que servia de entrada para a Europa, a cidade se tornou um verdadeiro centro
comercial e onde ocorreu imensos avanos em relao financeirizao do comrcio. Como
destacado por Richard Sennett (2010), em seu livro Carne e Pedra, a cidade de Veneza era
mantida majoritariamente pelas atividades comerciais e principalmente pelos estrangeiros que
frequentavam-na. Dessa forma, existia uma grande variedade de etnias na regio, onde todos
precisavam um do outro para realizar seus negcios.
16
Um dos exemplos clssicos a grande populao de judeus que residia em Veneza e
era de extrema importncia para a vitalidade das operaes financeiras. Pois, como a religio
crist condenava fortemente a usura, e a religio judaica era mais branda em relao ao
emprstimo de dinheiro e sua posterior cobrana com juros, os judeus acabavam por
desempenhar a funo chave de fornecedores de crdito. Funo realizada pelo personagem
Shylock em O Mercado de Veneza de William Shakespeare e que na atualidade realizada
por bancos, governos ou empresas privadas e de grande importncia para o fomento do
comrcio.
Mas importante ressaltar que o convvio entre judeus e cristos em Veneza no foi
amigvel. Desde que os cristos culparam os judeus pela morte de Jesus, sempre houve
embates entre as duas religies, muitas vezes sangrentos atravs dos pogrons8 que perduram
at os dias atuais. Assim, os judeus de Veneza podiam frequentar a pequena ilha para realizar
os afazeres comerciais, mas ao anoitecer tinham que se deslocar para uma parte reservada da
ilha, lugar que ficou conhecido como o Gueto Judeu de Veneza, onde os portes eram
trancados e de l eles somente poderiam sair no dia seguinte. Como destacado por Sennett
(2010): Os corpos judaicos pareciam abrigar uma mirade de doenas decorrentes das suas
praticas religiosas. Pouco antes de 1512, Sigismondo de `Contida Foligno relacionou a sfilis
lepra, considerando-as doenas do judasmo (...) (SENNETT 2010, p. 231). Existiam fortes
preconceitos entre as duas religies, principalmente depois do Conclio de Latro, de 1179,
onde novas sanes foram impostas contra os judeus pela Igreja Catlica. Mas os
representantes do governo da cidade de forma alguma acataram o fervor religioso em prol da
expulso dos judeus de Veneza, principalmente pelos motivos econmicos que faziam-nos
serem fundamentais para o funcionamento da cidade. Alm das altas taxas de impostos pagos
pelos judeus, segundo as palavras de um cidado venezience influente: judeus so mais
necessrios que os banqueiros, que, alis, no passam sem eles (SENNETT, 2010, p. 235).
Outro fator a ser considerado neste perodo foi o avano do conhecimento cientfico e
principalmente da matemtica, que possibilitou novas formas de clculos e consequentemente
afetou as relaes econmicas do perodo. Leonardo de Pisa, mais conhecido como Fibonacci,
aprimorou os clculos utilizando algarismos indianos e rabes como concepo numrica,
tornando os clculos mais rpidos do que utilizando o antigo modelo com caracteres romanos.
8 Pogrom um ataque violento macio a pessoas, com a destruio simultnea do seu ambiente (casas,
negcios, centros religiosos). Historicamente, o termo tem sido usado para denominar atos em massa de
violncia, espontnea ou premeditada, contra judeus, protestantes, eslavos e outras minorias tnicas da Europa,
porm aplicvel a outros casos, a envolver pases e povos do mundo inteiro (POGROM, 2012).
17
Grande parte desses conhecimentos foram publicados em seu livro, Liber Abaci em 1202, que
continha informaes sobre contabilidade e ajudou a melhorar as finanas da poca. Finanas
essas que foram muito bem utilizadas por Giovanni di Bicci de' Medici e que colocaram o
sobrenome Medici como uma das famlias mais ricas e importantes da Europa nos sculos
XIV e XV.
Giovanni de' Medici explorou as oportunidades do mercado de converso de moedas,
cobrando uma comisso pela troca de uma moeda por outra. Alm disso, fornecia letras de
cmbio que funcionavam como meios de pagamento quando um mercador precisasse pagar
outro sem possuir o dinheiro no momento, sendo o incio do sistema de crdito que
conhecemos hoje. Foi neste perodo em que houve o nascimento dos primeiros bancos, sendo
o banco dos Medici o mais respeitado da Europa durante o auge de sua dinastia. Em pouco
tempo a famlia Medici j oferecia os seus servios financeiros nas principais cidades da
Europa, entre elas Londres, Genebra, Veneza e Florena (FERGUSON, 2008, p. 41-50).
Este foi o momento onde aconteceu a introduo dos primeiros papis-moedas na
Europa, que funcionavam dando o direito de quem os possusse de troc-los por ouro ou prata
nos bancos, ou seja, era a representao de determinada quantia em papel que poderia ser
trocada por metais preciosos. Dessa forma, o papel-moeda oferecia um mtodo mais prtico e
seguro para as transaes financeiras, no sendo mais necessrio o transporte de ouro fsico
para a realizao do comrcio. Com o avano do sistema bancrio e a confiabilidade de
solvncia que as pessoas desenvolveram em relao aos bancos, logo esses papis-moedas
comearam a servir como o prprio meio de pagamento. Esta nova forma de moeda, com seu
valor corporificado no papel-moeda abriu a sociedade para novas formas de negociaes
financeiras, possibilitando, por exemplo, a criao da moeda fiduciria, que no era mais
lastreada pelos metais preciosos, fato que se mostrou um dos maiores avanos na evoluo
histrica da moeda (LOPES e ROSSETTI, 1998, p. 32). Por estes motivos, como destacado
por McLuhan (2002):
O homem abandonou o mundo da tribo pela sociedade aberta, trocando um ouvido por um olho atravs da tecnologia da escrita. O alfabeto,
particularmente, habilitou-o a romper o crculo mgico e encantado, sonoro,
do mundo tribal. Em tempos mais recentes, graas palavra impressa e
passagem da moeda metlica para o papel-moeda, um processo similar fez
com que a economia mudasse de uma sociedade fechada para uma sociedade
aberta, do mercantilismo e do protecionismo econmico do comrcio
nacional para o mercado aberto ideal do livre cmbio (MCLUHAN, 2002, p.
88).
18
Desde seu nascimento, a moeda foi um objeto quase que inteiramente de
responsabilidade do Estado, que utilizava-a como bem entendesse. Mas a validade do uso de
uma moeda nacional para as negociaes somente comeou a ser uma preocupao maior
com o avano do comrcio. Na Europa, durante a Idade Mdia, os comerciantes e a populao
em geral sofriam com as usurpaes dos senhores feudais, devido aos altos impostos ou
constantes conflitos armados entre um feudo e outro. Foi assim que a figura do Rei,
centralizador do poder, comeou a se consolidar, assim como as delimitaes dos Estados
Nacionais. Era evidente aos soberanos que seu poder dependia das finanas. Tornava-se cada
vez mais claro tambm que o dinheiro s flua para as arcas reais na medida em que o
comrcio e a indstria prosperavam (HUBERMAN, 1985, p. 83). Dessa forma o acordo
mtuo entre comerciantes e os Reis beneficiava a ambos, uma vez que ajudava os interesses
do poder real com o fluxo de dinheiro advindo de impostos recolhidos da burguesia e
beneficiava os comerciantes em geral com melhores oportunidades de comrcio resultante da
centralizao do poder.
A burguesia comeou a fazer parte do processo administrativo do poder real e a
influenciar nas tomadas de decises, utilizando sua influncia social e sua riqueza para atingir
a esfera poltica e ampliar seus privilgios econmicos. A substituio de vrias moedas por
apenas uma, alm do fim do monoplio regional dos senhores feudais, facilitaram o avano
comercial e tambm o avano do processo industrial que comeava a se consolidar. Este
modelo poltico monrquico absolutista seria substitudo em muitos pases nos sculos
subsequentes pelo parlamentarismo ou presidencialismo, porm o modelo econmico da
utilizao de moedas nacionais perdura at os dias atuais.
3.5 Liberdade e o Capital
3.5.1 Padro-ouro
Com o avano da consolidao dos Estados nacionais e a maior complexidade das
relaes comerciais entre um pas e outro, a economia comeava neste momento ps-
renascimento a se tornar cada vez mais conectada, onde um pas acabava por influenciar os
preos em outro pas devido ao comrcio e as transaes em ouro. Foi dessa forma que os
tericos da poca, os quais podem ser definidos com os primeiros a desempenhar a funo de
economistas, como Adam Smith, Cantillon, Hume, Ricardo, Thornton, Mill, Cairnes,
Goschen e Bagehot forneceram a base terica para o desenvolvimento do conhecimento que
19
daria incio a criao do padro-ouro como uma forma de controlar os nveis de inflao e
deflao dos pases (BORDO; SCHWARTZ, 1984).
Como teorizado por David Hume em seu ensaio Of the Balance of Trade, o padro-
ouro tinha o objetivo de equilibrar o balano de pagamentos das principais economias do
mundo. Atravs do comprometimento de manter o cambio fixo determinada quantidade de
ouro, os pases realizavam polticas monetrias de exportao ou importao de ouro caso
houvesse um dficit ou supervit no balano de pagamentos. A oferta monetria de cada pas
era definida pela quantidade de reservas em ouro que este possusse, desse modo se um pas
fosse deficitrio no seu balano de pagamentos, este deveria exportar ouro para os pases que
fossem superavitrios. Dessa forma, esta exportao de ouro diminuiria a sua oferta interna de
moeda, forando uma contrao da base monetria, o que consequentemente levaria a uma
queda nos preos, aumentando a competitividade das mercadorias desse pas em relao s
demais economias mundiais. O inverso deveria acontecer para pases que fossem
superavitrios.
O padro-ouro era uma forma de manter a estabilidade dos nveis de preos entre as
principais economias do mundo usando como referncia o valor do ouro e a quantidade que
cada pas possusse. A validez do padro-ouro foi discutida pelas diversas escolas de
economia, discusso esta que perdura at os dias de hoje. Cada vertente econmica possui
uma tica para analisar a questo do padro-ouro e o modo como este se desenrolou durante
os ltimos trs sculos, desde a mudana para o ouro-libra, ouro-dlar e posteriormente para o
dlar-flexvel. A maior crtica em relao ao padro-ouro como sistema monetrio a questo
de colocar toda a oferta monetria de um pas referenciada por apenas uma commodity, que
est sujeita a mudanas em sua oferta e demanda constantemente. Porm, o abandono do
padro-ouro, em especial o abandono do ouro-dlar e o desmantelamento do acordo de
Bretton Woods em 1971 pelo governo Nixon, colocou a economia mundial em srios
problemas de estabilidade. Pois retirando o lastro em ouro, o balano de pagamentos dos
pases passou a ser equilibrado utilizando majoritariamente reservas em dlar. Como
apontado por Serrano (2002):
No ltimo caso no h mais por que temer uma fuga para o ouro, pois o novo
padro dlar inteiramente inconversvel, baseado na premissa de que um
dlar is as good as one dollar, premissa ancorada no poder do Estado e da economia americana no mundo unipolar ps-guerra fria. Como o dlar o
meio de pagamento internacional e a unidade de conta nos contratos e nos
preos dos mercados internacionais, acaba por se tornar tambm a principal
reserva de valor (SERRANO, 2002, p. 250-251).
20
Desse modo a economia mundial passou a operar atravs de um regime de dlar
flexvel, fator que favoreceu fortemente a situao financeira norte-americana, possibilitando
que os Estado Unidos no perdessem competitividade real. Pois, se ocorresse a valorizao do
dlar, existiria a perda de competitividade, porm como no existe mais restrio externa
devido a no mais conversibilidade de dlar em ouro, o dficit em conta corrente pode
aumentar indefinidamente e ser financiado com os prprios ttulos norte-americanos
(SERRANO, 2002).
Durante o desenrolar da dcada de 1960 e 1970 foram fortes as presses externas pelas
demais economias mundiais para a criao de uma moeda verdadeiramente internacional, mas
isto era algo inaceitvel no momento para os Estados Unidos, pois abrir mo do dlar como
moeda internacional ocasionaria a perda da liberdade do balano de pagamentos norte-
americano e incorreria no enfraquecimento do dlar e do seu prprio poder poltico
mundialmente.
De acordo com Serrano (2002), a transio para o dlar flexvel levou a
desestabilizaes na esfera geopoltica mundial na dcada de 1970, ocasionando a forte
especulao no preo das commodities que resultou nos choques do petrleo. Somente no fim
da dcada e incio dos anos de 1980 que os Estado Unidos voltam a recuperar gradativamente
o poder do sistema monetrio internacional. Os demais pases comeam a partir desse
momento a no mais questionar o poder hegemnico monetrio americano e passam a aceitar
o dlar-flexvel como o novo padro financeiro internacional. Assim, o dlar passou a ser a
moeda central para todas as grandes transaes internacionais. Mas a centralidade de uma
moeda algo, como explicado por Hicks (1989), questionvel:
Centrality and strength do not necessarily go together. Centrality is not
acquired by a decision of the 'central' government, or of its banking system;
it comes from decisions by others, who choose to make the currency of that
country their chief 'international'. No doubt it is unlikely that such a choice
would have been made unless the central currency, at the time it became
central, had been a strong currency; but it could continue to be central,
having no obvious rival, even when it was losing its strength. So there are
several cases which fall to be considered, the chief division being between
those where the strength of the central currency in unquestioned, and those
where it is in doubt (HICKS, 1989, p. 130)9.
9 Traduo nossa: Centralidade e fora no andam necessariamente juntas. Centralidade no adquirida por
uma deciso do governo 'central', ou do seu sistema bancrio; ela vem das decises de outros, que optam por
fazer a moeda daquele pas sua referncia 'internacional'. Sem dvida, improvvel que tal escolha teria sido
feita a menos que a moeda central, no momento em que se tornou central, no tivesse sido uma moeda forte; mas
ela poderia continuar a ser central, no tendo uma rival bvia, mesmo quando estivesse perdendo sua fora.
21
Ora, o dlar foi amplamente aceito pelas demais economias mundiais no apenas pela
imposio subliminar americana, mas porque de fato o dlar era a melhor moeda a ser
utilizada nas ltimas dcadas para funcionar com centralidade.
3.5.2 Viso Austraca
Quando se trata sobre questionamentos em relao ao padro-ouro e mais
recentemente em relao ao dlar-flexvel, a Escola Austraca de Economia trata a questo de
forma polmica. Muitos autores descrevem que o abandono do padro-ouro no foi devido a
sua ineficcia, mas porque ele era eficaz demais na regulao e no controle das aes
governamentais. Apontando que a transio e abandono deste antigo modelo econmico foi
resultado de uma motivao muito mais ideolgica e poltica do que de fato cientfica.
Friedrich Hayek, que foi um defensor do antigo padro-ouro, foi mais alm em relao
s liberdades monetrias do livre mercado e do fim do monoplio do Estado sobre a emisso
de moeda. Em seu livro de Denationalisation of Money, Hayek expe um modelo onde
instituies privadas poderiam emitir suas prprias moedas em um ambiente de concorrncia,
onde cada instituio estaria competindo pela maior estabilidade possvel de sua moeda.
Hayek sempre viu a inflao como um grande problema, por atrapalhar o sistema de livre
mercado. Com o abandono do padro-ouro original e a maior desregulamentao financeira
que decorreu no sculo XX, Hayek desenvolveu a sua teoria de moedas privadas como uma
tentativa de estabelecer um novo modelo monetrio baseado em princpios de livre mercado
onde no fosse mais necessrio o monoplio estatal para a emisso de moedas. Como
explicado pelo autor:
...though there is every reason to mistrust government if not tied to the gold
standard or the like, there is no reason to doubt that private enterprise whose
business depended on succeeding in the attempt could keep stable the value
of a money it issued (HAYEK, 1990, p. 36)10
.
Assim existem vrios casos que podem ser considerados, onde a diviso principal est entre aquelas em que a
fora da moeda central inquestionvel, e aquelas em que existem dvidas.
10 Traduo nossa: ...contudo existem vrias razes para desconfiar do governo se no vinculado ao padro-ouro
ou similar, no h nenhuma razo para duvidar de que empresas privadas cujo negcio depende de seu sucesso
poderiam manter estvel o valor da moeda que emitiram.
22
Como descrito neste trabalho, nas primeiras sees, a posio do governo como nico
emissor de moeda algo inerente histria do capitalismo, posio que evoluiu desde os
primrdios da antiga Ldia at tempos atuais. O que Hayek tentou desenvolver foi a ruptura
deste modelo, apresentando uma forma alternativa de um sistema monetrio. A principal
crtica apresentada pelo autor era a de que o governo um agente facilmente suscetvel ao
favorecimento de grupos de interesses. Desse modo colocar o poder de emitir moeda e
consequentemente as diretrizes econmicas de um pas nas mos de poucos indivduos seria
algo perigoso (HAYEK, 1990, p. 31). Alm disso, Hayek se posiciona contra o conceito da
moeda de curso forado, legal tender, ou seja, onde a moeda utilizada em determinado pas
imposta por lei, alegando que isto funciona como um instrumento que fora as pessoas a
terem que aceitar esta moeda como meio de pagamento, indo contra princpios de contratos
livres e voluntrios entre os indivduos.
Murray Rothbard, tambm membro da Escola Austraca, questionou fortemente o
modelo de moedas privadas de Hayek, afirmando que no existiria razo econmica para que
estas novas moedas fossem aceitas. Rothbard destaca que diferentemente das outras
mercadorias, o dinheiro somente desejado com a finalidade de ser trocado por outras coisas,
funcionando como um meio de troca. Dessa forma se todos os indivduos tivessem a
habilidade de criar moedas privadas dentro da lgica desenvolvida por Hayek, no existiria
motivo para estas moedas serem aceitas, pois ningum ir aceitar uma moeda que no tenha
antes funcionado como dinheiro e tenha sido amplamente utilizada pela sociedade. Isto,
segundo Rothbard, seria uma das falhas de Hayek na elaborao de seu modelo,
negligenciando o teorema de regresso, regression theorem, desenvolvido por Von Mises em
1912. O modelo estabelecido por Mises preconizava que qualquer forma de dinheiro somente
ser aceito pelos indivduos se este tenha sido anteriormente uma commodity, ou a
representao de uma, pois o dinheiro no pode surgir do nada, sem possuir uma base de
valor. Dessa forma, o dinheiro precisaria surgir de uma commodity no-monetria que
possusse algum valor antes de virar dinheiro, como aconteceu com o ouro e a prata
(ROTHBARD, 1985).
A filosofia liberal defende a liberdade econmica do ponto de vista da cooperao
social, ou seja, onde os indivduos atravs da competio catalctica11
acabam por cooperar
mutuamente, sem mesmo perceberam, em prol de um bem maior. A noo de liberdade
11
A funo social da competio catalctica, certamente, no a de estabelecer quem o mais destro, e recompens-lo com ttulos e medalhas. Sua funo garantir a maior satisfao possvel do consumidor numa
dada situao das condies econmicas (MISES, 1987, p. 52).
23
tambm algo importante em seus preceitos. Segundo Ludwig Von Mises, o significado de
liberdade se refere s relaes inter-humanas que seguem as leis da praxeologia, onde o ser
humano comporta-se perante os demais indivduos da sociedade de forma a no prejudicar a
ordem social. Mises, assim como Hayek e demais membros da Escola Austraca, defende a
limitao do poder do Estado sobre os indivduos, como destacado em seu livro O Mercado:
O Estado, o aparato social de coero e compulso, necessariamente um
poder hegemnico. Se o governo tivesse a possibilidade de expandir o seu
poder ad libitum, poderia abolir a economia de mercado e substitu-la por um
socialismo totalitrio onipresente. Para evitar isso, necessrio controlar o
poder do governo (VON MISES, 1987, p. 64).
Mas como ressaltado por Milton Friedman (1985), existe a necessidade de haver um
governo para ditar as regras do jogo e assegurar o cumprimento destas por todos os
participantes da sociedade. A liberdade de um indivduo pode afetar a liberdade de outro,
dessa forma necessrio estabelecer limitaes para manter a ordem social e estas limitaes
devem ser executadas por um rbitro comum e imparcial, que no caso representado pelo
poder da justia do Estado. Como o autor destaca: Por mais atraente que possa o anarquismo
parecer como filosofia, ele no praticvel num mundo de homens imperfeitos
(FRIEDMAN, 1985, p. 32).
Ao contrrio dos argumentos expostos por Hayek, Friedman defende que o governo
deve ser utilizado para manter o sistema monetrio estvel e assegurar uma economia livre,
possuindo responsabilidades sobre as polticas monetrias e fiscais de um pas. Porm, a
possibilidade de controlar o dinheiro proporciona o poder de alterar a economia e isto leva a
questo de como deve ser realizada a concentrao e disperso do poder. Como destacado por
Friedman (1985):
O problema consiste em estabelecer organizaes institucionais que
permitam ao governo exercer a responsabilidade pelo dinheiro limitando ao mesmo tempo o poder assim dado ao governo e evitando que este poder
seja usado de modo a levar ao enfraquecimento em vez de ao fortalecimento uma sociedade livre (FRIEDMAN, 1985, p. 45).
Mesmo dentro da esfera de discusso da Escola Austraca, a questo sobre como o
governo deve abordar as suas funes perante a sociedade variam segundo a concepo de
cada autor, alguns mais extremos que outros. Possivelmente o extremismo nesse gnero
retratado pelos chamados de anarco-capitalistas, tendo como um de seus adeptos David
Director Friedman, ningum menos que o prprio filho de Milton Friedman.
24
David Friedman em seu livro The Machinery of Freedom explora as formas de
como uma sociedade orientada pelo Estado mnimo funcionaria. Segundo ele os anarco-
capitalistas, ou como se autodenominam libertrios, promovem uma sociedade onde cada
indivduo seria livre em fazer suas prprias escolhas, escolhas essas que em uma sociedade
capitalista convencional seriam guiadas pelos interesses do governo. Dessa forma, o anarco-
capitalismo se baseia no princpio da propriedade privada e da total liberdade dos seres
humanos em relao ao modo como desejam viver, contanto que a liberdade de um indivduo
no interfira negativamente na liberdade de outro. Assim, questes como o uso de drogas,
pornografia e at mesmo o uso no compulsrio de cinto de segurana, seria algo totalmente
escolha de cada indivduo da sociedade (FRIEDMAN, 1989).
Como defensores de um sistema de livre mercado aos moldes capitalistas, na
sociedade anarco-capitalista todos os servios seriam fornecidos atravs da competio de
empresas privadas, seja questes como segurana, regulao de leis e at mesmo o sistema
monetrio. O Estado, segundo os preceitos anarco-capitalistas, uma fonte de violncia
desmesurada, pois pode utilizar sua fora contra indivduos que no tenham cometido crimes
ou fraudes. Dessa forma, sempre houve o embate terico entre o libertarismo e o socialismo,
por serem regimes antagnicos. Os pensadores liberais utilizaram de exemplo todos os
preceitos negativos do socialismo desenvolvido durante o sculo XX para demonstrar o quo
prspera em questes de liberdade e desenvolvimento econmico uma sociedade baseada no
Estado mnimo poderia oferecer. Eugen von Bhm-Bawerk em seu livro Teoria da
Explorao do Socialismo Comunismo demonstra que qualquer renda que no fruto do
trabalho, aluguel ou lucro, est em risco de ser uma injustia econmica. Friedrich Hayek em
O Caminho da Servido tambm explorou questes sobre como uma sociedade regida pela
centralizao do poder levaria a um governo tirnico e sujeio dos indivduos.
3.5.3 Moeda privada na Amrica do Norte
Apesar de esquecida no desenrolar histrico do desenvolvimento das Amricas, o
modelo de uma moeda privada, emitida por bancos e sem o controle estatal, vingou por
muitos anos nos Estados Unidos durante o perodo denominado de Free Banking na poca
pr-Guerra de Secesso.
Na regio da Nova Inglaterra, mais precisamente na cidade de Boston, o Suffolk Bank
foi criado com a inteno de trocar notas de bancos menores por notas emitidas por eles,
concebendo uma das primeiras moedas privadas da histria a funcionar com eficcia. Esta foi
25
a soluo encontrada depois de constatado a grande ineficincia das notas emitidas por bancos
menores de outras regies do pas. Como um governo central ainda no estava totalmente
consolidado, vrios bancos espalhados pelo pas tinham o poder de emitir notas bancrias
lastreadas ao ouro guardado em seus cofres. Tendo em vista o caos que permeava o pas
durante aquela poca, saber exatamente qual era o valor em ouro ou prata que uma nota
bancria possua era algo complicado, pois muitos dos bancos emissores estavam em lugares
longnquos. Muitos desses bancos menores emitiam mais notas do que de fato possuam em
ouro, fazendo com que os comerciantes no soubessem ao certo o valor que o dinheiro valia.
Desse modo, o Suffolk Bank nasceu da unio de comerciantes poderosos de Boston
que tinham a inteno de realizar o servio de trocar as notas bancrias dos bancos menores
por suas prprias, inserindo moedas privadas na economia da regio. Como as notas emitidas
pelos bancos menores incorriam em informaes assimtricas em relao ao seu exato valor,
o Suffolk Bank oferecia o servio de troc-las por suas prprias notas bancrias, que eram
consideradas solventes, e reenviar as outras notas de volta aos bancos emissores para
amortizao (ROLNICK; SMITH; WEBER, 2000).
Em resumo o Suffolk Bank pode ser definido como uma central de depsitos de
reservas que realizava a compensao de notas de outros bancos menores, uma espcie de
clearing house. Realizando seu servio, o Sulffolk Bank acabou trazendo um perodo de
estabilidade monetria para a regio da Nova Inglaterra durante os anos em que o banco
operou. Durante a crise de 1837, grande parte das regies norte-americanas sofreu fortemente
com o desemprego, quebra de bancos e preos cadentes. Porm, as regies onde grande parte
das transaes era realizada atravs das moedas privadas do Suffolk Bank superaram a poca
de crise de uma maneira muito mais estvel: In Connecticut in the years following the crisis
of 1837 not one bank failure occurred, nor was there a suspension of specie payments. All
banks were able to continue to redeem their bills at the Suffolk Bank (TRIVOLI, 1979,
p.17)12
.
Durante 35 anos, entre 1823 a 1858, o Suffolk Bank conseguiu manter a estabilidade
monetria da regio de Boston ao mesmo tempo em que foi um banco altamente rentvel. Em
1858 com a ascenso do Bank for Mutual Redemption, um banco concorrente, a situao
operacional do Suffolk Bank comeou a ficar complicada. Alm disso, grande parte do poder
poltico do Estado migrou para outras regies do pas, diminuindo a importncia de Boston
12
Traduo nossa: Em Connecticut, nos anos aps a crise de 1837 nenhuma falncia bancria ocorreu, nem houve suspenso de pagamentos em espcie. Todos os bancos foram capazes de continuar a resgatar suas contas
no Suffolk Bank.
26
sobre as decises econmicas. sabido que o Suffolk Bank tentou de vrias maneiras tirar o
seu concorrente do mercado, at mesmo no honrando notas bancrias de bancos que tinham
depsitos no Bank for Mutual Redemption. Porm, no cenrio de concorrncia estabelecido, o
Suffolk Bank acabou perdendo e parou com as emisses de notas privadas, tornando-se apenas
mais um banco convencional. Poucos anos depois, a Guerra de Secesso teve incio,
paralisando o sistema financeiro norte-americano. Em 1863 foi estabelecido que nenhum
banco poderia emitir moedas privadas, fazendo do governo o detentor do monoplio da
emisso de moedas desde ento (ROTHBARD, 2002).
Rothbard (2002) afirma que o Suffolk Bank se mostrou como um fato legtimo na
histria de que uma moeda privada pode funcionar de forma eficiente, trazendo estabilidade
monetria e segurana em um ambiente de livre concorrncia.
Outro exemplo de moedas privadas funcionando na economia, agora em um perodo
mais recente, se deu no Canad. Em 1983, empresas privadas do ramo de supermercados
comearam a fornecer cupons como desconto quando seus clientes realizavam compras. A
ideia era fazer com que os clientes retornassem ao supermercado para trocar os cupons e
acabassem realizando mais compras. O sistema em si no tinha o objetivo de inserir moedas
privadas na economia como um modelo de negcio, mas as pessoas comearam a tratar os
cupons como se fossem moedas, utilizando-os em outras transaes do cotidiano.
Os cupons representavam valores de Dlares Canadenses e podiam ser trocados por
produtos do supermercado. Como o supermercado esperava que os cupons fossem gastos pelo
seu valor de face, eles operavam com a hiptese de que os produtos trocados pelos cupons
estariam ento sendo vendidos pelo seu preo lquido, o seu valor bruto menos o desconto que
os cupons possibilitavam. Invs de simplesmente oferecer o desconto, o uso de cupons
permitia extrair o excedente dos consumidores conforme os diferentes preos de reserva, alm
de que o desconto somente seria concebido quando os cupons fossem efetivamente gastos,
como nem todos os cupons eram de fato utilizados isso ainda fornecia uma vantagem para o
supermercado.
A rede Steinberg de supermercados, a terceira maior do Canad na poca, comeou o
sistema de cupons em maro de 1983, dando um desconto de 5% nas compras para quem os
utilizasse. Dois dias depois a maior concorrente Provigo, baixou o preo de todos os seus
produtos em 6% para forar a concorrncia. Em seguida a rede Metro Richelieu, segunda
maior do ramo, tambm comeou a conceder 5% de desconto para quem realizasse compras
futuras em suas lojas. Trs meses depois a Steinberg declarou que iria interromper o sistema
de cupons por causa dos prejuzos acumulados devido acirrada concorrncia.
27
Segundo Eichenbaum e Wallace (1985), apesar de uma experincia rpida, o insucesso
do sistema de cupons no se deu porque as pessoas no os utilizaram, mas sim devido
competio dos demais supermercados que realizaram um servio similar, fato que levou a
uma baixa generalizada no preo de todos os produtos, fazendo-os operar em prejuzo.
As pessoas durante o perodo em que os cupons vingaram, comearam a utiliz-los
como um meio de troca para pagar produtos e servios em outros lugares alm do
supermercado Steinberg. Eichenbaum e Wallace (1985) destacam, utilizando como fonte um
artigo de jornal da poca, que os demais comerciantes de regio tambm comearam a aceitar
os cupons do supermercado como meio de pagamento, pois argumentavam que isso ajudava a
atrair alguns clientes que acabavam comprando produtos por possurem os cupons do
Steinberg, que caso contrrio no o fariam. Desse modo, os cupons acabavam por
desempenhar a funo de uma moeda privada, compreendendo suas caractersticas bsicas.
Mesmo em um perodo curto de tempo, a populao da regio entendeu que os cupons
podiam ser utilizados em outras transaes. Pelo fato do supermercado ser um revendedor de
comida uma mercadoria que todos precisam consumir os cupons acabaram por se
popularizar rapidamente, sendo aceitos em farmcias, lojas de discos e em outros
supermercados.
Outra experincia canadense de moeda privada que merece destaque em relao
Canadian Tire Corporation Limited, uma empresa que em 1985 tinha 354 lojas espalhadas
pelo Canad e distribua cupons parecidos com o sistema do supermercado Steinberg, porm
fazia isso desde 1958. Segundo Eichenbaum e Wallace (1985), em 1982 a quantidade de
cupons emitidos pela Canadian Tire somavam 20 milhes de dlares canadenses, algo
equivalente a 34 milhes de dlares americanos a preos atuais13
. Seus cupons eram aceitos
em vrias transaes do cotidiano, servindo at mesmo para situaes casuais como pagar
uma corrida de taxi.
A experincia canadense com cupons demonstrou que a adoo pelo pblico de uma
moeda privada sem a legitimao do governo pode acontecer de maneira natural. O mais
interessante destacado por Eichenbaum e Wallace (1985) que no Canad emitir moedas
privadas ou qualquer tipo de nota representativa de valor sem o consentimento do Estado
contra a lei, porm estas evidncias empricas mostram que aparentemente existe uma
13
Valores fornecidos pelo website Trading Economics. Disponvel em: . Acesso em: 10 mar. 2013.
28
inclinao das pessoas em aceitar outras formas de moedas mesmo que elas no tenham
respaldo governamental.
29
4. PARTE II: O VIRTUAL
4.1 A internet
4.1.1 Surgimento da computao e a internet
O avano tecnolgico originrio da Segunda Revoluo industrial, com a eletrificao,
desenvolvimento de motores e a criao de maquinrios complexos serviram de base para a
elaborao do que mais tarde daria origem ao sistema eletrnico computacional. John
Mauchly e John Presper Eckert so reconhecidos como os criadores do primeiro computador
da histria, o ENIAC (Electronic Numerical Integrator And Computer), que havia sido
concebido atravs de incentivos do exrcito americano durante a Segunda Guerra Mundial. O
ENIAC podia fazer vrios clculos dependendo de como fosse programado, mas foi criado
primariamente para calcular precises de balstica, devido s inclinaes armamentistas do
perodo e de seus patrocinadores. A partir de 1950, a tecnologia dos computadores comeou a
se tornar cada vez mais aprimorada, aumentando em velocidade de processamento e
diminuindo cada vez mais o tamanho fsico do aparelho. Nas dcadas subsequentes j
comearam a aparecer as marcas fabricantes de computadores que conhecemos hoje, como a
Intel com seu modelo de microprocessador Intel 4004.
Neste mesmo perodo, conjuntamente com o avano da computao, a internet
tambm comeou a dar seus primeiros passos. Claro que naquele momento a internet no era
nada se comparado com os padres atuais, tudo comeou com uma mensagem enviada pela
Universidade da Califrnia em Los Angeles (UCLA) para o Instituto de Pesquisa de Stanford
(SRI) atravs da primeira conexo backbone na dcada de 1960. A partir disso, muitas foram
as formas de conexo desenvolvidas nos anos posteriores, chegando a criao da ARPANET
em 1969, que seria o primeiro sistema onde vrias redes podiam se juntar, formando uma
grande rede interconectada. A ampliao de acesso internet comeou na dcada de 1980
quando a agncia americana, National Science Foundation (NSF), desenvolveu a NSFNET,
que tinha o objetivo de interligar setores de pesquisa e educacionais como uma forma de
estimular a troca de conhecimento. Foi no incio dos anos de 1980 que o protocolo TCP/IP,
que uma forma de padronizao dos cdigos de comunicao, se popularizou, facilitando a
conexo entre computadores de diversas partes do mundo.
Foi neste perodo que de fato os computadores comearam a se tornar populares entre
a populao em geral, principalmente com a consolidao de empresas como a Apple
30
Computers e IBM com seus microcomputadores; alm da Microsoft com seu software MS-
DOS (que deu origem posteriormente ao Windows) que permitiu que as pessoas interagissem
com os computadores de uma forma muito mais fcil e intuitiva. A sociedade passou neste
momento a utilizar desta nova ferramenta para as mais diversas funes, desde a elaborao
de diagnsticos mdicos digitalizao dos mercados financeiros. O poder de clculo dos
computadores forneceu uma base de raciocnio mais exata e socialmente aceita como correta
do que os clculos realizados pelo crebro humano. Dessa forma, a resposta fornecida por um
computador passou a se tornar a verdade a ser aceita. Como teorizado por Postman (1993), o
mundo e principalmente a sociedade norte-americana passou durante o sculo XX para um
modelo centrado na tecnologia, fenmeno que o autor chamou de Technopoly, onde os valores
da sociedade se tornam orientados e validados atravs dos dizeres da tecnologia.
A partir dos anos de 1990, as restries por parte do governo em relao ao uso da
internet comearam a ceder dando espao para uso comercial da rede. Os antigos rgos
responsveis pelo nascimento da internet foram desmantelados, como a ARPANET e o
NSFNET, dando espao para empresas do setor privado entrarem no segmento. Assim, nos
anos que se seguiram, a internet acabou resultando em uma revoluo na comunicao,
cultura, poltica e economia do mundo. Com o aumento da rede em escala global, o ambiente
virtual da internet se tornou um local aberto, sem grandes regulaes, permitindo o uso e
acesso de qualquer indivduo ao redor do mundo.
O avano que a computao proporcionou mudou totalmente os paradigmas sociais
em que o mundo se estabelecia. A maior facilidade em resolver clculos complexos e a maior
quantidade de informao disponvel aos indivduos marcou a mudana de como os seres
humanos se comportavam em relao certeza sobre as coisas. A viso sobre o computador
como um crebro pensante, sempre correto, transformou a sociedade, ampliando
possibilidades e diminuindo outras. A computao tem possibilitado o desenvolvimento tanto
das cincias quanto de novas tecnologias e at certo ponto do bem estar dos seres humanos.
Como apontado por Benkler (2006), o avano da informtica permitiu a
descentralizao e distribuio de funes de uma maneira muito mais abrangente em
comparao com os sistemas industriais do sculo passado:
What characterizes the networked information economy is that decentralized
individual action specically, new and important cooperative and coordinate action carried out through radically distributed, nonmarket
mechanisms that do not depend on proprietary strategies plays a much
31
greater role than it did, or could have, in the industrial information economy
(BENKLER, 2006, p. 3).14
O declnio do preo dos computadores e meios de comunicao permitiu a utilizao dessas
tecnologias por uma frao significativa da populao mundial, possibilitando a transio da
era industrial para a era da informao. Como explicado por Rosnay (1999), o mundo passou
de uma sociedade industrial para uma sociedade informacional e agora os antigos pilares
trabalhistas so outros. Os valores referentes ao local de trabalho, a funo desempenhada e
tempo acabam por se tornar obsoletos na sociedade informacional. Existe uma tendncia
dos poderes hierrquicos no servirem mais como referncia, a sociedade nascente organiza-
se antes em redes do que em pirmides de poder (ROSNAY 1999, p. 52). Esta nova evoluo
leva a conflitos por se tratar de uma nova sistemtica, os que ainda pensam no antigo modelo
pr-informtica possuem dificuldade em lidar com as questes burocrticas que envolvem
este novo fenmeno. As mudanas na forma como as relaes se desenvolvem na sociedade
informacional acaba por causar confuso na esfera poltica e Estatal por se tratar de um
paradigma diferente ao at ento dominante modelo industrial. As caractersticas do novo
espao econmico, social e cultural imaterial, chamado de ciberespao, no se enquadram
nas anlises dos que vivem e raciocinam conforme o antigo modelo. Eles no as enxergam. O
sculo XXI ser da complexidade (ROSNAY, 1999, p. 53).
4.1.2 Digitalizao dos mercados financeiros
Assim como outras esferas da vida contempornea se tornaram digitais, seja no
processo industrial, desenvolvimento cientfico e meios de comunicao, o sistema financeiro
mundial tambm evoluiu para modelos eletrnicos. Segundo White (1997), a digitalizao dos
mercados financeiros foi caracterizada mais como uma evoluo do que uma revoluo, pois
apesar de possibilitar uma maior rapidez nas transaes financeiras, o modelo de
compensao entre contas bancrias continuou o mesmo. As compensaes entre contas
realizadas por um pedao de papel ou atravs de uma transao eletrnica possuem em si o
mesmo modelo econmico, somente o mtodo que se tornou mais rpido. Alm disso,
transaes entre contas e entre bancos sem a necessidade da transao fsica j era realizada
14
Traduo nossa: O que caracteriza a economia da informao em rede que a ao individual descentralizada - mais especificamente, a nova e importante ao cooperativa e coordenada realizada atravs de mecanismos no
mercantis radicalmente distribudos, que no dependem de estratgias privadas - desempenham um papel muito
maior do que faziam, ou poderiam fazer, na economia de informao industrial.
32
desde que o telgrafo se tornou popular. A verdadeira mudana que a computao e a
digitalizao dos mercados trouxeram como novo foi a grande reduo nos custos das
transaes.
A evoluo para o sistema financeiro eletrnico chegou a um patamar onde a maior
parte do dinheiro nacional (ex: Dlar, Real, Euro, etc.) em circulao na verdade digital. As
moedas e papis-moedas representam apenas uma pequena parte da base monetria. J em
1996, em pases em que o uso de dinheiro eletrnico j era amplamente utilizado, como nos
Estados Unidos, o valor de M115
j era composto majoritariamente por dinheiro eletrnico
(BERNKOPF, 1996). A ampliao do uso de cartes de crdito e o aumento da utilizao da
internet para pagamentos, compras e transaes eletrnicas, levaram a uma diminuio da
demanda pelo papel-moeda e moeda metlica. O que ocorre ento a maior utilizao direta
dos depsitos vista nos bancos comerciais atravs do uso dos cartes de crdito/dbito ou
transaes via internet.
Novas formas de transaes comearam a emergir com o avano tecnolgico e
advento da internet. Empresas privadas desenvolveram servios financeiros que facilitaram a
negociao tanto no mercado de ttulos quanto no mercado de aes e derivativos. A criao
de plataformas de negociaes online que permitem qualquer pessoa de qualquer parte do
mundo, que possua um computador e uma conexo com a internet, de negociar em bolsas de
valores, ao mesmo tempo em que aumenta a facilidade e velocidade dos negcios tambm trs
a no mais necessidade de uma representao fsica no floor das bolsas para a realizao dos
contratos viva-voz.
A criao de sistemas como o Paypal, desenvolvido por Elon Musk e Peter Thiel, que
funcionam como uma carteira virtual onde o usurio pode enviar dlares ou outras moedas
nacionais e utiliz-las em vrios websites para realizar compras, efetuar transaes e receb-
las, possibilitou um aumento no e-commerce global nos ltimos anos. Por funcionar de forma
prtica, esses sistemas tornaram as transaes entre agentes econmicos muito mais rpidas e
seguras, sendo uma alternativa ao uso de cartes de crdito, onde o usurio era obrigado a
fornecer as informaes do carto para cada website onde realizasse alguma negociao.
Alguns autores j apontam que os bancos centrais esto olhando para a questo do
dinheiro eletrnico com uma viso precavida, pois existem hipteses de que o uso massivo de
dinheiro eletrnico e a utilizao de moedas virtuais, que ser tratada nas sees posteriores
15
A quantidade total de M0 (dinheiro/moeda) fora do sistema bancrio privado, acrescido do montante dos
depsitos vista, cheques de viagem e outros depsitos.
33
deste trabalho, implicariam na perda do controle sobre polticas monetrias e poderiam levar a
alteraes nas taxas de cmbio internacionais (BERENTSEN, 1997). Se as pessoas de fato
adotassem formas alternativas como meio de pagamento, mecanismos parte do sistema
bancrio, os bancos perderiam competitividade no mercado e pressionariam os bancos
centrais a abaixar os valores dos depsitos compulsrios a fim de manter o sistema
competitivo.
4.1.3 Comunidades e Fruns
Foi dentro deste ambiente virtual criado pela juno entre a computao e a internet
que novas formas de organizaes sociais comearam a emergir. A possibilidade de se
comunicar com pessoas ao redor do mundo e trocar informaes levaram ao estabelecimento
de uma comunidade virtual, comunidade esta que no possui fronteiras geogrficas ou
polticas, diferentemente do conceito original de comunidade referenciado por uma cidade,
bairro ou vila.
Devido facilidade de comunicao ao redor do mundo, na comunidade virtual as
pessoas comearam a se agrupar e discutir contedos e informaes de seu interesse,
possibilitando a gerao de conhecimentos especficos ao aproximar pessoas de distintas
culturas e pases que jamais teriam a possibilidade de se reunirem fisicamente para a
discusso de ideias. Dessa forma, alm de apenas funcionar como divulgao de
conhecimento, o ambiente virtual leva criao de novos conceitos e possibilita o avano