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BIOÉTICA
DELIMITAÇÕES PROTETORAS DA VIDA
Prof. Dr. Nilo Agostini
Texto publicado na Revista Internacional de Teologia e Cultura
Communio, fasc. 87, 2003, p. 137-158.
Introdução
Cresce em nossos dias, a consciência de que necessitamos de uma “ética
da vida”, ou seja, de uma bio-ética. Isto se faz sentir quando nos colocamos diante
do valor da vida humana, bem como quando nos deparamos com o valor de todas
as formas de vida sobre a face da terra.
Diante dos numerosos desafios que daí surgem, sentimos a urgência de
resgatar a ética “enquanto referência à capacidade humana de ordenar as
relações a favor de uma vida digna”1. Sentimos a imperiosa necessidade de
redescobrir a ética e auscultar os caminhos que ela vai nos apontar; isto nos
permitirá alcançar os fins que necessitamos, sem desconsiderar o passado em
seus valores éticos fundamentais2. Igualmente, nos lançaremos numa incessante
busca do sentido da vida em meio aos sempre novos desafios da história, em
suas mutações constantes e em sua realidade multifacetária.
A bioética está se transformando, hoje, num campo indispensável de
reflexão e de ação, pois contém uma “finalidade ética própria que é a de
1 Cf. MORAES, Regis de, Ética e vida social contemporânea, Tempo e Presença, n. 263, maio/junho de 1992, p. 5. 2 Cf. CNBB - XXXI Assembléia Geral. Ética: Pessoa e Sociedade, SEDOC 26 (1993), n. 1-37, p. 41-74.
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salvaguardar o bem e promover a melhoria da realidade global humano-sócio-
ecológica”3. Como vemos, o campo é bastante vasto e já entrevemos numerosos
desafios.
O nosso intento será o de delimitar o campo para erigir uma ética da vida.
“A constituição de uma ética visa à definição autorizada de delimitações protetoras
do consenso, bem como a promoção de valores, de normas e de significantes
geradores de mobilização e de adesão”.4 Busca proteger o ser humano e a
sociedade das malhas do arbítrio; salva-os da absolutização do que é apenas
“relativo”, da inflação do autoritarismo, das visões míopes, dos discursos
esclerosados, da domesticação do “outro” e da cegueira ideológica.
A ética vem aqui acrescida da iluminação da fé na experiência cristã. Traz
preciosas contribuições que brotam de sua visão de fé, à luz da Revelação cristã,
explicitadas de maneira autorizada pelo Magistério da Igreja, buscando, com isso,
orientar o comportamento humano. Daí brota uma contribuição para toda a ética
humana e social, com aportes para a bioética, apontados por Elio Sgreccia com os
seguintes termos: “O valor fundamental da vida, o valor transcendente da pessoa,
a concepção integral da pessoa – que é como uma síntese unitária de valores
físicos, psicológicos e espirituais –, a relação de prioridade e de
complementaridade entre pessoa e sociedade, e uma concepção personalista e
de comunhão do amor conjugal”5.
1. Questões preliminares
Damo-nos conta que o campo da bioética é muito amplo. Nele
encontramos, igualmente, uma pluralidade de abordagens. Cabe discutir e
3 RUBIO, Miguel, Que és moralmente factible? Posibilidades y limites de la “tecnociencia”, Moralia, XXIV (2001/4), p. 399. 4 QUELQUEJEU, Bernard, Éthos historiques et normes éthiques, in: Bernard LAURET et François REFOULÉ (dir.), Initiation à la pratique de la théologie, Tomo IV: Éthique, Paris: Cerf, 1983, p. 79. 5 SGRECCIA, Elio, Manual de Beioética, vol. I: Fundamentos e ética biomédica, São Paulo: Loyola, 1996, p. 47.
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examinar as mais diferentes impostações para chegar a um consenso, caminho
este que necessita ser melhor percorrido e aprofundado.
1.1. Extensão do campo de reflexão
O desenvolvimento das ciências biomédicas, acrescido das descobertas da
biogenética, coloca em nossas mãos tecnologias nunca vistas, representando
possibilidades novas de intervir nos processos da vida. São possibilidades de
diagnósticos pré-natais, reanimações várias, eutanásia, clonagem reprodutiva,
fecundação in vitro, testes genéticos, pesquisa em embriões, xenotransplantes,
cultivo de células-troco, bancos de células etc. Questões totalmente novas se
apresentam. Como promover a humanidade sem extrapolações? Quais são as
delimitações a favor da vida?
Abre-se, assim, dentro da ética um novo capítulo, o da bioética. O termo
aparece em 1970 no artigo Bioethics, the Science of Survival6 e, em 1971, volta a
ser utilizado no livro Bioethics: bridge to the future7, ambos de Van Rensselaer
Potter. Outros centros logo ou concomitantemente procuram responder às
mesmas preocupações. Estados Unidos e Canadá, Europa e América Latina
assistem a uma verdadeira explosão das pesquisas em ética das ciências da vida
e da saúde8. Com extrema rapidez, a bioética conquista os noticiários, as
manchetes dos jornais, a televisão, multiplicando-se as mesas redondas, os
grupos de estudos, o incentivo às pesquisas. Sessões de debates, congressos,
conferências, simpósios se multiplicam por toda parte. Protocolos,
recomendações, códigos, declarações emanam de todos os quadrantes.
6 Cf. POTTER, Van Renselaer, Bioethics, the Science of Survival, Perspectives in Biology and Medicine, 14 (1970), p. 127-153. 7 Cf. IDEM, Bioetics: bridge to the future, Biological science series, Englewood Cliffs, New Jersey, Prentice Hall Inc., 1971, 205 p. 8 Cf. BONÉ, Edouard, Trente ans de réflexion bioéthique: pluralisme et consensus, Révue théologique de Louvain, 32 (2001), p. 479-512.
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Por um lado, vemos estabelecer-se um largo espectro de posicionamentos,
num pluralismo amplo, por vezes contraditório. Por outro lado, buscam-se bases
para o estabelecimento de um consenso ainda a construir.
Van Rensselaer Potter, ao criar o vocábulo bioética, ensejava a utilização
das ciências biomédicas para melhorar a qualidade de vida, numa perspectiva
bem otimista. Se grandes eram os progressos daqueles anos, a consciência dos
anos do pós-guerra tinha alertado a humanidade para a necessidade de uma
regulação social da utilização das ciências, com a finalidade de proteger o ser
humano de qualquer utilização arbitrária, muitas vezes tornado simples objeto de
experiências hoje reprovadas.
A bioética aciona interdisciplinarmente os saberes, suscita abordagens que
vão do micro-social ao marco-social, repercute sobre escalas de valores do
passado, do presente e do futuro. A questão de fundo é sempre quais são as
condições para uma gestão responsável da vida e da pessoa humana diante de
tão grande gama de complexos saberes e técnicas biomedicais. Abriu-se um novo
e amplo campo de reflexão e de responsabilidade humana. Não podemos sem
mais ceder às ondas de poderes e interesses que se estabelecem tendo em vista
apenas os sucessos da tecno-ciência, seus lucros ou novas formas de
manipulação.
Urge exprimir claramente a vontade de um “domínio”, de uma “gestão”
responsável da evolução dos saberes biotecnológicos e medicais em curso. Isto já
está sendo buscado em três níveis: num diálogo permanente, numa reflexão
interdisciplinar e em comissões éticas de exame e controle. Estes três níveis ou
dimensões estão na base da formação de órgãos de regulação (comissões
médicas) e de órgãos de reflexão (comitês nacionais, centros de estudo,
sociedades). Neles são analisados os problemas ético-morais suscitados no
campo da medicina e da saúde pelo desenvolvimento das ciências e tecnologias
biomédicas, são assumidos posicionamentos, são emitidos conselhos às
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autoridades competentes, são subsidiadas aprovações de leis e disposições
várias, é informada a comunidade etc. Um fato muito característico é a
emergência da sociedade civil nesta busca e neste debate com todo o arco
pluralista de ciências, ideologias, religiões que sabemos ser-lhe próprio. Todos
sentem-se inseridos no debate bioético.
A preocupação bioética está sensibilizando os profissionais das mais
diversas áreas. Sua formação está progressivamente recebendo doses cada vez
maiores de informações relativas às questões de bioética. Programas
universitários, cursos variados, seminários, módulos, trabalhos intensivos,
mestrados, doutorados em bioética já estão sendo oferecidos em várias partes.
1.2. Pluralismo e consenso
Damo-nos conta da imensidade deste campo novo que é a bioética.
Interrogações novas e acréscimos incessantes não param de fazer-se presente. A
questão hoje é se todo este fervilhar chegará a algum consenso ou permanecerá
pluralista. Não raro, saltam aos nossos olhos discordâncias, oposições,
reticências, reservas, contradições, num cenário que por vezes parece ser o de
uma “cacofonia bioética”. Um exemplo disso é o estatuto do embrião; enquanto
alguns falam de personificação imediata, outros reconhecem-na de maneira
diferenciada e até díspare; o mesmo acontece com relação à eutanásia, à
interrupção voluntária da gravidez (aborto); até entre as religiões, as posições não
formam um consenso real.
Por que há esta falta de unanimidade? Observamos, inicialmente, que “a
bioética constrói-se a partir de uma colaboração interdisciplinar...; sua formulação
gradual não é o privilégio de especialistas da filosofia ou da teologia moral. Ela
requer o investimento de numerosos responsáveis, detentores de competências,
de experiências e de saberes profissionais diversos: ao lado dos ‘eticistas’
propriamente ditos, encontramos médicos, juristas, biólogos, políticos,
6
economistas, psicólogos....”9. Os interlocutores são os mais variados e seus
pontos de vista também. Além disso, se podemos elencar alguns princípios gerais
para uma postura moral, múltiplos são os costumes locais e seus hábitos próprios,
dando origem a tradições por vezes tão diferentes quanto díspares nesta matéria
ainda tão nova.
Mesmo assim, vão se abrindo caminhos para um consenso neste debate
que apenas começou10. Vejamos alguns pontos de consenso:
• É comum a preocupação pelo respeito da pessoa humana e sua
dignidade. O cuidado, neste ponto, é sempre o de colocar a pessoa
como fim e nunca como um meio.
• Acrescentam-se critérios como liberdade e solidariedade.
• Adota-se o consentimento e a autodeterminação.
• Defende-se o segredo ou a confidencialidade.
• Aponta-se para o princípio da benevolência.
• Assume-se a necessidade da justa repartição dos recursos.
• Sabe-se do direito de informação por parte do paciente etc.
• Para os cristãos, as referências a Jesus Cristo e às Sagradas
Escrituras são centrais e comuns; todos os que crêem num Deus
único manifestam uma estima e um respeito particulares pela obra
mais eminente dentre as criaturas, ou seja, a pessoa humana; os
católicos acrescentam, entre os referenciais, o ensinamento do
Magistério da Igreja e da Tradição, o recurso à lei natural e aos
valores enunciados pelas normas morais.
Dentro do cenário das Igrejas11, católicos e ortodoxos estão próximos
quando está em jogo o início da vida, defendendo uma posição firme em favor da
9 Ibidem, p. 503. 10 Cf. ibidem, p. 507. 11 Cf. ibidem, p. 506-507; cf. QUÉRÉ, France, L’éthique et la vie, Paris: Odile Jacob, 1992, p. 330ss.; cf. FABRI DOS ANJOS, Márcio, Bioética e Teologia: janelas e interpelações, Perspectiva Teológica, 33 (2001), 13-31.
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vida humana desde o primeiro instante da fecundação. A posição protestante é
diversa, abrigando posicionamentos múltiplos. O Islã traz consigo a desconfortável
situação de uma cultura ainda distante no passado para realidades e desafios bem
modernos. O Judaísmo interpreta de maneira mais liberal a Torá e,
conseqüentemente, assume posições menos fixas (mais liberalizantes) em relação
ao aborto, fecundações artificiais, experimentação embrionária, clonagem
terapêutica e mesmo reprodutiva.
Entre o pluralismo e o consenso! É assim que nos encontramos após pouco
mais de 30 anos da criação do neologismo “bioética”. Muitos são os pontos em
que o consenso se dá, como vimos acima. No entanto, há ainda uma grande
diversidade e mesmo disparidade de posturas. Cremos que, com o tempo, será
possível uma maior convergência à medida que o debate bioético ganha terreno e
se mundializa. No entanto, num aspecto preciso – o início e o fim da vida – as
posições e as legislações permanecem pluralistas, com as mais diversas
conseqüências. Temos, para o início da vida, posicionamentos diversos e mesmo
díspares, sobretudo quando se trata da interrupção da gravidez, por um lado, e a
utilização das células-tronco para o cultivo de tecidos e órgãos, por outro lado. No
tocante ao fim da vida, assistimos igualmente a situações as mais diversas, por
exemplo, suspensão de tratamento, eutanásia e suicídio assistido, com
legislações que vão progressivamente despenalizando tais práticas.
2. O paradigma bioético: a organização de um vasto campo do saber
Fala-se, hoje, da caminhada que está sendo feita no sentido de um “grande
projeto de universalização e de moralização..., avançando através do inevitável
pluralismo das opções particulares em direção a um gradual consenso
concernente aos valores essenciais”12. Para isto, urge organizar o campo da
bioética, reunir e identificar os grandes desafios, aprofundar nossa compreensão
dos problemas e lançar-nos em busca das respostas adequadas e perspicazes.
12 BONÉ, Edouard, op. cit., p. 511.
8
2.1. As questões de fronteira
A biotecnologia abre hoje campos que até pouco tempo faziam parte
apenas da fantasia ou do sonho humanos. O desenvolvimento dos conhecimentos
relativos à engenharia genética, ligados aos da biologia molecular, abrem campos
de intervenção inauditos até há pouco tempo. Por um lado, vislumbramos
horizontes fascinantes; por outro lado, entrevemos desafios novos e problemas
diversos. Isto é, sobretudo, premente quando chegamos a intervir não só sobre o
ser humano, mas em especial sobre as células germinais humanas.
Detemos os conhecimentos para intervir nos conteúdos do programa
genético. O projeto genoma humano13, com o seqüenciamento do código genético,
está possibilitando um grande salto neste sentido, pois permite a leitura do código
genético e posterior intervenção sobre o conteúdo do mesmo. Chegamos à
possibilidade de manipular as informações genéticas e de transformá-las.
Interrogações, porém, não faltam. Os desafios éticos são numerosos. A missão do
ser humano ante tal conhecimento precisa ser respaldada por delimitações a favor
da vida. No dizer de Dionigi Tettamanzi, “nasce uma nova forma de medo”, para
lançar a seguinte perguntar sobre o amanhã: “O homem será ainda o mesmo?”14
Reconhece João Paulo II que “a descoberta progressiva do código genético
e os conhecimentos sempre mais detalhados sobre o ordenamento do genoma
apontam para um progresso dos conhecimentos científicos que suscita um
justificado assombro”15.
13 AGOSTINI, Nilo, Genoma humano: implicações éticas, in Ética cristã e desafios atuais, Petrópolis: Editora Vozes, 2002, p. 181-199. 14 TETTAMANZI, Dionigi, Bioetica. Nuove frontiere per l’uomo, IIª edizione riveduta e ampliata, Casale Monferrato: PIEMME, 1990, p. 10. 15 JOÃO PAULO II. “Discorso all’Assemblea plenária della Pontifícia accademia delle scienze (28/10/1994), L’Osservatore Romano, 24 (1994), p. 7.
9
Reconhecemos que o desenvolvimento das ciências, sobretudo no campo
da biotecnologia, em especial da genética humana e da biomedicina, trazem
muitas esperanças para o tratamento de doenças, abrem novas expectativas.
Mesmo assim, suscitam medo. Não faltam interrogações. Faz-se necessário
acionar a ética, a fim de responder com adequação às grandes interrogações que
surgem no campo médico, científico e na atual pesquisa. Urge acionar a bioética,
enquanto “estudo sistemático do comportamento humano no campo das ciências
da vida e do cuidado da saúde, enquanto este comportamento é examinado à luz
dos valores e dos princípios morais”16.
O desenvolvimento da bioética representa, neste campo, um significativo
movimento de pensamento e de ação. Reúne especialistas das mais diversas
áreas da atuação humana com a finalidade de captar os problemas surgidos com
os avanços das pesquisas tecnológicas; isto deveria determinar as escolhas que
se fazem urgentes e não aceitar passivamente direcionamentos vários, muitos dos
quais atentam contra a vida humana. Não há como fugir dos aspectos éticos das
decisões que devem ser assumidas. Não basta competência técnico-científica; os
conhecimentos chegarão a ser devidamente aplicados a favor da vida se forem
fundados na ética. Esta tem, por sua vez, como critério básico a promoção da
dignidade do ser humano, enquanto acolhido em sua plena verdade, na unidade
do seu ser, numa visão integral.
No caso do médico, por exemplo, a escolha fundamental sempre foi a de
“proteger e servir” a vida. Encontramos isto muito bem expresso no Juramento de
Hipócrates e na Declaração de Genebra. Vejamos os textos:
“Aplicarei os regimes para o bem do doente, segundo o meu poder e
entendimento, nunca para causar dano ou mal a alguém. A ninguém darei
por comprazer nem remédio mortal nem conselho que induza à perda. Do
16 Encyclopedia of Bioethics, New York, 1978; cf. TETTAMANZI, Dionigi, op. cit., p. 12.
10
mesmo modo, não darei a nenhuma mulher uma substância abortiva”
(Juramento de Hipócrates, 460-337 a.C.).
“Eu me comprometo solenemente a consagrar toda a minha vida ao serviço
da humanidade... Exercerei a minha profissão com consciência e
dignidade... A saúde do meu paciente será a minha primeira preocupação...
Mostrarei o máximo respeito pela vida humana, desde o momento da sua
concepção” (Declaração de Genebra, 1948).
Desde o início dos anos 70, do século XX, quando se usou pela primeira
vez o termo bioética, ficou clara a urgência de acompanhar as questões oriundas
do progresso científico e tecnológico. As questões atinentes ao início e ao fim da
vida humana foram as que mereceram imediata atenção. O olhar incidia e incide
fortemente sobre os procedimentos advindos da engenharia genética, da
reprodução humana assistida (inseminação artificial, fecundação artificial,
clonagem etc) e das questões surgidas ante a eutanásia, a esterilização, os
transplantes de órgãos, o aborto etc. Como vemos, muitos são os dilemas
decorrentes do desenvolvimento das ciências que necessitam ser acompanhados
eticamente. Assim, tomou corpo dentro da ética todo um campo chamado de
bioética de fronteira, com a finalidade de tratar das situações-limite, suscitadas
pelo avanço das ciências.
2.2. As questões do cotidiano
Não demorou que a consciência ética se sentisse tocada não só pelas
questões e/ou dilemas provindos dos avanços biotecnológicos, numa bioética de
fronteira, mas também por aquelas questões atinentes ao cotidiano da vida das
pessoas. Chegamos a elaborar e a incluir esta abordagem no final dos anos 80 e
início dos anos 90 do século passado. Isto equivale a dizer que a bioética tem por
missão cobrir com o seu olhar atento a globalidade da vida humana em todas as
suas etapas. A “qualidade da vida” já nascida, no decorrer de todo o seu
11
crescimento e desenvolvimento, torna-se, a partir de então, outro campo
fundamental para a bioética.
Amplia-se, assim, o campo do paradigma bioético, passando a assumir
igualmente as questões do cotidiano da vida das pessoas. Esta bioética do
cotidiano prima pelo respeito à vida, buscando defender condições compatíveis à
dignidade da pessoa humana. Especial desafio provém das condições de vida das
populações mais carentes, sobretudo da dura realidade da fome e da miséria.
Esta costuma conjugar-se com a precariedade nas áreas da saúde, saneamento
básico, água, alimentação, habitação, educação, trabalho, segurança... Somam-se
questões oriundas das várias faces da discriminação (social, racial, de gênero
etc), do submundo das drogas, da violência, do desemprego etc.
Uma bioética do cotidiano identifica que tais situações não são uma mera
fatalidade, como afirma claramente o Pontifício Conselho “Cor Unum”, quando
trata da fome no mundo17. Faz-se necessário ir às causas, que são de ordem
econômica, sócio-cultural e política. Identificam-se verdadeiras “estruturas de
pecado”, sobretudo quando se perde de vista o bem comum, caindo-se “na busca
exclusiva e, por vezes, exacerbada dos bens particulares como o dinheiro, o poder
e a reputação, considerados como absolutos e buscados por si próprios, ou seja,
como ídolos”18.
Tais estruturas permeadas pelo pecado desviam a finalidade dos bens da
terra que, segundo a vontade do Criador, estão destinados a todos. Dobrar-se
diante destes bens, adorá-los, erigi-los como um absoluto em si mesmos, afugenta
o amor, destrói a fraternidade, compromete a convivência pacífica sobre a Terra,
atenta contra a dignidade da pessoa humana, destrói a vida. “A absolutização das
riquezas priva-as total ou parcialmente da sua utilidade para o bem comum”19.
17 Cf. PONTIFÍCIO CONSELHO “COR UNUM”, A fome no mundo - Um desafio para todos: o desenvolvimento solidário, col. “Documentos Pontifícios” n° 272, Petrópolis: Editora Vozes, 1997. 18 Ibidem, p. 45. 19 Ibidem, p. 47.
12
Importa reverter tal situação, erigindo “estruturas do bem comum”, que
semeiem a “civilização do amor”. Isto se realiza “quando grupos de homens
conseguem trabalhar em conjunto, de maneira a ter em conta o serviço de toda a
coletividade e de cada uma das pessoas, alcançando-se notáveis resultados:
pessoas até então pouco úteis passam a surpreender pela qualidade dos seus
próprios serviços; um efeito positivo modifica progressivamente as condições
materiais, psicológicas e morais da vida”20.
2.3. O desafio ecológico
Durante a década de 90, do século XX, cresceu a consciência do desafio
ecológico. Este passa igualmente a fazer parte da bioética, fato resultante da
crescente consciência do compromisso ético do ser humano face à natureza ante
o aumento de sua intervenção depredadora. O horizonte bioético capta a interação
ser humano-natureza, bem como a inclusão de todos os seres vivos e não vivos
como parte de uma criação na qual tudo se relaciona e se inclui.
Nesta interação, o ser humano tem um papel de destaque no concerto da
criação; isto lhe é próprio pela sua capacidade cognitiva, pela sua capacidade de
escolher alternativas (demográficas, nutricionais, epidemiológicas, de estruturação
social etc), pela sua capacidade de aprender com a vida e a história. Além disso, o
ser humano destaca-se pela sua capacidade de entrar na cadeia ecológica quer
numa atitude participante/humanizadora quer numa atitude
intervencionista/depredadora21.
O desafio ecológico aponta, em nossos dias, para uma crise do próprio
“homem moderno”. Verificamos uma crise que revela uma ruptura no próprio ser
20 Ibidem, p. 47-48. 21 Cf. AGOSTINI, Nilo, A crise ecológica: o ser humano em questão - Atualidade da proposta franciscana, in SILVA MOREIRA, Alberto da, Herança Franciscana, Petrópolis: Editora Vozes, 1996, p. 223-255.
13
humano, entre o que ele constitui enquanto corpo (natureza, cosmos, ‘criação’) e
enquanto espírito (este ligado à ‘redenção’). Perdemos o senso da experiência
semita que entendia o ser humano como uma totalidade unitária, para soçobrar
numa visão ‘fissurada’, na qual a natureza é concebida como “aquilo que pode ser
conhecido e objetivado experimentalmente, manipulado e utilizado
tecnicamente”22. Isto acaba nos levando ao nó da crise que é a intervenção
depredadora do ser humano ante a realidade (limitada) da Terra. O processo
acaba sendo de ‘desnaturação’ e de ‘desumanização’, assim descrito pelo teólogo
Gérard Siegwalt:
“Em vez de ser cultivada (toda cultura é sempre primeiro cultura da
natureza), a natureza é explorada; em vez de ser respeitada (‘cultura’ vem
da mesma raiz de ‘cultus’: ‘colere’ que significa ao mesmo tempo cultivar e
honrar, respeitar) em sua identidade, (...) ela é reduzida à sua
funcionalidade; em vez de ser aceita como realidade ambivalente de vida e
de morte, em vez de ser ‘compreendida’, isto é, apreendida em sua unidade
e cultivada porque contida nesta unidade, ela é forçada, dissecada,
analisada e tratada como um agregado de elementos e não como um
todo”23.
Há uma correlação entre a crise ecológica e a crise do ser humano. Uma
remete para a outra, na medida em que ambas remetem a esta separação, a este
racha ou fissura entre a natureza e o ser humano. “Ligadas no seu princípio, elas
não encontrarão a solução a não ser juntas. Qualquer terapêutica buscada para
curar uma delas deverá também contribuir para sanar a outra; caso contrário,
tratar-se-á de uma pseudoterapia que cuida dos sintomas e não trata das causas.
A doença consiste justamente na separação entre o ser humano e a natureza, no
22 SIMON, René, citado por SIEGWALT, Gerard, L’université, les sciences et la théologie: Un projet de dialogue interdisciplinaire, in IDEM (dir.), La nature a-t-elle um sens? Civilisation technologique et conscience chrétienne devant l’ inquiétude écologique, Strasbourg: CERIT, 1980, p. 11. 23 Ibidem.
14
esquecimento de seu parentesco e solidariedade. Pelo fato do ser humano
participar da natureza, ele peca contra ele mesmo ao pecar contra ela”24.
3. A contribuição da ética cristã
Não basta descrever apenas o que se “faz” no campo da bioética. Importa
apontar para o que se “deve” fazer, na direção de valores objetivos, universais e
perenes. Isto só será possível se o “objeto da ética for não só os valores do
homem, mas o valor que é o homem como tal”25. O cristão sente-se coadjuvado,
neste intento, pela razão, porém sempre iluminada pela fé. A ética cristã não se
atém a uma reflexão apenas racional ou filosófica; abre-se à sabedoria revelada
por Deus, presente na Sagrada Escritura, sedimentada na Tradição, verbalizada
na palavra autorizada do Magistério e proposta nos valores das normas morais.
3.1. Por uma visão integral
Para uma abordagem séria da bioética requer-se uma unidade de fundo
advinda de uma antropologia integral do humano, ou seja, “uma visão do homem-
pessoa na globalidade e unidade de componentes, aspectos, dimensões, valores,
exigências: é esta antropologia o fundamento, a medida, o critério, a força para a
solução que é proposta acerca dos mais diversos problemas de bioética”26. E,
nesta visão integral, a ética “não é um elemento marginal e extrinsecamente
justaposto à pessoa humana. Constitui, antes, um elemento essencial e estrutural
de seu mesmo ser, enquanto a pessoa se define como ser ‘significativo’ e
‘responsável’, ou seja, como ser que possui estampado indelevelmente dentro de
si um ‘significado’ (logos, ordo) próprio (...) e que é chamado a realizá-lo pela e
mediante a sua ‘liberdade responsável’”27.
24 Ibidem. 25 TETTAMANZI, Dionigi, op. cit., p. 31. 26 IDEM, Premessa, op. cit., p. 6. 27 Ibidem.
15
Dentro desta visão integral, ressoa muito forte o chamado de Deus em favor
da Vida. “Escolhe a vida para que vivas com tua descendência. Pois isto significa
vida para ti e tua permanência estável sobre a terra” (Dt 30,19b.20b). O núcleo
central da missão de Jesus está igualmente bem expresso: “Eu vim para que
todos tenham vida e a tenham em plenitude” (Jo 10,10). Estes textos abarcam a
“vida nova” e “eterna”, incluindo todos os aspectos e momentos da vida do ser
humano, dando-lhes pleno significado. Fica bem claro que “o evangelho da vida
está no centro da mensagem de Jesus”28.
A ética cristã funda-se, com destaque, no valor incomparável da vida
humana, o que torna o ser humano “o primeiro e fundamental caminho da
Igreja”29. A vida humana tem, portanto, um valor incomparável, sendo inviolável;
por isso, ela é inalienável 30. Deduz-se daí que só pode ser buscado o seu “bem
verdadeiro e integral”31. Ela é, por exemplo, muito mais do que um simples
“material biológico”32, muito mais do que um código genético ou um simples
programa seqüencial de um genoma a ser manipulado por engenheiros genéticos.
A vida encerra em si mesma uma sacralidade, enquanto dotada
intrinsecamente de uma dignidade toda própria. Afirmar isto significa reconhecer
um valor ontológico, sendo cada pessoa portadora desta dignidade a ser
reconhecida em si, pois se justifica em si mesma. Teologicamente, esta visão
ganha peso pela afirmação do ser humano criado por Deus, à sua imagem e
28 JOÃO PAULO II, Carta encíclica “Evangelium Vitae”, col. “Documentos Pontifícios” n° 264, Petrópolis: Editora Vozes, 1995, n° 1. 29 Cf. ibidem, n° 2; cf. IDEM, Carta encíclica “Redemptor Hominis”, col. “Documentos Pontifícios” n° 190, Petrópolis: Editora Vozes, 1979, n° 10. 30 Cf. IDEM, Carta encíclica “Evangelium Vitae”, op. cit., n° 5; cf. CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO DA FÉ, Sobre o respeito humano à vida humana nascente e a dignidade da procriação – Instrução “Donum Vitae”, col. “Documentos Pontifícios” n° 213, Petrópolis: Editora Vozes, 1987, n° 2. 31 Ibidem. 32 Cf. JOÃO PAULO II, Carta encíclica “Veritatis Splendor”, col. “Documentos Pontifícios” n° 255, Petrópolis: Editora Vozes, 1993, n° 63.
16
semelhança, possuindo assim uma dignidade e participação especiais na obra da
criação33.
O fundamento antropológico unitário, assumindo o ser humano em sua
globalidade, e o apelo ético, pelo qual o ser humano é chamado a atuar pela sua
liberdade responsável, apontam para a pessoa humana como um fim em si
mesma e a fonte do que é lícito ou ilícito, em todo o percurso de sua vida34.
Assume-se a pessoa em todas as suas dimensões e o mais integralmente
possível35. É o mesmo que afirmar que a pessoa humana é um bem em si. Desta
base, a bioética tem desenvolvido três princípios: a) Fazer sempre o bem; b)
preservar a autonomia, mesmo na condição de paciente; c) garantir a justiça, tanto
no acesso, quanto na distribuição dos benefícios decorrentes do avanço das
biociências. Subjaz a busca constante do bem integral do ser humano. Com isso,
impede-se qualquer forma de abuso que signifique um reducionismo36.
O imperativo primeiro permanece o não matarás. Dele desdobram-se todos
os demais apelos éticos, bem como os engajamentos morais decorrentes. “Pode-
se dizer que a consciência da humanidade cresceu à medida que cresceu o
respeito pela vida humana. O imperativo ‘não matarás’ resume de maneira
sintética, na tradição ocidental/judeu-cristã, o valor da vida humana. Aqui está a
expressão fundamental do próprio ethos humano, com valor universal”37.
3.2. Promoção das “ciências da vida”: respeito da vida e da pessoa humana
33 AGOSTINI, Nilo, Ética cristã: Vivência comunitária da fé, Petrópolis: Editora Vozes, 2003, p. 32; PESSINI, Leocir, BARCHIFONTAINE, Christian de Paulo de, Fundamentos da bioética, São Paulo: Editora Paulus, 1996, p. 23; DURAND, Guy, A bioética: natureza, princípios, objetivos, São Paulo: Editora Paulus, 1995, p. 38-41; VIDAL, Marciano, Moral de Atitudes, vol: II: Ética da pessoa, 3ª edição, Aparecida: Editora Santuário, 1988, p. 222-225. 34 Cf. SGRECCIA, Elio, A bioética: história, horizontes e fundamento de uma nova disciplina, in LADISÃNS, Stanislavs (Coord.), Questões atuais de bioética, São Paulo: Edições Loyola, 1990, p. 241-248. 35 Cf. MALHERBE, Jean-François, Non si può fare bioetica seriamente, se non ci si appoggia su un fondamento antropológico, in VIAFORA, Corrado (Org.), Vent’anni di bioetica: idee, protagonisti, istituzioni, Padova: Fondazione Lanza/Gregoriana Lebreria Editrice, 1990, p. 190. 36 CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, op. cit., n° 3; JOÃO PAULO II, O Evangelho da vida, op. cit., n° 10. 37 AGOSTINI, Nilo, Ética cristã e desafios atuais, op. cit., p. 193.
17
Fundada na visão acima, a ética cristã aponta para a promoção do que se
passa a chamar de “ciências da vida”. Quer-se, com isso, apontar para a
necessidade de implementar um esforço conjunto em prol da vida, reunindo as
mais variadas ciências, entidades, órgãos representativos da sociedade e as mais
diversas religiões. Soou a hora de dar passos somando forças em torno de um
elemento básico e norteador, qual seja, a Vida. Reencontramo-nos aqui com a
perspectiva já assinalada por Van Rensselaer Potter, no sentido de uma ética da
vida e do ser vivo, incluídos o desafio ecológico e os problemas de sobrevivência
do ser humano38.
A América do Norte, numa linha anglo-saxã, acabou por usar muito pouco
este sentido de bioética, para se limitar à reflexão ética no campo biomédico39 de
estilo utilitarista. A Europa, sobretudo latina ou mediterrânea, ateve-se à tradição
deontológica, decorrente de princípios como “o imperativo categórico de Kant, que
exige que os seres humanos sejam tratados como fins, não como meios, e a
humanidade como o reino dos fins”40.
A partir da tradição latina mediterrânea, o eixo central “é constituído pelo
respeito à pessoa humana e à sua dignidade ou ainda, ‘o respeito à humanidade
em cada ser humano’, o que, pouco a pouco, toca a ‘própria essência de nossa
civilização’ e determina ‘o bem da humanidade futura’”41. Notamos, de imediato,
como este eixo norteador é portador de princípios, regras e critérios aplicáveis à
bioética.
38 Cf. POTTER, Van Rensselaer, op. cit., sobretudo o capítulo 1. 39 Cf. DURAND Guy, Introdução geral à Biolética. História, conceitos e instrumentos, São Paulo: Editora do Centro Universitário São Camilo/Edições Loyola, 2003, p. 97. 143-224. 40 Ibidem, p. 128. Desta linha latina, decorrem duas obrigações, a não-maleficiência e a justiça, e dois caminhos, o dos deveres e as obrigações, o da virtude e a felicidade. 41 Ibidem, p. 241. Cf. SÈVE, Lucien. Recherche médicale et respect de la personne, La documentation française, Paris: CCNE (Conselho Consultivo Nacional de Ética para as Ciências da Vida e da Saúde – França), 1988, p. 12, 13, 42.
18
Identificamos, na verdade, duas grandes tradições, nem sempre bem
integradas na bioética, a que se desenvolve em torno da noção de beneficiência e
a que se erige a partir do respeito da dignidade humana. Explica Guy Durand que
“a tradição deontológica médica centrada na beneficiência é freqüentemente
criticada hoje em benefício do princípio de autodeterminação e a tradição ética
preocupada com o respeito à vida humana é às vezes malvista por medo de que
surja o fantasma de uma moral objetiva que se impõe do exterior a todos. No
entanto, essas duas tradições são essenciais: O que seria da relação médico-
paciente sem a preocupação com a beneficiência? O que seria da ética se não se
visasse à proteção e à promoção da vida? Mais que isso, essas duas tradições
são complementares: uma remete à outra e vice-versa”42.
Ressoa ainda forte a expressão “respeitar o homem todo e todos os
homens”, usada por Paulo VI, em 1967, na encíclica Populorum Progressio43.
“Ela visa o desenvolvimento integral do homem e o desenvolvimento solidário da
humanidade (...). Essa expressão implica primeiramente o respeito e a proteção
das pessoas concretas: sua liberdade, sua autonomia, sua inviolabilidade, sua
qualidade de vida. Ela também inclui o respeito e a promoção da própria vida
humana e, portanto, do sentido de pessoa, a médio e a longo prazos”44.
Conseqüentemente, cabe à bioética apontar para as exigências do respeito e da
promoção da vida humana ou da pessoa humana, incluída a noção de qualidade
de vida.
Mas o que é vida humana? Costuma-se apontar aqui tanto para a vida
humana metabólica45 quanto para a vida humana pessoal46. Uma tendência – a
vitalista – aponta para a sacralidade e a inviolabilidade da vida também biológica,
sem restrições nem exceções. Outra tendência – a humanista – capta a vida
42 DURAND Guy, op. cit., p. 153. 43 Cf. PAULO VI, Carta encíclica Populorum Progressio, col. “Documentos Pontifícios” n° 165, 15ª edição, Petrópolis: Editora Vozes, 1991, n° 42, p. 23. 44 Ibidem, p. 104. 45 Trata-se da vida biológica, da vida dos órgãos e dos sistemas metabólicos que servem de suporte à pessoa. 46 Trata-se, em especial, da capacidade da consciência e de manter relações interpessoais.
19
biológica como um suporte para a vida pessoal, não sendo um absoluto quando
não garante mais a saúde, o bem-estar, a qualidade de vida, a promoção de todas
as capacidades da pessoa. Um discernimento atendo deve aqui ser efetuado, com
o cuidado de não opor sem mais as duas posições, nem diluí-las sem mais, nem
muito menos cair pura e simplesmente em vertentes subjetivas e utilitárias. O
pensamento ocidental judeo-cristão captou fortemente a noção do “caráter
sagrado da vida” e desenvolveu regras de proporcionalidade quando se trata de
prolongar ou não uma vida biológica. Pio XII explicitou a regra dos meios
ordinários e extraordinários47, mais tarde traduzidos na forma de meios
proporcionados e desproporcionados48.
Tenta-se superar a eventual dificuldade dos termos e tendências acima
propondo o respeito à vida através da noção de qualidade de vida. Um
discernimento acurado também aqui se faz necessário, pois podemos cair num
juízo de valor utilitário de um indivíduo e sua conseqüente eliminação (atitude
eugênica). Podemos, ao contrário, formular uma interpretação positiva na linha da
melhoria da qualidade de vida das pessoas em termos de meio ambiente, ecologia
e preocupações sociais. Isto implicaria, então, numa proteção e expansão da vida
em todas as suas formas, facetas e etapas49.
Atualmente, são muitas as teorias éticas que buscam apontar princípios e
valores em bioética. Entre elas podemos enumerar as seguintes correntes:
ontológica, deontológica, utilitarista, axiológica, personalista entre outras. Sem
entrar no mérito de cada uma ou, eventualmente, de seus excessos (sobretudo do
utilitarismo), apontamos o que se convencionou chamar de uma via intermediária,
que é a de apresentar a pessoa humana como referência50. Esta via busca focar-
se “no respeito à pessoa humana” e a partir daí traçar as linhas do campo bioético.
47 Cf. VERSPIEREN, Patrick (Org.), Biologie, Médecine et Éthique, Paris: Centurion, 1987, p. 365-371. 48 Cf. CONGREGAÇÃO DA DOUTRINA DA FÉ, Declaração sobre a eutanásia, SEDOC, 13 (1980), p. 171-176. 49 Cf. DURAND Guy, op. cit., p. 158. 50 Cf. ibidem, p. 282-310.
20
O intento é captar a especificidade humana. Igualmente nesta via, muitas são as
correntes. Umas acentuam a autonomia da vontade (O que representariam aqui
os embriões, por exemplo?); outras caracterizam a especificidade humana
enquanto individualidade (dotada de uma singularidade irredutível). Há aquelas
correntes que buscam designá-la pela sua personalidade (enquanto identidade
psico-afetiva e social). Há ainda os que captam a pessoa humana enquanto
sujeito jurídico e ético ou ainda como corpo. Essas noções certamente não
esgotam isoladamente o que é a pessoa humana, pois a pessoa “transcende o
nível dos fatos, dos dados científicos (biológicos e psicológicos) para chegar aos
valores. Ela não faz parte da ordem econômica, mas sim da ordem ética ou
axiológica: é isso que o termo dignidade pretende significar”51.
Ainda aqui, faz-se necessário um discernimento, pois há os que, falando de
pessoa humana, têm diferentes posições, por exemplo, diante do embrião
humano. Há os que defendem a posição da humanização imediata, enquanto
outros assumem posições de uma humanização diferida (em estágios posteriores
ao da fecundação) e ainda os que pretendem afirmar que o feto só se torna
realmente pessoa quando ele é autônomo ou é reconhecido e aceito como tal
pelos pais ou pela sociedade. Urge introduzir aqui um passo ético de excelência
que é o do reconhecimento da dignidade da pessoa que se estende ao corpo e
suas partes, bem como presente em todos os estágios da vida, desde o primeiro
instante da fecundação até o último sopro de vida. Há quem fale até do respeito
diante do próprio cadáver, pois “no limite é respeitável com o título de pessoa o
que, contudo, não tem mais com ela uma relação diretamente determinável, como
o órgão, a célula, o gene, levando-se em consideração atentiva aquilo que coloca
em jogo sua manipulação no destino das pessoas e do gênero humano”52.
3.3. Palavras do Magistério da Igreja Católica (a modo de glossário)
51 Ibidem, p. 290. 52 SÈVE, Lucien, “La personne, concept éthique d’intérêt public”, Laennec, 41/3-4 (mars 1993), p. 4.
21
O anúncio em favor da vida tem mobilizado a Igreja Católica em toda a sua
história a formular um ensino magisterial constante e claro em matérias como as
aqui abordadas. Aberta ao aporte científico, biológico e médico, a Igreja buscou
acionar a reflexão ética para examinar a liceidade da intervenção do ser humano
sobre si mesmo e sobre as demais formas de vida. Estabeleceu-se logo, com
clareza, o eixo nortedador; este está na pessoa humana e no seu valor
transcendente, bem como na referência última a Deus, como valor absoluto53. A
Revelação cristã traz evidentes e preciosas contribuições neste campo tão vasto.
A seguir, apresentamos de maneira sucinta o ensinamento do Magistério da
Igreja, emanado nas últimas décadas, sobre alguns pontos concretos que
necessitam de um constante discernimento e claro posicionamento. Com isso, a
Igreja Católica, a partir da fé cristã, “não se dirige a determinado grupo de
pessoas, mas dirige-se a todos sem exceção, querendo a todos conduzir a uma
mais verdadeira humanidade... Tudo o que é humano diz respeito, em Jesus
Cristo, à fé cristã”54.
a) O Papa saúda favoravelmente o desenvolvimento da Bioética
• A consciência da necessária defesa da vida alarga-se, em nossos dias,
para incluir também “a atenção crescente à qualidade de vida e à ecologia”
e toda a reflexão e o diálogo favorecidos pelo “despertar da reflexão ética a
respeito da vida”, sobretudo através da “aparição e o desenvolvimento cada
vez maior da bioética”; esta (a bioética) “favoreceu a reflexão e o diálogo –
entre crentes e não crentes, como também entre crentes de diversas
religiões – sobre problemas éticos, mesmo fundamentais, que dizem
respeito à vida do homem” (cf. João Paulo II, Evangelium Vitae, n° 27).
53 É oportuna aqui a definição de bioética de SGRECCIA, Elio, Manuale di Bioetica, Milano: Vita e Pensiero, 1988, p. 42. 54 Cf. GALVÃO, H. Noronha, Notas sobre os conceitos de criação e pessoa, Communio (Edição de Portugal), XX (2003/3), p. 276.
22
b) O valor da pessoa humana e seu direito à vida
• O Magistério da Igreja tem repetidamente se manifestado no sentido que de
“sejam salvaguardados os valores e os direitos da pessoa humana”,
seguindo critérios como “o respeito, a defesa e a promoção do homem, o
seu ‘direito primário e fundamental’ à vida, a sua dignidade de pessoa...” e
“sua vocação integral” (cf. Congregação da Doutrina da Fé, Instrução
Donum Vitae, n° 1).
c) Qualidade de vida
• Lembra-se aqui a necessária atenção no cultivo das “dimensões mais
profundas da existência, como são as interpessoais, espirituais e
religiosas”, superando uma visão distorcida de qualidade de vida
“interpretada prevalente ou exclusivamente como eficiência econômica,
consumismo desenfreado, beleza e prazer da vida física” (cf. João Paulo II,
Evangelium Vitae, n° 23).
d) Ecologia
• Faz-se necessário que o ser humano supere um consumismo excessivo e
desordenado dos recursos da terra, dispondo arbitrariamente da terra,
submetendo-a sem reservas à sua vontade, traindo o destino anterior que
Deus lhe deu. “Em vez de realizar o seu papel de colaborador de Deus na
obra da criação, o homem substitui-se a Deus” (João Paulo II, Centesimus
Annus, n° 37). Nesta questão, o Magistério da Igreja propõe um cuidado
especial do ambiente humano, no intuito de “salvaguardar as condições
morais de uma autêntica ‘ecologia humana’” (...), “bem como a devida
atenção a uma ‘ecologia social’” (João Paulo II, Centesimus Annus, n° 38).
e) Destaque para o valor da vida humana
• O valor da vida humana tem sido sublinhado com ênfase pela moral
católica. Ela é um bem pessoal; um bem da comunidade, um dom recebido
de Deus e que a Deus pertence. Conseqüentemente, o Magistério da Igreja
23
tem afirmado com clareza o seu valor incomparável e inviolável (cf. João
Paulo II, Evangelium Vitae, n° 5). Sobre este fundamento inalienável erige-
se o edifício dos valores éticos correspondentes (cf. Congregação da
Doutrina da Fé, Instrução Donum Vitae, n° 2).
f) A família
• “A primeira e fundamental estrutura a favor da ‘ecologia humana’ é a
família..., fundada sobre o matrimônio... É necessário voltar a considerar a
família como o santuário da vida” (João Paulo II, Centesimus Annus, n° 39).
g) Sistema econômico e o Estado
• O atual sistema econômico tende a fazer da produção e do consumo o
centro da vida social e o único valor verdadeiro, ignorando a dimensão ética
e religiosa. Assim, ele fica “debilitado... e perde a sua necessária relação
com a pessoa humana e acaba por a alienar e oprimir” (cf. João Paulo II,
Centesimus Annus, n° 39). “É tarefa do Estado prover à defesa e tutela de
certos bens coletivos como o ambiente natural e o ambiente humano, cuja
salvaguarda não pode ser garantida por simples mecanismos de mercado”
(João Paulo II, Centesimus Annus, n° 40).
h) A necessária visão integral da vida humana
• A percepção acima funda-se no intento de buscar sempre o “bem
verdadeiro e integral da vida humana” (cf. Congregação da Doutrina da Fé,
Instrução Donum Vitae, n° 2). Aponta-se aqui para “a dignidade e a
vocação integral da pessoa humana”, “a unidade pessoal do agente moral
no seu corpo e alma” (cf. João Paulo II, Veritatis Splendor, n° 67), o que
representa o cuidado de reunir/atender/suprir a “natureza da pessoa
humana, que é a pessoa mesma na unidade de alma e corpo, na unidade
das suas inclinações tanto de ordem espiritual como biológica, e de todas
as outras características específicas à obtenção do seu fim” (cf. João Paulo
II, Veritatis Splendor, n° 50). Um elemento básico norteador passa, então, a
24
ser a busca do bem integral do ser humano, impedindo qualquer forma de
abuso que signifique um reducionismo (cf. João Paulo II, Evangelium Vitae,
n° 10). Nesta visão integral do humano, ficam resguardadas e preservadas
as suas mais diversas dimensões, fundadas numa dignidade já reconhecida
pela Declaração Universal dos direitos Humanos (1948), bem como
fundada na fé hebraico-cristã, em sua noção do ser humano criado à
imagem e semelhança de Deus.
i) Evite-se todo reducionismo
• Diante do avanço das biotecnologias, em especial da genética humana e da
biomedicina, faz-se necessário lembrar que, haja vista a integralidade da
pessoa humana, esta é conseqüentemente muito mais do que um “material
biológico” (cf. João Paulo II, Evangelium Vitae, n° 63), um código genético
ou um programa a ser planejado pela engenharia genética. “Nenhum
biólogo ou médico pode razoavelmente pretender, por força de sua
competência científica, decidir sobre a origem e o destino dos homens” (cf.
Congregação da Doutrina da Fé, Instrução Donum Vitae, n° 3). “Aquilo que
é tecnicamente possível não é necessariamente, por esta mera razão,
admissível do ponto de vista moral” (cf. Congregação da Doutrina da Fé,
Instrução Donum Vitae, n° 4). Tenha-se, aqui, em conta tanto os processos
ligados à procriação quanto os meios de sobrevivência; supõe-se uma
noção correta de “qualidade de vida”, de “ecologia humana e social”, bem
como de responsabilidade no uso das modernas biotecnologias.
j) Inviolabilidade da vida humana
• O valor ético da vida humana levou o Magistério da Igreja a colocá-la em
primeiro lugar na escala dos valores, pronunciando-se sobre a sua
inviolabilidade e empenhando neste sentido todo o seu peso doutrinário e
magisterial. Isto é feito, sobretudo, quando está em jogo o mandamento
“não matarás” referente à “pessoa inocente” (no caso, o ser humano
concebido no seio materno) e referente à pessoa em estado terminal.
25
Diante do aborto e da eutanásia, o Magistério da Igreja lembra que se trata
sempre de uma “desordem moral grave”, enquanto “morte deliberada”, e
afirma: “Tal doutrina está fundada sobre a lei natural e sobre a Palavra de
Deus escrita, é transmitida pela Tradição da Igreja, ensinada pelo
Magistério ordinário e universal” (cf. João Paulo II, Evangelium Vitae, n° 62
e 65).
l) O início da vida humana
• “A partir do momento em que o óvulo é fecundado inaugura-se uma nova
vida que não é a do pai nem a da mãe, mas sim a de um novo ser humano
que se desenvolve por conta própria (...). A esta evidência de sempre, (...) a
ciência genética moderna fornece preciosas confirmações. Demonstrou
que, desde o primeiro instante, se encontra fixado o programa daquilo que
será este ser vivo... Desde a fecundação, tem início a aventura de uma vida
humana, cujas grandes capacidades, já presentes cada uma delas, apenas
exigem tempo para se organizar e encontrar prontas a agir” (cf. João Paulo
II, Evangelium Vitae, n° 62 e 60).
• Deduz-se desta afirmação que o procedimento em embriões humanos é
bem acolhido quando possibilita uma terapia que os livre de doenças, num
sentido curativo, nunca no sentido de selecioná-los para eliminá-los,
tampouco para utilizá-los como banco de células, causando perda parcial
ou total destes. Os embriões, até o 14° dia, são muito visados para a coleta
de células-tronco, com a finalidade do cultivo das mesmas por se
encontrarem no estágio de não diferenciação e, assim, passíveis a se
transformar em células de órgãos e tecidos. Note-se que estas células-
tronco são encontráveis em outras partes do corpo, como no cordão
umbilical.
• Outro procedimento (que está sendo pesquisado) para se conseguir a
produção de material biológico para transplantes diversos é o da
“transferência de núcleo para a produção de células estaminais autólogas”.
Ele permitiria o cultivo de células partindo do DNA do próprio paciente
26
(autólogas), o que garantiria a compatibilidade necessária em transplantes,
substituição de tecidos etc, evitando a possibilidade de rejeição. Só que tal
cultivo (com transferência de núcleo para um óvulo esvaziado de sua carga
genética própria), levaria à formação de um zigoto, com subseqüente
desenvolvimento embrional, portanto um clone (não aceitável moralmente),
o que cientistas favoráveis a tal procedimento querem encobrir dizendo não
ser um zigoto no sentido clássico.
m) Mentalidade contraceptiva e paternidade responsável
• Partindo da noção – verdadeira missão – de uma paternidade e
maternidade responsáveis, o Magistério da Igreja não se exime de refletir
sobre o problema demográfico (cf. Paulo VI, Populorum Progressio, n° 37 e
Humanae Vitae, n° 23). A postura da Igreja distingue-se por abrir horizontes
numa atitude responsável e aberta à vida, buscando inclusive obter
condições favoráveis e dignas de vida para todos, “tornando mais fácil e
serena a vida dos pais e dos filhos no seio das famílias, mais fraterna e
pacífica a convivência na sociedade humana, na fidelidade aos desígnios
de Deus sobre o mundo” (cf. Paulo VI, Humanae Vitae, n° 30).
• Ao mesmo tempo, o Magistério da Igreja tem alertado para as ameaças
contra a vida, “programadas de maneira científica e sistemática”, numa
“conjura contra a vida que vê também implicadas Instituições
Internacionais, e próprias campanhas para difundir a contracepção, a
esterilização e o aborto. Não se pode negar, enfim que os mass-media são
freqüentemente cúmplices dessa conjura, ao abonarem junto da opinião
pública aquela cultura que apresenta o recurso à contracepção, à
esterilização, ao aborto e à própria eutanásia como sinal do progresso e
conquista da liberdade, enquanto descrevem como inimigas da liberdade e
do progresso as posições incondicionalmente a favor da vida” (cf. João
Paulo II, Evangelium Vitae, n° 17).
• Importa encarar os processos geradores da vida como um modo
extraordinário de participar da obra criadora de Deus, envolvendo de igual
27
forma o homem e a mulher. Quando, por motivos sérios, os cônjuges
decidem evitar um novo nascimento, o Magistério da Igreja lembra o seu
dever de “respeitar as leis biológicas inscritas na pessoa de ambos”,
enfatizando que “é precisamente este respeito que torna legítimo, ao
serviço da procriação responsável, o recurso aos métodos naturais de
regulação da fertilidade”. Lembra, inclusive, que “estes (métodos) têm-se
aperfeiçoado progressivamente sob o ponto de vista científico e oferecem
possibilidades concretas para decisões em harmonia com os valores
morais” (cf. João Paulo II, Evangelium Vitae, n° 97).
n) Procriações medicalmente assistidas
• As técnicas de reprodução humana assistida podem ser as seguintes:
inseminação artificial, fecundação artificial, transferência de gametas para o
interior das trompas de falópio e clonagem.
• Um dos maiores bens da humanidade é transmitir a vida que se realiza na
procriação; esta constitui-se num valor que tem por fundamento o amor
fecundo do casal humano. Visto isto, com relação às técnicas de procriação
artificial, o Magistério da Igreja aponta dois critérios para um juízo moral: a)
“a vida do ser humano chamado à existência e a originalidade de sua
transmissão no matrimônio”; b) ressaltando “a inviolabilidade do ser
humano inocente à vida ‘desde o momento da concepção até a morte’” (cf.
Congregação da Doutrina da Fé, Instrução Donum Vitae, n° 4s).
• Todos os procedimentos medicalmente assistidos, acima citados (sem
detalhar cada um deles), encontram resistências morais, visto que “a
procriação humana exige uma colaboração responsável dos esposos com o
amor fecundo de Deus; o dom da vida humana deve realizar-se no
matrimônio, através dos atos específicos e exclusivos dos esposos,
segundo as leis inscritas nas suas pessoas e na sua união” (cf.
Congregação da Doutrina da Fé, Instrução Donum Vitae, n° 5). Tais
critérios “respeitam o sentido integral da doação mútua e da procriação
humana no contexto do verdadeiro amor” (Concílio Vaticano II, Gaudium et
28
Spes, n° 51). “O ensinamento da Igreja acerca do matrimônio e da
procriação humana afirma ‘a conexão indivisível, que Deus quis e o homem
não pode romper, entre os dois significados do ato conjugal: o significado
unitivo e o procriador’” (cf. Congregação da Doutrina da Fé, Instrução
Donum Vitae, n° 4).
• A única exceção admissível é a da “inseminação artificial homóloga, dentro
do matrimônio... em que o meio técnico resulte não substitutivo do ato
conjugal, mas se configure como uma facilitação e um auxílio para que
aquele atinja a sua finalidade natural” (cf. Congregação da Doutrina da Fé,
Instrução Donum Vitae, n° 6; cf. Pio XII, Discurso às congressistas da União
Católica Italiana de Obstetras, 29 de outubro de 1951, AAS 43 [1951] 850).
Conclusão
Em forma de conclusão e resumo, alguns princípios básicos55 devem
sempre orientar o juízo moral em matérias como as acima abordadas. Em primeiro
lugar, identificamos a dignidade do ser humano enquanto imagem de Deus como
sendo inviolável; esta não se vende, não se transfere e não se abdica. O ser
humano não pode ser reduzido a objeto, devendo ser sempre preservado como
sujeito e integralmente.
A vida humana requer uma postura alicerçada nos princípios da
benevolência, da autonomia da pessoa a ser preservada sempre e da justiça na
partilha e distribuição dos recursos (também biotecnológicos). Importa sempre
lembrar que o ser humano é mais que a soma dos seus genes ou neurônios.
Evite-se qualquer reducionismo que descuide das dimensões sociais, psico-
afetivas e espirituais.
55 Para os pontos que seguem, nos baseamos nos seguintes textos: CONFERENZA EPISCOPALE TEDESCA, “L’uomo: creatore di se stesso?”, Il regno-documenti, 7 (2001), p. 233-234; AGOSTINI, Nilo, Ética cristã – Vivência comunitária da fé cristã, Petrópolis: Editora Vozes, 2003, p. 29-37.
29
Além disso, a fé cristã coloca no centro das suas atenções os “diminuídos”,
os “doentes” e os que estão em “desvantagem”. Esta é uma “predileção” de Deus
já presente no Antigo Testamento, quando se coloca a favor dos órfãos, das
viúvas e dos estrangeiros (cf Am 8,4-6; Mq 2,1-2; Dt 24,17-18). E ao anunciar o
Reino de Deus, Jesus realiza as obras do Messias; integra os cegos, os
paralíticos, os surdos, os pobres (cf. Mt 11,4-6; Lc 7,22). A Igreja, por sua vez,
sente existir aí uma “continuidade daquela que agora se designa ‘opção
preferencial pelos pobres’”, opção definida pelo Papa João Paulo II como “uma
forma especial de primado na prática da caridade cristã”56.
Fique claro, outrossim, que o ser humano tem necessidade da redenção
que só pode vir de Deus. Não bastam as técnicas por si só, não bastam os
recursos enquanto tais. Deus, em Cristo, é que nos deu a conhecer os caminhos
da vida (cf. At 2,28). Em Cristo, “a vida se manifestou” (cf. 1Jo 1,2). Nele “temos
tudo plenamente” (cf. Cl 2,10). “Somos obras de Deus, criados em Jesus Cristo
para as boas ações” (Ef 2,10). Sejamos, pois, “imitadores de Deus” (cf. Ef 5,1).
Vale lembrar que cada ser humano é responsável das suas próprias ações,
pois caracteriza-se como um ser livre e responsável. Isto toca a todos no sentido
de esforçar-se por buscar o que é reto, justo e verdadeiro. Neste sentido,
deixemos ressoar as palavras de São Paulo que nos convoca a “progredir na
caridade segundo o exemplo de Cristo” (cf. Ef 5,2). São Tiago, por sua vez, nos
convida: “Sede cumpridores da palavra e não meros ouvintes” (Tg 1,22).
Enfim, o Estado deve, por sua vez, respeitar a dignidade da pessoa
humana..., superando toda forma de comprometimento desta dignidade ante a
propalada liberdade de pesquisa e os interesses de mercado. Se, no dizer de João
Paulo II, existem “bens que, pela sua natureza, não são nem podem ser simples
mercadoria”57, muito mais o ser humano não poderá ser diminuído ou reduzido em
56 JOÃO PAULO II, Carta encíclica Centesimus Annus, col. “Documentos Pontifícios” n° 241, Petrópolis: Editora Vozes, 1991, n° 11, p. 21. 57 Cf. ibidem, n° 40, p. 70.
30
sua dignidade quer pelo Estado quer pelo mercado58. Evite-se reduzir o ser
humano ao nível de simples mercadoria59.
58 Cf. ibidem, n° 49, p. 86. 59 Cf. ibidem, n° 34, p. 60.
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