LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO DO CAMPO: DESAFIOS À FORMAÇÃO DE
EDUCADORES E À TRANSFORMAÇÃO DA ESCOLA DO CAMPO: REFLEXÕES A
PARTIR DAS TURMAS DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
Mônica Castagna Molina Universidade de Brasília
RESUMO
O artigo apresenta inicialmente o contexto histórico do Movimento da Educação do
Campo, a partir da disputa de projetos presentes no território rural brasileiro. Em seguida,
são trazidas ao debate as principais características que dão materialidade à concepção de
Escola do Campo, construída a partir das práticas dos movimentos sociais camponeses.
Trata-se, portanto de uma concepção que emerge das contradições da luta social e das
práticas de educação dos trabalhadores do/no campo. O acesso ao conhecimento, a
garantia do direito à escolarização para os sujeitos do campo, faz parte desta luta, na qual
se insere também as lutas por políticas públicas de formação de educadores, que se
orientem por determinado perfil docente forjado neste processo histórico construído pelos
camponeses. A partir deste contexto, o artigo apresenta as principais características de
uma política de formação de educadores do campo conquistada nestas lutas, que se
materializa nas Licenciaturas em Educação do Campo. Na sequência, apresentam-se a
partir da experiência empírica da formação de educadores na Licenciatura em Educação
do Campo - LEDOC, da Universidade de Brasília, com três turmas já concluídas e quatro
em andamento, e das reflexões teóricas sobre este processo formativo, realizadas a partir
do Programa de Pós Graduação em Educação desta instituição, no qual já foram
defendidas seis dissertações e quatro teses sobre a LEDOC, os principais desafios
enfrentados na formação dos educadores do campo e na promoção de ações e práticas
pedagógicas que, efetivamente, contribuam na materialização da chamada Escola do
Campo.
Palavras-chave: Educação do Campo; Formação de Educadores; Escola do Campo
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 302589
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO DO CAMPO: DESAFIOS À FORMAÇÃO
DE EDUCADORES E À TRANSFORMAÇÃO DA ESCOLA DO CAMPO:
REFLEXÕES A PARTIR DAS TURMAS DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
Mônica Castagna Molina
Universidade de Brasília
INTRODUÇÃO
Nos últimos quinze anos, no Brasil, a Educação do Campo, materializou-
se em diferentes instâncias da sociedade civil e conquistou seu espaço na sociedade
política, devido ao protagonismo dos movimentos sociais e sindicais do campo que a
constroem e ao o acirramento das contradições e da luta de classes neste território. Este
acirramento é resultado da intensificação da lógica de acumulação de capital no meio
rural ocorrido neste mesmo período histórico, em decorrência da consolidação do
agronegócio, que representa uma aliança entre os grandes proprietários de terra, o capital
estrangeiro e o capital financeiro.
A dinâmica alcançada na Educação do Campo, não pode ser compreendida
em separado deste processo, pois é em reação e oposição as fortes conseqüências da
expropriação de suas terras e de seus territórios pelo agronegócio, que a classe
trabalhadora do campo intensifica também suas lutas pela manutenção e conquista de seus
direitos, entre eles, o direito ao conhecimento e à escolarização, como parte destas
estratégias de resistência na terra e da garantia de sua reprodução social a partir do
trabalho no campo.
A partir das próprias lutas dos movimentos sociais, nestes quinze anos foram
conquistadas políticas para garantir o direito à educação aos camponeses, incluindo uma
política específica de formação de educadores, que se materializa no Programa de Apoio
às Licenciaturas em Educação do Campo - PROCAMPO. Os dados da realidade
desnudam a exigência e urgência da especificidade desta política pública: a formação
dos docentes que atuam no campo indica que dos 311.025 profissionais em exercício,
61% não tem formação de nível superior, o que significa um contingente de
aproximadamente 178 mil professores sem a formação adequada atuando nas Escolas do
Campo.
*Pós-Doutora em Educação pela Unicamp. Professora da Licenciatura em Educação do Campo
da UnB. Coordenadora do Observatório da Educação do Campo/CAPES.
O tema deste Endipe, “A didática e a prática de ensino nas relações entre a escola,
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 302590
a formação de professores e a sociedade”, abre um amplo espaço para apresentação das
reflexões que vem se fazendo no âmbito destes cursos de Licenciatura em Educação do
Campo – LEDOC.
Esta nova modalidade de graduação, que nasce a partir da luta dos movimentos
sociais do campo para conquistar uma política específica de formação de educadores para
atuar nas escolas do território rural, tem, exatamente, como maior intencionalidade, a
perspectiva de formar um docente capaz de promover um profundo vínculo entre as
tarefas específicas da escola e as demandas da comunidade durante a realização destas
tarefas.
Se, de uma maneira geral, espera-se que a escola seja capaz de promover a
socialização das novas gerações e transmitir os conhecimentos historicamente
acumulados, espera-se também, no Movimento da Educação do Campo, que ela seja
capaz de tornar-se uma aliada dos camponeses em luta para permanecer no seu território,
existindo como tais, enquanto camponeses. É imprescindível formar educadores do
campo capazes de indagar a realidade e buscar os elementos que ampliem sua
compreensão sobre o porquê se fecharam, de acordo com dados do próprio INEP, mais
de 32 mil escolas rurais nos últimos dez anos (de 102 mil, em 2002 para 70 mil em 2013).
Se o movimento da Educação do Campo compreende que a Escola do Campo
deve ser uma aliada dos sujeitos sociais em luta para poderem continuar existindo
enquanto camponeses; para continuar garantindo a reprodução material de suas vidas a
partir do trabalho na terra, é imprescindível que a formação dos educadores que estão
sendo preparados para atuar nestas escolas, considere, antes de tudo, que a existência e
permanência (tanto destas escolas, quanto deste sujeitos) passa, necessariamente, pelos
caminhos que se trilharão a partir dos desdobramentos da luta de classes; do resultado
das forças em disputa na construção dos distintos projetos de campo e de sociedade em
luta na sociedade brasileira.
Mantida a atual configuração da aliança de classes hoje internacional, que
transformou os alimentos em commodities, e que necessita, para seu modelo de produção
agrícola, baseado em vastas extensões de terra; no uso de altíssima tecnologia nos
processos de produção, com mínima utilização de mão de obra; na monocultura e no uso
intensivo de agrotóxico, não haverá Escolas do Campo e, muito menos, sujeitos
camponeses a serem educados neste território, pois, este modelo agrícola funda-se, no
que se costuma chamar na sociologia, de uma ruralidade de espaços vazios, de um campo
sem sujeitos.
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 302591
A intensa e veloz redução do número de escolas existentes no território rural, não
pode ser vista em separado deste processo. Já existem teses de doutorado que comprovam
a relação entre estes fenômenos, entre as quais destaca-se a que produziu um relevante
estudo cartográfico no qual, a partir da sobreposição de mapas nos quais se registra os
territórios do avanço do agronegócio na região Centro Oeste, se demonstra a fagocitose
das escolas rurais nos mesmos espaços, como o corolário da desterritorialização dos
sujeitos camponeses pelo modelo hegemônico de organizar a agricultura baseado no
agronegócio. (Souza, 2012)
O processo de fagocitose das escolas neste contexto está indissociavelmente
relacionado ao destino do campo, e do debate central a ele subjacente: a ausência de
trabalho no campo, em função da intensíssima incorporação de novas tecnologias, e de
cada vez mais trabalho morto. Enfrentar, portanto, o desafio do fechamento das escolas
do campo, implica necessariamente, enfrentar o modelo de desenvolvimento hegemônico
do capital, não havendo saída senão nas lutas por sua superação. (Bogo, 2012)
Apostando na compreensão gramsciniana que entende a escola como um espaço
em disputa, como importante lócus de produção de contra hegemonia aos valores da
sociedade capitalista, o movimento da Educação do Campo trabalha com a perspectiva
de formar educadores camponeses que possam atuar nestas escolas como intelectuais
orgânicos da classe trabalhadora (Gramsci, 1991) contribuindo, por sua vez, com a
formação crítica dos educandos que passem por estas unidades escolares, dando-lhes
condições de compreender entre os modelos de desenvolvimento do campo em disputa,
como parte integrante da totalidade maior da disputa de projetos societários distintos,
entre a classe trabalhadora e a capitalista.
Como formar este educador camponês capaz de tal prática educativa? Que
concepções de educação; de sociedade e de escola devem guiar um processo formativo
para contribuir com uma tarefa de tal magnitude? A concepção de formação construída
pelos movimentos sociais para a Licenciatura em Educação do Campo tem potencial para
este desafio? Que estratégias formativas tem sido propostas pela Licenciatura em
Educação do Campo, que contribuem para formar educadores que possam promover
práticas que, em alguma medida, produzam as transformações nas Escolas do Campo
nesta direção?
O objetivo deste artigo é apresentar, a partir da experiência empírica da oferta de
sete turmas de Licenciatura em Educação do Campo (três já concluídas e quatro em
andamento), na Universidade de Brasília, e das reflexões teóricas sobre estas práticas,
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 302592
que vem sendo realizadas na Linha de Pesquisa “Educação do Campo”, do Programa de
Pós Graduação em Educação da mesma instituição, que conta com 6 dissertações e 3
teses defendidas sobre a LEDOC, os principais desafios enfrentados na formação dos
educadores do campo e na promoção de ações e práticas pedagógicas que efetivamente
contribuam na materialização da chamada Escola do Campo (MOLINA e SÁ, 2012).
1. Breve histórico da Licenciatura em Educação do Campo e de seus objetivos
O PROCAMPO é uma política de formação de educadores do campo, conquistada
a partir da pressão e das demandas apresentadas ao Estado pelo Movimento da Educação
do Campo. Pautada desde a primeira Conferência Nacional por Uma Educação Básica do
Campo - CNEC, realizada em 1998, a exigência de uma Política Pública específica para
dar suporte e garantir a formação de educadores do próprio campo vai se consolidar como
uma das prioridades requeridas pelo Movimento, ao término da II Conferência Nacional
por Uma Educação do Campo, realizada em 2004, cujo lema era exatamente “Por Um
Sistema Público de Educação do Campo”.
A partir daí, é instituído um Grupo de Trabalho que fica responsável pela
elaboração da proposta que deveria subsidiar a Secretaria de Alfabetização Continuada,
Diversidade e Inclusão - SECADI, na proposição ao MEC, do que deveria vir a ser uma
proposta de formação de educadores campo. Em função da correlação de forças presentes
naquele período; do acúmulo conquistado pelos movimentos na elaboração e participação
no PRONERA; na concretude advinda do acúmulo de realização de mais de oito anos de
execução dos cursos de Pedagogia da Terra (cuja primeira experiência realiza-se em
1998), os movimentos sociais foram capazes de influir de forma relevante na indicação
dos membros integrantes do referido Grupo de Trabalho. (Santos, 2012a)
Os movimentos demandam e logram neste período a conquista de um processo de
elaboração bastante dialogado e articulado com suas representações. Após os encontros
específicos do Grupo de Trabalho para dar forma ao primeiro desenho da política foram
realizadas também reuniões com as representações dos movimentos sociais e sindicais
do campo, nas quais submeteu-se ao debate a proposta elaborada, para finalmente, chegar-
se a versão que foi apresentada às várias instâncias do MEC responsáveis pela
implementação do Programa, que finalmente, aprovou o desenho das Licenciaturas em
Educação do Campo.
Os cursos de Licenciatura em Educação do Campo têm como objeto a escola
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EdUECE - Livro 302593
de Educação Básica do Campo, com ênfase na construção da Organização Escolar e do
Trabalho Pedagógico para os anos finais do Ensino Fundamental e do Ensino Médio. Os
cursos objetivam preparar educadores para, além da docência, atuar na gestão de
processos educativos escolares e comunitários.
A organização curricular desta graduação prevê etapas presenciais (equivalentes
a semestres de cursos regulares), ofertadas em regime de alternância entre Tempo Escola
e Tempo Comunidade, tendo em vista a articulação intrínseca entre educação e a realidade
específica das populações do campo. Esta metodologia de oferta intenciona também
evitar que o ingresso de jovens e adultos na educação superior reforce a alternativa de
deixar de viver no campo, bem como objetiva facilitar o acesso e a permanência no curso
dos professores em exercício nas Escolas do Campo.
Pretende-se formar educadores capazes de promover profunda articulação entre
escola e comunidade. Portanto, um dos princípios cultivados com mais força refere-se à
construção das condições necessárias para que estes futuros educadores possam
internalizar a compreensão das relações da escola com a vida.
Inspirada na experiência de Pistrak (2000), a proposta curricular da Escola do
Campo deve necessariamente vincular-se aos processos sociais vividos, em um sentido
de transformação social, articulando-se criticamente aos modos de produção do
conhecimento e da vida presentes na experiência social. Muito embora a Escola do
Campo mantenha os traços universais que toda educação deve apresentar, esta é uma
condição fundamental para que ela possa contribuir, a partir das especificidades da vida
rural, para a superação da alienação dos sistemas educativos em relação às transformações
sociais, pois conforme afirma Freitas,
(...) se a ligação da escola é com a vida, entendida como atividade humana criativa, é
claro que a vida no campo não é a mesma vida da cidade. Os sujeitos do campo são
diferentes dos sujeitos da cidade. (...) O campo tem sua singularidade, sua vida e a
educação no campo, portanto, não pode ser a mesma da educação urbana, ainda que
os conteúdos escolares venham a ser os mesmos. A questão aqui não é reconhecer que
há uma identidade para os sujeitos do campo, mas reconhecer que há toda uma forma
diferente de viver a qual produz relações sociais, culturais e econômicas diferenciadas.
Se tomamos o trabalho, ou seja, a vida como princípio educativo, então,
necessariamente os processos educativos no campo serão também diferenciados no
sentido de que o conteúdo da vida ao qual se ligará o conteúdo escolar é outro.
(FREITAS, 2010, p.158) Ligar a escola com a realidade na qual o processo educativo acontece não é algo
trivial. A principal dificuldade é colocar a escola na perspectiva da transformação social,
definindo claramente que valores e relações terão um sentido contra-hegemônico às
funções de excluir e subordinar que caracterizam a escola capitalista, feita para reproduzir
desigualdades. Considerando as duas principais funções hegemônicas do sistema escolar,
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 302594
exclusão e subordinação, a mudança deve ser buscada a partir do modo de produzir
conhecimento, e aí entra a estratégia maior da formação por área de conhecimento.
A matriz curricular proposta desenvolve uma estratégia multidisciplinar de trabalho
docente, organizando os componentes curriculares em quatro áreas do conhecimento:
Linguagens; Ciências Humanas e Sociais; Ciências da Natureza e Matemática; Ciências
Agrárias.
A habilitação de docentes por área de conhecimento tem como um dos seus
objetivos ampliar as possibilidades de oferta da Educação Básica no campo,
especialmente no que diz respeito ao Ensino Médio, mas sua intencionalidade maior é a
de contribuir com a construção de processos capazes de desencadear mudanças na lógica
de utilização e de produção de conhecimento no campo. (Caldart, 2010)
Trata-se da organização de novos espaços curriculares que articulam componentes
tradicionalmente disciplinares, por meio de uma abordagem ampliada de conhecimentos
científicos que dialogam entre si a partir de recortes da realidade complementares. Busca-
se, desse modo, superar a fragmentação tradicional que dá centralidade à forma
disciplinar, e mudar o modo de produção do conhecimento na universidade e na Escola
do Campo, tendo em vista a compreensão da totalidade e da complexidade dos processos
encontrados na realidade.
A partir das reflexões teóricas herdeiras da pedagogia socialista, com ênfase nos
trabalhos de Pistrak; das discussões propostas por Freitas na clássica obra “Crítica à
Organização do Trabalho Pedagógico e da Didática”; dos trabalhos sistematizados por
Caldart, a partir das experiências concretas vivencias pelas escolas públicas dos
assentamentos, nas quais o MST consegue fazer avançar seu Projeto Político Pedagógico,
vimos, portanto, trabalhando na Licenciatura em Educação do Campo com estas duas
dimensões centrais nas quais devem-se buscar transformações: nos modos de produção
do conhecimento e nas relações sociais que ocorrem na escola. Dentro destas duas
dimensões, diferentes ações pedagógicas devem ser intencionalizadas se , o que se busca,
é o compromisso da Escola do Campo com as condições da produção material da vida
dos sujeitos camponeses.
2. Desafios às transformações no âmbito da produção do conhecimento na Escola
do Campo
No âmbito da produção do conhecimento, as principais transformações a serem
buscadas referem-se à construção de práticas pedagógicas que sejam capazes de trazer a
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EdUECE - Livro 302595
atualidade (Pistrak, 2000), a materialidade concreta das condições de produção material
da vida, para dentro da sala de aula e da Escola do Campo, pois, como destaca Freitas, as
contradições da realidade para quais precisam se buscar caminhos de superação, estão na
realidade, e é a partir dela que devemos trabalhar.
O desafio é saber construir estratégias curriculares que garantam aos educandos
em formação os conhecimentos historicamente acumulados, articulando a
disponibilização destes conhecimentos com o aprofundamento da compreensão dos
problemas da atualidade. O trabalho com o Sistema de Complexos, de Pistrak, a partir da
utilização dos diferentes Inventários do meio tem sido uma estratégia pedagógica e
metodológica relevante para a realização desta ponte e tem, em grande medida,
oportunizado aos educadores em formação, o despertar para a possibilidade e a
necessidade concreta desta vinculação. Nas teses e dissertações que analisaram as ações
dos educandos da LEDOC, há importantes registros sobre os aprendizados advindos desta
estratégia, inclusive com fartas descrições das atividades realizadas nas Escolas do
Campo onde se inserem os estudantes para os Estágios e práticas docentes, realizadas a
partir destes aprendizados, nas quais detalham-se as experiências feitas nas escolas a
partir dos Diagnósticos do Meio que produziram e da seleção dos conteúdos curriculares
a serem trabalhados a partir deles. (Barbosa, 2012; Machado; 2014)
Ainda como parte dos desafios de promover a transformação dos modos de
produção de conhecimento na Escola do Campo encontra-se o de ser capaz de promover
trabalhos interdisciplinares, articulados a partir dos problemas da própria realidade
selecionados como objeto de estudo e aprofundamento com os educandos. E neste ponto
reside, um dos grandes desafios a serem materializados que refere-se à própria concepção
de interdisciplinariedade a ser materializada na ação didática. O que se busca alcançar é
a ação interdisciplinar na qual a articulação entre os conhecimentos científicos se dê a
partir realidade, do próprio objeto, de sua concretude e materialidade e não a partir da
abstração dos campos do conhecimento cientifico desprovidos das contradições da
realidade (Frigotto, 2008) Intenciona-se promover ações interdisciplinares que
contribuam com os educandos do campo para que sejam capazes de localizar, na realidade
de suas ações, os diferentes campos do conhecimento científico que podem contribuir
para ampliar sua compreensão de determinados fenômenos com os quais se deparam. E,
ainda como parte dos desafios da promoção de práticas educativas interdisciplinares,
encontra-se o de promover também, como corolários delas, ações educativas que sejam
capazes de promover processos de ensino aprendizagem que avancem em direção à
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
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superação da fragmentação do conhecimento, oportunizando formas e espaços de
compreensão que contribuam para construir com os educandos uma visão de totalidade
dos processos sociais.
E, tanto a interdisciplinariedade, quanto a superação da fragmentação do
conhecimento encontram seu melhor campo de materialização a partir da principal
transformação que se deve processar nas Escolas do Campo, para que, de fato, elas
possam vir à atuar a partir das expectativas que movimentos sociais camponeses
constroem em torno dela: ter o trabalho socialmente útil como o mais relevante princípio
educativo. Este é, ao mesmo tempo, o mais importante e mais difícil princípio a ser
materializado nas Escolas do Campo, pelas inúmeras complexidades teóricas e práticas
que o integram.
A proposta de trazer o trabalho para dentro da Escola do Campo, com a perspectiva
de teórica de produzir práticas educativas que contribuam, de fato, para promover a
superação da distinção entre o trabalho manual e o trabalho intelectual; que rompam com
a separação operada no capitalismo, do trabalhador do produto do seu trabalho, tem
encontrado inúmeras dificuldades. Desde as burocráticas, que passam pelas
determinações das redes municipais e estaduais de Educação, em relação exigências da
carga horária e do cumprimento do que está previamente definindo como currículo a ser
trabalhado, impedindo a materialização de experiências concretas fora desta “grade”, até
as próprias dificuldades de compreensão dos pais dos estudantes sobre o porque se está
“propondo que seus filhos trabalhem na escola, se não queremos que nossos filhos
repitam nossa trajetória”. (MACHADO, 2014) Como enfrentar os desafios da inserção
sentido educativo e formativo do trabalho, se a prática concreta de trabalho que vivenciam
as famílias camponesas, é em sua maioria, de desumanização e de exploração? Embora
estejam em curso experiência bastante desafiadoras conduzidas pelos egressos nesta
direção, conforme a experiência em curso no Escola do Vale da Esperança a superação
desta contradição está longe de passar apenas por dimensões pedagógicas...
3. Desafios às transformações no âmbito das relações sociais da Escola do Campo
Diferentes dimensões da escola devem-se ser transformadas para que ela possa ir
adquirindo as marcas da Educação do Campo, e ir se aproximando da concepção
construída por este Movimento do que seria uma Escola do Campo. Esta Escola do
Campo, idealizada nestes quinze anos de luta do Movimento e materializada em
diferentes gradações e dimensões em práticas sociais conduzidas pelos sujeitos coletivos
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 302597
do campo, organizados em diferentes tipos de movimentos sociais e sindicais no meio
rural brasileiro, tem, como uma das dimensões centrais de intervenção destes coletivos, o
conjunto das relações sociais que ocorrem dentro da escola.
A partir da compreensão teórica segunda a qual a escola, com sua lógica de
organização; de funcionamento; com seus ritmos; rituais e procedimentos, de uma
maneira geral, hierárquicos; autoritários; pouco participativos e centralizadores, ensina
muito mais que apenas conteúdos científicos (Freitas, 2006) e, muito mais, um
determinado tipo de postura na vida e nas relações nas quais se inserem os sujeitos que
esta escola (des)educa, é necessário estar atento à lógica subjacente a estes processos e
rituais, intencionalizando ações que sejam capazes de subverte-los.
Se, neste conjunto de processos e procedimentos a escola vai cultivando posturas
de submissão; de pouca ou nenhuma participação; de mero cumprimento de normas sem
instigar o desejo e a vontade de se conhecer como; porque; para quem e com objetivos
foram e são feitas estas normas; de acatamento das decisões tomadas por um diretor que
tudo sabe e resolve, sem ouvir o coletivo da escola, vai-se, cada vez mais, aproximando-
se da formação de coletivos de educandos com as características da clássica metáfora
descrita por Freitas, ao referir-se às instituições que inspiraram a escola capitalista - o
exército e a igreja: educandos que se conformam em ser um “rebanho disciplinado”.
Ora, se ao contrário disto, a partir dos princípios do Movimento da Educação do Campo,
cuja fonte de inspiração é a pedagogia socialista, o que se quer com os processos, ritmos
e ritos, nas Escolas do Campo, é cultivar posturas e práticas que ajudem a formar lutadores
e construtores do futuro, como diria Pistrak, é preciso incidir fortemente sobre este tipo
de relação social, produzindo e cultivando relações de outro tipo.
Por isto, as relações sociais na Escola do Campo devem intencionalmente ser
direcionadas para promover cada vez mais, o trabalho coletivo e participativo, em
diferentes níveis e dimensões. O trabalho coletivo dos educadores, organizados em
diferentes frentes, implicando as áreas de conhecimento nas quais atuam; os ciclos ou
séries com as quais trabalham; os componentes curriculares que ministram, enfim,
diferentes possibilidades devem ser vivenciadas e exercitadas, na perspectiva de conceber
e exercitar práticas didáticas que oportunizem o trabalho coletivo e com ele, e através
dele, também promovam, simultaneamente, a superação da fragmentação do
conhecimento.
Na experiência da Licenciatura em Educação do Campo da Universidade de Brasília
vimos tentando materializar esta experiência do trabalho coletivo dos educadores,
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 302598
também em diferentes níveis e frentes. Tem se buscado primeiro o trabalho coletivo dos
docentes a partir das próprias áreas de habilitação que os articulam, seja nas Ciências da
Natureza ou nas Linguagens, posto ser este quase uma exigência da formação por área.
E, em grande medida, esta exigência acabou, em nossa experiência concreta na LEDOC
UnB, funcionado como uma mola propulsora que obrigava inicialmente os docentes de
uma mesma área a sentar juntos para trabalhar e planejar o desenvolvimento dos Planos
de Estudo, não sem grande dificuldades e resistências.
À medida que a oferta das turmas da LEODC foi avançando, com relevantes
diferenças entre as habilitações ofertadas, acabou-se por conseguir também avançar no
trabalho coletivo dos educadores, estando hoje em curso diferentes tipos de práticas e
articulações coletivas que em sido benéficas ao perfil de educador do campo que se quer
edificar. Nas dissertações e teses sobre a Licenciatura defendidas no PPGE/UnB, há
inúmeras referências feitas pelos estudantes e egressos, das práticas que se tem
desenvolvido, tanto no estágios, quanto nas próprias aulas que estes têm assumido, que
expressam como eles tem se esforçado, e, em muitos casos, obtido resultados bem
positivos, de promover um trabalho mais coletivo entre os educadores que já atuam nestas
escolas . (Santos, 22012b; Barbosa, 2012; Machado, 2014)
Orientados pela mesma intencionalidade de promover práticas educativas no
percurso formativo da LEDOC que estimule a formação de lutadores e construtores do
futuro, tal como nos instigava Pistrak (2000), ao falar das funções da escola num processo
de transformação social, tem se buscado oportunizar aos educadores em formação nesta
Licenciatura, diferentes espaços e estratégias de trabalho que promovam e cultivem a sua
auto-organização.
No Projeto Político Pedagógico da Licenciatura em Educação do Campo da UnB,
construído em parceria com o ITERRA, que foi nosso parceiro na oferta da experiência
piloto da LEDOC, institui-se um relevante conjunto de mecanismos para promover esta
auto-organização, que, de maneira geral, podem ser sintetizados a partir da idéia de
oportunizar aos educandos a vivência de processos de democracia ascendente e descente,
no qual são debatidos e decididos, processualmente, com a participação dos educandos,
nas várias instâncias coletivas que serão criadas para sua inserção (Grupos de
Organicidade; Setores de Trabalhos; Comissão Político Pedagógica e Plenária da
Turma),diferentes aspectos relativos à materialização das intencionalidades pedagógicos
do currículo proposto. (Barbosa, 2012; Pereira, 2013).
Compreendemos que este processo de auto-organização é extremamente relevante
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 302599
para dar materialidade a um dos princípios fundantes da Educação do Campo, e que, deve
ser uma das principais marcas de uma Escola do Campo: ter o protagonismo dos
educandos na condução da vida escolar, entendendo a escola, já como parte da vida dos
sujeitos, e não, como preparação para a vida (Pistrak, 2000). Ora, se queremos formar
sujeitos camponeses que sejam capazes de compreender as contradições presentes nas
relações sociais existentes na realidade e sobre elas intervir, nada melhor do que exercitar,
concretamente, este processo de compreensão sobre as contradições presentes nas
relações sociais na escola, construindo coletivamente, caminhos democráticos e
participativos para sua superação.
Como corolário deste processo de criação de coletivos de educadores, e do cultivo à
auto-organização dos educandos nos processos formativos, tem-se buscado cultivar
também, como parte da gestão democrática da Escola do Campo, a presença e
participação da comunidade camponesa do território no qual insere esta escola no seu
interior. Durante todo o percurso da formação destes educadores na Licenciatura em
Educação do Campo, através de componentes curriculares presentes desde os primeiros
períodos de Tempo Escola e Tempo Comunidade, tem-se buscado intencionalizar a
imprescindível relação que as Escolas do Campo necessitam construir com a comunidade
que vive no território no qual ela se localiza, e que, em última instância, dá sentido a sua
existência. Se, estes sujeitos forem desterritorializados, pelas intensa lógicas de avanço
do capital no campo, a partir do modelo de organização da agricultura proposto pelo
agronegócio, esta escola deixará de existir, e com ela, o sentido e os esforços de
construção de propostas específica para formar educadores do campo.
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Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 302601