Universidade de Lisboa
Faculdade de Letras
Departamento de Histria
Corrupo e Incria no Santo Ofcio: Funcionrios e Agentes
sob Suspeita e Julgamento
Joo Henrique Costa Furtado Martins
Mestrado em Histria
(Histria Moderna e Contempornea)
2013
Universidade de Lisboa
Faculdade de Letras
Departamento de Histria
Corrupo e Incria no Santo Ofcio: Funcionrios e Agentes
sob Suspeita e Julgamento
Joo Henrique Costa Furtado Martins
Dissertao de mestrado em Histria Moderna e Contempornea orientada
pela Professora Doutora Isabel Drumond Braga
2013
ndice
Agradecimentos......................................................................................................................... 1
Resumo ........................................................................................................................................ 2
Abstract....................................................................................................................................... 3
Siglas e abreviaturas ................................................................................................................ 4
Introduo .................................................................................................................................. 5
Estado da Questo .................................................................................................................... 7
Parte I - Inquisio e Disciplinamento Social
1.1 O Santo Ofcio como Mecanismo de Disciplinamento ..................................................... 10
1.2 Contra o Recto Ministrio do Santo Ofcio ....................................................................... 15
Parte II - Alcaides e guardas dos crceres
2.1 Alcaides: Funes ............................................................................................................. 19
2.2 Guardas: Funes .............................................................................................................. 21
2.3 Alcaides e Guardas: Crimes, Motivaes e Consequncias .............................................. 23
Parte III - Familiares e Comissrios do Santo Ofcio
3.1 Familiares: Funes........................................................................................................... 56
3.2 Familiares: Crimes, Motivaes e Consequncias ............................................................ 59
3.3 Comissrios: Funes ............................................................................................ 84
3.4 Comissrios: Crimes e Motivaes ................................................................................... 86
Parte IV - Solicitadores e Qualificadores
4.1 Solicitadores: Funes....................................................................................................... 92
4.2 Solicitadores: Crimes, Motivaes e Consequncias ........................................................ 94
4.3 Qualificadores: Funes .................................................................................................... 96
4.4 Qualificadores: Crimes, Motivaes e Consequncias ..................................................... 97
Parte V Caracterizao Sociolgica ................................................................................ 99
Concluso ................................................................................................................................. 102
Anexos ..................................................................................................................................... 105
Fontes e Bibliografia ............................................................................................................ 117
1
Agradecimentos
Em primeiro lugar, agradecemos nossa orientadora Professora Doutora Isabel
Drumond Braga, por todas as sugestes que to amavelmente nos fez, por toda a
dedicao, pacincia, ateno e minucia com que corrigiu cada pargrafo durante a
elaborao da presente dissertao. Deixamos ainda uma palavra de agradecimento a
Lus Magalhes e a Torsten Arnold por todas as horas de trabalho partilhadas e
Andreia Ferreira pelo auxlio na leitura dos processos. Um agradecimento especial para
a famlia sem a qual esta etapa no teria sido possvel concluir e para a Ana por todo o
companheirismo.
2
Resumo
O Tribunal do Santo Ofcio em Portugal surgiu no ano de 1536 aps vrias
tentativas de implementao por parte do poder rgio. Esta instituio foi criada com o
objectivo principal de controlar os comportamentos desviantes dos cristos-novos, tem,
desde logo, autoridade sobre vrios delitos at ento sob alada dos Tribunais vigentes
na poca, sendo por isso, um agente destacado no processo de disciplinamento social.
Os que prejudicavam o normal funcionamento inquisitorial eram acusados de irem
contra o recto procedimento do Santo Ofcio. O nosso estudo centra-se nos
funcionrios e agentes que cometeram este crime, focando as motivaes e sanes de
que foram alvo, tal como as consequncias que advieram do seu comportamento, tanto
para si prprios, como para a credibilidade do Santo Ofcio.
Os delitos eram cometidos de mltiplas formas, desde actos de corrupo,
vinganas, at simples negligncia na execuo de funes. O medo que o Santo
Ofcio infligia e o lugar ocupado por estes indivduos propiciava a predisposio de
alguns funcionrios para abusos de poder como forma de coero e vingana, alm do
sentimento de impunidade perante as restantes foras judiciais. Numa sociedade
profundamente estratificada, a condenao por um tribunal como o da Inquisio era
sinnimo de excluso social para o prprio e seus familiares, sendo esse um dos medos
que pairava sobre os condenados.
Palavras-Chave: Tribunal do Santo Ofcio, funcionrios e agentes, corrupo,
incria, Portugal
3
Abstract
After several attempts of implementation by the royal institutions the Court of
the Holy Office in Portugal was introduced in 1536. Created to fulfill the principal
objective to control uncommon practices of the new-christians, this institution since the
beginning of its existence had the authority to observe and control several delicts or
crimes. During the time period, court of the Holy Office became the respective
executing institution of social disciplinary punishments. The ones who prejudiced the
normal proceedings of the inquisition were accused of act against the correct
proceedings of the Holy Office. Our study focuses on these crimes committed by the
agents and officials presenting motives motives and penalties as well as the
consequences for the respective individuals as well as for the credibility of the Holy
Office itself.
The delicts of which the individuals were accused of were committed in various
forms such acts of corruption, revenge or negligence in the execution of the responsible
functions. The fear inflicted by the Holy Office and the position occupied these
individuals favored the affinity of some officials abusing their power by forms of
pressure, revenge, without regarding the feeling of exemption of punishment regarding
the remaining juridical institutions. In a society characterized by its distinct social
classes, the condemnation by a court such as the inquisition was the synonym of social
exclusion of the respective individual and his family members; one of the pendant fears
of the convicted.
Key words: Court of the Holy Office, agents and officials, corruption,
negligence, Portugal
4
Siglas e abreviaturas
ANTT Arquivo Nacional Torre do Tombo
n(s) nmero(s)
p(p) pgina(s)
proc. processo
s.n sem nome
s.p sem paginao
vol(s) volume(s)
5
Introduo
Com a presente dissertao pretende perceber-se as motivaes dos funcionrios
do Santo Ofcio resultantes do mau desempenho das suas funes. No esquecendo as
implicaes para as vtimas, analisam-se os processos e as diferentes condenaes,
consoante a gravidade dos crimes, fazendo-se comparaes entre os casos sempre que
se julgar necessrio. Objecto de estudo sero tambm as implicaes para o
desenvolvimento dos processos de outros rus quando a violao do segredo por parte
de funcionrios inquisitoriais tiver consequncias visveis. O segredo utilizado pelo
Santo Ofcio, como meio de causar temor e acentuar o respeito da sociedade por este
Tribunal, era utilizado pelos prevaricadores como refgio para os seus actos ilcitos. O
prestgio que os funcionrios do Santo Ofcio detinham na sociedade, facilitava a
execuo de crimes por parte destes agentes, aproveitando-se da sua credibilidade e do
temor que colhiam junto das populaes para perpetrarem actos ilcitos.
O nosso trabalho foi estruturado num primeiro momento onde se abordou o
disciplinamento social, no qual se insere a actividade do Santo Ofcio, posteriormente
incluiu-se uma alnea sobre o crime contra o recto ministrio do Santo Ofcio que se
estuda ao longo do trabalho. Seguidamente, temos o desenvolvimento da dissertao,
onde optmos por dividi-lo em quatro partes, trs delas com uma abordagem aos
regimentos e crimes: o primeiro referente aos alcaides e guardas; o segundo tocante
aos familiares e comissrios; por fim, o ltimo aborda solicitadores e qualificadores.
Esta diviso teve por critrio as categorias das funes exercidas por cada grupo de
agentes do Santo Ofcio. Os alcaides e guardas esto agrupados por pertencerem
mesma esfera de aco: o crcere e por existirem crimes cometidos em conjunto; os
familiares e comissrios por estarem directamente inseridos na comunidade e, por fim,
os qualificadores e solicitadores por desenvolverem um trabalho que no estava to
prximo dos visados por crimes pertencentes ao Tribunal do Santo Ofcio. Finalmente,
6
pode encontrar-se uma ltima parte antes das consideraes finais, dedicada
caracterizao social dos indivduos estudados.
A metodologia para a realizao da presente dissertao de Mestrado assenta na
recolha dos dados relevantes contidos nos processos que se encontram no Arquivo
Nacional da Torre do Tombo. O estudo incidir sobre os trs tribunais inquisitoriais de
vora, Lisboa e Coimbra. A cronologia ser o perodo em que o Santo Oficio funcionou
em Portugal (1536-1821), pois o nmero de processos diminuto, pelo que no se
justifica uma delimitao temporal menor. Alguns processos no entraram no estudo,
devido ao seu mau estado de conservao que no permitiu a sua consulta, apenas os
processos de Lisboa esto totalmente acessveis por se encontrarem on-line.
O nmero de processados pelo Tribunal de Lisboa ascende aos 31 indivduos.
Dos 29 processos da Inquisio de Coimbra, entraram no nosso estudo 16. Por ltimo,
aparece-nos o Tribunal de vora com 11 processados, tendo sido consultados nove
processos. Para se conseguir ter uma apreenso mais clere a visualizar os processos
recolhidos, elabormos o quadro que se encontra em anexo contendo as principais
informaes contidas nos processos. De fora deste estudo fica a investigao dos
Cadernos do Promotor e as habilitaes por questes que se prendem com o espao
temporal concedido para a realizao da tese, no ser o suficiente para uma abordagem
sria e exaustiva dessas fontes como se pretendia. Teremos ainda em considerao neste
estudo, as visitas realizadas aos tribunais de Lisboa, em 1571, e em meados do sculo
XVII que se encontram publicadas.
A bibliografia que suportar a dissertao ser a mais abrangente possvel tendo
em conta a temtica em estudo. No existindo bibliografia detalhada sobre o tema que
nos propusemos abordar, procurar-se- ir em busca do suporte bibliogrfico que melhor
se coadunar com uma confrontao slida, que ir ser trabalhada ao longo do percurso
de elaborao do nosso estudo.
7
Estado da Questo
A nossa proposta de dissertao de Mestrado em Histria Moderna, est inserida
nos estudos sobre a actuao do Santo Ofcio em Portugal. Dentro da ampla temtica,
propomos estudar os funcionrios inquisitoriais que foram alvo de processos levantados
pelo Tribunal da Inquisio, por crimes que figuravam como sendo contra o recto
ministrio do Santo Ofcio, expresso utilizada na poca para definio, de entre outros
actos, o mau desempenho de funes, deixando de parte crimes de outras qualidades
que estes possam ter cometido. O interesse sobre esta temtica especfica, surgiu ainda
na licenciatura, no trabalho realizado para a unidade curricular Seminrio de Histria
Moderna, onde houve uma abordagem inicial problemtica proposta, relativa a um
estudo de caso de um familiar do Santo Ofcio que abusou do seu cargo, extravasando
as suas competncias, para poder extorquir dinheiro, valendo-se da condio
privilegiada na sociedade, associada ao seu cargo.
A pertinncia de um estudo de ndole mais incisiva sobre a aco prevaricadora
dos funcionrios que assumiam comportamentos marginais s competncias e s
funes dos seus cargos, justificada pela falta de investigaes aprofundadas acerca
desta temtica. No entanto, so encontradas referncias a funcionrios que actuavam na
metrpole, em trabalhos acadmicos que tm vindo a ser realizados por estudiosos
como Antnio Borges Coelho1, Elvira Cunha de Azevedo Mea
2 ou Paulo Drumond
Braga3 que na sua tese de doutoramento sobre a actuao da Inquisio nos Aores,
enuncia problemas com funcionrios existentes no dito arquiplago. Isabel Drumond
1 Antnio Borges Coelho, Inquisio de vora: dos Primrdios a 1668, vol.1, Lisboa, Caminho, 1987,
pp. 287 e 289. 2 Elvira Cunha de Azevedo Mea, A Inquisio de Coimbra no sculo XVI: A Instituio, os Homens e a
Sociedade, Porto, Fundao Eng Antnio de Almeida, 1997, pp. 169-174 e 347-354; ver tambm da
mesma autora, Cotidiano entre as Grades do Santo Ofcio, Em Nome da F, Estudos In Memoriam de Elias Lipiner, direco de Nachman Falbel, Aurchan Milgram e Alberto Dires, SP, Editora Perspectiva,
1999, pp. 131-144. 3 Paulo Drumond Braga, A Inquisio nos Aores, Ponta Delgada, Instituto Cultural de Ponta Delgada,
1997, pp. 36; ver tambm Paulo Drumond Braga, Uma Confraria da Inquisio: a Irmandade de So
Pedro Mrtir (breves notas), Arquiplago. Histria, 2. srie, vol. II, Ponta Delgada, Universidade dos
Aores, 1997, pp. 449-458; Paulo Drumond Braga, Estrangeiros ao Servio da Inquisio Portuguesa,
in Estudos em Homenagem a Joo Francisco Marques, vol. I, Porto, Faculdade de Letras da
Universidade do Porto, 2001, pp. 253-260.
8
Braga4 fez referncia a um comissrio natural de Madrid acusado de mau
comportamento e mau desempenho das suas funes, mais recentemente elaborou um
trabalho sobre o quotidiano nos crceres. Na dissertao de Mestrado defendida por
Ricardo Pessa de Oliveira5 existem notcias de funcionrios que tiveram um
comportamento desviante, nomeadamente familiares do Santo Ofcio, um comissrio e
um guarda dos crceres. Nelson Vaquinhas6 com o seu estudo sobre a actuao do Santo
Ofcio no Algarve referiu um carcereiro que colocou em causa, por diversas vezes, o
bom funcionamento do Tribunal. Destacamos ainda Fernanda Olival7 com os seus
estudos acerca dos funcionrios inquisitoriais e Marco Antnio8 que escreveu um artigo
sobre o quotidiano do crcere incidindo fundamentalmente nos Cadernos do Promotor.
Para o espao colonial destacamos Clia Tavares9, que na sua dissertao de
Doutoramento, incluiu um captulo denominado de Inquisio versus Inquisio: a
visitao ao Tribunal de Goa, onde so visados por comportamento incorrecto diversos
4 Isabel Drumond Braga, Os Estrangeiros e a Inquisio Portuguesa: Sculos XVI e XVII, Lisboa, Hugin,
2002, p. 291. O processo deste funcionrio ser abordado na dissertao; Isabel Drumond Braga,
Crcere mais spero do que permite a Razo do Direito. O Quotidiano nas Prises do Santo Ofcio, Lisboa, Esfera dos Livros, no prelo; ver tambm Isabel Drumond Braga, A Mulatice como Impedimento de Acesso ao Estado do Meio, Actas do Congresso Internacional Espao Atlntico de Antigo Regime: Poderes e Sociedades, Lisboa, Instituto Cames, 2008, pp. 1-12 (disponvel on-line em
http://cvc.instituto-camoes.pt/); Idem, Santo Ofcio, Promoo e Excluso Social: O Discurso e a Prtica, Lusada Histria, srie II, n 8, Lisboa, 2011; Idem, Bens de Hereges. Inquisio e Cultura Material Portugal e Brasil (sculos XVII-XVIII), Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012;
Idem, Controlando as Conscincias: D. Antnio Caetano de Sousa e a Censura de Livros no Portugal do sculo XVIII, Instituciones y Centros de Reclusin Colectiva. Formas y Claves de una Respuesta Social (s. XVI-XX), coordenao de Laureano M. Rubio Prez, Len, Universidade de Len, 2012, pp. 177-194. 5 Ricardo Pessa de Oliveira, Uma Vida no Santo Ofcio : o Inquisidor Geral D. Joo Cosme da Cunha,
Lisboa, Tese de mestrado em Histria Moderna apresentada Faculdade de Letras da Universidade de
Lisboa, 2007, pp. 115, 127, 128; do mesmo autor ver tambm, Para o Estudo da Irmandade de So Pedro
Mrtir no final do sculo XVIII, Actas do IV Congresso Histrico de Guimares Do Absolutismo ao
Liberalismo, vol. I, Guimares, Cmara Municipal de Guimares, 2009, pp. 509-530. 6 Nelson Vaquinhas, Da Comunicao ao Sistema de Informao. O Santo Oficio e o Algarve (1700-
1750), Lisboa, Colibri, 2010, pp. 130-133. 7 Fernanda Olival, Clero e famlia: os Notrios e Comissrios do Santo Ofcio no Sul de Portugal (o caso
de Beja na Primeira Metade do sculo XVIII), direco de Giovanni Levi, Familias, Jerarquizacin y
Movilidad Social, Mrcia, Universidade de Mrcia, 2010, pp. 101-112 (disponvel on-line em
http://dspace.uevora.pt/); Idem, A Visita da Inquisio Madeira em 1591-92, Actas do III Colquio
Internacional de Histria da Madeira, Funchal, Secretaria Regional do Turismo e Cultura,1993, pp.499-
501; ver tambm da mesma autora Rigor e Interesses: os Estatutos de Limpeza de Sangue em Portugal,
Cadernos de Estudos Sefarditas, n 4, 2004, pp. 151-182; e, Comissrios das Ordens Militares e
Comissrios do Santo Ofcio: dois Modelos de Actuao., As Ordens Militares. Freires, Guerreiros,
Cavaleiros. Actas do VI Encontro sobre Ordens Militares, Coordenao de Isabel Cristina Ferreira
Fernandes, vol 1, Palmela, GEsOS/ Municpio de Palmela, 2012, pp. 477- 490 8 Marco Antnio, Nos crceres no h segredo nenhum e que se falam mui livremente como se
estivessem em suas casas, Estudos de Historia do Cotidiano, organizao de Edgar Gandra e Paulo Possamai, Pelotas, Edies da UFPEL, 2011. pp. 37-61. 9 Clia Tavares, Jesutas e Inquisidores em Goa : a Cristandade Insular (1540-1682), Lisboa, Roma
Editora, 2004, pp. 171 a 174.
9
funcionrios, incluindo um inquisidor. Mencionamos ainda o contributo de Daniela
Buono Calainho10
com os seus estudos sobre familiares do Santo Ofcio, encontrando-se
entre os estudados alguns prevaricadores. Miguel Jos Rodrigues Loureno11
trabalhou
sobre o comissariado do Santo Ofcio em Macau. Sobre comissrios, qualificadores e
notrios da Inquisio portuguesa na Baa enunciamos o estudo de Grayce Mayre
Bonfim12
. Lucas Maximiliano Monteiro13
fez um estudo prosopogrfico sobre os
familiares do Santo Ofcio no Brasil. Ainda no mesmo espao geogrfico encontramos
os trabalhos de Luiz Mott14
sobre um comissrio chamado Joo Calmon e sobre os
familiares em Rio Grande de So Pedro e Colnia de Sacramento, por fim, referimos
Aldair Carlos Rodrigues que elaborou um perfil sociolgico dos comissrios no
Brasil15
. Relembramos que nenhum trabalho se refere especialmente ao mau
desempenho de funes. As abordagens foram prioritariamente dedicadas s carreiras e
relao entre funcionrios e estatutos sociais.
10
Daniela Buono Calainho, Agentes da F, Familiares da Inquisio Portuguesa no Brasil Colonial, So
Paulo, EDUSC, 2006, pp. 152-156; Idem, Pelo Reto Ministrio do Santo Ofcio: Falsos Agentes
Inquisitoriais no Brasil Colonial, A Inquisio em Xeque : Temas, Controvrsias, Estudos de Caso,
organizao de Ronaldo Vainfas, de Bruno Faitler e de Lana Lage da Gama Lima Rio de Janeiro,
EdUERJ, 2006, pp. 87-102. 11
Miguel Jos Rodrigues Loureno, O Comissariado do Santo Ofcio em Macau (c. 1582- c. 1644): A
Cidade do Nome de Deus na China e a Articulao da Periferia no Distrito da Inquisio de Goa,
Lisboa, Tese de Mestrado em Histria dos Descobrimentos e da Expanso Portuguesa apresentada
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2007, exemplar policopiado. 12
Grayce Mayre Bonfim Souza, Para Remdios das Almas: Comissrios, Qualificadores e Notrios da
Inquisio Portuguesa na Bahia, Baa, Tese de Doutoramento em Histria Social apresentada
Universidade Federal da Baa, 2009, exemplar policopiado (disponvel on-line em http://www.catedra-
alberto-benveniste.org/). 13
Lucas Maximiliano Monteiro, Os Familiares do Santo Ofcio: um estudo prosopogrfico em Colnia
de Sacramento no sculo XVIII, XIV Encontro Regional da ANPUH Rio Memria e Patrimnio, Rio
de Janeiro, Julho de 2010, [s.p] (disponvel on-line em http://www.eeh2010.anpuh-rs.org.br/). 14
Luiz Mott, O Cnego Joo Calmon, Comissrio do Santo Ofcio na Bahia Setecentista, Bahia:
Inquisio e Sociedade, Salvador, EDUFBA, 2010, pp. 43-64 (disponvel on-line em
https://repositorio.ufba.br/); Idem, Ser Familiar do Santo Ofcio via Redes Sociais: os Vnculos entre
Agentes Inquisitoriais e suas Testemunhas em Rio Grande de So Pedro e Colnia de Sacramento (sculo
XVIII) , Revista de Histria, vol. 2, n 2, Baa, UFBA, 2010, pp. 35-58 (disponvel on-line em
http://www.revistahistoria.ufba.br/2010_2/a03.pdf). 15
Aldair Carlos Rodrigues, Os Comissrios do Santo Ofcio no Brasil: Perfil Sociolgico e Insero
Institucional (sculo XVIII), Honra e Sociedade no mundo ibrico e ultramarino. Inquisio e Ordens
Militares sculos XVI-XIX, coordenao de Ana Isabel Lpez-Salazar; Fernanda Olival; Joo Figuera-
Rego, Casal de Cambra, Caleidoscpio, 2013, pp.183-206.
10
Parte I
Inquisio e Disciplinamento Social
1.1 O Santo Ofcio como Mecanismo de Disciplinamento
O sculo XVI trouxe mutaes no seio do Cristianismo, as chamadas reformas
protestantes, suscitaram uma resposta da Igreja Catlica, resposta esta firmada no
Conclio de Trento, entre diversas decises a par de alteraes de mbito teolgico
visou-se a reforma dos comportamentos do clero e dos leigos, atravs do
disciplinamento dos agentes da Igreja16
. Para conseguir o efeito desejado a Coroa e a
Igreja uniram esforos e utilizaram instrumentos de disciplinamento social de ndole
coerciva e de ndole pedaggica sendo, porm, a linha de fronteira entre estes dois
conceitos muito tnue, pois possvel encontrar as duas caractersticas no mesmo
contexto17
. Com caractersticas coercivas encontramos os tribunais episcopais, o
Tribunal do Santo Ofcio, a censura e as visitaes18
. De caracter pedaggico
16 Mafalda Ferin Cunha, Reforma e Contra-Reforma, Lisboa, Quimera, 2002, pp. 81-123; Sobre a problemtica do disciplinamento social, cf. Frederico Palomo, "Disciplina Christiana" Apuntes Historiogrficos en Torno a la Disciplina y el Disciplinamiento Social como Categorias de la Historia
Religiosa de la Alta Edad Moderna, Cuadernos de Histria Moderna, Madrid, n18, pp. 119-136 (disponvel on-line em http://revistas.ucm.es/); Maria Luisa Candau Chacn, Disciplinamiento Catlico e Identidad de Gnero. Mujeres, Sensualidad y Penitencia en la Espaa Moderna, Barcelona, Manuscrits, 25, 2007, pp. 211-237 (disponvel on-line em http://www.raco.cat/); Jos Pedro Paiva, El
Estado en la Iglesia y la Iglesia en el Estado Contaminaciones, Dependencias y Disidencia entre la
Monarqua y la Iglesia del Reino de Portugal (1495-1640), Barcelona, Manuscrits 25, 2007, pp.45-57
(disponvel on-line em http://ddd.uab.cat/); Ronald Po-Chia Hsia, Disciplina Social y Catolicismo en la Europa de los siglos XVI y XVII, Barcelona, Manuscrits, 2007, pp. 29-43 (disponvel on-line em http://www.raco.cat/). 17
Frederico Palomo, A Contra-Reforma em Portugal, 1540-1700, Lisboa, Livros Horizonte, 2006, p. 57. 18
Joaquim de Carvalho e Jos Pedro Paiva, Visitaes, Dicionrio de Histria Religiosa de Portugal,
direco de Carlos Moreira Azevedo, vol. P-V, coordenao de Ana Maria Jorge, et al, Lisboa, Circulo de
Leitores SA, e Centro de Estudos de Histria Religiosa da Universidade Catlica Portuguesa, 2001, pp.
365-369.
11
encontramos os livros de devoo, catecismos, os sermes, as imagens, os catecismos,
as peas de teatro, entre outros instrumentos19
.
Portugal no foi excepo no panorama europeu, criando os seus instrumentos
de regramento, com a finalidade de reger os comportamentos na sociedade da poca. O
poder rgio enquanto agente poltico alargou a sua ingerncia junto s elites clericais do
Reino, com o objectivo de as controlar face a poderes exteriores ou interiores, sob a
forma de reformas, que eram promovidas desde finais do sculo XV20
. A essas reformas
no escaparam as ordens religiosas durante o reinado de D. Joo III. No reinado deste
monarca foi ainda nomeado o Cardeal D. Henrique irmo do rei como legado ad
latere, ou seja representante do Papa, o que facilitou as reformas no clero regular e a
ingerncia no governo das ordens religiosas21
. Outra criao usada para reforar o poder
rgio na esfera religiosa, foi a Mesa da Conscincia e Ordens, destinada a atribuir
primazia justia rgia sobre a eclesistica22
.
A par do poder rgio, a Igreja foi um agente relevante no processo de
disciplinamento social, colaborando com o poder poltico, junto s populaes23
. A
figura do bispo como pastor presente na vida da sua comunidade, ntegro, orientador e
disciplinador e a sua autoridade na conduo das medidas reformadoras da Igreja,
saram reforadas com as decises do Concilio de Trento24
. Tanto os procos como as
ordens religiosas que j tinham um papel fundamental junto das populaes, foram
previamente alvo de um regramento por parte das directivas tridentinas para melhor
desempenharem a sua funo. O Tribunal do Santo Ofcio criado em 1536, que iremos
abordar com maior pormenor, foi mais um dos agentes de disciplinamento e vigilncia
que vigoraram na poca Moderna.
O Tribunal do Santo Ofcio foi criado sob jurisdio Papal, com o intuito de
combater as heresias. Portugal, contudo, s viria a conhecer a Inquisio no sculo XVI,
j com caractersticas diferentes de funcionamento e de relacionamento entre a Coroa e
o poder Papal, tendo aqui um papel fundamental a Inquisio castelhana - influenciando
a portuguesa - onde a Coroa adquiriu a prerrogativa de nomear o Inquisidor-Geral,
19
Frederico Palomo, A Contra-Reforma [], p. 57 e 58. 20
Frederico Palomo, A Contra-Reforma [], pp. 21 e 22. 21
Frederico Palomo, A Contra-Reforma [], p. 23. 22
Frederico Palomo, A Contra-Reforma [], p. 24 23
Frederico Palomo, A Contra-Reforma [], p.31. 24
Frederico Palomo, A Contra-Reforma [], pp.33 e 34.
12
havendo assim uma ligao estreita entre a esfera de domnio do religioso e do poder
civil, tipologia esta de relacionamento, caracterstica do perodo Moderno na Pennsula
Ibrica25
.
Portugal, pelo seu monarca D. Manuel I, em 1515, e em seguida por D. Joo III
requereu diversas vezes ao Papa, a instaurao do Tribunal do Santo Oficio. Pedido
esse, vrias vezes recusado, at ao ano de 1536, data da sua aprovao pela bula Cum ad
nihil magis, tendo sido este processo completado em 1547, com a bula papal Meditatio
Cordis, que delegava nesta instituio a jurisdio sobre os seus funcionrios. A
instaurao deste Tribunal em Portugal26
visava essencialmente punir os
comportamentos desviantes dos cristos-novos27
, tendo sido esta, uma das razes da
resistncia Papal ao pedido portugus, devido a presses feitas por judeus influentes.
No obstante, antes de instaurada a Inquisio em Portugal, ter sido dificultada a sada
do pas aos cristos-novos, alm da existncia de decretos emanados do poder rgio que
proibiam a inquirio aos recm-convertidos por um perodo de tempo determinado.
Com a vinda da Inquisio para Portugal, foram criados tribunais de distrito, que
sofreram alteraes ao longo do tempo, acabando por prevalecer os tribunais de Lisboa,
vora, Coimbra e Goa, a partir de 1560.
No perodo entre 1674 e 1681, o Papa imps a suspenso de todos os tribunais
de distrito, devido a uma petio de cristos-novos, bem como a denncias
relativamente ao mau funcionamento do Santo Oficio, por parte de agentes da prpria
Igreja, como o padre Antnio Vieira28
. No entanto, durante este perodo os presos
continuavam detidos, muitos sem saberem a razo de tal demora no desenrolar dos seus
processos29
. A Inquisio no se detinha apenas nos crimes de judasmo, apesar destes
constiturem a principal preocupao do Tribunal. Na esfera de aco do Santo Oficio
encontram-se tambm a punio de crimes como a sodomia, o perjrio, a bigamia, ou a
25
Francisco Bethencourt, Inquisio, Dicionrio de Histria Religiosa de Portugal, direco de Carlos
Moreira Azevedo, vol. C-I, coordenao de Ana Maria Jorge, Lisboa, ed. Circulo de Leitores SA, e
Centro de Estudos de Histria Religiosa da Universidade Catlica Portuguesa, 2001, pp.447- 453; Cf.
tambm, Francisco Bethencourt, Histria das Inquisies: Portugal, Espanha, e Itlia, Lisboa, Temas e
Debates,1996. 26
A bula foi conhecida primeiramente na cidade de vora e foi concedido um perodo de 30 dias de graa
para que quem tivesse cometido algum crime usufrusse de uma maior misericrdia da Inquisio, cf.
Giuseppe Marcocci e Jos Pedro Paiva, Histria da Inquisio Portuguesa 1536-1821, Lisboa, Esfera dos
Livros, 2013, pp. 23-24. 27
Foi com este propsito que foi feito o pedido da Instaurao do Tribunal a Roma. 28
Francisco Bethencourt, Inquisio, Dicionrio de Histria Religiosa de Portugal [], pp.447 453. 29
Giuseppe Marcocci e Jos Pedro Pais, Histria da Inquisio Portuguesa 1536-1821 [], pp. 208-209.
13
feitiaria, s para citar alguns exemplos. A partir do sculo XVIII, mais concretamente
com o governo do Marqus de Pombal, a tendncia de colocar o poder temporal em
sobreposio ao poder religioso, transforma o Tribunal do Santo Oficio numa
instituio onde o esprito clerical se ia perdendo em detrimento de um carcter secular,
confirmado pelo seu ltimo regimento de 1774 que proibiu os autos da f, tendo
anteriormente sido abolida a distino entre cristos-novos e cristos-velhos, o que
retirou da alada da Inquisio uma das suas principais intervenes na regulao da
sociedade, acabando esta por ser extinta em 1821, aps o pronunciamento liberal30
.
Aparentemente, a esfera de actuao do Tribunal do Santo Ofcio entraria em
conflito com os tribunais episcopais. Contudo, tal no era desejvel, ficando patente na
bula de fundao, ao deixar claro que os inquisidores deviam actuar em parceria com os
bispos31
. No de estranhar por isso, que estivesse presente nos editais das visitaes
levadas a cabo pelo Ordinrio a meno aos crimes de heresia como a feitiaria,
bigamia e outros, como tambm a referncia aos crimes maiores, a saber o islamismo, o
judasmo e o protestantismo32
. O Tribunal do Santo Ofcio foi autorizado
progressivamente a julgar crimes que at ento estavam sob a alada episcopal ou rgia,
como o crime de sodomia em 1553 ou de solicitao em 1599. Existiam crimes de foro
privativo do Tribunal do Santo Ofcio, estando apenas este tribunal autorizado a julga-
los e outros delitos, que poderiam estar tambm sob a alada dos tribunais episcopais33
.
Na estratificao social do Antigo Regime, o reconhecimento pblico da
dignidade obtinha-se atravs da nobilitao34
. Para desempenhar certos cargos e obter
dignidades era necessrio fazer-se prova da pureza de sangue, ou seja, o candidato tinha
de se sujeitar a uma investigao, denominada de processo de habilitao, com o intuito
30
Ana Leal de Faria, A Extino da Inquisio, Histria de Portugal. Dos tempos Pr-Histricos aos nossos dias, vol. VI, Judasmo, Inquisio e Sebastianismo, dirigida por Joo Medina, Amadora,
Ediclube 1994, pp 161-198; cf. tambm Giuseppe Marcocci e Jos Pedro Paiva, Histria da Inquisio
Portuguesa 1536-1821 [], p. 331-448. 31
Jos Pedro Paiva, Baluartes da F e da Disciplina: o Enlace entre a Inquisio e os Bispos em
Portugal: (1536-1750), Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2011, p. 36. 32
Jos Pedro Paiva, Baluartes da F e da Disciplina [...], p. 38. 33
Jos Pedro Paiva, Baluartes da F e da Disciplina [...], pp. 15-20. 34
Jos Veiga Torres, Da Represso Religiosa para a Promoo Social. A Inquisio como Instncia Legitimadora da Promoo Social da Burguesia Mercantil, Revista Crtica de Cincias Sociais, Coimbra, n 40, 1994, p.119. Sobre a mesma temtica Cf. Isabel Drumond Braga, A Mulatice como Impedimento de Acesso ao Estado do Meio, [], pp. 1 12 (disponvel on-line em http://cvc.instituto-camoes.pt/index.php?option=com_docman&task=cat_view&gid=76&Itemid=69); Joo de Figueira-
Rgo, A honra alheia por um fio: os Estatutos de Limpeza de Sangue no Espao de Expresso Ibrica: (scs. XVI-XVIII), Lisboa, Fundao Calouste Gulbenkian Fundao para a Cincia e a Tecnologia, 2011.
14
de verificar se tinha sangue de judeu, cigano, mouro ou negro35
. Uma forma de se tocar
a nobreza era obter uma carta de familiar do Santo Ofcio, assim certificava-se a
limpeza de sangue, os bons costumes e se algum dos seus familiares j tinha sido preso
pela Inquisio. Era a transposio desta prova que concedia ou reforava a ascenso
social para os que eram plebeus com recursos36
.
A Inquisio teve necessidade de controlar a pureza de sangue no seio da sua
rede de funcionrios, criando-se para o devido efeito mecanismos com o intuito de
investigar as linhagens dos seus ministros, oficiais e colaboradores a fim de certificar
que todos tinham o sangue limpo37. Este procedimento era idntico para se pertencer
s demais instituies, como a Universidade ou as ordens religiosas. Contudo, o sistema
de inquiries para aferir a limpeza de sangue no era to eficaz como o do Santo
Ofcio, tendo sido por isso, possvel passar entre as malhas de inquirio do resto das
instituies38
.
O Tribunal do Santo Ofcio foi uma instituio que concedia promoo social a
quem pertencia sua rede de funcionrios e agentes, em ordem inversa, promovia a
excluso social aos rus39
. necessrio evidenciar o Tribunal do Santo Oficio como
uma instncia de disciplinamento social, que pretendia promover o regramento tendo
como um dos veculos a teatralidade das suas penas pblicas40
. O Tribunal do Santo
Ofcio que tinha desde a sua criao como primeira actividade a represso, transformou-
se a partir do ltimo quartel do sculo XVII numa instituio dirigida para a promoo
social, obviamente sem esquecer a sua funo principal41
.
35
Isabel Drumond Braga, Santo Ofcio, Promoo e Excluso Social: [], p.229. Sobre limpeza de sangue ver tambm Fernanda Olival, Rigor e Interesses: os Estatutos de Limpeza de Sangue em Portugal, Cadernos de Estudos Sefarditas, n 4, 2004, pp. 151-182. 36
Isabel Drumond Braga, Santo Ofcio, Promoo e Excluso Social, [], p.230. 37
Jos Veiga Torres, Da Represso Religiosa [], p.114. 38
Jos Veiga Torres, Da Represso Religiosa [], p.114. 39
Isabel Drumond Braga, Santo Ofcio, Promoo e Excluso Social, [], p.228. 40
Isabel Drumond Braga, Santo Ofcio, Promoo e Excluso Social, [], p.242; Idem, A Mulatice como Impedimento de Acesso ao Estado do Meio [], pp. 1-12 (disponvel on-line em http://cvc.instituto-camoes.pt/). 41
Jos Veiga Torres, Da represso Religiosa [], p.113; Francisco Bethencourt, Histria das Inquisies: Portugal, Espanha, e Itlia [], pp. 122-133; Giuseppe Marcocci e Jos Pedro Paiva, Histria da Inquisio Portuguesa 1536-1821 [], pp. 239-260.
15
1.2 Contra o Recto Ministrio do Santo Ofcio
De entre os crimes sob a alada do Tribunal do Santo Ofcio, havia um conjunto
de delitos considerados como perturbadores do regular funcionamento do Tribunal que
eram denominados como crimes contra o recto ministrio do Santo Ofcio42. Assim,
eram perseguidos todos os indivduos que impediam e perturbavam as aces
inquisitoriais, quer fossem seus funcionrios ou no, nomeadamente, falsas
testemunhas, os que se faziam passar por funcionrios da Inquisio e quem abusava do
seu cargo no Santo Ofcio, este ltimo crime que iremos estudar na nossa dissertao,
entre outros delitos passiveis de perturbar o funcionamento deste Tribunal43
.
O Santo Ofcio teve quatro regimentos, preparando-se um quinto quando o
Tribunal foi extinto44
. Apenas o de 1640 e o de 1774, referem a configurao destes
crimes e as penas a aplicar45
. O regimento inquisitorial de 1640, elaborado por D.
Francisco de Castro, a este propsito apresenta um ttulo denominado Dos que
impedem e perturbam o ministrio do Santo Ofcio46, nele est contido que: Qualquer
pessoa que nas causas e negcios pertencentes f impedir ou perturbar o ministrio da
Inquisio por algum dos modos contidos neste ttulo ou outros semelhantes, alm de
incorrer em excomunho ipso facto e haver de abjurar conforme suspeita que contra
ela resulta e ser havida em direito por fautriz de hereges, ser condenada em pena de
aoites e degredo para as gals e nas mais arbitrrias que parecer aos inquisidores, os
quais nelas tero respeito ao que dispe os breves apostlicos dos Papas Jlio III, Pio V
e Urbano VIII contra os tais delinquentes e ao estilo recebido no Santo Ofcio47.
42
O monitrio de 1536, no faz referncia s prticas que se ligam aos delitos que figuram neste delito.
Ver a transcrio do monitrio em Maria Jos Pimenta Ferro Tavares, Judasmo e Inquisio. Estudos,
Lisboa, Editorial Presena, 1987, pp. 194-199. 43
Sobre o conjunto de crimes que perfazem o delito contra o recto ministrio do Santo Ofcio. Cf. Regimento de 1640, livro III, ttulo XXI; XXII; XXIV; Regimento de 1774, livro III, ttulo XVIII; XIX;
XXI, in Jos Eduardo Franco, Paulo de Assuno, As Metamorfoses de um Polvo [], pp. 370-374 e 475-477. 44
O primeiro regimento foi o de 1552, o qual se manteve indito. Cf. Regimento de 1552; Regimento de
1613; Regimento de 1640; Regimento de 1774, in Jos Eduardo Franco, Paulo de Assuno, As
Metamorfoses de um Polvo [], pp. 107-137; pp. 147 229; pp. 229 419; pp. 419 483. 45
Os regimentos de 1552 e 1613 no fazem referncia a esta tipologia de crime. 46
Regimento de 1640, livro III, ttulo XXI, in Jos Eduardo Franco, Paulo de Assuno, As Metamorfoses
de um Polvo [], p. 370. 47
Regimento de 1640, livro III, ttulo XXI, in Jos Eduardo Franco, Paulo de Assuno, As Metamorfoses
de um Polvo [], p. 370.
16
Os modos referidos na relao das penas a aplicar assentam nos crimes de
injria aos ministros do Tribunal enquanto funcionrios da Inquisio; de ameaas a
testemunhas e roubos de documentos, entre outros crimes48
. Alm destes delitos so
descritas as penas para os ministros e oficiais que revelem o segredo do Santo Ofcio,
que pela importncia que ter no desenvolvimento do nosso trabalho, passaremos a
citar: Se houver algum ministro ou oficial do Santo Oficio to esquecido de sua
obrigao que por malcia, rogos ou peitas, revele o segredo do Santo Ofcio ou faa
qualquer outra cousa em prejuzo do seu ministrio, impedindo-o e perturbando-o por
este modo, se a culpa que houver cometido for em matria grave, sendo ministro
eclesistico, ser privado do cargo que tiver e excludo do servio do Santo Ofcio e ter
as mais penas arbitrrias que couberem na qualidade de sua pessoa, para as quais se ter
respeito s circunstncias da culpa. E sendo oficial, alm de perder o ofcio que tiver na
inquisio e ser excludo na mesma forma, ser condenado em pena de aoites e
degredado para as gals, pelo tempo que parecer. E se a culpa que uns e outros
cometerem for em matria leve, se far o que fica ordenado no livro I, ttulo 3., 4749.
Dentro dos crimes considerados perturbadores do funcionamento do Santo
Ofcio, encontramos no regimento de 1640 ainda a meno aos que se faziam passar por
funcionrios inquisitoriais50
e aos que prestariam falso testemunho51
. Relativamente ao
primeiro crime enunciado, que envolvia pessoas que tivessem extorquido dinheiro
fingindo ter alguma ordem do Santo Ofcio ou que soubessem algum segredo, teriam de
48
Regimento de 1640, livro III, ttulo XXI, in Jos Eduardo Franco, Paulo de Assuno, As Metamorfoses
de um Polvo [], pp. 370 e 371. Isabel Drumond Braga faz referncia a indivduos que cometeram crimes contra o Santo Ofcio. Encontramos indivduos que injuriaram a Inquisio, o assassinato do
funcionrio Joo Martins quando este ia proceder priso do irmo de um mourisco chamado Garcia
Baxira e ainda pessoas que esconderam fugitivos e falsificaram documentos. Cf. Idem, Os Estrangeiros e
a Inquisio Portuguesa: sculos XVI e XVII, Lisboa, Hugin, 2002,pp. 290-294. 49
Regimento de 1640, livro III, ttulo XXI, in Jos Eduardo Franco, Paulo de Assuno, As Metamorfoses
de um Polvo [], p. 371. 50
Sobre indivduos que se faziam passar por funcionrios inquisitoriais, cf. Elvira Cunha de Azevedo
Mea, A Inquisio de Coimbra [], p. 186; Daniela Buono Calainho, Pelo Reto Ministrio do Santo
Ofcio: Falsos Agentes Inquisitoriais no Brasil Colonial [...], pp. 87-96; Idem, Agentes da F [], pp.
138-147; Isabel Drumond Braga, A Mulatice como Impedimento de Acesso ao Estado do Meio, Actas
do Congresso Internacional Espao Atlntico de Antigo Regime: Poderes e Sociedades, Lisboa, Instituto
Cames, 2008, pp. 1-12 (disponvel on-line em http://cvc.instituto-camoes.pt/); Grayce Mayre Bonfim
Souza, Para Remdios das Almas: Comissrios, Qualificadores e Notrios da Inquisio Portuguesa na
Baa, Tese de Doutoramento em Histria Social apresentada Universidade Federal da Baa, exemplar
policopiado, 2009, pp. 167; Isabel Drumond Braga, Santo Ofcio, Promoo e Excluso Social: O
Discurso e a Prtica, Lusada Histria, srie II, n 8, Lisboa, 2011; Bruno Lopes, A Inquisio em Terra
de Cristos-Novos. Arraiolos 1570-1773, Lisboa, Apenas Livros, 2013, pp. 192-193. 51
Regimento de 1640, livro III, ttulo XXII, in Jos Eduardo Franco, Paulo de Assuno, As
Metamorfoses de um Polvo [], p. 371.
17
ir a auto da f, no fariam abjurao a no ser que o crime fosse contra a f e seriam
condenadas a aoites e degredo, ou s a degredo caso fosse pessoa nobre52
. O crime de
falso testemunho possua variadas formas, a primeira referida, jurar falso em crime
capital, estando reservado para os prevaricadores aoites pblicos e degredo para as
gals por tempo que variava entre os cinco e os 10 anos. Caso o falso testemunho fosse
para absolver um crime de heresia, os implicados teriam de abjurar de leve ou veemente
com degredo para uma das possesses do Reino. O prevaricador teria de se apresentar
no auto da f levando carocha com o rtulo de falsrio53. Na mesma esfera existiam
os crimes de suborno e apresentao de falsas testemunhas; testemunha falsa contra
relaxados ao brao secular e falsrios eclesisticos ou religiosos54
.
O regimento de 1774 mantm os trs ttulos a respeito do delito contra o recto
ministrio do Santo Ofcio55, havendo apenas pequenas alteraes nomeadamente no
que respeita s penas decretadas. Visto o nosso trabalho incidir sobre os funcionrios
inquisitoriais que procederam contrariamente ao que era esperado de um ministro ou
oficial, passamos a citar o ponto do regimento de 1774 que se debrua particularmente
sobre o assunto: Havendo algum ministro ou oficial do Santo Ofcio to esquecido da
sua obrigao que, por malcia, rogos ou peitas, obre qualquer coisa em prejuzo do seu
ministrio ou das diligncias de que foi encarregado, impedindo-o e perturbando-o por
este modo, se a culpa que houver cometido for de suborno, sendo ministro, ser privado
do cargo que tiver e excludo do servio do Santo Ofcio e ter as mais penas arbitrrias
que couberem na qualidade da sua pessoa e, sendo oficial, alm de perder ofcio que
tiver na Inquisio e ser excludo do servio dela, ser degredado por dez anos para o
reino de Angola56. Feito o enquadramento geral sobre a aco do Tribunal do Santo
52
Regimento de 1640, livro III, ttulo XXII, in Jos Eduardo Franco, Paulo de Assuno, As
Metamorfoses de um Polvo [], p. 371. 53
Regimento de 1640, livro III, ttulo XXIV, in Jos Eduardo Franco, Paulo de Assuno, As
Metamorfoses de um Polvo [], p. 373. 54
Regimento de 1640, livro III, ttulo XXIV, in Jos Eduardo Franco, Paulo de Assuno, As
Metamorfoses de um Polvo [], pp. 373 e 374. 55
Regimento de 1774, livro III, ttulo XVIII; XIX; XXI, in Jos Eduardo Franco, Paulo de Assuno, As
Metamorfoses de um Polvo [], pp. 475-477. 56
Regimento de 1774, livro III, ttulo XVIII, in Jos Eduardo Franco, Paulo de Assuno, As
Metamorfoses de um Polvo [], p. 475.
18
Ofcio enquanto mecanismo disciplinador, concretizando com o aspecto especfico do
delito contra o Santo Ofcio57
passemos aos casos concretos.
57
Relativamente aos crimes contra o recto ministrio do Santo Ofcio que no envolvem funcionrios,
veja-se os trabalhos de Isabel Mendes Drumond Braga, Os Estrangeiros e a Inquisio Portuguesa:
sculos XVI XVII, Lisboa, Hugin, 2002, pp. 289-293; Idem, A Mulatice como Impedimento de Acesso ao Estado do Meio, Actas do Congresso Internacional Espao Atlntico de Antigo Regime: Poderes e Sociedades, Lisboa, Instituto Cames, 2008, pp. 1-12 (disponvel on-line em http://cvc.instituto-
camoes.pt/); Idem, Santo Ofcio, Promoo e Excluso Social: O Discurso e a Prtica, Lusada Histria, srie II, n 8, Lisboa, 2011; Daniela Buono Calainho, Agentes da F, [], pp.138-147; Idem, Pelo Reto Ministrio do Santo Ofcio: Falsos Agentes Inquisitoriais no Brasil Colonial. A Inquisio em Xeque [], pp. 87 96 e de Bruno Lopes, A Inquisio em Terra de Cristos-Novos [], pp. 192-193.
19
Parte II
Alcaides e guardas dos crceres
2.1 Alcaides: Funes
Para um bom funcionamento da mquina inquisitorial era fundamental o papel
das figuras do alcaide e dos guardas. O alcaide era o funcionrio que tinha como misso
vigiar os crceres e fazer cumprir o regimento e as ordens dos inquisidores, no s no
que se refere aos comportamentos dos presos, mas tambm ao comportamento dos
guardas e s actividades do dia-a-dia. Tal como para os demais cargos desempenhados
em nome do Santo Ofcio, as funes de alcaide e de guarda estavam regulamentadas
pelos regimentos inquisitoriais. Dos quatro regimentos do Santo Ofcio, o de 1552
apenas referencia os alcaides. J o de 1613 e o de 1640 mencionam em pontos distintos
alcaides e guardas58
. Quanto aos alcaides e porque s existe referncia aos mesmos, no
regimento de 155259
, iremos abordar alguns pontos que nos remetero para os principais
crimes enunciados nos processos estudados contra estes funcionrios. O ttulo que lhes
foi dedicado faz meno integridade que o individuo ocupante deste cargo devia
possuir, devendo zelar para que os homens e mulheres detidos se mantivessem
separados para que no fosse possvel haver contacto de espcie alguma entre eles.
Deviam ainda ter os guardas necessrios para o bom funcionamento dos crceres60. O
alcaide era o responsvel por evitar que os presos comunicassem tanto no interior como
no exterior do crcere atravs da comida que vinha de fora61
, tendo a obrigao de
58
Existe ainda a distino regimental entre os guardas e alcaides do crcere do Santo Ofcio e os que
desempenham funes no crcere da penitncia, Cf. Regimento de 1613, ttulo XVII, captulo I-V;
Regimento 1640, livro I, ttulo XXII Jos Eduardo Franco, Paulo de Assuno, As Metamorfoses de um
Polvo [], pp. 199-200 e 288-290. 59
No regimento de 1552 no existe um captulo dedicado aos guardas. 60
Regimento de 1552, capitulo 99, in Jos Eduardo Franco, Paulo de Assuno, As Metamorfoses de um
Polvo [], p. 127. 61
A partir de 1570 foi proibida a entrada de comida nos crceres vinda do exterior, passando esta a ser
confeccionada por presas nas denominadas cozinhas da inquisio. Cf. Marco Antnio, Nos crceres no h segredo nenhum [], p. 42; Elvira Cunha de Azevedo Mea,Cotidiano entre as Grades do Santo Ofcio, [], pp. 31-163. Sobre as consequncias de quem se comunicava no crcere ver Notcias Recnditas do Modo de Proceder a Inquisio com os seus presos, Lisboa, Imprensa Nacional, 1821, pp.
33 e 34.
20
informar o inquisidor sobre o que se sucedia no crcere62. A vigilncia do quotidiano do
crcere a que os alcaides estavam obrigados, era relativa tambm comunicao entre
os guardas e os presos. Proibia-se a abertura das casas dos detidos sobretudo antes de
lhes serem postas as acusaes por parte do promotor. Em caso de enfermidade de um
preso, os inquisidores haveriam de ser informados pelo alcaide63. O regimento estipulava
a proibio dos alcaides e dos guardas manterem amizades com os presos ou os seus
familiares, como tambm de receberem presentes64. Aos alcaides cabia a vigilncia das
conversas entre pessoas que fossem autorizadas pelos inquisidores a falarem com os
presos para que no fossem transmitidas cartas, nem avisos escritos ou verbais65.
Como verificvel pelos captulos acima mencionados, o alcaide possua a
responsabilidade de zelar por um dos pilares da eficcia do Santo Ofcio dentro do
crcere, que era o segredo. Os demais regimentos mantiveram no seu contedo as
mesmas preocupaes com a confidencialidade. Poderemos, no entanto, acrescentar um
pargrafo presente no regimento de 1640 sobre a titularidade das chaves dos crceres,
que deviam estar ao cuidado do alcaide e que ao longo do nosso trabalho verificaremos
alguns descuidos neste aspecto: o regimento refere que o alcaide no poderia confiar as
chaves a ningum sem ordem dos inquisidores, deveria manter as portas do crcere
fechadas e sempre que fosse necessrio abri-las, teria de ser em presena de um
guarda66. Os crceres da penitncia, com os seus alcaides e guardas no foram
esquecidos pelos regimentos de 161367
e de 164068, onde as preocupaes foram
semelhantes ao dos funcionrios do crcere secreto.
Nota-se atravs dos regimentos uma evoluo na vigilncia do que se passa no
seio do crcere. Sendo este ponto do regimento de 1640 um paradigma dessa evoluo,
pois dos quatro regimentos, este o nico que faz referncia no seu ttulo
62
Regimento de 1552, capitulo 103, in Jos Eduardo Franco, Paulo de Assuno, As Metamorfoses de um
Polvo [], p.127. 63
Regimento de 1552, capitulo 104, in Jos Eduardo Franco, Paulo de Assuno, As Metamorfoses de um
Polvo [], p. 127. 64
Regimento de 1552, capitulo 107, in Jos Eduardo Franco, Paulo de Assuno, As Metamorfoses de um
Polvo [], p.128 65
Regimento de 1552, capitulo 111, in Jos Eduardo Franco, Paulo de Assuno, As Metamorfoses de um
Polvo [], p. 128. 66
Regimento de 1640, livro I, ttulo XIV, in Jos Eduardo Franco, Paulo de Assuno, As Metamorfoses
de um Polvo [], p. 278. 67
Regimento de 1613, ttulo XVII, captulo I-V, in Jos Eduardo Franco, Paulo de Assuno, As
Metamorfoses de um Polvo [], pp.199-200. 68
Regimento de 1640, ttulo XXII, livro I, in Jos Eduardo Franco, Paulo de Assuno, As Metamorfoses
de um Polvo [], pp. 288-290.
21
explicitamente vigilncia dos guardas por parte do alcaide e aos recados que estes
possam traficar. Ao analisarmos os referidos pontos dos regimentos, temos o panorama
das funes de vigilncia dos crceres e de toda a actividade l realizada. O controlo
deveria ser apertado, porm nem sempre as malhas inquisitoriais eram impermeveis
aos comportamentos desviantes no interior do crcere como veremos mais adiante no
nosso trabalho.
2.2 Guardas: Funes
Relativamente aos guardas do crcere, os regimentos de 1613 e de 1640 fazem-
lhes uma referncia particular, o que no acontece no regimento de 1552. No de 1774
estes funcionrios no se encontram contemplados. Segundo o regimento de 1613 para
se ser guarda era necessrio uma nomeao por parte do Inquisidor-Geral e para alm
das bvias condies morais, no podiam ser familiares dos alcaides, nem seus criados e
deveriam ser casados69. Como se pode verificar, para se ocupar este cargo eram
necessrias boas caractersticas morais e um afastamento a nvel pessoal do alcaide, o
que teoricamente permitiria por parte quer do alcaide quer do guarda, a existncia de
uma maior imparcialidade na execuo dos seus ofcios. Os dois captulos seguintes do
mesmo ttulo so referentes aos perigos de contacto com os presos, inerentes sua
actividade, focando-se a necessidade de distncia em relao aos detidos, com a
proibio de se aceitar ddivas ou de se confraternizar com os presos. Estavam tambm
proibidos de possuir as chaves dos crceres sem ordens superiores dos inquisidores70. A
estes funcionrios incumbia-se que provessem os presos das suas necessidades como
refeies e quando fosse necessrio mudar algum de compartimento, o guarda teria
sempre de acompanhar o alcaide71. Nos dois captulos seguintes, continua a aluso ao
dever de vigilncia dos presos e obrigao de se fechar a porta do ptio dos Estaus por
69
Regimento de 1613, ttulo XIV, captulo I, in Jos Eduardo Franco, Paulo de Assuno, As
Metamorfoses de um Polvo [], p. 197. 70
Regimento de 1613, ttulo XIV, captulo II, in Jos Eduardo Franco, Paulo de Assuno, As
Metamorfoses de um Polvo [], p. 197. 71
Regimento de 1613, ttulo XIV, captulo III, in Jos Eduardo Franco, Paulo de Assuno, As
Metamorfoses de um Polvo [], p. 197.
22
parte dos guardas72
. Existia por parte do Santo Ofcio a preocupao de vigiar os
guardas a fim de se aferir se comunicavam com os presos ou com pessoas suspeitas,
pois com a convivncia do dia-a-dia, o perigo da ocorrncia de amizades entre rus e
funcionrios do crcere era real, estando a Inquisio ciente disso. O captulo VII deste
ttulo dedicado aos guardas a ilustrao desse mesmo receio, onde se pede aos
inquisidores vigilncia em relao aos guardas, pois a divulgao de algum segredo
relacionado com os processos ou qualquer outro tipo de informao, poderia interferir
no decurso do normal funcionamento do Tribunal73. As chaves do crcere estavam ao
cuidado do alcaide e os guardas no podiam guardar as mesmas, tendo de as entregar
aps a execuo do servio, como vem bem explicito no Regimento de 164074.
A vigilncia do que se passava no crcere no estava apenas restrita aos
funcionrios em relao aos presos. Podemos encontrar implcita e explicitamente essa
vigilncia dos funcionrios aos seus pares. Se verificarmos os pontos regimentais j
enunciados, h a preocupao de no deixar apenas um funcionrio a cumprir uma
determinada tarefa, principalmente quando esta direccionada para o tratamento mais
prximo com os rus, que ter sem dvida uma preocupao com a segurana de quem
executava a tarefa, alm de evitar fugas e tambm o controlo da conduta dos
funcionrios uns pelos outros. Contudo, o regimento de 1640 deixa explicita essa
vigilncia quando dito que E se [os guardas] notarem ou advertirem que o alcaide faz
cousa que possa prejudicar ao segredo e resguardo do Santo Ofcio o faro saber em
Mesa ou a um dos inquisidores para que a matria se d o remdio que convm 75. Tal
como est presente no regimento de 1640, mas no que referente vigilncia dos
alcaides em relao aos guardas.
Alcaides e guardas tinham um papel fundamental na preservao do segredo
inquisitorial, pois eram os funcionrios que privavam mais de perto com os rus e por
essa razo podiam influenciar os processos, transmitindo informaes aos ditos presos,
72
Regimento de 1613, ttulo XIV, captulo IV-V, in Jos Eduardo Franco, Paulo de Assuno, As
Metamorfoses de um Polvo [], p. 197. 73
Regimento de 1613, ttulo XIV, captulo VI, in Jos Eduardo Franco, Paulo de Assuno, As
Metamorfoses de um Polvo [], p. 197. 74
Regimento de 1640, ttulo XV, livro I, in Jos Eduardo Franco, Paulo de Assuno, As Metamorfoses
de um Polvo [], p. 282. 75
Cf. o ponto do regimento denominado de Vigiar os presos e o guarda presente no Regimento de 1640,
ttulo XXII, livro I, in Jos Eduardo Franco, Paulo de Assuno, As Metamorfoses de um Polvo [], p. 289.
23
que de outra forma lhe no poderiam aceder, como iremos comprovar ao longo do nosso
trabalho.
2.3 Alcaides e Guardas: Crimes, Motivaes e Consequncias
Os regimentos inquisitoriais analisados no ponto anterior denotam a enorme
preocupao com o sigilo dentro dos crceres. Porm, a realidade era bastante diferente
da veiculada pelos ditos textos legislativos. Ao contrrio do que se poderia imaginar, o
Tribunal do Santo Ofcio vivia com problemas econmicos, reflectindo-se na estrutura
inquisitorial que carecia de instalaes apropriadas e de nmero suficiente de
funcionrios para o volume de presos que acorriam aos crceres. Esta situao tornava
mais difcil a manuteno do segredo to desejado para a boa conduo dos processos.
Marco Antnio Nunes da Silva no seu estudo faz referncia importncia dos contactos
mantidos entre os presos, como tentativa de uma conduo mais vantajosa dos seus
processos e proteco de familiares e amigos. Este autor evoca a comunicao entre os
rus como via para fugir s rotinas do quotidiano, evitando a queda em depresso76
.
Os recados entre os rus circulavam atravs da alimentao que chegou a ser
trazida de fora dos crceres at 1570, ano da sua proibio pela razo de que este
mtodo j no era vivel devido ao crescente nmero de detidos provenientes de regies
distantes77
. A partir desta data, os alimentos passaram a ser confeccionados nas cozinhas
da inquisio por reclusas, o que no evitou a continuao da propagao dos recados78
.
O responsvel pelo provimento dos bens necessrios passava assim a ser o
76
Marco Antnio, Nos crceres no h segredo nenhum, [], p.41. No artigo deste autor podemos encontrar casos de guardas prevaricadores, retirados sobretudo dos cadernos do promotor. Sobre
carcereiros prevaricadores ver Elvira Mea, Cotidiano entre as Grades do Santo Ofcio, Em nome da F, Estudos In Memoriam de Elias Lipiner, direco de Nachman Falbel, Aurchan Milgram e Alberto Dires,
SP, Editora Perspectiva, 1999, pp. 131-144; Isabel Drumond Braga, Crcere mais spero do que permite a Razo do Direito []. Sobre a ocupao do tempo nos crceres do Santo Ofcio, cf. Isabel Drumond Braga, Crcere mais spero do que permite a Razo do Direito [], pp. 131-163. 77
Elvira Cunha de Azevedo Mea,Cotidiano entre as Grades do Santo Ofcio, [], p. 137; Sobre um cristo-novo que se comunicava devido aos alimentos que vinham de fora do crcere ver Maria Leonor
Garca da Cruz, Os Escritos de Aviso como Obstculo Actuao do Tribunal do Santo Ofcio, Comunicaes apresentadas ao 1 Congresso Luso-Brasileiro sobre Inquisio, coordenao de Maria
Helena Carvalho dos Santos, vol. 1, Lisboa, Sociedade Portuguesa de estudos do Sculo XVIII,
Universitria Editora, 1989, pp. 135-147. 78
Marco Antnio, Nos crceres no h segredo nenhum, [], p. 42
24
despenseiro79
. Estes avisos circulavam atravs dos utenslios de cozinha e da prpria
comida, como em cascas de ovo ou de abbora80
, em ameixas, debaixo de postas de
bacalhau, ou arroz81
. Tal acontecia frequentemente, at porque os prprios guardas
poderiam lucrar com este tipo de comportamento, como iremos demonstrar neste ponto
do nosso trabalho.
Como mtodo de abordagem questo dos carcereiros prevaricadores optmos
por ordenar os casos destes funcionrios em primeiro lugar agrupando os que tiveram
processos abertos em conjunto ou que a investigao de um caso tenha levado
descoberta de outros indivduos prevaricadores. Seguidamente, tivemos em conta os
alcaides e guardas com processos isolados, que cometeram os delitos mais comuns
nestes casos, ou seja, a comunicao com os presos nas suas diversas dimenses. Por
ltimo, estaro expostos os processos por auxlio fuga de rus, roubo e falta de zelo.
Os processos esto ordenados cronologicamente dentro dos conjuntos j identificados e
referenciados no quadro seguinte.
Quadro I
Tipologia de crimes dos carcereiros processados
A natureza dos crimes cometidos pelos carcereiros (alcaides e guardas), prendia-
se sobretudo sua comunicao com os presos e facilitao da correspondncia entre
os presos. Quando um carcereiro era detido, o desenrolar do seu processo podia
desencadear a abertura de outros processos onde eram visados colegas seus. Foi o que
79
Regimento de 1640, ttulo XVIII, livro I, in Jos Eduardo Franco, Paulo de Assuno, As
Metamorfoses de um Polvo [], pp. 285-286 80
Elvira Cunha de Azevedo Mea,Cotidiano entre as Grades do Santo Ofcio, [], p. 140 81
Isabel Drumond Braga, Crcere mais spero do que permite a Razo do Direito [], pp. 230-233. 82
Esto includos os processos em conjunto e os individuais.
Tipologia de
crimes
Comunicao
indevida com
os rus82
Auxlio
fuga
de rus
Roubo Falta de
zelo
N de casos
estudados 20 4 1 1
25
sucedeu na Inquisio de Coimbra83
, com a abertura de um processo a Martim
Mendes84
, datado de 1571, que pelo sucedido anos mais tarde, no serviu de exemplo85
.
Este guarda, foi acusado de receber subornos de cristos - novos, e de promover a
comunicao entre os presos. Chegou mesmo a trocar de crcere alguns presos sem a
autorizao dos inquisidores e deixou algumas presas irem assistir janela a uma
procisso que passava na altura. Alm destes crimes, teve relaes sexuais com uma r
de nome Branca Nunes e chegou a dormir ao mesmo tempo com duas presas no local
onde dormia quando tomava conta do crcere. Estes crimes valeram-lhe uma pena de
degredo perptuo para o Brasil da qual cumpriu 15 anos, por em 1585 ser comutada
para penas espirituais. Segundo os estudos de Elvira de Azevedo Mea86
, apenas trs
anos depois comeou a vir a lume um conjunto de actos de guardas condenveis pela
Inquisio. Tudo comeou com a exonerao compulsiva87
de um guarda de seu nome
Mateus Pires88
no ano de 1574. Bernardo Ramires, cristo-novo seria quem geria
contactos com a finalidade de fazer a divulgao de que ele conseguia fazer passar
informaes atravs de recados, relativamente a cristos-novos presos ou que
estivessem a caminho de ser detidos. Para que tal empreendimento fosse concretizvel,
Ramires, recorreu aos servios do guarda Manuel Leito89
, do notrio Baltasar
Fernandes e ainda ajuda de um outro guarda chamado Mateus Pires, juntos
conseguiram uma rede de cristos-novos abastados, interessados nos seus servios.
Como se pode notar, existia aparentemente uma boa organizao neste esquema, pois
os escritos de Baltasar Fernandes voltavam procedncia para serem destrudos, outras
vezes a informao era oral90, o que denota um grande cuidado para no serem
descobertos, at porque os lucros que obtinham eram relevantes. Contudo, este esquema
foi descoberto e o cardeal-infante D. Henrique enviou os implicados para serem
julgados pelo Tribunal do Santo Ofcio de vora91
, onde conseguimos obter o processo
de Manuel Leito que iremos explorar de seguida. No entanto, h lugar ainda para
83
Devido ao mau estado dos processos, s conseguimos consultar o processo de Martim Mendes, sendo
as nossas informaes baseadas no trabalho de Elvira Cunha de Azevedo Mea, A Inquisio de Coimbra
[], pp. 351-354. 84
Lisboa, A.N.T.T., Inquisio de Coimbra, proc. 9738. 85
Elvira Cunha de Azevedo Mea, A Inquisio de Coimbra [], p. 351. 86
Elvira Cunha de Azevedo Mea, A Inquisio de Coimbra []. 87
Elvira Cunha de Azevedo Mea, A Inquisio de Coimbra [], p. 351. 88
Processo do guarda com a referncia, Lisboa, A.N.T.T., Inquisio de Coimbra, proc.1196 no pde
ser visto por estar em mau estado. 89
Os processos com a referncia Lisboa, A.N.T.T., Inquisio de Coimbra, procs. 8452 e 258 no
puderam ser vistos devido ao seu mau estado. 90
Elvira Cunha de Azevedo Mea, A Inquisio de Coimbra [], p 353. 91
Elvira Cunha de Azevedo Mea, A Inquisio de Coimbra [], p 353.
26
referir que Mateus Pires foi obrigado a abjurar de leve suspeito na f e condenado a um
ano de degredo fora do bispado de Coimbra e Baltasar Fernandes foi enviado durante
trs anos para as gals92
.
O processo de Manuel Leito que iremos de seguida referir, um segundo
processo93
, pois este guarda j tinha um pelo mesmo caso aberto no Tribunal de
Coimbra, que resultou em abjurar de leve suspeito na f e um ano de degredo para as
gals94
. No processo contido na Inquisio de vora, um guarda do Colgio da Doutrina
da F, apresentou um escrito que lhe deu lvaro Mendes, para que este o desse a
Manuel Leito, que dizia o seguinte: o Vila esta como sempre esteve e milhor e nam
haa que falar nelle os mais estam muito bem o brando e o doutor esto em vora nos
termos em que vos estais e firmes e se no he esse valhaquo paneleiro nam haa cousa
que vos faa dano. Avisai me se aveis mister algu cousa que loguo vo lo mandareis e
descanca que n aguora nem em nenhum tempo vos faltara nada porque os bos
amiguos que tinhas tendes aguora e tereis sempre e por esperiencia e por obras vistes
isto e vireis sempre e muito folgara que dous dedos estivsseis certo nisto pois pera elle
he tanta verdade como pera nos. E se ouuer ordem pera lho lembrardes fazei o nenhu
cousa haa de novo neste caso mais que o que vos sabeis que eu tenho por muito bom
nam aver novidade que parece tudo esta quieto Senhora marinha e todos vosos amiguos
esto bem e sentem vossos trabalhos e espera em Deos de muito cedo lhe ver bom fim
Elle nos da muita consolao vosso filho haa muitos dias que no haa novas delle vossa
molher estaa de sade95. Esta carta era uma prova contundente de que havia
comunicao entre pessoas de dentro e de fora dos crceres e que Manuel Leito tinha
participao nestes actos. Quando foi chamado para confessar os seus crimes, o ru
disse que enquanto esteve preso nunca recebeu subornos e que apenas um homem
chamado Francisco Dias, seu companheiro de crcere, ofereceu-lhe uns cales e umas
botas velhas e que alguns presos lhe davam de comer por saberem que ele guarda era
uma pessoa pobre.
92
Elvira Cunha de Azevedo Mea, A Inquisio de Coimbra [], p 353. 93
Este processo consultado refere que foi aberto um segundo processo pois o guarda fugiu das gals, para
onde tinha sido enviado no processo anterior. 94
Elvira Cunha de Azevedo Mea, A Inquisio de Coimbra [], p 353. 95
Lisboa, A.N.T.T., Inquisio de vora, proc. 9469.
27
lvaro Mendes passados trs meses de ter sado em auto da f, mandou atravs
de Domingos Rodrigues um escrito, seis tostes96
e duas camisas. Assumiu ser verdade
que, enquanto foi guarda em Coimbra, levou muitos recados e avisos a presos aceitando
subornos de pessoas exteriores aos crceres. Para tentar ganhar algum dinheiro dos
cristos-novos ter tambm escrito alguns recados97
. Ao fazer a confisso, este guarda
deu alguns exemplos concretos, como quando estava porta dos crceres para ir dar a
refeio aos presos e Manuel Henriques que tinha presos no crcere, a sua me, um
cunhado e a sua irm. Aproveitou a aproximao do guarda e perguntou-lhe como
estavam estes seus familiares, tendo o guarda respondido, que eles se encontravam bem
de sade. Manuel Henriques ter dado ainda ao ru queijos e presuntos. Este cristo-
novo informou tambm o guarda que a sua me, segundo o notrio Baltasar
Fernandes98
, no tinha o processo bem encaminhado. O notrio, segundo o ru, ter
mesmo estado dentro do crcere com uma presa chamada Leonor Lopes, advertindo
Manuel Leito para este o avisar caso algum inquisidor o chamasse.
As conversas entre Manuel Leito e os cristos-novos de fora do crcere foram
confirmadas pelo mesmo aos inquisidores. O ru ter estado com Tristo Rodrigues
Vila Real e Francisco Rodrigues, que foram ter com ele porta do crcere. Nesta
conversa, Vila Real informou o guarda que se ia entregar por conselho do notrio
Baltasar Fernandes, que lhe ter dito que este no tinha mais que uma testemunha contra
ele. Sendo assim, o guarda teria de dizer a Simo Castro que estava preso nos crceres
para no acusar Vila Real, que este s tinha uma testemunha contra ele e que sendo
assim, apenas sairia com uma vela no auto. No final da conversa, Vila Real deu ao
guarda 10 cruzados e prometeu-lhe muito mais dinheiro porque era rico, e assim Manuel
Leito poderia deixar de ser pobre. Depois foi dado ao guarda seis mil reis para este
passar o tal bilhete a Simo e assim combinou com o guarda qual a melhor altura para
fazer a entrega. Outro preso, Diogo Lopes, esboou a sua preocupao em ser
condenado ao relaxamento ao brao secular, pediu ao guarda para que este lhe fizesse o
favor de perguntar ao notrio se existia essa probabilidade. A resposta trazida foi que
no se preocupasse pois estava tudo bem. So vrias as informaes dadas pelo notrio
segundo este testemunho. Existiam presos que sabiam quando iam sair familiares seus
96
Estes seis tostes constam que ficaram para o guarda Domingos Rodrigues. 97
Lisboa, A.N.T.T., Inquisio de vora, proc. 9469. 98
A referncia ao que aconteceu a Baltazar est num manuscrito citado em Elvira Cunha de Azevedo
Mea, A Inquisio de Coimbra [], p 353.
28
em auto; a outros presos dava descanso Baltasar, como Guiomar Brandoa que teve a
informao privilegiada que uma das testemunhas contra si estava morta, outra ausente
e outra ainda estava doida.
Mesmo o prprio Manuel Leito beneficiou deste esquema enquanto esteve
detido, a partir do dito notrio obteve informaes de que s iria ser preso quando
chegasse ao tribunal o inquisidor Doutor Sebastio Vaz. Quem o ajudou tambm foram
os filhos de Vila Real que o aconselharem a ir para o Brasil, prontificando-se a
emprestar-lhe dinheiro. Contudo, atravs de um Bernardo Vamires, soube que o notrio
pensava ser melhor ir para a Galiza ou para Castela, visto o Brasil pertencer ao mesmo
Reino e assim poderia preso facilmente. O ru parece desconhecer os contactos entre o
Tribunal de Portugal e o de Castela. A caminho da Galiza, fez uma paragem em Santa
Comba Do onde recebeu um recado do notrio que continha a informao de que o
inquisidor j tinha chegado e o meirinho j o tinha mandado prender. O Santo Ofcio
acabou por saber que este fugira para a Galiza, onde foi preso em Vigo pelo meirinho
do Santo Ofcio de Coimbra. Aps esta priso pediu ao guarda Mateus Pires que
perguntasse ao notrio informaes sobre o seu caso semelhana do que ele prprio
tinha feito a outros presos. Foi ento aconselhado a no confessar nada, porque tinha
apenas uma testemunha e sendo assim o processo no podia avanar. Para obter estas
informaes pagou 1000 ris ao guarda Mateus99
. Durante a sua confisso, Manuel
Leito, disse que era sexta-feira que se costumava dar aos presos a noticia de que iam
ser relaxados ao brao secular e numa dessas sextas-feiras, o cristo-novo Henrique
Nunes de Linhares se comesou de agastar e queixar dizendo como avia de aver no
nundo relaxar hum homem que tambem avia cofessado suas culpas e dado trinta e duas
pessoas ao que elle confitente respondeu que fosse elle a Mesa e pedisse misericordia
porque alguma cousa lhe faltaria confessar por ho relaxavo e que ho Senhor Manoel de
Coadros quando fora Inquisidor dava misericordia a todos os que confessavam e que
isto dixera elle confitente ao ditto Anrique Nunes, por lhe aver ditto hum castelhano que
estava em sua companhia que o ditto Anrique Nunes avia de hir denunciar delle a Meza
[] pera com isto ver se lhe podia ganhar a uontade e estorvar que ho no fosse acusar
a Meza e que segundo sua lembrana lhe parece que disse no carcere alto que ho podio
ouvir que nunqua sevira relaxar a justia secular pessoas que confessavam suas culpas
como neste auto se fazia o que dizia por lhe pezar de os ver entregar a justia secular,
99
Lisboa, A.N.T.T., Inquisio de vora, proc. 9469.
29
por serem algumas pessoas destas que entregavam com que elle tinha comonicao e
amizade e dava recados100.
Enquanto o ru esteve preso nos colgios gerais, um guarda informou-o que
dentro da sua cela existia um buraco por onde espreitava o alcaide, caso ele quisesse
fazer algo ilcito teria de ter muito cuidado. A partir deste episdio o guarda dos
colgios gerais dava-lhe informaes sobre a sua mulher e no s. Alegremente disse a
Manuel leito que ia haver um auto da f e que isso significava que iam chegar muitos
cristos-novos, o que significava simultaneamente, muito dinheiro. Era preciso
aproveitar enquanto eles se encontravam l presos porque segundo o tal guarda, depois
deles se irem embora j no davam nada aos guardas. Sendo o guarda prestvel, Manuel
aproveitou os seus favores: E ento elle confitente chamou ao ditto guarda Domingos e
lhe disse que elle sabia que estava na cidade hum cristo - novo de Coimbra seu amigo e
que Alvaro Mendez seu companheiro se lhe ofereceo pera lhe aver delle dinheiro e
outras cousas que avia mister se queria elle depois do ditto Alvaro Mendes ser solto hir
a sua casa e trazer o que lhe desse e parterio ambos e o ditto guarda lhe disse que como
o ditto Alvaro Mendez fose solto, que elle hira de boa vontade a sua casa e traria tudo o
que lhe desse e feito isto elle confitente disse a Alvaro Mendez que ja a tinha consertado
com ho guarda pera tanto que elle fose solto elle hir ter a sua casa e o ditto Alvaro
Mendes lhe disse que depois de elle ser solto dahy a trs dias fosse o ditto guarda a sua
casa e lhe desse hum pano e lhe mandasse pedir favas secas que lhe serio boas para o
carcere e servirio de sinal de como ho ditto guarda hia por seu mandado e que elle lhe
escreviria huma carta em que lhe desse conta de todos seus amigos e quantos sero
presos e lhe mandaria [] dinheiro101. Estes seus actos custaram-lhe ir a auto da f a
29 de Novembro de 1584, para ali ouvir a sua sentena, sendo condenado a uma pena de
degredo perptuo para as gals, alm de perder todos os seus bens para o fisco e cmara
real102
. Esta rede que foi desmantelada coloca a nu as fragilidades do Santo Ofcio,
atravs da dificuldade de se controlar a actividade nos crceres, onde os guardas se
queixavam de ser mal pagos e os cristos-novos lhes ofereciam dinheiro por coisas
aparentemente simples como transmitir recados.
100
Lisboa, A.N.T.T., Inquisio de vora, proc. 9469. 101
Lisboa, A.N.T.T., Inquisio de vora, proc. 9469. 102
Lisboa, A.N.T.T., Inquisio de vora, proc. 9469.
30
Em Lisboa entre os anos de 1628 e 1629 foram abertos trs processos103
a
funcionrios dos crceres, um deles, a um alcaide e os outros dois a guardas. O primeiro
a ser detido pelo Tribunal do Santo Ofcio foi o guarda Paulo de Azevedo, em 22 de
Agosto de 1628104
, seguidamente foi a vez de Gonalo Dias, que cerca de 32 anos antes,
era o meirinho do tribunal lisboeta. Este guarda foi acusado de falar a ss com os
presos, de lhes ficar com po e ovos e de transportar recados para os presos. Antnio de
Azevedo, testemunhou que a sua mulher vira Gonalo Dias a falar com crists-novas105
e que uma delas, chamada Ins de Leo, lhe ter dito atravs de gestos que os lenos
que estava no momento a fazer, faziam parte do negcio de trfico de recados para o seu
tio que estava preso, a troco de dinheiro. No entanto, esta no foi a nica testemunha
das visitas de Gonalo Dias. Maria Francisca, crist-velha, tambm os viu juntos. Paulo
de Azevedo, guarda processado j referido, confessou que ao ver um preso a sair do
crcere devido porta se encontrar aberta pediu ajuda a Gonalo Dias para a fechar. Ao
abordar este assunto com o alcaide e outros guardas, estes aconselharam a que o
sucedido morresse ali para no haver problemas. No entanto, os presos disseram-lhe
que quem fechara mal a porta foi o guarda Gonalo Dias. Paulo de Azevedo afirmou
ainda que o ru tomava po quando os prezos lho davo e o levava para caza106.
Um cristo-novo preso no crcere chamado Joo Correia acusou o guarda
Gonalo Dias de tomar tudo o que os presos lhe dessem, como pes, capotes, dinheiro
entre outras coisas. As acusaes sucederam-se. Desta vez foi Isabel da Silva que
denunciou o guarda de levar recados da parte de uma freira que se encontrava presa a
outros detidos do crcere, mas que a tal freira no seria a nica a usar os prstimos de
Gonalo Dias. A questo das portas mal fechadas veio de novo a lume quando Maria
Rodrigues, crist-nova, revelou que o ru deixou a porta aberta da sua cela para que ela
fosse ter ao quarto dele durante a noite, que ele a voltaria a levar sua cela sem que
ningum visse. Acrescentou ainda que o ru colocava as mos no peito de Marta Lopes
e a abraava. Ouviu tambm da boca de Maria de Moura, presa, que Gonalo Dias
beliscava, apalpava, abraava e beijava as moas do crcere. De entre as coisas que
Gonalo Dias entregava aos presos, encontramos a Crnica de D. Joo II, as vidas de
103
Durante o decorrer destes processos, um guarda chamado Baptista Rodrigues foi retirado de guarda e
colocado como homem do meirinho, tendo acabado por ser despedido dos dois cargos visto ter recebido
prendas dos presos e depois ter servido mal como meirinho. Cf. Lisboa, A.N.T.T., Inquisio de Lisboa,
proc.8858. 104
No encontrmos o processo, mas o caso referido nos outros dois processos. 105
Tratava-se de ngela Lopes Henriques e a sua sobrinha Ins de Leo. 106
Lisboa, A.N.T.T., Inquisio de Lisboa, proc.181.
31
Santo Antnio e So Francisco107
, que foram dadas a Antnio da Silva, cristo-novo.
No retorno dos livros, este preso deu ao guarda quatro pes, disse ainda que o ru falava
e comia com os presos na porta do crcere. Os recados segundo outro testemunho, desta
vez de uma crist-nova chamada Maria Gonalves, eram transmitidos algumas vezes a
partir da cozinha. Para o devido efeito, Gonalo Dias levava um alguidar de cepos para
que lho trocassem por carvo, e que nesse alguidar de cepos que foi trocado, seguiam
alguns escritos embrulhados num pano escuro. Este procedimento foi repetido e nunca
mais algum guarda ou alcaide o acompanhava quando ia cozinha realizar estas
trocas108
. O guarda era tratado por uma presa por paizinho, devido aos favores que ele
fazia. Na sua confisso este funcionrio apenas admitiu ter falado com trs mulheres e
que uma lhe pegara na mo e a colocara na testa dela sem estar presente outro guarda ou
alcaide. Negou o resto das acusaes contra ele e como resultado foi levado a auto da f
pblico, onde ouviu a sentena de degredo por seis anos para Angola, aoites pblicos e
a privao perptua do ofcio de guarda. Utilizando o argumento de ser j velho pediu a
comutao da pena de degredo, a qual foi concedida, passando a estar obrigado a
permanecer pelo a menos vinte lguas ao redor de Lisboa, perpetuamente109
.
No ano seguinte, a 14 de Agosto, foi preso o alcaide Heitor Teixeira, que
segundo o testemunho do guarda Paulo de Azevedo110
, fiava as chaves dos crceres aos
guardas, algo que os regimentos proibiam determinantemente. O incumprimento das
suas funes no ficou s por este tipo de episdio. O ru permitia que as presas
circulassem pelos corredores dos crceres. Era costume, segundo testemunhas como a
crist-nova Marta Lopes, este alcaide dar avisos a uma presa chamada Ana, e segundo a
mesma, o alcaide era desonesto e dizia palavras torpes. Maria da Cunha chegou a
afirmar que Heitor Teixeira tinha uma ateno especial com D. Antnia a quem dava
tinta e papel, mais, ter tambm impedido que se lesse na Mesa um escrito da mesma D.
Antnia. Na sua confisso, comeou por falar de um episdio em que tentou matar a sua
mulher dizendo que vivendo nas cazas dos estaos [] com Donna Fellipa sua molher
107
Pelo ano de publicao tratam-se presumivelmente das seguintes obras: Garca de Resende, Choronica
que trata da vida e grandssimas virtudes, e bondades, magnanimo esforo, e excelentes costumes e
manhas, e claros feytos do Christianissimo Dom Joo o Segundo deste nome e dos Reys de Portugal o
Decimo Tercio de Gloriosa Memoria com outras obras que adiante se seguem, Lisboa, Jorge Rodrigues, 1607; Fr. Fortunato de So Boaventura, Vida e Milagres de Santo Antnio de Lisboa,
Coimbra, Real Imprensa de Coimbra, 1630; Sobre a obra referente a So Francisco no encontrmos uma
possvel edio. 108
Lisboa, A.N.T.T., Inquisio de Lisboa, proc.181. 109
Lisboa, A.N.T.T., Inquisio de Lisboa, proc.181. 110
Guarda preso no mbito desta investigao, j referido.
32
tentado do diabo a quis mattar e lhe deo huma ferida com hum arame comprido e
entendendo que morria lhe foi busquar confessor [] ficando elle entendendo que ella
morreria e tambem teve tentaso de se mattar a si mesmo111. Relativamente ao
contedo do seu processo, o ru afirmou que no sabia quem que tinha aberto a porta a
D. Antnia, relatada como a sua protegida, e que falou com uns presos sem dar conta
Mesa. No acrdo dos inquisidores, referido que o ru descobriu segredos, aceitou
subornos e ddivas de presos, alm de ter proporcionado a comunicao entre os
detidos. Foi assim levado a auto da f, no dia 9 de Janeiro de 1633, onde fez abjurao
de leve suspeito na f, tendo sido privado do ofcio de alcaide e ainda sendo condenado
a pena de 10 anos de degredo para as gals112
. Um ms aps a priso de Heitor Teixeira,
foi a vez do guarda Joo Esteves enfrentar a justia inquisitorial. Joo de Mora, preso
nos crceres do Santo Ofcio de Lisboa, denunciou o guarda dizendo que um mdico
que se encontrava tambm detido e de seu nome Joo de Luna, recebia cartas vindas de
fora, mas apenas sabia que o ru entregou uma carta a frei Lopes Correia, tambm preso
nos crceres e que a carta dizia que muy amide tinha novas de suas obrigaes as
quaes lhe trazia o grande amigo113, esse amigo era o guarda Paulo de Azevedo,
tambm envolvido neste caso. O denunciante referiu ainda a forma como a carta foi
enviada: e esta carta lanou per hum cordel em huma pella que tinha feito de lao o
dito frei Lopes114. Este frade revelou ao denunciante que quem trazia as cartas de fora
era o guarda Paulo de Azevedo, que por sua vez as entregava a Joo de Luna, que as
enviava ao frade.
Segundo Joo de Mora, foi enviado a um preso de nome Pedro Nunes, pela mo
do frei Lopes Correia um papel onde se dizia que se tinha publicado huma graa, em
que se mandava que toda pessoa da nao que confessasse suas culpas e satisfizesse
[] remittiro as culpas e lhes perdoario em segredo e que a mesma graa se havia de
publicar aos presos115. Outra informao que circulava nos crceres era que sua
Majestade tinha dado por juzo s peties dos christos novos o Inquisidor Geral de
Castella, o qual estava muy afecto s pessoas da nao e que tudo se
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