HISTRIAS QUE OS CAMPONESES CONTAM: O SIGNIFICADO DE MAME GANSO
Robert Darnton
(Do livro: "O Grande Massacre de Gatos", Ed. Graal,1996, pgs. 21-101)
(Observao: h a indicao das notas atravs de nmeros entre parnteses mas por dificuldades
tcnicas somente futuramente sero anexadas a este texto)
O universo mental dos no iluminados, durante o Iluminismo, parece estar irrecupervel mente
perdido. to difcil, se no impossvel, situar o homem comum do sculo XVIII, que parece uma
tolice pesquisar sua cosmologia. Mas, antes de desistir da tentativa, talvez fosse til esquecer a nossa
descrena e lembrar uma histria - uma histria que todos conhecem, embora em verso diferente da
que reproduzimos a seguir, que a do conto mais ou menos como era narrado em torno s lareiras, nas
cabanas dos camponeses, durante as longas noites de inverno, na Frana do sculo XVIII. (1)
Certo dia, a me de uma menina mandou que ela levasse um pouco de po e de leite para sua av.
Quando a menina ia caminhando pela floresta, um lobo aproximou-se e perguntou-lhe para onde se
dirigia.
- Para a casa de vov - ela respondeu.
- Por que caminho voc vai, o dos alfinetes ou o das agulhas?
- O das agulhas.
Ento o lobo seguiu pelo caminho dos alfinetes e chegou primeiro casa. Matou a av, despejou seu
sangue numa garrafa e cortou sua carne em fatias, colocando tudo numa travessa. Depois, vestiu sua
roupa de dormir e ficou deitado na cama, espera.
Pam, pam.
- Entre, querida.
- Ol, vov. Trouxe para a senhora um pouco de po e de leite.
- Sirva-se tambm de alguma coisa, minha querida. H carne o vinho na copa.
A menina comeu o que lhe era oferecido e, enquanto o fazia, um gatinho disse: "menina perdida!
Comer a carne e beber o sangue de sua av!"
Ento, o lobo disse:
- Tire a roupa e deite-se na cama comigo.
- Onde ponho meu avental?
- Jogue no fogo. Voc no vai precisar mais dele.
Para cada pea de roupa - corpete, saia, angua e meias a menina fazia a mesma pergunta. E, a cada
vez, o lobo respondia:
- Jogue no fogo. Voc no vai precisar mais dela.
Quando a menina se deitou na cama, disse:
- Ah, vov! Como voc peluda!
- para me manter mais aquecida, querida.
- Ah, vov! Que ombros largos voc tem!
- para carregar melhor a lenha, querida.
- Ah, vov! Como so compridas as suas unhas!
- para me coar melhor, querida.
- Ah, vov! Que dentes grandes voc tem! - para comer melhor voc, querida.
E ele a devorou.
Qual a moral dessa histria? Para as meninas, clara: afastem-se dos lobos. Para os historiadores,
parece dizer algo sobre o universo mental dos camponeses, no incio dos Tempos Modernos. Mas o
qu? Como pode algum partir para a interpretao de um texto desses? Um dos caminhos passa pela
psicanlise. Os analistas examinaram minuciosamente os contos populares, identificando smbolos
escondidos, motivos inconscientes e mecanismos psquicos. Consideremos, por exemplo, a exegese de
"Chapeuzinho Vermelho" feita por dois dos melhores psicanalistas, Erich Fromm e Bruno Bettelheim.
Fromm interpretou o conto como um enigma referente ao inconsciente coletivo na sociedade primitiva
e decifrou-o "sem dificuldade", decodificando sua linguagem simblica". A histria diz respeito
confrontao de uma adolescente com a sexualidade adulta, explicou ele. Seu significado oculto
aparece atravs de seu simbolismo - mas os smbolos que ele viu, em sua verso do texto, baseavam-se
em aspectos que no existiam nas verses conhecidas dos camponeses, nos sculos XVII e XVIII.
Assim, ele enfatiza o (inexistente) chapeuzinho vermelho como um smbolo da menstruao e a
(inexistente) garrafa que levava a menina como smbolo de virgindade: da a (inexistente) advertncia
da me, para que ela no se desviasse do caminho, entrando em regies ermas, onde poderia quebr-la.
O lobo o macho estuprador. E as duas (inexistentes) pedras colocadas na barriga do lobo, depois que
o (Inexistente) caador retira a menina e sua av, representam a esterilidade, a punio por infringir
um tabu sexual. Assim, com uma misteriosa sensibilidade para detalhes que no apareciam no conto
original, o psicanalista nos conduz para um universo mental que nunca existiu ou, pelo menos, que no
existia antes do advento da psicanlise. (2)
Como poderia algum entender um texto de maneira to equivocada? A dificuldade no decorre do
dogmatismo profissional - porque os psicanalistas no precisam ser mais rgidos que os poetas, em sua
manipulao de smbolos - mas, principalmente, da cegueira diante da dimenso histrica dos contos
populares.
Fromm no se preocupou em mencionar sua fonte mas, aparentemente, tirou seu texto dos irmos
Grimm.
Os Grimm o conseguiram, juntamente com "O gato de botas", "Barba Azul" e algumas poucas outras
histrias, com Jeannette Hassenpflug, vizinha e amiga ntima deles, em Cassel; e ela ouviu as histrias
de sua me, que descendia de uma famlia francesa huguenote. Os huguenotes trouxeram seu prprio
repertrio de contos para a Alemanha, quando fugiram da perseguio de Lus XIV. Mas no os
recolheram diretamente da tradio popular oral. Leram-nos em livros escritos por Charles Perrault,
Marie Cathrine d'Aulnoy e outros, durante a voga dos contos de fadas nos crculos elegantes de Paris,
no fim do sculo XVII. Perrault, mestre do gnero, realmente recolheu seu material da tradio oral do
povo (sua principal fonte, provavelmente, era a bab de seu filho). Mas ele retocou tudo, para atender
ao gosto dos sofisticados freqentadores dos sales, prcieuses e cortesos aos quais ele endereou a
primeira verso publicada de Mame Ganso, seu Contes de ma mre 1'oye, de 1697, Assim, os contos
que chegaram aos Grimm atravs dos Hassenpflug no eram nem muito alemes nem muito
representativos da tradio popular, Na verdade, os Grimm reconheceram sua natureza literria e
afrancesada e, por isso, eliminaram-na da segunda edio do Kinderund Hausmrchen - com exceo
de "Chapeuzinho Vermelho". Este permaneceu na coletnea, evidentemente, porque Jeannette
Hassenpflug lhe enxertara um final feliz, tirado de "O lobo e as crianas" (conto do tipo 123, de acordo
com o esquema de classificao padro elaborado por Antti Aarne e Stith Thompson), um dos mais
populares na Alemanha. Assim, "Chapeuzinho Vermelho" inseriu-se na tradio literria alem e, mais
tarde, na inglesa, com suas origens francesas no detectadas. Ela mudou consideravelmente suas
caractersticas, ao passar da classe camponesa francesa para o quarto do filho de Perrault e da partir
para a publicao, atravessando depois o Reno e voltando para uma tradio oral, mas, desta vez, como
parte da dispora huguenote, dentro da qual retornou sob a forma de livro mas, agora, como produto da
floresta teutnica, em lugar das lareiras das aldeias do tempo do Antigo Regime, na Frana. (3)
Fromm e vrios outros exegetas psicanalticos no se preocuparam com a transformao do texto - na
verdade, nada sabiam a respeito - porque tinham o conto que desejavam. Comea com o sexo na
puberdade (o chapeuzinho vermelho que no existe na tradio oral francesa) e termina com o triunfo
do ego (a menina resgatada - que, em geral, devorada, nos contos franceses) sobre o id (o lobo, que
jamais morto, nas verses tradicionais). Tudo est bem, quando termina bem.
O final particularmente importante para Bruno Bettelheim, o ltimo da srie de psicanalistas que
tentaram a sorte com "Chapeuzinho Vermelho". Para ele, a chave da histria, e de todas as histrias
desse tipo, a mensagem afirmativa de seu desenlace. Tendo um final feliz, declara, os contos
populares permitem s crianas enfrentarem seus desejos e medos inconscientes e emergirem
inclumes, o id subjugado e o ego triunfante. O id o vilo do "Chapeuzinho Vermelho", na verso de
Bettelheim. o princpio do prazer que faz a menina se extraviar, quando j est crescida demais para
a fixao oral (o estgio representado por "Joo e Maria") ainda muito nova para o sexo adulto.
O id tambm o lobo, que tambm o pai, que tambm o caador, que tambm o ego e, de alguma
forma, igualmente o superego. Encaminhando o lobo para sua av, Chapeuzinho Vermelho consegue,
de maneira edipiana, liquidar sua me, porque as mes tambm podem ser avs, na organizao moral
da alma, e as casas dos dois lados dos bosques so, na verdade, a mesma casa, como em "Joo e
Maria" no qual so, tambm, o corpo da me. Essa desembaraada mistura de smbolos proporciona a
Chapeuzinho Vermelho uma oportunidade de ir para a cama com seu pai, o lobo, dando vazo, assim,
s suas fantasias edipianas. Ela sobrevive, no fim, porque renasce num nvel mais elevado de
existncia, quando seu pai reaparece como ego-superego-caador e corta a barriga do seu pai como
lobo-id, para tir-la de l, e todos vivem felizes para sempre. (4)
A generosa viso do simbolismo que tem Bettelheim fornece uma interpretao menos mecanicista do
conto do que a resultante do conceito de cdigo secreto que tem Fromm, mas tambm decorre de
algumas crenas no questionadas quanto ao texto. Embora cite comentaristas de Grimm e Perrault em
nmero suficiente para indicar alguma conscincia do folclore como disciplina universitria,
Bettelheim l "Chapeuzinho Vermelho" e os outros contos como se no tivessem histria alguma.
Aborda-os, por assim dizer, horizontalizados, como pacientes num div, numa contemporaneidade
atemporal. No questiona suas origens nem se preocupa com outros significados que possam ter tido
em outros contextos, porque sabe como a alma funciona c como sempre funcionou. Na verdade, no
entanto, os contos populares so documentos histricos. Surgiram ao longo de muitos sculos e
sofreram diferentes transformaes, em diferentes tradies culturais. Longe de expressarem as
imutveis operaes do ser interno do homem, sugerem que as prprias mentalidades mudaram.
Podemos avaliar a distncia entre nosso universo mental e o dos nossos ancestrais se nos imaginarmos
pondo para dormir um filho nosso contando-lhe a primitiva verso camponesa do "Chapeuzinho
Vermelho". Talvez, ento, a moral da histria devesse ser: cuidado com os psicanalistas - e cuidado
com o uso das fontes. Parece que voltamos ao historicismo. (5)
No inteiramente, no entanto, porque "Chapeuzinho Vermelho" tem uma aterrorizante irracionalidade,
que parece deslocada na Idade da Razo. Na verdade, a verso dos camponeses ultrapassa a dos
psicanalistas, em violncia e sexo. (Seguindo os Grimm e Perrault, Fromm e Bettelheim no
mencionam o ato de canibalismo com a av e o strip-tease antes de a menina ser devorada.)
Evidentemente, os camponeses no precisavam de um cdigo secreto para falar sobre tabus.
As outras histrias da Mame Ganso dos camponeses franceses tm as mesmas caractersticas de
pesadelo. Numa verso primitiva da "Bela Adormecida" (conto tipo 410), por exemplo, o Prncipe
Encantado, que j casado, viola a princesa e ela tem vrios filhos com ele, sem acordar. As crianas,
finalmente, quebram o encantamento, mordendo-a durante a amamentao, e o conto ento aborda seu
segundo tema: as tentativas da sogra do prncipe, uma ogra, de comer sua prole ilcita. O "Barba Azul"
original (conto tipo 312) a histria de uma noiva que no consegue resistir tentao de abrir uma
porta proibida na casa de seu marido, um homem estranho, que j teve seis mulheres. Ela entra num
quarto escuro e descobre os cadveres das esposas anteriores, pendurados na parede. Horrorizada,
deixa a chave proibida cair de sua mo numa poa de sangue, no cho. No consegue limp-la; ento,
Barba Azul descobre sua desobedincia, ao examinar as chaves. Enquanto ele amola sua faca,
preparando-se para transform-la na stima vtima, ela se recolhe em seu quarto e veste seu traje de
casamento. Mas demora a se vestir, o tempo suficiente para ser salva por seus irmos, que galopam em
seu socorro depois de receberem um aviso de seu pombo de estimao. Num dos primeiros contos do
ciclo de Cinderela (conto tipo 51OB), a herona torna-se empregada domstica, a fim de impedir o pai
de for-la a se casar com ele. Em outro, a madrasta ruim tenta empurr-la para dentro de um fogo,
mas incinera, por engano, uma das mesquinhas irms postias. Em "Joo e Maria" ("Hansel e Gretel",
conto tipo 327), na verso dos camponeses franceses, o heri engana um ogre fazendo-o cortar as
gargantas de seus prprios filhos. Um marido devora uma sucesso de recm-casadas, no leito
conjugal, em "La Belle et le monstre" ("A bela e a fera") (conto tipo 433), uma das centenas de contos
que jamais chegaram a ser includos nas verses publicadas de Mame Ganso. Num conto mais
desagradvel, "Les trois chiens" ("Os trs ces") (conto tipo 315), uma irm mata seu irmo
escondendo grandes pregos no colcho de seu leito conjugal. No conto mais maligno de todos, "Ma
mre m'a tu, mon pre m'a mang" ("Minha me me matou, meu pai me devorou") (conto tipo 720),
uma me faz do filho picadinho e o cozinha, preparando uma caarola lionesa, que sua filha serve ao
pai. E por a vai, do estupro e da sodomia ao incesto e ao canibalismo. Longe de ocultar sua mensagem
com smbolos, os contadores de histrias do sculo XVIII, na Frana, retratavam um mundo de
brutalidade nua e crua.
Como podem os historiadores entender esse mundo? Uma maneira de ele no perder o p, em meio s
ondas do psiquismo expresso nas primeiras verses de Mame Ganso, segurar-se firme em duas
disciplinas: a antropologia e o folclore. Quando discutem teoria, os antroplogos discordam quanto aos
fundamentos de sua cincia. Mas, quando saem em campo, usam, para a compreenso das tradies
orais, tcnicas que podem, com discernimento, ser aplicadas ao folclore ocidental. Com exceo de
alguns estruturalistas, eles relacionam os contos com a arte de narrar histrias e com o contexto no
qual isso ocorre. Examinam a maneira como o narrador adapta o tema herdado a sua audincia, de
modo que a especificidade do tempo e do lugar aparea, atravs da universalidade do motivo. No
esperam encontrar comentrios sociais diretos, ou alegorias metafsicas, porm mais um tom de
discurso ou um estilo cultural - capaz de comunicar um ethos e uma viso de mundo particulares. (6)
Folclore "cientfico", como o chamam os franceses (os especialistas americanos, com freqncia,
distinguem entre folclore de "fakelore" (falsificao da tradio. - N. T.), implica a compilao e
comparao de contos de acordo com o esquema padronizado de tipos elaborado por Antti Aarne e
Stith Thompson. No exclui, necessariamente, anlises formalistas como as de Vladimir Propp, mas
enfatiza a rigorosa documentao - a ocasio em que foi feita a narrativa, os antecedentes do narrador e
o grau de contaminao pelas fontes escritas. (7)
Os folcloristas franceses registraram cerca de dez mil contos, em muitos dialetos diferentes, em todos
os recantos da Frana e dos territrios de idioma francs. Por exemplo, durante. uma viagem ao Berry,
para visitar o Muse des arts et traditions populaires, em 1945, Ariane de Flice registrou uma verso
de "Le Petit Poucet" ("Pequeno Polegar") (conto tipo 327), contada por uma camponesa, Euphrase
Pichon, que nascera em 1862, na vila de Eguzon (Indre). Em 1879, Jean Drouillet escreveu outra
verso, tal como a escutou de sua me, Eugnie, que a aprendera, por sua vez, com a me dela, Octavie
Riffet, na aldeia de Teillay (Cher). As duas verses so quase idnticas e nada devem primeira
narrativa impressa do conto, que Charles Perrault publicou em 1697. Estes e mais oitenta "Petits
Poucets" que os folcloristas compilaram e compararam, detalhe por detalhe, pertencem a uma tradio
oral que sobreviveu, com uma contaminao pela cultura impressa notavelmente pequena, at o final
do sculo XIX. A maioria dos contos do repertrio francs foi recolhida por escrito entre 1870 e 1914,
durante "a Idade de Ouro da pesquisa dos contos populares na Frana" e quem narrou as histrias
foram camponeses que as haviam aprendido na infncia, muito antes de a alfabetizao se disseminar
no campo. Assim, em 1874, Nannette Levesque, uma camponesa analfabeta, nascida em 1794, ditou
uma verso do "Chapeuzinho Vermelho" que remonta ao sculo XVIII; e, em 1865, Louis Grolleau,
criado' domstico nascido em 1803, ditou uma verso de "Le Pou" (conto tipo 621) que ouvira pela
primeira vez nos tempos do Imprio. Como todos os contadores de histrias, os narradores camponeses
adaptavam o cenrio de seus relatos ao seu prprio meio; mas mantinham intatos os principais
elementos, usando repeties, rimas e outros dispositivos mnemnicos. Embora o elemento do
"desempenho", que central no estudo do folclore contemporneo, no transparea nos antigos textos,
os folcloristas argumentam que os registros da Terceira Repblica fornecem evidncias suficientes
para que possam reconstituir, em linhas gerais, uma tradio oral existente h dois sculos. (8)
Essa afirmao pode parecer extravagante, mas estudos comparativos revelaram surpreendentes
semelhanas em diferentes anotaes do mesmo conto, mesmo tendo sido feitas em aldeias remotas,
muito afastadas umas das outras e da circulao de livros. Num estudo do "Chapeuzinho Vermelho",
por exemplo, Paul Delarue comparou trinta e cinco verses, registradas em toda uma vasta rea da
langue d'ol. Vinte verses correspondiam exatamente ao primitivo "Conte de la mre grand" citado
acima, com exceo de alguns poucos detalhes (algumas vezes, a menina devorada, em outras, ela
escapa atravs de um artifcio). Duas verses acompanham o conto de Perrault (o primeiro a
mencionar o capuz vermelho). E o resto contm uma mistura dos relatos orais e escritos, cujos
elementos se distinguem to nitidamente quanto o alho e a mostarda num molho de salada francs. (9)
Evidncias escritas provam que os contos existiam antes de ser concebido o "folclore", neologismo do
sculo XIX." Os pregadores medievais utilizavam elementos da tradio oral para ilustrar argumentos
morais. Seus sermes, transcritos em colees de "Exempla" dos sculos X11 ao XV, referem-se s
mesmas histrias que foram recolhidas, nas cabanas dos camponeses, pelos folcloristas do sculo XIX.
Apesar da obscuridade que cerca as origens dos romances de cavalaria, as canes de gesta e os
fabliaux, parece que boa parte da literatura medieval bebeu da tradio oral popular, e no o contrrio.
A "Bela Adormecida" apareceu num romance arturiano do sculo XIV e "Cinderela" veio tona em
Propos rustiques, de Noel du Fail, de 1547, livro que situou as origens dos contos nas tradies cam-
ponesas e mostrou como eles eram transmitidos; porque du Fail fez a primeira descrio por escrito de
uma importante instituio francesa, a veilIe, reunio junto lareira, noitinha, quando os homens
consertavam suas ferramentas e as mulheres costuravam, escutando as histrias que seriam registradas
pelos folcloristas trezentos anos depois e que j duravam sculos. (11) Pretendessem elas divertir os
adultos ou assustar as crianas, como no caso de contos de advertncia, como "Chapeuzinho
Vermelho", as histrias pertenciam sempre a um fundo de cultura popular, que os camponeses foram
acumulando atravs dos sculos, com perdas notavelmente pequenas.
As grandes coletneas de contos populares, organizadas no fim do sculo XIX e incio do XX,
oferecem portanto uma rara oportunidade de se tomar contato com as massas analfabetas que
desapareceram no passado, sem deixar vestgios. Rejeitar os contos populares porque no podem ser
datados nem situados com preciso, como outros documentos histricos, virar as costas a um dos
poucos pontos de entrada no universo mental dos camponeses, nos tempos do Antigo Regime. Mas
tentar penetrar esse mundo enfrentar uma srie de obstculos to assustadores como aqueles com que
se deparou "Jean de l'Ours" (conto tipo 301) ao tentar resgatar da regio dos mortos as trs princesas
espanholas, ou o pequeno Parle (conto tipo 328), quando planejou apoderar-se do tesouro do ogre.
O maior obstculo a impossibilidade de escutar as narrativas, como eram feitas pelos contadores de
histrias. Por mais exatas que sejam, as verses escritas dos contos no podem transmitir os efeitos que
devem ter dado vida s histrias no sculo XVIII: as pausas dramticas, as miradas maliciosas, o uso
dos gestos para criar cenas - uma Branca de Neve com uma roda de fiar, uma Cinderela catando os
piolhos de uma irm postia - e o emprego de sons para pontuar as aes - uma batida porta (muitas
vezes obtida com pancadas na testa de um ouvinte) ou uma cacetada, ou um peido. Todos esses
dispositivos configuravam o significado dos contos e todos eles escapam ao historiador.
Ele no pode ter certeza de que o texto inerte e sem vida que ele segura, entre as capas de um livro,
fornece um relato exato da interpretao que ocorreu no sculo XVIII. No pode sequer ter certeza de
que o texto corresponde s verses no escritas que existiam um sculo antes, Embora possa encontrar
muitas evidncias provando que o conto em si existiu, no pode acalmar suas suspeitas de que talvez
tenha sofrido grandes transformaes, antes de chegar aos folcloristas da Terceira Repblica.
Diante dessas incertezas, parece desaconselhvel elaborar uma interpretao com base numa nica
verso de um nico conto, e mais arriscado ainda basear anlises simblicas em detalhes - capuzes
vermelhos e caadores -que podem no ter aparecido nas verses dos camponeses. Mas h registros
dessas verses em nmero suficiente - 35 "Chapeuzinhos Vermelhos", 90 "Pequenos Polegares", 105
"Cinderelas" - para se poder perceber as linhas gerais de um conto, como ele existiu na tradio oral.
possvel estud-lo ao nvel da estrutura, observando a maneira como a narrativa organizada e como
os temas se combinam, em vez de nos concentrarmos em pequenos detalhes. Assim, possvel
comparar o conto com outras histrias. E, finalmente, trabalhando com todo o conjunto dos contos
populares franceses, poderemos distinguir caractersticas gerais, temas centrais e elementos difusos de
estilo e tom. (12)
Tambm se pode procurar ajuda e conforto da parte de especialistas no estudo da literatura oral.
Milman Parry e Albert Lord mostraram como epopias populares to longas quanto a Ilada passaram
fielmente de bardo para bardo, entre os camponeses analfabetos da Iugoslvia. Esses "cantores de
contos" no tm os poderes fabulosos de memorizao algumas vezes atribudos aos povos
"primitivos" No memorizam muito, absolutamente, Em vez disso, com binam frases estereotipadas,
frmulas e segmentos de narrativa, em ordens improvisadas de acordo com a reao de sua audincia.
Anotaes da mesma epopia, narrada pelo mesmo cantor, demonstram que cada interpretao nica
No entanto, anotaes feitas em 1950 no diferem, nas coisas essenciais, das que foram feitas em
1934. Em cada caso, o cantor procede como se caminhasse por uma estrada bem conhecida. Pode
desviar-se aqui, para fazer uma pausa, ou ali, para apreciar uma vista, mas sempre permanece em
terreno familiar - to familiar, na verdade, que seria capaz de dizer que repetiu exatamente os mesmos
passos dados antes. No concebe a repetio da mesma maneira que a pessoa alfabetizada, porque no
tem noo de palavras, linhas e versos. Os textos, para ele, no so rigidamente fixos, como so para
os leitores da pgina impressa. Cria seu texto ao narr-lo, escolhendo novos caminhos atravs dos
velhos temas. At pode trabalhar com material tirado de fontes impressas, porque a epopia, no todo,
to maior que a soma de suas partes a ponto de as modificaes de detalhes mal perturbarem sua
configurao geral." (13)
As pesquisas de Lord confirmam as concluses a que chegou Vladimir Propp, atravs de um mtodo
de anlise diferente, demonstrando como as variaes de detalhes, nos contos populares russos,
permanecem subordinadas a estruturas estveis." Pesquisadores de campo, atuando entre povos
analfabetos na Polinsia, frica e Amrica do Norte e do Sul, tambm descobriram que as tradies
orais. tm um enorme poder de resistncia. As opinies se dividem quanto questo separada de saber
se as fontes orais podem ou no fornecer relatos confiveis de acontecimentos passados. Robert Lowie,
que recolheu narrativas dos ndios Crow, no incio do sculo XIX, adotou uma posio de extremo
ceticismo: "No posso atribuir s tradies orais o mnimo valor histrico, sob quaisquer condies".""
Por valor histrico, no entanto, Lowie entendia exatido factual. (Em 1910, ele anotou o relato feito
por um Crow, de um combate contra os Dakota; em 1931, o mesmo informante descreveu-lhe a
batalha, mas declarou que fora contra os Cheyenne.) Lowie admitiu que as histrias, consideradas
como tal, permaneciam bastante consistentes; ampliavam-se e se desdobravam dentro dos padres
habituais da narrativa Crow. Ento, suas descobertas, na verdade, confirmam o ponto de vista de que,
na narrativa tradicional de histrias, as continuidades de forma e de estilo tm mais peso que as
variaes de detalhes, seja entre os ndios norte. americanos ou entre os camponeses iugoslavos. (16)
Frank Hamilton Cushing observou um exemplo marcante dessa tendncia entre os Zuni, h quase um
sculo. Em 1886, ele serviu como intrprete de uma delegao Zuni, no Leste dos Estados Unidos.
Durante uma rodada de histrias, certa noite, ele contou, como sua contribuio, o conto "O galo e o
camundongo", que tirara de um livro de contos populares italianos. Cerca de um ano depois, ficou
pasmado ao escutar um dos ndios contar a mesma histria, j entre os Zuni. Os temas italianos
permaneciam suficientemente identificveis para permitir uma classificao do conto no esquema de
Aarne-Thompson ( conto do tipo 2032). Mas todo o resto, na histria - sua estrutura, figuras de
linguagem, aluses, estilo e a atmosfera geral -, se havia tornado intensamente Zuni. Em vez de
italianizar as tradies nativas, a histria fora zunificada. (17)
Sem dvida, o processo de transmisso afeta as histrias de maneiras diferentes, em culturas
diferentes. Alguns conjuntos de tradies folclricas podem resistir "contaminao", embora
absorvendo novo material de maneira mais efetiva que outros. Mas as tradies orais parecem ser tena-
zes e altamente durveis quase em toda parte, entre os povos sem escrita. Tambm no se desmantelam
com sua primeira exposio palavra impressa. Apesar da afirmao de Jack Goody, de que uma linha
de alfabetizao corta -toda a Histria, dividindo as culturas orais das "escritas", ou "impressas",
parece que a narrativa tradicional de contos pode florescer muito tempo depois do comeo da alfa-
betizao. Para os antroplogos e folcloristas que saram em campo atrs dos contos, no h nada
extravagante na idia de que os narradores camponeses no fim do sculo XIX, na Frana, contavam
histrias um ao outro de maneira bastante parecida dos seus ancestrais, de um sculo antes, ou mais.
(18)
Por mais confortador que possa ser esse testemunho dos peritos, no esclarece todas as dificuldades
para a interpretao dos contos franceses. Os textos so bastante acessveis, porque permanecem
inexplorados, em casas que abrigam tesouros, como o Muse des arts et traditions populaires, em
Paris, e em coletneas universitrias como Le Conte populaire franais, de Paul Delarue e
Marie-Louise Tenze. Mas no se pode tir-los dessas fontes e ergu-los para o exame, como se
fossem outras tantas fotografias do Antigo Regime, tiradas pelo olho inocente de uma classe
camponesa extinta. So histrias.
Como na maioria dos tipos de narrativa, desenvolvem tramas padronizados, a partir de temas
convencionais, recolhidos aqui, ali e em toda parte. Apresentam uma aflitiva falta de especificidade
para qualquer pessoa que deseje situ-los em pontos precisos do tempo e do espao. Raymond
Jameson estudou o caso de uma Cinderela chinesa do sculo IX. Ela recebe suas chinelas de um peixe
mgico, em vez de uma fada madrinha, e perde uma delas numa festa de aldeia, em vez de um baile
real, mas tem uma semelhana inconfundvel com a herona de Perrault. (19) Os folcloristas
reconheceram seus contos em Herdoto e Homero, em antigos papiros egpcios e em plaquetas de
pedra caldias; e reproduziram-nos por escrito no mundo inteiro, na Escandinvia e na frica, entre
indianos s margens do Bengala e ndios ao longo do Missouri. A disperso to notvel que alguns
chegaram a acreditar em "histrias primordiais" e num repertrio bsico, indo-europeu, de mitos,
lendas e contos. Esta tendncia se alimenta das teorias csmicas de Frazer, Jung e Lvi-Strauss, mas
no ajuda ningum a tentar penetrar na mentalidade dos camponeses, nos primrdios da Frana
moderna.
Felizmente, uma tendncia mais terra-a-terra do folclore possibilita que sejam isoladas as
caractersticas peculiares dos contos franceses tradicionais. Le Conte populaire franais ordena-os de
acordo com o esquema classificatrio Aarne-Thompson, que abrange todas as variedades de contos
populares indo-europeus. Assim, fornece a base para o estudo comparativo e as comparaes sugerem
a maneira como os temas gerais se enraizaram e cresceram em solo francs. "Pequeno polegar" ("Le
Petit Poucet", conto tipo 327), por exemplo, tem um forte sabor francs, tanto em Perrault como nas
verses camponesas, quando o comparamos com seu primo germnico, "Joo e Maria". O conto de
Grimm enfatiza a floresta misteriosa e a ingenuidade das crianas diante do mal inescrutvel, e tem
toques mais fantasiosos e poticos, como nos detalhes sobre a casa de po-e-bolo e nos pssaros
mgicos. As crianas francesas enfrentam um ogre, mas numa casa muito real, Monsieur e Madame
Ogre discutem seus planos de dar um jantar, como se fossem qualquer casal de marido e mulher, e
censuram um ao outro exatamente como faziam os pais de Pequeno Polegar. Na verdade, difcil
distinguir um casal do outro. Ambas as esposas simplrias jogam fora a fortuna de sua famlia; e seus
maridos ralham com elas da mesma maneira ' sendo que o ogre diz a sua mulher que ela merece ser
devorada e que ele prprio faria o servio, se ela no fosse uma vieille bte (vaca velha) to pouco
apetitosa." Ao contrrio de seus parentes alemes, os ogres franceses aparecem no papel de le
bourgeois de Ia maison (burgus chefe de famlia), (21) como se fossem ricos proprietrios de terras
locais. Tocam violino, visitam amigos, roncam satisfeitos na cama, ao lado de gordas esposas ogras;(")
e, por mais grosseiros que sejam, jamais deixam de ser bons pais de famlia e provedores generosos.
Da a alegria do ogre em "Pitchin-Pitchot", quando ele pula para dentro de casa, com um saco s
costas: "Catherine, ponha a panela grande no fogo. Peguei Pitchin-Pitchot." (23)
Enquanto os contos germnicos mantm um tom de terror e fantasia, os franceses enfatizam o humor e
a domesticidade. Pssaros de fogo acomodam-se nos galinheiros. Elfos, demnios, espritos da
floresta, toda a panplia indoeuropia de seres mgicos reduz-se, na Frana, a duas espcies, os ogres e
as fadas. E essas criaturas restantes adquirem fraquezas humanas e, em geral, deixam os seres humanos
resolverem seus problemas com seus prprios recursos, ou seja, esperteza e "cartesianismo" -
expresso que os franceses aplicam, vulgarmente, a sua tendncia para a astcia e a intriga. O toque
gauls evidente em muitos dos contos que Perrault no retrabalhou, para a sua galicizada Mame
Ganso, de 1697: o panache do jovem ferreiro em "Le Petit Forgeron" (conto tipo 317), por exemplo,
que mata gigantes num clssico tour de France; ou o provincianismo do campons breto, em "Jean
Bte" (conto tipo 675), a quem oferecida qualquer coisa que desejar, e ele pede un bon pch de
piquette et une cuelle de patates au Iait ("'vinho cru e uma tigela de batatas ao leite"); ou o cime
profissional do mestre jardineiro que no consegue podar as vinhas to bem quanto seu aprendiz, em
"Jean le Teigneux" (conto tipo 31); ou a inteligncia da filha do diabo, em "La Belle Eulalie" (conto
tipo 313), que foge com seu amante, deixando dois pts falantes em suas camas. Da mesma maneira
como so no se pode relacionar os contos franceses a eventos especficos, no se deve dilu-los numa
mitologia universal atemporal. Pertencem, na verdade, a um terreno intermedirio: Ia France moderne,
ou a Frana que existiu entre os sculos XV e XVIII.
Esse espao de tempo pode parecer desagradavelmente vago a qualquer pessoa que exija que a Histria
seja precisa. Mas a preciso pode ser inadequada, ou mesmo impossvel, na Histria das mentalidades,
um gnero que requer mtodos diferentes dos empregados nos gneros convencionais, como a Histria
poltica. Vises de mundo no podem ser descritas da mesma maneira que acontecimentos polticos,
mas no so menos "reais". A poltica no poderia ocorrer sem que existisse uma disposio mental
prvia, implcita na noo que o senso comum tem do mundo real. O prprio senso comum uma
elaborao social da realidade, que varia de cultura para cultura. Longe de ser a inveno arbitrria de
uma imaginao coletiva, expressa a base comum de uma determinada ordem social. Portanto, para
reconstituir a maneira como os camponeses viam o mundo, nos tempos do Antigo Regime, preciso
comear perguntando o que tinham em comum, que experincia partilhavam, na vida cotidiana de suas
aldeias.
Graas a pesquisas feitas por vrias geraes de historiadores sociais, essa pergunta pode ser
respondida. A resposta deve ser cercada de limitaes, e deve permanecer restrita a um alto nvel de
generalizao, porque as condies variavam muitssimo no reino, tendo este continuado como uma
colcha de retalhos de regies, em vez de uma nao unificada, isto at a Revoluo ou mesmo, talvez,
at bem avanado o sculo XIX. Pierre Goubert, Emmanuel Le Roy Ladurie, Pierre Saint-Jacob, Paul
Bois e muitos outros revelaram as particularidades da vida dos camponeses, regio por regio,
expondo-as em sucessivas monografias. A densidade das monografias pode fazer a histria social
francesa parecer uma conspirao de excees que tentam desmentir as regras. No entanto, tambm
neste caso existe o perigo do profissionalismo equivocado; porque, quando nos colocamos a uma
distncia dos detalhes suficientemente segura, um quadro geral comea a se compor. Na verdade, j
comeou a alcanar a etapa da assimilao, em compndios como Histoire conomique et sociale de Ia
France (Paris, 1970) e snteses como Histoire de Ia France rurale (Paris, 1975/76). O quadro, em
linhas gerais, o descrito a seguir . (24)
Apesar da guerra, das epidemias e da fome, a ordem social que existia ao nvel das aldeias permaneceu
notavelmente estvel, durante o incio do perodo moderno na Frana. Os camponeses eram
relativamente livres - menos que os pequenos proprietrios rurais, que se transformavam em
trabalhadores sem terras, na Inglaterra, e mais que os servos, que mergulhavam numa espcie de
escravido, a leste do Elba. Mas no podiam escapar a um sistema senhorial que lhes negava terras
suficientes para alcanarem a independncia econmica, e que lhes sugava qualquer excedente por eles
produzido. Os homens trabalhavam do amanhecer ao anoitecer, arranhando o solo em faixas dispersas
de terra, com arados semelhantes aos empregados pelos romanos, e cortando seu cereal com pequenas
foices primitivas, a fim de deixar restolho suficiente para a pastagem comunitria. As mulheres se
casavam tarde - entre vinte e cinco e vinte e sete anos - e davam luz apenas cinco ou seis filhos, dos
quais apenas dois ou trs sobreviviam at a idade adulta. Grandes massas humanas viviam num estado
de subnutrio crnica, subsistindo sobretudo com uma papa feita de po e gua, eventualmente tendo
misturadas algumas verduras de cultivo domstico. Comiam carne apenas umas poucas vezes por ano,
em dias de festa ou depois do abate do outono, que s ocorria quando no tinham silagem suficiente
para alimentar o gado durante o inverno. Muitas vezes, no conseguiam o quilo dirio de po (2.000
calorias) de que necessitavam para se manterem com sade e ento tinham pouca proteo contra os
efeitos conjugados da escassez de cereais e da doena. A populao flutuava entre quinze e vinte
milhes de pessoas e se expandia at o limite de sua capacidade produtiva (densidade mdia de
quarenta almas por quilmetro quadrado e ndice mdio anual de quarenta nascimentos por mil
habitantes), apenas para ser devastada por crises demogrficas. Durante quatro sculos - dos primeiros
estragos da Peste Negra, em 1347, at o primeiro grande salto de populao e produtividade, por volta
de 1730 - a sociedade francesa permaneceu aprisionada em instituies rgidas e condies
maltusianas. Atravessou um perodo de estagnao que Fernand Braudel e Emmanuel Le Roy Ladurie
descreveram como l'histoire immobile (a histria imvel). (25)
Essa expresso, agora, parece exagerada, pois no chega a fazer justia ao conflito religioso, aos
motins por cereais e s rebelies contra a extenso do poder estatal, que perturbaram o padro habitual
da vida nas aldeias. Mas, quando foi empregada pela primeira vez, nos anos 50, a noo de histria
imvel - uma histria de continuidade estrutural durante um longo perodo de tempo, la Iongue dure
("a larga durao") - serviu como corretivo para a tendncia a ver a histria como uma sucesso de
acontecimentos polticos. A histria dos eventos, histoire vnementielle, em geral ocorria por sobre as
cabeas dos camponeses, no universo remoto de Paris e Versalhes. Enquanto os ministros iam e
vinham e as batalhas se encarniavam, a vida nas aldeias continuava imperturbvel, bem semelhante
ao que sempre fora, desde tempos imemoriais.
A histria parecia "imvel,, ao nvel da aldeia porque o senhorialismo e a economia de subsistncia
mantinham os aldees curvados sobre o solo, e as tcnicas agrcolas primitivas no lhes davam
qualquer oportunidade de se desencurvarem. A produo de cereais permanecia numa proporo de
cerca de 5 por 1, um rendimento primitivo, em contraste com a lavoura moderna, que produz quinze ou
mesmo trinta gros para cada semente plantada. Os agricultores no podiam obter cereais em
quantidade suficiente para alimentar grande nmero de animais e no tinham gado bastante para
produzir o adubo capaz de fertilizar os campos e aumentar a colheita. Este crculo vicioso os mantinha
fechados num sistema de rotao de colheitas trienal ou bienal, que deixava alqueivada grande
proporo de suas terras. No podiam converter o alqueive no cultivo de plantas como o trevo, que
proporciona nitrognio ao solo, porque viviam muito prximos da penria para se arriscarem expe-
rincia, alm do fato de que ningum tinha a menor idia do que fosse nitrognio. Os mtodos
coletivos de cultivo tambm reduziam a margem de experimentao. Com exceo de algumas poucas
regies que tinham cercados, como o distrito do bocage, a oeste, os camponeses cultivavam faixas
esparsas de terra, em campos abertos. Semeavam e colhiam coletivamente, para que pudessem
realizar-se a respiga e a pastagem comuns. Dependiam de terras e florestas comuns, para alm dos
campos cultivados, para pastagem, lenha e castanhas ou morangos. A nica rea onde podiam tentar
progredir atravs da iniciativa individual era o galinheiro ou o quintal unido aos lotes de suas casas, ou
manses. Ali, eles se esforavam para levantar montes de adubo, cultivar o linho para fiar e produzir
verduras e frangos para o consumo domstico e mercados locais.
A horta do quintal, muitas vezes, proporcionava a margem de sobrevivncia para famlias que no
tinham os vinte, trinta ou quarenta acres necessrios para a independncia econmica. Tinham extrema
necessidade de terra porque grande parte de sua colheita lhes era tirada por seus tributos senhoriais,
dzimos, arrendamentos de terrenos e impostos. Na maior parte da Frana central e do norte, os
camponeses mais prsperos influam fraudulentamente na forma de cobrana do principal imposto
real, a talha, de acordo com um antigo princpio francs: escorchar os pobres. Ento, a cobrana de
impostos abria fissuras dentro da aldeia e o endividamento cobria os prejuzos. Os camponeses mais
pobres freqentemente tomavam emprestado dos ricos - ou seja, dos relativamente prsperos coqs du
village (os mais influentes do grupo), que possuam terras suficientes para vender excedentes de
cereais no mercado, formar rebanhos e contratar os pobres para seu servio. A servido por dvidas
pode ter atrado tanto dio para os camponeses mais prsperos quanto o que cercava o seigneur e o
dcimateur (cobrador de dzimos) eclesistico. dio, inveja e conflitos de interesses ferviam na
sociedade camponesa. A aldeia no era uma Gemeinschaft (comunidade) feliz e harmoniosa.
Para a maioria dos camponeses, a vida na aldeia era uma luta pela sobrevivncia, e sobrevivncia
significava manter-se acima da linha que separava os pobres dos indigentes. A linha de pobreza
variava de lugar para lugar, de acordo com a extenso de terras necessria para pagar impostos,
dzimos e tributos senhoriais; separar gros suficientes para plantar no prximo ano; e alimentar a
famlia. Em tempos de escassez, as famlias pobres tinham de comprar sua comida. Sofriam como
consumidores, enquanto os preos disparavam e os camponeses mais prsperos tinham grandes lucros.
Assim, uma sucesso de ms colheitas podia polarizar a aldeia, levando as famlias marginais
indigncia, enquanto os ricos ficavam mais ricos. Diante destas dificuldades, os "pequenos" (petites
gens) sobreviviam com a esperteza. Conseguiam trabalho como lavradores, teciam e fiavam panos em
suas cabanas, faziam trabalhos avulsos e saam pela estrada, pegando servios onde pudessem en-
contr-los.
Muitos no resistiam. Neste caso, saam pela estrada para sempre, seguindo deriva com os destroos
da population flottante ("populao flutuante") da Frana, que inclua vrios milhes de criaturas
desesperadas, por volta de 1780. Com exceo dos privilegiados que faziam um tour de France como
artesos, e as ocasionais troupes de atores e saltimbancos, a vida na estrada significava passar o tempo
recolhendo restos de comida. Os itinerantes invadiam galinheiros, ordenhavam vacas s soltas,
roubavam roupa lavada secando sobre as cercas, cortavam a tesouradas as caudas de cavalos (que eram
vendidas a estofadores) e dilaceravam e disfaravam seus corpos, a fim de passarem por invlidos, em
locais onde estavam sendo distribudas esmolas. Ingressavam e desertavam de um regimento aps
outro e serviam como falsos recrutas. Tornavam-se contrabandistas, salteadores de estradas,
punguistas, prostitutas. E, no final, entregavam-se aos hpitaux, imundas casas para os pobres, ou
rastejavam para debaixo de um arbusto ou de um palheiro e morriam - croquants que "esticavam as
canelas". (Aqui h um trocadilho intraduzvel: "croquants who had 'croaked'" - Nota do Tradutor) (25)
A morte vinha da mesma maneira implacvel para as famlias que permaneciam em suas aldeias e se
mantinham acima da linha de pobreza. Como mostraram Pierre Goubert, Louis Henry, Jacques
Dupquier e outros demgrafos histricos, a vida era uma luta inexorvel contra a morte, em toda
parte, na Frana do incio dos Tempos Modernos. Em Crulai, Normandia, 236 de cada 1.000 bebs
morriam antes de seu primeiro aniversrio, durante o sculo XVII, enquanto hoje morrem vinte. Cerca
de 45 por cento dos franceses nascidos no sculo XVIII morriam antes da idade de dez anos, Poucos
dos sobreviventes chegavam idade adulta antes da morte de, pelo menos, um de seus pais. E poucos
pais chegavam ao fim de seus anos frteis, porque a morte os interrompia. Terminados com a morte, e
no com o divrcio, os casamentos duravam uma mdia de quinze anos, metade da durao que tm na
Frana de hoje. Em Crulai, um em cinco maridos perdia a esposa, e ento tornava a casar-se. As
madrastas proliferavam por toda parte - muito mais que os padrastos, porque o ndice de novos
casamentos entre as vivas era de um em dez. Os filhos postios podem no ter sido tratados como
Cinderela, mas as relaes entre os irmos, provavelmente, eram difceis. Um novo filho, muitas
vezes, significava a diferena entre pobreza e indigncia. Mesmo quando no sobrecarregava a
despensa da famlia, podia trazer a penria para a prxima gerao, aumentando o nmero de
pretendentes, quando a terra dos pais fosse dividida entre seus herdeiros. (27)
Sempre que a populao aumentava, a propriedade da terra se fragmentava e estabelecia-se o
empobrecimento. Os morgadios retardaram o processo, em algumas reas, mas a melhor defesa, em
toda parte, era o casamento tardio, uma tendncia que deve ter tido seu peso negativo na vida emo-
cional da famlia. Os camponeses do Antigo Regime, ao contrrio do que acontece com os da ndia
contempornea, geralmente no se casavam at poderem ocupar uma cabana e raramente tinham filhos
fora do casamento, ou depois de atingirem os quarenta. Em Port-en-Bessin, por exemplo, as mulheres
se casavam aos vinte e sete e paravam de ter filhos aos quarenta, em mdia. Os demgrafos no
encontraram nenhuma prova de controle da natalidade, ou de ilegitimidade disseminada, antes do fim
do sculo XVIII. O homem do incio da era moderna no entendia a vida de uma maneira que o
capacitasse a control-la. A mulher do mesmo perodo no conseguia conceber o domnio sobre a
natureza, e ento dava luz quando Deus queria - como fez a me do Pequeno Polegar em "Le Petit
Poucet". Mas o casamento tardio, um curto perodo de fertilidade e os longos espaos de amamentao
ao seio, que reduzem a probabilidade de concepo, limitavam o tamanho de sua famlia, O limite mais
duro e mais eficaz era imposto pela morte, a sua prpria e a de seus bebs, durante o parto ou na
infncia. Os filhos natimortos, chamados chrissons, eram algumas vezes enterrados informalmente, em
tmulos coletivos annimos. Os bebs eram, algumas vezes, sufocados por seus pais na cama - um
acidente bastante comum, a julgar pelos editos episcopais proibindo os pais de dormirem com filhos
que no tivessem ainda chegado ao primeiro aniversrio. Famlias inteiras se apinhavam em uma ou
duas camas e se cercavam de animais domsticos, para se manterem aquecidos, Assim, as crianas se
tornavam observadoras participantes das atividades sexuais de seus pais. Ningum pensava nelas como
criaturas inocentes, nem na prpria infncia como uma fase diferente da vida, claramente distinta da
adolescncia, da juventude e da fase adulta por estilos especiais de vestir e de se comportar. As
crianas trabalhavam junto com os pais quase imediatamente aps comearem a caminhar, e
ingressavam na fora de trabalho adulta como lavra. dores, criados e aprendizes, logo que chegavam
adolescncia.
Os camponeses, no incio da Frana moderna, habitavam um mundo de madrastas e rfos, de labuta
inexorvel e interminvel, e de emoes brutais, tanto aparentes como reprimidas. A condio humana
mudou tanto, desde ento, que mal podemos imaginar como era, para pessoas com vidas realmente
desagradveis, grosseiras e curtas. por isso que precisamos reler Mame Ganso.
Consideremos quatro das histrias mais conhecidas da Mame Ganso de Perrault - "Gato de Botas",
"Pequeno Polegar", "Cinderela" e "Os desejos ridculos" ('The ridiculous wishes") - comparando-as
com alguns dos contos camponeses que tratam dos mesmos temas.
No "Gato de Botas", um moleiro pobre morre, deixando o moinho para seu filho mais velho, um asno
para o segundo e apenas um gato para o terceiro. "Nem um tabelio nem um advogado foram
chamados", observa Perrault. "Eles teriam devorado o pobre patrimnio". Estamos, obviamente, na
Frana, embora outras verses desse tema existam na sia, frica e Amrica do Sul. Os costumes
referentes herana dos camponeses franceses, e tambm da nobreza, muitas vezes impediam a
fragmentao do patrimnio, com o favorecimento do filho mais velho. O filho mais novo do imoleiro,
contudo, herda um gato que um gnio para a intriga domstica. Em toda parte, em torno dele, esse
gato cartesiano v vaidade, estupidez e apetite insatisfeito; e ele explora tudo com uma srie de truques
que resultam num casamento rico para seu dono e uma bela propriedade para si mesmo - embora, nas
verses pr-Perrault, o dono, no fim, logre o gato - que, na verdade, uma raposa e no usa botas
Um conto da tradio oral, "La Renarde" (conto tipo 460), comea de maneira parecida: "Era uma vez
dois ir mos que receberam as heranas que o pai deixara para eles. O mais velho, Joseph, ficou com a
fazenda. O mais novo, Baptiste, recebeu apenas um punhado de moedas; e, como tinha cinco filhos e
muito pouco com que aliment-los, caiu na indigncia". (28) Desesperado, Baptiste implora trigo a seu
irmo. Joseph lhe diz para despir seus farrapos, tomar chuva nu e rolar no celeiro. Ele pode ficar com
todo o trigo que se grudar a seu corpo. Baptiste submete-se a esse exerccio de amor fraterno, mas no
consegue pegar alimento suficiente para manter sua famlia viva e ento sai pela estrada. Finalmente,
encontra-se com uma fada bondosa, La Renarde, que o ajuda a decifrar uma srie de enigmas que
conduzem a um pote de ouro enterrado e realizao do sonho de um campons - uma casa, campos,
pastagens, bosques: "E seus filhos comiam um pedao de bolo todos os dias". (29)
"Pequeno Polegar" ("Le Petit Poucet", conto tipo 327) uma verso francesa de "Joo e Maria",
embora Perrault tirasse seu ttulo de um conto do tipo 700. Proporciona uma viso do universo
maltusiano, mesmo na verso atenuada de Perrault: "Era uma vez um lenhador e sua mulher, que
tinham sete filhos, todos meninos ... Eram muito pobres e seus sete filhos se tornaram um pesado
fardo, porque nenhum tinha idade suficiente para se sustentar... Chegou um ano muito difcil e a fome
era to grande que essa pobre gente decidiu livrar-se dos filhos". O tom casual sugere como se tornara
comum a morte de crianas, no incio da Frana moderna. Perrault escreveu seu conto em meados de
1690, no auge da pior crise demogrfica do sculo XVII - perodo em que a peste e a fome dizimavam
a populao do norte da Frana, quando os pobres comiam carnia atirada nas ruas por curtidores,
quando eram encontrados cadveres com capim na boca e as mes "expunham" os bebs que no
podiam alimentar, para eles adoecerem e morrerem. Abandonando seus filhos na floresta, os pais do
Pequeno Polegar tentavam enfrentar um problema que acabrunhou os camponeses muitas vezes, nos
sculos XVII e XVIII - o problema da sobrevivncia durante um perodo de desastre demogrfico.
O mesmo tema existe nas verses camponesas do conto e em outros contos, juntamente com outras
formas de infanticdio e maus-tratos infligidos a crianas. Algumas vezes, os pais lanam seus filhos
estrada, para que se tornem mendigos e ladres. Outras vezes, fogem eles prprios, deixando as
crianas mendigarem em casa. E, ainda outras, vendem os filhos ao diabo. Na verso francesa do
"Aprendiz de feiticeiro" ("La pomme d'orange", conto tipo 325), um pai oprimido por "tantos filhos
quantos buracos h numa peneira", (30) frase que aparece em muitos contos e deve ser tomada como
uma hiprbole sobre a presso maltusiana, em vez de um dado efetivo sobre o tamanho da famlia.
Quando chega um novo beb, o pai o vende ao diabo (um feiticeiro, em algumas verses), recebendo
em troca uma despensa cheia, capaz de durar doze anos. No fim desse perodo, ele recebe o menino de
volta, graas a um artificio que o menino concebe, porque o pequeno patife aprendeu um repertrio de
truques durante seu aprendizado, inclusive o poder de se transformar em animais. Antes de muito
tempo, o armrio est vazio e a famlia enfrenta outra vez a inanio. O menino, ento. transforma-se
num co de caa, de modo que seu pai pode vend-lo mais uma vez ao demnio, que reaparece como
caador. Depois que o pai recebe o dinheiro, o cachorro foge e volta para casa, sob a forma de um
menino. Tentam o mesmo truque de novo com o menino transformado em cavalo. Desta vez, o dem-
nio consegue uma coleira mgica que impede o cavalo de tornar a se transformar em menino. Mas um
trabalhador rural leva o cavalo para beber num lago, dando-lhe, assim uma oportunidade de fugir sob a
forma de uma r. O demnio se transforma num peixe e est prestes a devor-lo quando a r se
transforma num pssaro. Ento, o demnio se transforma em guia e persegue o pssaro, que voa para
o quarto de um rei agonizante e toma a forma de uma laranja Ento, o demnio aparece como um
mdico e pede a laranja prometendo, em troca, curar o rei. A laranja derrama-se no cho, transformada
em gros de milho, O demnio se transforma num frango e comea a engolir os gros. Mas o ltimo
gro se transforma numa raposa que, finalmente, ganha o concurso de transformaes devorando o
frango. O conto no apenas proporciona divertimento. Dramatiza a luta pelos recursos escassos, que
opunha os pobres aos ricos, o "pequenos" (menu peuple, petites gens) aos "grandes" (les gros, les
grands). Algumas verses tornam o comentrio social explcito, colocando o demnio no papel de um
seigneur. e concluindo, no final: "E assim o servo comeu o patro ". (31)
Comer ou no comer, eis a questo com que os camponeses se defrontavam, em seu folclore, bem
como em seu cotidiano. Aparece em inmeros contos, muitas vezes em relao com o tema da
madrasta m, que deve ter tido especial ressonncia em torno s lareiras do Antigo Regime, porque a
demografia do Antigo Regime tornava as madrastas figuras extremamente importantes na sociedade
das aldeias. Perrault fez justia ao assunto, em "Cinderela", mas negligenciou o tema correlato da
subnutrio, que se destaca nas verses camponesas do conto. Numa verso comum ("La Petite
Annette", conto tipo 511), a madrasta m d pobre Annette apenas um pedao de po por dia e faz
com que ela cuide das ovelhas, enquanto suas gordas e indolentes irms postias vagueiam pela casa e
jantam carneiro, deixando os pratos para Annette lavar, ao voltar dos campos. Annette est a ponto de
morrer de inanio, quando a Virgem Maria aparece e lhe d uma varinha mgica, que produz um
magnfico banquete, todas as vezes em que Annette toca com ela uma ovelha negra. No demora muito
e a menina est mais gorducha que suas irms postias. Mas sua beleza recm-adquirida - e a gordura
corresponde beleza, no Antigo Regime, como em muitas sociedades primitivas -desperta as suspeitas
da madrasta. Atravs de um artificio, a madrasta descobre a ovelha mgica, mata-a e serve seu fgado a
Annette. Annette consegue, secretamente, enterrar o fgado e ele se transforma numa rvore, to alta
que ningum consegue colher suas frutas, a no ser Annette; porque baixa seus ramos para ela, sempre
que se aproxima. Um prncipe de passagem (que to guloso como todos os demais no pas) descia
tanto as frutas que promete casar-se com a donzela que conseguir colher algumas para ele. Esperando
casar uma de suas filhas, a madrasta constri uma grande escada. Mas, quando vai experiment-la, cai
e quebra o pescoo. Annette, ento, colhe as frutas, casa-se com o prncipe e vive feliz para sempre.
A subnutrio e o abandono pelos pais esto juntos em vrios contos, marcadamente em "La Sirne et
1'pervier" (conto tipo 316) e "Brigitte, la maman qui m'a pas fait, mais m'a nourri" (conto tipo 713). A
procura de comida pode ser encontrada em quase todos eles, mesmo em Perrault, na qual aparece sob
forma burlesca, em "Os desejos ridculos". Um pobre lenhador tem a promessa de ver satisfeitos trs
desejos, quaisquer que sejam, como recompensa por uma boa ao. Enquanto ele rumina, seu apetite o
domina; e deseja uma salsicha. Depois que ela aparece em seu prato, sua mulher, uma rabugenta
insuportvel, repreende-o com tanta violncia pelo desperdcio do desejo que ele deseja que a salsicha
cresa no nariz dela. Depois diante de uma esposa desfigurada, deseja que ela volte ao seu estado
normal; e eles retornam sua miservel existncia anterior.
O desejo habitualmente por comida, nos contos dos camponeses, e jamais ridculo. La Rame,
soldado que teve baixa, arruinado, um personagem estereotipado como a enteada maltratada,
reduzido mendicncia em "Le Diable et le marchal ferrant" (conto tipo 330). Ele divide seus ltimos
tostes com outros mendigos, um dos quais, na verdade, So Pedro disfarado; como recompensa,
-lhe concedido formular o desejo que quiser, e ser cumprido, Em vez de querer o paraso, pede "uma
refeio substancial" - ou, em outras verses, "po branco e um frango". "um coelho, uma salsicha e
tanto vinho quanto puder beber", "fumo e a comida que ele viu na estalagem", ou "ter sempre um
pedao de po". (32) Quando recebe varinhas de condo, anis mgicos ou auxiliares sobrenaturais, o
primeiro pensamento do heri campons sempre para a comida. Jamais demonstra qualquer
imaginao, em seu pedido. Simplesmente, fica com o plat du jour, que sempre o mesmo: e slido
passadio campons, que pode variar com a regio. como no caso dos "bolos, po frito e pedaos de
queijo" (canistrelli e fritelli, pezzi de broccio) servidos num banquete corso. (33) Em geral, o narrador
campons no descreve a comida com detalhes. Destitudo de qualquer noo de gastronomia,
simplesmente enche bem o prato de seu heri; e se quer dar um toque extravagante, acrescenta: "Havia
at guardanapos". (34)
Uma extravagncia se destaca, nitidamente: a carne. Numa sociedade de vegetarianos de facto, o luxo
suprem, era cravar os dentes numa costeleta de carneiro, em carne de porco ou de boi. O banquete de
casamento, em "Royaume des Valdars" (conto tipo 400), inclui porcos assados que circulam com
garfos enfiados nos flancos, de modo que os convidados podem servir-se de bocados j trinchados. A
verso francesa de uma histria de fantasmas comum, "La Goulue" (conto tipo 366), fala de uma moa
camponesa que insiste em comer carne todo dia. Incapazes de satisfazer esse extraordinrio anseio,
seus pais lhe servem uma perna que cortaram de um cadver recm-enterrado. No dia seguinte, o
cadver aparece diante da moa, na cozinha. Ordena-lhe que lave sua perna direita, depois a esquerda.
Quando ela v que a perna esquerda est faltando, ele grita: "Voc a comeu". Depois, carrega-a
consigo para o tmulo e a devora. As verses inglesas posteriores do conto, especialmente "The golden
arm" ("O brao de ouro"), que Mark Twain tornou famosa, tm a mesma trama, sem o aspecto
carnvoro - o elemento essencial que parece ter garantido o fascnio da histria para os camponeses do
Antigo Regime. Mas, empanturrem-se eles de carne ou de papa, a barriga cheia vem em primeiro
lugar, entre os desejos dos heris camponeses da Frana. Era tudo a que aspirava a Cinderela
camponesa, embora tivesse conseguido um prncipe. "Ela tocou a ovelha negra com a varinha de
condo. Imediatamente, uma mesa' inteiramente coberta apareceu diante dela. Podia comer o que
quisesse e encheu a barriga".'"' Comer at se encher, comer at a exausto do apetite (manger sa
faim) (36), era o principal prazer que tentava a imaginao dos camponeses e que eles raramente
realizavam em suas vidas.
Tambm imaginavam que outros sonhos se tornavam realidade, inclusive a habitual sucesso de
castelos e princesas. Mas seus desejos, usualmente, permaneciam fixados em objetos comuns do
mundo cotidiano. Um heri consegue "uma vaca e algumas galinhas"; outro, um armrio cheio de
panos de linho. Um terceiro contenta-se com trabalho leve, refeies regulares e um cachimbo cheio de
fumo. E, quando chove ouro na lareira de um quarto, usa-o para comprar "alimentos, roupas, um
cavalo, terras". (37) Na maioria dos contos, a satisfao dos desejos se torna um programa para a
sobrevivncia, no uma fantasia ou uma fuga.
Apesar de ocasionais toques de fantasia, portanto, c: contos permanecem enraizados no mundo real.
Quase seu pre acontecem dentro de dois contextos bsicos, que correspondem ao cenrio dual da vida
dos camponeses nos tempos do Antigo Regime: por um lado, a casa e a aldeia; por outro, a estrada
aberta. A oposio entre a aldeia e a estrada percorre os contos, exatamente como se fazia sentir na:
vidas dos camponeses, em toda parte, na Frana do sculo XVIII. (38)
As famlias dos camponeses no podiam sobreviver, no Antigo Regime, a menos que todos
trabalhassem, e trabalhassem juntos, como uma unidade econmica. Os contos populares mostram,
constantemente, pais trabalhando nos campos, enquanto os filhos recolhem madeira, guardam as
ovelhas, pegam gua, tecem a l, ou mendigam. Longe de condenarem a explorao do trabalho
infantil, ficam indignados quando no ocorre. Em "Les Trois Fileuses" (conto tipo 501), um pai decide
livrar-se de sua filha porque "ela comia mas no trabalhava". (39) Convence o rei de que ela pode tecer
sete fuses (100,8 metros) de linho por noite - quando, na verdade, ela come sete crpes (estamos em
Angoumois). O rei ordena moa que realize feitos prodigiosos na fiao, prometendo casar-se com
ela, se conseguir. Trs fiandeiras mgicas, cada uma mais deformada que a outra, realizam as tarefas
para ela e, em troca, pedem apenas para serem convidadas para o casamento. Quando aparecem, o rei
pergunta qual a causa de suas deformidades. Excesso de trabalho, respondem; e advertem-no de que
sua esposa ficar igualmente horrenda, se ele permitir que continue tecendo. Assim, a moa escapa da
escravido, o pai livra-se de uma glutona e os pobres levam a melhor sobre os ricos (em algumas
verses, o seigneur local toma o lugar do rei).
As verses francesas de "Rumpelstilzchen" (conto tipo 500 e algumas verses correlatas de conto tipo
425) seguem a mesma sinopse. Uma me bate na filha, porque esta no trabalha. Quando um rei ou
um seigneur local, que passava por ali, pergunta o que aconteceu, a me imagina um artifcio para se
livrar do membro improdutivo da famlia. Alega que a moa trabalha em excesso, to obsessivamente,
na verdade, que seria capaz de fiar at a palha de seus colches. Achando isso uma boa coisa, o rei
leva consigo a moa e lhe ordena fazer trabalhos sobre-humanos: ela tem de fiar montes inteiros de
feno, transformando-os em quartos cheios de linho; de carregar e descarregar cinqenta carroas de
adubo por dia; de separar montanhas de trigo da palha. Embora as tarefas acabem sempre sendo
cumpridas, graas a uma interveno sobrenatural, expressam um fato bsico da vida dos camponeses,
de forma hiperblica. Todos enfrentavam um trabalho interminvel, sem limites, da mais tenra
infncia at o dia da morte.
O casamento no oferecia nenhuma fuga; ao contrrio, impunha uma carga adicional, porque submetia
as mulheres ao trabalho no sistema de manufatura a domiclio, ("putting-out system"), alm do
trabalho para a famlia e a fazenda. Os contos, inevitavelmente, colocam esposas de camponeses junto
roda de fiar, depois de um dia cuidando do gado, carregando lenha ou ceifando feno. Algumas hist-
rias apresentam quadros hiperblicos de seu trabalho, mostrando-as jungidas ao arado ou puxando
gua de um poo com o cabelo ou, ainda, limpando foges com seus seios nus. (40) E, mesmo o
casamento representando a aceitao de uma nova carga de trabalho e o novo perigo do parto, a moa
pobre precisava de um dote para casar-se - a no ser que ficasse com um sapo, um corvo ou alguma
besta horrenda. Os animais nem sempre se transformam em prncipes, embora essa fosse uma forma
comum de escapismo. Numa verso burlesca da estratgia matrimonial camponesa ("Les Filles
maries des animaux", conto tipo 552), os pais casam suas filhas com um lobo, uma raposa, uma
lebre, e um porco. De acordo com as verses irlandesa e norteeuropia do conto, os casais metem-se
numa srie de aventuras, necessrias para metamorfosear outra vez os animais em seres humanos. As
verses francesas simplesmente contam o que os jovens casais servem, quando a me vem em visita -
carneiro caado pelo lobo, peru que a raposa pegou, repolho surripiado pela lebre e sujeira do porco.
Tende encontrado bons provedores, cada qual sua maneira, as filhas precisam aceitar sua sorte na
vida; e cada qual prossegue com a atividade bsica de pilhar para sobreviver.
Os filhos tm maior rea de ao, nos contos. Exploram a segunda dimenso da experincia
camponesa, a vida na estrada. Os rapazes partem em busca da fortuna e, muitas vezes, a obtm, graas
ajuda de velhas horrorosas, que pedem um pedao de po e, na verdade, so fadas bondosas
disfaradas. Apesar da interveno sobrenatural, os heris partem para um mundo real, em geral a fim
de fugir pobreza em casa e encontrar emprego em pastagens mais ver des. Nem sempre conquistam
princesas. Em "La Langages des btes" (conto tipo 670), um rapaz pobre, que encontrou trabalho como
pastor, vai socorrer uma serpente mgica. Em troca, descobre algum ouro enterrado: "Encheu , bolsos
com ele e, na manh seguinte, conduziu seu rebanho de volta fazenda e pediu em casamento a filha
do patro Ela era a moa mais bonita da aldeia e h muito ele a amava. Vendo que o pastor estava rico,
o pai deu-lhe a mo da moa. Oito dias depois, estavam casados; e, como o fazendeiro e sua esposa
eram velhos, fizeram do genro o nico patro da fazenda. (41) Esse era o teor dos sonhos, nos contos
dos camponeses.
Outros rapazes partem porque no h terra, trabalho nem comida onde vivem. (42) Tornam-se
trabalhadores rurais, criados domsticos ou, na melhor das hipteses, aprendizes - de ferreiros,
alfaiates, carpinteiros, feiticeiros, e do demnio. O heri de "Jean de l'Ours" (conto tipo 301 B) serve
cinco anos a um ferreiro, depois vai embora com um basto de ferro, que recebe como pagamento de
seu trabalho. Na estrada, seguido por estranhos companheiros de viagem (Torce-Carvalho e
Corta-Montanha), enfrenta casas assombradas, derruba gigantes, mata monstros e se casa com uma
princesa espanhola. Aventuras corriqueiras, mas se encaixam na estrutura de um tpico tour de France.
"Jean-sans-Peur" (conto tipo 326) e muitos dos outros heris favoritos dos contos franceses seguem o
mesmo roteiro. (43) Suas proezas ocorrem num cenrio com o qual estaria familiarizada uma audincia
de artesos que tivessem passado a juventude na estrada, ou de camponeses que regularmente se
afastassem de suas famlias, depois da colheita de vero, para percorrer centenas de quilmetros como
pastores, mascates e trabalhadores migrantes.
Enfrentavam o perigo em toda parte, em suas viagens, porque a Frana no tinha fora policial eficaz e
os bandidos e lobos ainda vagueavam pelas terras ermas que separavam as aldeias, em vastas
extenses do Macio Central, do Jura, dos Vosges, das Landes e do bocage. Os homens tinham de
abrir caminho a p atravs desse territrio traioeiro, dormindo, noite, sob montes de feno e arbustos,
quando no podiam implorar hospitalidade em fazendas, ou pagar por uma cama numa estalagem - na
qual ainda havia uma boa chance de terem suas bolsas roubadas, ou as gargantas cortadas. Quando as
verses francesas do Pequeno Polegar, e de Joo e Maria, batem s portas de casas misteriosas, no
meio da floresta, os lobos ladrando s suas costas do um toque de realismo, no de fantasia. bem
verdade que as portas so abertas por ogres e feiticeiras. Mas, em muitos contos ("Le Garon de chez
la bcheronne", conto tipo 461 por exemplo), as casas abrigam quadrilhas de bandidos, como as de
Mandrin e Cartouche, que realmente tornavam as viagens arriscadas, no sculo XVIII. Viajar em grupo
dava proteo, mas no se podia jamais confiar nos companheiros de estrada. Poderiam salvar a pessoa
do desastre, como em "Moiti Poulet" (conto tipo 563) e "Le Navire sans pareil" (conto tipo 283); ou
poderiam ata, quando farejavam algo para roubar, como em "Jean l'Ours" (conto tipo 302). O pai de
Petit Louis tinha razo quando aconselhou o menino a jamais viajar com um corcunda, um aleijado ou
um cacous (um cordoeiro, semelhante a um pria) (conto tipo 531). Qualquer coisa fora normal
representava uma ameaa. Mas nenhuma frmula era adequada para perceber o perigo, na estrada.
Para a maioria da populao que entulhava as estrada Frana, a busca de fortuna era um eufemismo
para mendicncia. Os mendigos se apinham, nos contos; verdadeiros mendigos, no simplesmente
fadas disfaradas. Quando a pobreza esmaga uma viva e seu filho, em "Le Bracelet" (conto tipo 590),
eles abandonam sua cabana, na periferia da aldeia, e vo para a estrada, carregando todos seus bens
num nico saco. Sua trajetria leva-os para uma floresta ameaadora, uma quadrilha de assaltantes o
asilo de indigentes, antes que venha o socorro, finalmente de um bracelete mgico. Em "Les Deux
Voyageurs" (conto tipo 613), dois soldados que haviam dado baixa jogam dados para ver qual deles
dever ter os olhos arrancados. Desesperados por comida, no conseguem pensar em nenhuma maneira
de sobreviver, a no ser atuando com uma equipe de mendigos, o cego e seu guia. Em "Norous"
(conto tipo 563), uma simples colheita de linho representa a diferena entre a sobrevivncia e a
penria, para um famlia de camponeses que vive num pequeno lote de terra. A colheita boa, mas o
mau vento Norous sopra o linho para longe, enquanto seca no campo. O campons parte com um
porrete, para espancar Norous at a morte. Mas fica sem provises e logo forado a implorar
pedaos de po e um cantinho no estbulo, como qualquer mendigo. Finalmente, encontra Norous no
alto de uma montanha. "Devolva-me meu linho! Devolva-me meu linho!", grita. Apiedando-se dele, o
vento d-lhe uma toalha de mesa encantada, que produz uma refeio sempre que desdobrada. O
campons "enche a barriga" e passa a noite seguinte numa estalagem, mas roubado pela estalajadeira.
Depois de mais duas rodadas com Norous, recebe uma vara mgica, que surra a estalajadeira,
forando-a a devolver a toalha. O campons vive feliz - ou seja, com a despensa cheia - para sempre,
mas o conto ilustra o desespero dos que vacilam na linha de separao entre a pobreza na aldeia e a
penria na estrada. (44)
Assim, sempre que algum procura, por trs de Perrault, as verses camponesas de Mame Ganso,
encontra elementos de realismo - no narrativas fotogrficas sobre a vida no ptio da estrebaria (os
camponeses no tinham, na realidade, tantos filhos quanto os buracos de uma peneira, e no os
comiam), mas um quadro que corresponde a tudo que os historiadores sociais conseguiram
reconstituir, a partir do material existente nos arquivos. O quadro cabvel, e essa adequao uma
decorrncia lgica. Mostrando como se vivia, terre terre, na aldeia e na estrada, os contos ajudavam
a orientar os camponeses. Mapeavam os caminhos do mundo e demonstravam a loucura de se esperar
qualquer coisa, alm de crueldade, de uma ordem social cruel.
Mostrar que, por trs das fantasias e do divertimento escapista dos contos populares, existe um
substrato de realismo social, no significa, no entanto, que se deva levar muito longe a demonstrao.
(45) Os camponeses poderiam ter descoberto que a vida era cruel sem a ajuda de "Chapeuzinho
Vermelho". A crueldade pode ser encontrada nos contos populares e na Histria social em toda parte,
da ndia Irlanda e da frica ao Alasca. Se desejarmos ir alm das generalizaes vagas, ao
interpretarmos os contos franceses, precisamos saber se alguma coisa os distingue de outras
variedades. Precisamos fazer pelo menos uma rpida tentativa de anlise comparativa.
Consideremos, em primeiro lugar, a Mame Ganso, que mais familiar aos que falam o ingls.
Segundo a opinio geral, a dspar coletnea de canes de ninar, rimas e canes obscenas que
passaram a se relacionar com o nome de Mame Ganso na Inglaterra, no sculo XVIII, tem pouca
parecena com a coletnea de contos recolhidos por Perrault para seu Contes de ma mre Voye, na
Frana, no sculo XVII. Mas a Mame Ganso inglesa to reveladora, sua maneira, quanto a
francesa; e, felizmente, boa parte do seu material pode ser datada, porque os versos proclamam sua
natureza de criaes de um determinado perodo. "No cerco da Ilha Bela" ("At the siege of Belle Isle")
pertence Guerra dos Sete Anos, "Yankee Doodle" Revoluo Americana, e "O nobre e antigo
Duque de York" ("'The Grand Old Duke of York) s guerras revolucionrias francesas. Seus versos, no
entanto, na maioria parecem ser relativamente modernos (ps-1700), apesar das persistentes tentativas
de relacion-los a nomes e eventos de um passado mais remoto. Especialistas como lona e Peter Opie
encontraram poucas provas das afirmaes de que Humpty Dumpty era Ricardo III; de que Curly Locks
era Carlos II; Wee Willie Winkie, Guilherme III; e de que a Pequena Senhorita Muffet fosse Maria,
Rainha da Esccia, ou a aranha John Knox. (46)
De qualquer maneira, o significado histrico dos versos est mais em seu tom que em suas aluses.
Tm mais vivacidade e fantasia que os contos franceses e alemes, talvez porque tantos deles
pertencem ao perodo posterior ao sculo XVII, quando a Inglaterra se libertou do domnio do
maltusianismo. Mas h um toque de agonia demogrfica em alguns dos versos mais antigos. Corno
acontece com a equivalente inglesa da me de "Le Petit Poucet" (O Pequeno Polegar):
Era uma vez uma velha que morava num sapato;
Tinha tantos filhos que no sabia o que fazer.
Como os camponeses em toda parte, ela os alimentava com caldo, embora no pudesse oferecer-lhes
po algum; e dava vazo a seu desespero surrando-os. A dieta das outras crianas em Mame Ganso
no era l muito melhor:
Papa de ervilha quente,
Papa de ervilha fria,
Papa de ervilha na panela,
Velha de nove dias.
E o mesmo acontecia com suas roupas:
Quando eu era menina,
A pelos sete anos,
Eu no tinha angua
Para me proteger do frio.
Algumas vezes, eles desapareciam pela estrada, como nestes versos do perodo Tudor-Stuart:
Era uma vez uma velha que tinha trs filhos
Jerry, James e John.
Jerry foi enforcado e James se afogou.
John se perdeu e nunca foi encontrado.
E assim se acabaram seus trs filhos,
Jerry, James e John.
A vida era dura no tempo antigo de Mame Ganso. Muitos personagens mergulham na penria:
Trolol, Margery Daw
Vendeu sua cama e dorme na palha.
Outros, verdade, gozavam uma vida de indolncia, como no caso da garonete georgiana Elsie Marly
(alis, Nancy Dawson):
Ela no precisa levantar-se, para alimentar os porcos,
Fica na cama at as oito ou nove horas,
Curly Locks regalava-se com uma dieta de morangos, acar e creme; mas ela parece ter sido uma
menina do fim do sculo XVIII. A velha Mame Hubbard, uma personagem elisabetana, tinha de
enfrentar um armrio vazio, enquanto seu contemporneo, o Pequeno Tommy Tucker, era obrigado a
cantar para poder jantar. Simo Simples que, provavelmente, pertence ao sculo XVII, no tinha um
tosto. E ele era um inofensivo idiota da aldeia, ao contrrio dos ameaadores pobres errantes e
marginais que aparecem nos versinhos mais antigos:
Escuta, escuta,
Os ces esto latindo,
Os mendigos chegam cidade;
Alguns esfarrapados,
Outros embriagados.
E um trajado em veludo.
A pobreza impelia muitos personagens de Mame Ganso para a mendicncia e o roubo:
O Natal est chegando;
Os gansos engordam.
Faz favor, ponha uma moeda
No chapu do velho.
Roubavam crianas indefesas:
Ento veio um mendigo arrogante
E disse que ia ficar com ela:
Levou a minha bonequinha.
E seus companheiros de misria:
Era uma vez um homem que nada tinha de seu,
Mas vieram ladres para roub-lo;
Ele subiu rastejando at o alto da chamin,
E eles acharam que o haviam pegado.
As antigas rimas contm muito nonsense e fantasia bem-humorada; mas, de vez em quando, ouve-se
uma nota de desespero, atravs da alegria. Sintetiza vidas que eram brutalmente curtas, como no caso
de Solomon Grundy, ou que eram acabrunhadas pela misria, como a de outra velha annima:
Era uma vez uma velha
Que nada tinha,
E se dizia que essa velha
Era louca.
No tinha nada para comer,
Nada para usar,
Nada para perder,
Nada para temer,
Nada para perguntar,
E nada para dar.
E quando realmente morreu
No tinha nada para deixar.
Nem tudo jovialidade em Mame Ganso. Os versos mais antigos pertencem a um universo anterior,
de pobreza, desespero e morte.
De modo geral, portanto, os versos da Inglaterra tm alguma afinidade com os contos da Frana. No
so realmente comparveis, no entanto, porque pertencem a gneros diferentes. Embora os franceses
cantassem alguns contines (versos ritmados) e canes de ninar para seus filhos, jamais criaram nada
parecido com os versos infantis ingleses; e os ingleses jamais criaram um repertrio to rico de contos
populares como os franceses. Apesar disso, o conto popular floresceu na Inglaterra o bastante para que
nos aventuremos a alguns comentrios comparativos e estendamos, a seguir, as comparaes Itlia e
Alemanha, onde podem ser feitas de maneira mais sistemtica.
Os contos populares ingleses tm muito da fantasia, do humor e dos detalhes elaborados que aparecem
nas histrias infantis em versos. Falam de muitos personagens que so os mesmos: Simo o Simples,
Dr. Fell, Os Homens Sbios de Gotham, Jack (Joozinho), de "A casa que Joozinho construiu" ('The
house that Jack built"), e especialmente o Pequeno Polegar, o heri dos contos populares que deu nome
primeira coleo importante de histrias rimadas para crianas a ser publicada na Inglaterra, Tommy
Thumb's Pretty Song Book ("O belo livro de canes do Pequeno Polegar") (1744). (47) Mas o
Pequeno Polegar tem pouca semelhana com seu primo francs, L Petit Poucet. O conto ingls
detm-se em suas diabruras na excentricidade liliputiana de seu traje: "As fadas puseram-lhe um
chapu feito com uma folha de carvalho, uma camisa de teia de aranha, palet de lanugem de cardo e
calas de penas, Suas meias eram feitas de casca de ma e amarradas com um clio de sua me, e seus
sapatos eram de pele de rato, com os plos na parte interna." (48) Nenhum desses detalhes iluminou a
vida de Poucet. O conto francs (conto tipo 700) no menciona as roupas do personagem e no lhe
oferece a ajuda de fadas nem de quaisquer outros seres sobrenaturais. Em vez disso, coloca-o num
impiedoso universo campons e mostra como ele repele bandidos, lobos e o padre da aldeia, usando
sua inteligncia, a nica defesa dos "pequenos" contra a ganncia dos grandes.
Apesar de uma numerosa populao de fantasmas e duendes, o universo dos contos ingleses parece
muito mais prazenteiro. At a matana de gigantes ocorre numa terra de fantasia; como no incio de
"Jack the Giant Killer" ("Joozinho, o matador de gigantes"), numa verso oral:
Houve um tempo - e que tempo bom, aquele - em que os porcos eram glutes, os cachorros
comiam limas e os macacos mastigavam fumo, em que as casas eram cobertas com panquecas e
as ruas pavimentadas com pudins de ameixa, e porcos assados corriam de alto a baixo pelas ruas,
com facas e garfos enfiados nas costas, exclamando: "Venham comer-me!". Aquele era um bom
tempo para os viajantes. (49)
Como um parvo, Joozinho negocia a vaca da famlia por algumas poucas favas e, depois, ascende s
riquezas, com a ajuda de amparos mgicos - um p de feijo fantstico, uma galinha que pe ovos de
ouro e uma harpa falante. Ele uma espcie de Simple Simon, como os Jacks e Jocks de tantos contos
britnicos. Corajoso, mas preguioso, de bom gnio, mas cabea-dura, acaba encontrando um final
feliz, num mundo despreocupado. Sua pobreza inicial e o agourento coro de fi-fai-fo-funs do alto do
p de feijo no estragam essa atmosfera. Tendo superado a adversidade, Joozinho ganha sua
recompensa e aparece, no fim, com um aspecto semelhante ao do Pequeno Jack Horner: "Ah, que
bom rapaz eu sou!"
O matador de gigantes francs pertence a outra espcie: Petit Jean, Parle, ou Le Petit Fteux, de
acordo com diferentes verses da mesma histria (conto tipo 328). Um filho mais novo baixotinho,
"extraordinariamente esperto... sempre animado e alerta", ele ingressa no exrcito com seus detestveis
irmos mais velhos, que convencem o rei a mand-lo realizar a misso suicida de roubar o tesouro de
um gigante. Como a maioria dos gigantes franceses, esse "bonhomme" no vive numa terra imaginria
em alguma parte acima do p de feijo. um proprietrio de terras local, que toca violino, briga com a
mulher e convida os vizinhos para banquetes de meninos assados. Petit Jean no apenas foge com o
tesouro; logra o gigante, atormenta-o durante o sono, salga demais sua sopa e engoda sua mulher e
filha, fazendo-as cozinharem a si mesmas at morrerem, num forno. Finalmente, o rei d a Petit Jean a
tarefa aparentemente impossvel de capturar o prprio gigante. O pequeno heri parte disfarado de
monarca e dirigindo uma carruagem na qual h uma imensa gaiola de ferro.
"Monsieur le roi, o que est fazendo com essa gaiola de ferro?", pergunta o gigante. "Estou
tentando pegar Petit Jean, que me pregou todo tipo de peas", responde Petit Jean. "Ele no pode
ter sido pior para o senhor do que foi para mim. Tambm estou procurando por ele". "Mas,
gigante, acha que bastante forte para peg-lo sozinho? Segundo dizem, ele terrivelmente
poderoso. No tenho certeza de que possa mant-lo preso nesta gaiola de ferro. "No se
preocupe, Monsieur le roi, posso cuidar dele sem uma gaiola; e, se quiser, vou testar a sua."
Ento o gigante entra na gaiola. Petit Jean a tranca, E, depois que o gigante fica exausto de tentar
quebrar as barras de ferro, Petit Jean anuncia sua verdadeira identidade e entrega sua vtima, indefesa e
enraivecida, ao verdadeiro rei, que o recompensa com uma princesa." (50)
Quando se mistura uma variante italiana s diferentes modalidades do mesmo tipo de conto, pode-se
observar que o clima muda, da fantasia inglesa para a astcia francesa e o burlesco italiano. No caso do
conto tipo 301, que trata do resgate da princesa, salva de um encantado mundo subterrneo, o heri
ingls outro Jack, o francs outro Jean. Jack liberta sua princesa seguindo as instrues de um ano.
Ele desce por um poo, corre atrs de uma bola mgica e mata uma sucesso de gigantes, em palcios
de cobre, de ouro e de prata. O francs Jean tem de enfrentar ambientes mais traioeiros. Seus
companheiros de viagem o abandonam ao demnio, numa casa assombrada, e depois cortam a corda,
quando ele tenta subir por ela para sair do poo, depois de salvar a princesa. O heri italiano, um
padeiro do palcio que expulso da cidade por namorar a filha do rei, segue o mesmo caminho,
enfrentando os mesmos perigos, mas faz isso com um esprito de bufonaria, alm da bravura. O diabo
desce pela chamin da casa assombrada numa bola mgica e tenta derrub-lo pulando entre seus ps.
Imperturbvel, o padeiro pe-se de p sobre uma cadeira, depois sobre uma mesa e, finalmente, uma
cadeira montada sobre a mesa, enquanto depena uma galinha - sem que a bola diablica pare de pular,
inutilmente, em torno dele, Sem conseguir sair vencedor nesse nmero de circo, o diabo sai da bola e
se oferece para preparar a refeio. O padeiro pede-lhe para segurar a lenha e, depois, destramente,
corta-lhe a cabea. Usa truque parecido, no poo subterrneo, para decapitar uma feiticeira que,
enquanto isso, raptara a princesa, Assim, acumulando truques, finalmente ganha seu verdadeiro amor.
A trama, idntica das verses inglesa e francesa, parece aproximar-se mais da Commedia deIl' Arte que de qualquer tipo de mundo encantado. (51)
O aspecto bufo e maquiavlico dos contos italianos transparece com fora ainda maior quando os
comparamos com os alemes. A verso italiana de "The youth who wanted to know what fear was"
("O rapaz que queria saber o que era o medo") (Grimm 4) narra o procedimento de praxe de um certo
Alphonse-Gaston, o heri que logra o diabo, fazendo-o cair numa sucesso de armadilhas. (52) A
Chapeuzinho Vermelho italiana engana o lobo atirando-lhe um bolo cheio de pregos embora,
posteriormente, ele a engane, fazendo-a comer sua av e depois comendo-a. (53) O Gato de Botas italiano, como o francs, mas ao contrrio do alemo (conto tipo 545, Grimm 106), uma raposa que
brinca com a vaidade e a credulidade de todos em torno dela, para conseguir um castelo e uma princesa
para seu dono. E o "Barba Azul" italiano mostra como um conto pode mudar de tom, embora
continuando com a mesma estrutura.
Na Itlia, Barba Azul um demnio, que atrai uma sucesso de moas camponesas para o inferno, contratando-as para lavar sua roupa e, depois, tentando-as com o truque habitual da chave da porta
proibida. A porta conduz ao inferno; ento, quando elas a abrem, irrompem chamas, chamuscando uma
flor que ele coloca em seus cabelos. Depois que o demnio volta de suas viagens, a flor chamuscada
mostra-lhe que as moas quebraram o tabu; e ele as atira nas chamas, uma aps a outra - at que
encontra Lcia. Ela concorda em trabalhar para ele depois que suas irms mais velhas desaparecem. E
tambm abre a porta proibida, mas s o suficiente para ver, num relance, suas irms nas chamas. Como
ela teve a prudncia de deixar sua flor n