1
EXCELENTISSIMO SR. DR. JORGE MUSSI, MINISTRO DO SUPERIOR
TRIBUNAL DE JUSTIÇA
“In the May 2006 cases, a number of resistance deaths were
reported to the wrong precinct, suggesting collusion in
impunity between specific Military Police battalions and
Civil Police stations. [...] I received extensive evidence that
crime scenes were routinely tampered with. [...] The
policeman involved in the killing is often the only witness
from whom a statement is taken”.1
INCIDENTE DE DESLOCAMENTO DE COMPETÊNCIA Nº 9/SP (2016/0133526-7)
Nº ÚNICO: 0133526-50.2016.3.00.0000
ASSOCIAÇÃO DIREITOS HUMANOS EM REDE - CONECTAS
DIREITOS HUMANOS – associação sem fins lucrativos, qualificada como Organização da
Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), inscrita no CNPJ/MF sob o nº.
04.706.954/0001-75, com sede na Avenida Paulista, nº 575, 19º andar, São Paulo - SP –, aqui
representada por sua diretora executiva, nos termos de seu Estatuto Social, Sra. Juana
Magdalena Kweitel, através de seus procuradores (docs. 1 a 3), vem respeitosamente, à
presença de Vossa Excelência, com lastro no artigo 138 do novo Código de Processo Civil,
requerer manifestação na qualidade de AMICUS CURIAE no INCIDENTE DE
DESLOCAMENTO DE COMPETÊNCIA nº 9/SP, interposto pelo Procurador-Geral da
República, o Sr. Rodrigo Janot, a respeito de chacina ocorrida em maio de 2006 na cidade de
São Paulo, pelas razões a seguir apresentadas.
1 Relatório A/HRC/11/2/Add.2, ONU, p. 10: “Nos casos que ocorreram em maio de 2006, várias mortes por resistência foram registradas nas delegacias erradas, indicando um conluio para a impunidade entre alguns batalhões da Polícia Militar e algumas Delegacias de Polícia. [...]recebi provas cabais de que rotineiramente os locais de crimes são adulterados. [...] Os policiais envolvidos na morte muitas vezes são as únicas testemunhas que prestam declarações” (tradução livre).
2
I. DA LEGITIMIDADE DA ENTIDADE SUBSCRITORA COMO AMICUS CURIAE.
A princípio, o instituto do amicus curiae surge na legislação pátria pelas leis
9.868/99 e 9.882/99, que dispõem sobre o trâmite das Ações Diretas de
Inconstitucionalidade e das Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental,
respectivamente. Na mesma linha, o art. 138 do novo Código de Processo Civil,
reconhecendo a importância das contribuições que a sociedade civil pode trazer ao judiciário
em temas de grande repercussão, implantou o amicus curiae como um novo sistema de
participação processual.2
Além da previsão legal, o Judiciário também vem sendo favorável à participação
de terceiros em casos de grande repercussão. O Supremo Tribunal Federal, por exemplo,
consolidou entendimento que autoriza a manifestação da sociedade civil em determinadas
ações, democratizando e qualificando o processo judicial. É o que aduz a ementa de
julgamento da ADI 2130/SC:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. INTERVENÇÃO
PROCESSUAL DO AMICUS CURIAE. POSSIBILIDADE. LEI Nº
9.868/99 (ART. 7º, § 2º). SIGNIFICADO POLÍTICO-JURÍDICO DA
ADMISSÃO DO AMICUS CURIAE NO SISTEMA DE CONTROLE
NORMATIVO ABSTRATO DE CONSTITUCIONALIDADE. PEDIDO
DE ADMISSÃO DEFERIDO.
No estatuto que rege o sistema de controle normativo abstrato de
constitucionalidade, o ordenamento positivo brasileiro processualizou a figura
do amicus curiae (Lei nº 9.868/99, art. 7º, § 2º), permitindo que terceiros -
desde que investidos de representatividade adequada - possam ser admitidos
na relação processual, para efeito de manifestação sobre a questão de direito
subjacente à própria controvérsia constitucional.
2 BRASIL. Código de Processo Civil, art. 138: “O juiz ou o relator, considerando a relevância da matéria, a especificidade do tema objeto da demanda ou a repercussão social da controvérsia, poderá, por decisão irrecorrível, de ofício ou a requerimento das partes ou de quem pretenda manifestar-se, solicitar ou admitir a participação de pessoa natural ou jurídica, órgão ou entidade especializada, com representatividade adequada, no prazo de 15 (quinze) dias de sua intimação”
3
A admissão de terceiro, na condição de amicus curiae, no processo
objetivo de controle normativo abstrato, qualifica-se como fator de
legitimação social das decisões da Suprema Corte, enquanto Tribunal
Constitucional, pois viabiliza, em obséquio ao postulado democrático, a
abertura do processo de fiscalização concentrada de constitucionalidade, em
ordem a permitir que nele se realize, sempre sob uma perspectiva
eminentemente pluralística, a possibilidade de participação formal de
entidades e de instituições que efetivamente representem os interesses
gerais da coletividade ou que expressem os valores essenciais e
relevantes de grupos, classes ou estratos sociais. (ADI 2130 MC, Relator:
Min. CELSO DE MELLO, julgado em 20/12/2000, publicado em DJ
02/02/2001 P - 00145)
Em decisão anterior ao novo CPC, o próprio E. Superior Tribunal de Justiça
se manifestou consciente da importância do instituto, permitindo o ingresso de amicus
curiae em Incidente de Deslocamento de Competência:
[...] 23. Nesta linha, mesmo que não haja expressa previsão normativa, parece
razoável que se aceite a participação das entidades requerentes,
DIGNITATIS - Assessoria Técnica Popular e JUSTIÇA GLOBAL (fls.
1326/1336), para ingressarem no presente IDC na qualidade de amicus
curiae, reconhecendo-se a representatividade de ambos os requerentes, tanto
na sua atuação no âmbito interno, quanto, no caso específico de MANOEL
MATTOS, o acompanhamento que realizam no âmbito da Corte
Interamericana de Direitos Humanos. (fl. 1572)
Diante da ausência de regramento infraconstitucional disciplinando o
processamento do Incidente de Deslocamento de Competência, cumpre a
este Superior Tribunal de Justiça a tarefa de delimitar suas nuanças até que o
legislador ordinário o faça.
[...] conforme bem anotado no parecer ministerial, se mostra bastante razoável
a admissão das organizações da sociedade civil Requerentes na condição de
amicus curiae, mormente tendo em conta sua efetiva atuação no caso em
apreço, inclusive como agentes provocadores dos organismos
responsáveis por garantir os direitos humanos.
Ante o exposto, [...] admito a participação das Requerentes como amicus
curiae, papel já desempenhado com os documentos e manifestações juntadas
aos autos.
4
(IDC 2/DF, nº único 0121262-13.2009.3.00.0000, Rel. Min. LAURITA VAZ,
3ª seção, julgado em 10/08/2010 e publicado em 17/08/2010) (Grifo nosso)
Demonstrada a possibilidade do amicus curiae ao caso em tela, passamos a
apresentar o preenchimento de seus requisitos.
Em perfeita harmonia com a regulamentação posterior – trazida pelo art. 138 do
novo CPC –, o Ilustre Min. JORGE MUSSI, no Incidente de Deslocamento de Competência
nº 3, explicitou a existência de duas condições para a admissão de terceiros interessados na
qualidade de amicus curiae: (i) a relevância da matéria em debate, bem como (ii) a demonstração
da representatividade da requerente.
A primeira condição, como já apontada nos autos e como mostraremos a seguir,
está presente numa série de fatores que exclamam a gravidade dos fatos: a chacina em si,
como ato premeditado de execução; a autoria do crime, atribuída pelas próprias autoridades
a grupos de extermínio; as suspeitas de participação de agentes públicos; e o contexto no
qual o crime está inserido, entre mais de quinhentas mortes decorrentes do conflito armado
que atravessou a cidade no período. Por seu turno, a segunda condição também está
plenamente satisfeita: tanto a representatividade da requerente quanto sua legitimidade material são
respaldadas por suas missões institucionais e pelos reconhecidos trabalhos na área de
proteção e garantia de direitos fundamentais, como os discutidos no caso em questão.
A CONECTAS DIREITOS HUMANOS foi fundada em 2001 com a missão de
fortalecer e promover o respeito aos direitos humanos no Brasil e no hemisfério Sul,
dedicando-se, para tanto, à educação em direitos humanos, à advocacia estratégica e à
promoção do diálogo entre sociedade civil, universidades e agências internacionais
envolvidas na defesa destes direitos. Desde janeiro de 2006, a Conectas tem status
consultivo junto à Organização das Nações Unidas (ONU) e, desde maio de 2009,
dispõe de status de observador na Comissão Africana de Direitos Humanos e dos
Povos. Por meio de seu Programa de Justiça, a Conectas ainda promove advocacia
estratégica em âmbito nacional e internacional, com o objetivo de alterar as práticas
institucionais e sociais que desencadeiam sistemáticas violações de direitos humanos. Como
5
reflexo de sua atuação, a Conectas é, hoje, a organização da sociedade civil brasileira com
maior número de amicus curiae frente ao Supremo Tribunal Federal: 483.
Esses elementos já foram reconhecidos por inúmeras decisões judiciais,
admitindo a peticionária como amicus curiae em diversos casos que tratam de direitos
humanos, por exemplo: o Recurso Extraordinário n.º 635.659, a Proposta de Súmula
Vinculante nº 57, as Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 4162 e nº 3943, o Habeas
Corpus nº 118.533 e a Ação Civil Pública nº 1016019-17.2014.8.26.0053 – em tramitação no
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
Por fim, ainda que inexistissem todas as condições acima elencadas, que
permitem sua admissão no presente caso como amicus curiae, destacamos que a
CONECTAS foi a entidade responsável por requerer ao Procurador-Geral da República
a suscitação do presente incidente de deslocamento de competência, como consta
nos documentos juntados na inicial.
De tal sorte, considerando todo o exposto, fica devidamente comprovado o
preenchimento dos requisitos exigidos para a admissão da ora peticionária na qualidade de
amicus curiae, o que desde já se requer.
II. DOS FATOS. A LETALIDADE POLICIAL EM SÃO PAULO E AS EXECUÇÕES SUMÁRIAS NO
CASO DO PARQUE BRISTOL.
Para uma melhor compreensão do caso discutido, este capítulo abordará (1) os
números de letalidade policial em São Paulo, (2) o contexto dos chamados “crimes de maio
de 2006” e (3) os fatos específicos da chacina do Parque Bristol.
O primeiro item apresentará a Vossa Excelência o histórico tratamento leniente
dado às mortes causadas por policiais no estado de São Paulo, perpetuando nas instituições
de segurança uma cultura da impunidade. Em verdade, com base em dados estatísticos e
relatórios oficiais, há elementos concretos que apontam para o antigo e contínuo
3 Conectas Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.conectas.org/pt/acoes/stf-em-foco>. Acesso em: 07.08.17.
6
envolvimento de agentes públicos com grupos de extermínio e para a omissão dos órgãos
de investigação e controle (interno e externo) nos homicídios praticados por policiais.
Também respaldado por dados estatísticos e relatórios, o segundo item pretende
reconstruir o cenário de violência que acometeu São Paulo entre os dias 12 e 20 de maio de
2006, e que ficou conhecido como “os crimes de maio”. Isso fornecerá o contexto no qual
se insere o terceiro item, a chacina do Parque Bristol, ora discutida, e permitirá enxergar que
os homicídios – na verdade, execuções sumárias – não foram um caso isolado. Isso nos levará
à grave violação de direitos humanos que evoca o presente deslocamento de competência,
com a descrição dos fatos que causaram a morte dos quatro jovens, bem como das principais
falhas da investigação – detalhadamente explicadas no Capítulo III.
1. Letalidade policial em São Paulo: cheque em branco para as mortes praticadas
pelos policiais4
A principal premissa da atividade policial, muitas vezes deixada de lado, é
prevenir e combater delitos, não executar suspeitos. A atividade policial que a ignora viola
uma série de garantias fundamentais e até mesmo o conceito de Estado Democrático de
Direito que sustenta as instituições e a organização política do país, o qual impõe o respeito
às leis não só por parte dos cidadãos mas também e principalmente pelo Poder Público.
Apesar desse postulado, diversas pesquisas denunciam a escalada da violência
policial no país e altas taxas de letalidade. Por causa de homicídios praticados diariamente, a
polícia brasileira se tornou uma das mais letais do mundo: em 5 anos, em todo o Brasil,
mais de 11 mil pessoas foram mortas por policiais, número superior ao do total
vitimado nos últimos 30 anos pela polícia dos EUA.5 6
4 ALSTON, Philip. Relator Especial sobre Execuções Extrajudiciais, Sumárias ou Arbitrárias. Relatório A/HRC/11/2/Add.2, ONU, p. 11.
5 8º Anuário Brasileiro de Segurança Pública - 2014. Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ano 8. 2014.
6 A cidade de Nova Iorque, em 2011, com cerca de 8 mi de habitantes, teve apenas 8 pessoas mortas pela polícia; o município de São Paulo, com cerca de 11 mi de habitantes, no mesmo ano, teve 242 homicídios provocados por policiais. Ver: Idem, 7º Anuário Brasileiro de Segurança Pública - 2013, p. 125.
7
Apenas no ano de 2014 as polícias brasileiras cometeram mais de 3 mil
homicídios, cerca de uma pessoa a cada três horas.7
De acordo com dados colhidos pela Anistia Internacional, o perfil das pessoas
vitimadas pela polícia é quase sempre o mesmo: homem, negro e jovem – tal qual o perfil
das vítimas nesse caso.8
Frente a parâmetros internacionais, a gravidade dos fatos é ainda mais explícita.
Foram desenvolvidos três indicadores básicos para se medir a letalidade de uma força policial:
(1) a razão entre civis feridos e civis mortos pela polícia;
(2) a relação entre civis mortos e policiais mortos; e
(3) a proporção de civis mortos pelas polícias em relação ao total de homicídios
dolosos.9
A partir deles, a pesquisa a pesquisa A letalidade da ação policial: parâmetro para
análise10 chegou a resultados preocupantes, concluindo que
Quando se analisa o conjunto de indicadores [...], chega-se a conclusão de que,
em São Paulo, a violência letal é utilizada como forma de controle social
coercitivo [...]. Pelos dados analisados pode-se afirmar que, no estado de
São Paulo, as polícias, em sua ação rotineira e em nome do estrito
cumprimento do dever, mais do que impedir a ocorrência do crime,
executam sumariamente pessoas [...].
Os indicadores, quando aplicados sob os números fornecidos pela Secretaria de
Segurança Pública do Estado de São Paulo, apresentam, se não o incentivo, ao menos o
descontrole das instituições policiais em relação aos homicídios cometidos.
7 Idem, 9º Anuário Brasileiro de Segurança Pública - 2015. Ano 9.
8 Ver: Você matou meu filho!: homicídios cometidos pela polícia militar na cidade do Rio de Janeiro. Anistia Internacional. Rio de Janeiro: Anistia Internacional, 2015, pp. 34-35.
9 Idem, 7º Anuário Brasileiro de Segurança Pública – 2013, p. 119.
10 LOCHE, A. A letalidade da ação policial: parâmetros para análise, p. 53.
8
O primeiro indicador mostra que a polícia paulista mata mais do que fere:
entre os anos de 2000 e 2009, a polícia de São Paulo vitimou cerca de 5 mil pessoas,
ferindo outras 4 mil; com a exceção de um ano apenas, 2005, a polícia sempre mata
mais do que feriu. Como comparação, em Nova York, entre os anos de 1993 e 2002,
a polícia da cidade matou 196 pessoas e feriu 390, apontando uma linha de atuação
que visa primeiro deter o suspeito, não o matar.
Por sua vez, enquanto o segundo indicador estabelece como parâmetro o
número de quatro civis mortos por cada agente de segurança11, no estado de São
Paulo o índice beira alarmantes 17 mortes de civis para cada policial, número quatro
vez maior.
Por fim, atualizando o terceiro indicador com os dados de 2014,12 verifica-
se que a polícia foi responsável por mais de 20% das mortes ocorridas no Estado de
São Paulo, ou seja, um de cada cinco homicídios. Para efeito de comparação, nos
Estados Unidos esse índice é de 3,6%13, i. e., entre 3 e 4 mortos a cada 100.
O excessivo número de mortes provocadas pela polícia brasileira, em especial a
paulista, foi alvo de preocupação até mesmo da ONU, como podemos observar no relatório
A/HRC/11/2/Add.2, de 23 de março de 2009, produzido pelo Relator Especial sobre
Execuções Extrajudiciais, Sumárias ou Arbitrárias, Philip Alston. Após inspeção no país e
diante da confirmação dos dados sobre a altíssima letalidade policial no Brasil, o Relator
chegou à conclusão de que execuções são praticadas pela polícia não somente em
serviço, mas também fora dele, com grupos de extermínio.14
11 Ver: CANO, Ignacio. The use of lethal force by police in Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, ISER, 1997.
12 9º Anuário Brasileiro de Segurança Pública - 2015. Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ano 9. 2015.
13 Id., 7º Anuário Brasileiro de Segurança Pública - 2013, p. 119.
14 Relatório A/HRC/11/2/Add.2, ONU, p. 6: “In part, there is a significant problem with on-duty police using excessive force and committing extrajudicial executions in illegal and counterproductive efforts to combat crime. But there is also a problem with off-duty police themselves forming criminal organizations which also engage in killings”.
9
O Relatório se inicia com os preocupantes números oficiais dos chamados
“autos de resistência” ou “resistência seguida de morte”: homicídios, causados por policiais,
que são registrados como decorrentes de resistência ou confronto – incluindo casos onde
claramente não houve reação, com elementos de execução sumária – por exemplo, tiros a
queima roupa nas costas.15 A figura dos “autos de resistência” apodera-se da função de aplicar
ou não a exclusão de ilicitude, partindo do (equivocado) pressuposto que a polícia somente age
em legítima defesa. Assim, enquanto a taxa de homicídios oficial de São Paulo diminuiu
drasticamente nos últimos anos, inversamente, o número de mortos pela polícia aumentou.
Para a ONU, é outro indício de que a polícia age executando suspeitos ao invés de
prendê-los.16
O abuso dessa classificação pelas polícias fica bastante evidente se observamos,
por exemplo, os números do Rio de Janeiro: entre 1997 e 2007, a quantidade de homicídios
registrados como “autos de resistência” pulou de 300 casos para mais de 1.300.17
E com a atenção da sociedade civil voltada para o alto índice oficial de letalidade
policial, o relatório também notou o aumento de desaparecimentos de pessoas: somente em
2006, no Rio de Janeiro, mais de 4 mil pessoas foram dadas como desaparecidas18. Segundo
a ONU, objetivando baixar seus índices oficiais de letalidade, a polícia teria começado a sumir
com os corpos de suas vítimas, tal como no caso Amarildo19 e como se tentou no assassinato
do menino Eduardo de Jesus, de 10 anos, morto pela polícia com um tiro na frente de casa,
no Complexo do Alemão, Zona Norte do Rio de Janeiro20.
15 Ver: 7º Anuário Brasileiro de Segurança Pública - 2013, p. 120.
16 ONU, op. cit., pp. 8-9: “On-duty police are responsible for a significant proportion of all killings in Brazil. While São Paulo’s official homicide rate has reduced in recent years, the number of killings by police has actually increased over the last three years [...].Extrajudicial executions are committed by police who murder rather than arrest criminal suspects [...]”.
17 Ibid., p. 14.
18 Ibid., p. 7: “In Rio de Janeiro, 4,562 persons were recorded to have disappeared in 2006. While some of these people are doubtless alive, a significant proportion were presumably killed and their bodies disposed of”.
19 Neste caso, 12 policiais militares foram condenados por torturar, matar e ocultar o cadáver do ajudante de pedreiro Amarildo de Souza. Disponível em: http://glo.bo/23GbFow. Acessado no dia 21/07/2016.
20 A mãe de Eduardo diz: “Eles chegaram perto do meu filho dizendo que iam levar o corpo. Eu disse que eles não iam tirar o meu filho de lá porque eu não ia deixar. Eles estão acostumados a fazer isso, carregar o corpo e dar sumiço. Eles dando sumiço, não acontece nada. Aí fica na imprensa que fulano desapareceu e nunca acham”. Ver: Você matou meu filho!: homicídios cometidos pela polícia militar na cidade do Rio de Janeiro. Anistia Internacional. Rio de Janeiro: Anistia Internacional, 2015, pp. 20-21.
10
Também constam no relatório da ONU depoimentos de Promotores de Justiça,
os quais afirmam que os conhecidos problemas que ocorrem nas investigações criminais
comuns se agravam seriamente nos casos em que um policial figura como possível autor do
delito. Os inquéritos não seriam corretamente registrados e não raro as únicas evidências
consistiriam na descrição do local e no depoimento da polícia. O uso de DNA e de laudos
de balística então, seriam raríssimos.21
O Relatório das Nações Unidas ainda alertou para outro fato: a existência, no
Brasil, de grupos de extermínio formados por agentes do Estado, que praticam, entre
outros delitos, execuções extrajudiciais.22 As execuções praticadas por esses grupos de
policiais teriam traços característicos que as distinguiriam das demais chacinas. Inicialmente,
as mortes seriam precedidas de ameaças, exigências ou toques de recolher; haveria uma
preferência por locais públicos para passar, aos moradores locais, a mensagem de que a
Polícia manda na região; e por fim, sem que houvesse tempo para se alertar a polícia, oficiais
apareceriam e adulterariam a cena do crime, recolhendo evidências, como cápsulas e
projéteis, ou os corpos das vítimas – exatamente como no caso do Pq. Bristol.23
Nessa linha, consta no relatório a intencional má condução das
investigações, que estaria acobertando os homicídios: observou-se que as mortes eram
direcionadas a delegacias diferentes das quais deveriam ser apresentadas, indicando, para o
Relator, uma atuação proposital da polícia para dificultar qualquer apuração dos fatos.
Ele, inclusive, afirma ter tido acesso a provas contundentes sobre a adulteração dos locais
das mortes, restando, nesses casos, apenas o testemunho dos policiais sobre o ocorrido.24
21 ONU, op. cit., p. 27.
22 ONU, op. cit., p. 19: “In addition to killings by on-duty police, there are a significant number of groups throughout Brazil, composed largely of off-duty government agents who engage in a range of criminal activities, including extrajudicial executions”.
23 Ver: Mapas do extermínio: execuções extrajudiciais e mortes pela omissão do Estado de São Paulo. Disponível em: <http://www.conectas.org/arquivos/editor/files/DOSSIE_pena%20de%20morte%20final%20ACAT%20(1).pdf>. Acesso em: 1 ago. 2016.
24 Ibid., p. 10: “In the May 2006 cases, a number of resistance deaths were reported to the wrong precinct, suggesting collusion in impunity between specific Military Police battalions and Civil Police stations. [...]I received extensive evidence that crime scenes were routinely tampered with. [...] The policeman involved in the killing is often the only witness from whom a statement is taken”.
11
A conivência do alto escalão da polícia contribui para uma cultura de
impunidade, posto que os policiais sabem que podem operar à margem da lei não só
no serviço, com os “autos de resistência”, mas também fora dele.25 A situação de violência
era tamanha que o relatório afirma: “O sistema atual é um cheque em branco para as
mortes praticadas pelos policiais”.26
2. Os Crimes de maio de 2006
De acordo com a ONU, os crimes de maio de 2006, na cidade de São Paulo,
seriam um caso onde todas as irregularidades acima descritas estariam presentes. As duas
principais formas de letalidade policial, ora retratadas, teriam sido usadas ao mesmo tempo:
tanto os “autos de resistência” quanto a atuação de grupos de extermínio.
A violência transcorrida entre os dias 12 e 21 de maio começou quando a facção
criminosa “Primeiro Comando da Capital” (PCC), organizou rebeliões simultaneamente em
presídios de todo o estado de São Paulo, fazendo de reféns centenas de parentes de presos.
Fora dos presídios, a facção ainda gerou pânico na população paulista, protagonizando uma
série de ataques: incendiou ônibus, avançou contra prédios públicos e, principalmente,
realizou atentados contra a Polícia, como viaturas, postos, delegacias e batalhões.27
Os ataques organizados pelo Primeiro Comando da Capital teriam sido
motivados pelo “esquema de achaques (extorsão), praticados [pela polícia] contra familiares
de líderes do PCC em 2005”28 e pela repentina transferência de presídio imposta a alguns de
25 Ibid.. p. 11: “Corruption and second jobs cause harm in themselves, but high-level tolerance of them also contributes to a culture of impunity in which police know they can operate outside the law”.
26 Ibid., p. 11: “The present system constitutes a carte blanche for police killings”.
27 Folha de S.Paulo - Facção promove 63 atentados em 24 horas - 14/05/2006. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1405200604.htm>. Acesso em: 08 set. 2016.
Folha de S.Paulo - Guerra urbana: Rebeliões em 24 prisões fazem 174 reféns - 14/05/2006. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1405200603.htm>. Acesso em: 08 set. 2016.
Folha de S.Paulo - PCC ataca ônibus e fóruns, promove megarrebelião e amplia medo no Estado - 15/05/2006. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1505200601.htm>. Acesso em: 08 set. 2016.
28 Delgado, Fernando R., Raquel Dodge & Sandra Carvalho. "Sao Paulo sob Achaque: Corrupção, Crime Organizado e Violência Institucional em Maio de 2006", Harvard Law School International Human Rights Clinic & Justica Global (2011), p. 4.
12
seus líderes.29
Em resposta aos ataques, todo o efetivo policial paulista foi colocado em
prontidão, revogando-se as férias e as folgas dos soldados. Em números oficiais, a polícia do
Estado matou pelo menos 124 pessoas suspeitas de integrarem a facção,30 registrando todos
os casos como resistência seguida de morte.31 Ao final, contando agentes do estado e civis,
mais de 500 pessoas foram assassinadas.
Muitas mortes foram causadas por grupos de extermínio, dos quais suspeitava-
se a participação de policiais. Diante disso, a pedidos do Ministério Público Federal e da
Defensoria Pública do Estado de São Paulo, o Conselho Regional de Medicina do Estado de
São Paulo (CREMESP) fiscalizou a realização de 493 laudos de exames necroscópicos de
ferimento por arma de fogo, feitos no período das 0h do dia 12 de maio de 2006 até as 13h30
do dia 20 de maio de 2006, em São Paulo. Através de um primoroso trabalho de cruzamento
de informações, o CREMESP sistematizou a localização dos ferimentos e constatou um
elevado número de tiros nas regiões posteriores do corpo, indicando um padrão de mortes
por execução: dos 2.359 tiros sofridos pelas vítimas, 893 foram disparados contra essa
região, o equivalente a 40% dos ferimentos.32
29 Crimes de Maio causaram 564 mortes em 2006; entenda o caso. Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2016-05/crimes-de-maio-causaram-564-mortes-em-2006-entenda-o-caso>. Acesso em: 08 set. 2016.
30 Folha de S.Paulo - Familiares acusam policiais por mortes - 16/05/2006. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1605200625.htm>. Acesso em: 20 jul. 2016.
Folha de S.Paulo - Guerra urbana/Vítimas: Testemunhas de chacina acusam policiais - 18/05/2006. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1805200620.htm>. Acesso em: 20 jul. 2016.
Folha de S.Paulo - Guerra urbana/Confronto: Polícia matou 107 suspeitos em sete dias - 19/05/2006. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1905200615.htm>. Acesso em: 20 jul. 2016.
Folha de S.Paulo - Guerra urbana: Ouvidoria aponta 40 mortes suspeitas - 23/05/2006. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2305200611.htm>. Acesso em: 20 jul. 2016.
Folha de S.Paulo - Guerra Urbana: Laudos apontam indícios de abuso policial - 26/05/2006. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2605200604.htm>. Acesso em: 20 jul. 2016.
31 ONU, op. cit., pp. 9-10: “The 124 killings were not registered and investigated as homicides, but each was instead registered by the police as a “resistance followed by death”.
32 Análise Quantitativa dos Laudos dos Institutos Médicos-Legais do Estado de São Paulo, in CONDEPE. Crimes de Maio. São Paulo, 2006, p.31-81. Também disponível em Superior Tribunal de Justiça, IDC nº 9/SP (2016/0133526-7), e-STJ Fls. 156-181.
13
Além das informações levantadas pelo CREMESP, a Conectas Direitos
Humanos e o Laboratório de Análise da Violência (LAV) da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro (UERJ), coordenado pelo professor Inácio Cano, fizeram um estudo que consistia
na análise de 564 Boletins de Ocorrência e Laudos de Exames Necroscópicos relativos a
mortes causadas por arma de fogo, ocorridas entre os dias 12 e 21 de maio de 2006.33
O estudo ilumina alguns fatos importantes, como a alta mortalidade de civis
– população que teve ao todo 505 vítimas, a maioria nem mesmo envolvida nos conflitos –
e a forma como as mortes se distribuíram no período. No primeiro dia de conflitos,
enquanto a disparidade de mortos entre civis e policiais era de apenas duas pessoas, ao final
do período ela pulou para mais de 440, equivalendo a uma diferença de vítimas de
aproximadamente 856%. Ou seja, os dados demonstram que após os primeiros ataques,
a maioria dos assassinatos foi cometida contra a população civil, especialmente em
bairros periféricos, onde foi colocada em prática, basicamente, uma operação de
extermínio. Essa conclusão se evidencia quando observamos os fatos através de uma análise
progressiva do período, dividindo-o em três momentos.
33 O LAV-UERJ consolidou os dados na pesquisa “Análise dos impactos dos ataques do PCC em São Paulo em maio de 2006”, coordenada pelo Dr. Ignácio Cano (LAV-UERJ) e publicada pela Conectas no dia 12 de maio de 2009.
12 demaio
13 demaio
14 demaio
15 demaio
16 demaio
17 demaio
18 demaio
19 demaio
20 demaio
21 demaio
Semdata
Civis 12 39 107 84 75 65 22 13 6 2 80
Agentes Públicos 10 23 8 5 6 3 0 0 0 0 4
0
20
40
60
80
100
120
14
O primeiro período abarca o início e principal momento dos ataques, os dias
12 e 13 de maio. Houve 84 mortes, verificando-se o cenário de atentados a agentes públicos,
com estes correspondendo a quase 40% das vítimas – taxa de mortalidade que, comparada
ao todo do período, apresenta uma atuação reativa (e não homicida) da polícia. No segundo
período, entre os dias 14 e 17 de maio, há uma acentuada redução da mortalidade policial e
uma escalada gigantesca das mortes civis: das 353 mortes, quase 100% era civil; em relação
ao momento anterior, ocorre uma mudança no perfil das vítimas, com a execução sumária
de civis e a interrupção gradual de ataques a policiais. Em seguida, o terceiro período vai do
dia 18 ao dia 21 de maio, com o assassinato de 43 pessoas, todas civis, compreendendo o fim
da chamada “semana sangrenta”. 34
Esses dados, no entendimento dos pesquisadores, carregam indícios de que um
grande número de civis foi vítima de atos de represália contra os ataques perpetrados pela
facção, existindo também a possibilidade de que agentes do Estado tenham participado
dessas represálias, especialmente nos grupos de extermínio encapuzados. Diante das
informações, asseveram os pesquisadores:
Este quadro é compatível com o cenário de uma série de ataques contra
agentes nos dias iniciais, com muitas vítimas entre eles, e uma série de
operações de represália realizadas por policiais nos dias seguintes, com um
alto número de vítimas civis. A conclusão mais clara é que a letalidade dos
civis não acontece basicamente durante os ataques contra policiais ou agentes
penitenciários, mas num momento posterior, provavelmente em intervenções
realizadas policiais.35
Peça fundamental que realça a hipótese de ataques feitos por policiais é o
Inquérito Policial 1.136/06, conduzido pelo 39º Distrito Policial, na Vila Gustavo, na zona
norte da Capital. Nessa investigação, ficou comprovada a participação de dois policiais
militares na execução sumária de três jovens, no dia 17 de maio de 2006, período de
alta mortalidade civil. O fato foi, inclusive, reconhecido pela Secretaria de Segurança Pública
34 Ibidem.
35 Ibidem, p. 11.
15
do Estado de São Paulo.36
Todos esses dados comprovam um contexto extremamente violento, que
vitimou um considerável número de agentes do Estado e um número muito maior de civis.
Em apenas dez dias foram mortas quatro vezes mais pessoas do que o estatisticamente
projetado para o período, sendo a grande maioria vítima de execuções, com significativo
número de disparos contra a cabeça e as costas.
3. A chacina do Parque Bristol
Nesse contexto, na noite do dia 14 de maio de 2006, durante a chamada “semana
sangrenta”, em frente à sua casa na Rua Jorge de Morais, Parque Bristol, zona sul da cidade
de São Paulo, os irmãos EDIVALDO BARBOSA DE ANDRADE (24 anos) e EDUARDO
BARBOSA DE ANDRADE (23 anos) conversavam com os amigos FÁBIO DE LIMA
ANDRADE (24 anos), FERNANDO ELZA (21 anos) e ISRAEL ALVES DE SOUZA (25
anos). Por volta das 22h30, um carro modelo GM/Vectra verde escuro, com vidros
escurecidos, parou repentinamente na frente do grupo e três pessoas encapuzadas saíram do
veículo atirando contra os jovens. O patente ato de execução impediu qualquer oportunidade
de defesa e, após os disparos, os encapuzados fugiram rapidamente do local. As vítimas
foram socorridas por vizinhos e levadas ao hospital, mas apenas EDUARDO e
FERNANDO sobreviveram.
O senhor Israel Soares de Andrade, testemunha ocular da chacina e pai das
vítimas EDIVALDO e EDUARDO, informou que seus filhos conversavam em frente a sua
residência, como de costume, e que se encontrava deitado quando foi surpreendido pelo som
de tiros que o levaram a sair de casa. Ao tentar se aproximar dos filhos, foi impedido por um
dos atiradores, que também o ameaçou. Israel relatou que a precisão dos disparos e forma
como agiam era bastante peculiar, como se fossem policiais.37 O então sobrevivente
FERNANDO, por estar de costas, afirma não ter visto o veículo, nem quem atirou;38 o
36 Superior Tribunal de Justiça, IDC nº 9/SP (2016/0133526-7), e-STJ Fl. 2923.
37 Superior Tribunal de Justiça, IDC nº 9/SP (2016/0133526-7), e-STJ Fls. 291-293.
38 Ibid., e-STJ Fls. 273-275.
16
outro sobrevivente, EDUARDO, conseguiu identificar o carro e contar três atiradores, fora
o motorista.39
A Polícia Militar chegou ao local poucos minutos após o tiroteio. Os oficiais que
atenderam a ocorrência não preservaram o local, sob o argumento de que o lugar seria de
“grande periculosidade” (Boletim de Ocorrência nº 463/2006)40. Porém, não se
incomodaram em alterar a cena do crime recolhendo os projéteis e cápsulas usadas
no ataque – objetos que nunca foram apresentados no Inquérito Policial. Cinco horas
mais tarde, apesar da adulteração do local, a perícia conseguiu recuperar “diversos estojos vazios
e com as espoletas detonadas” (Laudo 0499/06)41.
Nos exames das vítimas fatais,42 constatou-se que FÁBIO (Laudo 2533/2006)
teve “morte violenta por choque hemorrágico”, após oito tiros, sendo um deles com
armamento de caça43; a mesma causa foi indicada para ISRAEL (Laudo 2534/2006),
atingido por doze disparos (sendo quatro pelas costas e um de grande impacto pela frente);
a última vítima fatal, EDIVALDO (Laudo 2531/2006) teve como causa da morte
“politraumatismo”, atingido por quatro disparos (dois pelas costas).
Seis meses e meio após a chacina, no dia 4 de dezembro de 2006, um dos
sobreviventes, FERNANDO ELZA, foi assassinado44 (Boletim de Ocorrência nº
1037/2006)45 nas mesmas circunstâncias, com indícios de execução. O fato deu ensejo à
instauração do Inquérito Policial nº 2831/2006 no Departamento de Homicídios e Proteção
à Pessoa (“Equipe C Sul”). Numa residência a poucos metros de onde havia sofrido a
tentativa de homicídio, FERNANDO participava de uma festa. No fim da noite, ao sair para
guardar sua moto em casa, foi atingido por vários tiros disparados do interior de um veículo
39 Ibid., e-STJ Fls. 309-311.
40 Ibid., e-STJ Fls. 264-265.
41 Ibid., e-STJ Fls. 313-317.
42 Ibid., e-STJ Fls. 332-343.
43 Foram recuperados sete projéteis (um 9mm e seis peças calibre 12) e uma bucha pneumática (calibre 18mm), sendo que os calibres 12 e 18mm “teriam feito parte de munição de para arma de fogo de ante carga, do tipo pica pau ou munição para arma de caça do calibre 12” segundo laudo 02-140-44.223/06 – fls. 84/86 do IP.
44 No exame perinecroscópico foram constatados oito ferimentos causados por arma de fogo.
45 Superior Tribunal de Justiça, IDC nº 9/SP (2016/0133526-7), e-STJ Fls. 381-383.
17
modelo GM/Corsa azul escuro. Dois amigos tentaram socorrê-lo, porém, se acidentaram no
caminho para o hospital (Depoimentos de Eder Ferreira Grilo46 e Jefferson Guimarães dos
Santos47).
Como revelam os depoimentos, o homicídio também ocorreu numa emboscada,
pois o veículo utilizado no crime ficou estacionado em uma esquina próxima, aguardando
até o momento em que FERNANDO saiu à rua. O relatório final do Inquérito Policial que
investigou o homicídio de FERNANDO foi arquivado em 21 de agosto de 2007, sem que
qualquer autor tivesse sido identificado (conforme Relatório Final)48.
Apenas em novembro de 2007, um ano e meio após a chacina, foram ouvidas
as mães das vítimas. A senhora Maria José de Lima Andrade, mãe de FÁBIO, e a senhora
Francisca Evangelista Alvez de Souza, mãe de ISRAEL, reiteraram que era de
conhecimento geral a participação de policiais no crime, atuando em represália aos ataques
do PCC49.
Além dos familiares das vítimas, não foram ouvidas quaisquer outras
testemunhas. Nenhum vizinho do local dos fatos chegou a prestar depoimento.
Dois anos, cinco meses e 22 dias após a chacina a autoridade policial decidiu
encerrar as investigações. Em seu “Relatório Final” restringiu-se a resumir os depoimentos
e a elencar os laudos obrigatórios, concluindo que “não foi possível, até a presente data, identificar
os autores” do crime50. No dia 18 de novembro de 2008, o 4º Promotor de Justiça do I Tribunal
do Júri da Capital requereu o arquivamento do inquérito policial pois “não foi apurada a autoria
delitiva, inexistindo quaisquer outras diligências a serem efetivadas pela DD. Autoridade Policial”.51 O
pedido de arquivamento foi acolhido judicialmente no dia seguinte52.
46 Ibid., e-STJ Fls. 358-360.
47 Ibid., e-STJ Fls. 393-394.
48 Ibid., e-STJ Fls. 448-450.
49 Ibid., e-STJ Fls. 462-466
50 Ibid., e-STJ Fls. 507-512.
51 Ibid., e-STJ Fls. 514-515.
52 Ibid., e-STJ Fls. 516.
18
Inconformadas, legitimamente, com o resultado das investigações, as famílias
buscaram outros meios legais para encontrar respostas. Em maio de 2009, a Conectas
Direitos Humanos encaminhou ao então Procurador-Geral da República, um pedido de
suscitação de Incidente de Deslocamento de Competência dos Inquéritos Policiais nº
052.06.002082-4 (1.124/06) e 2.831/06, referentes às mortes do Pq. Bristol ora discutidas.
Ainda nesse espírito, no mesmo ano, foi apresentada junto à Comissão
Interamericana de Direitos Humanos uma Denúncia contra a República Federativa do Brasil,
na qual se apresentam os itens violados pelo Estado na apuração da chacina do Pq. Bristol e
se fez pedidos de: indenização das famílias; de legislação e implementação de protocolos de
atuação policial, adequados aos direitos humanos; encerramento da denominação
“resistência seguida de morte”; reabertura das investigações das mortes do Pq. Bristol;
criação de um banco de dados nacional e público onde se registre os delitos praticados por
membros das forças de segurança; e o efetivo controle da atividade policial.
III. O INCIDENTE DE DESLOCAMENTO DE COMPETÊNCIA.
A Constituição Federal de 88, em seu artigo 109, § 5º, prevê dois requisitos para
a suscitação do incidente de deslocamento de competência: (1) hipótese de grave violação de
direitos humanos e (2) o intuito de efetivar obrigações decorrentes de tratados internacionais
dos quais o Brasil seja parte.
Além deles, o E. Superior Tribunal de Justiça reconheceu, em todos os
julgamentos de Incidente de Deslocamento de Competência, a necessidade de um terceiro elemento:
(3) a subsidiariedade, isto é, quando os órgãos do Estado-membro não forem capazes de
tomar as devidas providências e diligências no caso.
A seguir, demonstraremos como a chacina do Pq. Bristol atende
plenamente às três condições para o deferimento do incidente de deslocamento de
competência como, aliás, já reconheceu a Procuradoria-Geral da República.
19
1. Grave Violação de Direitos Humanos
Propositalmente, a EC nº 45/2004 não introduziu na Constituição um rol
taxativo de “graves violações de direitos humanos”. Em primeiro lugar, porque o incidente
de deslocamento de competência é vinculado diretamente a tratados internacionais dos quais
o Brasil faça parte, dependendo, portanto, de positivações e entendimentos externos sobre
o assunto. Em segundo lugar, porque o tema é elástico o suficiente para ser verificado nas
mais diversas situações, exigindo uma interpretação sistemática da Constituição Federal face
ao caso concreto. Partindo desses dois pontos, e com a colaboração de doutrina e
jurisprudência, foi criada uma forma eficiente de se demonstrar inequivocamente ocorrências
de “graves violações de direitos humanos”.
Da perspectiva internacional, a expressão “graves violações de direitos
humanos” surge da Resolução 1503 do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas53,
que a entende como “um padrão consistente de violações flagrantes e seguramente
comprovadas de direitos humanos e liberdades fundamentais”. Logo, para além de graves
violações explicitadas no rol das normas consuetudinárias internacionais, há também outras
possibilidades de violações de direitos humanos serem consideradas graves. Igualmente,
Louis Henkin contribui para a definição de “gross violations” afirmando que “uma violação é
grave se é particularmente chocante pela importância do direito ou pela gravidade da
violação”.54
Nesse ponto, não há dúvidas de que o presente caso trata de uma grave violação
aos direitos humanos. Ente os dias 12 e 21 de maio de 2006 foram mortas no estado de São
Paulo um total de 564 pessoas e um considerável número delas foi executado sumariamente
por grupos de extermínio dos quais participavam agentes do Estado – como atestam vários
relatórios, especialmente o apresentado pelo Relator Especial sobre Execuções Sumárias,
Arbitrárias e Ilegais da ONU, Dr. Philip Alston (Relatório A/HRC/11/2/Add.2) e os
relatórios São Paulo sob Achaque: Corrupção, Crime Organizado e Violência Institucional em Maio de
53 HENKIN, Louis, International law – cases and materials, HENKIN, DAMROSCH, PUGH, SCHACHTER e
SMIT, Fourth Edition, West Group, St. Paul, 2001.
54 HENKIN, ob. cit, p. 604.
20
2006 55 e Análise dos Impactos dos Ataques do PCC em São Paulo em Maio de 2006 56.
Não obstante as graves violações de direitos humanos mencionadas, as
observações do Relator Especial da ONU mostram outra grave violação decorrente da
omissão dos órgãos policiais e judiciários. Ao deixar de proceder com as diligências devidas,
ignorando linhas de investigação e não levando em consideração o contexto no qual os
crimes ocorreram, foi violado o direito à proteção judicial, isto é, o direito de ver conduzida
uma investigação verdadeira e imparcial destinada à elucidação dos fatos e à
responsabilização dos autores.
Essa violação também é percebida pela Procuradoria-Geral da República, que na
peça inicial afirma:
[...] o arquivamento em si da investigação configura violação do dever estatal
de adequada e eficiente investigação, visto que a apuração pode ser acoimada
de insuficiente, por sua fragilidade, por não ter considerado o contexto em
que produzidos os fatos, por não ter ouvido os policiais militares em atuação
na região, por não se ter preocupado com a oitiva de testemunhas em linha
de investigação razoável.57
O Ilmo. Ministro JORGE MUSSI, Relator do IDC nº 3, inclusive, se
posicionou a favor do deslocamento de casos que, reunidas as demais condições,
tenham ficado, como aqui, à deriva da persecução penal.
A chacina ocorrida no Parque Bristol também é uma grave violação de direitos
humanos da perspectiva jurisprudencial elaborada pelo próprio STJ. Observando o
magistério de Pedro Lenza, o Min. JORGE MUSSI, ainda no IDC nº 3, afirmou que
tanto a tortura quanto o homicídio praticado por grupos de extermínio são exemplos
de espécies delitivas que ensejam a federalização. No mesmo sentido se pronunciou a
55 Delgado, Fernando R., Raquel Dodge & Sandra Carvalho. "São Paulo sob Achaque: Corrupção, Crime Organizado e Violência Institucional em Maio de 2006", Harvard Law School International Human Rights Clinic & Justica Global (2011).
56 CANO, I.. Análise dos Impactos dos Ataques do PCC em São Paulo em Maio de 2006. São Paulo: Conectas, 2009 (Relatório de Pesquisa).
57 Superior Tribunal de Justiça, IDC nº 9/SP (2016/0133526-7), e-STJ Fl. 44.
21
Ministra LAURITA VAZ, Relatora do IDC nº 2:
Esse tipo de assassinato, pelas circunstâncias e motivação até aqui reveladas,
sem dúvida, expõe uma lesão que extrapola os limites de um crime de
homicídio ordinário, na medida em que fere, além do precioso bem da
vida, a própria base do Estado, que é desafiado por grupos de
criminosos que chamam para si as prerrogativas exclusivas dos órgãos e entes
públicos, abalando sobremaneira a ordem social. [...] E pior: há fundadas
notícias, que, evidentemente, precisam ser apuradas, de envolvimento de
autoridades públicas, o que pretensamente tem facilitado a perpetração de
crimes na região.
(Superior Tribunal de Justiça, IDC nº 2/DF (2009/0121262-6), e-STJ Fl. 185)
Com estes elementos: (i) violação do direito à vida; (ii) atuação de grupos de
extermínio; (iii) fortes indícios do envolvimento policial nos crimes; (iv) persecução penal
desamparada; (v) e ausência de responsabilização, permitindo uma cultura da impunidade,
configura-se, por completo, uma grave violação de direitos humanos, na forma e alcance
do §5º do artigo 109 da Carta Magna.
2. Efetivar obrigações internacionais de Direitos Humanos
O Brasil é subscritor de vários tratados internacionais de direitos humanos, a
maioria ratificada após a Constituição Federal de 1988. Entre os compromissos assumidos,
o Brasil reconheceu a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos – cujas
decisões obrigam o Estado brasileiro58 – para julgamento de violações aos direitos humanos
ocorridas em nosso país, que tenham permanecido impunes, bem como aderiu ao Tribunal
Penal Internacional para o julgamento de crimes contra a humanidade.
As reprimendas internacionais contra a União estão condicionadas ao insucesso
dos mecanismos internos de proteção aos direitos humanos, englobando nisso a
responsabilização daqueles que cometeram graves violações. Logo, não só a ocorrência dos
delitos determina a censura internacional, mas também a falta ou a insuficiente
58 Decreto 4.463/2002.
22
repressão a essa espécie de violação.
Apesar de assumir vários compromissos em direitos humanos, o Brasil aparenta
encontrar imensa dificuldade em efetivá-los, fazendo com que seja personagem frequente
nos tribunais internacionais, especialmente frente à Comissão e a Corte Interamericanas de
Direitos Humanos. São casos em que a justiça estadual falhou, não oferecendo devidamente
a prestação jurisdicional, expondo o Brasil ao crivo da comunidade internacional, e que
poderiam ter sido resolvidos no âmbito interno a partir do deslocamento de competência de
forma subsidiária à justiça federal.
As mortes discutidas nesta ação e a ineficácia do Estado em identificar e
responsabilizar os responsáveis configuram mais uma situação da qual podem advir
repreensões das cortes internacionais. Foi violada uma série de dispositivos internacionais de
direitos humanos, entre os quais, o artigo 6º, item 1, do Pacto Internacional de Direitos Civis
e Políticos (promulgado pelo Decreto nº 592/92), e os artigos 4 (direito à vida), 5 (direito à
integridade pessoal) e 25 (direito à proteção judicial) da Convenção Americana de Direitos
Humanos (promulgada pelo Decreto nº 678/92).
Importante lembrar que há iminente risco de responsabilização internacional,
posto que a chacina do Parque Bristol se encontra sob apreciação da Comissão
Interamericana de Direitos Humanos. Essa situação já se mostra suficiente para preencher o
presente requisito, conforme entendimento firmado no julgamento do IDC nº 2. Diante de
caso semelhante, a Ministra Relatora LAURITA VAZ reconheceu o direito da União,
representada aqui pelo Procurador-Geral da República, de se valer do incidente de
deslocamento de competência para assegurar a observância de princípios constitucionais,
ferramenta menos drástica que a intervenção federal prevista no art. 34 da Constituição. Sobre
o tema, afirma Pedro Lenza59:
Nos termos do art. 21, I, a União é quem se responsabiliza, em nome da
República Federativa do Brasil, pelas regras e preceitos fixados em tratados
internacionais. Assim, na hipótese de descumprimento e afronta a direitos
humanos no território brasileiro, a única e exclusiva responsável, no plano
59 LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 8ª ed. rev. São Paulo: Método, 2005, pp. 497-498.
23
internacional, será a União, não podendo invocar a cláusula federativa, nem
mesmo "lavar as mãos" dizendo ser problema do Estado ou Município. Isto
não é aceito no âmbito internacional.
Ao fim, desde o IDC nº 1, de relatoria do Ministro ARNALDO ESTEVES DE
LIMA, o Superior Tribunal de Justiça manifesta o entendimento de que basta ameaça real ao
cumprimento das obrigações internacionais para ser preenchido esse requisito – ao mesmo
tempo em que demonstraria a adequação do caso ao princípio da proporcionalidade.
3. Da Incapacidade do Estado de São Paulo na resolução do caso
O terceiro requisito, por não estar previsto em norma, muitas vezes é alvo de
razoável controvérsia. E se aproveitando dessa liquidez conceitual, ocasionalmente, surgem
proposições retóricas que tentam enevoar o caso e obstar o deslocamento de competência.
Entretanto, observando-se os julgados anteriores do STJ e da Corte
Interamericana de Direitos Humanos, podemos qualificar a discussão o suficiente para evitar
tais embustes e manter o foco em seu cerne: verificar se houve uma resposta estatal
adequada à grave violação de direitos humanos. E uma resposta “adequada” nesses
casos é simples: trata-se daquela que intenta de todas as maneiras resolver o ocorrido,
reforçando, em cada ato, seu compromisso com valores constitucionais, garantias
fundamentais e os próprios direitos humanos. A partir disso, podemos concluir que uma
resposta adequada não trata com descaso mais de 500 homicídios evidentemente
relacionados e não deixa de lado perícias e investigações essenciais para solucioná-los.
Essa é a lente que deve guiar a análise da conduta do Estado frente as graves
violações de direitos humanos, adotada igualmente pelo STJ, como veremos agora.
No IDC nº 1, o Ministro Relator ARNALDO ESTEVES DE LIMA recordou
que o incidente de deslocamento de competência foi criado e inserido na Constituição em virtude da
famigerada ineficácia do poder público em resolver devidamente as graves violações de
direitos humanos. O Ministro também lembra que a incapacidade do Estado-membro – ou
de suas instituições e autoridades – pode se manifestar de várias formas, como inércia,
24
negligência, descaso, desinteresse ou ausência de vontade política em levar a cabo a
apuração e o julgamento dos envolvidos. No mesmo processo, o Ministro JOSÉ
ARNALDO DA FONSECA complementa com seu voto que “Se as instituições do Estado
federado se revelarem desidiosas, omissas, lenientes para a proteção dos direitos
humanos, tem cabimento, em tese, a federalização”.
O terceiro requisito também é discutido sabiamente no IDC nº 2. Em seu voto,
a Ministra Relatora LAURITA VAZ reconheceu a possibilidade de haver “deficiência da
atuação das autoridades na consecução de suas atividades institucionais, até mesmo para
averiguar e reprimir eventuais desvios de conduta dentro dos próprios órgãos”, posto
que, naquele caso, após anos de investigação não se conseguiu levantar provas
suficientes para uma adequada instrução processual.
Em seguida, o ilustre Min. CELSO LIMONGI saudou o julgado anterior e
afirmou ser possível o deslocamento de competência quando os órgãos do Estado-membro
atuam com “descaso, desinteresse, ausência de vontade política, falta de condições
pessoais ou materiais etc. em levar a cabo a apuração e julgamento dos envolvidos”. E
ao final, O julgamento se encerra com a manifestação do Ministro HAROLDO
RODRIGUES, consentindo que “A Federalização é cabível, portanto, quando as
instituições do Estado se omitirem na proteção de direitos humanos e na repressão
aos respectivos criminosos”, visualizando naquele caso que “o Estado não tem conseguido
apresentar uma resposta efetiva no combate aos grupos de extermínio na região, que atuam
há mais de dez anos”.
No pedido de deslocamento posterior, o IDC nº 3, o Ministro Relator JORGE
MUSSI reconheceu no caso concreto que “As investigações foram insuficientes para que
pudesse ter sido oferecida uma denúncia, caracterizando incapacidade, ineficácia,
omissão e principalmente inércia”, demonstrando, sem deixar dúvidas, a “incapacidade
das instâncias e autoridades locais em oferecer respostas às ocorrências de grave violação aos
direitos humanos”. Naquele caso, o ilustre Ministro também notou que não foi oferecida
denúncia e que as investigações se encerraram com várias diligências a serem
realizadas. Em suas palavras:
25
Mais uma vez nos deparamos com a negação das funções primárias do Estado
Democrático de Direito, na medida em que, à vista da possibilidade concreta
de vulneração ao direito à vida patrocinada por agentes do próprio Estado
contra cidadão, os órgãos competentes não conseguem minimamente
empregar os instrumentos legais para apuração da responsabilidade dos
pretensos autores de delitos de tortura e homicídio.60
E no último incidente de deslocamento de competência julgado pelo STJ, o IDC
nº 5, o Ministro Relator ROGERIO SCHIETTI CRUZ sedimenta todo o histórico
jurisprudencial, expondo que o deferimento de um IDC envolve uma atuação negligente,
desidiosa, descuidada ou excessivamente morosa da Justiça Estadual. Observando o
caso concreto, o Min. SCHIETTI constata que: não fora ofertada nenhuma denúncia;
que não havia suspeitos; que várias diligências imprescindíveis deixaram de ser
adotadas; que depoimentos não foram confrontados e que sequer fora identificado o
veículo usado no crime. Tais fatos bastaram para demonstrar ao Ministro “a falta de
empenho e o descomprometimento do Estado de Pernambuco, por algumas de suas
autoridades constituídas, na busca da verdade e da responsabilização dos culpados”.
Partindo dos entendimentos do Superior Tribunal de Justiça, vemos que o
terceiro requisito do Incidente de Deslocamento de Competência se satisfaz quando:
1) For demonstrado que houve, por parte do Estado-membro, inércia,
negligência, descaso, descuido, desinteresse ou ausência de vontade
política em solucionar e prosseguir com as investigações;
2) Faltarem condições pessoais ou materiais para apurar os crimes;
3) As instituições responsáveis pela apuração forem desidiosas, omissas,
lenientes ou se furtarem na proteção de direitos humanos e na repressão
aos respectivos criminosos;
4) Houver demora excessiva na resposta do Estado;
5) Ou, se após anos de investigação, não se levantar provas suficientes para
instrução processual, caracterizando, inevitavelmente, a incapacidade,
ineficácia, omissão e principalmente inércia do Estado-membro.
60 Superior Tribunal de Justiça. IDC nº 3/GO (2013/0138069-0), Fl. 47. DJe: 02/02/2015.
26
E todas as observações feitas pelo STJ a respeito deste último requisito
encontram respaldo no entendimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte
IDH). Ela também condena inquéritos e ações policiais produzidos como meros expedientes
pro forma, que ao final perpetuarão a impunidade. Para a Corte IDH, as investigações devem
ser desenvolvidas por todos os meios legais para determinar a verdade e levar os envolvidos
a um processo e eventual punição; procedimentos conduzidos de forma falha ou
deficiente, sem a real intenção de esclarecer os fatos e punir os culpados, também
configuram graves violações de direitos humanos:
Em suma, qualquer deficiência ou erro na investigação que afete a
possibilidade de determinar a causa da morte ou de identificar os verdadeiros
autores ou mandantes de um crime constituem uma falha no cumprimento da
obrigação de garantir o direito à vida.61
Esta Corte já indicou que o direito de acesso à justiça deve assegurar o direito
de todas as supostas vítimas, ou seus familiares, a que sejam adotadas todas
as medidas necessárias para que, em um tempo razoável, seja determinada a
verdade dos fatos e os eventuais responsáveis sejam punidos.62
Ao implementar ou tolerar atos voltados à perpetração de execuções
extrajudiciais ou ao falhar na investigação ou punição daqueles responsáveis,
o Estado viola a obrigação de respeitar e garantir o pleno e livre exercício dos
direitos das supostas vítimas ou seus familiares como reconhecidos na
Convenção [Americana de Direitos Humanos]. Ademais, essas violações
impedem que a sociedade saiba a verdade dos fatos, encorajando a repetição
crônica de violações de direitos humanos e perpetuando a total
vulnerabilidade das vítimas e seus familiares. A investigação desses eventos
deve ser conduzida usando todos os meios legais disponíveis para determinar
a verdade do que ocorreu e para buscar, capturar, processar e condenar todos
61 Caso Montero-Aranguren et al. (Centro de Detenção de Catia) v. Venezuela. Julgamento de 5 de julho de 2006. (Preliminares, mérito, reparação e custas), parágrafo 83. Tradução livre do original em inglês. No mesmo sentido as decisões dos casos Zambrano Vélez (parágrafo 90); Mapiripán (parágrafo 219); Pueblo Bello (parágrafo 144) e Baldeón Garcia (parágrafo 97).
62 Caso Massacre Rochela v. Colômbia. Julgamento de 11 de maio de 2007 (Mérito, reparação e custas), parágrafo 146. Tradução livre do original em inglês. No mesmo sentido as decisões dos casos Vélez (parágrafo 115); Bulacio (parágrafo 114) e Miguel Castro (parágrafo 382).
27
os autores materiais e imateriais, especialmente quando agentes do Estado
estão ou possam estar envolvidos.63
Em particular, já que o pleno gozo do direito à vida é uma condição prévia
para o exercício de todos os outros direitos, a obrigação de investigar qualquer
violação desse direito é uma condição para que ele seja garantido
efetivamente. Portanto, em casos de execuções sumárias,
desaparecimentos forçados e outras graves violações de direitos
humanos, o Estado tem a obrigação de iniciar, ex officio e
imediatamente, uma investigação genuína, imparcial e efetiva, que não
seja conduzida como uma mera formalidade predestinada a ser
ineficaz. Essa investigação deve ser desenvolvida com todos os meios legais
disponíveis com o objetivo de determinar a verdade, buscar, capturar,
processar e punir os mandantes e autores dos fatos, especialmente quando
agentes do Estado estão ou possam estar envolvidos.64
Ademais, em tais casos, é especialmente importante que a autoridade
competente adote todas as medidas razoáveis para garantir o material
probatório necessário a uma investigação e que essa autoridade seja
independente, tanto de jure como de facto, dos oficiais envolvidos nos fatos.
Isso requer não apenas uma independência hierárquica ou institucional, mas
também uma independência real.65
Todas as facetas do terceiro requisito (a ausência de uma resposta adequada do
Estado à grave violação de direitos humanos), analisadas à exaustão pela jurisprudência
nacional e internacional, podem ser sobejamente encontradas na chacina do Parque Bristol.
Vejamos detidamente.
63 Idem, parágrafo 148. No mesmo sentido as decisões dos casos Montero-Aranguren et al (Detention Center of Catia) (parágrafo 81); Pueblo Bello Massacre (parágrafo 143) e Miguel Castro-Castro Prison (parágrafo 256).
64 Caso Massacre do Pueblo Bello v. Colômbia. Julgamento de 31 de janeiro de 2006 (Mérito, reparação e custas), parágrafo 143. Tradução livre do original em inglês. No mesmo sentido as decisões dos casos Zambrano Vélez (parágrafo 120); Miguel Castro-Castro Prison (parágrafo 255); Ximenes Lopes (parágrafo 148); Goiburu (parágrafo 117); Villagrán Morales (parágrafo 227); Gordinez-Cruz (parágrafo 188), Baldeón Garcia (parágrafo 94) e Moiwana Community (parágrafo 203).
65 Caso Zambrano Vélez et al. v. Equador. Julgamento de 4 de julho de 2007 (Mérito, reparação e custas), parágrafo 122. Tradução livre do original em inglês.
28
3.1) Falhas e omissões do Estado na apuração da chacina do Parque Bristol
Salta aos olhos que as mortes do Pq. Bristol não foram devidamente
investigadas. O inquérito policial limitou-se a poucas diligências – como a oitiva de
familiares e alguns ofícios que não tiveram continuidade –, deixando muitas outras em aberto.
Como exemplo, mesmo tendo sido registradas, apenas naquele dia, 115 ocorrências de morte
por arma de fogo, com um a cada cinco óbitos causado por grupos de extermínio, as
investigações trataram a chacina como fato isolado, abstendo-se de cruzar informações
a respeito de fatos, veículos, armas utilizadas, localização anatômica dos ferimentos ou
confronto balístico dos projéteis recuperados nos locais. Não houve qualquer tentativa de
relacionar ou comparar as mortes dos jovens de Bristol com os demais homicídios do
período todo. Também chama a atenção a ausência de exames detalhados sobre os mais de
vinte projéteis encontrados pela perícia: nenhum dos itens recolhidos foi comparado
com o armamento utilizado pela polícia e em nenhum deles foi feita uma busca por
impressões digitais.
Posteriormente, na morte de Fernando Elza – até então sobrevivente da chacina,
ou seja, tratou-se de “queima de arquivo” –, outra vez as investigações foram conduzidas
como se o homicídio fosse isolado e destacado de qualquer contexto. Não foram sobrepostas
as informações desse homicídio com as decorrentes do primeiro ataque sofrido pela vítima,
em maio de 2006, limitando-se o fato a uma breve menção no Relatório Final do Inquérito.
Os projéteis recolhidos do segundo ataque, que vitimou Fernando Elza, não foram nem
comparados com os apanhados da chacina. Ignorou-se a busca por agentes, método de
execução, tipo de armamento ou qualquer outro elemento semelhante. Ou seja, não se
procedeu qualquer apuração. O local do ataque a Fernando Elza sequer chegou a ser
periciado pelas autoridades (!!!), já que os peritos apenas conferiram o local da batida do
automóvel que o levava ao hospital.
Retornando à chacina de maio de 2006, outro relevante ponto desconsiderado
pelas investigações foi a ação dos Policiais Militares que prontamente chegaram ao
local, desnaturaram a cena do crime e ocultaram evidências mediante o recolhimento
de cartuchos e projéteis que nunca foram apresentados às autoridades. Essa maneira de agir
dos Policiais se assemelha muito ao modus operandi das chacinas praticadas por agentes de
29
públicos de segurança, descrito no capítulo anterior, o que levanta a dúvida: os policiais que
atenderam a ocorrência chegaram a ser comunicados do crime pela central? À época, mesmo
cientes dos fatos, tanto a Polícia Civil quanto o MP-SP desprezaram o ocorrido.
Questionado pelo Procurador-Geral da República no presente IDC, o Ministério Público
estadual apresentou uma resposta desconexa, enviesando a discussão para temas diferentes:
ela não explica por que os projéteis recolhidos nunca foram apresentados e nem
explica a ausência dos depoimentos destes policiais nos autos da investigação – ainda
que fosse para lhes proporcionar o direito de se defenderem das acusações.
Também se questiona: se, em Santos, como informado pela manifestação do
MP-SP, foi possível triangular a posição de viatura da Polícia Militar nas proximidades de
uma chacina praticada durante os crimes de maio de 2006 – fato que levou a se descobrir o
envolvimento dos policiais naquele crime –, por que razão não se verificou o local das
viaturas que atenderam a ocorrência do Parque Bristol, na hora do ataque? Se realizado o
mesmo procedimento, poder-se-ia, então, conferir a validade da hipótese levantada pelos
moradores locais: que os policiais estariam à espreita do local, apenas esperando a execução
do crime para ocultar evidências.
Ainda sobre a investigação da chacina, outra negligência visível é o abandono
das buscas pelo veículo utilizado no crime. As autoridades foram informadas que um carro
idêntico ao usado na chacina havia sido visto no Batalhão da Polícia Militar e iniciaram a
busca por policiais que possuíssem veículo semelhante. Após alguns ofícios encaminhados
ao Comando da corporação, soube-se que ao menos quatro policiais militares eram
proprietários de veículos GM/Vectra da cor verde escura. Contudo, nesse momento, cessou-
se qualquer apuração no sentido de identificar o veículo usado no crime. Não se colheu o
depoimento dos policiais, não se periciou os veículos e não se apurou nenhuma outra linha
de investigação.
30
Aqui se indaga a exclusão precoce da hipótese de envolvimento de agentes
de segurança pública. Somando-se a alta taxa de letalidade policial na cidade, os indícios
trazidos pelas pesquisas e relatórios dos crimes de maio de 2006 e elementos próprios do
caso, fica evidente que deveria ter havido uma sólida investigação quanto as suspeitas de
participação da polícia nas mortes, o que não ocorreu. Na prática, não houve investigação,
apenas se produziu relatórios protocolares, minimamente necessários para o arquivamento
do caso. Ainda que não se deva subverter o princípio da presunção de inocência,
principalmente na atuação policial, também não devemos lançar olhares ingênuos que se
furtem dos fatos acima apresentados. Há dúvida razoável que justificaria uma linha de
investigação sobre a participação policial.
3.2) Da omissão do Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP)
A atuação do MP-SP, sob a luz dos critérios construídos pelo STJ, também
apresenta falhas que autorizam o deslocamento de competência. Porém, em princípio, antes
de avaliarmos o órgão pelos critérios jurisprudenciais, convém destacar a inobservância de
normativas próprias, ocorridas durante as investigações das mortes aqui discutidas.
O trabalho dos Promotores de Justiça do Estado de São Paulo é regulado pelo
Manual de Atuação Funcional dos Promotores de Justiça do Estado de São Paulo, que define as
incumbências e deveres do Promotor de Justiça em todos os âmbitos de sua atuação. À época
das investigações, vigorava aquele aprovado pelo Ato Normativo nº 168-PGJ-CGMP, de 21
de dezembro de 1998, com alterações dadas pelo Ato Normativo nº 236-PGJ-CGMP, de 20
de julho de 2000. Com base no manual e analisando a atuação do MP-SP sobre os homicídios
do Pq. Bristol, podemos constatar o não cumprimento das seguintes normas:
Art. 104 – O controle externo da atividade de Polícia Judiciária Civil e da
Polícia Militar será exercido pelos Promotores de Justiça, na forma dos Atos
próprios, sendo-lhes recomendado, em especial:
[...]
IV - exercer o controle da regularidade do inquérito policial;
V - receber representação ou petição de qualquer pessoa ou entidade, por
desrespeito, relacionado com o exercício da atividade policial, aos direitos
assegurados na Constituição Federal e na Constituição Estadual;
31
VIII - requisitar à autoridade competente a abertura de inquérito
policial sobre a omissão ou fato ilícito ocorridos no exercício da
atividade Policial.
Art. 106 - O membro do Ministério Público que instaurar o procedimento
administrativo atentará aos seguintes fins:
III - a prevenção e a correção de irregularidades, ilegalidades ou abuso
de poder relacionados com a atividade de investigação criminal;
IV- a superação de falhas na produção da prova, inclusive técnica, para
fins de persecução penal.
O Ministério Público de São Paulo, responsável por garantir que as devidas
diligências sejam feitas durante uma investigação, não efetuou nenhum controle do inquérito
policial. No mesmo sentido, foi completamente infrutífero o esboço de investigação
suscitado pelo GECEP com o Procedimento Preparatório 02/06-GECEP, instaurado para
apurar, em teoria, excessos e violências policiais ocorridos entre 13 e 20 de maio.
Inicialmente, foram solicitadas às Polícias Civil e Militar cópias dos Boletins de
Ocorrência referentes as mortes ocorridas no período, bem como se solicitou ao IML cópias
dos laudos de exames de corpo delito das vítimas. Logo que os documentos foram recebidos,
o GECEP os encaminhou para a Assessoria de Gestão de Informações do MP-SP (AGI),
solicitando que fosse realizado o “cruzamento de informações”, visando identificar
similaridades e pistas, entre aquelas mortes, que apontassem para envolvimento de
agentes de segurança.
Entretanto, apesar da solicitação, não houve o cruzamento de
informações. O resultado foi tão-somente a montagem de uma lista de vítimas com dados
básicos – como nome, profissão e causa da morte – encaminhada a Promotores de Justiça
estranhos à investigação. Diante disso, em 29 de setembro de 2006, os promotores
designados do GECEP abandonaram o procedimento tendo em vista (i) a perda dos
elementos informativos, encaminhados à AGI sem que fossem conservadas cópias internas,
e (ii) uma eventual “afronta ao princípio institucional da unidade do Ministério Público”, em
razão do encaminhamento feito aos Promotores do Júri. Em 08 de fevereiro de 2007, sem
que qualquer apuração tivesse sido realizada, o referido procedimento foi encerrado.
32
Não houve cruzamento de dado e não houve supervisão alguma dos alegados
encaminhamentos, deixando um vazio de informações quanto as diligências promovidas (ou
não) pelos Promotores de Justiça. Além de não incidir especificamente sobre o caso em tela,
o Procedimento também não avançou nada em relação às mortes ocorridas em maio de 2006.
Além das incoerências de âmbito interno, e passando agora ao entendimento do
Superior Tribunal de Justiça sobre o terceiro requisito, vemos que na chacina do Pq. Bristol
as autoridades sequer foram capazes de levantar provas para uma instrução processual.
O próprio Ministério Público do Estado de São Paulo, nos presentes autos, reiterou diversas
vezes as dificuldades materiais para investigar o caso. Além da incapacidade material para
resolver o caso, contata-se aqui, como observou o Min. HAROLDO RODRIGUES no IDC
nº 2, a incapacidade das autoridades e do governo do estado em combater os grupos
de extermínio que, desde 2006, continuam atuando na cidade de São Paulo.66
Em terceiro lugar, também há o descaso, desinteresse e ausência de vontade
política do Ministério Público de São Paulo frente a chacina. No presente IDC, o MP-SP
diz que não há razoabilidade para se apreciar novamente o caso, afirmando que
“especialmente no âmbito penal, em que o transcurso do prazo apaga provas, fomenta a
prescrição e não raras vezes leva ao esquecimento dos crimes e à inutilidade das penas”67.
Ora, deixar de proceder investigações com base nas dificuldades materiais beira
a omissão quanto a função institucional do Ministério Público – por si só uma grave violação
de direitos humanos. E pior, alegar o “esquecimento dos crimes” como motivo para não os
investigar demonstra o desprezo pelo sofrimento diário dos familiares, que, diga-se, jamais
“esqueceram” os crimes e ainda esperam que a Justiça aponte os autores das execuções de
seus entes queridos.
66 Ver: Crimes de maio: 10 anos sem respostas - Conectas Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.conectas.org/pt/acoes/justica/noticia/45640-crimes-de-maio-10-anos-sem-respostas>. Acesso em: 17 ago. 2016.
67 Superior Tribunal de Justiça, IDC nº 9/SP (2016/0133526-7), e-STJ Fl. 2409.
33
E encerrando qualquer interpretação divergente, lembramos que a
Constituição Federal de 88, em seu art. 5º, inciso XLIV, estabelece que constitui
crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares,
contra a ordem constitucional e o Estado Democrático.
Defender a inutilidade das penas torna-se, como relatado pela ONU, um gesto
de anuência para com os assassinatos. E causa espanto que, linhas depois, na mesma
manifestação, o MP-SP defenda a manutenção de sua posição como titular exclusivo da
persecução penal no caso, alegando que “se alguma prova materialmente nova realmente
existisse a competência para eventual ação penal seria da Justiça Estadual, pois o Ministério
Público de São Paulo é o seu legítimo titular”. Ora, se abertamente se posiciona contra as
investigações, por que em momento seguinte deseja a responsabilidade exclusiva pela
condução delas?
Em verdade, as referidas alegações assemelham-se mais a uma peça de defesa
em ação criminal, opondo-se à responsabilização dos autores dos crimes. Há uma nítida
postura leniente e omissa do Estado-membro, que, prevista no julgamento do IDC nº 1,
também satisfaz aqui, mais uma vez, o terceiro requisito da federalização.
O desinteresse no caso também se revela quando o MP-SP escora o insucesso
das investigações na “falta” de informações prestadas pelas vítimas. O MP-SP alegou que “as
vítimas então sobreviventes, envolvidas no episódio criminoso, não forneceram dados
capazes de levar aos autores dos homicídios ou à identificação do veículo automotor por eles
utilizado”. Porém, investigações de crimes não podem se alicerçar exclusivamente sobre
dados fornecidos ou não pelas vítimas; caso contrário, nunca existiriam apurações nos crimes
sem sobreviventes.
Em segundo lugar, e mais importante, os sobreviventes auxiliaram sim as
investigações, através da descrição minuciosa do veículo utilizado pelos atiradores, um
automóvel GM/Vectra, de cor verde escura, sem as placas e ocupado por quatro pessoas.
34
Esboçou-se, inclusive, uma busca pelo referido veículo nos quadros da Polícia
Militar, que resultou na identificação de 4 veículos com as mesmas características. Seria
possível que um deles fosse o carro que levou os assassinos até o local. Mas, incrivelmente,
mesmo com a informação juntada ao inquérito, essa linha de investigação foi simplesmente
abandonada: os veículos encontrados não foram periciados, seus donos não foram ouvidos
e, por fim, não se prosseguiu com a busca para outros batalhões.
Em sua manifestação, o parquet paulista se furta à investigação do carro usado
na chacina, alegando que a PM paulista tem dezenas de milhares de agentes, o que tornaria
inviável a busca pelos proprietários do veículo, mas ignora que, anos atrás, hipóteses foram
levantadas, apenas não foram apuradas.
Como se vê, é inconteste que as investigações foram propositalmente tocadas
de modo burocrático, desinteressado e com o intuito claro de não identificar os verdadeiros
autores das mortes.
Outra alegação para se desobrigar da apuração, demonstrando sua ausência de
vontade, foi a de que não seria mais possível encontrar o veículo ou dele extrair evidências.
Todavia, tal conclusão só seria possível mediante exercício de futurologia, que, salvo engano,
não faz parte das habilidades dos promotores paulistas. Para se concluir que um veículo não
fornece evidências é necessário, antes, periciá-lo. Ademais, ainda que fosse impossível
recuperar provas do veículo utilizado no crime, restaria a possibilidade de se colher os
depoimentos daqueles que eram seus proprietários à época.
Por fim, o MP-SP alega a presunção de não envolvimento dos policiais como motivo
para não os investigar, o que merece três observações:
i) Diversamente do que induz o parquet, não se almeja a presunção de
culpa dos policiais, mas tão-somente uma investigação concreta
perante evidências de tamanha força;
35
ii) Em segundo lugar, como é sabido, a presunção de inocência é relativa
(iuris tantum), i. e., passível de contraditório. Logo, ela é inapta, por si
só, a obstar investigações, o meio legítimo para se confirmar ou
reverter a referida proteção;
iii) Em terceiro, como bem observou o Procurador-Geral da República
na exordial, à época dos crimes de maio de 2006, as autoridades já
sabiam do envolvimento de policiais militares em chacinas68.
Ao contrário da opinião (isolada) proferida pelo Procurador-Geral de Justiça,69
os fatos revelam ser crível, sim, o envolvimento de policiais com grupos de extermínio, como
se confirmou em dois crimes relatados anteriormente – apurados pelo Inquérito Policial
1.136/2006, conduzido no 39º DP da Capital, e pelo processo 125/10, da Vara do Júri da
comarca Santos/SP – e como atesta a Relatoria da ONU e os relatórios São Paulo sob Achaque:
Corrupção, Crime Organizado e Violência Institucional em Maio de 2006 70 e Análise dos Impactos dos
Ataques do PCC em São Paulo em Maio de 2006 71, documentos já citados na presente
manifestação.
Não houve persecução penal que apurasse essa grave violação de direitos
humanos. Assim, referenciando novamente o voto do Ministro JORGE MUSSI no IDC nº
3, o deslocamento de competência merece acolhida tendo em vista a marginalização judicial
que se sobrepôs ao caso.
68 A afirmação foi feita pelo então Direitor do DHPP, o senhor Domingos de Paula Neto, em entrevista realizada no dia 25 de outubro de 2006: “A maioria das chacinas em São Paulo são praticadas por Policiais Militares da ativa; foi este o comportamento no ano de 2005”. Ver: São Paulo sob achaque: Corrupção, Crime Organizado e Violência Institucional em Maio de 2006, Harvard Law School International Human Rights Clinic & Justica Global (2011), p. 100.
69 Superior Tribunal de Justiça, IDC nº 9/SP (2016/0133526-7), e-STJ Fl. 2419.
70 Delgado, Fernando R., Raquel Dodge & Sandra Carvalho. "Sao Paulo sob Achaque: Corrupcao, Crime Organizado e Violencia Institucional em Maio de 2006", Harvard Law School International Human Rights Clinic & Justica Global (2011).
71 CANO, I.. Análise dos Impactos dos Ataques do PCC em São Paulo em Maio de 2006. São Paulo: Conectas, 2009 (Relatório de Pesquisa).
36
3.3) Da omissão do Poder Judiciário
É possível perceber, por último, outra omissão institucional com relação ao caso
do Parque Bristol: a leniência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), que
descuidou da proteção aos direitos humanos quando autorizou prontamente o arquivamento
dos inquéritos.
Excetuadas as decisões atendendo pedidos de prazo formulados pela autoridade
policial, percebe-se que nos dois Inquéritos Policiais (IP nº 1.124/2006 – Parque Bristol e IP
nº 2.831/2006 – Fernando Elza), a atuação do TJSP limitou-se à determinação do
arquivamento dos Inquéritos por meio de decisões judiciais extremamente simples com base
nas manifestações do Ministério Público.
Em contrapartida, lembramos que o artigo 28 do Código de Processo Penal
assim dispõe:
Art. 28. Se o órgão do Ministério Público, ao invés de apresentar a denúncia,
requerer o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer peças de
informação, o juiz, no caso de considerar improcedentes as razões invocadas,
fará remessa do inquérito ou peças de informação ao procurador-geral, e este
oferecerá a denúncia, designará outro órgão do Ministério Público para
oferecê-la, ou insistirá no pedido de arquivamento, ao qual só então estará o
juiz obrigado a atender.
O artigo 28 do CPP concede ao Juiz a prerrogativa de discordar do pedido de
arquivamento de inquérito policial formulado pelo Ministério Público, remetendo-o ao
Procurador-Geral de Justiça para nova manifestação. Porém, o que se observa nos dois
Inquéritos analisados no presente processo é a notória falta de interesse por parte do Poder
Judiciário na averiguação eficiente da autoria dos crimes. Se por um lado temos a ausência
de poderes investigatórios aos Juízes, como acertadamente define a Constituição Federal, por
outro, o Juiz tem o dever de agir com prudência e diligência, buscando da melhor forma
possível a verdade real dos fatos. Nesta lógica, veja-se o Código de Ética da Magistratura
Nacional:
37
Art. 24. O magistrado prudente é o que busca adotar comportamentos e
decisões que sejam o resultado de juízo justificado racionalmente, após haver
meditado e valorado os argumentos e contra-argumentos disponíveis, à luz
do Direito aplicável.
Nos dois inquéritos, as decisões de arquivamento proferidas pelas Juízas sequer
são fundamentadas. Em realidade, são manifestações idênticas proferidas por Juízas
diferentes, o que demonstra uma verdadeira padronização deste tipo de manifestação,
comprovando o tratamento meramente protocolar dispensado à essa grave violação de
direitos humanos.
Caso tivesse havido postura diligente por parte do TJSP, em consonância com
o dever funcional dos Magistrados, poder-se-ia ter questionado, no IP nº 1.124/2006, por
exemplo, a descontinuidade de investigação que buscava o veículo utilizado pelos autores do
crime (veículo GM/Vectra verde), como explicado anteriormente. Ou, ainda, uma
investigação conduzida isoladamente e que desconsiderou o contexto dos “crimes de maio”.
Já no IP nº 2.831/2006, poder-se-ia ter questionado a ausência de perícia policial no local em
que ocorreu o assassinato de Fernando Elza. Esses são alguns exemplos dentre diversos
outros pontos, melhor explorados nos parágrafos anteriores, que comprovam que os dois
casos eram hipóteses claras para uso da prerrogativa conferida pelo artigo 28 do CPP.
Em conclusão, evidente a omissão por parte do TJSP no que toca à eficiente
condução dos Inquéritos Policiais em análise. O Juiz, embora não investigue, tem o dever de
garantir a boa condução das investigações, e não apenas proferir decisões padronizadas e
carentes de fundamentação.
3.4) Considerações finais sobre as falhas do Estado
Apesar de demonstrada, de maneira inequívoca, a incapacidade dos órgãos
estaduais em responder adequadamente à grave violação de direitos humanos, ainda restam
algumas considerações a se fazer. Em sua manifestação no presente Incidente de
Deslocamento de Competência, o Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo
emitiu determinadas informações desencontradas que demandam reavaliação frente aos
fatos.
38
Sobre os “crimes de maio de 2006”, as poucas ações adotadas pelo MP-SP
tiveram um escopo genérico e superficial, não incidindo para a resolução específica do
caso aqui tratado. Foram atos meramente protocolares – cerca de meia dúzia de ofícios –,
“atuação” padrão que também bem esterilizou as investigações da chacina do Pq. Bristol.
A primeira informação equivocada é a respeito da criação do Grupo de Atuação
Especial de Controle Externo da Atividade Policial (GECEP). Ao contrário do que afirma o
Procurador-Geral de Justiça de São Paulo, o Grupo não foi criado através do ato normativo
650/2010; na verdade, o GECEP foi criado pelo Ato Normativo MP-SP nº 324-
PGJ/CGMP/CPJ, de 29 de agosto de 200372, três anos antes dos crimes de maio de 2006.
O Ministério Público de São Paulo também afirmou ter “acompanhado” os
crimes de maio através da Procuradoria-Geral de Justiça e do Centro de Apoio Operacional Criminal
(CAO Criminal), com os protocolados nº 05/2009 e o nº 25/2010. Todavia, os referidos
procedimentos sequer averiguaram a chacina do Parque Bristol, consistindo,
basicamente, em respostas padronizadas a algumas solicitações. O Protocolado nº 05/2009
não apura nenhum fato; ele apenas cuida de um pedido de informações sobre os homicídios
de maio de 2006, feito pela ONG Justiça Global e pela Clínica Internacional de Direitos
Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de Harvard. Por sua vez, o Protocolado
nº 25/2010 corresponde a um ofício encaminhado pela Ouvidoria da Polícia do Estado de
São Paulo ao CAO Criminal, onde pede expressamente a reanálise de diversos procedimentos.
Mas, assim como outros pedidos de igual teor, tais como da Anistia Internacional, da Câmara
Municipal de São Paulo e do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana
(CONDEPE), o pedido da Ouvidoria da Polícia foi negado.
A justificativa do Coordenador do CAO Criminal (que coincidentemente, à
época, era o atual Procurador-Geral de Justiça, o sr. Gianpaolo Poggio Smanio) para o
indeferimento é escassa, alegando que os casos foram “arquivados por determinação do
Poder Judiciário”73 e que, assim, só poderiam ser reabertos com a presença de novas provas.
72 Este Ato foi posteriormente revogado pelo Ato Normativo nº 650/2010. À época das investigações, porém, vigia o Ato nº 324/2003.
73 Documento acostado pelo Ministério Público do Estado de São Paulo, e-STJ fls. 2814-2815
39
Importante ressaltar que o Ato Normativo MP-SP nº 409/2005 (Controle Externo da
Atividade da Polícia Judiciária) estabelece, em seu artigo 2º, algumas competências essenciais
aos promotores de justiça, especialmente em seus incisos IV e V. O então Coordenador do
CAO Criminal deixou de cumprir com a atribuição, já que, diante de um pedido fundamentado
de reanálise de casos e com indícios de omissão relacionadas às investigações penais, sequer
justificou sua negativa de modo satisfatório. Veja-se:
Art. 2º. O controle externo da atividade de polícia judiciária será exercido
pelos promotores de Justiça e materializado por meio de procedimentos
administrativos criminais e medidas judiciais de cunho preparatório, inerentes
à qualidade de destinatários dessa função, competindo-lhes, em especial:
(...)
IV - receber representação ou petição de qualquer pessoa ou entidade, por
desrespeito aos direitos assegurados na Constituição da República e na
Constituição do Estado de São Paulo, relacionados com o exercício da
atividade policial;
V - representar à autoridade competente para adoção de providências que
visem a sanar omissões ou prevenir ilegalidade ou abuso de poder
relacionados com a atividade de investigação penal. (Ato Normativo MP-SP
nº 409-PGJ/CPJ, de 04 de outubro de 2005)
Soma-se a essa lista o fato do parecer ter desconsiderado o entendimento do
Superior Tribunal de Justiça74 e tentado impor critérios processuais inexistentes para obstar
o presente pedido.
Já é pacificado pelo STJ que o Incidente de Deslocamento de Competência pode
ser suscitado após o arquivamento dos procedimentos investigatórios, sendo desnecessário
o pedido durante a tramitação destes. No IDC nº 3, idêntico apelo do parquet goiano foi
rejeitado pelo ilustre Min. Rel. JORGE MUSSI, que reconheceu a possibilidade de
deslocamento de competência apesar do arquivamento na esfera estadual. Longe do
alegado, intervir durante uma investigação ofenderia o trabalho das instituições locais, ainda
em busca da resolução do caso. O prudente, como nesse caso, seria suscitar o IDC somente
74 O Ministro Rogerio Schietti Cruz, em seu voto no IDC nº 5, diz: “[...] a ideia de excepcionalidade do incidente não pode ser de tal grandeza a ponto de criar requisitos por demais estritos que acabem por inviabilizar a própria utilização do instituto de deslocamento”.
40
após visualizada a incapacidade do Estado-membro em solucionar a grave violação de
direitos humanos, conforme demanda o elemento de subsidiariedade do instrumento. Nesse
sentido se posicionou o Ministro SCHIETTI CRUZ quando, no IDC nº 5, afirmou que o
procedimento deve ser adotado de forma subsidiária, demandando a negligência da unidade
federativa.
E de igual modo devemos ignorar a exigência de prazo, feita pelo MP-SP, para a
realização do pedido, restrição inexistente na Constituição Federal ou na jurisprudência.
Também se equivoca o ilustre Procurador-Geral de Justiça ao interpretar o
Incidente de Deslocamento de Competência como um “recurso processual”. Na discussão
sobre a criação desse instrumento, na doutrina e em todos os julgamentos já realizados pelo
E. Superior Tribunal de Justiça, sempre se frisou a excepcionalidade do IDC, como uma
ultima ratio do Estado Brasileiro para investigar e reparar graves violações de direitos
humanos. O IDC é uma figura constitucional e excepcional; tratá-lo como um “recurso
processual” é uma tentativa de impor-lhe as condições e restrições de espécie ordinária e
infraconstitucional.
Ainda nessa imprópria tentativa de criar condições ao IDC, o MP-SP comparou
o instrumento constitucional a um “desarquivamento”, aplicando-lhe indevidamente o
Código de Processo Penal e exigindo-lhe como requisito a apresentação de prova nova. Essa
demanda mostra-se irracional considerando que o presente pedido visa transferir a
responsabilidade do caso para a esfera federal justamente para tanto: buscar novos elementos
que permitam ao Estado brasileiro dar o adequado tratamento a grave violação de direitos
humanos. As provas surgirão no decorrer da deslocada investigação, sendo desconexo
invocá-las antes que se transfira a competência.
Diante de tantos elementos, resta perfeitamente delineada a necessidade de se
deslocar a competência da Justiça Estadual para a Justiça Federal, bem como também fica
demonstrada a harmonia do caso com a jurisprudência construída por esta E. Corte.
41
IV. PEDIDOS
Quem cometeu os crimes? Quantas pessoas foram responsáveis pelos delitos? Qual foi a conduta
dos envolvidos? Quais os nomes dos autores e partícipes? Estas questões, levantadas pelo Ministério
Público do Estado de São Paulo em sua manifestação (curiosamente, a entidade responsável
por respondê-las), também atormentam as famílias das vítimas – conforme suas
manifestações em anexo.
Para além destas perguntas, questionamos: qual seria o prejuízo causado
pelo deslocamento de competência desse caso? Qual seria o prejuízo para a
sociedade brasileira? Por que a ânsia de se enterrar definitivamente esse grave
episódio da história paulista e que restou incógnito?
Comprovou-se, fartamente, o atendimento de todos os requisitos para o
deslocamento de competência, embasando-os cientifica e juridicamente. Todos os seus
elementos foram analisados, descritos e enquadrados nos requisitos conforme os critérios
estabelecidos por este Egrégio Superior Tribunal de Justiça.
Diante de todo o exposto, requer-se respeitosamente:
1) Seja a autora admitida como amicus curiae, ou,
subsidiariamente, caso seja indeferido o pedido, que a
presente manifestação seja admitida como Memoriais;
2) Seja conferia a possibilidade de sustentação oral dos
argumentos de amicus curiae em plenário, e que os
advogados desta sejam intimados previamente para a
realização do ato; e
42
3) No mérito, seja deferido o presente Incidente de
Deslocamento de Competência para a Justiça Federal
dos inquéritos policiais nº 1.124/06 (052.06.002082-4) e
2.831/06 do Departamento de Homicídios e Proteção à
Pessoa de São Paulo.
Nesses termos,
Pede deferimento.
De São Paulo/SP para Brasília/DF, em 7 de agosto de 2017.
João Paulo de Godoy
OAB/SP 365.922
Henrique H. Apolinario de
Souza
OAB/SP 388.267
Rafael Carlsson Custódio
OAB/SP 262.284
Marcos Roberto Fuchs
OAB/SP 101.663