0
DIVERSIDADE CULTURAL E ENSINO ÉTNICO RACIAL – POLÍTICAS
PÚBLICAS EDUCACIONAIS EM COMUNIDADES REMANESCENTES
QUILOMBOLAS.
Daniela Santos do Rosário1
UMA CULTURA DE POLÍTICA
A diversidade cultural brasileira é velha conhecida nos estudos sociais e acadêmicos
no mundo. Em meados século XX ela passou a ser também alvo de análises jurídicas que
resultam hoje em políticas públicas e de ações afirmativas. Porém utilizar especificidades
culturais na elaboração de leis não é algo que pertença apenas à política brasileira, e tem cada
vez mais espaço global. A presença cada vez maior das “culturas” ou multiculturalismo na
política é resultado dos problemas não resolvidos dos processos históricos do
desenvolvimento social e econômico no mundo. Processos nos quais grupos de “minorias”
foram invisibilizados em nome da construção hegemônica cultural das nações. Num novo
quadro político mundial esses grupos brigam pela sua visibilidade e direitos. Vivemos o
período das “políticas multiculturais”. Que para Stuart Hall (2003):
Multicultural é um termo qualitativo. Descreve as características sociais e os
problemas de governabilidade apresentados por qualquer sociedade na qual,
diferentes comunidades culturais convivem e tentam construir uma vida em comum,
ao mesmo tempo em que retêm algo de sua identidade “original”. Em contrapartida,
o termo “multiculturalismo” é substantivo. Refere-se às estratégias e políticas
adotadas para governar ou administrar problemas de diversidade e multiplicidade
gerados pelas sociedades multiculturais.
Ele continua afirmando que:
Essa “dupla inscrição” pós-colonial ocorre em um contexto global onde a
administração direta, o controle ou o protetorado de um poder imperial foi
substituído por um sistema de poder assimétrico e globalizado, cujo caráter é pós-
colonial e pós-imperial. Suas principais características são a desigualdade estrutural,
dentro de um sistema desregulamentado de livre mercado e de livre fluxo de capital,
denominado pelo primeiro mundo; e os programas de reajuste estrutural, nos quais
prevalecem os interesses e modelos ocidentais de controle.
1 Mestranda em Estudos Étnicos e Africanos pelo CEAO-UFBA, Pós-Graduada em Coordenação Pedagogica e
Gestão Educacional, Profª. Lic. em História.
1
Embora essas políticas apontem, pelo menos na teoria, a visibilidade e reconhecimento
cultural e social desses grupos, em muitos momentos e conforme afirma acima Hall, elas
obedecem aos modelos de controle social contemporâneos, podendo o grupo “beneficiado”
ficar preso ao assistencialismo governamental tanto no caráter econômico quanto cultural.
Objeto de discussão das políticas multiculturais, também conhecidas por políticas
públicas e afirmativas, as comunidades remanescentes quilombolas brasileiras contam com o
projeto quilombola, elemento constitucional brasileiro e que representa a conquista de uma
parcela da população negra após séculos de humilhação, submissão e expropriação social. A
constitucionalidade de seus direitos, no entanto não garantem ainda verdadeiramente a
“liberdade” que motivou suas formações e nem sempre as leis oriundas do projeto
quilombola, tal como são idealizadas, representam a sua realidade.
“Ressuscitado” na década de 1950 com os debates que se articulavam no sentido de
desconstruir o mito da democracia racial brasileira2 o quilombo é tomado pelo movimento
negro como símbolo de resistência cultural afrobrasileira. Conhecidos historicamente como
comunidades que se formaram prioritariamente por negros, sobre diversos contextos como,
por exemplo: a fuga das fazendas no período da escravidão, por doações de terras realizadas
pelos donos de fazendas ou pela igreja. As comunidades quilombolas são caracterizadas
principalmente pela formação sócioeconômica peculiar e pela preservação dos traços culturais
afrodiásporicos que contribui para manutenção da cultura negra no Brasil.
Diante dessa historicidade o Movimento Negro Brasileiro, utilizou os quilombos como
pauta em movimentos nos anos 1940 e 1950, a exemplo do Teatro Experimental do Negro
(Abdias do Nascimento), como símbolo de liberdade e resistência cultural negra e mais tarde
nas décadas de 1970 e 1980, quando os conflitos fundiários, ganhavam força em todo
território nacional, reivindicando o direito dessas comunidades de terem efetivamente a posse
das terras onde viviam há décadas ou séculos3. Os debates procuravam também reconstruir a
2 Um dos momentos disparadores dessas discussões no Brasil foi à elaboração das pesquisas referentes ao
projeto UNESCO, que ao buscar uma democracia racial perfeita, apresentou resultados contrários, fazendo
despontar os debates sobre o racismo brasileiro. Por conseguinte deu força ao movimento negro, fazendo
florescer pesquisas que necessitavam a todo custo demonstrar o aspecto multicultural invisibilisado, brasileiro.
3 Souza, 2008.
2
imagem dos quilombos que marginalizados no período da colonização, com a introdução do
capitalismo no Brasil, sofriam com a invisibilidade social e cultural.4
Prova dessa invisibilidade, foi uma surpresa para o governo brasileiro o numero
elevado de comunidades que se autodefiniram como quilombolas a partir da conquista do
artigo 68 da constituição federal brasileira de 1988, que garantiria aos “remanescentes das
comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade
definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.” Mas para Arruti (2003),
sempre se soube da grande parcela de população negra que compõe o campesinato e o
proletariado rural brasileiro, mas isso nunca, até meados de 1990, conferiu particularidade a
essa população, tanto diante da história, da militância, como das políticas públicas.
Estudos antropológicos estimam que atualmente exista em torno de 5.000
comunidades negras no Brasil. A FCP (Fundação Cultural Palmares) através de critério de
autodefinição já certificou pelo menos 2007 dessas comunidades remanescentes5.
As discussões em torno dessas comunidades geraram a criação de varias outras leis
que teriam o papel de garantir a manutenção da identidade e territorialidades dessas
comunidades. Sobre essa perspectiva e através de uma abordagem étnica, a área educacional
tem sido acionada de forma significativa como elemento de reconhecimento desses grupos
por toda população brasileira, já que os resultados das ações educacionais, em longo prazo,
têm reflexos no cotidiano e nos hábitos de uma população.
Assim em 20 de novembro de 2012 foram definidas as diretrizes para a educação
quilombola, reflexo da lei 10.639/036, sancionada pelo então Presidente da republica Luiz
Inácio da Silva e que foi pensada nessa intenção de romper os paradigmas de uma educação
eurocêntrica e hegemônica, como forma de trabalhar uma identidade afirmativa a uma parcela
tão inferiorizada da população. A lei determinou mudanças no currículo nacional, fazendo
4 Em 1740, reportando-se ao rei de Portugal, o Conselho Ultramarino valeu-se da seguinte definição de
quilombo: “Toda habitação de negros fugidos, que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não
tenham ranchos levantados e nem se achem pilões nele.” Esse conceito vigorou durante todo o período da
colonização, caracterizados como expressão da negação do então sistema social, o escravista, o negro que fizesse
parte dessas habitações era tido como marginal, portanto deveriam ser casados e punidos pelas autoridades
locais. Por muito tempo a existência de quilombos era considerada apenas no período em que vigorou a
escravidão no Brasil. 5 http://www.palmares.gov.br/wp-content/uploads/2013/10/1-crqs-certificadas-ate-25-10-2013.pdf - acessado:
28-08-2014. 6 A lei também foi criada por força das pressões do movimento negro, e faz parte das varias conquista desses
grupos na luta pelo respeito a diversidade cultural brasileira.
3
obrigatório ensino da História da África, do negro e cultura afro-brasileira no conteúdo
didático. Sobre esse contexto a educação quilombola teria uma importância significativa, pois
segundo suas diretrizes:
O cotidiano quilombola, a exemplo de outros grupos étnico-raciais e sociais, é a
emergência da práxis7 porque o pensar e o fazer se corporificam:
Na forma de visões (pensamentos, idéias) que orientam um porta-se diante do
mundo;
No modo de vida e mais especificamente na forma de trabalho como
atividade prática que não isola o pensar do fazer, resultando em um manter-se no
mundo;
Enfim, como processo educativo que confere aos sujeitos um localizar-se no
mundo observando as suas especificidades de raça, gênero, faixa etária e classe
social. 8
As diretrizes falam ainda da importância da inserção desse currículo como elemento
de preservação da memória e tradição dessas comunidades.
Embora não concorde com as críticas daqueles que acreditam que projetos como o
quilombola privilegiam a cultura e a identidade de determinados grupos, desconsiderando as
questões econômicas e materiais do Estado. Mesmo porque, uma rápida mirada na realidade
dessas comunidades pode facilmente comprovar que mesmo podendo contar com essas
políticas em seu território a expropriação de terras e as precariedades dos meios de trabalho
continuam significativas. É necessário, para não cometermos o erro do absolutismo ou
essencialimos étnico cultural, retomar, ainda que de forma sucinta, o processo histórico que
levou a criação do artigo 68 e em seguida, como objeto de análise desse trabalho, a proposta
das diretrizes de educação quilombola, assim como seus efeitos na prática.
UMA POLÍTICA CULTURAL
Embora seja de conhecimento de todos que a colonização promoveu não so contra
negros, mas também índios, formas de escravidão e inferiorização que iam dos aspectos
econômicos até psicológicos, e que a reificação promovida a esses grupos, não permitiam a
sua participação enquanto agentes sociais, desta maneira inviabilizando a mobilidade social.
7 Práxis, no sentido conferido por Freire (1987), é uma teoria do fazer. Para melhor entendimento da aplicação
no ensino quilombola, ver livro: Orientações e Ações para Educação das Relações Étnico- Raciais, pp 140.
4
A grande discussão a cerca das políticas públicas direcionadas a valorização desses grupos no
Brasil, baseia-se principalmente nos efeitos do mito da democracia racial9. Para Sergio Costa
(2001), a teoria de 1930, criada por Gilberto Freyre e usada como bandeira política por
Getulio Vargas, que declarava falsamente uma harmonia cultural e econômica entre as
principais etnias brasileiras, branco, índio e negro promoveu:
a) Desigualdade e problemas sociais, historicamente construídos, como o subjugo de
determinados grupos como mulheres ou negros, que são tratadas por Freyre como
constitutivas de uma essência brasileira, infensas, portanto, à possibilidade de
transformação.
b) A forma como a nação brasileira se constitui na região de Pernambuco é tratada por
Freyre como representativa de todo o país, sem que seja verificada empiricamente a
plausibilidade de tal extrapolação.
c) Como o modelo de Freyre supõe uma cultura unificada como fundamento da nação,
restam limitados os espaços para a expressão de novas formas culturais (...). 10
Além dos pontos citados por Costa e tantos outros denunciados por vários
pesquisadores étnicos e raciais no Brasil como: Abadias do Nascimento, Florestan Fernandes,
Oracy Nogueira11. Um dos mais significativos é que o mito da democracia racial também deu
origem a preconceito racial velado. Na máxima de nossa sociedade de que no Brasil não há
racismo, estabeleceu-se a desqualificação da “raça” como ferramenta nas reivindicações
políticas, tornando incomoda qualquer manifestação que se aproprie dela na luta por
reconhecimento de direitos e acessibilidade social. A conseqüência mais direta a essa
negação dos problemas raciais na população brasileira foi a institucionalização da postura
ética de validação e naturalização da inferioridade dos grupos “não brancos”.
Como ferramenta para reverter essa institucionalização e naturalização social do
racismo, o artigo 68, deve ser considerado um grande conquista do movimento negro, pois fez
emergir questões jurídicas, econômicas, territoriais e culturais, dando “voz” aos quilombos na
sociedade. Nessa linha de pensamento fez-se necessário a elaboração de políticas que
9 O Brasil atraiu cientistas, naturalistas e pensadores de todo o mundo, seu atrativo era a sua tão particular
composição social mestiça. A teoria de Freyre consistia em mostrar como no Brasil o encontro das três raças:
branca, indígena e negra, resultou numa brasilidade, uma soma cultural, física, rica e única. Em suas análises
cada raça teria contribuído com suas qualidades e defeitos assim sendo os portugueses colonizadores dariam ao
Brasil a organização social através do qual contribuiria principalmente com a religião católica e a língua, da
indígena por sua vez herdaríamos principalmente a culinária, noções de limpeza e trabalho, do índio a
indisciplinaridade e compulsividade; dos negros a alegria e a malandragem típica de todo brasileiro. 10 Artigo: A mestiçagem e seus contrários: etnicidade e nacionalidade no Brasil contemporâneo. pp . 147. 11 Livro: Racismo e Antirracismo no Brasil, 2012 pp .132.
5
garantisse a manutenção e fortalecimento dessa conquista. As leis de diretrizes e bases
quilombola, assim como outras leis de amparo do projeto quilombola têm esse papel.
Tomando o cuidado, no entanto para não tropeçarmos no essencialismo étnico cultural
e para que essas conquistas não sejam mais que novos artifícios para controlar e manter em
seu lugar de imobilidade social, criando-se assim novas fronteiras culturais e sociais. É
necessário questionarmos: Na urgência de satisfazemos nossos ideais a cerca das identidades
e afirmações culturais desses grupos, será que não estamos deixando de lado a realidade atual
desses territórios com todas as influências que o próprio processo histórico narrado acima,
impôs em seus conceitos socioculturais?
OUTROS CONTEXTOS, A MESMA HISTÓRIA
Na intenção de dialogar, já que seria muito precoce para não dizer presunçoso, tentar
responder essa questão apenas nesse trabalho, trago uma etnografia, em desenvolvimento, em
duas comunidades remanescentes quilombolas e a proposta das diretrizes educacionais dentro
de seus respectivos territórios. As comunidades Remanescentes quilombola de Boitaraca e
Torrinhas.
Certificadas pela Fundação Cultural Palmares, através dos critérios de autodefinição
do decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 200312, respectivamente em 2005 e 200613.
Localizadas no baixo sul da Bahia, estado brasileiro, elas apresentam contextos culturais
distintos apesar de consangüíneas.
Um rio separa espacialmente as duas comunidades, porém seu passado histórico e sua
construção cultural se encontram e se separam em vários momentos. Boitaraca enquadra-se no
conceito “tradicional” 14 de quilombo, povoada a partir da fuga do negro Américo do Rosário,
a comunidade se formou no meio de uma densa vegetação, cercada por rios e mangues que
dificultavam e dificultam até hoje o acesso a comunidade. As atividades econômicas
principais ainda são a pesca, a mariscagem e o corte da piaçaba, esse último produto, porém
12 Decreto nº 4.887, art 2º § 1o “Para os fins deste Decreto, a caracterização dos remanescentes das comunidades
dos quilombos será atestada mediante autodefinição da própria comunidade.” 13 http://www.palmares.gov.br/wp-content/uploads/2013/10/1-crqs-certificadas-ate-25-10-2013.pdf - acessado:
28-08-2014. 14 Em 1740 0 conselho ultramarino português, definiu formalmente que quilombos seriam “toda habitação de
negros fulgidos que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados e nem se
ache pilões neles”.
6
sempre foi comercializado fora do quilombo, o que contribui com a afirmação de muitos
historiadores, que embora formados por negros fugidos, as comunidades não viviam
totalmente isoladas dos centros urbanos, fazendas e engenhos, e que trocava com os membros
dessas áreas suas produções agrícolas por produtos que eles não tinham como produzir por
sua própria conta, e/ou ofereciam sua mão de obra em troca de remuneração15. Podemos nos
arriscar a presumir também que as trocas iam além da comercial, tendo implicativos na
estrutura social e cultural delas.
Do outro lado do rio a comunidade de Torrinhas apresenta outro processo de formação
de comunidade quilombola, ela nasce a partir de uma Fazenda chamada Pau Seco, que
pertenceu a um português chamado Erico Sabino e mais tarde foi vendida ao espanhol
Peleteiro. A produção principal era o cultivo de piaçaba e dendê.
João Jose Reis (1996), afirma que era muito comum que fazendeiros e latifundiários
fossem coiteiros, nessa região, que a época pertencia à capitania de ilhéus. A prática
significava que como forma de obter mão-de-obra barata, era aceito, por fazendeiros, o
trabalho de negros escravizados que fugiam de seus “senhores”. Desta forma, como relata os
depoimentos dos atuais moradores de Torrinhas, o primeiro dono da fazenda, Erico Sabino,
aceitava, não só homens livres vindos de cidades e comunidades vizinhas, como também e
principalmente escravos fugidos, nesse caso vindos do quilombo de Boitaraca.
Todos os trabalhadores praticavam suas atividades na fazenda durante o dia e a noite
retornava as suas casas. As idas e vindas constantes de uma comunidade a outra além de
cansativa atrasava a produção, fazendo assim com que em parte da fazenda alguns desses
trabalhadores começassem a construir pequenas casas de taipa, que deu, segundo os
depoimentos orais, inicio a comunidade de Torrinhas.
Não é objetivo nesse trabalho discutir as diferentes formações das comunidades
quilombolas, que apresentam vários contextos, mas é importante para o momento frisar que
ceder as terras a esses trabalhadores não significava doação das mesmas, ainda assim, muitas
das comunidades quilombolas que encontramos hoje no território brasileiro foi formada dessa
maneira16.
15Price, 1996. 16 Para um melhor entendimento sobre as etnias quilombolas, ler: Quilombos – Identidade étnica e
territorialidade.
7
Como povoada em boa parte pelos negros de Boitaraca, a comunidade de Torrinhas
também recebeu seu legado cultural afro-brasileiro peculiar a história dos quilombos no
Brasil. Hoje, porém as duas comunidades apresentam diferentes práticas em várias esferas
sociais.
Diferente de Boitaraca que continua a viver da mesma atividade econômica, Torrinhas
tem como o transporte marítimo, que dá acesso turístico a ilha de Boipeba na década de 1990,
uma de suas principais fonte de renda, porém mantendo, ainda que menos representativo, o
corte da piaçaba, pesca e mariscagem.
As diferenças nas comunidades continuam a ocorrer no aspecto religioso. Na década
de 1980, Torrinhas têm sua primeira missionária da igreja protestante Assembléia de Deus.
Membro egresso, convertida à religião pentecostal, ao retornar da cidade de Salvador, para
onde partiu em busca de trabalho ainda na adolescência, começa a realizar cultos de ordem
protestante na comunidade e consegue converter muitos de seus membros, tendo hoje
aproximadamente 75% de sua comunidade convertida a nova religião. Já em Boitaraca a
primeira igreja pentecostal tem aproximadamente três anos de existência, as religiões mais
influentes continuam sendo a católica e o candomblé.
Outra diferença relevante nas duas comunidades é a maneira como elas se colocam
frente à autoidentificação quilombola, Boitaraca sempre se identificou como uma comunidade
constituída por negros fugidos, seus casamentos eram realizados em família e a história da
comunidade é repetida cotidianamente aos mais jovens, pelos mais velhos. Em Torrinhas,
admitir uma herança negra era algo mais complicado, pois sobre leitura de diferentes
contextos sociais, os membros “não boiteraquences” que povoaram a comunidade podem ter
influenciado um ideário racista composto pelo pensamento de inferioridade do negro, mesmo
que antes da chegada da igreja protestante a comunidade culturalmente vivia essa herança,
marcada por práticas caracteristicamente afrobrasileira como o samba de roda, o candomblé e
outras peculiares a as duas comunidades como a Mariana17.
Assim enquanto Boitaraca sempre se afirmou como descendentes de escravos fugidos,
fazendo da resistência a escravidão um símbolo de caráter e força da comunidade,
17 Mariana é uma espécie de rito de passagem de ano, no dia 31 de dezembro, uma “procissão” de pessoas da
comunidade passa de casa em casa, entoando cânticos e recolhendo objetos velhos. Ao chegar à beira do mar,
eles enterram as coisas velhas, pedindo a rainhas das águas leve tudo, dando passagem a coisas novas que virão
com o próximo ano.
8
referenciado na fala aos mais jovens. A comunidade de Torrinhas trilhava o caminho da
assimilação18. O processo de assinaturas da carta de autodefinição, que garante a certificação
frente à esfera publica de comunidades remanescentes quilombolas, mostra com mais clareza
essa linha de pensamento. Segundo o depoimento da líder comunitária de Torrinhas que foi
responsável pelo processo de certificação da comunidade frente à FCP, Maria de Lourdes:
Para sermos reconhecidos como quilombolas, a comunidade precisava criar um
documento de autoreconhecimento, precisávamos nós assumirmos, nos todos, como
quilombolas descendentes de negros escravos, e aí me deparei com o primeiro
problema. As pessoas não queriam ser quilombolas, porque ser quilombolas para eles
era aceitar que eram descendentes de escravos, descendentes de um povo sofrido, que
apanhavam de seus senhores, que eram torturados.19
Ainda segundo a líder comunitária, apenas depois de muitos diálogos com a
comunidade e por força da possibilidade de terem por direito a posse da terra onde moravam,
eles aceitaram assinar a carta de autodefinição, sendo assim certificados como remanescentes
quilombolas.
Ambas as comunidades tem escola de ensino fundamental, sendo que a de Boitaraca
apenas atende aos alunos da própria comunidade, a de Torrinhas, além de atender os meninos
de sua comunidade ainda recebe crianças de comunidades vizinhas, como Canavieiras e
Tapuias. Em Torrinhas está sendo construída uma nova unidade escolar, uma escola
quilombola que deve atender as orientações das diretrizes quilombola.
Em trabalho recente na comunidade de Boitaraca a pesquisadora Mille Caroline
Fernandes (2013), fez uma análise da escola local Rui Barbosa, de ensino fundamental.
Através do trabalho de sua principal professora, Arlete Souza do Rosário, a pesquisadora
relata que tendo sido criada na comunidade, crescendo ouvindo as histórias locais ao se tornar
professora da comunidade, ela utiliza os saberes locais como principal base de construção
educacional mesmo recebendo um currículo por parte da secretaria de educação já pronto e
sem especificidades locais, segundo a pesquisadora:
A memória, a oralidade e a ancestralidade tem sido o ponto central das dinâmicas de
educação em Boitaraca. Destes três aspectos citados, a professora Arlete Assunção
18 A busca em absorver modos de vestir, pensar e falar branco, no sentido de adquirir uma branquitude e assim
ser aceito pelo grupo dominador. Na tentativa de assimilação o negro tende a não perceber suas características
físicas e a negar sua origem histórica e cultural. Ler Munanga, Negritude Usos e Sentidos. 19 Maria de Lourdes, Líder Comunitária de Torrinhas. Entrevista realizada em outubro de 2012.
9
tem extraído elementos capazes de constituir uma perspectiva pedagógica que
contemple a diversidade étnico-cultural, considerando sua significação real para as
crianças e jovens boitaraquences, principalmente se eles dão possibilidades para que
estes sujeitos enfrentem as adversidades impostas no contexto escolar, privilegiando
a sua afirmação sócio existencial e o reconhecimento e a admiração de suas raízes.20
Segundo a análise apresentada por Fernandes, enquanto professora, Arlete
corresponde ao que propõem as diretrizes de educação quilombola, pois reproduz na
instituição escolar a educação que teve na infância, o respeito à ancestralidade como fonte de
conhecimento e o reconhecimento de sua origem e identidade se fazem presente quando ela
consegue incorporar esses valores dentro do currículo escolar instituído. Numa comunidade
com relações familiares e com acesso “restrito” ao mundo exterior, a sua política local
particular fundamentou a construção ética da professora, refletindo em sua prática
profissional.
Já em Torrinhas, a primeira professora efetiva na comunidade foi Ana Lucia
Conceição dos Santos, ela deixa a comunidade para trabalhar e cursar o magistério na cidade
de Valença. Retornando anos depois para dá aulas na comunidade onde continua trabalhando
até hoje na alfabetização das crianças. A maioria dos adultos de hoje da comunidade, dentre
eles, boa parte dos atuais professores locais foram alfabetizados por ela. O conteúdo curricular
utilizado até hoje por Ana é por outros professores da comunidade é o instituído pela
Secretaria de Educação, e nele não há nenhuma abordagem local, nem tão pouco algum tipo
de referência a lei 10.639/2003 sobre o ensino de África e cultura afrobrasileira, muito menos
as diretrizes quilombolas.
A situação educacional de Torrinhas, não foge a situação nacional. Pesquisas
realizadas em torno da lei 10.639/2003 têm demonstrado que sua aplicação em instituições de
ensino privada, mais principalmente pública, partem principalmente de iniciativas
particulares, não tendo o Estado demonstrado nenhum tipo de iniciativa efetiva no sentido de
fiscalizar ou acompanhar os profissionais da educação, auxiliando no conteúdo e formas de
aplicação deste na sala de aula, mesmo que a própria lei determine isso. Também é notado
que há grandes dificuldades para esses profissionais em aplicar esses conteúdos uma vez que
suas formações foram realizadas também dentro de um currículo eurocêntrico e hegemônico
20 Dissertação: MBAÉTARACA: Uma experiência de educação de jovens quilombolas no município de Nilo
Peçanha. Capitulo pp . 110.
10
cultural. Para Luiz Gonçalves e Petronilha Beatriz (2003), “uma lição da qual não podemos
nos esquecer é a de que uma educação multicultural exigirá, de nós, um enorme trabalho de
desconstrução de categorias. Caso contrário, o tema da pluralidade cultural preconizado pelos
Parâmetros Curriculares Nacionais levará muito tempo para chegar às salas de aula, sem
deixar de ser tratado com significações que acentuam e atualizam discursos e atitudes
preconceituosos e discriminatórios.”
Diferente do que ocorria com Arlete a dinâmica de Torrinhas, não fazia abordagens a
seu passado ancestral, antes silenciava frente à “vergonha” de serem descendentes de escravos
criados frente ao estigma social da posição do negro na sociedade.
Na condição de certificadas como remanescente quilombola, ambas as comunidades,
conhecem alguns de seus direitos, tanto que a criação da escola quilombola na comunidade de
Torrinhas foi resultado das solicitações da associação comunitária local. Quanto à proposta da
diretriz quilombola de educação, não podemos dizer que o pensar e o fazer se corporifiquem
principalmente no tocante da tradição e memória, tendo em consideração a dinâmica social e
cultural dessa comunidade hoje.
Procurei entrevistar alguns professores, que dão aula hoje na comunidade e que serão
professores na nova escola. Uma professora nativa e uma vinda de outra cidade, além da
própria líder comunitária, já que ela representa a comunidade na construção do PPP (Projeto
Político Pedagógico) da nova escola.
Questionadas sobre os conteúdos que serão abordados no currículo da na nova escola,
a líder comunitária afirma que: “Todos os referentes à história da comunidade, não
precisamos mais que isso, já que isso é cultura afrobrasileira, não temos nada que ver com
história da África, nos não somos de lá” a mesma pergunta foi feita a duas das professoras que
dão aula na comunidade. Tatiana Conceição Silva, nascida na comunidade, professora
pedagoga, responde que: “Vamos dar aula sobre quilombos e história Afrobrasileira como diz
a lei, mas nem sei direito o que ensinar, não tem material nenhum e nem sei contar direito
essa história”. A segunda professora, Mara Lucia Elexias Nascimento, também pedagoga, mas
nascida em outra cidade, fala que: “Conheço pouca coisa da lei. Quase nada. Abordaria a
contribuição do negro na construção do Brasil/Bahia, mas não sei pontuar um conteúdo
especifico. Mas entendo que as desigualdades sociais têm haver com a história afro-
brasileira.”
11
Os depoimentos tanto da líder comunitária, quanto das professoras, revelam em certa
medida o interesse em abordar assuntos concernentes a questão negra no Brasil, mas onde não
mora o preconceito com relação aos assuntos específicos sobre a África existe grande
desconhecimento desses professores sobre o quer e como trabalhar as questões proposta pela
lei.
Mesmo diante dos visíveis esforços de se aplicar uma educação afro-brasileira na
comunidade de Torrinhas pode-se perceber os entraves que ocorrem quando se defrontam a
formação ética social instituída sobre o negro e o conteúdo a ser aplicado.
Enquanto a aplicação dos conteúdos que contempla a lei 10.639/2003 e as diretrizes de
ensino quilombola é refletido na comunidade de Boitaraca, demonstrando uma corporificação,
em Torrinhas revela-se problemática, tanto no sentido ético como estrutural, mesmo quando
trata-se das professoras nativas quilombolas.
ACERTOS, DESACERTOS E LEGITIMIDADES
É historicamente comprovado o fato de que as comunidades quilombolas foram
importantes símbolos de luta pela liberdade num passado escravocrata e que hoje representem
uma realidade política que merece ser discutida, em termos de territorialidade e identidade,
por essa razão considero de extrema importância o projeto político quilombola e suas
ferramentas de afirmação cultural.
Mas é preciso que seja encarada a realidade, suas especificidades e contextos para que
essas políticas sejam mais que mediador de uma situação incômoda socialmente, servindo
apenas como uma peneira que tampa o sol de uma realidade que trás conseqüências que vão
além da negação de uma identidade, mas antes tem origem e relação direta com problemas
sociais existentes. Como afirma Milton Santos (2000):
Aqui, o fato de que o trabalho do negro tenha sido, desde os inícios da história
econômica, essencial à manutenção do bem-estar das classes dominantes deu-lhe um
papel central na gestação e perpetuação de uma ética conservadora e desigualitária. Os
interesses cristalizados produziram convicções escravocratas arraigadas e mantêm
estereótipos que ultrapassam os limites do simbólico e têm incidência sobre os demais
aspectos das relações sociais.
Em outras palavras, podemos afirmar que a colonização e seus processos econômicos
e de exploração, motivou as fugas que levaram a formação das comunidades quilombolas e as
12
suas construções sócio-culturais. Seus membros ao fundá-las, levaram consigo as influências
da colonização e conseqüentemente interferências no seu modo de pensar. Essas “diferentes”
e “iguais” visões foram à base para os “conceitos” e “preconceitos” que eles têm sobre si
próprio. Os estereótipos escravocratas existem dentro e fora das comunidades quilombolas
atuando em todas as suas esferas sociais.
Comunidades como a Remanescente Quilombola de Torrinhas aparecem na maior
parte das centenas de etnografias sobre o tema, que retratam que a práxis relatada como a base
para diretrizes quilombolas de corporificação do existir não são uma realidade tão comum
para esses grupos.
O reconhecimento dessa realidade e o resgate desses valores, no entanto pode ser
muito lucrativo para essas comunidades do sentido cultural e social gerando uma
conformidade de pensamento e conhecimento, histórico e político, capazes de fortalecer as
lutas dessas comunidades por acessibilidade e assegurar a continuidade e aplicação das
conquistas já existentes. Acredito que deve ser nesse sentido que o Projeto Quilombola deva
seguir nesse momento.
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
____, ALMEIDA. Alfredo Wagner Berno de. Os quilombos e as novas etnias. In. Quilombos
– Identidade étnica e territorialidade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002.
ARRUTI, J. M. O quilombo: entre dois governos. Tempo e Presença. Rio de Janeiro, v. 25,
n.330, julho/agosto de 2003.
____,COSTA, Sergio. A mestiçagem e seus contrários: etnicidade e nacionalidade no Brasil
contemporâneo. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 13(1): 143-158, maio de 2001.
____,FERNANDES, Mille Caroline Rodrigues. MBAÉTARACA: uma experiência de
educação de jovens quilombolas no município de Nilo Peçanha/BA. Salvador, 2013. 220f.
Dissertação. (Mestrado em Educação e Contemporaneidade) – Universidade do Estado da
Bahia - UNEB.
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. 1a edição 1933. São Paulo/ Rio de Janeiro,
Record. 1999.
13
____,GONÇALVES, Luiz Alberto Oliveira e Silva, PETRONILHA Beatriz Gonçalves.
Multiculturalismo e educação: do protesto de rua a propostas e políticas. Educação e
Pesquisa, São Paulo, v.29, n.1, p. 109-123, jan./jun. 2003.
GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Racismo e Antirracismo no Brasil. São Paulo:
Editora 34, 2009, 3ª Edição.
HALL, Stuart. DA DIÁSPORA: identidades e mediações culturais. Trad. Tomaz Adelaine La
Guardia Resende. ed. 2°. Belo Horizonte: UFMG, 2013.
Ministério da Educação / Secretaria da Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade.
Orientações e Ações para a Educação das Relações Étnico-Raciais. Brasilia: SECAD, 2010.
MUNANGA, Kabengele. Negritude: Usos e Sentidos. 3ª edição 1. Reimp. – Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2012.
PRICE, Richard. Palmares como poderia ter sido. In. Liberdade por um Fio; História dos
Quilombos no Brasil, São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
REIS, João José. Escravos e Coiteiros no quilombo do Oitizeiro – Bahia, 1806. In. Liberdade
por um Fio; História dos Quilombos no Brasil, São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
SOUZA, B. O. Aquilombar-se. Panorama Histórico, Identitário e Político do Movimento
Quilombola Brasileiro. Dissertação (mestrado). Universidade de Brasília, 2008.
http://www.palmares.gov.br/wp-content/uploads/2013/10/1-crqs-certificadas-ate-25-10-
2013.pdf - acessado: 28-08-2014.
Entrevistadas:
Maria de Lourdes Santos Araujo – Líder comunitária da Comunidade de Torrinhas. Entrevista
cedida em Maio de 2014.
Tatiana Conceição Silva – Moradora e professora da comunidade de Torrinhas. Entrevista
cedida em julho de 2014.
Mara Lucia Elexias Nascimento – Professora da comunidade de Torrinhas Entrevista cedida em julho
de 2014.