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DESVELANDO O ETHOS DISCURSIVO NO GÊNERO DE DISCURSO
EPITÁFIO
Raquel Vaccari de Lima* I
RESUMO: Partindo de alguns pressupostos da Análise do Discurso de linha francesa, mais
precisamente das contribuições de Dominique Maingueneau, este artigo apresenta o desvelamento do
ethos discursivo presente no gênero discursivo epitáfio. Objetivamos, com isso, constatar a presença de
um sujeito enunciador que assume uma formação discursiva cristã, presentificada nos discursos dos
epitáfios elegidos como corpus para a análise. A base teórica pela qual optamos, a Análise do Discurso
de linha francesa, justifica-se pelo fato de ela ter uma abordagem interdisciplinar, permitindo-nos
articular texto às condições sócio-históricas da produção do discurso. Diante disso, escolhemos algumas
categorias de análise propostas por Maingueneau, a saber o interdiscurso e as cenas de enunciação para
desvelarmos o ethos discursivo do epitáfio em análise. Como resultado, por meio o ethos discursivo
desvelado, constatamos que o sujeito enunciador assume uma posição de negação da finitude da vida
perante à morte, acreditando num renascimento post-mortem.
Palavras-chave: Epitáfio. Análise do Discurso. Ethos discursivo.
ABSTRACT: Starting from premises of the french Discourse Analysis, more precisely from Dominique
Maingueneau’s contributions, this article unveils the discoursive ethos that is presente in the epitaphic
genre. The purpose of this article is to ascertain the existence of an enunciator, who assumes a christian
discourse formation, as show in the discourse of the epitaphs selected as corpus for this analysis. The
theoretical basis of the elected french Discourse Analysis is justified by its interdisciplinar approach,
allowing the association of texts to sócio-historic development. Hence, we have chosen some categories
of analysis proposed by Maingueneau, such as the interdiscourse and the enunciation scenes to unveil the
discoursive ethos in the epitaphic genre. As a result, through discoursive ethos, we realize that the
enunciator, when facing with situations of life’s finitude, takes a position of denial, embrancing the
concept and hope of post-mortem rebirth.
Key words: Epitaph. Discourse Analysis. Discoursive ethos.
INTRODUÇÃO
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O medo que a morte desperta na humanidade não é de hoje. Estudos de culturas e
povos antigos comprovam que o homem sempre abominou a morte, o que, do ponto de
vista psicológico, é bastante natural, uma vez que é inconcebível para a consciência
humana aceitar a finitude da vida, principalmente quando se trata de nossa própria
existência e não a do outro
Atualmente, a morte está mais do que nunca banalizada: ela se presentifica em nosso
cotidiano todas as vezes que assistimos aos noticiários radialísticos e televisivos,
quando acessamos a internet ou quando saímos às ruas. Diante disso, a sentimos muito
perto de nós. Assim é compreensível que, em virtude desse temor da finitude da vida e
para negar a morte, haja uma crença, desde civilizações antigas até as atuais, numa vida
post-mortem. Os antigos também acreditavam que a morte era castigo dos deuses, por
isso havia os rituais fúnebres como intuito de afastar os maus espíritos que poderiam se
apoderar do morto.
Muitos desses costumes sobreviveram por séculos, a princípio para apaziguar a ira dos
deuses; depois foram imbuindo-se nas práticas sociais que até hoje se encontram em
nossas tradições, sem que tenhamos deles consciência, porque mudaram os costumes,
mas não mudou o homem. A tradição do túmulo, além do envolvimento de questões
sanitárias, advém de desejos arraigados inconscientemente de sepultar, bem fundo, os
medos que povoam o imaginário coletivo. Da mesma forma, a crença na transposição de
mundos – da Terra ao Céu – fez emergir outros costumes ritualísticos fúnebres, como as
missas do sétimo dia, cultos, cortejo cemiterial e os epitáfios.
Observando as inscrições nas lápides tumulares, denominadas epitáfios, verificamos que
emerge, em sua imensa maioria, o discurso de negação da finitude da vida, seja por
meio de enunciados bíblicos, seja por meio de orações rogando a Deus para receber a
alma do morto, seja por meio de uma homenagem epigráfica ao ente que se foi, sendo
que em todos eles surge um sujeito enunciador que crê na vida após a morte,
ratificando, dessa forma, a crença simbólica, desde os primórdios tempos, na
continuação da vida em outros mundos – limbo, Céu, inferno –, além da manutenção
dos rituais fúnebres.
1. O DISCURSO E O INTERDISCURSO
Segundo Maingueneau (2008a, p. 15), a noção de discurso sob a perspectiva da “escola
francesa” é aceitável como “[...] uma dispersão de textos, cujo modo de inscrição
histórica permite definir como um espaço de regularidades enunciativas”. Além disso,
ressalta-se que o discurso é transfrástico, ou seja, extrapola a unidade frasal. Dessa
forma, esse autor não privilegia somente as marcas linguísticas, mas também a
semioticidade textual e a historicidade. Para ele nenhum desses planos deve ser
privilegiado ou relegado; ao contrário, esse analista prefere se situar “[...] no lugar em
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que vêm se articular um funcionamento discursivo e sua inscrição histórica, procurando
pensar as condições de uma ‘enunciabilidade’ passível de ser historicamente
circunscrita” (MAINGUENEAU, 2008a, p. 17).
No entanto, segundo esse linguista, mais importante que trabalhar o discurso é analisar
o interdiscurso, considerado por ele o objeto de estudo da Análise do Discurso, uma vez
que é no interdiscurso o local de “embate” de vários discursos, pois nele estão inseridas
várias “vozes” de diversas formações discursivas que concorrem entre si, cabendo ao
analista optar pela voz que fala mais alto.
Interdiscurso
Abordado ao longo da história da Análise do Discurso sob várias perspectivas –
polifonia, pré-construído, discurso transverso, heterogeneidade, intertextualidade, entre
outras – o interdiscurso tem recebido primazia sobre o discurso. Maingueneau (1997,
1998, 2008a) trata o interdiscurso pela tríade: universo discursivo, campo discursivo e
espaço discursivo.
Quanto ao primeiro, este se refere ao “[...] conjunto de formações discursivas de todos
os tipos que interagem numa conjuntura dada (MAINGUENEAU, 2008a, p. 33). A
título de exemplo podemos citar os discursos pertencentes ao universo religioso, ao da
literatura, ao universo político, ao jurídico etc. Por outras palavras o universo discursivo
diz respeito a todas as possibilidades de produções discursivas.
No que tange ao campo discursivo, ele diz respeito ao conjunto de formações
discursivas que se encontram em concorrência, delimitando-se reciprocamente em uma
região determinada do universo discursivo, como por exemplo, ao campo discursivo
católico, ao romance fantástico, ao de uma posse presidencial, a um discurso
pertencente à instância de família. Assim, o campo discursivo são “regiões” do universo
discursivo.
Por fim, quanto ao espaço discursivo, este é concernente à delimitação de um conjunto
do campo discursivo, ligando pelo menos duas formações discursivas que, supõe-se,
mantêm relações privilegiadas, cruciais para a compreensão dos discursos considerados
(MAINGUENEAU, 2008a; 1997). Como exemplos citamos os sermões de casamento, o
capítulo de um romance fantástico, um discurso de posse presidencial, um divórcio
litigioso. Dessa forma, o espaço discursivo são “subconjuntos” deste último (do campo
discursivo), sendo um recorte que o analista do discurso elege para a sua análise.
Diante disso, Maingueneau se distancia dos cortes estruturalistas e afirma que, ao se
analisar um discurso, é preciso levar em conta uma coerência global que integra
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múltiplas dimensões textuais: a formação discursiva, as cenas de enunciação e o ethos
discursivo entre outras.
2. O GÊNERO DISCURSIVO EPITÁFIO
Tomamos como premissa o conceito de gênero do discurso segundo Maingueneau
(2008), que postula dois tipos de gêneros do discurso: os gêneros instituídos e os
gêneros conversacionais. Este autor concebe a noção de gênero discursivo como “[...]
dispositivos de comunicação sócio-historicamente condicionados, que estão em
constante mudança e aos quais são frequentemente associadas metáforas como
“contrato”, “ritual”, “jogo”...”, conceito esse bastante recente e que se distancia da
noção de gênero dos antigos poetas e retóricos gregos.
Baseando-se em algumas das ideias bakhtinianas, Maingueneau (2013, p. 115) afirma
que “[...] toda atividade de linguagem pertence a um gênero de discurso” e divide os
gêneros em gêneros conversacionais e gêneros instituídos, atentando para o fato de que
essa distinção não é rígida ou engessada, uma vez que ambos os regimes, em muitos
casos, podem encontrar-se amalgamados em um mesmo evento discursivo.
Os gêneros conversacionais caracterizam-se por não estarem fortemente relacionados a
lugares e papéis institucionalizados ou a rotinas pré-estabelecidas. Apesar de a interação
entre enunciador e co-enunciador ser mais notável, ainda assim são dispositivos de
comunicação sociais e historicamente condicionados, como os gêneros de discurso e-
mail, aula, entrevista interativa, dentre outros. Os gêneros instituídos, por sua vez, são
os que não implicam numa interação imediata. Geralmente são “impostos” pelo autor e,
ao contrário dos conversacionais, os papéis dos interactantes são previamente
estabelecidos, mantendo-se estáveis durante o processo de comunicação, como é o caso
dos gêneros editorial, artigo científico, romance de ficção, propaganda etc. Sua estrutura
é estabilizada e geralmente não se modifica. Esses gêneros são verdadeiros exemplos da
categoria de gênero discursivo como dispositivos de comunicação social e
historicamente condicionados.
Diante disso, pelo fato de os epitáfios fazerem parte de uma esfera discursiva atrelada à
prática social historicamente condicionada, podemos afirmar que eles se caracterizam
como gêneros de discurso instituídos. Outra característica inerente ao gênero do
discurso epitáfio são os papéis do enunciador e do co-enunciador previamente
estabelecidos: sujeitos que fazem parte de uma mesma formação discursiva. Além disso,
a estrutura desse gênero é bastante estabilizada, modificando-se muito pouco.
3. O ETHOS DISCURSIVO
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Quando nos deparamos com um discurso, seja oral, seja escrito, não podemos dissocia-
lo de sua circulação original, isto é, de suas condições sócio-históricas de produção, de
seu campo discursivo de origem, para que possamos compreender as razões e os
objetivos da autoria do discurso. Sendo assim, é importante distinguirmos as diferenças
entre autor e enunciador. O primeiro está para o sujeito produtor empírico, biológico;
enquanto o segundo está na instância da enunciação, ou seja, não é mais um sujeito de
carne e osso e sim um enunciador que se dá a ver no e pelo discurso, tomando para si
um ethos discursivo e assumindo um posicionamento ao qual o enunciador pode ou não
aderir.
Neste artigo não trataremos de autores/locutores empíricos, mas sim de enunciadores,
cujo ethos discursivo deve ser construído ao longo do discurso, desnudado de traços já
estereotipados imbuídos na memória coletiva ou individual. Por essa via, também é
preciso observar outros planos que irão compor o ethos, como o quadro cênico e a
adesão do co-enunciador ao posicionamento do enunciador.
O quadro cênico, como Maingueneau postula, é composto por uma cena englobante,
que corresponde ao tipo de discurso; por uma cena genérica, que corresponde ao gênero
do discurso e por uma cenografia, que é a forma como a cena genérica se mostra ao co-
enunciador. É nesta última que é construído e desvelado o ethos discursivo do
enunciador.
Importante também ressaltar a noção de fiador. Este é uma instância subjetiva que
desempenha o papel de afiançar o que o enunciador diz, ou seja, este último, no
discurso, elabora um ethos discursivo para si mesmo, assumindo um posicionamento
(por outros analistas chamado de ideologia), com o intuito de o co-enunciador aderir ou
ao que foi dito, afiançando, desse forma, o discurso. Para caracterizar a noção de fiador,
Maingueneau (2013, p. 107) afirma que:
[...] o texto escrito possui, mesmo quando o denega, um tom que dá
autoridade ao que é dito. Esse tom permite ao leitor construir uma
representação do corpo do enunciador (e não, evidentemente, do corpo do
autor efetivo). A leitura faz, então, emergir uma instância subjetiva que
desempenha o papel de fiador do que é dito (grifos do autor).
Por essa via, ao fiador, que não é o sujeito empírico, mas aquele construído por meio de
vários indícios textuais, são atribuídos ainda um caráter e uma corporalidade
enunciativas: os estereótipos culturais. Assim, caráter e corporalidade do fiador “[...]
provêm de um conjunto difuso de representações sociais valorizadas ou desvalorizadas,
sobre as quais se apoia a enunciação [...]” (MAINGUENEAU, 2013, p. 108).
Nessa perspectiva, todo discurso, mesmo o escrito, tem multiplicidade de tons
associados a um “fiador”, que é construído pelo co-enunciador de acordo com indícios
presentes na enunciação. Isso equivale a dizer que, pelo fato de o discurso ser enunciado
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por um sujeito, no caso enunciativo, a instância subjetiva requer um “fiador” que dará
ao discurso uma “voz”, associada a um “corpo enunciante” historicamente especificado.
“Não se trata de fazer um texto mudo falar, mas de circunscrever as particularidades da
voz que sua semântica impõe” (MAINGUENEAU, 2008a, p. 91).
Em resumo, o ethos é uma noção enunciativa constituída por meio do discurso.
Salienta-se também que é um processo fundamentalmente interativo, sobretudo de
influência do enunciador sobre o co-enunciador. Assim, esse princípio resulta num
hibridismo socialmente discursivo, pelo fato de não poder ser apreendido fora de um
contexto comunicativo, integrando, dessa forma, uma conjuntura sócio-histórica
determinada.
4. ANÁLISE DO CORPUS
Partindo do princípio de que os epitáfios se constituem discursos ritualizados em que os
sujeitos se inscrevem sócio-historicamente no e pelo ato da enunciação, há o
pressuposto de que os discursos dos epitáfios demandam um enunciador e um co-
enunciador, e, consequentemente, “papéis” a serem desvelados pelo ethos discursivo
postulado por Maingueneau (1997, 2001, 2008b, 2011). Elegemos para a análise dois
epitáfios inscritos em diferentes lápides tumulares, porém ambas situadas no cemitério
de Santo Antônio, localizado na cidade de Vitória – ES.
Primeiro epitáfio:
NOSSA SEPARAÇÃO É PASSAGEIRA, POIS UM DIA SEGUIREI O MESMO
CAMINHO PARA JUNTOS CONTINUARMOS O DIÁLOGO INTERROMPIDO.
⋆ 1931 † 1983
Em relação às condições de produção do epitáfio acima, observamos que este está
inscrito num túmulo requintado, construído com mármore, bem ornamentado,
comportando uma fotografia da pessoa falecida, cujo nome está gravado em alto relevo
em letras douradas, e ao lado, por cima ainda do túmulo, há um local onde estão
plantadas flores naturais. Esse túmulo encontra-se no segundo plano do cemitério,
caracterizando-se como uma das primeiras sepulturas construídas nesse local.
Ressalta-se que para uma melhor análise do discurso do enunciado em epígrafe, fizemos
alguns recortes, a saber: 1) “Nossa separação é passageira”, 2) “Seguirei o mesmo
caminho”, 3) “Para juntos continuarmos o diálogo interrompido”
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No primeiro recorte – “Nossa separação é passageira” –, podemos inferir três efeitos
de sentido: 1) que há um diálogo entre o enunciador “vivo” com o co-enunciador
“morto”, 2) que houve uma “separação” entre eles e 3) que esta separação não é
permanente, ao contrário é passageira.
Quanto ao primeiro sentido evocado, o caráter dialógico se constitui por estarem
inseridos no discurso um “EU” e um “TU” legitimados pelo pronome “nossa”
(remetendo à “minha separação” e à “sua separação”). Nesse sentido, o EU instaura o
sujeito enunciador e o TU, o sujeito co-enunciador. Dessa forma, o efeito dialogal
perpassa por todo o discurso do recorte: “Nossa separação é passageira”.
O segundo sentido corresponde ao discurso do co-enunciador relatando que houve uma
“separação”, daí inferirmos que esse enunciador está se referindo à morte, porém pelas
vias do campo semântico. Desse modo, o sujeito enunciador busca o sentido no
universo da “despedida” e da “separação” para falar da morte de maneira não literal,
mas metaforizada.
Quanto ao terceiro efeito de sentido, acreditamos que o sujeito enunciador não pensa a
morte como algo definitivo. Ao contrário, ele crê numa outra existência além desta, a
partir do momento em que ele deixa explícito, por meio dos itens lexicais escolhidos,
que essa separação é “passageira”, legitimando, dessa forma, o discurso de crença numa
vida post mortem.
O segundo recorte – “Seguirei o mesmo caminho” –, pelo fato de nele conter um verbo
conjugado no futuro do presente do modo Indicativo, tempo esse utilizado para indicar
ações futuras em relação ao ato da enunciação, evoca no coenunciador (leitor) a imagem
positiva do cristão, que acredita numa vida póstuma, no “Reino do Céu”.
Importante sublinhar que o operador argumentativo “pois”, que introduz o enunciado
“pois um dia”, além de reforçar a ideia de que um dia o enunciador seguirá o mesmo
caminho que leva a outra vida, caminho este já percorrido pelo co-enunciador, opera
como encadeador coesivo entre os discursos do primeiro enunciado – “nossa separação
é passageira” – e o segundo enunciado – “seguirei o mesmo caminho” –,
proporcionando, da mesma forma, uma coerência discursiva.
O discurso do recorte “Para juntos continuarmos o diálogo interrompido” conclui, de
modo a legitimar, os efeitos de sentido evocados nos dois primeiros recortes analisados,
principalmente pelo fato de este enunciado ser introduzido pelo encadeador “para”, cuja
função discursiva é a de demonstrar finalidade. Portanto, nesse discurso, o enunciador
reafirma a crença numa vida após a morte.
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Não obstante o tema central do discurso do epitáfio fazer parte da universalidade da
morte, o enunciador busca itens lexicais que remetem à ideia de um diálogo póstumo,
em sentido metaforizado, com o intuito de tratar o tema “morte” pelas vias da
posteridade. Nessa perspectiva, visto que o discurso do campo da morte se encontra
amalgamado no discurso de uma vida póstuma, há, nesse caso, um interdiscurso,
resultado dos dois primeiros discursos.
Observando-se a coadunação dos discursos dos recortes analisados, percebemos um
“tom” de um diálogo melancólico entre o sujeito enunciador com seu co-enunciador,
diálogo esse, porém, com certa dose de “esperança”, pelo fato de esse mesmo tom fazer
parte de um discurso de fé numa vida póstuma.
Esse tom, por sua vez, faz emergir um “caráter”, que não se dá a ver no discurso, mas o
qual está inextricavelmente ligado ao “corpo” do enunciador, que, este sim, se
corporifica no discurso como um sujeito que afiança o discurso da morte apenas como
uma passagem para uma outra vida, revelando, portanto, um caráter religioso otimista,
de fé, no que concerne à vida após a morte.
No tocante ao quadro cênico, este é composto pela cena englobante morte e pela cena
genérica equivalente ao epitáfio. Por sua vez, esse quadro cênico se apresenta por meio
de uma cenografia construída pelo viés do campo semântico de um encontro póstumo
de “almas”. Observamos ainda que, pelo código linguageiro, a cenografia se caracteriza
por um tom poético, ou seja, que desperta no coenunciador o sentimento do belo, do
lirismo.
Assim, após essas constatações, desvelamos não apenas um, mas vários ethe. A
princípio, construímos um ethos de um sujeito enunciador cristão, pelo fato de ele
acreditar que possa haver um diálogo com o co-enunciador “morto”, consequentemente
evocando a crença na eternidade.
Outro ethos desvelado é o de um sujeito enunciador “otimista”, já que ele não pensa a
morte com dor ou saudosismo, mas sim como apenas uma interrupção de uma vida que
continuará de uma outra forma.
E por último, construímos uma imagem de um sujeito consciente da finitude da vida,
mas que crê que, após sua morte, irá se encontrar com o sujeito co-enunciador, portanto
desvela-se aí um ethos de um sujeito enunciador que crê numa “outra morada”, onde as
pessoas que partirem desta vida poderão habitar e se reunir para dar continuidade aos
diálogos interrompidos aqui na “Terra”, posicionamento este pertencente ao discurso do
bom cristão.
Segundo epitáfio:
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O VALOR DE QUEM PARTE, MEDE-SE PELA SAUDADE QUE DEIXA NOS
QUE FICAM. DAI-LHE SENHOR, EM PAZ NO CÉU, QUANTO AMOR,
CARINHO, TERNURA E SUAVE BONDADE QUE ÊLE NOS DEU NA TERRA.
SUA MORTE DEIXOU EM NOSSOS CORAÇÕES, UM PROFUNDO VAZIO E
UMA PROFUNDA TRISTEZA E SAUDADE. NÓS VOS HAVÍAMOS
SUPLICADO SENHOR, DE PROLONGAR SEUS DIAS; MAS BENDITO SEJA
A VOSSA VONTADE. SAUDADE, SAUDADE, SAUDADE...
(Escrito à mão).
Esse epitáfio está gravado numa sepultura muito simples, cujo túmulo é de granito e em
sua lápide constam o nome da pessoa falecida, um retrato da mesma, acompanhado da
datação de nascimento e falecimento. O local onde está escrito o epitáfio é uma placa de
granito na qual está escrito esse texto à mão. Esse túmulo está localizado no primeiro
plano do cemitério e ao seu redor existem outros simples e mausoléus de famílias
tradicionais da cidade de Vitória, havendo assim um contraste.
Para a análise do ethos discurso, da mesma forma que o primeiro, fizemos recortes dos
enunciados que compõem esse epitáfio, a saber: 1) “O valor de quem parte, mede-se
pela saudade que deixa nos que ficam”, 2) “Dai-lhe senhor, em paz no céu, quanto
amor, carinho, ternura e suave bondade que êle (sic) nos deu na terra”, 3) “Sua morte
deixou em nossos corações, um profundo vazio e uma profunda tristeza e saudade”, 4)
“Nós vos havíamos suplicado senhor, de prolongar seus dias”, 5) “mas bendito seja a
vossa vontade”, 6) “O valor de quem parte, mede-se pela saudade que deixa nos que
ficam”
O discurso desse epitáfio é introduzido por um enunciado com valor de uma epígrafe:
“O valor de quem parte, mede-se pela saudade que deixa nos que ficam”, em cujo tom
acreditamos conter um pouco de melancolia, além da abordagem da morte pelas vias do
saudosismo.
No recorte “Dai-lhe senhor, em paz no céu, quanto amor, carinho, ternura e suave
bondade que êle nos deu na terra”, além do sentido evocado de pedido a Deus para
“cuidar” da pessoa falecida, tema maior da tipificação desse discurso, vemos também
um outro sentido evocado pelo enunciador: o de elogiar as atitudes benéficas do co-
enunciador quando este estava vivo. Pelos itens lexicais escolhidos pelo enunciador e
explicitados no recorte é possível constatar que o sujeito que enuncia sublima um ethos
do co-enunciador de um sujeito que se presentifica pelo amoroso, carinhoso, bondoso,
terno e suave na concepção dos amigos e familiares.
O recorte “Sua morte deixou em nossos corações, um profundo vazio e uma profunda
tristeza e saudade” faz emergir o tema referente à dor de se perder alguém querido. O
código linguageiro utilizado pelo enunciador deixa explícito esse sentimento marcado
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linguisticamente pelos lexemas “vazio”, “profunda tristeza”, “saudade”, que constituem
pontos de cristalização semântica do discurso do epitáfio, nesse tipo.
No que tange ao recorte “Nós vos havíamos suplicado senhor, de prolongar seus dias”,
este faz uma ruptura com os temas até então explanados de “saudade de quem já partiu”,
“de homenagem à pessoa falecida” e de “pedido a Deus para que Ele conceda um bom
lugar ao morto”. O enunciador introduz agora um discurso de queixa, evocando um
sentimento de quase revolta pelo fato de o enunciador ter suplicado a Deus que
prolongasse a vida na terra de seu ente querido, porém a esse pedido Deus não atendeu.
Dessa forma, o recorte “mas bendito seja a vossa vontade” suscita um sentimento de
conformismo em relação ao tema do enunciado anterior, um efeito de sentido de
resignação marcado linguisticamente pela contrajunção “mas”. E assim, a repetição das
unidades lexicais “Saudades, saudades, saudades...” tem a função de realçar o que foi
dito no enunciado que as precedem, legitimando o tom de um discurso melancólico.
Em se tratando do vocabulário, pelo fato de este ser um signo de pertencimento, o
enunciador do discurso do epitáfio em análise particulariza seu modo de dizer e, dessa
forma, ele institui um discurso dialógico com Deus, ora pedindo uma intervenção, ora
ressaltando os adjetivos do co-enunciador (o morto), além de reivindicar a Deus um
pedido não atendido. Desse modo, é por meio desse código linguageiro que o
enunciador trata o tema “morte” em questão.
No recorte “O valor de quem parte, mede-se pela saudade que deixa nos que ficam”
observamos que o efeito de sentido faz parte do universo da poesia lírica. Há, então, um
discurso poético, lírico, que conlui o discurso do epitáfio. Da mesma forma, outros
discursos, em sua acepção mais ampla, como o elegíaco, o lamurioso e saudoso se
mesclam, ressignificando assim o discurso.
Perante o exposto, por meio dos recorte do discurso em análise, devido ao seu código
linguageiro, esse discurso produz um tom de um diálogo melancólico com Deus em
virtude da morte de uma pessoa amada. Os tons de súplica, de elogios, de abnegação e
de conformismo também se fazem presentes na enunciação, a fim de particularizar esse
tipo de discurso.
Como consequência do tom, o discurso toma “corpo”, um corpo textual. Essa
corporalidade emergente do discurso é portadora de um “caráter” do sujeito enunciador.
Nesse caso, constatamos um caráter melancólico, porém comedido, em virtude do
conformismo perante os desígnios de Deus.
Diante desse contexto, surge uma cenografia pertencente a uma cena englobante e uma
cena genérica que faz parte do funcionamento e da organização interna do epitáfio. A
cenografia, no entanto, mesmo num contexto de morte, apresenta-se como um cenário
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onde há um diálogo dos vivos com Deus, para que Este intervenha a favor da paz de
alma da pessoa falecida. O recorte “Dai-lhe senhor, em paz no céu” corrobora a
cenografia e legitima seu discurso.
Como resultado da análise, desvelamos um ethos de um enunciador cristão, por
acreditar em Deus e com Ele dialogar. Além desse, outros ethe se fazem emergir, como
o de um sujeito reconhecedor dos atributos da pessoa falecida e dessa forma sentir
muito sua morte, além de um ethos de um enunciador melancólico diante da morte.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste artigo, procuramos desvelar o ethos discursivo do sujeito enunciador presente nas
inscrições tumulares – os epitáfios – elegidos para a análise, sob a concepção simbólica
de morte como passagem ritualística para uma outra vida, não como finitude completa
dos sujeitos enunciadores do discurso dos epitáfios.
Mostramos também ser o discurso dos epitáfios uma prática social contemporânea, mas
que tem sua origem nas civilizações antigas, da qual a sociedade se utiliza como uma
das formas de homenagear a memória discursiva de seus mortos, por acreditar numa
transposição do mundo dos vivos – Terra – ao mundo dos mortos – o Céu. Desse modo,
crendo numa vida após a morte, negamos a efemeridade da vida na terra.
Ressaltamos ainda que consideramos haver uma forte influência de formações
discursivas religiosas, principalmente a cristã, a qual leva as pessoas a construírem uma
imagem positiva dos entes queridos como um “bom cristão”, que, por assim o ser, é
merecedor do descanso eterno no reino dos Céus.
Perante o exposto, optamos por uma metodologia de análise condizente aos objetivos
propostos, que foram os de verificar a presença de um sujeito enunciador presentificada
no discurso dos epitáfios elegidos como corpus para a análise que assume uma
formação discursiva cristã. Desta forma, optamos pela Análise do Discurso de linha
francesa, pelo fato de ela ter uma abordagem interdisciplinar, permitindo-nos articular
texto às condições sócio-históricas da produção do discurso.
Nesta perspectiva, a opção pela Análise do Discurso, principalmente por meio das
categorias de análise postuladas por Maingueneau, pareceu-nos acertada, pois
fundamentou às análises no que tange às teorias da enunciação, à materialidade
linguística, ao primado do interdiscurso e às condições de produção sócio-históricas
para desvelarmos alguns ethe. Construímos um ethos discursivo do sujeito enunciador
que reflete uma forte influência religiosa, o que, consequentemente, leva os sujeitos que
falam a construir uma imagem positiva de seus mortos, além de homenagearem e
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perpetuarem a memória dos falecidos, recuperando, assim, o sentido cristão de morte:
aquele que crê na Vida Eterna.
E por fim, foram construídos outros ethe, como os de enunciadores otimista, porque
pensam a morte como uma passagem a uma outra vida; e o de um sujeito enunciador
que vê a morte do outro apenas como uma interrupção passageira.
REFERÊNCIAS
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* Raquel Vaccari de Lima Loureiro. Endereço eletrônico: [email protected]. Doutoranda em
Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP.