UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS
FACULDADE DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
MESTRADO
DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS REPRESENTAÇÕES DE DIONI SO NO
IMAGINÁRIO ÁTICO (SÉCULOS VII a V a.C.)
LEANDRO MENDONÇA BARBOSA
GOIÂNIA
2010
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
2
LEANDRO MENDONÇA BARBOSA
DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS REPRESENTAÇÕES DE DIONI SO NO
IMAGINÁRIO ÁTICO (SÉCULOS VII a V a.C.)
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás como requisito para obtenção do grau de Mestre em História. Área de Concentração: Culturas, Fronteiras e Identidades Linha de Pesquisa: História, Memória e Imaginários Sociais Orientadora: Profª. Dr.ª Ana Teresa Marques Gonçalves
GOIÂNIA
2010
3
LEANDRO MENDONÇA BARBOSA
DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS REPRESENTAÇÕES DE DIONI SO NO
IMAGINÁRIO ÁTICO (SÉCULOS VII a V a.C.)
Dissertação defendida pelo Programa de Pós-Graduação em História, nível Mestrado, da
Faculdade de História da Universidade Federal de Goiás, aprovada em ____ de
______________ de ______, pela Banca Examinadora constituída pelos seguintes professores:
Professora Doutora Ana Teresa Marques Gonçalves – UFG
Presidente
Professora Doutora Maria Beatriz Borba Florenzano – USP
Membro Externo
Professora Doutora Luciane Munhoz de Omena – UFG
Membro Interno
Professor Doutor Carlos Oiti Berbert Junior – UFG
Suplente
4
AGRADECIMENTOS
É hora de agradecer. Por vezes isto é uma coisa clichê. Por vezes é algo emocionante. O
caso é que é necessário. Sem a ajuda e o apoio de algumas pessoas este trabalho não aconteceria.
A primeira e primordial ajuda foi sem dúvida de minha família. Financeiramente e moralmente
ela me apoiou em todas as fases do meu estudo; sem ela o término deste trabalho seria incerto.
Em igual relevância devo agradecer minha orientadora: Profª Dr.ª Ana Teresa Marques
Gonçalves. Nossa relação pode ser resumida em uma palavra: confiança. Confiança por aceitar a
orientação, dando-me a oportunidade de trabalhar com a área que eu realmente gostaria, mesmo
que muitos historiadores que respeito me dissessem que isto não aconteceria, pois muitos eram
os empecilhos. Confiança também por aceitar me orientar a quase mil quilômetros de distância.
Obrigado Ana, por toda a confiança depositada em mim.
Como bom historiador, sei que jamais poderia me desvencilhar de meu próprio passado;
desta forma a Universidade Federal de Mato Grosso do Sul constitui-se o ponto de partida de
minha carreira, e conseqüentemente alguns professores que nela estiveram ou ainda estão. Ao
Prof. Dr. Paulo Marcos Esselin devo, sem sombra de dúvidas, a função de meu ofício de
historiador. Obrigado professor por, ainda na graduação, me oportunizar ensinamentos que me
moldaram como profissional e como pessoa. Da mesma forma agradeço ao Prof. Dr. Cesar
Campiani Maximiano, que me proporcionou a oportunidade de escrever um trabalho realmente
histórico. Ao Prof. Dr. Gonçalo Santa Cruz de Souza, devo o auxilio para elaboração de meu
pré-projeto de Mestrado, que muito me ajudou quando do processo de seleção, e também por
sempre ter me prestigiado como profissional. Faz-se necessário agradecer também o Prof. Dr.
José Carlos Ziliani, por toda a ajuda concedida nestes tantos anos de convivência.
Já a vivência na UFMS como professor foi, apesar de bem diferente da vivência como
acadêmico, tão gratificante quanto. Agradeço aos meus alunos e orientandos pela compreensão
de, muitas vezes, ter de me ausentar por compromissos com a Pós-Graduação. Agradeço também
a todo o corpo docente do curso de História do CPTL, principalmente ao Prof. Dr. Fortunato
Pastore, pela amizade, companheirismo, pelas várias dicas acerca de meu tema e pelas tubaínas
de limão.
O tempo que passei na Universidade Federal de Goiás foi um momento ímpar em minha
vida, assim como o tempo na inesquecível cidade de Goiânia. Alguns mestres serão lembrados
para sempre em minha vida profissional: Prof. Dr. Élio Cantalício Serpa, Prof. Dr. Carlos Oiti
Berbert Junior e Prof. Dr. Luiz Sérgio Duarte da Silva, meus professores durante o cumprimento
5
de créditos, foram imprescindíveis para uma visão mais madura deste ainda jovem historiador.
Às integrantes de minha banca – tanto de qualificação quanto de defesa – Prof.ª Dr.ª Maria
Beatriz Borba Florenzano (USP) e Prof.ª Dr.ª Luciane Munhoz de Omena (UFG), meu especial
agradecimento pela atenta leitura e pelos apontamentos, essenciais para o aperfeiçoamento do
trabalho. As falhas contidas neste são de inteira responsabilidade minha. Aos colegas da pós,
agradeço as trocas de experiências e o apoio nos momentos de angústia, seja no corredor da
Faculdade de História ou nas mesas da Pamonharia e do Mercado Popular. Agradeço também a
minha colega de orientação, Alice Maria de Souza, pela ajuda constante, sempre necessária para
alguém que mora longe. Como última menção a querida Goiânia, devo agradecer a alguém
muito especial, a grande amiga Luana Neres de Sousa. Graças ao seu incentivo, meu sonho foi
possível; naquela fria Londrina, em 2005, vi a primeira chama da antiguidade nascer com as
nossas conversas.
Devo agradecer a secretaria da Pós-Graduação, em especial à Neuza, pelo
profissionalismo e compreensão para comigo. Da mesma forma agradeço os funcionários da
biblioteca do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, por abrirem seu
acervo para minha pesquisa, sem nenhuma restrição. De muita valia foi o site do Laboratório de
Estudos sobre a Cidade Antiga – LABECA: www.mae.usp.br/labeca, que proporcionou diversas
traduções de textos aqui utilizados. Ao amigo lusitano Manoel, também meu agradecimento, por
fazer o original do Hino Homérico a Dioniso atravessar on line o Atlântico e chegar até mim.
Devo agradecer também os funcionários da Universidad de Salamanca, por permitirem a
consulta em seu acervo de antiguidades.
Encerrando estes agradecimentos, que julgo tão importante como todo o resto do
trabalho, cabe aqui um agradecimento especial à Jaque, à Karina e ao Dente, família por algum
tempo e companheiros para toda a vida. Agradeço a todos os meus amigos – historiadores ou
não; com vocês tenho a certeza de que mesa de bar também é lugar de se fazer história. Termino
agradecendo ao povo brasileiro, pois tenho consciência de que pagaram muito caro para que eu
pudesse realizar meu trabalho. À Dona Maria Antônia, catadora de latinha, meu muito obrigado.
6
SUMÁRIO
RESUMO................................................................................................................................08
ABSTRACT............................................................................................................................09
INTRODUÇÃO......................................................................................................................10
CAPÍTULO 1 – A REPRESENTAÇÃO DIVINA DURANTE O PERÍODO HOMÉRICO E
SUA INSERÇÃO NA POLÍTICA E NA SOCIEDADE........................................................13
1.1. A questão da representação.............................................................................................13
1.2. O imaginário e o mito: inter-relações e características conceituais.................................19
1.3. Os períodos micênico e homérico: organização e política...............................................30
1.4. Dioniso no Mediterrâneo..................................................................................................38
1.5. O Hino Homérico a Dioniso.............................................................................................56
CAPÍTULO 2 – PISÍSTRATO E AS TRANSFORMAÇÕES RELIGIOSAS NO PERÍODO
ARCAICO: O CASO DA DIFUSÃO DO DIONISISMO PELO PODER
TIRÂNICO..............................................................................................................................63
2.1. Pisístrato, o tirano demagogo da obra Histórias, de Heródoto.........................................63
2.2. Pisístrato, o tirano moderado da Constituição de Atenas, de Aristóteles.........................80
2.3. A difusão da memória religiosa através da questão artística: as representações
dionisíacas na cerâmica ática do período arcaico....................................................................89
2.4. Os Pisistrátidas, o fim da tirania ateniense e o governo de Clístenes.............................112
CAPÍTULO 3 – DIONISO NO PERÍODO CLÁSSICO: A FORMATAÇÃO DA IMAGEM
E DO CULTO NA TRAGÉDIA ATENIENSE....................................................................118
3.1. Ascensão de Péricles e apogeu da democracia...............................................................118
3.2. A questão do rito............................................................................................................125
3.3. O teatro democrático do século V e a imagem de Dioniso............................................139
3.4. As Bacantes e a imagem do deus Dioniso......................................................................148
CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................................184
7
BIBLIOGRAFIA...................................................................................................................189
A) Documentação Textual.....................................................................................................189
B) Obras de Referência.........................................................................................................189
C) Obras Gerais.....................................................................................................................189
D) Sites..................................................................................................................................200
8
RESUMO
O presente trabalho tem como intuito investigar como as representações de um deus
grego – Dioniso – foram se modificando conforme o passar dos séculos e dos momentos
históricos. A escolha em Dioniso se deu, primordialmente, por se tratar de um deus sem uma
definição clara: ora deus das festas, ora deus violento; ora um homem selvagem e ruralizado;
ora um efebo efeminado. Toda esta ambigüidade faz de Dioniso um deus com características
únicas, capaz de aparecer tanto em ocasiões religiosas e de celebrações, sempre com seu
vinho, quanto em momentos políticos e de grandes transformações sociais, como no caso da
tirania ateniense.
São diversos e variados os tipos de documentos que utilizaremos nesta dissertação.
Desde um Hino Homérico, passando por obras clássicas como a Ilíada e a Odisséia; relatos
históricos como Histórias e Constituição de Atenas, terminando em uma obra teatral, As
Bacantes. Além de documentação textual, trataremos também de documentos iconográficos:
os vasos e ânforas que representaram o deus Dioniso em diversas épocas distintas da história
ateniense.
Palavras-Chave: Dioniso; Pisístrato, teatro grego; As Bacantes; Eurípides
9
ABSTRACT
Key-words:
10
INTRODUÇÃO
Passados seis anos da publicação no Brasil do clássico sobre Dioniso, intitulado
Dionisismo, poder e sociedade na Grécia até o fim da época clássica, de autoria do
professor José Antonio Dabdab Trabulsi, poucas coisas sobre Dioniso foram discutidas neste
intervalo de tempo. O chamado deus do vinho, que ganhou grande notoriedade no meio
historiográfico brasileiro com os estudos de Trabulsi, vem sendo pouco ou quase nada
estudado desde então por outros especialistas da Antiguidade.
Este trabalho, seis anos depois, propõe uma leitura acerca de Dioniso, seu culto e as
suas representações imagéticas que, ora se assemelham, ora se distanciam das conclusões
apresentadas por Trabulsi. Queremos deixar claro que a obra Dionisismo, poder e sociedade
na Grécia até o fim da época clássica serviu como ponto norteador dos nossos estudos desde
o início, e a excelente pesquisa que esta obra apresenta elucidou muitos aspectos
completamente desconhecidos por nós. Não é nossa intenção nem esgotar o debate, muito
menos realizar uma tentativa de ultrapassar esta obra em qualidade e competência teórica; o
que pretendemos é uma outra abordagem historiográfica, com um aporte teórico distinto e
algumas fontes que não foram contempladas pela obra de Trabulsi, o que é normal quando se
pesquisa um assunto tão rico historicamente.
Dioniso e seu culto foram assuntos estudados pela mais diversa gama de
especialistas, nos mais distintos espaços de tempo – inclusive pelos próprios gregos. Porém,
foi com a obra O Nascimento da Tragédia, de Friedrich Nietzsche, nos tempos modernos,
que uma imagem una de Dioniso foi colocada e assim reverenciada. Dioniso muitas vezes
torna-se até mais nietzscheniano do que grego. As características exaltadas por Nietzsche
acabam por “modelar” uma só faceta do deus, como se as divindades gregas possuíssem
somente uma face, uma máscara. A proposta contida no trabalho é a de perceber que o deus
não é tão “moderno”, como às vezes os leitores de Nietzsche querem perceber. O deus é
grego e possui muito mais especificidades da Antiguidade do que a imagem que se formou a
partir do que Nietzsche apresenta.
Alguns são os nossos objetivos com esta pesquisa. O principal deles é realmente
perceber como se configurava esta religião em Atenas e, como um culto que antes era tão
misterioso, se transforma em uma grande festa para os habitantes da Ática. Da mesma forma,
como um deus que em períodos remotos era representado com uma imagem passa a adquirir
uma imagem distinta. Queremos constatar como o poder político influência no imaginário,
11
por meio das manifestações religiosas.
Da mesma forma, diversos aspectos da cultura grega são por nós abordados neste
trabalho. Desde a religiosidade até as manifestações teatrais estão analisadas como forma de
compreender as especificidades deste imaginário helênico. Pretendemos estudar o poder não
de uma forma fechada, mas de uma forma ampla. Neste trabalho, abarcaremos as diversas
relações de poder com a sociedade, e deste com a cultura e com o cotidiano, isto é, de que
forma a política influencia os costumes e de que forma esta é influenciada por estes.
No capítulo um – que se subdivide em cinco partes – tratamos de algumas questões
conceituais pertinentes à nossa temática e às nossas fontes. Conceitos como representação,
mito e imaginário são tratados por meio de uma discussão teórica que facilite a compreensão
destas categorias como métodos de análise. Também situamos o contexto histórico do século
VII e como Dioniso aparece neste momento. O Hino Homérico a Dioniso, além da Ilíada e
da Odisséia, são as fontes tratadas neste primeiro capítulo. O Hino configura-se como uma
rica fonte acerca do imaginário helênico a respeito de Dioniso. Das obras Ilíada e Odisséia,
de autoria de Homero, estão analisadas as passagens particulares que remetem a Dioniso.
No segundo capítulo, que está subdivido em quatro tópicos, trataremos do período
seguinte: o arcaico. No século VI, várias transformações políticas e sociais ocorreram na
Ática; estas transformações afetaram sensivelmente os aspectos religiosos de Atenas. A
tirania de Pisístrato e, posteriormente, a de seus filhos, faz com que Dioniso e seu culto
adentrem no civismo da polis, junto com os seguidores do deus. Heródoto, em sua obra
Histórias e Aristóteles, na obra Constituição de Atenas, narram a nova forma de governo que
transfigurou vários aspectos de Atenas. Pretendemos analisar como a imagem de Dioniso
era retratada no início da tirania e como ela se transformou com o passar das décadas. Oito
imagens de cerâmica da época foram selecionadas por nós para percebemos como estas
transformações ocorreram, no que se refere as questões imagéticas.
No terceiro capítulo, que também está subdividido em quatro partes, tratamos do
período democrático. A hegemonia de Atenas com a vitória na Guerra Greco-persa faz com
que a economia da Ática conheça seu momento mais pujante, e isto permitiu que o governo
de Péricles tenha tido tanto sucesso. Junto com a democracia, surge também uma nova forma
de cultuar Dioniso. O deus, que anteriormente era ruralizado, é introduzido na cidade pela
tirania e, na democracia, o culto dionisíaco passa a fazer parte do calendário oficial de festas
atenienses. O capítulo conta ainda com uma discussão teórico-conceitual acerca do rito, e
com a análise de duas fontes. A primeira é a obra Poética, também de autoria de Aristóteles,
12
na qual o filósofo tece uma análise do teatro ateniense. A última fonte é a peça As Bacantes,
escrita no finalzinho do século V, pelo tragediógrafo Eurípides. Esta peça, que é a principal
obra que aborda Dioniso e seu culto, possui inúmeros elementos caros ao dionisismo, e
pretendemos realizar uma leitura que possa elucidar aspectos do deus e de sua religiosidade
no período clássico.
Por último, vale ressaltar que não utilizaremos a sigla a.C – antes de Cristo – após os
séculos por tratarmos somente de períodos anteriores ao nascimento de Cristo. Quando for
necessário citar algum século depois do nascimento deste, utilizamos a sigla d.C – depois de
Cristo. Devemos deixar claro também que as citações de obras em inglês, espanhol, francês e
italiano foram traduzidas para o português por este autor. Da mesma forma, nos apoiando em
traduções já reconhecidas de vários documentos textuais, somos responsáveis por sua citação
em português.
13
CAPÍTULO 1
A REPRESENTAÇÃO DIVINA DURANTE O PERÍODO HOMÉRICO E SUA
INSERÇÃO NA POLÍTICA E NA SOCIEDADE
1.1 A questão da representação
Tratar deste novo campo historiográfico – a chamada História Cultural – mostrou-se
um desafio com a expansão dos trabalhos com esta temática, ao contrário do que poderia
parecer à primeira vista. Com o desenvolvimento cada vez maior de pesquisas neste campo,
muita coisa passou a ser denominada de História Cultural, acabando por banalizar este novo
viés historiográfico. Não é nossa intenção neste trabalho realizar uma exaustiva análise sobre
a trajetória da escrita da história até culminar na História Cultural, nem pontuar as
contribuições deste campo para as ciências humanas, haja vista que vários autores já se
debruçaram nestas temáticas com maestria. A intenção é compreender como o conceito de
representação surgiu dentro dos trabalhos de História Cultural e de que forma ele serviu as
necessidades de nossa pequisa.
Krzysztof Pomian caracteriza esta chamada História Cultural como uma história dos
semióforos. Os semióforos, simplificadamente, são qualquer objeto que possa representar
signos deixados por um indivíduo ou uma sociedade, desde um lápis e um livro até um ídolo
religioso ou uma construção tecnológica, aproximando-se assim da teoria semiótica. O autor
também utiliza a linguagem como semióforo e parte de uma análise estrutural, unindo cultura
e linguagem para a compreensão do conjunto de sistemas de signos que formam uma
sociedade (POMIAN, 1998:89). São estas representações materiais que passaram a ser
agregadas pela História Cultural, como atenta Carlo Ginzburg:
Pomian, por sua vez, para entender o que unifica os objetos tão díspares que encontramos nas coleções, partiu das ofertas funerárias: nelas reconheceu, assim como nas relíquias, nas curiosidades, nas imagens, “intermediários entre o aquém e o além, entre o profano e o sagrado [...] objetos que representam o distante, o escondido, o ausente [...] intermediários entre o espectador que os mira e o invisível de que provêm [...]” (GINZBURG, 2001:93).
14
O termo representação1 foi utilizado no final do século XIX, dentro dos estudos de
Émile Durkheim e Marcel Mauss sobre os povos ditos primitivos, nos quais estes pensadores
analisavam as formas integradoras de vida social por meio das pistas deixadas pelas
representações imagéticas, discursivas, ritualísticas e normativas (PESAVENTO, 2005:39).
As representações coletivas da obra de Durkheim mais tarde foram substituídas por novas
formas de análise, como as representações sociais formadas através da psicologia social,
mais flexíveis do que as representações coletivas, por facilitarem a comunicação e
garantirem os interesses comuns entre os membros de um mesmo grupo (SANTOS,
2008:20). Porém, com a ascensão da já citada História Cultural, a representação toma outras
formas, principalmente com os estudos de Jacques Le Goff e Roger Chartier. O termo
representação social substitui o termo mentalidades, do início do século. Como afirma
Sandra Pesavento:
Representar é, pois, fundamentalmente, estar no lugar de, é presentificação de um ausente; é um apresentar de novo, que dá a ver uma ausência. A idéia central é, pois, a da substituição, que recoloca uma ausência e torna sensível uma presença (PESAVENTO, 2005:40).
A representação engloba o simbólico de uma sociedade. É o que ela deixa
representado – muitas vezes sem intenção – em seu corpo social:
A cruz significa o Cristo. Ela não o substitui, mas é uma parcela dele, ou seja, é o Cristo que se significa na cruz e não o inverso. Em termos lingüísticos e da questão do todo representado na parte, Cristo está inteiramente presente nesse objeto. Assim também, o machado de Xangô faz presente para os seus adeptos a divindade Xangô. Essa divindade está no machado (LAPLANTINE & TRINDADE, 2003:14 – 15).
Entretanto, deixemos claro que a representação não se trata de mentira ou fantasia. O objeto
representado é a presença que torna a ausência palpável, material. A cruz torna a ausência
material de Cristo presente, assim como o martelo de Xangô, a estátua de Minerva na Roma
antiga ou a máscara de Dioniso no teatro grego.
Na definição de Carlo Ginzburg, na obra Olhos de Madeira: nove reflexões sobre a
distância, a representação é um termo que traz em sua essência ambigüidades, por tornar real 1 Não iremos discorrer sobre a questão filológica da palavra representação, para isto ver: SANTOS, Dominique Vieira Coelho dos. As representações da cristianização da Irlanda Celta: uma análise das cartas de São Patrício (V séc.d.c.). Goiânia: Universidade Federal de Goiás; Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia; Departamento de História, 2008. (Dissertação de Mestrado)
15
algo ausente: “a representação faz as vezes da realidade representada e, portanto, evoca a
ausência; por outro, torna visível a realidade representada e, portanto, sugere a presença”
(GINZBURG, 2001:85). Com esta presença, podemos entender os semióforos de Pomian;
por meio dos objetos – os signos – que uma sociedade nos lega – no nosso caso a sociedade
grega antiga – é que podemos compreender de que forma a ausência, no caso o deus Dioniso,
é representada para tornar o deus presente no corpo de cidadãos helênicos. Todavia, a
representação de que tratamos aqui não é o real – e muito menos a mentira, como já
elucidamos. A representação é parte do real e não existe sem ele: “a representação e o real
são interdependentes, um não existe sem o outro, criando-se uma aproximação com uma
espécie de voz média do pensamento.” (SANTOS, 2008:34).
Atualmente, o maior nome da História Cultural quando se trata de representação –
principalmente as representações sociais – é sem dúvida o historiador Roger Chartier.
Chartier faz parte da terceira geração da Escola dos Annales, integrando a chamada Nova
História. Discípulo do sociólogo Pierre Bourdieu e crítico da teoria semiótica do etnólogo
Cliffor Geertz, Chartier está preocupado em refletir como uma realidade social é construída e
de que forma esta sociedade a representa; a representação para o historiador parte de um
objeto ausente que é substituído por uma imagem material, que por sua vez irá reconstituir
uma memória (SANTOS, 2008:22). Chartier será um grande crítico, tanto da visão
tradicional de história, quanto da história pautada em análises economicistas. O autor lega à
História Cultural a retomada das análises da História Social:
Trabalhando sobre as lutas de representações, cujo objetivo é a ordenação da própria estrutura social, a história cultural afasta-se sem dúvida de uma dependência demasiado estrita em relação a uma história social fadada apenas ao estudo das lutas econômicas, mas também faz retorno útil sobre o social, já que dedica atenção às estratégias simbólicas que determinam posições e relações e que constroem, para cada classe, grupo ou meio, um “ser-percebido” constitutivo de sua identidade (CHARTIER, 2002:73).
Contudo, Roger Chartier será muito criticado por esta posição. Para Ciro Flamarion
Cardoso, Chartier é um pós-moderno reducionista que recusa a “tirania do social”, mas
propõe uma “tirania do cultural”. Cardoso considera que Chartier critica um reducionismo
propondo outro reducionismo (CARDOSO, apud: SANTOS, 2008:23). Concordamos com
Ciro Flamarion Cardoso no que tange às análises de Roger Chartier. Compreendemos que
considerar somente a História Cultural – e especificamente este campo, chamado de Nova
16
História – para realizar uma análise do termo representação e abordá-lo em nossa pesquisa
seria simplificar demasiadamente esta discussão que adentra no campo filosófico e
sociológico. É por isso que lançamos mão das teorias do filósofo Henri Lefebvre2, que noz
traz pontos que divergem das análises mais utilizadas, quando tratamos de representação,
para conceder o devido crédito à complexidade deste conceito e às diversas reflexões que ele
abarca.
Estamos interessados nesta dissertação em uma obra de Lefebvre que está longe de
ser um clássico – como as obras que citamos em nota – aliás, é uma obra pouco conhecida e
pouco citada e quase completamente desconhecida pelos estudiosos brasileiros das ciências
humanas, haja vista que não é utilizada e nem mesmo citada nos estudos no Brasil. Tão
desconhecida que não obteve tradução para o português e os principais historiadores que
tratam do conceito de representação, como Sandra Jatahy Pesavento, sequer a citam. Trata-
se do livro La Presencia y La Ausência: Contribuición a la teoria de las representaciones. A
geografia, que é a ciência base de Lefebvre, também pouco a utiliza. A exceção são os
trabalhos relacionados à educação. Em um breve levantamento de artigos, conseguimos um
número significativo de trabalhos pedagógicos que tratam das representações em sala de aula
a partir da perspectiva de Henri Lefebvre. A edição francesa desta obra foi publicada em
1980, porém desde 1983 existe uma edição em espanhol.
Lefebvre foi leitor dos principais pensadores dos séculos XVIII e XIX, que vão de
Nietzsche a Schopenhauer, passando por Freud, Lukács, Durkheim e outros. O filósofo
francês, em sua obra, nos escreve sobre uma crise do próprio termo representação, que
emerge de um conceito histórico e tem um caráter dinâmico e mutante, conforme o próprio
curso da história se modifica. Pautado na idéia de uma “teoria crítica das representações”, o
filósofo propõe uma discussão filosófica sobre o termo, sem caracterizá-lo como imutável –
como muitos marxistas até então haviam feito – impedindo assim uma análise aprofundada
da essência filosófica deste conceito, sem a idéia reducionista de verdadeiro e falso. A
alienação não está na representação como essência, mas sim como esta representação é
manipulada e falseada. Henri Lefebvre aponta que as primeiras manifestações de poder
2 Henri Lefebvre pertenceu a um grupo de marxistas franceses integrantes da resistência francesa, intelectuais que lutaram contra o nazismo na Europa da primeira metade do século XX, além de filiado ao Partido Comunista Francês. Professor de filosofia em várias universidades, desfilia-se do partido comunista em 1958 e passa a ser professor na Universidade de Estrasburgo e posteriormente na Universidade de Nanterre – Paris X. Embora muito lido na Europa, Lefebvre torna-se conhecido no Brasil um pouco tardiamente, com o aumento de estudos sobre a cidade, o urbanismo e o espaço, assuntos que tratam seus principais clássicos, como A Cidade do Capital, A Revolução Urbana e O Direito à Cidade.
17
através de uma manipulação das representações acontecem nas tragédias – desde os gregos –
por lançarem mão de mitos que se formam na mente individual e coletiva e padronizá-los,
pasteurizando o imaginário. Esta manipulação também se dá por meio de arquiteturas
pomposas, estátuas dos deuses e espaços construídos para a prática do sagrado:
Onde se encontra com o mesmo título que na arquitetura uma representação do poder? Na tragédia. Desde os trágicos gregos até os do século XVII na França, passando pelos isabelinos, a tragédia é uma tragédia do poder. Marca o fim dos mitos e símbolos do poder e o início das representações (LEFEBVRE, 2006:90).
Crítico de Heidegger, que considerava a representação uma apresentação debilitada do real,
Lefebvre lança mão de suas leituras de Hegel e considera este conceito como um nível a ser
superado, porém jamais desprezado:
Entre os filósofos, provavelmente foi Hegel quem elaborou a teoria mais sutil das representações. Para ele (...) a representação é uma etapa, um nível, um momento do conhecimento. É preciso passar por ela, para sair dela superando-a. A reflexão sempre pode voltar a cair neste nível médio (...) entre o sensível e a abstração verdadeira, conceito e idéia (...) (LEFEBVRE, 2006:23).
Embora Lefebvre credite a Hegel este reconhecimento por suas reflexões, este
discorda do filósofo em relação à simples superação da representação. Para Lefebvre, o
problema não é a superação do representado, mas a inclusão deste como parte de um todo, já
que a representação ocupa um lugar entre a presença e a ausência. O que torna presente a
ausência é a representação deste ausente. É o que representa que torna palpável o
representado. Está formado o signo, o objeto que leva à representação ou a anula, pois a
substitui em nome da linguagem e faz a representação perder o sentido.
Na obra A Interpretação das Culturas, o antropólogo Clifford Geertz lança mão de
uma teoria muito difundida nas ciências sociais: a semiótica. Não faremos neste trabalho um
aprofundamento na análise do conceito de semiótica por entendermos que não é o foco de
nossa pesquisa a teoria da história como categoria de análise. Iremos aqui somente elucidar
como Geertz compreende a relação dos indivíduos com o símbolo. Simplificadamente, os
sistemas simbólicos em uma sociedade são aquilo que ela deixa de vestígio material. Em
uma religião, seu conjunto de símbolos sagrados é que forma o sistema religioso (GEERTZ,
1989:95). Os símbolos não são simplesmente imagens projetadas, eles partem de um
18
significado próprio de interpretação hermenêutica. Um crucifixo, um tirso ou uma inscrição
africana são os símbolos deixados por uma religião como pistas para o pesquisador analisar
sua composição. A análise de símbolos será, em partes, utilizada neste trabalho como auxilio
à leitura da religiosidade grega, em seus vasos e seus documentos escritos. Lefebvre
reelabora este conceito de Geertz e refuta a afirmação de que o signo está associado
estritamente à linguagem; se o signo for encerrado na linguagem, a representação perde o
sentido. Propõe então uma nova abordagem para o significado do signo:
O signo e a significação em nível da palavra desprendem-se das coisas e do conhecimento em geral, para voltarem autônomos. O signo não é senão a representação de uma representação. Quando se olha um objeto como representando outro, esse objeto se chama signo e tem função de signo. (...) (LEFEBVRE, 2006:25).
Como marxista, Lefebvre procura a essência do conceito que estuda no próprio Karl
Marx. Entretanto, o filósofo irá discordar categoricamente da maioria das reflexões acerca do
termo representação elaboradas por Marx, todavia, sem ignorar o econômico, como faz, por
exemplo, Chartier. A representação em Marx configura-se como um produto ideológico da
mente humana, manipulada pelas forças de produção para mutilar a práxis, ou seja, uma
simples dissimulação do real elaborada por uma classe dominante, produzindo assim a
alienação. Este conceito foi revisto por Lefebvre, já que a representação não é uma
“mentira” de classes, como a ideologia. Filosoficamente – e é este o campo de Lefebvre mais
se preocupa – a representação não parte da dualidade verdadeiro X falso. A racionalização
excessiva dos marxistas acaba por trancafiar a representação em uma redoma de ideologia e
alienação. A relação com o real e a definição deste por imagens – o que forma o imaginário,
como veremos no tópico a seguir – é que cria na memória individual ou coletiva subsídios
para uma possível manipulação. Contudo, a imaginação por meio de um simples objeto
representado está presente em todos os indivíduos e é a partir desta noção que queremos
analisar as representações dionisíacas. Como o poder se utilizou destas representações nos
interessa e muito. Destarte, temos que ter como certo que a imagem e as representações de
Dioniso existiam independentemente de quaisquer artimanhas dos quais o poder iria lançar
mão para modificar sua representação.
A representação não é, portanto, um objeto sólido, mas uma teia de dinâmicas sociais
mutáveis e transformadoras que ocupam os intervalos entre a presença de um objeto ou de
uma idéia – como no caso das divindades – e a ausência deste mesmo objeto. Somente com
19
uma reflexão do conceito é que o estudioso pode identificar representações enganosas que se
formam e ganham força.
A formatação do termo representação que tentamos elucidar neste primeiro tópico
pode ser visto, por exemplo, nas palavras de Clarice Lispector no livro A Hora da Estrela –
ou a do narrador misterioso que Clarice toma forma. A alagoana Macabea nunca mais
conseguiu se alimentar como deveria após, ainda em sua infância, ter comido gato frito. Ela
adorava gatos e não concebia ter comido um; um anjinho frito, com as asas entre os dentes.
Para Macabea não importavam as crenças religiosas – o próprio narrador afirma que a
nordestina jamais entrou em uma igreja após a morte de sua tia beata – pois “ela acreditava
em anjo e, porque acreditava, eles existiam” (LISPECTOR, 1995:56).
Pretendemos com esta citada elucidar que a representação existe como um caráter
psicológico do indivíduo e que, independente das relações de poder vindas de cima – seja o
estado, a religião ou os diversos discursos – a mente humana está suscetível à imaginação. O
que percebemos ao longo da história é como estes poderes podem transformar este
psicológico individual, mas não o determinam. Vemos isto também com a outra categoria de
análise por nós estudada: o imaginário.
1.2. O imaginário e o mito: inter-relações e características conceituais
Nossa intenção com esta dissertação é analisar alguns mitos que englobam o deus
Dioniso e compreender como ele se configura na sociedade helênica. Para isto, definirmos
um conceito é primordial: o imaginário. Porém, para entendermos o conceito de imaginário
não basta analisar a historiografia que tratou desta problemática; se faz necessário definir um
outro conceito, o de mito, que por sua vez deve ser entendido como estruturas complexas,
por meio do método estruturalista3. Esta teia teórica nos dá subsídios para a análise da
conjuntura estudada, bem como um aporte para a análise das diversas fontes que esta
dissertação abarca.
Comecemos com a questão do estruturalismo, por entendermos que é um conceito
que permeia as discussões historiográficas realizadas neste tópico em quase toda sua
3 Em poucas palavras, podemos dizer que este método, surgido primordialmente na França, tem como base a análise de estruturas sociais. Estas estruturas são abstratas, mas se interligam socialmente, cirando uma teia de relações. Os estruturalistas analisam as estruturas sociais em um caráter dinâmico, com suas diferenças e suas ordens. Algumas destas estruturas, como a linguagem e o mito, se relacionam. Os mitos são estruturados como linguagem.
20
totalidade. Os dois principais autores que trabalharemos para conceituar mito – o filólogo
Marcel Detienne e o historiador Jean-Pierre Vernant – partem de uma análise estrutural para
o estudo da religiosidade grega.
O termo estrutura designa um conjunto de elementos solidários em si; os elementos se
relacionam mutuamente, formando uma totalidade. Não há uma esfera determinando outra –
encontra-se neste ponto uma forte negação do marxismo, não existe a infra determinando a
super, elas se inter-relacionam; a estrutura é mais um todo que uma soma. A abordagem
estrutural também exclui a práxis; é a própria estrutura que explica os processos e não a ação
que os determina. Esta idéia do fim do termo práxis e da infra e da superestrutura em uma
relação de mutualismo encontrou grande aceitação em todas as ciências sociais – inclusive de
muitos marxistas – tendo como Louis Althusser4 um dos únicos e solitários representantes
contra esta nova idéia. Atualmente esta questão é revista por alguns historiadores críticos da
cultura, que não conseguem ver uma sociedade sem práticas culturais: “(...) a cultura não é
apenas estrutura simbólica, mas, também, sistema de práticas (...) (SILVA, 2007:87). As
novas correntes das ciências humanas passaram a não mais compreender a história como uma
linearidade evolutiva, como propunha Marx, no reducionista esquema escravismo –
feudalismo – capitalismo – socialismo – comunismo.
Não é sem motivos que o estruturalismo atinge os historiadores da Antiguidade e
estudiosos dos mitos gregos tardiamente. Uma ciência que em sua elaboração primária nega a
História e os processos históricos não poderia soar bem aos historiadores. Georges Dumézil
foi um dos únicos estruturalistas que, no final da década de 30, estudava as religiões com um
aporte histórico, comparando sistematicamente mitos antigos celtas, gregos e romanos
(DOSSE, 2007:70), creditando assim um valor que outros pensadores do método estrutural
não legaram à História e contrapondo as afirmações de Lévi-Strauss. Dumézil analisa os
mitos indo-europeus como uma estrutura “trifuncional”, diferentemente das analises de infra-
estrutura influenciando a superestrutura:
Sua proposta inicial foi a de que os mitos (...) remetiam a uma estrutura segundo a qual essas mesmas sociedades se imaginavam constituídas pela hierarquia de três funções – mediação sagrada, ímpeto guerreiro e fecundidade laboriosa (...) (PATLAGEAN, 1988:296).
4 Filósofo argelino naturalizado francês, Althusser foi grande crítico do estruturalismo como uma ideologia burguesa, por entender que os aparelhos ideológicos do estado são repressores determinantes em uma sociedade e não estão em relação mútua com outras forças, como afirmavam os estruturalistas. Althusser será muito criticado não só pelos estruturalistas, mas também pelos próprios marxistas ingleses, sobretudo E. P. Thompson.
21
O pensador Dumézil propõe uma nova “mitologia comparada” – já que um antigo
método comparativo entre mitologias já existia – que não possui o intuito de tentar uma
comprovação de que uma mitologia seria melhor ou mais elaborada que a outra, através de
campos lingüísticos e etimológicos. O autor vai creditar à particularidade de cada povo a
formação de sua própria mitologia, como nos informa Marcel Detienne:
O empreendimento intelectual de Dumézil começa com deuses articulados, deuses em agrupamentos, assembléias de potências divinas. Esses deuses dos quais a antiga “mitologia comparada” queria apreender a essência e a etimologia sobre a base de equações lingüísticas, o novo comparativismo, também ele estabelecido no circuito do mundo indo-europeu, privilegia neles a ordem de sua enumeração, suas relações hierárquicas, as formas de oposição e de complementaridade, que permitem explorar os dados “teológicos”, como a tríade pré-capitolina (Júpiter, Marte, Quirino), a tríade dos deuses de Upsala (Odhinn, Thörr, Freyer), a lista dos Âditya na Índia antiga, a das Entidades (os Amasa Spanta) do zoroastrismo no antigo Irã (DETIENNE, 2004:96-97).
Dumézil iria influenciar uma gama de historiadores e estudiosos a partir dos anos 70,
que iniciaram uma análise histórico-estrutural: Pierre Vidal-Naquet, Jean-Pierre Vernant e
Marcel Detienne para a Antiguidade e Jacques Le Goff e Georges Duby para o Medievo. A
aceitação por parte de Le Goff e Duby favorece um vasto prolongamento de descobertas do
estruturalismo para a terceira geração da Escola dos Annales. Embora Vernant fosse
discípulo de Louis Gernet e Marcel Mauss, este enxerga em Dumézil uma análise estrutural
com um pensamento histórico, ideal para as análises históricas da sociedade e do mito grego.
Com suas análises comparativas entre mitos helênicos e védicos, Dumézil converte-se em um
arqueólogo do imaginário indo-europeu (DOSSE, 2007: 70). Entretanto, o autor será
criticado por outros autores que utilizam métodos comparativos diferentes. Carlo Ginzburg
afirma que o método comparativo dumeziliano é insuficiente, porém o próprio Ginzburg se
contradiz, por utilizar deste comparativismo em seu clássico O queijo e os vermes: o
cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição, quando compara a
cosmogonia do moleiro Menocchio com outras cosmogonias similares, como a dos pastores
da Ásia central (BARRERA e PLATAS, 2002:7). As críticas ao modelo de Dumézil
mostraram-se insuficientes.
Pretendemos com estas elucidações partir de uma análise estrutural dos mitos gregos
e do imaginário helênico. Discordamos de vários pontos do estruturalismo clássico, como o
22
caráter atemporal creditado aos mitos e contestado somente por Dumézil. Contudo, temos
como certo que os pesquisadores estruturalistas que utilizamos para analisar tanto as
categorias do imaginário como as do mito não devem ser seguidos unicamente; eleger o
método estruturalista como única categoria de análise – coisa que nem Vernant nem Detienne
realizaram – seria perigoso; a história correria um sério risco de ser legada a mera ilustração.
Possuímos plena consciência das falhas deste método estrutural quando das questões
estritamente históricas e, conseguindo adaptá-lo a uma realidade mais histórica, cotejando
com outros métodos como o próprio marxismo, a lingüística e o culturalismo, acreditamos
que poderemos chegar a uma centrada análise de nosso objeto; ele essencialmente histórico.
Iremos então para esta categoria tão difundida por muitos e ainda criticada por alguns:
o imaginário. Assim como já foi elucidado acerca do conceito de representação, o
imaginário não deve ser visto como mentira ou ilusão. O imaginário e as imagens partem de
um pressuposto real. As imagens projetadas exercem uma função na mente do indivíduo que
as enxerga – como veremos na cerâmica grega, no segundo capítulo – criando assim uma
imaginação que influenciará o indivíduo. Destarte, o imaginário não vem somente ligado a
alguma espécie de poder para influenciar um grupo, ele existe independente das estruturas
dominantes.
O homem cria suas imagens, que ora são influenciadas pelo poder, ora não: ao construir os deuses, o homem toma como referência uma realidade dada que caleidoscopicamente reordena, reestrutura e recria. Nesse processo, o imaginário tem como referência o real, dando-lhe outros sentidos fornecidos pelo material simbólico que utiliza (LAPLANTINE & TRINDADE, 2003:37).
O positivismo difundiu a tendência de que o imaginário e a imaginação se pautavam
em argumentos falsos e passa a ser desvalorizada pelos campos da ciência em voga até então
(DURAND, 2001:10). Evelyne Patlagean elucida-nos que o imaginário como objeto da
história nasce com o enfraquecimento do positivismo pautado na idéia de progresso, da
racionalização proposta pelas Luzes e do romantismo estético nacionalista (PATLAGEAN,
1988: 292). As obras de Michelet, da segunda metade do século XIX, abrem um caminho
para uma reflexão diferenciada na historiografia. Embora o autor esteja pautado na idéia
positivista de nação – estudando os movimentos do povo francês – Michelet analisa o “povo
miúdo” da França em várias especificidades, incluindo a personagem da bruxa, a visão de
natureza e a feminilidade. Porém é no século XX – entre as duas guerras mundiais – que o
23
imaginário como conceito histórico começa a ganhar forma:
O imaginário nele encontra seu lugar na jovem história das mentalidades e instrui-se com os trabalhos dessa última: o além do homem medieval em Marc Bloch, a representação do mundo dos contemporâneos de Rabelais em Lucien Febvre. E, sobretudo, o imaginário de uma época, em todo o seu contexto mental, cultural e social, torna-se objeto essencial de uma história da arte em que se destacam os trabalhos citados adiante, de Émile Male e do maior, Henri Focillon (PATLAGEAN, 1988:293).
Contrariando alguns marxistas que insistem em afirmar que o imaginário foi um
conceito conservador criado para a valorização de uma superestrutura alienante, temos no
próprio Karl Marx algumas importantes reflexões sobre o conceito, como nos mostram
François Laplantine e Liana Trindade:
O conceito de imaginário em Karl Marx explica, através da noção de alienação, a autonomia das instituições econômicas ou religiosas, como produtos independentes das ações humanas, expressando as contradições reais entre o produtor e o produto que passa a ser reificado. O imaginário seria, então, a solução fantasiosa das contradições reais (LAPLANTINE & TRINDADE, 2003:24).
Esta relação de imaginário como um projeto de alienação pelas instituições de poder
já foi revista pelos estruturalistas. A superestrutura marxista – no caso o imaginário – não é
necessariamente produto da infra-estrutura – no caso as instituições econômicas, políticas e
religiosas – mas sim integrante de um sistema estrutural global, podendo influenciá-lo ou ser
influenciado; sobre isto já tratamos. O marxismo enxerga o imaginário em constante
mutualismo com a ideologia. São as ideologias dominantes que influenciam as imaginações
humanas. Embora concordemos que por diversas vezes o imaginário esteja ligado à ideologia
de um grupo, acreditamos que este independe de uma ideologia dominante para existir:
Encontra-se na ideologia, como no imaginário, uma filiação do real, mas no imaginário não há uma imposição de sentidos na representação do social, dirigida a interesses de grupos ou classes sociais (LAPLANTINE & TRINDADE, 2003:26).
Percebemos ao longo da história que diversas vezes este ideológico transformou o imaginário
de um grupo de indivíduos de acordo com os valores que interessam ao grupo social
dominante e de acordo com o que deve ser transmitido para seus adeptos, como é o caso da
24
estrutura religiosa.
Outra espécie de análise do imaginário que obteve grande importância, porém hoje já
está em muitos aspectos superada, é a psicologia analítica de Jung. Jung, juntamente com
outros pensadores como Gilbert Durand e Mircea Eliade, aproximam-se do estruturalismo
nas análises dos mitos imaginários, haja vista que não creditam importância às diversas
especificidades históricas e reduzem as diferentes culturas a uma mesma natureza universal
de fenômenos culturais. Jung acrescenta uma nova categoria na análise do imaginário: os
símbolos. Entretanto, há uma indiferenciação conceitual entre imagens e símbolos
(LAPLANTINE & TRINDADE, 2003: 17); estas duas noções são, para Jung, a mesma coisa,
arquétipos inconscientes que se encontram igualmente nas diversas sociedades.
Georges Balandier apresenta-nos um elaborado panorama do imaginário na
modernidade e na contemporaneidade. Deixemos um pouco de lado a História linear e
façamos o movimento de começarmos a compreender como o imaginário se configura na
sociedade contemporânea para somente então traçarmos esta categoria na Grécia antiga.
Balandier inicia o sexto capítulo de sua obra O Contorno: poder e modernidade afirmando:
“A modernidade parece abolir o imaginário: pelo menos, subverte suas paisagens.”
(BALANDIER, 1997:227). Balandier, quando chega a essa afirmação, está se referindo ao
mundo tecnológico em que estamos inseridos, que movem e modificam rapidamente as
imagens projetadas e nossos referenciais desta, modificando assim o nosso próprio
imaginário. A imaginação de um indivíduo ou de um grupo fica comprometida, pois
passamos a ter o que o autor chamou de “visão instrumental”; tudo passa a ser avaliado em
termos de funcionamento, pela sua eficácia tecnológica (BALANDIER, 1997:227). O
capitalismo muito auxiliou nesta manutenção da modernidade, mas não somente ele. O
contemporâneo tende a desvalorizar as relações interpessoais de imaginação e fantasia entre
os indivíduos de uma mesma estrutura:
Além das dificuldades de ordem econômica, o homem moderno submete-se à dificuldade das organizações e burocracias, das tecnoestruturas. Ele define suas atividades, sua relação com as instituições, sua moradia, determina seu espaço no interior dos grandes complexos urbanos, gerencia seu cotidiano (BALANDIER, 1997:228).
As freqüentes descrenças do homem moderno afetam seu caráter mental que produz o
imaginário. As religiosidades populares são substituídas por religiosidades oficias que já
mostram em que o homem deve crer, como ele deve crer e o que ele deve pedir as suas
25
divindades, empobrecendo assim sua capacidade de dialogar com seus deuses e,
conseqüentemente, com seu imaginário. A banalização cultural que homogeniza as culturas e
a empobrecem apaga as raízes mais significativas da criatividade e produção imaginária de
um grupo. A cultura cria a novidade. Esta novidade entra no cotidiano do homem moderno
com sua excessiva produtividade e provoca a rápida desvalorização dos objetos modernos,
mascarado por uma ideologia de mudança e confecção do que é novo (BALANDIER,
1997:231). Esta ideologia seria a tecnoideologia, que contribui para o desaparecimento de
sistemas de pensamentos tradicionais
Segundo o autor, todas estas mudanças ocorridas na modernidade e fixadas na
contemporaneidade não se mostram capazes de aniquilar completamente o imaginário. Os
indivíduos continuam a criar imagens que exercem a manutenção de uma vida pessoal e
coletiva. O homem moderno vive em um dualismo e assume esta divisão. Laplantine e
Trindade afirmam que de um lado existe a subjetividade, do outro a objetividade. De um lado
a paixão, do outro a razão; o indivíduo passa a se dividir entre o imaginário fantástico que
festeja e a ciência racional que trabalha (LAPLANTINE & TRINDADE, 2003:71). As
pessoas continuam, a partir de suas apreensões, a terem desejos e aspirações. Todavia, a
modernidade transforma o conceito no que o autor chamou de “tecnoimaginário”
(BALANDIER, 1997:233). O “tecnoimaginário” diferiria-se do conceito de imaginário
clássico por unir imaginário e tecnologia, aliando a força das imagens à “magia” das
máquinas modernas. A informática é o melhor exemplo. Mesmo com uma tecnologia que
reforçaria o pensamento racional, a magia desta tecnologia mexe com as fantasias e a
projeção de imagens de um computador – cada vez mais perfeitas – parece reafirmar ainda
mais o encanto do homem por imagens que este não conseguiria explicar tecnicamente. Em
outra obra – O Dédalo: para finalizar o século XX – Balandier aponta que este
“tecnoimaginário” faz do imaginário um refém das imagens. O imaginário só pode traçar um
caminho próprio a partir do momento que se alia às imagens projetadas pela modernidade
(BALANDIER, 1999:133).
Já o imaginário na Antiguidade não parte das mesmas premissas do imaginário na
modernidade. O imaginário na Antiguidade inicia-se com um princípio: o mito – seja ele
religioso, político ou ideológico. Não é preciso dizer que o “tecnoimaginário” ainda não
vigorava nas sociedades antigas; então o imaginário ficaria ligado a categorias míticas e
imagens que permitiriam a manutenção de um poder sobre um determinado grupo. Aqui nos
interessam primordialmente os mitos religiosos e como as esferas políticas e ideológicas
26
manipularam este imaginário religioso como manutenção de suas relações de poder, por
entendermos que, diferentemente da nossa sociedade, a religião permeava todas as outras
esferas sociais, estando em constante mutualismo, sem determiná-las: “uma sociedade, como
a grega, em que a religião estava totalmente imbricada em todos os campos da vida pública e
social” (ZAIDMAN & PANTEL, 2002:5).
A noção de imaginário era conhecida pelos antigos da mesma forma que pelos
modernos, embora os antigos creditassem uma função diferente a este conceito, como Platão.
Não iremos aqui discorrer sobre a noção de imaginário para a filosofia antiga, por sabermos
que isto implicaria na confecção de uma nova dissertação. Vemos aqui somente de que
forma o imaginário e o mito5se relacionavam. Podemos perceber que os gregos possuíam
uma análise própria de seu imaginário contemporâneo – além dos escritos filosóficos – pelas
obras literárias escritas que chegaram até nós e estudadas pelos atuais pensadores:
Apesar das diferenças a respeito da atualidade e as épocas em que o conflito social foi objeto de observação teórica, os antigos também eram capazes de percebê-lo dentro de suas condições, como enfatizou Lukács (1966-67, III, 51), estudando a astúcia de Odisseu e, sobretudo, a tragédia grega, forma privilegiada de percepção do conflito, com projeção coletiva na manifestação cultural que se produziu na antiguidade (PLÁCIDO, 1995:28).
Os diversos mitos interligar-se-iam com várias de suas personagens e com múltiplas
esferas de utilidade:
(...) Assim, no mito de Hermes, o mitema do mediador emerge da bastardia do deus das encruzilhadas, das trocas e do comércio. Filho de Zeus e uma mortal, Hermes é o protetor do bastardo Dioniso, o intermediário de Zeus junto a Alcmena, o intérprete entre Zeus e as três deusas, e o pai de um ser ambíguo: Hermafrodita... (DURAND, 2001:86).
Gilbert Durand chamou de “mitema” esta teia de divindades e suas funções, que estão em
itálico na citação – grifadas pelo próprio autor – que se entrelaçam nesta pequena análise do
mito de Hermes. Lançando mão da idéia estrutural de comparação, analisamos os mitos
religiosos – primordialmente o de Dioniso – em um entrelaçamento de divindades que
variam conforme sua importância na narrativa mítica do deus, mas nunca uma sobressaindo-
5 Para ver a noção de imaginário em Platão e em outros filósofos ver: DURAND, Gilbert. O Imaginário: ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem. Trad. René Eve Levié. São Paulo: Difel Editora, 1999.
27
se sobre a outra.
O mito passa a ser analisado pelas humanidades, como nos coloca Ernest Cassirer,
pelos campos tradicionais da filosofia e da antropologia do século XIX (CASSIRER,
1976:23). Kant irá creditar ao mito uma posição de importância que não era creditado pelos
cientistas até então e irá influenciar os estudos antropológicos de James Frazer e E. B. Tylor
e, posteriormente, será criticado por Lévy-Bruhl. As teorias do animismo de Tylor
consideravam o homem primitivo e seus mitos como puristas e ingênuos. Tylor terá suas
teorias reelaboradas pelos estruturalistas ao longo do século XX, por considerarem que as
análises positivistas de Tylor – que consistiam na tradicional análise investigador X objeto –
e por acreditarem que os mitos são interligados e se relacionam, se manipulam e se
transformam psiquicamente e não simplesmente acontecem pela mente primitiva de
sociedades selvagens. Os estudos realizados por positivistas durante o século XIX levou à
conclusão de que o mito não passava de uma reunião de histórias absurdas e extraordinárias,
estranhas ao ideal cristão ou científico dos intelectuais da época. O próprio Jean-Pierre
Vernant, em entrevista concedida à revista francesa L’Histoire, aponta que desde a
Renascença os mitos gregos vem sofrendo releituras para legitimar as ações humanas:
O erro constante poderia ser o de incluí-los tão perto. Graças à Renascença, na verdade, uma boa parte da cultura européia, cansada da hegemonia cristã quis acreditar ser filha direta da Grécia antiga. Disso surgiu o tema do “milagre grego”, que teve duas expressões sucessivas e complementares. A razão foi inventada pela Grécia antiga, disseram os homens do século XVIII. A invenção do individualismo democrático, acrescentaram algumas mentes dos séculos XIX e XX (VERNANT, 1989:85).
Na primeira metade do século XX, muitas das ações do homem foram legitimadas
por um resgate e uma releitura feitas da Antiguidade, como o fascismo italiano de Mussolini
pautado na soberania do exército romano de outrora. Alguns grupos anticristãos franceses
também realizaram releituras da religiosidade greco-romana para contestar o cristianismo em
voga (BELEBONI, 2000:70). Já a segunda metade do século XX vê florescer estudiosos que
realizam primordiais estudos da Antiguidade e da religião grega6. Um deles é Jean-Pierre
Vernant, historiador francês nascido em 1914. Vernant inicia seus estudos altamente
6 No Brasil, os estudos acerca do conceito de mito e da mitologia acontecem tardiamente, no final da década de 1970. Eudoro de Souza, da Universidade de Brasília, passa a publicar obras com uma reflexão filosófica sobre a mitologia; como exemplo tem-se: SOUZA, Eudoro de. Mitologia. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1980.
28
influenciado pelo antropólogo Marcel Mauss. Mauss, discípulo de Durkheim, estuda os
mitos como um sistema simbólico institucionalizado e formado caleidoscopicamente,
englobando a língua, a maneira de classificação, de coordenação e agrupamento dos fatos,
formando um “sistema dinâmico” e uma totalidade. Embora esta teoria se assemelhe ao
posterior estruturalismo, Levi-Strauss será um ferrenho crítico de Mauss, alegando que o
antropólogo “não tenha ultrapassado o limiar que permitiria completar suas próprias
‘descobertas’” (ANDRADE, 2007:244).
Embora Mauss tenha ido somente até um primeiro ponto nas análises míticas, este vai
ascender em Vernant os estudos da Antiguidade e, juntamente com a teoria de Louis Gernet
– da reciprocidade na Grécia antiga7 – Vernant iniciará seus estudos sobre a antropologia
grega e o papel da filosofia antiga nesta antropologia. Os estudos das obras de Meyerson
fazem Vernant definir um novo ponto de vista, o da psicologia histórica, que vê no mito uma
forma de pensar do homem e como este lida com o que fantasia e não conhece, fazendo-o
também abandonar suas antigas correntes de análise, como o marxismo8. Nos anos finais da
década de cinqüenta, Vernant entra em contato com Dumézil e Levi-Strauss e arraiga
definitivamente seu interesse pelos mitos. Dumézil será o principal teórico a influenciar
Vernant no estudo da religiosidade grega, com a sua já falada estrutura “trifuncional”,
analisando o mito hesiódico das raças9. A inserção no método estruturalista faz com que
Vernant rompa com o Partido Comunista Francês e abandone completamente os estudos
marxistas, integrando-se no campo das estruturas, porém com várias críticas a este. Vernant
cria um método próprio para enxergar as estruturas míticas e antropológicas:
Estruturalista, é verdade, mas avesso às “gramáticas gerais”, como faz questão de lembrar em mais de uma ocasião. Se a compreensão do material mítico, sua lógica e mecanismos de funcionamento, aproxima o analista das formulações da lingüística estrutural e de Lévi-Strauss – sobretudo em função das noções de sistema, de sincronia, das relações de oposição e da idéia de homologia – a perspectiva meyersoniana ao lado da pesquisa
7 Para compreender a teoria da reciprocidade ver: ANDRADE, Marta Mega de. “Jean – Pierre Vernant à Vizinhança de Marcel Mauss”. In: Phoînix – Laboratório de História Antiga/UFRJ. Rio de Janeiro: Mauad Editora; ano XIII, 2007. 8 Seu encontro com Marx dará ainda na juventude, com o engajamento na Associação Internacional dos Ateus Revolucionários, na Resistência e posteriormente ao Partido Comunista Francês (PEIXOTO, 2002:246). Sua aproximação com as teorias marxistas levam o autor a dedicar uma longa pesquisa sobre a noção de trabalho em Platão. 9 Para ver a aplicabilidade prática nos mitos gregos feita por Jean-Pierre Vernant da teoria de Dumézil ver: VERNANT, Jean-Pierre. Mito e pensamento entre os gregos: estudos de psicologia histórica. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
29
histórica contribuem para dar ao estruturalismo de Vernant feições sui generis. A compreensão dos sistemas simbólicos e de suas estruturas não elimina o desafio de perceber como esses sistemas nascem, transformam-se e desaparecem (PEIXOTO, 2002:247).
Para Vernant, o mito é uma manifestação humana que independe de sua bagagem de
vida privada ou social. Este conceito é a forma mais eficaz de se estudar uma sociedade,
principalmente a grega, em que a religião – diferentemente dos dias de hoje – ocupava todas
as esferas sociais. As análises que se iniciam em Mauss encontram em Vernant uma
complementaridade. Grande parte da obra do autor é desconstrutora, pois compara aspectos
da contemporaneidade com o mundo antigo. Vernant acredita que somente partindo desta
noção totalizadora podemos compreender o mundo grego com propriedade sem assimilá-lo,
como fazem alguns autores que analisamos mais à frente:
Recorda ele [Vernant] nessa ocasião que o historiador não pode construir um modelo interpretativo a partir de arquétipos, mas deve adaptar a cada caso singular um modelo construído a partir dos diversos elementos documentais de que se dispõe para articulá-los “num conjunto significativo” (DOSSE, 2007:446).
O mito não é uma fantasia – assim como a representação e o imaginário, como já foi
visto – de poetas antigos que escreviam conforme suas concepções, nas palavras do próprio
Vernant: “Já não é mais tempo de falar dos mitos como se tratassem da fantasia individual de
um poeta, da fabulação ficcional, livre e gratuita.” (VERNANT, 2001:25). Como ele sempre
se encontrou muito mais interessado no aspecto mental do que na atitude ritual, creditava
muito mais valor ao mito do que ao rito (BELEBONI, 2001:81). O mito é a manifestação
imaginária da mente humana, enquanto o rito configura-se antropologicamente, com danças,
ornamentos, etc. O mito em Vernant depende de um emaranhado de fatores que vão se
agregar para formar este complexo pensamento. Em suma, “o mito na perspectiva de Jean-
Pierre Vernant é compreendido como relato, tradição, fato social total, obra do espírito
humano e manifestações de uma civilização” (BELEBONI, 2000:74).
Já o filólogo belga Marcel Detienne – que junto com Jean-Pierre Vernant e Pierre
Vidal-Naquet formam a tríade de estruturalistas franceses dedicados à Antiguidade –
valoriza em suas obras muito mais o aspecto ritual do que o mítico psíquico. Durante toda
essa dissertação lançaremos mão das obras tanto de Vernant quanto de Detienne; o trabalho
neste tópico é somente construir uma panorâmica geral dos trabalhos e das influências destes
30
dois estudiosos.
Detienne foi influenciado, sobretudo, pelo estruturalismo de Lévi-Strauss. Destarte
difere um pouco do pensamento de Vernant em relação ao mito; Detienne encara o mito de
uma forma mais antropológica e antropomórfica, creditando a ele uma função de
sociabilização em uma civilização por meio de seu ritual. Enquanto Vernant analisa as
questões mentais e psicológicas de um mito, Detienne enxerga nele uma forma antropológica
de socialização, quando este se funde ao rito, que por sua vez é compartilhado por um
segmento social (DETIENNE, 1987:60). Desta forma os dois autores se complementam e
ambos são de suma importância para os estudos míticos.
Para Detienne, o mito foi diversas vezes ao longo da história produto do poder. A
transformação da memória religiosa foi de suma importância para a manutenção deste, como
vemos no segundo capítulo deste trabalho. Diversos rituais foram utilizados como
instrumento de dominação e, nesta condição, enxerga-se a invasão cultural européia sob
sociedades americanas ou até a invasão em ilhas da Polinésia Francesa:
No poema etnográfico de Victor Segalen, dedicado ‘aos maoris dos tempos esquecidos’, é o próprio Térii, ‘aquele que esquecera as palavras’, por culpa de pálidos estrangeiros que chegaram em grandes barcos, quem se torna diácono e recita o Livro, cujos sinais aprendeu na escola das missões protestantes. Uma civilização da memória torna-se totalmente amnésica sob o efeito do mais poderoso dos venenos: as Escrituras de uma religião certa da verdade encerrada em um Livro, o seu (DETIENNE, 1998:60).
As hibridizações e os diálogos culturais entre sociedades diversas sempre ocorreram
na história da humanidade, como nos apontou Detienne. No tópico seguinte tentamos
compreender como estas interações religioso-culturais deram o tom na formação de uma
religiosidade grega e no cotidiano destes indivíduos híbridos.
1.3. Os períodos micênico e homérico: organização e política
Após estas elucidações conceituais, precisamos realizar uma breve análise do
primeiro período a ser estudado cronologicamente, bem como sua estrutura organizacional e
suas facetas políticas. Somente compreendendo historicamente o período homérico é que
podemos ver como Dioniso se encaixa na religiosidade deste período – ou como não se
encaixa. Não é nosso propósito neste trabalho realizar uma análise profunda dos poemas
épicos Ilíada e Odisséia – as obras escritas mais significativas deste período que chegaram
31
até nós. Também não é nossa intenção a proposta de um cotejamento entre as duas obras.
Nosso propósito é mais modesto, até porque estas obras pouco nos dizem em relação a
Dioniso. Este tópico consiste somente em situar o período homérico e suas especificidades,
para termos condições de analisarmos as estruturas sociais da época e como Dioniso
encontrava-se ou ausentava-se dentro delas.
O período homérico é – em sua quase totalidade – fruto de controvérsias entre seus
próprios especialistas, a começar por sua delimitação temporal. Alguns historiadores
colocam a formação do período ainda na Idade do Bronze, de XII a VIII a.C. (GLOTZ,
1946:23); outros preferem colocar o período homérico como uma mescla do período
micênico – anterior – e o período posterior ao micênico (MOSSÉ, 1993:13) desconhecido em
sua quase totalidade pela ausência de fontes escritas. O próprio período micênico só se torna
conhecido com a decifração do Linear B, a escrita da época. Resgates arqueológicos de
tabletes com este tipo de escrita nos proporcionaram novas interpretações sobre o período
dos palácios.
As principais fontes do período homérico que chegaram até nós são os poemas Ilíada
e Odisséia, elaborados por Homero, além dos resgates arqueológicos. As características de
um mundo que Homero coloca em seus poemas, ora se parecem com o mundo micênico, ora
se distanciam dele. José Antonio Dabdab Trabulsi, na obra Ensaio sobre a mobilização
política na Grécia Antiga, elucida esta dúvida entre os especialistas em relação ao período de
Homero e aos escritos deste:
Para alguns, não há dúvida, trata-se do mundo micênico. É claro que as descrições da epopéia nem sempre correspondem ao que a arqueologia e as tabuinhas indicam. (...) Para outros, as diferenças são grandes demais entre o que a arqueologia mostrou e que os poemas descrevem para que nós possamos aceitar a tese da historicidade completa. Ainda que as reminiscências micênicas sejam muito importantes, globalmente trata-se de um outro mundo (TRABULSI, 2001: 21).
Em sua obra O Mundo de Ulisses, Moses Finley situa o período homérico entre os
séculos X e IX a.C., ou seja, posterior ao micênico. Pierre Vidal-Naquet, no livro O Mundo
de Homero, data até o início do século VIII. Concordamos com a opinião destes autores, que
é partilhada também por Trabulsi, por entender que a Ilíada e a Odisséia, embora possuam
características micênicas, como a supremacia de uma realeza, também possuem
características posteriores a ela, o que nos faz pensar que o referido período seja uma mescla
32
do anterior e do atual, como propõe Claude Mossé, com traços dos quatro séculos anteriores,
dos quais não temos fontes escritas.
Falemos um pouco sobre o maior nome deste período: o já citado poeta Homero.
Existem diversas especulações sobre sua vida e a autoria de seus poemas. Muitos estudiosos
seguem a tendência de que não existia apenas um Homero, e sim vários Homeros
responsáveis pela escrita dos poemas Ilíada e Odisséia, sendo a Odisséia um pouco
posterior:
Já se sonhou bastante – a às vezes até se delirou – sobre o poeta cego. Existiu um Homero, dois Homeros e até, como alguns pensaram, uma multidão de Homeros? Na ilha de Quios havia os chamados homéridas, que se diziam descendentes de Homero e constituíam um grupo de rapsodos que cantavam os poemas de seu pretenso antepassado (VIDAL-NAQUET, 2002: 14).
Sabe-se que o Homero que aparece no busto10era um aedo11. Se existiram vários
Homeros ou se a Ilíada e a Odisséia foram escritos por um ou vários autores é uma discussão
que pouco acrescenta. O que realmente importaria seriam as influências destes poemas na
sociedade grega do período homérico e de períodos posteriores e as pistas que aqueles dão ao
historiador de como vivia e se estruturava esta sociedade. A importância que Homero
exerceu na sociedade leitora de seu épicos – mesmo a posterior a sua época – é atestada por
Marcel Detienne: “Desde o século VII antes de nossa era, Homero pertence à cultura grega, e
faz parte dela e, muito rapidamente, vai representar o saber cultural dos gregos. Aprende-se a
ler e a escrever com Homero. Ele diz a tradição.” (DETIENNE, 2004:87).
Homero retrata em suas obras o cotidiano dos homens e também dos deuses.
Percebemos nos poemas que os deuses são como os homens: passionais, sentem raiva, amor,
alegrias, tristezas e fraquezas. Assim como os homens, os deuses têm opiniões próprias e
tomam partido conforme seus interesses. Embora os deuses sintam emoções semelhantes às
dos humanos, a vontade destes sempre prevalece; nenhuma cidade é construída ou uma
guerra conhece seu vencedor sem a intervenção deles (DETIENNE & SISSA, 1990). Na
Ilíada, percebemos claramente que o soberano Zeus é quem decide o destino da batalha;
10 De acordo com Pierre Vidal-Naquet (2002), por causa deste busto, que o representava sem o globo ocular, é que se postulou a tradição de Homero ser cego; porém este busto não é um retrato e sim uma representação romana que, provavelmente, tenha sido inspirada nas artes do século V a.C., o apogeu da arte grega. 11 Cantores áticos que recitavam poemas em praças e festividades. Como é sabido que Homero foi um aedo, podemos dizer que os poemas Ilíada e Odisséia seguem uma tradição oral.
33
porém os outros deuses usam de persuasão e de seu poder divino para também manipularem
a guerra conforme seus interesses. Os deuses de Homero estão longe de habitarem o Olimpo
perfeito da Teogonia de Hesíodo; de serem tranqüilos e onipotentes quanto ao que acontecia
no mundo dos mortais.
Apesar disso, temos de deixar claro uma constatação: Homero não era um teólogo,
muito menos um estudioso da religião; Homero era um aedo12. Um aedo tem de seduzir seu
público. Homero não estava interessado quando escreveu sua epopéia em realizar um estudo
teológico dos costumes religiosos de seu povo. Seus épicos foram escritos para agradar o
ouvinte e não para realizar uma discussão científica. O estudo crítico da religiosidade grega
só viria mais tarde, com Tales, Parmênides e principalmente o pensamento racional de
Platão. Tampouco Homero foi fundador de uma religião ou de uma seita; o aedo sofreu
influências de várias correntes religiosas distintas da grega, já que o híbrido Mediterrâneo
propiciava uma série de conceitos diversos:
Dantes, a história da religião tendia a considerar o mundo dos deuses olímpicos como algo único, como uma criação de “Homero”, ou seja, dos primeiros gregos e dos seus poetas. A redescoberta d literatura oriental antiga refutou esta visão das coisas. Sobretudo nas áreas mais próximas da Grécia, nas regiões hitita e ugarita, surgiram paralelos surpreendentes do mundo “homérico” (BURKERT, 1993:356).
Outra discussão que permeia a historiografia contemporânea é a de um Homero
historiador. Pierre Vidal – Naquet formula a tese que transforma Homero em um historiador
do mundo micênico (VIDAL-NAQUET, apud: MOSSÉ, 1993: 23). François Hartog discorda
categoricamente da idéia de que Homero seja um historiador. No máximo a história pode ter
nascido através da epopéia homérica:
Por que começar pela epopéia, que positivamente não é uma forma de história? Porque na Grécia tudo começa com a epopéia, que marcou a cultura grega de modo profundo e duradouro, sem dúvida – mas também porque a história, em todos os sentidos do termo, procede da epopéia: vem dela e dela se separou. O dispositivo da palavra épica, a memória do aedo, uma certa descoberta da historicidade são as condições que possibilitam o que, alguns séculos mais tarde, será nomeado, por Heródoto, história (historíe). Embrenhar na questão da história na Grécia pela epopéia (séculos VIII – VII) é esboçar uma pré-história do conceito de história (HARTOG, 2001: 21).
12 De acordo com Elaine Hirata (2009), o nome Homero não passou a se referir somente ao nome do poeta, mas tornou-se um “rótulo” para toda a criação épica oral que culminou com a elaboração das duas obras.
34
Concordamos com os dizeres de Hartog. Considerar Homero um historiador seria cair em um
anacronismo, já que o termo foi formulado somente por Cícero: historia magistra vitae13.
Cícero nos coloca que o primeiro historiador da humanidade foi Heródoto, pois este tinha
uma preocupação com a “verdade histórica” e com uma descrição fiel do que este havia
presenciado em suas viagens. A epopéia homérica fornece ao historiador elementos para a
análise histórica e não pode ser visto como uma narrativa histórica e sim como uma fonte
histórica.
Este período é marcado por algumas peculiaridades organizacionais e políticas. O
século VIII foi um século de suma importância para a história do povo helênico, pois foi
neste século que teve fim o período micênico e se configurou a conhecida polis. Nas palavras
de Pierre Vidal – Naquet:
O século VIII é um período muito importante na história do mundo grego e, aliás, do mundo mediterrâneo em geral (Roma, por exemplo, foi fundada em 753 a.C.). Trata-se de uma época na qual se consolida, na Grécia européia, insular e asiática, uma forma original de vida em sociedade, a pólis. Um grupo de homens livres diz ‘ nós’ ao falar em nome de todos. Os reis já não existem ou então têm apenas papel simbólico. As cidades são governadas não pelo povo, mas por homens (relativamente) ricos, possuidores de terras mas também, as vezes, entregam-se ao grande comércio marítimo (VIDAL-NAQUET, 2002: 15).
Analisando as palavras de Vidal-Naquet, têm-se a impressão de que, em um curto
espaço de tempo, a sociedade grega se viu sem reis, com outra forma de governo e de
organização. Sabermos que as transformações políticas e sociais não ocorreram desta forma
é primordial. Segundo Jean-Pierre Vernant, um dos fatores que contribuíram para a
dissolução do estado monárquico foi a invasão dórica que pôs fim aos palácios micênicos e
rompeu por longos séculos o vínculo entre a Grécia e o Oriente (VERNANT, 1986: 24).
Neyde Theml, em sua obra Público e Privado na Grécia do VIIIº ao IVº séc: o modelo
ateniense, acrescenta que divergências políticas entre os próprios reis causaram o
enfraquecimento do que ela chamou de Estados Palácios (THEML, 1988: 25) facilitando
assim a conquista dórica. Este período micênico anterior a polis, de acordo com Gustave
13 “História mestra da vida”
35
Glotz, compreendia principalmente três segmentos sociais14 (GLOTZ, 1980: 30 – 31). O
primeiro segmento seria formado pelos nobres: reis descendentes de deuses, como podemos
constatar nos épicos homéricos. O segundo seria os demiurgos, trabalhadores que viviam em
sua maioria nos aglomerados urbanos. Eram cantores, médicos, adivinhos, arautos ou
artesãos. Finalmente os thêtes compõem a multidão, não possuem trabalho fixo, alguns
mendigam, outros se tornam mercenários, porém não possuem moradia fixa nem segurança.
Contudo os thêtes não podem ser confundidos com escravos. Eram homens livres – no
sentido literal da palavra – que recebiam por seus serviços.
Já foi visto no início deste tópico que a opinião de Glotz diverge da nossa em relação
à datação do período homérico e também sobre a organização urbana vigente na época em
que Homero viveu. Para o autor, a cidade retratada por Homero era o mundo micênico; o
autor até chama de “cidade homérica” as cidades micênicas (GLOTZ, 1980: 29). Já vimos
em Trabulsi (2004) que a realidade retratada nos épicos homéricos não é a micênica; embora
existam semelhanças, como os palácios e os templos que, em Tróia, situam-se no alto da
acrópole, evocando mais as cidades micênicas do que a polis do século VIII (MOSSÉ, 1989:
82). A arqueologia já tratou de mostrar como a realidade das cidades no período em que os
poemas foram escritos – séculos VIII e VII – já era bastante diferente do período micênico,
como acreditava Glotz. A descrição supracitada da organização social realizada por Glotz
ainda é relevante, desde que tenhamos a consciência de usá-la para o período micênico. Foi
toda esta organização social que ruiu com a expansão dórica no Peloponeso, em Creta e até
em Rodes.
Todavia, a transformação mais significativa foi sem dúvida no campo político. Todas
as questões que antes eram de interesse geral do soberano, são agora submetidas a uma arte
oratória e somente se resolverão com a conclusão de um debate. Para isto se faz necessária a
formulação de discursos e argumentações (VERNANT, 1986:35). A polis torna-se então um
espaço essencialmente político e “do” político. E a política é pública. Pode-se entender então
que através das discussões que outrora não se faziam necessárias, agora emergem de todos os
lados, transformam a Grécia em uma pátria da oratória e do diálogo e os indivíduos em
indivíduos políticos capazes de formularem seus próprios questionamentos. Os indivíduos
igualam-se e se enxergam unidos por interesses comuns ao grupo, a philia (VERNANT,
14 Usaremos “segmento” por acreditarmos que o termo “classe” faz-se desapropriado para o período, já que esta noção de classe vem carregada de outro sentido, muito mais ligado ao capitalismo industrial ocorrido a partir do século XIX.
36
1986: 42). A partir da formação da polis acontece uma relação recíproca, substituindo a
relação hierárquica de submissão do período real micênico. Até o herói homérico da Ilíada,
sempre nobre e divinizado, é substituído pelo hoplita, o soldado-cidadão. A façanha
individual dos heróis da guerra de Tróia é substituída pelo valor militar de lutar pelo
coletivo.
Contudo, mesmo na Ilíada, vemos passagens em que o interesse coletivo vai além da
individualidade: “E é precisamente por os heróis formarem uma sociedade de iguais que a
realeza exercida no seio da cidade pelo mais ‘real’ dentre eles nunca poderia ser uma realeza
tipo monarquia absoluta” (MOSSÉ, 1989: 85). Podemos perceber que, nestes momentos, os
épicos homéricos distanciam-se da monarquia vivida pela sociedade micênica. Destarte, não
podemos cair no equívoco de pensarmos que todos os indivíduos possuíam direitos políticos
igualitários e o mesmo espaço nas discussões. A política era uma coisa para a aristocracia e
os homens abastados; artesãos, comerciantes e principalmente escravos não dispunham de
tempo para se dedicarem à política (SOUSA, 2008: 45).
Um livro relativamente recente (2007) foi lançado com outra espécie de abordagem
do conceito e da noção de polis aqui discutida por nós. Trata-se da obra Unthinking the
Greek Polis: ancient greek history beyond eurocentrism , de Kostas Vlassopoulos, ainda sem
tradução para o português. Nesta obra, Vassopoulos discute o conceito de polis mediterrânica
que é tido como certo pela historiografia atual. Para ele, a polis é uma clara fronteira política
e as noções de liberdade política e civil são tidas como incertas pelo autor. Nossa intenção
neste trabalho não é aprofundar além do que já adentramos na discussão sobre o conceito de
polis, porém é realmente válido conhecermos o que há de mais novo nesta discussão e como
este autor argumenta esta nova idéia.
O autor começa o livro discutindo a noção de polis para o próprio grego, para isto
retoma a obra Política, de Aristóteles. O filósofo grego compreende que a polis não é
somente uma reunião de cidadãos politizados, de metecos, de trabalhadores e de escravos e
somente estas esferas sociais é que desenhavam o cotidiano políade. A polis deve ser
compreendida como um sistema amplo e altamente influenciável pelo sistema mediterrânico
como um todo. Assim a polis seria um organismo vivo – Aristóteles sempre manteve uma
estreita relação com a biologia – que sofre de causas externas e sofre com enfermidades,
possui vontades e necessidades:
37
Aristóteles parece ter uma definição biológica da polis em dois aspectos: por um lado a polis é como um organismo que vem para a vida em forma elementar, mas já com as sementes de seu crescimento futuro, por outro lado, como um organismo é um todo composto de várias peças em diferentes relacionamentos. A razão biológica para este modelo é a filosofia aristotélica e seus polêmicos objetivos: a sua filosofia de telos necessitando de um exame das coisas de acordo com o seu suposto objetivo, sua concepção da physis como o desenvolvimento das coisas de acordo com a sua inerente predisposição e sua clara tentativa de negar a teoria do contrato social e provar que relações “sociais” são baseadas em necessidades biológicas e, portanto, são naturais (VLASSOPOULOS, 2007:78).
A polis é um mundo sistemático influenciado por relacionamentos “inter-polis”.
Existe um quadro analítico proposto pelo autor que consiste em três elementos básicos para
um novo paradigma do conceito de polis: a polis faz parte de um sistema maior; existe uma
multiplicidade temporal e espacial dentro deste sistema e que a polis deve ser analisada no
âmbito de “ambiente”, criado pelo sistema e por seus múltiplos níveis (VLASSOPOULOS,
2007:145). Discordamos neste ponto de Louise Bruit Zaidman e Pauline Schmitt Pantel. As
autoras, no livro La religión Griega em la polis de la época clásica, acreditam que a polis se
configura como um conjunto político autônomo e independente (ZAIDMAN & PANTEL,
2002:8). A cidade-estado seria sim um organismo com uma autonomia política própria,
porém esta autonomia é quebrada com as diversas influências que esta sofre durante seu
percurso.
A discussão da parte dois de seu livro é a mais surpreendente e inovadora.
Vlassopoulos nega a dicotomia Ocidente – Oriente; mesmo para o mundo antigo15.
Pensarmos em questões como identidade, magistrados, assembléias, democracia e política
partindo de uma perspectiva teleológica grega – e que a polis grega seria a líder para a
solução de todas as outras polis – é enganosa. As cidades-estado orientais possuiríam uma
estrutura complexa capaz de influenciar as cidades-estado gregas e vice-versa, em uma
relação de mutualismo:
É bem entendido que alguém possa reconhecer o que Hansen determinou como culturas da cidade-estado em muitas partes do antigo Oriente Próximo, especialmente Mesopotâmia, Síria e Fenícia. A referência à cidade fenícia em documentos Neo-assírios do primeiro milênio é um bom exemplo. Algumas vezes as referências a uma cidade fenícia são dadas por meio do nome da cidade ou a etnia (Tiro, Tyrians), mais um sinal determinante para o conceito de cidade, em outros casos por meio de
15 Já que esta dicotomia na modernidade e na contemporaneidade vem sendo questionada por vários pensadores, como Edward Said (2001).
38
especificidades étnicas, mais a marca permanente para as pessoas. Temos aqui os conceitos de cidade-estado e comunidade, em grego polis. Nestas regiões, a principal unidade política foi uma cidade (alume em acadiano), funcionando como um centro político e controlando uma maior ou menor faixa territorial (VLASSOPOULOS, 2007: 106).
Percebemos que nas narrativas de Heródoto existe uma relação entre as polis em um
“ambiente mediterrânico”. Os gregos enxergavam isto. Esta noção de polis grega como um
sistema onipotente e autóctone é uma abordagem dos historiadores contemporâneos. Vemos
isto quando analisamos o mito que retrata o nascimento e a vida de Dioniso. Se atendermos
ao pedido de Vlassopoulos e depositarmos olhares mais atentos às raízes gregas e tentarmos
compreender como eles próprios se entendiam dentro do sistema políade, veremos, por
exemplo, que a construção identitária grega se deu opondo-se aos persas, o que gerou vários
discursos, como o de liberdade e o de soberania.
A constatação de que as polis sofriam influências mutuamente não é nenhuma
novidade. O que Vlassopoulos nos traz de novo é pensar as polis mediterrânicas como um
ambiente orgânico retomando as teorias de Aristóteles, pensando que estas são um
organismo vivo que pode morrer dependendo das influências externas. O autor tenta realizar
uma reflexão de como os próprios cidadãos da polis a compreendiam como um ambiente
plural e influenciável.
Após estas constatações da polis como um organismo híbrido, veremos no tópico que
se segue que Dioniso também é uma divindade híbrida e seu mito ilustra brilhantemente o
que discutimos neste tópico: a interação cultural entre sociedades distintas.
1.4 Dioniso no Mediterrâneo
Após esta breve análise das épocas micênica e homérica, vamos analisar como
Dioniso se configurou nestas sociedades e quais as influências que este sofreu e nelas
exercem. É preciso saber que o deus já possuía uma longa trajetória antes de Homero
(TRABULSI, 2005:14) e que a os épicos do aedo pouco mostram Dioniso; para ser mais
preciso, são duas aparições na Ilíada – cantos VI e XIV – e duas na Odisséia – cantos XI e
XXIV, que analisaremos a seguir. Embora sem grande relevância, podemos comprovar que
Dioniso já era conhecido no período da escrita destas obras. Eudoro de Souza nos pontua que
as primeiras fontes arqueológicas que fazem menção aos deuses datam do II milênio
(SOUZA, 1973:9), no período minóico, anterior ao período micênico. Comecemos com a
39
definição do deus, ou a falta de definição, segundo Jean-Pierre Vernant. Para o autor, o deus
é de difícil enquadramento. Afrodite é a deusa da paixão; Atena, do saber; Hefesto deus
ferreiro; já Dioniso não se define. É o deus vagabundo que está sempre de passagem, não
cria raízes em lugar algum, está sempre viajando (VERNANT, 2000:145). Dioniso é um
deus de mil faces, um deus caleidoscópico. Em diferentes regiões e diferentes épocas, o deus
toma uma forma distinta da anterior e “troca a máscara”. Dioniso é o deus da máscara. A
divindade que se transforma conforme a ocasião, transformação percebida pelos próprios
contemporâneos:
Aristófanes recorda (fr. 131 Koch) a afinidade de Dioniso com o mundo das máscaras e dos espantalhos (mormolukeía), o que faz dele verdadeiramente o deus da máscara do panteão grego (VERNANT, 1991: 163-164).
Diversas fontes arqueológicas fazem menção a Dioniso como um deus mascarado. Podemos
constatar esta relação no segundo capítulo deste trabalho.
Walter Burkert também relata-nos que em muitos casos a forma de representação do
deus consiste em pendurar uma máscara em uma coluna e muni-la de um pedaço de tecido,
assemelhando-a a um espantalho (BURKERT, 1993:327). Podemos ver que o conceito de
representação, por nós elucidado anteriormente, se amarra à questão do Dioniso mascarado.
A presença de máscaras cria novas representações que trazem o deus às diversas realidades
distintas:
Por suas virtudes epifânicas, o deus que chega conhece intimamente as afinidades da presença e da ausência. Quer caminhe sorrindo ou salte irritado, Dioniso se apresenta sempre sob a máscara do estrangeiro (DETIENNE, 1988:19).
Existem diversas representações míticas distintas de Dioniso e, dependendo da
tradição em que se insere e do local do culto, o deus modifica seu nome e sua funcionalidade
divina:
Dionysos Ctonios evoca o mundo subterrâneo dos mortos e das sombras, enquanto Dionysos Iakchos é criança: evoca o jogo e a inocência; contudo, na alternância da morte sombria e da vida inocente, Dionysos Meilichios, Zagreus, Sabazios, todos os Dionisos se opõem à rigidez objetiva (ALBORNOZ, 1999:5).
40
A própria formação etimológica do nome grego Dioniso é sem definição certa.
Marlene Fortuna toma como exemplo um composto do genitivo dio (nome do céu em trácio),
com nysa (filho ou jovem); Dioniso seria então “o filho do céu” (FORTUNA, 2005:36). Esta
construção etimológica poderia identificá-lo como o filho de Zeus, rei do céu e do Olimpo,
morada dos deuses. O que compreendemos é que Dioniso é um deus incomodativo na
medida em que é diferente e indiferente à autoctonia grega:
A um só tempo vagabundo e sedentário, ele representa, entre os deuses gregos, segundo a forma de Louis Gernet, a figura do outro, do que é diferente, desnorteante, desconcertante, anômico. É também, como escreveu Marcel Detienne, um deus epidêmico. Como uma doença contagiosa, quando ele aparece em algum lugar onde é desconhecido, mal chega e se impõe, e seu culto se espalha como uma onda (VERNANT, 2000:144).
Uma das maiores obras referente à representação das divindades helênicas – tanto na
questão das imagens em caráter imaginário quanto em caráter da cultura material, como
vestígios arqueológicos – é o Lexicon Iconographicum Mythologiae Classicae16, redigido em
1981, que reúne vários especialistas sobre cada deus grego17. Defendemos que o LIMC é de
suma importância para o estudo das representações divinas gregas. Dentro do volume I,
Alina Veneri nos mostra um apanhado geral da imagem e do culto a Dioniso, enquanto Carlo
Gasparri realiza um detalhado estudo descritivo dos vestígios arqueológicos que representam
Dioniso encontrados em várias partes da Península Balcânica e de ilhas do Mediterrâneo e do
Egeu, totalizando mais de oitocentas e cinqüenta imagens.
Esta obra é utilizada algumas vezes durante este trabalho, numa tentativa de
construção da representação imagética do deus. Vemos no começo do LIMC que Dioniso é
uma divindade rural. Na definição de Walter Burkert, no livro Religião Grega na Época
Arcaica e Clássica, é uma divindade cthônica (BURKERT, 1993:436), um deus das florestas
e das pastagens. É o deus da vinha e da fertilidade; esta fertilidade não é somente de caráter
sexual – mas também dele – como também no que tange à fertilização dos vegetais e dos
produtos encontrados em ambiente rural:
16 A partir de agora quando a obra for citada, nos referimos com a sigla LIMC, usada na própria obra. 17 Curiosamente não vemos nem sequer índícios da referência desta obra no principal livro sobre o dionisismo publicado no Brasil – que já foi citado várias vezes nesta dissertação – de autoria de José Antonio Dabdab Trabulsi.
41
A caracterização de Dioniso como deus do elemento úmido (que continua a ser uma parte significativa da memória do mar e da água dentro do mito dionisíaco) e da natureza exuberante, principalmente os vegetais e, portanto, responsável pelo crescimento e pela maturação dos frutos, é o aspecto mais importante da essência desta divindade (VENERI, 1981: 415).
Marcel Detienne considera que Dioniso e o dionisismo apresentam-se na forma epidêmica
(DETIENNE, 1988:12). O culto ao deus adentra-se na periferia grega e posteriormente na
Ática; primeiramente nos meios rurais e campestres – a chora – e posteriormente nas
camadas urbanas e sociedades urbanizadas, no seio da ásty.
Após esta definição poderíamos pensar que Dioniso poderia ser um deus estrangeiro?
Um deus não grego? Vemos as evidências, iniciando pelo mito que traz o deus ao cenário
próprio dos mortais e retrata seu nascimento e seu crescimento: o mito fundador da cidade de
Tebas, que se mistura ao mito do nascimento de Dioniso. Jean Pierre-Vernant, na obra Os
deuses, o universo, os homens, nos diz que este mito começa com o rapto de Europa – irmã
de Cadmo, um fenício – por Zeus, que se encantou com a beleza da jovem e se transfigurou
em touro para copular com a moça. Cadmo foi à busca da irmã e, em Delfos, o oráculo lhe
disse que deveria seguir uma vaca e, na hora que o animal parasse, deveria ali fundar uma
cidade. Quando a vaca finalmente para, Cadmo mata o dragão, filho do deus Ares, que
guardava uma fonte naquele local e, a mando da deusa Atena, joga seus dentes na terra,
fazendo germinar guerreiros adultos inteiramente armados, os Spartoí18. Depois de trabalhar
sete anos a serviço de Ares para se redimir do assassinato do filho do deus, Cadmo funda a
cidade de Tebas juntamente com estes guerreiros autóctones, nascidos na própria terra e se
casa com Harmonia, filha de Afrodite. Com a deusa tem várias filhas: Sêmele, Autônoe, Ino
e Ágave. O soberano Zeus encanta-se por Sêmele e se deita com ela com a imagem de um
mortal. Esta já grávida do deus pede para ele se mostrar com todo seu esplendor de
divindade; Sêmele é desintegrada por toda a luminosidade do deus, já que um mortal não
suporta a luz de um ser divino. Zeus então tira do corpo de Sêmele o filho, o pequeno
Dioniso e faz um corte em sua própria coxa, a coxa uterina que abriga Dioniso até seu
nascimento19. Sobre o nascimento através da coxa faz-se importante observar a constatação
de Burkert, quando o autor compara o mito de nascimento da deusa Atena com o mito de
nascimento de Dioniso: 18 Semeados 19 Existe um outro mito – provavelmente muito mais antigo – que narra o nascimento do deus. Dioniso – sob o nome de Zagreus – é morto e despedaçado por Hera. Zeus enão engole seu coração e posteriormente dá a luz ao deus. Este lenda não era tão conhecida do povo grego quanto o mito da coxa de Zeus.
42
No lugar da via “superior” do nascimento da virgem armada aparece uma parte do corpo com associações eróticas e homoeróticas. Em ambos os casos é pressuposto um ferimento do deus pai. A ferida na coxa encontra-se ligada à morte a à castração, manifestamente no contexto de iniciações. Explicar o nascimento a partir da coxa como um mero mal-entendido lingüístico, significa desconhecer que, justamente, o paradoxo provoca o efeito desejado (BURKERT, 1993:325).
Para protegê-lo do ciúme de sua irmã e esposa Hera – que durante toda a vida de
Dioniso vai persegui-lo – após seu nascimento, Zeus entrega a criança aos cuidados de
Hermes. O pequeno Dioniso é criado por ninfas em uma caverna, ou segundo outra tradição,
vive no palácio do rei Orcómeno (GRIMAL, 2000:121). Durante sua infância e adolescência,
sofre diversas hostilidades de reis e deuses, e percorre toda a Ásia, chegando à Índia e
assumindo os costumes deste povo. O ódio acumulado por tanta perseguição faz Dioniso
retornar à terra de sua família, Tebas, onde seu primo Penteu, filho de Agave, reina. O deus
retorna com traços asiáticos, tanto físicos como nas vestimentas. Como o soberano tebano
não aceitou o culto a esse deus com características estrangeiras, Dioniso lega à cidade uma
maldição, destruindo o palácio e o reinado de Penteu e enlouquecendo as mulheres da
cidade, que saíam errantes pelos montes e florestas. A parte do mito que se inicia a partir de
sua chegada a Tebas é tratada em detalhes no terceiro capítulo desta dissertação, pois o
tragediógrafo Eurípides trata exatamente deste episódio em sua peça As Bacantes.
Carl Kerényi traz-nos outros mitos que retratam o nascimento de Dioniso, porém a
maioria deles são hinos órficos20 que o trazem como filho de Deméter ou de sua filha
Perséfone (KERÉNYI, 2002: 194). Kerényi, em sua obra Os Deuses Gregos, não faz
distinção entre os mitos21. Nas palavras de José Antonio Dabdab Trabulsi:
Mais grave é o caso de C. Kerényi que, influenciado por Jung, dedicou a maior parte de sua vida intelectual a estabelecer “arquétipos” do mundo antigo. Dioniso foi, para ele, “o arquétipo da vida indestrutível”. É a velha história de buscar na Antiguidade modelos para nossa própria vida (...) (TRABULSI, 2005: 13).
Optamos por continuar com a versão do mito fundador de Tebas por compreender que este
está mais próximo do mundo grego e do povo grego e também porque os diversos
20 Hinos escritos por mitólogos da religião em honra ao deus Orfeu. 21 Kerényi apenas apresenta-os, não os analisa, em uma análise jungiana pautada em arquétipos que explicariam nossa vida contemporânea.
43
pensadores gregos, posteriores a estes mitos, concordam com o mito fundador de Tebas e o
usam em suas obras, como é o caso da peça As Bacantes. O LIMC também corrobora com
esta versão quando trata do nascimento e da infância do deus: “Na tradição mais antiga
Dioniso é concordadamente considerado filho de Zeus e Sêmele.” (VENERI, 1981:416).
Porém, os autores do LIMC admitem que outras versões existem e também foram difundidas
durante a história da humanidade
Dioniso é o deus nascido duplamente. O nascimento é o momento mais emblemático
de todo deus, mas o de Dioniso foi particularmente atípico. E não há paz após este
conturbado nascimento; Hera vai persegui-lo, e este é obrigado a ficar escondido nos campos
de Nisa. Lá cresce em meio à vegetação e torna-se um deus de dotes rurais, cultivando
principalmente a vinha. Dioniso também se configura como o deus do transe, da loucura. É o
deus da manía – um estado entre a doença mental e a infâmia. É o deus beberrão que vagueia
errante, com um cortejo de homens e mulheres em estado de transe incontrolável.
Algumas pistas sobre o imaginário dos deuses nos são dadas por este mito fundador.
Na passagem em que Sêmele é fulminada pela luminosidade divina de Zeus, podemos
perceber como as figuras divinas eram temidas e que o humano não tem capacidade de
receber o divino em sua presença (FORTUNA, 2005:27). Podemos analisar também o ódio
mortal de Hera por Dioniso. Para isso precisamos ter clara qual era a formatação imaginária
de Hera e qual sua função no panteão dos deuses. De acordo com Pierre Grimal, Hera é a
protetora das mulheres casadas (GRIMAL, 2000:204). É a deusa dos matrimônios perfeitos;
esposa legítima do adúltero Zeus. Já Dioniso é o filho bastardo, aquele nascido de uma
traição de seu marido. Percebemos que a perseguição de Hera ao menino deus é uma alegoria
da dicotomia entre um matrimônio perfeito permeado por relações extraconjugais.
Neste mito que introduz Dioniso no panteão divino, a relação autóctone X estrangeiro
se faz presente desde o início. O próprio fundador da cidade é um asiático estrangeiro. Já a
alegoria dos viris guerreiros armados que nascem da terra representa os autóctones nascidos
no local e feitos para defenderem a pátria onde nasceram (DETIENNE, 2008:103). Dioniso
possui uma estreita relação com o Oriente. É o deus que conquista a Índia com seu exército
de sacerdotes, que empunham tirsos e tambores ao invés de armamento de guerra. O deus –
de acordo com o mito fundador de Tebas – é tebano mas, com seu distanciamento forçado,
este adquiriu características orientalizadas, inclusive na vestimenta e nas feições. O Oriente
sempre foi o exótico, o atípico, e nunca um deus com características orientais seria aceito
pelo poder grego:
44
Dioniso é considerado estrangeiro pelos gregos porque cresceu em outras terras e foi levando seu culto a outras paragens longe da Hélade, sempre passando por elas e permanecendo pouco nelas: chegando e rapidamente partindo. Daí afirmar-se ser Dioniso o deus que nunca conseguiu um lugar fixo, um altar eterno, um templo, um centro, um omphalós. Era o vadio, o vagante, o bêbado errante, de pouco valor para uma Atenas aristocrática, racional e implacável (FORTUNA, 2005:39).
Concluímos finalmente que Dioniso é um deus grego. E os gregos nunca negaram
Dioniso (DETIENNE, 1988:21), embora algumas de suas atitudes possam ser vistas como
bárbaras. Marcel Detienne denomina o deus como o “Estrangeiro do interior” (DETIENNE,
1988:37); aquele que mesmo sendo gerado dentro da pátria torna-se um bárbaro,
irreconhecível pelos seus iguais. Barbara Cassin, Nicole Louraux e Catharine Peschanski, na
obra Gregos, Bárbaros, Estrangeiros: a cidade e seus outros, nos dão a idéia da noção de
bárbaro para os gregos. São considerados bárbaros não aqueles que não nasceram em
território grego, mas aqueles que não adeririam aos costumes helênicos (CASSIN;
LOURAUX; PESCHANSKI, 1993:107). O barbarismo não é tratado pelo determinismo
geográfico, mas sim pelos costumes culturais; o que tornava o indivíduo grego não era sua
etnia e sim o seu conhecimento e sua aderência à cultura grega. Dioniso é considerado de
costumes bárbaros não por não haver vivido a maior parte de sua vida na Grécia, mas sim
por ter aderido a costumes e culturas “não gregas”. É a divindade estrangeira, pois embora
nascido em terra grega, torna-se um desconhecido de sua própria cultura. É um deus
misterioso sempre coberto com uma máscara. Um deus que viajou a um mundo exótico e tão
sombrio quanto ele próprio; é um deus a ser desvendado, a ser descoberto: “Através da
máscara que lhe confere sua identidade figurativa, Dioniso afirma sua natureza epifânica de
deus que não para de oscilar entre a presença e a ausência” (DETIENNE, 1988:23).
Muitos autores de obras sobre o dionisismo, no século XIX e início do XX – como
Sabatucci – acreditavam em um deus nascido de cultos trácios ou lídios. Porém, como atesta
Jean-Pierre Vernant:
A ‘inversão’ de perspectiva operada por Sabatucci (...) de um Dioniso vindo do estrangeiro, da Trácia ou da Lídia, ou de ambas, se viu arruinado pela presença nos documentos micênicos em linear B do nome de Dioniso, que, portanto, parece não ser menos ancestralmente grego do que os outros deuses do panteão (VERNANT, 1991:172).
Como vimos, o período micênico é o da realeza e o homérico da aristocracia. Ambos
são governados por homens nobres. Dioniso representa a ruralidade, os campos e as camadas
45
populares. Podemos concluir então o porquê do deus quase não ser retratado nos poemas
homéricos e não haver imagens do deus em vasos destes períodos. Dioniso não poderia
figurar no panteão divino oficial porque não retratava a ideologia dominante, estritamente
urbana e aristocrática. O mito supracitado mostra isso. O rei Penteu, representante da
aristocracia vigente, não aceitou este culto transgressor.
Aproveitemos que já estamos tratando dos período remotos para ver as passagens que
tratam de Dioniso na Ilíada. São duas: a primeira está no canto VI, intitulado O encontro de
Heitor com Andrômaca. Esta passagem é a mais longa das duas obras que retratam o deus:
Nem mesmo o filho de Driante, Licurgo valente, mui longa vida alcançou, por haver contra os deuses celestes lutado. Ébrio, uma vez, de Dioniso ele as amas, violento, repele do sacro monte de Nisa. Tomadas de medo indizível, quando o homicida Licurgo, contra elas, brandiu a aguilhada, os tirsos jogam no chão. Aterrado, nas ondas marinhas corre Dioniso a lançar-se, onde, trêmulo, Tétis ao seio o recolheu, que assaz medo sentia do herói com seus gritos. Mas, depois disso, contra ele irritaram-se os deuses felizes, tendo-o cegado Zeus Crônida. A vida bem curta ele teve, por se ter feito odioso aos eternos que moram no Olimpo. (Homero. Ilíada, VI, 130-140)
Esta primeira passagem narra o ainda jovem Dioniso, após ser perseguido por sua madrasta
Hera. O rei Licurgo persegue o deus e suas “amas”, que seriam as mulheres que tomaram
conta do deus após seu nascimento e, possivelmente, se tornaram suas primeiras seguidoras.
Embora a palavra mênade não tenha sido utilizada, em um outro canto Andrômaca corre
loucamente, e é comparada a uma mênade (TRABULSI, 2004:38). É praticamente certa a
hipótese de que Homero conhecia as adoradoras do deus, e que neste antigo ritual era comum
no período homérico a palavra “ébrio” – mainómenos – que aparece para definir Dioniso, e
que também pode ser traduzida por embriagado, alucinado ou ainda delirante. Mesmo com a
discussão entre vários especialistas de que Dioniso já era o deus do vinho no período
homérico – como pode ser conferido no LIMC – enquanto outros acreditam que o deus
tornou-se tardiamente, é fato que Dioniso já era conhecido – mesmo que não unanimemente
– como deus da loucura e da embriaguez. A relação de Dioniso com o elemento úmido pode
ser constatado pelo seu refúgio ao mar.
A outra passagem contida na Ilíada é bem breve, está no canto XIV, intitulado O
engano de Zeus, e trata da ancestralidade de Dioniso:
46
nem a princesa de Tebas, Alcmena, nem Semele, ainda – Heracles forte, de peito leonino, proveio daquela; Desta, Dioniso, chamado na Terra Delícia dos Homens – (Homero. Ilíada, XIV, 323-325)
Constatamos que o mito de fundação de Tebas era conhecido por Homero e seus
contemporâneos e, ao julgarmos pela narração acima, o aedo concordava com o fato de
Dioniso ter sido gerado por Sêmele. A “Delícia dos Homens” – chárma brotoisin – é a
alegria que Dioniso concede aos homens que provam de sua loucura.
Também na Odisséia temos duas passagens que se referem a Dioniso. A primeira está
no canto XI, que tem como título Consultando os Mortos. Nela temos o nome de Ariadne e a
menção ao amor:
Fedra, também, se apresenta, com Prócris e a bela Ariadne, filha de Minos, de mente funesta, que outrora de Creta levar Teseu pretendeu para o monte sagrado de Atenas, sem que conseguisse; em Dia, envolvida por água, primeiro Ártemis a fez morrer, sendo ela acusada por Dioniso. (Homero. Odisséia, XI, 321-325)
A última referência a Dioniso na Odisséia está no último canto, XXIV, que tem como título
Segunda descida ao Hades e o Tratado de Paz. Aqui temos os nomes de Hefesto e Dioniso,
duas divindades que representavam, respectivamente, os artesãos e os camponeses:
E, quando as chamas de Hefesto já haviam teu corpo destruído, teus ossos brancos, Aquiles, ao vir a manhã, depusemos em vinho puro e óleo fino; que uma ânfora de ouro deixara Tétis, tua mãe, de Dioniso valioso presente nos disse, e obra imortal e famosa de Hefesto, o notável artífice (Homero. Odisséia, XXIV, 71-75)
Percebemos que a imagem de Dioniso está muito pouco presente tanto na Ilíada quanto na
Odisséia, haja vista a extensão de ambas e a quantidade de divindades que são retratadas.
Homero certamente conhece Dioniso, mas a não importância que o poeta concede ao deus
pode ser entendida pela estranheza do deus perante os nobres guerreiros (TRABULSI,
2004:40). A mesma desatenção é percebia em relação à Deméter. Ela, também uma
divindade cthônica, era incompatível com uma nobreza que almejava os olímpicos. Em
suma, de acordo com Trabulsi:
47
O “momento homérico” – que pode não ser o momento cronológico da elaboração do episódio de Licurgo – é, portanto, para a história do dionisismo, o de um singular apagamento. Alguns aspectos de segundo milênio estão ainda presentes; outros aspectos, mais típicos do arcaísmo, tal como a aproximação com Hefesto, estão talvez em preparação. Mas o brilho e a estabilidade da sociedade aristocrática fazem com que suas manifestações não apareçam, qualquer que tenha sido o seu papel no “vivido” religioso, e no das massas populares, em especial (TRABULSI, 2004:43).
Não queremos afirmar que não havia rituais em honra ao deus neste período, pelo
contrário. O que afirmamos é que Homero, representando a ideologia predominante na
época, não se importou com Dioniso. Isto não quer dizer que a população em geral – ainda
rural – partilhava desta mesma ideologia. Ressaltamos que até os oikoi das famílias
aristocráticas eram ruralizados e admitiam costumes campestres; por esta constatação fica
evidente um possível culto a Dioniso por parte destes oikoi. O que temos como indício é que
a aristocracia não queria e deus em seu cotidiano, como percebemos pela a ausência de
imagens de Dioniso nas cerâmicas. Este tipo de produto era comercializado para uma elite –
e grande parte era comercializado em outras pátrias – então cabe aos artistas o retrato de
imagens caras a esta aristocracia. Não termos Dioniso nas representações de cerâmica não
nos ajuda em nada para provar que o deus não era referenciado pelo período homérico; nos
ajuda somente na elaboração de uma reflexão acerca da negação do dionisismo por uma
elite, e não pela população de modo geral, inclusive grande parte da população aristocrática,
que era ruralizada.
Muitos especialistas do dionisismo atrelam a representação do deus com a de outras
divindades, algumas do panteão principal dos deuses olímpicos, como um método
comparativo estrutural. Faremos aqui uma breve elucidação destas divindades que partilham
a representação dionisíaca por acreditarmos que é de suma importância a constatação de que
a idéia da divindade Dioniso não se constrói sozinha, mas sim traz para perto do deus um
conjunto de outras divindades que o complementam. Marlene Fortuna afirma que faz parte
da genealogia de Dioniso a companhia de outras divindades:
Sempre envolto, desde pequenininho, por grupos, Dioniso nunca conheceu a solidão; ou pior que isso, e talvez exatamente por ser assim Dioniso seja o deus da mais obscura solidão que há no Olimpo. No entanto, “por fora”, desde pequeno esteve sempre sob os cuidados de muita gente: as ninfas que o retiraram do meio das cinzas maternas, se encarregando de sua educação;
48
as Híades, as Horas que auxiliaram sua tia Ino na vigilância de seu crescimento; as musas e Sileno – “paizão beberrão do cortejo” –, os que pegaram Dioniso na adolescência (FORTUNA, 2005:128).
Várias destas representações podem ser conferidas nas imagens da cerâmica ática – que
analisamos no segundo capítulo desta dissertação – ou em estátuas e monumentos.
Dividiremos as divindades que aparecem atreladas a Dioniso em três grupos de afinidades:
por afinidade cthônica; por afinidade afetiva e por afinidade de ritual.
No primeiro grupo, temos de imediato a figura de Deméter. Deméter pertence à
segunda geração divina, a dos Olímpicos. Filha de Réia e Cronos, irmã de Zeus e
conseqüentemente tia de Dioniso, Deméter é a deusa da terra fértil; do trigo. Foi cultuada em
todas as regiões que cultivavam este cereal. Seus principais locais de culto são as planícies
de Elêusis e da Sicília, embora seu culto fosse praticado em diversos locais (GRIMAL, 2000:
114 – 115). A relação cthônica entre Deméter e Dioniso é facilmente percebida, pois estas
duas divindades estão ligadas à vegetação e à fertilidade: “(...) Dioniso pode estar associado
a Deméter, assim como o fruto de uma árvore ao do campo, o vinho ao pão.” (BURKERT,
1993:431). Entretanto, também existem distinções entre estas duas divindades: enquanto
Deméter é a deusa vegetal que alimenta os homens com o trigo necessário para sobreviver,
Dioniso é o deus vegetal que alimenta os homens com a vinha, essencial para o gozo humano
e para a capacidade de embriagar-se divinamente, juntamente com um deus. Dioniso também
é ligado à filha de Deméter, a jovem Perséfone. Como já foi citado, alguns hinos órficos
colocam Dioniso como sendo filho desta deusa. Então Deméter seria sua avó. Embora estes
hinos não façam parte da tradição dionisíaca, está aí registrada mais uma ligação deste deus
com Deméter, sem diminuir nenhuma espécie de fonte.
Uma hipótese plausível da imagem de Dioniso ser aliada à de Deméter pode ser as
relações políticas e econômicas que os dois deuses representavam. Enquanto Dioniso
representa a ruralidade mais empobrecida, aquela dos camponeses e das pessoas campestres,
Deméter representaria as grandes porções de terras, a grande agricultura que abastece a polis,
representa também a grande aristocracia rural que detinha o poder econômico na ática. Se
concordarmos com esta hipótese, Deméter foi utilizada pelo poder – provavelmente o poder
tirânico do período arcaico – para conceder à aristocracia a sensação de se sentir
contemplada. Desta forma, a política ática trazia para perto as camadas menos abastadas da
sociedade ateniense, sem perder de vista a elite, tão importante para a manutenção do poder
político.
49
Outra divindade importante é o deus dos pastores e dos rebanhos Pã. Esta divindade
também cthônica habitava os bosques e era representado semi-humano, com pés e pernas de
bode, todo peludo e com o rosto barbudo. Pã é um deus de caráter sexual, persegue ninfas e
mancebos com igual paixão, agride as pessoas com ameaças de penetração e dizia-se que se
suas incursões amorosas fossem infrutíferas este procurava um meio de se resolver sozinho
(GRIMAL, 2000:345). São várias as contradições de seu nascimento. Seu nome vem de παν,
que significa “tudo”. Esta alusão ao seu nome pode significar a lenda que coloca o deus
como filho de Hermes; quando este o levou até o Olimpo, agradou a todos, sobretudo
Dioniso (GRIMAL, 2000: 345). Foi através da alegria de Dioniso ao ver aquele deus que Pã
passa a compor os cortejos desta divindade. Dioniso e Artemis são aproximados por uma
festa em Patras (BURKERT, 1993:432). O ritual dos dois deuses é semelhante em alguns
aspectos: enquanto as mênades acompanham Dioniso em seu thíasos, as ninfas virgens
dançam junto a Artemis durante o ritual. Artemis representa a noite enluarada, a caça e a
força feminina, todos os aspectos ligados também a Dioniso.
Temos no segundo grupo os deuses que são representados em diversos mitos junto a
Dioniso e possuem com este deus uma afinidade afetiva. Comecemos pelos amores de
Dioniso: Afrodite e Ariadne. Afrodite é a deusa do amor, nascida da espuma dos testículos
de Urano atirados ao mar, quando da castração por seu filho Cronos. Casado com o deus
ferreiro Hefesto – que era coxo e muito feio – a deusa teve vários amantes. A maioria das
tradições refere-se ao deus da guerra Ares como principal amante da deusa, mas também é
sabido que esta se uniu com Dioniso. Pelos seus diversos casos adúlteros, Platão irá
classificá-la mais tardiamente como Afrodite Pándemia – Afrodite popular – deusa do amor
vulgar (GRIMAL, 2000:10). A tradição mais aceita é que Dioniso teve um filho com
Afrodite: Priapo, protetor das pastagens e plantações; um deus asiático venerado
primordialmente em Lâmpsaco (GRIMAL, 2000: 395). Com um descomunal falo ereto –
castigo de Hera, por sua mãe, Afrodite, ter se deitado com Zeus – o filho do deus
representava a fertilidade sexual e passou a fazer parte das representações do culto
dionisíaco. De acordo com alguns pesquisadores, como Marlene Fortuna (2005), Priapo
chegou a ser representado como o ciúme da virilidade, o ciúme e a insegurança que os
homens sentiam – e sentem – de suas mulheres com outros homens de falo maior que o dele.
Marlene Fortuna dos relata um mito, que faz parte do nascimento de Priapo em Lâmpsaco,
após Afrodite ter dado à luz a este verdadeiro monstrinho e o ter abandonado:
50
As senhoras de Lâmpsaco, no entanto, adoram-no, só tem olhos para ele e seu membro. O jovem Priapo, desejando pôr seu “grande instrumento” à prova, se sente todo entusiasmado a responder à solicitação delas. Os maridos se opõem e exigem o exílio de Priapo. As esposas, aos prantos, suplicam o auxílio dos deuses. E daí, por uma maldição dos deuses, uma doença grave abate-se sobre o sexo dos cidadãos de Lâmpsaco. Priapo tem de ser chamado de volta à pátria para o infortúnio acabar e os cidadãos voltarem à normalidade (FORTUNA, 2005:136).
Contudo, Priapo jamais conheceu o gozo, seu falo desproporcional é inútil para o seu prazer.
O segundo amor de Dioniso foi Ariadne. Abandonada na Ilha de Naxos por seu amor
Teseu, Ariadne presenciou o culto de Dioniso e se fascinou com a beleza do deus (GRIMAL,
2000: 45). Este a desposou e a levou até o Olimpo onde, segundo a tradição mais aceita,
tiveram quatro filhos: Toas, rei de Mirina, que se vestia como Dioniso; Estáfilo, pastor que
inventou a mistura de vinho e água; Enópion, rei de Quios, introduziu o vinho em seu reino e
seu nome vem do grego οινοπιων, que significa “o que bebe vinho” e Pepareto, epónimo da
Ilha de Pepareto. Percebemos que tanto Priapo como os outros filhos de Dioniso mantêm a
raiz de poder cthônica do pai, assim como o apelo sexual no caso de Priapo, como uma
forma de continuísmo das tradições.
Outro deus ligado a Dioniso por afinidades faz parte do primeiro panteão olímpico,
trata-se do deus dos mares Poseidon. As duas divindades são relacionadas ao elemento
úmido. Marcel Detienne, na obra A Invenção da Mitologia, chama este poder fecundo da
água como o poder do jorro (DETIENNE, 1991:47), embora este poder seja diferente nos
dois deuses. Enquanto Poseidon jorra a água de seus mares com maremotos para destruir
cidades ou ondas gigantescas para confundir os marinheiros – como fez com Odisseu – o não
menos poderoso e destrutivo jorro de Dioniso faz crescer a vinha e a uva, que se transforma
na bebida que embebeda e enlouquece os homens, podendo torná-los tão destrutivos como
um maremoto. Dioniso possui relação também com seu irmão mais velho Hermes, o
mensageiro dos deuses, que a mando de Zeus levou Dioniso até as ninfas. Hermes também é
um deus itifálico, representado sobre a forma de um pilar com um falo em ereção
(DETIENNE & SISSA, 1990:268) e durante o terceiro dia das festas das Antestérias em
honra a Dioniso – que são abordadas no terceiro capítulo – os sacrifícios são dedicados a
“Hermes cthônico” (BURKERT, 1993:432). A ligação de Hermes com o mundo dos mortos
– ele é o deus mensageiro que conduz as almas ao mundo subterrâneo – faz com que Dioniso
também se ligue a este mundo; o deus vai até o reino de Hades buscar sua mãe Sêmele para
51
ser levada ao Olimpo como deusa. Algumas festas dionisíacas – como é elucidado no
terceiro capítulo – também celebram a relação do mundo dos vivos com o mundo dos
mortos.
Haiganuch Sarian aponta-nos algumas cerâmicas do século VI que representam
Dioniso junto a Héracles. Embora os mitos tradicionais não façam relação aos dois deuses –
excluindo o fato de serem meio irmãos, ambos filhos de Zeus – Sarian afirma que estas
representações acontecerem somente após a ascensão do poder tirânico – principalmente o
ateniense – que aproxima o anti-social Dioniso do herói cívico Héracles, desta forma
atenuando as distinções de Dioniso e o mundo religioso oficial (SARIAN, 2005:127). A
cerâmica no período arcaico também representará Dioniso junto a Hefesto; sobre isto
tratamos no segundo capítulo. Um caso distinto destes é a relação entre Dioniso e Hera.
Classificamos esta relação de anti-afinidades, porém não com menor importância. Já foi
colocado no mito fundador que Hera perseguiu Dioniso por onde o jovem deus andou. Estes
relatos ligam-se aos rituais dionisíacos: “No ritual, a polaridade das duas divindades é
sublinhada pelo facto de as suas respectivas sacerdotisas não se saudarem, e pelo facto de
não ser levada hera para o santuário de Hera.” (BURKERT, 1993:433)
Todavia, a mais polêmica relação de Dioniso com um deus, sem dúvida, é a com seu
outro irmão Apolo; relação que influenciou até a filosofia do século XIX. Para Burkert: “A
antítese entre Dioniso e Apolo, entre o aspecto dionisíaco e o aspecto apolínio, foi a que se
tornou mais famosa.” (BURKERT, 1993:434). Ao contrário do que acredita parte do senso
comum, as relações entre Dioniso e Apolo não surgem na obra de Friedrich Nietzsche.
Nietzsche possuía um pleno conhecimento dos mitos gregos, principalmente no que dizia
respeito à relação entre estes dois irmãos – como no mito que Dioniso desce do berço e
rouba as cabras sagradas de Apolo – contudo Nietzsche não foi o primeiro a realizar uma
comparação reflexiva entre os dois. Marcel Detienne, com exímio conhecimento das fontes
clássicas, aponta que hinos órficos já tratavam das crenças apolíneas e dionisíacas, no que o
autor chamou de “Orfeu apolonizado” (DETIENNE, 1991:92). O que Nietzsche realizou em
O Nascimento da Tragédia (1999) foi uma tentativa de aproximar os cultos gregos pagãos da
modernidade como uma afronta ao cristianismo, contra o qual o filósofo tanto pregava. Não
pretendemos aqui realizar um exaustivo estudo sobre a filosofia do século XIX, nem sobre a
52
obra O Nascimento da Tragédia, pois vários autores já se dedicaram a isso22. Nossa intenção
aqui foi somente de elucidar como o dionisismo sofreu e sofre apropriações com as
transformações de pensamentos através dos séculos e tornar claro que o cotejamento entre
Apolo e Dioniso nasceu com os próprios gregos e não na contemporaneidade.
Apolo e Dioniso são representações da contraposição. Apolo é o deus da luz, o deus
da música e da harmonia, do conhecimento, da temperança e da sabedoria individualista; esta
arte representa a individualização, conseguida através da glória (MACHADO, 2006:204). Já
Dioniso é um deus noturno, que se manifesta através do que é desordenado e misterioso;
ambos são deuses que, embora irmãos, representam a diferença e a contraposição:
O culto dionisíaco, em vez de delimitação, calma, tranqüilidade, serenidade apolíneas, impõe um comportamento marcado por um êxtase, um entusiasmo, um enfeitiçamento, um frenesi sexual, uma bestialidade natural constituída de volúpia e crueldade, de força grotesca e cruel (MACHADO, 2006:214).
Contudo, os deuses não são rivais e muito menos são representados desta forma dentro da
sociedade ática, haja vista que sempre próximo a um espaço teatral – na sua essência um
espaço dionisíaco – existia um templo dedicado a Apolo. As representações de ambos
constroem a idéia de contraposição na sociedade, como o claro e o escuro, a serenidade e o
êxtase, a temperança e o frenesi, que não necessariamente se contrapõem, mas se
complementam. Nas palavras de Roberto Machado, a alegoria entre Dioniso e Apolo “(...)
postula a divisão entre uma Grécia marcada pela serenidade, ou simplicidade, (...) e uma
Grécia arcaica, sombria, violenta, selvagem, mística, extática (...)” (MACHADO, 2006:215).
O terceiro grupo seria o das divindades que são representadas juntamente com
Dioniso durante seu ritual. Trata-se dos sátiros e de Sileno. Os primeiros acompanham
Dioniso em seu cortejo, tomando vinho e perseguindo as mênades e as ninfas. Os sátiros
eram extremamente itifálicos e sexualizados, pelo menos em um primeiro momento: “E
como se masturbavam! Eram bestiais em suas investidas às Mênades ou Bacantes, (...). Mas
tudo isso eles faziam mais de uma forma jocosa, para se divertirem, do que de uma forma
erótica para aproveitarem os prazeres do sexo.” (FORTUNA, 2005:132). Estas divindades
sofrem diversas mudanças em sua representação. Nas figuras mais antigas, a parte inferior do 22 Ver ALBORNOZ, Suzana. “Os ideais morais segundo Ernst Bloch – a união de Dioniso e Apolo”. In: Seminário sobre os Pensadores Alemães. Santa Cruz do Sul: Universidade de Santa Cruz do Sul, 1999. Ver também: BENCHIMOL, Márcio. Apolo e Dionísio: arte, filosofia e crítica da cultura no primeiro Nietzsche. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2002.
53
corpo era a de um cavalo ou um bode, enquanto a superior era humana. Em outras
representações possuíam cauda e um falo ereto de proporções sobre-humanas (GRIMAL,
2000: 413). Estas figuras bestiais não são aceitas de início pelos ceramistas áticos do período
homérico, que em muitos vasos representavam o herói cívico em detrimento das figuras
rústicas não cívicas (BÉRARD, 1974:43) por motivos de poder real ou aristocrático que já
elucidamos anteriormente. Pouco a pouco as imagens vão se atenuando e se tornando menos
bestiais, provavelmente com a ascensão das tiranias. Sobre isso discutimos no segundo
capítulo. Alguns autores vão até forjar outro nome para estes sátiros transformados: faunos.
Já Sileno tinha a aparência de um sátiro envelhecido, era muito feio, com nariz anduco,
calvo, com lábios grossos e olhar taurino (GRIMAL, 2000: 418); estava quase sempre
embriagado. Algumas tradições colocam-no como filho de Hermes e de uma ninfa
(VENERI, 1981: 416), outras como nascido das gotas de sangue de Urano, quando este foi
castrado por seu filho Cronos; ainda há a tradição que o coloca como filho de Pã. Sileno era
marido da ama-de-leite de Dioniso (FORTUNA, 2005: 129) e passa a ser o conselheiro do
deus em toda a sua adolescência. A questão central é que estas figuras – os sátiros e Sileno –
são primordialmente bestiais, mas vão se abrandando conforme o poder necessitava,
adentrando gradativamente na oficialidade da polis. Thomas Carpenter elucida que até
meados do século IV as duas palavras – sátiros e Sileno – tornaram-se quase que sinônimos;
na obra Symposium de Platão pode-se perceber que Alcibíades utiliza os dois termos como
sendo a mesma coisa, quando descreve as mudanças de Sócrates (CARPENTER, 1986:78).
Toda a difusão destas imagens obteve a colaboração dos artistas e ceramistas para “criar”
representações próprias para as divindades, como nos aponta Claude Bérard, em sua obra
Anodoi: essai sur l’imagerie des passages chthoniens:
A presença de criaturas demoníacas, longe de nos remeter para um determinado gênero teatral, anuncia o nível de experiência religiosa em que a cena se desenrola. Associados a essa divindade, eles a caracterizaram em função de suas prerrogativas essenciais: colocam em evidência o aspecto "selvagem", muitas vezes cthônico; algumas vezes originariamente não-grego. (BÉRARD: 1974, 41)
Onde efetivamente o culto a Dioniso se instaurou? Precisamos ter clareza de que esta
não é uma inquietação nossa. Os gregos já possuíam esta inquietação, sobretudo no século V,
onde a dicotomia grego X bárbaro se acentuou. Trabulsi coloca-nos até que a suposta origem
estrangeira de Dioniso seja um discurso construído nas diversas polis, em uma tentativa de
54
colocar Dioniso no lado do abismo bárbaro, já que seu culto consistia em um certo lado de
êxtase irracional (TRABULSI, 2005:35).
Eudoro de Souza responde-nos que já no período minóico existem vestígios
arqueológicos que remetem a um possível culto de um antiqüíssimo Dioniso (SOUZA,
1973:18). O período minóico assistiu ao apogeu da cultura cretense e de várias cidades que
buscavam autonomia, sendo a principal delas Cnossos, a cidade do lendário Minotauro. É
sabido que após o ano 1900 Creta passa a ter relações estreitas com o Oriente, tanto
econômicas quanto culturais. O autor então conclui que Dioniso surgiu nesta região e por
volta desta época, e segundo ele isto explicaria o porquê do deus ter tantas características
orientais, sendo um deus em parte cretense e em parte asiático. Carl Kerényi também parte
da idéia de um Dioniso cretense e em uma de suas obras, intitulada Dioniso: imagem
arquetípica da vida indestrutível, elucida vários vestígios arqueológicos que provam que a
divindade era cultuada já neste período (KERÉNYI, 2002:50)
Porém, ter o deus em imagens cretenses não nos ajuda em nada a provar que Dioniso
começou a ser cultuado nesta época e, ao contrário de ambos os autores, não acreditamos que
estes vestígios sejam uma prova de que o culto nasceu em Creta e era praticado por
habitantes das cidades cretenses. Esta afirmação que Dioniso surgiu especificamente em
Creta já foi descartada pelos historiadores do dionisismo (TRABULSI, 2005:32). Uma
tentativa plausível utilizada pelos historiadores é o de reconstruir a etimologia do nome
Dioniso – trabalho que já expusemos aqui – e aliá-la à filologia. Trabulsi coloca, em sua
obra, que a parte final do nome no original grego, nysos é um equivalente traço-frígio do
grego kouros (jovem rapaz) (TRABULSI, 2005:33). Se concordarmos com a questão
filológica, Dioniso é um deus aliado à Ásia. Trabulsi dá-nos algumas outras semelhanças
entre o deus e os cultos asiáticos: “os traços comuns entre o culto de Dioniso e os da Grande
Mãe da Ásia; a associação com o pinho, ligado a vários cultos na Ásia Menor” (TRABULSI,
2005:34). Entretanto, afirmar ao certo não nos é possível e nem temos a pretensão de esgotar
estes questionamentos.
Quando o culto se instaura? Antes da decifração da escrita Linear B, os historiadores
datavam o culto a Dioniso no século VIII, pois Homero o conhecia e cita-o em quatro
passagens em seus poemas, embora, como já foi dito, o deus pouco ou quase nada foi
representado antes do século VI. Posteriormente a decifração da escrita minóica, esta data
retrocede muito porque o nome de Dioniso é encontrado em dois tabletes de argila cozida,
em Pilos, mostrando o deus já como uma divindade do vegetal e do vinho (TRABULSI,
55
2005:22). Trabulsi coloca, também, que Dioniso se torna popular na maioria das polis desde
a invasão dórica que propiciou a desagregação do mundo micênico:
(...) no que se refere ao sincretismo dionisíaco, o momento capital pode ter sido o do contato dos grupos indo-europeus com as populações autóctones ou, mais precisamente ainda, o da estruturação das soberanias palacianas. (...) no segundo momento, quando, depois da constituição do trifuncionalismo na época da comunidade indo-européia, veio o momento, com a diáspora, da incorporação de elementos das ideologias das populações submissas (TRABULSI, 2005:28).
Não existem vestígios arqueológicos que representam a imagem concreta de Dioniso
que datem de antes do século VI. As primeiras imagens em cerâmica do deus são vasos
coríntios (TRABULSI, 2005: 110) já deste século. Uma hipótese bem provável, que já foi
elucidada neste trabalho para esta escassez de imagens materiais, seria a elite aristocrática
que predominava até o século VI; para isso é preciso compreender a configuração política e
social desta época. Primeiramente, vamos citar uma informação e guardá-la: Ciro Flamarion
Cardoso aponta-nos que a aristocracia que ascendeu com a queda da monarquia micênica era
detentora da maior parte das terras, controlando grande parte do motor econômico grego
(CARDOSO, 1987:21). Vamos a uma segunda constatação: Dioniso era um deus rural, deus
da vegetação, um deus essencialmente popular, um deus dos habitantes que viviam nos
campos. Juntando as duas informações não é difícil percebermos o motivo de o dionisismo
ter sofrido uma enorme resistência por parte da elite do período homérico. Não era
interessante aos aristocratas detentores do poder que um culto popular se difundisse na polis.
Dioniso até o século VI era um deus marginalizado pela elite aristocrática, cultuado somente
por festejos populares rurais, longe das oficialidades religiosas de parte da elite:
Dos festejos populares até sua utilização pelos tiranos como solvente da religião aristocrática, sistema alternativo promovido ao mesmo tempo que controlado e integrado no novo equilíbrio, despojado da rudeza “primitiva” que podia ameaçar a polis, onde, apesar do alargamento da base política, os nobres conservavam um papel dominante e onde a ideologia aristocrática, ainda que reelaborada, continuava a garantir a reprodução das estruturas sociais. (TRABULSI, 2005:118)
Dioniso será difundido na oficialidade da polis somente após a ascensão das tiranias,
já no século VI; mas isto é assunto para o próximo capítulo.
56
1.5 O Hino Homérico a Dioniso
Uma série de documentos é particularmente intrigante quando estudamos as
religiosidades gregas. Trata-se dos Hinos Homéricos. Estes hinos foram redigidos em épocas
diferentes da Antiguidade e estão espalhados por diversas obras; inclusive em obras
modernas, como a Epístola crítica 1, datada de 1781 de David Ruhnken, que reuniu vários
destes hinos. São trinta e sete hinos redigidos em hexâmetros, cada um honrando uma
divindade distinta; foram atribuídos a Homero pela tradição manuscrita. Todavia, os
estudiosos de filologia e lingüística não atribuem mais estes hinos a Homero, já que as
formas de escrita diferem, sugerindo que as épocas em que foram escritos os hinos diferiam
umas das outras. Acreditamos que os hinos foram atribuídos ao aedo porque estes também
detinham uma tradição oral, com rapsodos que os recitavam na ágora, como uma referência
à antiga recitação pública dos épicos homéricos:
Na maioria dos casos, tratava-se provavelmente de autênticos cantos, em metro lírico, dedicados aos deuses, mas sem dúvida que também outros hinos como aquele com que Hesíodo triunfou (Erga, 657), estavam redigidos à maneira dos que se atribuíam a Homero. Com estes achamo-nos por completo dentro da tradição rapsódica, que reflecte uma dependência da linguagem homérica, verificável até nas locuções. O mesmo se diga da esfera das idéias, se bem que, neste aspecto, a margem de variação é ainda consideravelmente maior nos diferentes poemas do que no aspecto formal. O facto de se cantar em estilo épico perante um público e acerca de temas que, no fundo, são alheios ao mundo da grande poesia heróica confere a alguns destes poemas um encanto especial (LESKY, 1995: 106 – 107).
Na introdução de sua tese de doutorado, José Marcos Mariani de Macedo aponta-nos que os
Hinos Homéricos eram utilizados como prefácio à récita dos épicos (MACEDO, 2007:1);
esta tese reforçaria a tradição oral destes hinos.
Albin Lesky foi um dos poucos historiadores a fazer alguma referência a esses hinos,
já que eles não são muito utilizados pelos historiadores da Antiguidade. José Antonio
Dabdab Trabulsi, em sua obra, nem sequer menciona este Hino Homérico a Dioniso que será
por nós analisado. Consideramos que o hino é uma fonte importante para o estudo do
dionisismo, já que retrata alguns aspectos essenciais da representação do deus durante a
Antiguidade. Embora não se saiba quem o escreveu e em que época foi escrito, não deve ser
ignorado. Também é de extrema dificuldade a datação da compilação que chegou até nós.
Contudo, os autores chegaram a certo consenso da data na qual os hinos foram recitados pela
57
primeira vez:
Burkert e Janko, de forma independente, chegaram à mesma conclusão, e sugerem a data de 523 ou 522 a.C., quando Polícrates, tirano de Samos, celebrou em Delos – com o aval do oráculo de Delfos – um festival chamado ao mesmo tempo pítico e délico (...) (MACEDO, 2007:7).
Percebemos em alguns hinos que a tradição de outros povos é muito forte, dado todos
os processos migratórios no Mediterrâneo. No Hino a Apolo Délio, existe um forte apelo
jônico, descrevendo festas e rituais deste povo (LESKY, 1995:107). Embora estes hinos
sejam de difícil datação, é dada como certa a possibilidade de que foram redigidos na
Antiguidade, pois Tucídides faz referência ao Hino a Apolo Délico em seus escritos e chega
até a discutir sobre a tradição hínica:
Tucídides também nos testifica que hinos deste tipo eram atribuídos a Homero. Numerosos testemunhos, que se estendem até ao ocaso da Antiguidade, afirmam o mesmo acerca de alguns destes poemas, ou acerca de uma colecção deles, que não tem necessariamente que coincidir com a nossa (LESKY, 1995:107).
Existem também outras séries de hinos que possuem passagens que retratam Dioniso.
Alguns deles são os hinos órficos. Estes hinos foram escritos por integrantes do orfismo,
religião dedicada a Orfeu, que conseguiu muitos adeptos através de uma resistência aos
cultos oficiais. Os manuscritos foram encontrados em 1962 na Tesalónica e datavam
provavelmente do século IV (ZAIDMAN & PANTEL, 2002:136). Estes cultos órficos
ocorriam em determinadas regiões da Grécia. Marcel Detienne é um dos poucos autores que
realizaram um estudo sobre estes rituais, já que quase não nos chegaram fontes que os
retratam, por não se tratarem de cultos oficiais. Em sua obra Dionysos Mis à Mort, o autor
afirma que os discípulos de Orfeu exerceram, em dada época, um radical questionamento das
religiões oficiais da cidade (DETIENNE, 1998:167). Alguns autores acreditam que os hinos
órficos surgiram como resistência às teogonias hesiódicas, já que estas foram adotadas como
oficiais:
A teologia órfica se forma em oposição ao relato hesiódico e a sua ambição fundadora, e realmente serve de apoio aos contestadores que recorrem à figura de Orfeu para contestar e rechaçar as normas político-religiosas da polis (...). (ZAIDMAN & PANTEL, 2002:136)
58
Não iremos analisar os hinos órficos neste trabalho, primeiramente pela questão do
tamanho da dissertação e também porque, de acordo com os estudos, estes seriam mais
recentes que os hinos homéricos. Os órficos datariam já do período helenístico, período não
compreendido pela nossa dissertação: “Na era helenística, cresce um pouco o número de
documentos graças aos hinos destinados a cultos locais ou a determinados eventos do
calendário litúrgico” (MACEDO, 2007:1). Já o hino homérico teria várias características do
período anterior – o clássico – e até de períodos anteriores ao clássico, que nos ajudariam a
pensar um imaginário dionisíaco dos períodos abarcados por este trabalho. Destarte nossa
intenção – como já foi dita – não é dar menos importância a fonte, já que os hinos órficos
subversivos tiveram seu papel na sociedade, como afirma Detienne: “Como o orfismo é uma
literatura inseparável de uma espécie de vida, uma ruptura com o pensamento oficial conduz
a pequenas diferenças nas práticas e comportamentos” (DETIENNE, 1998:169). Somente a
título de conhecimento, os hinos órficos tratam de um Dioniso diferente do conhecido por
nós nos períodos arcaico e clássico. O Dioniso órfico não é orgiástico nem liberal23.
A seguir analisaremos o Hino Homérico a Dioniso, de autor e época desconhecidos,
porém certamente da Antiguidade, pois nele percebemos a proximidade destes poemas em
relação à arte jônica da época arcaica – assim como no Hino a Apolo Délio. Vários frisos e
frontispícios das casas délficas representavam Dioniso tal qual a representação do hino
(LESKY, 1995:110). Teremos de deixar claro que este não é o único hino homérico que trata
de Dioniso. Alguns outros hinos atribuídos a Homero também citam o deus24.
O hino que trataremos aqui narra a captura de Dioniso por piratas25 salteadores que,
pensando que o deus seria algum príncipe, planejaram pedir o resgate ao rei seu pai. Já no
primeiro verso do hino temos os dizeres: “Em volta de Dioniso, de Sêmele magnissigne o
filho” (v. 1) aí temos mais um indício que vem a somar com a versão de Dioniso filho de
Semele, a mais aceita pelo imaginário helênico. Os últimos versos do hino também tratam da
23 Para ver a descrição de alguns hinos órficos ver: ZAIDMAN, Louise Bruit e PANTEL, Pauline Schmitt. La religión Griega en la polis de la época clásica. Madri: Ediciones Akal, 2002. 24 Para conhecer outros hinos em honra a Dioniso ver: MACEDO, José Marcos Mariani de. A Palavra Ofertada: uma análise retórica e formal dos hinos gregos e da tradição hínica grega e indiana. São Paulo: Universidade de São Paulo; Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas; Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, 2007. (Tese de Doutorado) 25 Yvon Garlan (1991) aponta-nos a diferença no conceito de pirata na Modernidade e na Antiguidade. Oriundo do grego peirataï, os piratas foram comuns na Antiguidade pela impossibilidade de fiscalização do Mediterrâneo por parte dos Impérios. Estes homens mercenários possuíam uma função social, pois por várias vezes foram contratados em tempos de guerra por conhecerem bem a costa marítima. Porém, não eram deixados de serem vistos como bandidos e não-cidadãos.
59
mãe do deus em forma de um diálogo entre Dioniso e o piloto da nau; curioso é o hino
iniciar-se e encerrar-se tratando da mesma questão:
sou eu Dioniso magnifremente que gerou mãe Cadméia Sêmele de Zeus em amor desposada. - Saudações, filho de Sêmele formosa, nem há como de ti esquecido com doçura mundificar-se o cantar (v. 56 – 59)
A relação que já foi elucidada de Dioniso com o deus dos mares Poseidon pode ser
encontrada já a partir do segundo verso da narrativa:
Lembrar-me-ei como luziu na praia do sal infatigável Sobre o quebra-mar na imagem de jovem homem no primeiro viço e bela circunvolvia a cabeleira (v. 2 – 4)
A alegoria de Dioniso com o mar, além de nos remeter a Poseidon, nos vincula
também ao elemento úmido que permeia as representações de Dioniso. A imagem de
Dioniso é jovem e não condiz com a representação do deus em sua origem, no período
arcaico26; esta conclusão reforçaria a datação do hino do período clássico ou até do helênico,
quando o deus passou a ter uma imagem jovial e muitas vezes até infantil. Dos versos
dezenove ao vinte e um podemos comprovar que Dioniso não é um deus do primeiro panteão
e pouco lembrado pelos mortais; quando um dos marinheiros percebe que capturaram um
deus, este avisa os companheiros remetendo-se a outras divindades, mesmo vendo Dioniso à
sua frente, parecendo não conhecê-lo:
pois ou Zeus é este, ou o de argênteo arco Apolo ou Poseidon,, porque não aos mortais homens é símil, mas aos Deuses que têm o palácio Olímpio. (v. 19 – 21)
Uma questão curiosa aparece no verso onze. Vamos à análise: trata-se do momento
da captura do deus pelos marinheiros. Quando estes avistam o jovem na água, clamam:
“parecia-lhes ser filho dos nutridos por Zeus reis” (v. 11). Já discutimos que, com o
nascimento de um corpo político na polis no período arcaico, os governantes deixaram de ser
encarados como divinos, como acontecia nos períodos micênico e homérico. Sabemos
também pelos estudos que já foram realizados que estes hinos foram escritos no período
26 No período arcaico, Dioniso é representado como um homem maduro, barbudo e cabeludo, por vezes rústico. Sobre estas imagens trataremos no segundo capítulo deste trabalho.
60
clássico ou até no início do período helênico. Então, deveríamos concluir que esta questão do
governante como não divino já deveria estar muito bem enraizada no imaginário destes
períodos, vários séculos após. Porém, não é o que percebemos neste hino, pois os
marinheiros acreditam que seja algum nobre descendente de alguma linhagem divina. Parece
que em algumas regiões da Grécia ou para alguns autores de hinos, esta idéia do governante
como não divino não estava completamente arraigada, como afirmam muitos historiadores
que tratam de política grega.
No sétimo verso temos: “piratas adiantaram-se velozes sobre o víneo mar” (v. 7),
aliando elemento úmido – o mar – com o elemento vegetal – o vinho produzido pela vinha.
Do trigésimo quinto verso ao trigésimo sétimo percebemos outra relação de Dioniso com o
vinho:
vinho primeiro através do veloz navio negro suavipotável soniflui bem olente e erguia-se odor imortal e a miração pegou a todos os nautas ao virem (v. 35 - 37)
Dos versos trinta e oito a quarenta e dois, temos a principal representação do deus
com o elemento vegetal – ligando-se a Deméter, por exemplo, como já foi elucidado –
quando Dioniso exala o ódio pelos marinheiros que haviam prendido-o junto ao mastro do
navio:
e já no ápice da vela estendeu-se toda a videira aqui e ali e suspendiam-se muitos cachos e em volta da vela enrolou-se a negra hera luxuriosa de flores e gracioso o fruto sobre-ergueu-se e todas as cavilhas tinham coroas e quando viram (v. 38 – 42)
Percebemos nesta passagem que Dioniso não usa o vegetal somente para fecundidade e
alegria, mas também como forma de ataque àqueles que não lhe querem bem. Veremos que
esta atitude violenta de Dioniso com quem não o respeita será retratada por Eurípides na
peça As Bacantes, que analisaremos no terceiro capítulo deste trabalho. Entretanto, Dioniso é
bondoso com aqueles que o respeitam. O deus transforma os marinheiros em golfinhos, mas
poupa o piloto da nau, pois este desde o início dizia-se contra o rapto do jovem e belo rapaz:
“- Coragem!, divino guia, grato ao seu ânimo” (v. 55).
Um ato curioso no hino é o zoomorfismo. No verso quarenta e quatro, Dioniso
transforma-se em leão para castigar os marujos: “levar para a terra e ele leão se lhes fez no
61
navio” (v. 44). A relação de Dioniso com o leão nos é estranha; embora o deus em alguns
lugares fosse representado como um touro (VENERI, 1981:414) – uma alusão a um possível
zoomorfismo – desconhecemos outra fonte que alia a representação dionisíaca com a
imagem de um leão, embora Marcel Detienne na obra Dioniso a Céu Aberto cita o leão como
uma das metamorfoses de Dioniso, juntamente com o touro27 e o leopardo (DETIENNE,
1988:31). Temos em outra obra de Detienne, a já citada Dionysos mis à mort, Dioniso aliado
à imagem de uma pantera28 (DETIENNE, 1998:51). Podemos então concluir que a imagem
do leão nesta fonte seria talvez uma representação imagética isolada em algum local
específico ou em certa época – já que não temos como definir o local nem a data exata de
escrita do hino – que se perdeu por algum motivo e que poderia haver muitas outras fontes
com outros animais – como nos aponta Detienne – que não chegaram até nós. Outra
passagem que reflete a transformação zoomórfica se dá quando o deus castiga seus raptores,
transfigurando-os em golfinhos29. Possivelmente o zoomorfismo permeava o imaginário da
época e do local onde o hino foi redigido:
e agarrou o chefe e para fora ao evitarem a má parte todos à uma pularam, quando viram, no sal divino e golfinhos nasceram, mas do piloto teve piedade (v. 51 – 53)
Sabemos que em uma festa do século VI é celebrada a chegada de Dioniso após
salvar-se do rapto dos piratas. Uma procissão transporta um barco, que às vezes também é
puxado sobre rodas (BURKERT, 1993:325). Esta festa não nos ajuda muito para saber da
idade do hino, já que tanto a festa pode ter passado a acontecer por influência do hino quanto
o hino só foi escrito como relato para imortalizar este aspecto da festa. O caso é que os
gregos conheciam efetivamente esta passagem.
Agora que já vimos o dionisismo – ou a ausência dele – nos primórdios da
27 O touro é utilizado como animal de sacrifício em inúmeras festas dionisíacas, presentes em todas as regiões da Grécia. 28 No LIMC é encontrada a imagem de um vaso do período helênico – datado de 200 a 150 a.C. – onde vemos Dioniso sentado no lombo de uma pantera, segurando um tirso. Embora a imagem não mostre uma metamorfose é perceptível que, mesmo em uma representação tardia, Dioniso possui uma relação com o animal. 29 Também no LIMC pode-se conferir um artefato de cerâmica que mostra sete golfinhos em volta de um navio cercado por uma vinha com cachos, e Dioniso deitado em seu convés. Este vaso foi encontrado em Vulci e datado provavelmente de 530. De acordo com Walter Burkert (1993) trata-se da taça de exéquias, hoje em Munique. Com estas informações é passível a conclusão que a lenda de Dioniso e os piratas é mais tardia que este hino – se concordarmos que o hino foi redigido no período clássico ou helênico – e o escritor se apropriou de uma lenda que, talvez, fosse muito difundida em sua época ou em seu local de convívio.
62
religiosidade grega, trataremos no capítulo que se segue de entender como este dionisismo
anteriormente negado adentra a polis com a ascensão dos tiranos e passa a fazer parte do
calendário oficial de quase todas as cidades-estado helênicas, sobretudo Atenas.
63
CAPÍTULO 2
PISÍSTRATO E AS TRANSFORMAÇÕES RELIGIOSAS NO PERÍOD O ARCAICO:
O CASO DA DIFUSÃO DO DIONISISMO PELO PODER TIRÂNICO
2.1. Pisístrato, o tirano demagogo da obra Histórias, de Heródoto
Neste segundo capítulo, pretendemos discorrer sobre as transformações políticas e
sociais que ocorreram com o fim da época homérica e o início da chamada época arcaica e
pontuar as transformações políticas e sociais que aconteceram em constante relação com as
transformações culturais e religiosas. Assim como no primeiro capítulo – no qual analisamos
as transformações ocorridas nas passagens do período micênico para o homérico –
estudaremos brevemente as transformações que propiciaram o surgimento da época arcaica.
Centramos nossa pesquisa na cidade de Atenas, primeiro por ser a cidade-Estado que
mais documentos nos legou e também por uma questão de espaço na dissertação. Porém, é
imprescindível ressaltarmos que muitas outras tiranias aconteceram em todo o território
grego30 e seria errôneo de nossa parte creditar menos importância a estes governos. A
questão de adentrarmos na tirania de Pisístrato e de seus filhos foi uma opção por
entendermos que esta tirania foi de extrema importância para o dionisismo, pois foi a forma
de governo que mais o difundiu. Quando se faz necessário, citamos outras tiranias em nível
de comparação31. É essencial elucidarmos que na época arcaica Atenas ainda não conhecia
seu apogeu, pelo contrário, antes das guerras Greco-Pérsicas, Atenas era muito mais atrasada
do que a maioria dos centros helênicos (LEVI, 1991:30). De acordo com Norberto
Guarinello, é com esta guerra que Atenas se tornará a cidade-estado mais importante e,
conforme o autor, exercer seu imperialismo (GUARINELLO, 1994:14).
Nossa intenção é elucidar brevemente a transição do período anterior para o período
arcaico. É fundamental para a compreensão desta transição entendermos os fatores
econômicos que modificaram a estrutura políade e propiciaram a formação de um novo
30 Para conhecer as outras tiranias, tanto no período arcaico como em outros períodos da história grega ver: MOSSÉ, Claude. La Tyrannie dans la Grèce antique. Paris: Quadrige/PUF, 2004. Mossé inova os estudos da tirania nesta obra. As tiranias mais conhecidas e estudadas são efetivamente as do mundo arcaico. A historiadora analisa profundamente outras tiranias de outros períodos, que tradicionalmente não são analisadas, como o clássico e até o helênico. 31 Faz-se importante deixar claro de que as tiranias não predominaram como forma política no espaço geográfico da Grécia. Pelo contrário: somente vinte e sete cidades-estado passaram por uma tirania e cidades importantes, como Esparta, jamais conheceram um governo tirânico
64
campo político. Entendemos que no período homérico a aristocracia exerceu amplo poder
social, contudo transformações econômicas ocorridas na passagem do século VIII para o
século VII fizeram com que outros segmentos sociais também enriquecessem:
A crescente riqueza das comunidades no século VII era, em parte, distribuída entre homens que estavam fora das aristocracias dominantes e que se ressentiam de sua falta de influência (JONES, 1997:5).
Mas como este segmento social que até então estava subjugado à aristocracia
enriqueceu na passagem de um século para outro? Os historiadores apontam-nos alguns
fatores que foram determinantes. O primeiro deles seria a origem da colonização grega que,
embora tenha muitas versões, transformou os valores e conceitos econômicos até então
vigentes na sociedade. A aristocracia, que já não poderia depender exclusivamente da terra,
foi comercializar com outras sociedades, abrindo assim espaço para as rotas comerciais.
Claude Mossé diz que um número de homens que não fazia parte da aristocracia lançou-se
ao mar para comercializar materiais da qual a Grécia não possuía ou era muito pobre, como o
ferro, imprescindível para o fabrico de armas e utensílios (MOSSÉ, 1989:103), ou o trigo
trazido do Egito. Desta forma, a aristocracia já não possuía o monopólio das rotas
comerciais. Entretanto, falar em economia para o período arcaico é demasiadamente
complexo, pois os pensadores antigos não haviam formado este conceito até antes do século
IV e é com os filósofos deste período que surge uma reflexão sobre a moeda e a atividade
mercantil32. Por este motivo não faremos uma longa reflexão do porquê os indivíduos que
não faziam parte desta aristocracia lançaram-se ao mar em busca de novas riquezas33.
Posteriormente vieram juntar-se a estes mercadores muitos integrantes do
campesinato que foram arruinados por esta nova prática mercantil, enfraquecendo os
privilégios aristocráticos (MOSSÉ, 1989:122). Este campesinato se moderniza e modifica o
conceito de sociedade pastoril:
No entanto, temos provas concretas de que o século VIII assistiu ao desenvolvimento de uma economia agrícola e expensas das formas de
32 A moeda no período arcaico não se popularizou, sendo um artigo utilizado em alguns locais e, de acordo com os estudiosos, não interferiu nas relações comerciais por muito tempo. 33 Alguns autores tratam esta expansão comercial como um capitalismo antigo. É o caso de Gustave Glotz, que afirma que “Um capitalismo cada vez mais audacioso domina o mundo grego, deixando para trás a vida mesquinha dos velhos tempos.” (GLOTZ, 1980:84) Como sabemos que aplicar a noção de capitalismo para a Antiguidade é um anacronismo e que a noção de economia para os gregos não surge no período arcaico, este tipo de afirmação se torna infundada.
65
economia pastoril dominantes no decurso dos séculos obscuros. (...) E o grande poema de Hesíodo, Os Trabalhos e os Dias, composto em fins do século VIII, chegou inclusive a ser considerado como a primeira obra de agronomia grega digna desse nome. O aumento demográfico, revelado pelo estudo das necrópoles, dá igualmente testemunho desse crescimento da produção agrícola, que deve ter derivado, se não de melhores técnicos (não se sabe ao certo quando é que o arado vem a surgir, e a própria charrua irá continuar a ser um instrumento relativamente primitivo até época bastante tardia), pelo menos do arroteamento das eschatiai, das zonas fronteiriças (MOSSÉ, 1989:123).
Esta evolução agrícola tirou grande parte da influência comercial da antiga aristocracia
pastoril, que começa a ver seu patrimônio definhar.
Todavia, está claro para os estudiosos deste período que um outro grupo ascendeu
com o enfraquecimento da antiga aristocracia: trata-se dos artesãos. A cerâmica passa a ser
um produto acalentado pelo consumo – haja vista o número de centros de produção – pela
multiplicidade de formas e pelo aperfeiçoamento da técnica e do estilo (MOSSÉ, 1989:124).
Estes artefatos passam a ser usados tanto por comerciantes – como recipiente de transporte
de trigo, azeite ou vinho, ou mesmo como utensílio a ser comercializado – como pelo oikos,
para função cotidiana. Com a popularização da cerâmica – que causou também o
barateamento da mesma – as famílias passaram a utilizá-la como primeiro utensílio para o
cozimento e armazenamento alimentar. Já a família aristocrática se vê obrigada a diminuir
seus filhos, pois a terra era cada vez menor e a partilha em muitos filhos acabaria por tornar
ínfimo o território herdado por cada um (MOSSÉ, 1989:134-135). Assistimos nesta época o
começo do endividamento campesino – que culminará com as reformas de Sólon, como
veremos à frente – e do declínio aristocrático e da mão-de-obra que para ela trabalhava.
Mossé não elucida com precisão as causas deste endividamento, mas acredita que um dos
motivos seria a exportação de cereais de outras localidades, resultando em um colapso da
produção local (MOSSÉ, 1989:137).
Outra causa de extrema importância – para alguns de principal importância – para a
transformação ocorrida no início do arcaísmo não é econômica, mas social. Trata-se da
chamada reforma hoplítica. A primeira representação de uma falange hoplítica trata-se do
vaso corinto oinochoe Chigi, datado do século VII (MOSSÉ, 1989:141). Podemos concluir
então que no século VII a falange já existia e, como até este momento não se encontrou
nenhuma representação anterior a este século, temos de dar como certo que a falange surge
aí.
66
Uma parte da população helênica, que transformou de forma significativa suas
finanças com o comércio, passou a investi-las na compra de armamentos e panóplias e
compuseram um exército de conquistas; eram os hóplitas, que compravam o metal trazido
por mercadores para seus armamentos e ofereciam seus serviços em guerras e batalhas,
exercendo assim uma manutenção do novo sistema vigente. Este exército colaborou para o
esfacelamento da já arruinada aristocracia pastoril, uma vez que ajudou no estabelecimento
das tiranias em toda a Grécia:
Para começar, digamos apenas que a falange não criou uma situação revolucionária, mas que ela deu aos descontentes – pelo menos a uma parte dos descontentes – um meio de se fazer ouvir. Ao mesmo tempo, ela eliminava, no nível das consciências, uma das justificações do monopólio aristocrático. Nesse sentido, ela foi uma condição sine qua non para uma mudança política importante. Temos vários indícios do controle dos hóplitas por parte de tiranos quando de seus “golpes de Estado”, e depois deles (TRABULSI, 2004:59).
Como foi dito no capítulo anterior, o hóplita substituiu a idéia do herói homérico,
nobre e descendente direto dos deuses. Contudo, para integrar este novo exército o indivíduo
deveria ser abastado e com renda suficiente para custear seu próprio armamento de guerra.
Trabulsi alerta-nos que não podemos pensar a falange como “classe hoplítica” ou “classe
consciente de si própria” (TRABULSI, 2004:60); eles foram, na maioria dos casos,
utilizados por manobras de tiranos para a tomada do poder. Para o dionisismo, a reforma
hoplítica propiciou o enfraquecimento das bases aristocráticas, que por sua vez perdeu o
poder de controle sobre a religiosidade da polis, fazendo os cultos rurais – como o de
Dioniso – adentrarem no seio das cidades e serem apropriados pelos tiranos, que tinham
intenção de alargar suas bases entre os populares e as camadas mais pobres. A falange
hoplítica foi solidária no sentido de contribuir para este processo.
Com este colapso na estrutura vigente, o momento se torna maduro para uma tomada
de poder por um tirano, pois os antigos governantes estava arruinados e os novos governos,
por sua vez, ainda encontravam-se desarticulados. Algumas tentativas ocorreram – como o
caso de Cílon, em Atenas – porém a maioria fracassou. Com o medo de uma tomada de
poder, a nova elite que se formou passa a adotar um sistema de leis e convoca alguns
membros desta elite para tornarem-se legisladores. Surgem aí às primeiras figuras realmente
históricas conhecidas na política grega. Peter V. Jones afirma que por volta de 621-20 o
primeiro legislador ateniense conhecido por nós, Drácon, publica um código de leis que veio
67
a tornar-se proverbial por sua severidade – daí o termo draconiano – baseado em regularizar
os procedimentos que tratam de homicídio. Suas leis fundamentaram-se especificamente em
dar uma resposta ao descontentamento dos eupátridas após a possibilidade de uma possível
tirania de Cílon (JONES, 1997:6).
Destarte a questão mais complexa e profunda que nasceu deste colapso – a crise no
sistema econômico agrário – não conseguiu ser nem sequer amenizada por Drácon; é daí que
surge o principal legislador ateniense: Sólon34. Este, ainda segundo Peter Jones, foi nomeado
árkhon35 em Atenas por volta de 594-93, já no século VI (JONES, 1997:7). Por sua tentativa
de legislar para todos, alguns autores crêem que foi de Sólon que nasceu a democracia
(BIGNOTTO, 1998:33) ou que durante a legislação deste a Grécia viveu a própria
democracia (GLOTZ: 1989:87). Não partilhamos da idéia de que Sólon instalou a
democracia ateniense ou que o mesmo foi um democrata. A democracia trilhou um relativo
lento processo após a tirania dos Pisistrátidas, que parte de Clístenes até chegar ao seu
principal nome, Péricles.
Tratando rapidamente da legislatura de Sólon – já que nosso objetivo com este
período é somente o de compreender o processo que propiciou a tomada de poder por
Pisístrato – podemos ter como certo que este legislador modificou as bases da política e da
sociedade ateniense, porém sem a capacidade de transformá-las. O legislador diminuiu os
poderes da então nova aristocracia que havia se instalado no campo e elaborou leis para os
trabalhadores destas terras: os hectémoroi36 e os pelatai37 (MOSSÉ 1999:19), creditando
maior direito aos trabalhadores, em uma tentativa de diminuir os descontentamentos e evitar
o estouro de um conflito na sociedade, que a desestruturaria e acarretaria na tomada de poder
por uma tirania: “Fica claro, portanto, (...) que Sólon foi chamado para tentar acalmar uma
disputa, que não mais podia ser contida nos quadros constitucionais, sem levar a uma guerra
interna de terríveis conseqüências” (BIGNOTTO, 1998:26). Os hectémoroi passaram a ser
donos da parte de terras que ocupavam e a principal lei de Sólon – Seisachtheia – abolia as
34 Algumas são as fontes que tratam deste personagem político; além das Histórias e da Constituição de Atenas, temos uma série de poemas escritos do próprio punho do legislador, além da obra Vida de Sólon, de Plutarco. Não iremos trabalhar com as fontes que retratam Sólon, pois não é este o centro da discussão em nosso trabalho. Para ver uma discussão sobre como Heródoto representou Sólon em sua obra ver: BACELAR, Aghata. “A Representação de Sólon nas Histórias.” In: Revista do Laboratório de História Antiga. Rio de Janeiro. 35 Elaborador de leis. 36 Espécies de rendeiros obrigados a dar um sexto da colheita aos que controlavam a terra no qual trabalhavam; por isso o nome, que significa sextaneiros. 37 Camponeses pobres que se viam forçados a endividar-se, ficando sob a ameaça de serem reduzidos à condição de escravos caso não pagassem a dívida.
68
dívidas contraídas até aquele momento, embora a escravidão por dívidas tenha continuado.
As mudanças ocorridas durante a legislatura de Sólon mudaram até a noção de areté. A
virtude aristocrática que antes era um brilho divino, agora deve ser conquistada com um
longo e penoso caminho traçado com trabalho, disciplina e esforço (VERNANT, 1986:58).
A virtude pode ser conquistada por qualquer um que tenha o dom para o trabalho e o
crescimento social e intelectual.
Também é importante ressaltar a organização social que as leis de Sólon vão
modificar. O legislador divide a cidade em quatro segmentos sociais conforme sua fortuna e
influência no corpo da sociedade: os pentakosiomedimnoi – possuidores de uma renda
elevada – os hippeis – cavaleiros – os zeugitai – hoplitas – e os thetes – trabalhadores
(BIGNOTTO, 1998:28). Embora somente os três primeiros tenham direitos políticos, os
thetes poderiam recorrer aos tribunais e votar medidas que interessavam a eles. Dessa forma,
Sólon quebra com a estrutura tradicional de poder então vigente, embora ainda mantenha os
ghéne38. A legislação de Sólon também propiciou mudanças mais lentas que viram seu
apogeu somente em fins do século, como “a orientação da agricultura para as culturas
arbustivas, a busca de um abastecimento regular de cereais e o desenvolvimento da indústria
cerâmica.” (MOSSÉ, 1982:16). Sólon certamente deveria ter a consciência que, ao alterar
significativamente a política social de Atenas, poderia trazer consigo conflitos por parte dos
insatisfeitos:
Sólon fundamentou suas concepções políticas na idéia de sacralidade da terra, e também na apropriação abusiva, por parte de poucos, das terras sagradas e públicas, o que evidentemente era considerado ilícito e suscitava protestos no momento em que o regime dos ghéne entrava em dificuldades e se encaminhava para uma situação de crise (...) (LEVI, 1991:32).
Newton Bignotto nomeia Sólon como o antitirano. Para o autor, o legislador
ateniense era temperante e sábio em suas decisões e a tentativa de governar para todos partiu
desta sabedoria. A opção por não se tornar ele mesmo um tirano, ainda na opinião de
Bignotto (1998), faz com que suas bases não se tornem sólidas e este não seja capaz de
continuar seu legado. Sólon somente elaborou as leis, não deu a sustentação social necessária
para que elas funcionassem. Tal como acontece com homens moderados como ele, que
38 Famílias que controlavam parte do poder estatal. Esta reunião de famílias – sinoecismo – cunhava moedas com seus próprios símbolos, armavam tropas e possuíam fortunas que os faziam capazes de ditar os rumos de parte da vida econômica políade.
69
possuem o intuito de agradar a todos, Sólon não agradou ninguém e “Viveu apenas o
bastante para ver que fracassara” (JONES, 1997:8). Porém, é nesta época que percebemos
mudanças bruscas nas idéias da polis. Além da transformação política – a lei como fator de
diferenciação nas sociedades humanas – também foi filosófica, à medida que propiciou “a
rebelião contra a tradição; a procura de novos princípios de explanação; a ascensão da dúvida
como estímulo intelectual para as novas descobertas.” (MOMIGLIANO, 2004:56).
Antes de adentrarmos na descrição histórica do período da tirania, devemos refletir
sobre o conceito de tirano. Já de antemão devemos ressaltar que o conceito de tirano
moderno não se aplica ao tirano antigo:
A palavra týrannos se difundiu na Grécia (...) na primeira metade do século VII a.C. O termo foi empregado pela primeira vez pelo poeta Arquíloco para se referir a Giges, usurpador do trono lídio. O termo pode tanto estar relacionado a uma cidade lídia da qual Giges era originário, quanto ao tirrenos que, para Heródoto entre outros, seriam de origem lídia (CONDILO, 2008:19).
A estudiosa Arlene W. Saxonhouse, em artigo publicado no The American Political Science
Review, concorda com a idéia de alguns especialistas em lingüística quando do uso da
palavra tirano. Para a autora, a idéia de tirano foi sendo modificada ao longo dos anos até
culminar em um conceito negativo utilizado para denegrir governos ou indivíduos
participantes da política contemporânea ou até para dar a entender que o indivíduo é mal e
totalitário, seja na política, em sua vida particular ou profissional. Já o tirano grego provém
de outro sentido:
A palavra tirania, no entanto, (...) é muito mais rica do que a popular imagem de um indivíduo que abusa do poder poderia sugerir. Na verdade, ela revela-nos o significado do Estado se limites, sejam eles morais, físicos ou históricos. O tyrannos é o novo governante, o indivíduo que chegou ao poder na cidade por outros meios que não o nascimento ou acordo precedentemente estabelecido (SAXONHOUSE, 1988:1261).
Reinhart Koselleck é um dos estudiosos que acredita que conceitos não podem ser
engessados semanticamente; como o de revolução ou estado, que chegam a se tornar um
clichê (KOSELLECK, 1992:137), tantas são as ocasiões em que são utilizados. A tirania
seria o rompimento com velhas tradições limitantes para a liberdade de ação,
independentemente de limites biológicos de sucessão. Sendo assim, o impulso tirânico não
70
foi necessariamente algo mal; poderia indicar uma criatividade e uma liberdade de
transcender os limites herdados do passado (SAXONHOUSE, 1988:1261)
José Antonio Dabdab Trabulsi coloca o tirano como um “homem providencial”
(TRABULSI, 2001:59). Com a crise no sistema sócio-econômico, a polis sente-se na
necessidade de buscar uma nova estabilidade; é nesta hora que o “homem providencial” se
mostra. Os tiranos gregos foram homens que se aproveitaram da situação instável para
propor uma nova forma de ação governamental para transformar a sociedade. Entretanto, o
que se constata é que estes tiranos – eles próprios membros de uma aristocracia – não se
comportaram como revolucionários e conservaram a situação já existente, porém com outras
formas de ação, se aproveitando dos meandros culturais e religiosos, principalmente. Claude
Mossé, já na primeira página de sua obra La Tyrannie dans la Grèce Antique, classifica os
tiranos como demagogos (MOSSÉ, 2004:1), indivíduos que chegam ao poder se utilizando
de artimanhas. Veremos passagens destas artimanhas relatadas por Heródoto e Aristóteles.
Moses Finley, como exemplar adaptador da teoria weberiana, caracteriza estes tiranos como
políticos profissionais; estes fazem da política um modo de vida, todavia esta é uma
atividade de segunda ordem, pois é utilizada somente como instrumento para realizar
objetivos que, em sua essência, não são políticos (FINLEY, 1985:119).
Uma das principais – e únicas, diga-se de passagem – fontes que tratam sobre a
tirania, sobretudo a de Pisístrato, é a obra Histórias, do historiador grego Heródoto39,
redigida no século V a.C., por isso posterior ao período arcaico. Heródoto foi considerado o
“pai da história”, o primeiro historiador já no período romano pelo orador Cícero40 – embora,
ao contrário do que afirma Hannah Arendt (2003), o termo que denominava historiador já
existisse em grego: historikôs – por ser o primeiro escritor a coletar dados precisos sobre
lugares, pessoas e fatos, com uma preocupação de deixar seu legado escrito para as próximas
gerações. Lyvia Vasconcelos Baptista aponta para esta questão do legado que Heródoto
intencionava imortalizar: “Heródoto almejava a imortalização dos feitos, pelo poder da
escrita (...)” (BAPTISTA, 2008:81). Para ressaltar a importância que Heródoto creditava à
memória e o perigo da ausência de história, Jeanne Marie Gagnebin aponta:
“(...) ele [Heródoto] toma para si a tarefa sagrada do poeta épico,
39 Nascido em Halicarnassos, na Caria – atualmente Turquia – aproximadamente em 480 a.C., Heródoto viaja todo o Mediterrâneo e vai até a Ásia, após ser exilado de Atenas por questões políticas. Durante essa viagem coleta abundante material para redigir sua obra, que recita posteriormente na ágora ateniense. 40 “pater historiae”
71
transformando-a ao mesmo tempo pela busca de causas verdadeiras: lutar contra o esquecimento, mantendo a lembrança cintilante da glória (kleos) dos heróis, isto é, fundamentalmente, lutar contra a morte e a ausência pela palavra viva e remorativa (GAGNEBIN, 2006:45).
Embora muito se tenha discutido sobre Heródoto se aproximar muito mais de outras
áreas das humanidades, como a geografia e a etnologia (HARTOG, 2002:290), pois muitas
das impressões deixadas em suas obras tratam de um caráter mais antropológico do que
propriamente histórico, esta foi considerada a primeira obra com uma preocupação histórica.
Esta opinião de um Heródoto etnólogo também é partilhada por Arnaldo Momigliano, que
coloca que somente depois de um tempo o escritor se interessou em redigir a história das
guerras Greco-Pérsicas (MOMIGLIANO, 2004:60). Em um artigo publicado na metade da
década de quarenta do século passado, no The American Historical Review, Truesdell S.
Brown analisa Aristóteles e conclui que o filósofo já chegara à conclusão de uma “ciência
história”, ao afirmar que a poesia fala em termos gerais, enquanto a história se preocupa com
detalhes (BROWN, 1945:829). Esta reflexão de Aristóteles será melhor analisada no terceiro
capítulo deste trabalho.
O livro um de sua obra, intitulado Clio41 – todos os livros da obra de Heródoto
tinham por título o nome de uma Musa presente na religião grega42 – possui uma descrição
da formação política e social do período arcaico ateniense, e nas partes cinqüenta e nove a
sessenta e quatro o historiador descreve a tomada do poder por Pisístrato e as articulações
políticas que este teve de elaborar para manter-se neste poder. Torna-se complexo analisar o
momento das tiranias em Atenas e em toda a Grécia de uma forma geral porque as fontes que
a relatam são tardias. Além das Histórias, redigida no período clássico, temos a Constituição
de Atenas do período helenístico, ambas após o acontecimento das tiranias. Embora
saibamos que todas as fontes são parciais, é necessário um extremo cuidado ao lançar mão
das afirmações contidas nestas obras por estarem repletas de juízos de valor de uma época
distinta daquela do momento que relatam.
Um dos maiores clássicos publicados até nossos dias que tratam da fonte por nós
utilizada é o livro O Espelho de Heródoto: ensaio sobre a representação do outro, do
francês François Hartog. Nesta obra, o autor trata da questão da representação que Heródoto
41 A Musa que representa a glória. Segundo Pierre Grimal (2000) é tardiamente que são atribuídas funções às Musas, e Clio acaba tornando-se a Musa da História. 42 Contudo, esta divisão em livros, bem como o próprio nome da obra, foi estabelecida por convenção posterior e não pelo próprio Heródoto. Vale ressaltar também que Heródoto em muitas ocasiões de sua obra colocou as diversas divindades participando do curso da história grega.
72
faz do que viu e ouviu em suas viagens e como este tratou de transcrever suas impressões
para sua obra:
(...) com efeito, quando Heródoto investiga sobre as guerras médicas, elabora para os gregos uma representação de seu passado próximo; mesmo assim, quando investiga sobre os confins do mundo e sobre povos estranhos, constrói uma representação do mundo. Em ambos os casos, o discurso transmite um efeito análogo (HARTOG: 2002:291).
Temos de ter a consciência que, tratando desta obra como fonte, não devemos acreditar que
estaremos conhecendo veridicamente os fatos históricos gregos; o que devemos saber é que
estaremos analisando como Heródoto viu essas veridicidades históricas e quais impressões
particulares este deixou quando descreveu o que viu e ouviu. Mas temos de ter ciência que
Heródoto não era desprovido de uma crítica sobre os depoimentos que colheu, crítica que
não parte somente dele, mas de muitos pensadores da época. A crítica histórica surge na
Grécia no século VI (MOMIGLIANO, 2004:55) – este que estamos analisando
historicamente – e embora Homero, por exemplo, não possa ser considerado um pensador da
construção de uma historiografia grega, é certo que seus poemas influenciaram as reflexões
posteriores de escritores na construção de suas narrativas históricas.
Não podemos cometer o grave equívoco de acreditarmos que os gregos não possuíam
uma noção histórica e uma reflexão do que era a história. Os gregos possuíam sim sua
própria noção do que é história e de como aplicá-la, mesmo que os estudos da história
tradicional fechassem os olhos a isso: “A noção de que a mente grega era a-histórica tem, é
claro, um pedigree respeitável. Recua através de Collingwood e Reinhold Niebuhr a Hegel.”
(MOMIGLIANO, 2004:53). Estes estudiosos citados por Arnaldo Momigliano possuíam
uma vasta leitura da filosofia grega, e acabaram por generalizar a opinião destes filósofos –
como Platão – acerca da inutilidade da história para todas as matizes do pensamento grego:
Boa parte desta argumentação esta fundamentada em uma vaga generalização a respeito da mente grega, generalização que demonstra maior familiaridade com Pitágoras, Platão e Zenão, o Estóico, do que com Heródoto, Tucídides e Políbio. Se você identificar Platão com a mente grega, você chegará à conclusão de que a mente grega não se interessava por História. Da mesma forma você também conclua que a mente francesa não se interessava por História porque Descartes era francês. Sustentar que Platão é um representante mais típico da civilização grega do que Heródoto é uma generalização arbitrária (MOMIGLIANO, 2004:54).
73
Destarte, o “pai da história” de Cícero sofreu inúmeras críticas de seus
contemporâneos e de pensadores posteriores acerca de seus relatos e de suas opiniões
históricas. Escritores influentes como Ctesias, Diodoro, Estrabão, Plutarco e até Aristóteles
não mediram esforços na missão de enlamear o nome de Heródoto e diversos foram os
panfletos distribuídos alertando sobre suas mentiras. “Heródoto não teria tido este destino se
Tucídides não tivesse dado uma reviravolta nos estudos históricos; reviravolta que envolvia o
repúdio ao seu predecessor.” (MOMIGLIANO, 2004:67). O historiador Tucídides, ao
contrário de seu antecessor Heródoto, estava muito mais preocupado com um fato e um local
específicos; enquanto Heródoto divagava por fatos e nomes históricos de diversos locais,
Tucídides aplicava seu método na Guerra do Peloponeso, e da parte dos atenienses, como
bom patriota. O método tucidideano acaba por negar as afirmações de Heródoto, acusando-o
de não comprometimento com os fatos históricos. Heródoto só irá voltar à tona no século
XVIII, para ser novamente colocado em questão no século XIX.
O século XVIII, ainda deveras influenciado pelas idéias da renascença, mas já com
um ideal em construção de nação, considera Heródoto como o “cosmopolita sábio”
(MOMIGLIANO, 2004:82). A história da civilização, muito valorizada no século em
questão, permeava a obra Histórias, o que agradou os eruditos setecentistas. Já no século
XIX, temos o auge das chamadas ciências positivas, e a História Política conhece seu apogeu
– sobretudo na Alemanha, onde Tucídides foi reverenciado. Tucídides agradava muito mais
os oitocentistas por ter um método definido de análise e por se importar tanto com a
“verdade histórica”. Porém, Heródoto nunca mais foi esquecido, já que muito mais sobre
história grega e oriental estes eruditos do século XIX compreendiam.
Heródoto parte de uma narrativa elaborada para descrever os fatos em uma
cronologia. Aí está outro problema e outra discussão: a questão da narrativa. Hartog aborda
este tema aplicando-o à obra Histórias. Para o autor por muito tempo essa fonte foi
considerada como ficção pelos campos mais tradicionais da história (HARTOG, 2002:289)
não por se tratar de uma obra redigida através de relato nem por muitas passagens contarem
com a menção aos deuses do panteão. Ela foi considerada ficção por ser uma obra narrativa,
que se assemelhava aos livros de fantasia e poesia. Luiz Costa Lima possui duas obras – A
aguarrás do tempo: estudos sobre a narrativa (1989) e História. Ficção.Literatura (2006) –
que discutem a questão da narrativa histórica. Vamos analisá-las brevemente para termos
uma idéia substancial do conceito de narrativa para aplicá-lo na análise da fonte.
Costa Lima nos apresenta, em sua obra A aguarrás do tempo: estudos sobre a
74
narrativa, um panorama do conceito através dos séculos, desde o surgimento do campo
tradicional da historiografia. O positivismo não negava a narrativa em sua totalidade,
considerava-a essencial para uma reconstituição cronológica dos fatos e para um relato de
como efetivamente fora a história (LIMA, 1989:20). O sonho iluminista de uma
cientificização evolutiva acaba por engessar a narrativa. Os positivistas lógicos do Círculo de
Viena, já no século XX, tratam a narrativa como uma parte das leis gerais hempelianas,
formuladas em 194243. Estas leis aplicadas à narrativa ganham força com representantes da
filosofia analítica – tendo como principal nome nesta discussão Danto44 – que, assim como o
Círculo de Viena, propunha um modelo unitário de ciência (LIMA, 1989:40). Percebemos aí
uma tentativa de construção da identidade do historiador através da alteridade. O historiador
se apropria da narrativa para confrontar aquilo que ele não é: um matemático ou,
principalmente, um literato (BAPTISTA, 2008:127).
O estruturalismo também seguiu o mesmo padrão de cientificidade dos annales. Lévi-
Strauss atacava a História por ser particularizante e não dispor de resultados universais. A
narrativa seria então o travestimento ideológico que a História necessitaria para mascarar
suas particularizações. Como a Antropologia estrutural analisava mitos, Lévi-Strauss não
poderia ignorar o caráter narrativo do mito. Então, para não deixar de acusar a História,
afirma que esta não consegue ultrapassar seu regime narrativo e que desta maneira não
conteria suas projeções ideológicas (LIMA, 1989:24).
Embora os neo-positivistas e os positivistas lógicos não tivessem criado um campo
aberto para a narrativa – ao aplicá-la dentro de um processo de leis, acabaram por fechá-la –
é inevitável que estes possuíssem uma discussão muito mais fundamentada e elaborada que
outras correntes das ciências humanas como a Escola dos Annales e os estruturalistas.
Mas sem dúvida a narrativa é mais utilizada pelos historiadores atualmente do que no
passado. Por ela, entendemos partir do pressuposto de uma reunião de dados organizados em
um trabalho; uma forma de passar como as transformações ocorreram através de um método
da escrita da História. É o “que Danto denomina sentenças narrativas: elas caracterizam-se
por articular no mínimo dois acontecimentos distintos no tempo e encaminhar a descrição de
um deles pela cobertura e pela referência ao outro.” (SILVA, 2007:84). A narrativa é esta
reunião de dados expostos em uma forma escrita. Nas palavras de Costa Lima: “Ela visa, não
43 Para uma reflexão das leis gerais hempelianas ver: HEMPEL, Carl G. “Explicação e Leis”. In: GARDINER, Patrick (org.). Teorias da História. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1964. 44 Filósofo analítico estadunidense, crítico de arte e estudioso da estética.
75
à inserção em uma lei geral ou a revelar as categorias que indicassem as propriedades e
fronteiras de um objeto, senão que a constituir o significado de uma mudança.” (LIMA,
1989:60). É o que Heródoto fez em seu trabalho no século V a.C. e o que – mesmo que isto
possa se tornar passível de negações – os historiadores ainda fazem no século XXI, a partir
de critérios de escolha do que será relatado condizente com cada época de produção da
escrita.
Não podemos pasteurizar todos os tipos de fontes narrativas em uma única análise
conceitual. A narrativa realizada por Homero em seus épicos não é a mesma narrativa
histórica realizada por Heródoto e, de certo forma, Tucídides. Os historiadores gregos
creditavam uma abordagem historiográfica em suas obras – mesmo uma diferindo da outra –
e embora o critério de seleção dos acontecimentos também se aplique a uma obra ficcional, a
noção de uma escrita da História esta intrinsecamente ligada a uma consciência histórica e a
um método analítico das fontes, o que não vemos nos épicos homéricos e já percebemos
claramente nas obras dos historiadores do período clássico. Não se pode negar que Heródoto
e Tucídides foram leitores de Homero e o aedo muito influenciou na escrita de suas obras,
porém ambos os historiadores negavam a exatidão histórica de Homero: “Tampouco é
novidade que, discordantes entre si, Heródoto e Tucídides atacam em comum a base
homérica.” (LIMA, 2006:38)
Após refletirmos consideravelmente sobre nossa fonte, vamos à discussão das
passagens, para podermos traçar uma coerente análise dos processos históricos. Já foi aqui
elucidado por nós o processo de crise econômica e social que Atenas e a maioria das cidades-
estado gregas sofreram. Aproveitando-se deste momento, diversos grupos de aristocratas
uniram-se com a intenção de juntarem forças para viabilizar a chance de colocarem um
representante de sua facção no governo ateniense. Em Atenas, o arconte Damásias ficou no
poder por dois anos, mas acusado de ilegalidade foi obrigado a deixar o cargo. Claude Mossé
nos diz que Tucídides sublinha o fato de que os tiranos começaram a surgir em cidades ricas
e com poderosa armada (MOSSÉ: 1989:166), pois muitos destes tiranos dialogaram com as
falanges militares quando da intenção de chegar ao poder.
Com uma Atenas sem governante, três líderes criaram suas facções para a disputa do
poder na polis, sendo Mégacles o representante das pessoas do litoral (paralianos) – do
ghéne dos Alcmeônidas e representando a parte moderada dos habitantes, afeitos ao
comércio e os artesãos ricos da costa – Licurgo, o representante das pessoas da planície
(pedionomós) – do ghéne dos Eteobutades e representante da aristocracia tradicional
76
(MOSSÉ, 1982:16-17) e a terceira com Pisístrato45, representante dos habitantes da
montanha (diácrios)46. É encontrada demasiada dificuldade em definir o que seriam estas
facções, por tratarem-se de conceitos políticos desconhecidos pela política contemporânea;
debruçar-se na tentativa de defini-las seria um caminho fácil e perigoso para o anacronismo.
Nas palavras de Jean-Pierre Vernant, eles: “Traduzem um conjunto complexo de realidades
sociais que nossas categorias políticas e econômicas não encobrem exatamente.”
(VERNANT, 1986:70)
Pisísitrato ganhara grande renome na guerra contra Mégara47 e foi colocado como um
exemplo de soldado ateniense. Era um representante da oligarquia embora fosse filho de pai
pouco abastado, como aponta-nos Heródoto (I, 59); porém já elucidamos que as relações de
poder na Antiguidade não eram determinadas pelos fatores econômicos. Percebemos em
Heródoto como Pisístrato aproveitou a oportunidade quando da desavença entre as duas
primeiras facções:
Anos depois houve uma desavença entre os atenienses da costa e os da planície, os primeiro chefiados por Megaclés filho de Alcmáion, e os da planície chefiados por Licurgos filho de Aristolaídes. Então Pisístrato, aspirante ao poder soberano, organizou uma terceira facção, reuniu adeptos e se apresentou como defensor dos habitantes da montanha (Heródoto. Histórias, I, 59).
José Antonio Dabdab Trabulsi aponta que, ao contrário de Sólon, que agiu em uma situação
que motivou a sua chamada, Pisístrato teve de “criar” uma situação para dar condições de
suas ações (TRABULSI, 2001:62); está aí um claro exemplo de “homem providencial”.
Na mesma parte, temos a representação do tirano demagogo sobre o qual Mossé
teorizou: “Ele [Pisístrato] recorreu ao seguinte estratagema: ferindo-se a si mesmo e aos seus
mulos, ele levou seu carro até a ágora, onde contou que havia escapado de seus inimigos,
desejosos, segundo disse, de matá-lo enquanto ia para o campo” (I, 59). Pisístrato foi
demagogo desde o começo de sua vida política, aproveitando-se de instabilidade econômica
e social da população: “Com efeito, é evidente que, embora Pisístrato recrute seus primeiros
45 Dependendo da tradução também podemos encontrar Peisístratos. 46 Jean-Pierre Vernant (1986) define os participantes das facções: os paralianos são provavelmente mercadores que habitavam as regiões marítimas; os pedionomós são os ricos proprietários de terras que cercam a aglomeração urbana e os diácrios – que são os mais populares – compostos de pequenos aldeões, thêtas, lenhadores, carvoeiros, todos habitantes dos dêmos periféricos mais afastados do centro urbano. 47 Mégara foi uma promissora cidade-Estado até o início do século VI. Após esta guerra é anexada à Atenas e passa a ser uma colônia desta.
77
partidários entre as pessoas da Diacria – onde se localizavam seus bens patrimoniais – muito
cedo vai granjear o apoio de todos os descontentes, independentemente de sua origem
geográfica.” (MOSSÉ, 1982:17)
Após a atitude de se ferir, Pisístrato ganhou do povo uma guarda pessoal armada com
bordões48. Com esta guarda de homens escolhidos, Pisístrato tomou pela primeira vez a
cidade, aproveitando-se da desarticulação entre as duas outras facções e de todo o apoio das
camadas menos abastadas. Porém – embora nossas fontes nada digam sobre isso – Pisístrato
ganhou esta guarda possivelmente porque exercia algum poder oficial, haja vista seu papel
na guerra contra Mégara (MOSSÉ, 1982:18).
Entretanto, após um tempo, as duas outras facções unem-se para destituí-lo do poder,
pois o tirano ainda não havia tido tempo de se estabilizar: “Assim Pisístrato, senhor de
Atenas por um primeiro período, foi despojado do poder soberano, cujas raízes ainda não
estavam firmes.” (I, 60). Exilado de Atenas, Pisístrato volta pela segunda vez ao poder, para
mais uma vez governar por um curto espaço de tempo. As duas facções que se uniram para
derrubar Pisístrato novamente entraram em confronto e Mégacles tirou Pisístrato de seu
exílio, fazendo este se casar com sua filha.
Heródoto nos dá, na parte sessenta da obra, a única informação sobre manipulação
popular através da religiosidade grega – o historiador estava muito mais preocupado com as
questões políticas em si, e embora tivesse conhecimento das transformações religiosas que
ocorreram neste período, Heródoto não se atenta para estes acontecimentos – e é perceptível
sua indignação quando o povo ateniense é manipulado tão facilmente. Mégacles traça um
plano para colocar Pisístrato dentro da polis ateniense:
(...) tal plano, em minha opinião, era tão ridículo que é estranho (diante do fato de desde os tempos mais remotos os helenos se terem distinguido sempre dos bárbaros por seu maior talento e por sua menor credulidade) que aqueles homens o tenham imaginado para enganar os atenienses, considerados os mais perspicazes de todos os helenos. Havia no distrito Paianieus uma mulher chamada Fia, com uma estatura apenas três dedos mais baixa que quatro côvados, e quanto ao resto muito formosa. Eles a vestiram com uma couraça completa e a puseram em uma carruagem, dando-lhe todos os parâmetros capazes de torná-la ainda mais agradável à vista, e assim a introduziram na cidade; precediam-na alguns arautos, que ao chegar à cidade fizeram uma proclamação, de acordo com instruções recebidas, dizendo o seguinte: “Atenienses! Proporcionai uma acolhida favorável a Pisístrato, o mais honrado entre os homens pela própria Atena,
48 Os bordões relatados por Heródoto também podem ser traduzidos por bastões de madeira ou até paus. Possuíam a função de armamentos de guerra.
78
que o traz de volta à acrópole.” Foi essa proclamação dos arautos a toda a cidade. Imediatamente passou-se a dizer em todos os distritos que Atena estava trazendo Pisístrato de volta, e os habitantes da cidade, convictos de que a mulher era realmente a deusa, prosternaram-se diante daquela criatura humana e acolheram favoravelmente Pisístrato (Heródoto. Histórias, I, 60).49
Duas são as hipóteses mais plausíveis sobre a dúvida de Heródoto: ou ele não
confiava na fonte da qual coletou esta informação – pois o próprio Heródoto declarou que
havia fontes mais confiáveis que outras – ou Momigliano (2004) está equivocado ao afirmar
que Tucídides era o patriótico e que Heródoto era um cosmopolita. Heródoto enaltece os
helenos em detrimento dos bárbaros; e os atenienses em detrimento dos outros helenos, quem
sabe em uma exacerbada opinião patriótica, mesmo ele não sendo ateniense por nascimento.
O caso é que percebemos como a religiosidade estava presente no cotidiano grego e
que, diferente da modernidade, os gregos acreditavam que os deuses estavam materialmente
presentes entre a população. Percebemos também que a ajuda de Megacles representava que
parte da aristocracia apoiava um alargamento da política na polis. Porém, Pisístrato não
demorou muito para ser exilado novamente. Um oráculo consultado pelo tirano disse que
uma maldição estava presente entre os Alcmeônidas e este não poderia ter um filho
descendente deste ghéne, pois seu governo também seria amaldiçoado. Por isso o tirano não
manteve relações sexuais normais com sua esposa. Esta situação causou a ira de Mégacles, o
que ocasionou o exílio do tirano pela segunda vez:
Como ele tinha filhos já grandes e se dizia que pesava uma maldição sobre os alcmeônidas, ele não queria filhos se sua nova mulher, e por isso tinha relações anormais com ela. A princípio a mulher ocultou o fato, mas depois o revelou à sua mãe (não sei se interrogada ou não pela mesma), e a mãe o contou para o próprio marido. Mégaclés ficou indignado com a afronta que lhe estava sendo feita, e em sua cólera esqueceu a desavença com a outra facção. Tomando conhecimento dessa atitude contrária a ele, Pisístrato abandonou o território da Ática e foi para Eretria, onde procurou aconselhar-se com seus filhos (Heródoto. Histórias, I, 61).
Após ouvir seu filho Hípias – que o aconselhou a tomar o poder novamente, na forma
de um golpe de estado – Pisístrato passou a reunir seguidores e a formar um exército com
que levasse a cabo a reconquista de Atenas, segundo os dizeres de Heródoto – Aristóteles 49 Walter Burkert (1993) complementa dizendo que mensageiros foram enviados antes para dizer que a deusa estava conduzindo Pisístrato à cidade, desta forma fez as pessoas saírem de suas casas e assistir o ocorrido. Não encontramos em nossas fontes relato sobre estes mensageiros, e Burkert não aponta de onde compilou esta informação.
79
conta-nos outra versão, como veremos no tópico seguinte. Pisístrato e seus filhos vão às
cidades que já eram conhecidos, como Tebas, para coletar dinheiro e homens: “(...) e eles
fizeram uma coleta de contribuições em todas as cidades às quais haviam prestado algum
serviço” (I, 61). Com uma liga formada por admiradores, mercenários e outros exilados,
Pisístrato começou seu projeto de tomar Atenas, ocupando Maratona e colhendo mais
donativos nesta região:
No curso de undécimo ano eles partiram de Eretria de volta à sua terra, onde ocuparam primeiro Maratona; enquanto estavam lá vieram juntar-se a eles seus adeptos da cidade, e outras pessoas dos distritos daquela região. Então eles reuniram suas forças; os atenienses da cidade, todavia, que enquanto Pisístrato fazia a coleta de dinheiro e mesmo depois de ele haver ocupado Maratona não davam maior importância a tais acontecimentos, passaram a dar quando souberam que ele estava marchando de Maratona contra Atenas, e tomaram a decisão de atacá-lo; e saíram com todas as suas forças ao encontro dos exilados que voltavam. Estes, em sua marcha de Maratona rumo à cidade, encontraram os adversários ao chegar ao templo de Atena em Palene, e acamparam à sua frente (Heródoto. Histórias, I, 62).
Após, conta-nos Heródoto, Pisístrato ter ouvido um adivinho, de nome Anfílitos –
que inspirado por um deus recita um poema contando a vitória de Pisístrato – pôs-se em
marcha com suas tropas (I, 63). Atacando de surpresa, pois os atenienses haviam ido almoçar
e após o almoço alguns pensavam em jogar dados, outros em dormir (I, 63), as tropas de
Pisístrato marcham sobre Atenas e se instala a tirania. As informações dadas por Heródoto
em sua obra sobre o momento da tomada de poder das tropas de Pisístrato é insuficiente para
compreendermos na totalidade qual foi o grau de resistência que a cidade exerceu sobre estas
tropas, ou quantas foram as perdas de ambos os lados. O fato é que Pisístrato tomou a cidade
pela terceira vez, e desta vez definitivamente.
A parte sessenta e cinco do primeiro livro das Histórias é a última que faz menção a
Pisístrato. Nela temos uma narrativa relativamente rica das posições tomadas pelo novo
governante para firmar os alicerces de sua tirania:
(...) chegando lá, ele tratou de dar raízes à tirania, com a ajuda de numerosos mercenários e mediante a imposição de tributos tanto em Atenas quanto na região do rio Strímon; além disso ele tomou como reféns os filhos dos atenienses que tinham preferido resistir em vez de fugir sem demora, e os instalou em Naxos (ele havia conquistado essa ilha e tinha entregue seu governo a Lígdamis). Mais ainda, ele mandou purificar a ilha de Delos em obediência ao oráculo, e isso foi feito da seguinte maneira: Pisístrato mandou exumar todos os mortos sepultados em terrenos visíveis
80
do templo e levá-los para outra parte de Delos. Ele era então o detentor do poder soberano em Atenas; quanto aos atenienses, alguns tombaram em combate, e outros saíram com ao alcmeônidas de sua terra para o exílio (Heródoto. Histórias, I, 63).
Camila da Silva Condilo, em sua dissertação de mestrado, elucida a discussão
presente na historiografia que trata de Heródoto sobre a opinião do historiador grego acerca
da tirania. Temos que entender que o conceito de historiador para os gregos desta época
estava pautado na coleta de fontes buscando o caminho da verdade. Desta forma, o
historiador seria o “juiz” quando da coleta destes dados (CONDILO, 2008:21).
Concordamos com Condilo quando afirma que, diferente de Tucídides, Heródoto não possui
uma clareza em suas opiniões acerca do que escreve, muito devido a estar em um momento
de transição do pensamento mítico para um pensamento político-racional (CONDILO:
2008:94). Percebemos também que poucas são as passagens no texto de Heródoto que se
referem aos tiranos de uma maneira negativa; na maioria das passagens Heródoto narra os
fatos, porém sem um juízo de valor agudo. Bem diferente é o caso da Constituição de
Atenas, por tratar-se de um tratado político-filosófico escrito por um filósofo que vivia em
um contexto distinto daquele de Heródoto e já arraigado pelo pensamento racional do século
IV. É sobre isto que discorremos no próximo tópico.
2.2. Pisístrato, o tirano moderado da Constituição de Atenas de Aristóteles
A obra Constituição de Atenas50, que consensualmente os historiadores creditam sua
autoria a Aristóteles, foi escrita já no período helenístico, é ainda mais distante do período
que ela pretende abarcar do que as Histórias. Porém, Aristóteles foi um leitor de Heródoto e
bebeu da fonte do historiador para compor sua obra, datada do século IV. As mesmas
questões que vemos nos historiadores em relação ao escritor da Ilíada e da Odisséia, vemos
também em relação ao escritor da Constituição de Atenas. Claude Mossé, em algumas de
suas obras – como A Grécia Arcaica de Homero a Esquilo – cita, “o escritor da Constituição
de Atenas” e não o nome de Aristóteles. A questão é que independentemente do autor – que
poderia ainda ser um discípulo de Aristóteles – temos nesta obra um panorama muito
específico concernente à ação legisladora – nomothesía – e aos atos políticos que abalaram
50 Do grego Athenaíon Politeía (ΑθΗΝΑΙΩΝ ΠΟΛΙΤΕΙΑ), transliteralmente significaria algo como Política dos Atenienses.
81
Atenas em um espaço de mais de duzentos anos – séculos VI e V.
Aristóteles, neste trabalho, tem a intenção de reunir tudo o que já foi escrito sobre a
política ateniense que se tornou digno de relevância e o que não era importante descartar, de
acordo com o julgamento do filósofo. Diferentemente do que podemos perceber na obra de
Heródoto, a Constituição de Atenas possui um outro caráter narrativo. O pensamento
racional de Aristóteles faz com que este isente os deuses ou as forças não humanas no rumo
da escrita da história política ateniense, escrita esta muito comum no século IV, onde a
filosofia já havia se instaurado no pensamento helênico.
Autores antigos utilizam a obra de Aristóteles em suas análises – como Estrabão,
Plutarco e Ateneu – porém muitas das partes que vemos citadas nas obras destes pensadores
perderam-se no passar do tempo e não chegaram até nós. A Constituição de Atenas também
foi utilizada na Idade Média por estudiosos bizantinos e no Renascimento. Todavia, toda esta
trajetória fez com que os manuscritos fossem perdidos ou modificados, e muito de sua leitura
tem de ser feita através de citações de outros textos clássicos. Foram os eruditos do século
XIX, como C. F. Neumann e Carl Müller – com uma incrível destreza quando da coleta e
análise de fontes – que tornaram pública a primeira reunião dos manuscritos encontrados em
diversas partes. Em 1886, Valentine Rose editorava a reunião mais completa até então, com
91 fragmentos, e já na década final deste mesmo século, o inglês Frederic G. Kenyon
editorava a primeira publicação do texto, aproveitando a nova descoberta do Museu
Britânico, um papiro com inéditos fragmentos da Constituição de Atenas.
Ao contrário de Heródoto, que possuía uma opinião ora a favor, ora contra e na
maioria das vezes isenta sobre a tirania, Aristóteles, por fazer parte de uma época muito
posterior à ascensão e declínio dos tiranos e que já havia conhecido a democracia do período
clássico – forma de governo tida como ideal pela filosofia e que havia se extinguido com o
helenismo – critica veementemente o governo dos tiranos e caracteriza-os de ilegais perante
as leis políticas. Ciro Flamarion Cardoso realiza uma síntese das três características
principais do regime tirânico que apareciam com clareza e discute a questão da ilegalidade
da tirania difundida por Aristóteles:
1) o governo do tirano era de tipo pessoal e considerado ilegal pelos aristocratas, embora mantivesse o aparelho tradicional dos órgãos de sua polis (de certo modo, a tirania se exercia paralelamente a tais órgãos); 2) sua legitimidade e sua base social vinham do fato de proteger os populares contra a classe dominante (ou seja, governaram a maior parte do tempo apoiados pela maioria da população, o que torna um tanto estranho
82
considerar ilegal o governo dos tiranos, exatamente como faziam os nobres por razões óbvias: fora a sua legalidade que os tiranos romperam); 3) em quase todos os casos, o tirano era um nobre, ou pelo menos parcialmente descendente de nobres (...) (CARDOSO, 1987:30-31).
Como marxista, Cardoso utiliza o termo “classe”. Já elucidamos no primeiro capítulo
o quanto este conceito parece ser inadequado, contudo acreditamos ser uma boa hora para
tratarmos do que pode ser uma constatação equivocada se não analisada corretamente: a
ascensão do tirano com o apoio da maioria da população poderia fazer alguns acreditarem se
tratar de uma “luta de classe”. É interessante ressaltar que durante estas idas e vinda do
poder, o povo permaneceu passivo às transformações políticas:
“(...) o povo permaneceu passivo, o que não é de estranhar. O povo ateniense ainda desconhecia o que fosse “consciência política” e, desde que conseguisse vantagens materiais, desinteressava-se das lutas estéreis por um poder que fugia a seu controle.” (MOSSÉ, 1982:18).
Acreditamos que quando não há uma consciência que legitime a classe, não pode
haver uma luta desta classe. Percebemos em nossas fontes – o que também é ressaltado por
Mossé – que durante as idas e vindas de Pisístrato o povo não se moveu para lutar por seus
interesses, foi mero espectador dos atos políticos: “A prova não está na ausência de interação
ativa, mas sim atitudes mais ou menos passivas, o que não quer dizer que não seja uma
forma de luta” (PLÁCIDO, 1995:108). O que Domingo Plácido coloca na obra Introducción
al Mundo Antiguo: problemas teóricos y metodológico, é que havia sim uma forma de luta,
porém não estava relacionada ao conceito clássico de “luta de classe”. Vernant é um dos
historiadores que realça as críticas ao uso de conceitos marxistas aplicados à Antiguidade
sem uma devida contextualização histórica, ressaltando a diferença entre as sociedades
capitalistas atuais e a sociedade grega da época clássica, como atesta Renata Beleboni:
Para o autor [Jean-Pierre Vernant], a validade destes conceitos deve ser repensada uma vez que as relações econômicas na sociedade antiga estavam intimamente ligadas ao comportamento religioso, o que não ocorre de maneira alguma nos centros capitalistas. Ainda segundo o autor, muitos pontos distanciam as duas sociedades, destacando dois deles. Comecemos pela posição dos escravos na sociedade antiga. Nesta época, o grupo formado pelos escravos não representava uma classe unida, com pretensões políticas ou econômicas. Além disso, uma revolta – se é que tal hipótese tenha tido sentido algum dia – não representava modificações nas relações de produção ou formas de propriedade. Em segundo lugar, o motivo principal dos interesses antagônicos entre os gregos não estava no meio
83
econômico, e sim, tinham relação com o lugar que os indivíduos ocupavam na vida política da cidade. Deste modo, não era possível uma luta entre escravos e proprietários, uma vez que os primeiros não fazem parte do quadro sócio-político. Ainda temos que lembrar que os lucros não eram revertidos para o empreendimento, pelo contrário, estes eram investidos na coletividade cívica em forma de festas civis e religiosas, promoção de campanhas militares e construção de edifícios públicos. Portanto, Vernant lembra que não se pode utilizar sem precaução o aparelho conceitual marxista – forçar produtivas, relações econômicas de produção, regimes sócio-políticos, formas de pensamento e ideologias – elaborado no estudo da sociedade contemporânea para aplicá-lo sem mudanças no mundo antigo (...) (BELEBONI, 2001:82).
O tirano tinha como meta o poder, mas para alcançá-lo e principalmente mantê-lo era
necessário que agisse com moderação e que negociasse com os diversos estratos sociais,
tentando chegar a um consenso, para que não abalasse sua soberania; bem diferente é o
conceito e a ação de uma luta de classes. O tirano necessitava dialogar com todos e trabalhar
como um “agente moderador”:
Nas tiranias arcaicas, o papel desempenhado pelo tirano é nítido, impor a medida, recompor o desequilíbrio perdido, viabilizar o não rompimento do tecido social em momento singular do desenvolvimento das cidades, isto é, moderar o fosso existente entre a velha aristocracia e o pequeno camponês, é o télos de sua ação (CHASIN, 2007:128).
As tiranias de um modo geral exerceram este papel: mediar os diversos segmentos da
sociedade grega para manter um aparente consenso que creditasse legitimidade à
continuidade de seu governo e de suas ações:
(...) o tirano é a solução política de tempos pouco políticos: a tirania é a mediação enérgica ao restaurar a medida, ou seja, ao impor a medida pela força, o tirano atua a partir de expedientes mais ou menos políticos, cujo objetivo é essencialmente político – a preservação e o equilíbrio da polis (CHASIN, 2007:130).
Vamos analisar alguns fragmentos da obra Constituição de Atenas e junto com estas
análises propor um cotejamento com os escritos da fonte utilizada no tópico anterior. A obra
inicia-se – pelos fragmentos que conhecemos – com uma análise das legislaturas de Drácon e
Sólon e a partir do fragmento treze ao dezessete Aristóteles analisa a tomada de poder de
Pisístrato e sua forma de governo; já os fragmentos dezoito e dezenove são reservados ao
governo de seus filhos. No fragmento treze, Aristóteles nos dá a mesma informação que
Heródoto sobre as três facções políticas, porém já emite uma opinião diferente: os homens da
84
planície são os oligarcas, os do litoral os moderados e os da montanha os democratas
(MOSSÉ, 1989:179), provavelmente conceitos utilizados durante o período helenístico e não
durante o próprio período arcaico:
4. Havia três facções: uma da praia, liderada por Mégacles, filho de Alcméon, e que parecia sobretudo perseguir o regime do meio; uma da planície, que almejava a oligarquia e era conduzida por Licurgo; a terceira era a da montanha, tendo Pisístrato à frente, o qual, ao que parece, era o mais popular (Aristóteles. Constituição de Atenas, XIII, 4).
Mossé nos diz que Aristóteles credita a Pisístrato uma possível democracia. O
filósofo utiliza o termo popular (δοκων), que pode dar a noção de democrata conforme o
contexto. O fato é que Aristóteles possa ter afirmado a democracia da montanha lançando
mão de um conceito do qual ele já havia tomado ciência – durante o período clássico –
diferentemente dos homens da montanha do século VI, anterior ao processo democrático.
Outra discussão relacionada a termos gregos é colocada por C. A. Robinson Jr., em artigo
publicado no The American Journal of Philology; o autor alerta-nos para o perigo do
anacronismo ao tendermos ver nestas facções partidos políticos, perigo deveras sedutor. O
autor prefere utilizar o termo grupos (ROBINSON JR, 1945:243), assim como Francisco
Murari Pires preferiu o termo facção em sua tradução. Heródoto não nomeia a ideologia
política das facções por não possuir um pensamento político e filosófico que abarcaria estes
conceitos, embora já conhecesse a democracia. Já o filósofo, que já havia passado por alguns
momentos políticos distintos, aponta o que teria dado mais força à facção da montanha:
5. Filiavam-se a esses os que se viram em dificuldades por terem sido privados das dívidas, mais os que estavam receosos por terem ascendência impura, o que é assinalado pelo fato de que, após a derrubada dos tiranos, se procedeu a um escrutínio – de cidadania – entendendo-se que muitos compartilhavam indevidamente os direitos políticos. Cada facção tirava seu nome da região onde estava afazendada (Aristóteles. Constituição de Atenas, XIII, 5).
Esta “hegemonia” – para utilizar um termo gramsciano – de extratos sociais menos abastados
é que fez com que a facção da montanha saísse com vantagem, já que muitos destes
indivíduos que anteriormente não teriam força alguma, depois de Clístenes, adquiriram certa
autonomia, ainda que modesta.
No fragmento quatorze, Aristóteles mais uma vez elucida a mesma informação que
85
Heródoto sobre as artimanhas demagógicas que o tirano utilizou para chegar ao poder –
provocando ferimentos em si próprio e acusando seus inimigos – porém acrescenta um dado
novo acerca da opinião de Sólon sobre a armada requisitada por Pisístrato:
2. Conta-se que Sólon se contrapôs à solicitação da guarda por Pisístrato, declarando ser ele mais sábio do que uns e mais corajosos do que outros; com efeito, era mais sábio do que os inscientes das aspirações de Pisístrato à tirania, e mais corajoso do que os que, embora conscientes, se calavam (Aristóteles. Constituição de Atenas, XIV, 2).
Fica claro que Aristóteles era contra a tirania quando este diz que Pisístrato era mais
conceituado que o tirano e seus comparsas, em uma tentativa de difundir em sua época o mal
que a tirania havia causado em Atenas. No mesmo fragmento, também percebemos o relato
de Aristóteles acerca da condução de Pisístrato por Atena, em parceria com Mégacles,
quando da saída do tirano do exílio. Notemos que Aristóteles cita Heródoto nesta parte,
provando a hipótese do filósofo leitor do historiador:
Espalhou rumores de que Atena reconduziria Pisístrato e, após encontrar uma mulher grande e bela, chamada Fie (do demos de Peânia segundo afirma Heródoto, ou uma florista trácia de Colito na versão de outros autores, trajou-a imitando a deusa, e a trouxe na companhia de Pisístrato. À passagem de Pisístrato, de pé no carro com a mulher a seu lado, os que estavam na cidade os receberam prosternando-se espantados (Aristóteles. Constituição de Atenas, XIV, 4).
Diferentemente do historiador, o filósofo não se indigna com a crença dos atenienses.
Embora Aristóteles possuísse um pensamento racional, para ele nada diz o povo ter
acreditado que a própria Atena adentrou a cidade.
No próximo fragmento, de número quinze, Aristóteles diz que Pisístrato se auto-
exilou na segunda vez, diferente do que narra Heródoto, que afirma que Mégacles não
aceitou o ultraje do tirano não manter relações com sua filha: “Posteriormente, foi derrubado
uma segunda vez por volta do sétimo ano após o retorno; com efeito, não se manteve por
muito tempo, pelo contrário, não se dispondo a manter relações com a filha de Mégacles, e
por temer ambas as facções, retirou-se. (XV, 1)”. Assim como Heródoto, Aristóteles exalta o
fato de Pisístrato não se dispor a ter relações com sua esposa, porém vai mais além; no
último fragmento no qual o filósofo trata do tirano – fragmento XVII – este afirma que
pessoas diziam que aquele era amante de Sólon, mas o filósofo julga isto impossível pelo
86
fato de suas idades (XVII, 2); Sólon era muito mais velho que Pisístrato. Já Heródoto não
trata desta questão. Ao mesmo tempo em que percebemos que Aristóteles diz que Pisístrato
não mantinha relações com sua esposa – diferente de Heródoto, que afirma que este
mantinha relações anormais – percebemos também que Aristóteles não cita o oráculo que
influenciou o tirano a não deixar herdeiros, reforçando a hipótese do pensamento racional
aristotélico.
No mesmo fragmento, o filósofo nos dá praticamente as mesmas informações que
Heródoto sobre o segundo exílio de Pisístrato e sobre a marcha deste e de seus mercenários
sobre as várias regiões da Península Balcânica, mas difere consideravelmente da forma como
Pisístrato toma o poder:
3. Venceu a batalha de Palene, tomou a cidade e desarmou o povo, com o que manteve agora a tirania com firmeza. Capturando Naxos, estabeleceu Lígdamo como seu governante. 4. Desarmou o povo da seguinte maneira. Promoveu uma apresentação de armas do Teseion e aí deu início a uma assembléia, sendo porém logo interrompido, pois reclamavam não o estar escutando. Pediu-lhes para subirem até a entrada da Acrópole a fim de o ouvirem melhor. Enquanto ele prolongava seu discurso, as pessoas destinadas para essa tarefa recolheram as armas e, após as trancarem nos edifícios próximos ao Teseion, voltaram e fizeram-lhe sinais. 5. Este, assim que concluiu o restante de seu discurso, contou-lhes o ocorrido com as armas, dando-lhes a entender que não se deviam inquietar nem abater, mas sim que retornassem para cuidar de seus afazeres particulares, uma vez que ele próprio se encarregaria de todas as questões públicas (Aristóteles. Constituição de Atenas, XV, 3,4,5).
Com estas informações distintas entre as fontes, temos a prova cabal de que não se pode
confiar piamente nos escritos que chegaram até nós. As tradições orais das quais estes
escritores lançavam mão certamente modificavam-se com o passar do tempo; no caso de
nossas duas fontes, com o passar dos séculos.
No fragmento dezesseis – o mais longo que trata sobre a figura de Pisístrato –
verificamos um elogio de Aristóteles acerca do governo do tirano. Este elogio é que nos
influenciou no título deste tópico: “2. Pisístrato (...) administrava os negócios da cidade com
moderação, e antes como cidadão do que como tirano.” (XVI, 2). Aristóteles ainda enumera
que o tirano era humano, brando, clemente aos infratores e até adiantava empréstimos a
quem se encontrava em dificuldades no cultivo da terra. Embora tivessem havido estes
elogios, os estudiosos afirmam que na visão política do século IV o tirano não era um
indivíduo digno de cidadania, já que o apogeu da idéia de cidadão dá-se em plena
87
democracia do século V. Provavelmente o que Aristóteles coloca é que Pisístrato governava
como um cidadão, mas em nenhum momento afirma que o tirano era efetivamente um
cidadão. O pensamento aristotélico foi influenciado por toda uma idéia de cidadania vivida
por seus antecessores, ideal já em declínio na época em que o filósofo viveu. Aristóteles
elogia Pisístrato por este lançar mão da política – e não da força – para governar e encontra a
medida de suas ações por meio de ofícios políticos (CHASIN, 2007:136). A política, tão cara
a Aristóteles, era muito bem utilizada por Pisístrato, fazendo com que o filósofo tenha certa
admiração pelo tirano, mesmo que velada.
Continuando com a análise do governo tirânico, o filósofo reflete sobre as intenções
de Pisístrato ao agir com tanta bondade e serenidade com os habitantes da zona rural:
3. Assim agia com duplo benefício: para que não permanecessem na cidade, mas sim dispersos pelos campos, de tal modo que, providos de recursos moderados e voltados para seus afazeres particulares, nem ambicionassem nem tivessem folga para se ocupar dos públicos. 4. Ao mesmo tempo, aumentava seus rendimentos em decorrência do cultivo dos campos, pois ele cobrava o dízimo sobre a produção (Aristóteles. Constituição de Atenas, XVI, 3,4).
Desta forma, Pisístrato poderia promover a manutenção de seu poder sem precisar utilizar a
força armada e sem os riscos de uma crise interna e a possibilidade de um confronto entre
citadinos e camponeses, acontecimento que abalaria seu governo, como abalou o de Sólon51.
É importante também a ciência de que Pisístrato aumentou a participação política de grupos
menos abastados – como os thêtes – tendo permitido que participassem mais ativamente da
assembléia. Com esta atitude, o tirano distribuía o poder, mas na verdade enfraquecia todas
as forças; esta falsa noção de poder propiciou que nenhum indivíduo ficasse mais poderoso
que outro, garantido assim a soberania da tirania. Agradando tanto aos ricos quanto aos
pobres, Pisístrato não conhece muitas opiniões contrárias ao seu governo por parte do demos:
“Assegurou os cargos civis e militares à nobreza, e, simultaneamente, colocou o pequeno
camponês em patamares menos perversos, um pouco mais dignos e seguros.” (CHASIN,
2007:135-136).
Uma passagem curiosa – ainda no fragmento XVI – é narrada por Aristóteles para
elucidar a relação do tirano com seu povo. O ocorrido se dá em uma das saídas de Pisístrato
51 Ressaltamos que Pisístrato sempre agiu em conformidade com as leis – a maioria delas elaboradas durante a legislatura de Sólon – e, de acordo com Aristóteles, na obra Constituição de Atenas, procurava aplicá-las para todos, assim como Sólon havia feito anteriormente.
88
da cidade para visitar os habitantes da zona rural, seu principal alvo político e ideológico:
Pisístrato, admirado ao avistar alguém escavar e preparar um terreno totalmente pedregoso, ordenou a seu escravo que lhe perguntasse o que ele extraía daquele chão. O homem respondeu: “infortúnios e sofrimentos em quantidade, e desses infortúnios e sofrimentos Pisístrato devia receber o dízimo”. O homem, portanto, retrucou não o reconhecendo, porém Pisístrato, encantado com sua franqueza e dedicação, isentou-o de tudo. 7. Em geral, durante seu governo não atormentou a multidão em nada, antes sempre manteve a paz e velou pela tranqüilidade; por isso mesmo, difundira-se a fama de que a tirania de Pisístrato era como a vida no tempo de Cronos (...). 8. O mais importante de tudo o que foi dito era seu caráter popular e humanitário. Em geral, com efeito, dispunha-se a administrar tudo em conformidade com as leis, sem se conceder nenhuma vantagem. Certa vez, intimado em um processo de homicídio perante o Areópago, apresentou-se pessoalmente para sua defesa, mas o denunciante, amedrontado, não compareceu (Aristóteles, Constituição de Atenas, XVI, 7, 8).
Com estas atitudes – agradando os menos abastados e cultivando o medo da sua imagem
àqueles que o acusavam – não é à toa que Pisístrato tenha permanecido no poder até sua
morte52. Aristóteles – ainda neste mesmo fragmento – menciona algumas outras tentativas de
derrubada de sua tirania, destarte Pisístrato retomava o poder facilmente. Na última parte
deste fragmento, o filósofo constata as leis brandas que existiam naquela época acerca dos
tiranos:
10. Naquela época, as leis atenienses respeitantes aos tiranos eram, em geral, amenas, particularmente a que foi baixada contra o estabelecimento da tirania. Com efeito, eles tinham a seguinte lei: “Estas são as ordenações ancestrais dos atenienses: se alguém se insurge com o fim de ser tirano, ou se alguém auxilia o estabelecimento da tirania, ele próprio mais sua descendência ficam privados de seus direitos.” (Aristóteles, Constituição de Atenas, XVI, 10).
Pisístrato, desde o estabelecimento de sua tirania, viveu trinta e três anos,
permanecendo dezenove no poder e o restante entre as idas e vindas de seus exílios (XVII,
1). Com esta contextualização histórica da política ateniense, vemos como a política tirânica
influenciou a cultura helênica e também como por esta foi influenciada.
52 É importante ressaltar que raríssimas foram as vezes que governantes morreram em suas camas já na velhice em toda a Antiguidade, principalmente tratando-se de um tirano.
89
2.3. A difusão da memória religiosa através da questão artística: as representações
dionisíacas na cerâmica ática do período arcaico
O que pretendemos com este tópico é inserir Dioniso e o dionisismo neste contexto
de crise social e de ascensão à tirania. José Antonio Dabdab Trabulsi nos aponta que Dioniso
passou a ser primordial somente com Pisístrato, já que Sólon representava uma aristocracia e
não se colocava ao lado do demos (TRABULSI, 2004:98). Com a ascensão das tiranias – de
um modo geral – as cidades conheceram a explosão cultural e artística. Como Atenas obteve
uma evolução econômica tardiamente, foi somente com Pisístrato e seus filhos que a cidade
sofreu uma evolução cultural, haja vista que as primeiras compilações das epopéias
homéricas foram realizadas neste período.
Juntamente com esta ebulição cultural, a religiosidade sofreu uma profunda
transformação em sua configuração: grosso modo, ela modificou-se de aristocrática para
popular. Porém, o processo não pode ser explicado tão levianamente. Embora a tirania de
Pisístrato fosse moderada, era sim uma tirania que atendia aos interesses de uma aristocracia
– mesmo que esta já não fosse a mesma aristocracia de outrora. Pisístrato ergueu várias obras
e promoveu vários festejos em homenagem à deusa Atena, divindade políade por excelência,
entretanto estabeleceu também uma “liberdade” quanto ao culto de divindades. Deuses que
anteriormente eram veementemente proibidos pela polis aristocrática passaram a ser
cultuados livremente, mesmo entre os segmentos menos abastados:
Agora, ao invés de seguir uma solução pela austeridade, ao invés de rezar a Zeus com mais ardor e respeitar os preceitos religiosos com minúcia, os agricultores podiam contar com a ação transformadora do tirano “demagogo”, que lhes oferece outros remédios, inclusive a possibilidade de rezar para outros deuses, deuses que fossem sentidos como mais “seus” (TRABULSI, 2004: 93).
Não podemos cair no equívoco de enxergarmos uma simples relação de poder por
parte do tirano, o ser maldoso que quer dominar ideologicamente seu povo através de suas
crenças. Isto engessaria o debate. Partiremos do princípio de que nossas fontes colocam o
tirano como sendo um habitante da montanha, dos campos distantes dos centros urbanos, por
isso ele mesmo um ser regido por divindades cthônicas. Pisístrato não era somente um
governante manipulador, ele era o próprio agente de seu segmento no poder, que manipula e
também é manipulado por uma tradição religiosa que abarca, em um primeiro momento,
90
somente sua gente; após a ascensão ao poder, todos os outros estratos da sociedade políade.
Ao tomar a atitude de aproximar os ritos chtônicos do seio da polis, além de
aproximar a própria população rural da vida urbana, Pisístrato também passa a ter sob
controle diversos ritos que antes eram praticados longe do conhecimento dos governantes.
Um rito rural não sofria o mesmo controle social de um rito praticado em um ambiente
urbano, fugindo ao controle do governante. Trazendo o culto cthônico de Dioniso para
dentro das muralhas da polis, Pisístrato obtém uma dupla vantagem: ao mesmo tempo em
que transforma este culto em uma resistência aos antigos ideais aristocráticos, ele também
traz para perto de sua regência um culto que não fazia frente ao poder oficial. Dioniso é
integrado no sistema da cidade ao mesmo tempo em que é favorecido por ele, com inúmeros
incentivos artísticos, como veremos adiante com algumas esculturas e cerâmicas.
Trabulsi enumera todas as atitudes que o tirano moderado tomou quando da
aproximação do dionisismo rural dos meios urbanos. Entre eles, podemos citar a
reorganização das festas dionisíacas, com a criação das Grandes Dionisíacas e a inserção do
culto ao deus no cronograma de festas oficiais de Atenas; desenvolvimento dos concursos
trágicos em honra ao deus, que irão conhecer seu apogeu no século seguinte; construção de
várias estátuas e monumentos representando o deus, como a passagem que narra a vinda de
uma imensa estátua de madeira de Dioniso de Eleutherai, trazida da Beócia; o aparecimento
da representação do deus na cerâmica, que se intensificará com o passar das décadas, ao
mesmo tempo que abarcará duas camadas da sociedade não privilegiadas, representando
juntamente com Dioniso (camponeses), Hefesto (artesãos) (TRABULSI, 2004:95).
Assim como a passagem relatada por nossas fontes quando a própria deusa Atena
conduz Pisístrato de volta à cidade – o que mostra a religiosidade em contato direto com a
polis – em algumas estátuas de Dioniso percebe-se – segundo uma tradição – os traços do
próprio Pisístrato (TRABULSI, 2004:95). Desta forma, temos o governante aliado à crença
religiosa, para a manutenção de uma memória governamental e uma afinidade do governante
com as divindades. A aristocracia teve de passar a se “acostumar” com estas divindades, e
em muitos casos também se aproveita delas. Dioniso, antes uma divindade livre que corria
errante pelos bosques, passa a ser confinado em lugares do sagrado:
A evolução do dionisismo ateniense no século VI me parece, portanto, o esforço mais importante na sua integração à cidade. Da mesma forma que os mistérios, o dionisismo era realizado, de início, fora dos quadros sociais e políticos aristocráticos; o que o tornava ainda mais “livre” que os
91
mistérios é que ele não tinha um “lugar” preciso. Rural, e não citadino, além disso, o dionisismo era a corrente mais dificilmente recuperável pela cidade aristocrática. A polis, atribuindo-lhe santuários e teatros, de certa maneira o aprisiona, dando-lhe lugares. A obra da tirania ateniense se apresenta, assim, na longa duração, como o maior esforço possível no processo de reelaboração da ideologia aristocrática, em vistas de sua permanência no século V e além dele (TRABULSI, 2004:96).
Para tentarmos compreender a inserção da memória religiosa no cotidiano da polis
ateniense, trabalhamos com as representações de Dioniso por meio de algumas imagens
presentes na cerâmica. Devemos de antemão alertar que não se trata de uma profunda análise
arqueológica destes artefatos, muito menos se trata de um debate teórico-metodológico
acerca dos métodos arqueológicos de análise. Pretendemos somente levantar uma discussão
iconográfica53 das representações divinas através de uma História das Imagens, com um
acervo arqueológico que representa Dioniso por intermédio de imagens ou, como coloca
Haiganuch Sarian: “Esta é a grande especificidade da maioria dos documentos de cultura
material da Antiguidade Clássica: não são objetos arqueológicos como quaisquer outros; eles
são portadores de imagens.” (SARIAN, 2005:13). A História das Imagens e os estudos
iconográficos foram muito negados quando do surgimento das idéias positivistas e
historicistas, e somente com o início das reflexões sobre hermenêutica e semiótica, realizadas
pelo pós-estruturalismo, é que este campo da ciência passou a ser valorizado:
A representação direta do material visual está cada vez mais afetada pela aplicação dos critérios da “história do gosto”. Contudo, no discurso acadêmico este tem um lugar pequeno; as linhas de batalha são (obviamente) entre a recuperação histórica (a tentativa de interpretar o material visual como deveria ter ocorrido, quando ele foi feito, seja pelo autor, por seus contemporâneos ou por ambos) e o engajamento crítico direto de vários tipos, com freqüência, mutuamente irreconciliáveis. Esses incluem, em primeiro lugar, a abordagem que admite a possibilidade de acesso intuitivo, direto, à “personalidade artística” e ao “processo criativo” (...); segundo, uma preocupação teoricamente engajada, pós-estruturalista, com a hermenêutica visual; e, terceiro, uma abordagem que enfatiza a continuidade essencial da arte, de forma que a arte de qualquer período do passado não possa ser compreendida além do contexto de sua relação com a prática corrente na arte e por extensão, em nenhum meio visual (GASKELL, 1992:258).
53 Por iconografia compreendemos uma representação ou um conjunto desta com o fim de produzir convenções e significados específicos que tornem o objeto representado reconhecível. Como exemplo podemos citar as características individuais que diferenciam os santos católicos entre si ou os símbolos que identificam os deuses gregos; no caso de Dioniso o tirso, a vinha ou o cântaro que guarda seu vinho.
92
Frances Yates aponta-nos que os antigos já possuíam uma noção clara da importância
da imagem na descrição dos acontecimentos: “(...) Plutarco diz que: ‘Simônides chamava a
pintura de poesia silenciosa e a poesia, de pintura que fala, pois as ações são pintadas
enquanto ocorrem, já as palavras as descrevem depois de terem acontecido’” (YATES,
2007:48). No estudo desta iconografia mais vale o mito transmitido pela tradição visual do
que a arte e a estética com que o tema foi tratado; sua função semântica predomina sobre sua
função estética (SARIAN, 2005:120). Sarian aponta-nos também diferentes orientações de
várias escolas sobre o estudo da iconografia grega e as principais posições metodológicas
quando da análise destas imagens:
1) Estudo paralelo das representações figuradas e da tradição literária refletindo uma total dependência das imagens com relação aos textos; (...) 2) Estudo da função semântica das imagens, valorizando os esquemas iconográficos e detectando códigos especiais de leitura e de interpretação; (...) 3) Estudo dos critérios de identificação de uma imagem e da sua transmissão, através da constituição de um repertório exaustivo das representações figuradas respeitando a especificidade das várias categorias de objetos arqueológicos (SARIAN, 1985:83).
Concordamos com Sarian quando, no mesmo artigo supracitado, afirma que nenhuma
das teorias em separado pode dar resultados relevantes ao estudo da iconografia grega;
somente com uma abordagem comparativa entre as fontes figuradas e as fontes textuais –
quando estas estão disponíveis – é que poderemos chegar a um conjunto de dados para
montarmos o processo histórico em questão (SARIAN, 1985:83). Gilberto da Silva
Francisco alerta-nos para o fato de que a importância exacerbada da escrita em detrimento do
“artístico” tratou de um projeto imperialista europeu de civilizar sociedades que ainda não
possuíam alfabeto (FRANCISCO, 2007:33), como alguns grupos na África e na Oceania;
isto se inicia desde o apogeu positivista, na divisão da cronologia histórica em “pré-história”
e “história”. Na Pré-história, as figuras eram primordiais como expressões; porém mesmo
com o surgimento da escrita, esta não diminuiu a importância da imagem, como atenta Paulo
Knauss:
É preciso atentar ainda para o fato de que, desde os tempos em que se fixou a palavra escrita, o novo código não veio substituir a imagem. A convivência entre expressão visual e expressão escrita sempre foi muito próxima. Ao longo da história das civilizações, são inúmeros os exemplos em que se percebe como os registros escritos acompanham os registros visuais. Velhas formas de escrita, como os hieróglifos, demonstram essa
93
proximidade. Isso equivale a dizer que a história da imagem se confunde com um capítulo da história da escrita e que seu distanciamento pode significar um prejuízo para o entendimento de ambas. Reconhecer isso implica admitir que imagem e escrita sempre conviveram (KNAUSS, 2006:99).
Quando não há fontes textuais ou quando a iconografia difere da escrita, faz-se
necessário um cotejamento entre os dois tipos de documento e pontuar a distinção de ambos,
não podendo colocar um documento acima do outro. Ambos são documentos diferenciados e
devem receber tratamentos metodológicos distintos, como alerta Haiganuch Sarian em sua
tese de Livre-Docência:
Vale dizer, não se pode de antemão comparar e equiparar tradição textual com tradição imagética porque se trata de produtos originados de práticas intelectuais e técnicas, de contextos e grupos sociais bastante diferenciados em relação ao meio social da produção escrita. Neste sentido, o estudo da imagem deve levar rigorosamente em conta os vários tipos de objetos que serviram de suportes dessas imagens ou que eram eles próprios imagens tal como os exemplares da estatuária (SARIAN, 2005:12).
As primeiras representações de Dioniso em vasos gregos são tardias; datam do
primeiro quartel do século VI ou até dos últimos anos do século VII e foram fabricadas em
Corinto (TRABULSI, 2004:110). A explicação para estas representações não terem
acontecido anteriormente – já que as imagens de deuses já apareciam em vasos do final do
século VIII – reside primeiro no fato de Dioniso não ser uma divindade antiga do panteão e
também pela já discutida ideologia aristocrática que predominava nestes séculos. As
representações do deus em Atenas são tardias, principalmente se comparadas a Corinto.
Enquanto o tirano Cipselos já havia iniciado seu governo em Corinto, Atenas ainda vivia sob
a égide do governo aristocrático, conforme nos explica Trabulsi:
(...) descompasso temporal que se explica pelo duplo “atraso” de Atenas e relação a Corinto; inicialmente, atraso na produção e exportação de cerâmica pintada, que apenas nesse momento começa a tomar o lugar eminente ocupado por Corinto até então; em seguida, “atraso” na evolução social e política, já que a mudança de regime, condição necessária para a difusão do dionisismo, acontece mais tarde (TRABULSI, 2004:111).
Embora as primeiras representações dionisíacas fossem realizadas em Corinto, é em
Atenas que a cerâmica atinge uma perfeição e é produzida em larga escala, como forma de
aquecimento da economia. No período clássico, as representações imagéticas de Dioniso
94
alastram-se por toda a cerâmica ateniense54. Uma grande especificidade dos ceramistas
atenienses é a presença de figuras humanas ou humanizadas em seus vasos, o que os
tornavam muito mais criadores de imagens do que decoradores de vasos: “A imagem e a
imagística são fenômenos essencialmente atenienses, qualquer que seja a origem dos artistas,
pois é sobretudo no meio intelectual de Atenas que não se podia conceber criação artística
sem a participação da figura humana.” (SARIAN, 2005:119). Esta figura humana era
representada como forma de identificar o público com a cena ao ser retratada e também para
a manutenção de uma memória mítica. Estas técnicas também foram muito utilizadas no
teatro:
Finalmente, se a escrita está na origem da transmissão das versões do mito e da religião dos produtos textuais, a produção imagética, articulada e se unindo ao objeto, era transmitida por tradição oral – em alguns casos através de uma operação visual de grande impacto, como o espetáculo teatral. Os diferentes ofícios praticados só podiam funcionar através de técnicas e saberes que revelam a existência de uma verdadeira memória do artista-artesão, criador dos artefatos imbuídos, através das imagens, de representações simbólicas (SARIAN, 1999:70).
Estas primeiras imagens de Dioniso representam o deus como um homem campestre
e rústico, sempre acompanhado de daimones55, em florestas, o que ressalta a idéia da
imagem campestre da divindade, que serviu de foco na política de promoção dos meios
rurais conduzida pela tirania. Segundo Trabulsi, as primeiras imagens seguras de Dioniso
fora dos meios campestres foram confeccionadas por volta de 580, por Sófilos; o pintor o
representa juntamente com outros numerosos personagens presentes no casamento de Peleu e
Tétis56 (TRABULSI, 2004:111). Um vaso muito estudado e discutido por estudiosos da
cultura material é o vaso François, elaborado por Kleitias, cerca de dez anos mais recente
54 De acordo com Trabulsi (2004), conhecemos mais de seiscentos vasos de figuras negras que tratam de cenas com o cunho dionisíaco, em um arsenal de vinte mil vasos. Já nos vasos de figuras vermelhas são milhares as representações que simbolizam Dioniso ou seu culto. Com este número de cerâmicas, torna-se impossível uma análise da totalidade dos vasos. Existe um conjunto de vasos de iconografia riquíssima, representando as festas Leneas, um ritual ateniense que reverenciava Dioniso. Para saber mais ver: FRONTISI-DUCROUX, Françoise. Le Dieu-Masque: une figure du dionysos d’athènes. Paris: La Découverte, 1991. 55 Figuras com um aspecto bestalizado. 56 Peleu e Tétis são os pais do herói da epopéia Ilíada, Aquiles. Tétis é uma ninfa muito antiga, filha de Nereu; Peleu é o rei da Tessália e neto de Zeus. O casamento foi arranjado por seu avô, e ocorreu no monte Pélion. Todos os deuses foram convidados, à exceção de Éris, a deusa da discórdia. Mesmo assim, esta compareceu e deixou na cerimônia uma maçã com os escritos: “para a mais bela”. Três deusas foram candidatas: Hera, Atena e Afrodite. Páris – príncipe de Tróia, filho de Príamo – foi escolhido para julgar a beleza das deusas. Persuadido por Afrodite, que lhe prometeu a mais bela mortal, Páris decide por dar a maçã à deusa, causando a discórdia entre os divinos. Como prêmio Afrodite lhe oferece Helena, rainha de Esparta, que é raptada pelo príncipe e levada a Tróia. Este incidente dá início à guerra.
95
que o de Sófilos. Em ambos os antiqüíssimos vasos, percebemos um Dioniso cabeludo e
barbudo vestido do chiton, e sempre fazendo parte de uma múltipla gama de personagens.
Pelas datas é concluído que as aparições de Dioniso iniciam-se na tirania de Pisístrato,
comprovando a hipótese do uso desta divindade cthônica pela política tirânica.
O menadismo é uma prática que demora certo tempo para aparecer nas
representações de cerâmica. Thomas Carpenter, na sua obra Art and Myth in Ancient Greece,
aponta que, no início das representações iconográficas, Dioniso é acompanhado por ninfas57;
somente da metade para o final do sexto século é que as mênades aparecem nas imagens
(CARPENTER, 1991:15). O pintor de Amásis inicia em 540 as cenas de Dioniso em cortejo
com as mênades, colocadas normalmente ao lado de sátiros, serpentes ou panteras; isto
mostra que o ritual em honra a Dioniso – muito retratado no teatro do século V, como
veremos no próximo capítulo – já era conhecido pelos pintores atenienses, mais uma prova
da política pisistrátida de aproximação da religiosidade cthônica. Já o transe e as práticas
rituais do modo que ficaram conhecidas só aparecem em vasos a partir da última década do
século VI (TRABULSI, 2004:117), já que podemos aproximar o termo mênade da palavra
grega manía (loucura, possessão divina).
É perceptível como a imagem de Dioniso transforma-se com o passar das décadas do
século VI. As imagens presentes nos primeiros vasos de Sófilos e Kleitias, que mostravam o
deus com um aspecto quase selvagem, vão se alterando para tornar a representação do deus
mais aceitável aos olhos da polis; acontece uma tentativa de “civilizar” o deus e torná-lo
urbano, abolindo o aspecto selvagem deste deus rural para adequar-se aos modos da cidade.
O deus que era rústico passa a ser à imagem de um cidadão ateniense – embora ainda
continue com representações de seu ritual, porém com os sátiros em uma imagem menos
bestializada e as mênades mais calmas e comportadas. No final do século V, temos uma
transformação no rosto do próprio deus, que passa de um senhor maduro para um jovem
efebo: “Mas a mudança de longe mais evidente que ocorre nas imagens dionisíacas é a que
se refere ao próprio deus. Ele era o deus macho, viril, muitas vezes hierático, sóbrio, por
vezes ameaçador; ele se torna o deus jovem e imberbe, muitas vezes efeminado.”
(TRABULSI, 2004:121-122). Esta questão de Dioniso ser rejuvenescido no decorrer do
século V também é colocada por Walter Burkert:
57 Para uma análise da trajetória das ninfas pela religiosidade grega ver: BARRERA, J. C. Bermejo e PLATAS, F. Diez. Lecturas del mito griego. Madri: Ediciones Akal, 2002.
96
No século VII e VI, as pinturas idealizadas nos vasos mostram Dioniso como um velho barbudo, num traje comprido, segurando a sua taça especial para o vinho, kántharos, na mão. Em meados do século V, Dioniso, à semelhança de Hermes, sofre um rejuvenescimento. Como no hino “homérico”, Dioniso é agora representado como jovem e a maior parte das vezes nu (BURKERT, 1993:327).
Percebemos que Burkert também concorda com nossa constatação acerca do Hino Homérico
a Dioniso ser escrito no período clássico. É certo que o hino descreve um Dioniso jovem,
mais condizente com o período clássico, já que no período arcaico o deus ainda era
representado como um homem maduro.
Outra forma de aproximação de Dioniso aos costumes dos cidadãos políades
promovida por Pisístrato é a imagem do deus aliada ao herói cívico, no caso Héracles. A
tirania lançou mão de idealizações de heróis para alavancar a ideologia de força dos
governos tirânicos e é ressaltada por Clístenes, quando este – com o fim da tirania ateniense
– instituía ideais democráticos. O herói Héracles, que após conseguir persistentemente
realizar os doze trabalhos impostos por sua madrasta Hera, é recebido no Olimpo com as
honras de deus. A obediência e determinação de Héracles passam a ser louvados como os
ideais que um cidadão também deveria seguir. Já o Dioniso primordial não tem regra nem
obediência, muito menos determinação para realizar algo que não queira. A figura de
Dioniso aparecerá juntamente com a de Héracles exatamente para incutir este mesmo ideal
democrático ao deus errante. Porém, a imagem de Héracles praticamente desaparece da
cerâmica com o fim das tiranias, enquanto que a imagem de Dioniso só aumenta,
principalmente quando da apropriação do deus pela tragédia ateniense do século V. A
aproximação entre Dioniso e Héracles certamente refletia o ideal da comunidade ateniense:
Progressivamente se atenuavam as distinções nítidas entre esta divindade e o mundo religioso oficial. Dioniso, deus anti-social, extra-urbano, se aproxima, na concepção coletiva, de Héracles, herói cívico, da cidade. E esta associação é sem dúvida decorrência de um longo processo de nivelamento político, social e religioso, tanto mais importante porquanto se situa, cronologicamente, neste final de século VI antes de Cristo, em que Clístenes instituía em Atenas os fundamentos da democracia (SARIAN, 2005: 127).
Antes de nos aprofundarmos nas análises iconográficas de algumas imagens
anforológicas, é importante situarmos um personagem primordial quando da análise de
97
cerâmicas: a figura do pintor. Na introdução de sua obra L’autre Guerrier: archers,
peltastes, cavaliers dans l’imagerie attique, François Lissarrague aponta para a necessidade
de situar o pintor de cerâmica – seja ele anônimo ou com obras assinadas – dentro de uma
realidade social, influenciada por ela e a influenciando. Para o autor, não podemos cair no
equívoco de acreditarmos piamente que as obras pintadas representavam a realidade social
total da época, haja vista a não representação de Dioniso no período homérico, mesmo com a
maioria da população sendo altamente ruralizada; o que podemos realizar quando analisamos
alguma arte antiga é uma tentativa de compreensão de como este pintor representava a sua
realidade, principalmente se tratando da Antiguidade grega, época em que os pintores
possuíam certa autonomia na confecção de suas obras:
Como o pintor possuía maior liberdade em sua própria maneira de compor e construir imagens, como é que este pode inventar ou modificar os padrões ou criar novas composições? Ou, inversamente, em que medida se vê obrigado a repetir padrões já conhecidos de antemão por seu público e qual é o peso das convenções pictóricas para assegurar que a imagem é entendida por aqueles a quem se destina? Finalmente, em outro nível, qual é o papel da clientela, da demanda na escolha e tratamento dos indivíduos? (LISSARRAGUE, 1990:4-5).
De acordo com Anthony Snodgrass (2004), o pintos deve ser colocado como um indivíduo
que, embora tenha técnicas e métodos padrões, também possui gostos e preferências
pessoais, e muitas vezes retrata a sua realidade e suas preferências individuais.
Sem dúvida esta é uma discussão pertinente. Não podemos afirmar que a realidade
está retratada em sua totalidade naquelas cerâmicas antigas. O pintor exerce uma relação de
trabalho e deve atender os interesses de sua demanda, e não necessariamente o serviço social
de narrar uma realidade contemporânea sua. Vários especialistas – como o próprio
Lissarrague – afirmam que a imagem de Dioniso é muito mais uma invenção dos próprios
pintores áticos do que do poder oficial. Entretanto, algumas constatações podem ser feitas
com certa segurança. A multiplicação de representações de Dioniso durante e após o período
tirânico nos leva à conclusão de que as tiranias ajudaram neste alastramento, utilizando o
deus como solvente dos ideais aristocráticos. As diferenças de Dioniso nos primeiros vasos
do início do século VI para os vasos do final deste século e do século seguinte –
confeccionados por inúmeros pintores distintos – nos leva a crer em uma modificação no
padrão de representação do deus.
Também é primordial avaliarmos a importância desta cerâmica para o cotidiano
98
grego antigo, em especial o ateniense. Ao contrário da Modernidade, a arte na Antiguidade
não era utilizada somente como objeto decorativo, como uma forma de ostentação burguesa
na contemporaneidade. Embora os eupátridas e os cidadãos abastados fossem os grupos com
mais facilidade de adquirir estas obras, elas eram utilizadas para serviços domésticos
cotidianos e não somente como adorno. As ânforas decoradas realmente guardavam água ou
vinho. Os potes iam ao fogo para cozimento e toda esta bela cerâmica produzida por
talentosos artistas era utilizada na vida do oikos.
É em vista deste contexto que pretendemos trabalhar, e a Nova Arqueologia também
respondeu a este anseio, com a chamada Arqueologia Contextualista:
A Arqueologia Contextualista é uma linha que reabilita a interpretação histórica no seio da discussão arqueológica (após críticas oriundas da “Nova Arqueologia”), que busca compreender o objeto material a partir das suas relações dinâmicas na sociedade em que se insere; entretanto, conforme salienta Michael Shanks, o objeto não deve ser tratado como refém do contexto. Novamente então, uma comunicação entre o objeto e estruturas mais amplas com as quais ele interage (FRANCISCO, 2007:55).
Alguns especialistas colocam a imagem como uma espécie de linguagem; a imagem falaria e
demonstraria um pensamento, assim como a escrita. Esta opinião é demasiadamente
perigosa, pois poderíamos investir no erro de classificarmos fontes imagéticas e fontes
escritas em um mesmo campo analítico. Embora a imagem diga-nos algo, esta possui
especificidades que devem ser levadas em conta:
A contribuição da lingüística tem permitido programar uma série de conceitos para a análise da imagem, mas não parece possível considerar a imagem como uma linguagem no sentido estrito do termo: podemos identificar elementos, como a sua repetição, poderia ser descrito como frases. Existe uma sintaxe da imagem, mas as suas regras de construção são muito mais abertas e mais variáveis do que os de uma linguagem articulada, organizada linearmente no tempo (LISSARRAGUE, 1990:9).
É importante ressaltarmos também que a descrição e projeção de imagens já existiam
para os próprios gregos; a ekphrasis é a palavra grega utilizada para denominar o estudo
descritivo de representações projetadas em imagens. Porém, François Lissarrague alerta-nos
para a incompatibilidade deste conceito grego para análise de imagens desenhadas em
cerâmica. De acordo com o autor, ekphrasis era utilizada pelos helenos para analisar a visão
do espectador pelas representações projetadas pelo teatro. Mais tardiamente ekphrasis passou
99
a ser utilizado também para descrever estátuas, mas nunca para objetos móveis, como vasos
(LISSARRAGUE, 1990:7). Talvez os gregos não possuíssem esta noção de descrição de
imagens através de desenhos ou, caso possuíssem, não concebiam uma palavra específica
para designar a prática.
Iremos apresentar aqui algumas imagens míticas. Como já foi discutido, o mito não é
uma fantasia ou, de acordo com Vernant (2001), não se trata da imaginação individual de um
poeta ou, neste caso, de um ceramista ou pintor. Toda a sociedade é influenciada por estas
imaginações que são os mitos, e os pintores agregam estas informações para realizarem suas
próprias leituras do que seria este mito. Também não podemos nos equivocar e afirmar que
os pintores eram simplesmente manipulados pelo imaginário. Estes trabalhadores faziam
parte de uma gama social complexa; trabalhavam com uma prerrogativa acerca da imagem
dos deuses mas também ajudavam a tecer a imagem destes.
As imagens com as quais nos deparamos neste trabalho remetem ao termo “mitema”,
de Gilbert Durand (2001), aquela teia de divindades que se interligam por afinidades ou
símbolos em comum. Em nenhuma cerâmica
encontramos Dioniso sozinho; o deus sempre está
acompanhado por outras divindades que, por algum
motivo, se identificam com ele: sejam os sátiros de seu
culto, sua amada Afrodite ou seu marido, o deus
trabalhador Hefesto.
Analisemos, então, algumas imagens
iconográficas que mostram as diversas facetas de
Dioniso58. É importante ressaltar que as imagens sobre as
quais vamos nos debruçar não representam a totalidade
de imagens do deus. Durante o período arcaico até o fim
do período helenístico, as representações dionisíacas
surgiram e se intensificaram em vasos e afrescos, e seria
impossível em uma dissertação abarcar todas as espécies de cerâmica59. As primeiras quatro
58 As imagens aqui apresentadas foram retiradas do LIMC (1981); da obra Dionysian Imagery in Archaic Greek Art: its development in black-figure vase painting (1986), de autoria de Thomas H. Carpenter; do livro Art and Myth in Ancient Greece (1991), do mesmo autor; da obra de Françoise Frontisi-Ducroux, com o título Le Dieu-Masque: une figure du Dionysos d’athènes (1991) e da tese de Livre-Docência da professora Haiganuch Sarian, intitulada Arqueologia da Imagem: expressões figuradas do mito e da religião na Antiguidade clássica (2005). 59 Além da cerâmica, Dioniso foi fortemente representado nas moedas, quando da sua difusão e popularização. Não trataremos aqui destes artefatos por uma questão de espaço e também porque não há representações do
100
imagens apresentadas foram também analisadas na tese de Livre-Docência de Sarian60. A
primeira trata-se do vaso do pintor Sófilos61 – que pode ser contemplado em uma imagem
panorâmica na página anterior – encontrado em Atenas e datado de aproximadamente 580 é,
como já foi dito, a imagem mais antiga de Dioniso encontrada até hoje. A cerâmica encontra-
se no British Museum, em Londres, com alguns pedaços ausentes, porém sem comprometer
a análise iconográfica. A cena da análise encontra-se na parte superior do vaso. No primeiro
lance de imagens.
De acordo com os especialistas, como Snodgrass (2004), Sófilos sempre teve
preferências por motivos heróicos ou de guerra. Desta forma, este vaso que iremos analisar é
incomum em sua produção. Pode ser simplesmente uma exceção ao estilo do autor, ou pode
ter sido encomendado por algum cliente, que pediu um tema específico. Ou ainda Sófilos
desejou retratar uma passagem mitológica que provavelmente estava sendo muito difundida
neste período – o casamento de Peleu e Tétis – já que o próximo vaso que iremos analisar – o
vaso François – também retrata o mesmo cortejo e data quase da mesma época do vaso de
Sófilos.
A cena que vemos retratada, como já elucidamos, é o cortejo nupcial de Tétis e Peleu
e vemos Dioniso junto a outros deuses do Olimpo – identificados com seus nomes – sem
uma posição de destaque, o que nos leva a concluir que neste primeiro momento, um pouco
anterior ao início do governo de
Pisístrato, o deus não é
primordial, e torna-se
personagem principal na
cerâmica ateniense somente com
o passar das décadas do governo
tirânico62. Já podemos identificar
em Dioniso o elemento vegetal,
como a planta – parece ser uma
deus nas moedas atenienses, e Atenas se traduz como o foco de nossa pesquisa. Para ver um estudo sobre as representações dionisíacas nas moedas gregas ver: FLORENZANO, Maria Beatriz Borba. “Notes on the imagery of Dionysos on Greek Coins”. In: Reveue Belgue de Numismatique. Bruxelas, v 151. p. 37-48, 1999. 60 As cerâmicas do dos pintores Sófilos e Kleitias, assim como o vaso do pintor de Leagros e do pintor Amásis. 61 Segundo Snodgrass (2004), Sófilos foi o primeiro artífice ateniense a assinar regularmente seus trabalhos, iniciando uma tradição que iria se tornar costumeira nos séculos seguintes. 62 Embora não seja consenso entre os especialistas que Dioniso foi uma prerrogativa dos tiranos, é perceptível que é com estes governos que as representações irão se acentuar, sobretudo na Ática.
101
vinha, já com cachos – que o deus segura em sua mão direita. Sua figura barbuda e cabeluda
ainda é ruralizada e campestre e é representado descalço. Todavia, a imagem de Dioniso,
mesmo este estando barbudo, não choca. Não havia a intenção de colocar Dioniso como uma
figura bestial – como é o caso dos sátiros; a barba é um sinal de majestade e poder. É
perceptível também que Dioniso está em segundo escalão; provavelmente sua função está em
representar a vinha e o vinho, indispensáveis para uma ocasião como esta (TRABULSI,
2004:112). As obras assinadas – assim como este dinos de Sófilo, o vaso François, de
Kleitias e do oleiro Ergótimo – eram obras de grande valor, artigos de luxo (SARIAN,
2005:124), sempre decoradas com motivos mitológicos que enalteciam o imaginário mítico.
O vaso pintado por Sófilos tem a inscrição com os nomes das divindades presentes; este
costume começou a aparecer em artefatos do período geométrico63, destarte só irá se
popularizar no princípio do século VI (SNOGRASS, 2004:154-155). Esta tradição acabou
facilitando demasiadamente o trabalho dos arqueólogos e historiadores quanto a análise
iconográfica destas obras:
Dá-se para nós um passo importante quando os pintores gregos de vasos começam a incluir em suas obras inscrições que de fato se referem ao conteúdo da pintura, em vez de apenas assinalar o nome do autor. (...) Trata-se de algo que, sem dúvida, vai nos servir de apoio na interpretação das cenas (SNODGRASS, 2004:151).
È importante também compreendermos que
representar Dioniso nestes vasos – pois apesar de
muitos serem fabricados somente para a exportação,
estavam em um ambiente urbano – é uma forma de
marcar a energia do campo participando da cidade.
Desta forma, a tirania “jogava” com o imaginário
popular, as pessoas menos abastadas economicamente
sentiam-se fazendo parte da cidade e,
conseqüentemente, da participação da vida na polis.
Da mesma forma que o dinos de Sófilo, a
63 Período compreendido entre os séculos X a VIII. Constituí-se como um período da arte grega – sobretudo ateniense – e é caracterizado pela elaboração de figuras com motivos geométricos, diferente do que havia ocorrido nos períodos anteriores. Contudo, as figuras humanas aparecem nas cerâmicas somente no século VIII.
102
cratera64 François65 – a segunda obra de cerâmica mais antiga que representa o deus –
também mostra a imagem de Dioniso de uma forma secundária, junto com outros deuses. A
imagem da página anterior – que mostra uma panorâmica de um dos lados do vaso –
encontra-se no Museo Archeologico de Florença e leva o sobrenome do arqueólogo que a
descobriu, Alessandro François, em um rico mobiliário de uma tumba etrusca em Chiusi
(SARIAN, 2005:128). Esta cratera é considerada um dos documentos mais ricos acerca da
questão de imagens de toda a Grécia.
O ambiente e a ocasião que iremos analisar são os mesmos da cerâmica anterior, o
casamento de Peleu e Tétis. Dioniso está na procissão nupcial juntamente com outras
divindades e, embora esteja faltando um pedaço do vaso bem na parte que representa seu
rosto, percebemos que o deus é figurado de frente e vestido com uma máscara, mostrando
que o pintor Kleitias tinha plena consciência do culto tradicional do deus, que apresentava
Dioniso com o aspecto de
uma máscara66 (SARIAN,
2005:124). A máscara,
embora não esteja
completamente visível,
possui olhos fixos na
pessoa que o observa, olhos
grandes, que demonstram
força e firmeza. Este tipo
de olhos, chamado pelos especialistas de “profiláticos”, aparecem a partir do século VII
(FRONTISI-DUCROUX, 1991:178). Este rosto com uma máscara foi um elemento utilizado
tanto no ritual quanto depois, quando das representações teatrais. Nela percebemos a relação
entre a presença e a ausência: a ausência do deus é suprida com uma máscara que o
representa e causa a impressão da presença:
64 As crateras eram recipientes onde se armazenavam líquidos – geralmente vinho – e onde se misturava o vinho a água para serem servidos nos simpósios e festas. 65 Esta cratera é excepcionalmente elaborada, contanto com doze cenas míticas distintas. Vários são os especialistas que já analisaram exaustivamente as representações presentes neste vaso; neste trabalho vamos analisar somente duas partes. Para ver uma análise completa do vaso François ver: CARPENTER, Thomas H. Art and Myth in Ancient Greece. Londres: Thames and Hudson, 1991. 66 Segundo Albin Lesky (1990), em um dos cultos mais primitivos do deus, uma máscara era pendente em um mastro e adorado por indivíduos também de máscara. Desta forma, podemos realmente falar de um deus-máscara.
103
Uma separação impõe-se, porém, entre a máscara cênica, acessórios cuja função é resolver, assim como os outros elementos do vestuário, problemas de expressividade trágica, e, de um lado, as mascaradas rituais em que os fiéis se fantasiam com fins propriamente religiosos e, de outro, a máscara do próprio deus, que, por sua face única com olhos estranhos, traduz alguns aspectos próprios de Dioniso, essa força divina cuja presença parece inelutavelmente marcada pela ausência (VERNANT; VIDAL-NAQUET, 1999:161).
O deus parece ser representado com uma noção de movimento; ele corre rapidamente
para a direita, enquanto os outros deuses parecem bem mais calmos. Na mão direta o deus
segura uma vinha com um cacho de uvas na ponta, como podemos ver no detalhe. Com estas
características presentes, podemos aplicar o conceito de representação discutido no primeiro
capítulo: a forma de identificação do deus vem através de elementos que já estão no
imaginário popular, sem que ninguém houvesse
manipulado. O que os pintores fazem é se
apropriarem de elementos que já eram conhecidos
pelo povo como parte de Dioniso – como a ânfora de
vinho e o cacho de uvas – e representarem estes
elementos em suas obras, como forma de
identificação do deus. Estas caracterizações estão
presentes em praticamente todos os vasos; a imagem
do deus independe da vontade dos pintores, e estes
têm de representar o deus conforme as pessoas o
identificam.
Pela máscara e pela longuíssima barba é
perceptível a imagem rústica do deus, principalmente se comparado às outras divindades que
compõem o cortejo, todas com formas menos selvagens. Entretanto, Dioniso representa a
ligação entre os deuses e os mortais – ligação representada também pelo próprio casamento
de uma deusa com um mortal:
Com o corpo de perfil, ele caminha entre os outros deuses, em posição central – que a cratera exige – e integrado com os Olímpicos e seu cortejo. Identificável pelos seus atributos, a longa túnica jônica e a ânfora de vinho, seu presente para os humanos. Está no casamento de Tétis e Peleu, cuja união – uma deusa e um mortal – é paradigmática; Dioniso anda com os deuses. Mas ele vira o rosto dos deuses para olhar para os homens. A ação oferece a imagem do deus ao espectador, faz com que o bebedor da cratera
104
fite o deus, provocando uma evasão de imagem, evasão parcial, limitada ao rosto. Dioniso está, tanto nesta obra como em muitas outras, para marcar o diferencial entre os próprios deuses, e sua relação especial com os seres humanos. O contato com estes é visual, e a influência de seu olhar causa o dobro da potência que ele exerceria através do vinho (FRONTISI-DUCROUX, 1991:177).
Esta ação do deus, de se virar para quem o olha, é no mínimo intrigante –
principalmente porque é o único ser divino do cortejo a fazer isto. Podemos concordar com
Jean-Pierre Vernant e Pierre Vidal-Naquet, que afirmam que esta é uma ação que une o
homem ao deus, pois quem olha Dioniso se sente como parte de seu cortejo:
(...) o rosto de Dioniso, repentinamente oferecido de frente, introduz uma ruptura surpreendente na regularidade do cortejo. Com seus olhos esbugalhados, ele fixa o espectador, que com isso se encontra colocado em posição de iniciado nos mistérios (VERNANT e NAQUET, 1999:175).
Em outra cena do mesmo vaso – já que o vaso conta com mais de 120 representações,
entre indivíduos e animais – Dioniso está próximo de Afrodite e ambos estão sob efeito do
vinho. Além de representar o mito que narra o relacionamento entre os dois, Thomas
Carpenter, em sua obra Dionysian Imagery in Archaic Geerk Art: its development in black-
figure vase painting, analisa que esta relação narra também a sexualidade de Dioniso, que
sempre foi considerado um deus da orgia e do sexo (CARPENTER, 1986:97). O vinho que
sempre acompanha Dioniso entorpece os homens e os fazem amar; o amor de Afrodite e a
embriaguês de Dioniso misturam-se neste vaso. Embora somente dez anos – ou um pouco
mais – separem o vaso de Sófilos do vaso de Kleitias, percebemos que no segundo Dioniso
possui uma importância maior, sendo representado duas vezes no mesmo vaso, em ocasiões
diferentes, junto com diversas divindades e em posições diferentes.
Estas primeiras representações de Dioniso iniciam uma longa tradição iconográfica.
A imagística do deus irá alastrar-se pela cerâmica de toda Atenas e a ascensão definitiva de
Pisístrato vai fazer com que surjam diversas representações distintas do deus, todavia sempre
respeitando alguns símbolos e tradições mitológicas para que ele seja identificado. A
próxima imagem trata-se de uma ânfora do último quartel do século VI, de artista anônimo,
porém sabemos que se trata de um pintor do grupo dos Leagros. Em relação a este pintor,
Sarian aponta:
(...) um dos mais profícuos pintores do grupo dos Leagros. Sua leitura (...) é
105
plena de ensinamentos a propósito da importância que mito e imagística exerceram na sociedade ateniense: valor educativo pela divulgação de toda uma ideologia mitológica e valor social pela abrangência de sua visualização (SARIAN, 2005: 120).
O pintor do grupo dos Leagros utiliza a técnica de figuras negras sob argila e sua
pintura caracteriza uma conhecida categoria de cerâmica produzida no final do período
arcaico. Em uma face da ânfora vemos Dioniso com uma mênade – e é esta face que
mostramos a seguir – e na outra face Héracles combatendo o touro de Creta, o que ressalta a
afirmação de Dioniso junto ao herói cívico67 durante as tiranias. Esta ânfora faz parte do
acervo do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, possui 25 cm de
altura e 16,5cm de diâmetro (SARIAN, 2005:128).
Vemos na imagem produzida na ânfora elementos de identificação do deus Dioniso,
como o cântaro em uma de suas mãos –
para lembrar a sua associação com o
vinho – e em sua outra mão, um ramo
de sarmento68, bem como a coroa de
hera sobre sua cabeça: elementos
simbólicos que aproximam o deus do
elemento vegetal. A posição de
Dioniso, sentado em um trono, concebe
um estado hierarquizado ao deus. A
figura feminina de pé em frente a
Dioniso executa uma harmoniosa
dança, o que nos leva a identificá-la
como uma mênade, figura do ritual
dionisíaco executante da música nos
cortejos (SARIAN, 2005:121).
Contudo, esta cena distancia a
concepção pessoal do deus. O ritual
dionisíaco era realizado com danças frenéticas e sua atitude hierática e real aproximava-o
67 Héracles era aquele herói que nunca desistiu perante os desafios. O filho do soberano Zeus que sempre foi valente e obediente às suas obrigações, mais ou menos como um cidadão ateniense deveria ser. Para saber sobre a história de Héracles ver: GRIMAL, Pierre. Dicionário de Mitologia Grega e Romana. Rio de Janeiro: Bertrand, 2000. 68 Espécie de videira ou planta similar.
106
muito mais das representações dos deuses máximos do Olimpo, como Zeus ou Poseidon
(SARIAN, 2005:125). Estas representações não combinavam com o deus popular, campestre
e mascarado como Dioniso era representado até então, que distribuía seu festejo jocoso a
todos que aceitavam se curvar ao seu transe. Como esta é uma ânfora do final do século VI,
podemos concluir que neste momento o deus já estava urbanizado e “civilizado” e, pela
atitude serena da mênade – que antes dançava errante pelos campos – que seu mito já se
encontrava oficializado. Não há música – a mênade não carrega nenhum instrumento musical
– mas trata-se de um rito, perceptível pela mênade a dançar. Mas um rito tradicional de
Dioniso não poderia ocorrer sem música. Concordando com Sarian, de que os pintores deste
grupo se preocupavam com uma ideologia mitológica, concluímos que o pintor não estava
tão preocupado em retratar as especificidades do culto dionisíaco tradicional; sua intenção
provavelmente era a de retratar o novo culto ao deus, já modificado pela tirania na época em
que o vaso foi produzido, no último quartel do século VI.
A ânfora abaixo, que pode ser conferida no Cabinet des Medailles da Bibliothèque
Nationale de Paris, é o vaso de Amásis,
assinado pelo oleiro com este nome, que
foi descoberto em Vulci, na Etrúria e
datada de 540/530 (SARIAN, 2005:128).
Trata-se de um vaso de figuras negras em
que podemos ver Dioniso com duas
figuras femininas. O deus é representado
com seu cântaro, símbolo que o
caracteriza, e barbudo e cabeludo. As
mulheres são mênades, uma oferece uma
lebre, a outra segura uma vinha e possui
uma pantera ou um tigre desenhado – ou
a própria roupa foi feita com a pele do
animal – em suas vestimentas; estes
animais poderiam remeter a uma
memória de uma omofagia, presente no
rito dionisíaco, que foi se perdendo com o
passar do tempo; o consumo de carne crua passou a ser considerado demasiado bestial para
um culto políade. Podemos concluir então que se trata de um momento durante um ritual,
107
com o sacrifício e oferenda ao deus. Mais uma vez tanto o deus – que tem como única ação
na cena uma reverência com sua mão esquerda – quanto às sacerdotisas estão em posições
serenas e calmas durante o ritual e, por se tratar de uma ânfora já do último quartel do século
VI, ressaltamos nossa reflexão sobre a civilidade do deus e de seu rito após certo tempo de
poder tirânico em toda a Grécia.
A próxima cerâmica é uma ânfora ateniense de autor desconhecido e tida como
confeccionada por volta de 500, retirada do LIMC. Nela percebemos Dioniso junto a outro
homem – provavelmente uma divindade – que não conseguimos distinguir por causa da falta
de elementos simbólicos que o identifiquem. Já Dioniso é facilmente reconhecido pela
quantidade de vinhas que envolvem o deus. Neste vaso é interessante percebermos uma
constatação feita por José Antonio Dabdab Trabulsi sobre as ânforas do fim do século VI e
do século V:
Evidentemente, o vinho e a dança não estavam ausentes das cenas dionisíacas anteriores, mas me parece que o extremo fim do século VI e o início do século V sobrecarregaram Dioniso e as mênades com traços do “outro”. As roupas são mais orientais, as serpentes e pardalis se multiplicam; a loucura das mênades faz com que essas imagens sejam muitas vezes utilizadas para ilustrar o êxtase das Bacantes. Eu arrisco então aqui uma hipótese; o classicismo (ou a época pós-tirania, se preferirmos) sobrecarregou certos traços “bárbaros” de Dioniso. A literatura do século V poderá talvez confirmar esta hipótese (TRABULSI, 2004:118).
Não é difícil
percebermos traços bárbaros
em Dioniso na imagem que
este vaso projeta: a começar
pelo turbante que o deus
utiliza, adorno
costumeiramente oriental. Da
mesma forma, o manto que
sai do turbante é diferente dos
outros mantos que o deus
aparece usando, pois ao
contrário dos mantos gregos,
este manto sai direto do
108
turbante e não se parece em nada com os mantos helênicos que se apóiam nos ombros. A
barba – além de estar civilizada, curta, diferente do vaso François – é alongada e bem
penteada, e de perfil poderíamos pensar que se trata de um indivíduo asiático. A afirmação
de Trabulsi pode ser muito bem aplicada a este vaso e a alguns outros. Este “barbarismo”
torna-se um sinal da intensificação das relações de Atenas com outras pátrias devido às rotas
comerciais ao final do século VI, como veremos no tópico seguinte. A literatura do século V
vai reafirmar este “barbarismo” dionisíaco, como será elucidado no próximo capítulo. Este
vaso também reforça a idéia de Dioniso ter passado a ser representado de forma mais estática
em meados do fim do século VI, pois o deus está sentado em um simpósio em uma discussão
com o outro indivíduo, bem diferente do Dioniso do vaso de Sófilos ou do vaso François.
Neste segundo vaso a diferença é ainda mais gritante, pois o Dioniso mascarado corre
rapidamente para a direita em meio a um cortejo nupcial. Já o Dioniso desta ânfora mais se
assemelha a Zeus ou a outros deuses temperantes que observam a humanidade sentados em
seus tronos no Olimpo
O próximo vaso é mais ou menos da mesma época do anterior – de 510 para mais
novo; podemos perceber a aproximação pelo estilo do desenho e da arte – e retrata uma cena
semelhante à do vaso de 500.
Foi descoberto em Atenas e se
encontra no Museu Nacional
desta cidade. Nela, Dioniso – à
direita – está na companhia de
outro indivíduo, que acreditam
ser Hefesto, embora sem muita
certeza (GASPARRI,
1982:470). Dioniso também usa
turbante e sua barba é
semelhante a do outro vaso. A
vinha – símbolo que o identifica
– é acompanhada por um outro
artefato na mão do deus, um bastão, que também é seguro pelo outro homem. Uma figura
felina – uma pantera ou, de acordo com Gasparri, um leão – está abaixo do móvel em que os
deuses estão deitados. Dioniso está novamente em um simpósio e é representando mais uma
vez de forma estática.
109
A última cerâmica a ser analisada por nós neste trabalho é um vaso de figuras
vermelhas da primeira década do século V, já do período clássico, que retrata a volta de
Hefesto ao Olimpo, confeccionado pelo pintor Kleophrades (CARPENTER, 1991:26). Nele,
percebemos a aproximação entre as duas divindades, que representavam segmentos sociais –
como já elucidamos – não abarcados pela antiga política social aristocrática. A opinião
predominante ainda é a de afirmar que ambos os deuses foram inseridos nas relações sociais
da política tirânica. Esta visão tradicional deve ser atenuada. É fato que os tiranos utilizaram
imagens divinas, mas não podemos afirmar que Dioniso junto a Hefesto não existia antes da
tirania e, após ela, passou a existir. A questão não é tão simplista; a imagem dos deuses fez
parte de um processo, e não podemos cair no equívoco de acreditar que de um dia para o
outro isto ocorreu. Em todo o vaso, vemos o cortejo divino de reinserção de Hefesto no
panteão divino; em uma face o deus é representado em cima de uma mula itifálica e sendo
escoltado por sátiros.
Destarte é a outra face que nos interessa. A face representada mostra Dioniso – com
seu cântaro e sua vinha simbólicos de sua representação – vestido com pele de leopardo e
rodeado por sátiros – também vestindo o mesmo tipo de pele – que embalam um cortejo
musical. A diferença na imagem de Dioniso é perceptível quando analisamos suas
vestimentas, agora postas de maneira
civilizada sob um manto que concede
à imagem divina um caráter real; sua
barba e seus cabelos não estão mais
espalhados de modo anárquico.
Podemos perceber que o
primeiro sátiro toca uma lira e mantém
seu falo ereto, em uma condição
itifálica que credita à imagem divina
um caráter sexualizado. O terceiro e o
quarto sátiro também possuem seus
falos eretos; o terceiro toca uma
espécie de flauta e o quarto carrega
uma enorme ânfora. O falo sempre fez
parte da representação de Dioniso,
mas acentua-se com a organização dos concursos teatrais no final do sexto século e
110
estagmenta-se no século seguinte. Este vaso do século V também traz Dioniso de uma forma
barbarizada; o manto de pele de leopardo e os cabelos com madeichas crespas e tranças
lembram alguém do mediterrâneo asiático, provavelmente persa. Assim como no outro vaso
analisado, de 500, este, já do século V, reafirma a imagem do deus bárbaro. Também neste
vaso percebemos quão elaborada se tornou a imagem de Dioniso. O ser rústico e jocoso dos
primeiros vasos passa – sobretudo a partir das ânforas do século V – a utilizar vestimentas
mais “adequadas” ao padrão divino e civilizado.
Esta série de vasos por nós analisadas neste trabalho nos remete a um conceito muito
difundido durante todo o percurso historiográfico e muito discutido pela historiografia
recente: o de memória. Não iremos trabalhar com as exaustivas definições do conceito, nem
as transformações que o mesmo sofreu ao longo dos séculos; iremos aqui somente utilizar a
aplicabilidade do conceito na realidade no nosso trabalho e no contexto por nós discutido.
Fernando Catroga nos dá a definição de três tipos de memória: a primeira é a proto-memória,
fruto da socialização e do cotidiano que diluem o distanciamento entre passado e presente; a
segunda é a memória propriamente dita, a própria recordação e, finalmente, a metamemória,
aquela que define as representações que o indivíduo faz de sua própria memória e o
conhecimento que afirma ter de certo fato (CATROGA, 2001: 43-44).
Neste trabalho, percebemos que a metamemória de Catroga se enquadra na realidade
das representações dionisíacas. A definição que as representações exercem sobre a memória
do indivíduo faz com que este assimile em sua mente a idéia retratada por esta representação.
Desta forma, a memória irá modificar-se conforme o signo representado se modifica,
fazendo com que o indivíduo acredite que aquela representação retrata efetivamente o fato
representado.
A obra A Memória, a história, o esquecimento, publicada no ano dois mil69, de
autoria do filósofo Paul Ricoeur, nos servirá de base para uma abordagem deste conceito
clássico em nosso objeto, mais especificamente a segunda parte do livro de Ricoeur, na qual
o filósofo fala dos “abusos da memória”, que são obstáculos ou modificação que estas
sofrem, executadas por uma ideologia dominante ou por um próprio “mundo de
experiências”, para utilizar um termo fenomenológico. Ricoeur chama de “memória
manipulada” as distorções políticas e ideológicas que ocorrem em uma representação, no
intuito de construir uma identidade psíquica que direcionaria as crenças ou as recusas do
69 Em 2003 a obra ganhou uma tradução para o espanhol e finalmente em 2007 a obra obteve uma tradução para o português.
111
indivíduo que olha as imagens representadas. Estas relações é que formam a “memória
coletiva” – em um diálogo com Maurice Halbwachs (2004) – que formará a opinião de um
grupo.
É exatamente do ponto discutido na parte dois que pretendemos lançar mão. A
“memória manipulada” de Paul Ricoeur pode muito bem ser percebida claramente quando da
análise das ânforas apresentadas. De acordo com o autor, a memória conta com uma
fragilidade própria, que propiciará sua manipulação – em uma proximidade entre a
imaginação e a memória – para a construção de novas identidades (RICOEUR, 2007:94). Na
tentativa de aproximar a identidade campestre e rural vivida pelas camadas menos
favorecidas de Atenas, Pisístrato em seu governo passa a trabalhar com esta memória
identitária no cotidiano políade, com a presença da divindade que traz a idéia do rural –
Dioniso – em semióforos utilizados no dia a dia do oikos. A memória é guardada por meio de
imagens de deuses e homens que representam “coisas” (YATES, 2007:50); no caso de
Dioniso, a ruralidade, no caso de Hefesto, o trabalho artesão, no caso de Zeus, a civilidade e
o poder, e assim sucessivamente. Mas ao mesmo tempo o tirano transforma esta imagem – a
de Dioniso – em uma idéia de cidadania, civilizando a divindade e moldando-a aos padrões
das quais a polis necessitava.
Remetemos-nos novamente à questão do pintor e da importância da idéia que o
indivíduo artista exerce neste processo de transformação mnemônica e identitária. É aliada à
idéia e à opinião destes produtores de cerâmica que o tirano trabalha para montar uma
narrativa – para utilizar uma idéia de Ricoeur – que torne a idéia Dioniso em um discurso
aceito pela nova identidade. Como coloca Ricoeur: “Até o tirano precisa de um retórico, de
um sofista, para transformar em discurso sua empreitada de sedução e intimidação.”
(RICOEUR, 2007:98). Jeanne Marie Gagnebin agrega-nos outro conceito a nossa discussão.
A autora nos fala dos rastros que a memória deixa em um objeto representado; estes rastros
irão propiciar uma lembrança sempre que nos remetermos àquela idéia outrora representada:
Notemos primeiro que o rastro, na tradição filosófica e psicológica, foi sempre uma dessas noções preciosas e complexas (...) que procuram manter juntas a presença do ausente e a ausência da presença. Seja sobre tabletes de cera ou sobre uma “lousa mágica” (...), o rastro inscreve a lembrança de uma presença que não existe mais e que sempre corre o risco de se apagar definitivamente (GAGNEBIN, 2006:44).
No tópico que se segue tentamos montar uma narrativa que nos leva a compreender a
112
continuação da tirania de Pisístrato por seus filhos após sua morte, a desagregação deste
governo e o surgimento de um novo ideal político que irá propiciar, nos anos que se seguem,
o nascimento da democracia, e a permanência do desenvolvimento da imagética relacionada
a Dioniso.
2.4. Os Pisistrátidas, o fim da tirania ateniense e o governo de Clístenes
Com o término do governo de Pisístrato, seu filho mais velho, Hípias, é quem assume
as rédeas do poder ateniense70. Peter Jones alerta-nos para o fato de Pisístrato ser capaz de
transmitir o poder a seu filho, já que raramente uma tirania durava mais que um par de
gerações sem que seus partidários de início se voltassem contra ela e os aristocratas
retomassem o poder (JONES, 1997:8-9). Os Pisistrátidas – como eram chamados os filhos de
Pisístrato, o mais velho Hípias e o mais jovem Hiparco – deram continuidade às reformas
culturais do pai – levando para Atenas muitos poetas, escritores e artistas. Embora a tirania
de Pisístrato fosse de suma importância para a evolução cultural de Atenas – como visto no
tópico anterior – foram seus filhos que contribuíram veementemente para que Atenas se
tornasse um grande centro intelectual e artístico que a fará conhecida até nossos dias. As
apresentações artísticas multiplicaram-se e foi nesta altura que os hinos órficos foram
compilados e as primeiras edições da Ilíada e da Odisséia foram elaboradas (MOSSÉ,
1989:184).
Mario Attilio Levi aponta-nos que muito desta evolução sócio-cultural ocorreu pelo
incentivo que os Pisistrátidas concederam a artistas e escritores, o que propiciou uma
imigração para a pólis ateniense de gregos oriundos de regiões já culturalmente
desenvolvidas (LEVI, 1991:41). O filósofo Pitágoras saiu de Samos e se instalou em Atenas
no período das tiranias (COTTERILL, 2004:232) e dos tiranos recebeu incentivo para a
fundação de sua escola de filosofia matemática. Estes estrangeiros passaram a exercer
direitos de cidadão, diminuindo assim a questão da autoctonia ateniense; a questão dos
metecos serem considerados cidadãos será revista por Clístenes.
As dificuldades para exercerem o poder foram inúmeras, já que estes não sabiam o
modo de mantê-lo: “Estes, nascidos tiranos – se podemos assim dizê-lo – não conseguiram
vencer as vicissitudes que haviam presidido à ascensão ao poder por parte de seu pai.”
70 Histórias e Constituição de Atenas também relatam o governo dos filhos de Pisístrato.
113
(MOSSÉ, 1982:20). Acabaram por ter de tornar seu governo muito mais severo para
conseguirem se manter no poder:
Em 514, dois amantes aristocratas, Harmódio e Aristogíton, tramaram o assassinato de Hiparco (...). Na procissão das Panatenéias, os conspiradores entraram em pânico. Hiparco foi assassinado, mas Harmódio foi morto no atentado e depois Aristogíton morreu sob tortura. Hípias sobreviveu e sua tirania tornou-se ainda mais severa (JONES, 1997:9).
Outra tradição relata que Hiparco se apaixonou por Harmódio – um cidadão – e,
tendo este o repelido, Hiparco humilha a irmã de Harmódio e este, junto com seu amante
Aristogíton, preparou o assassinato do tirano71 (MOSSÉ, 1982:20). Após este violento
incidente, outros aristocratas que estavam exilados ou haviam perdido o poder durante o
governo de Pisístrato passaram a querer a retomada do poder de Atenas. A antiga aristocracia
políade aproveitou-se para se livrar dos governantes que ainda não gozavam do mesmo
prestígio do pai. Porém, precisavam de força militar para obter êxito. Foram então
reivindicar a Esparta um exército para ajudá-los a derrubar a tirania ateniense72. Cleômedes,
governante espartano, atendeu ao pedido dos aristocratas e em 510 expulsou Hípias e sua
família de Atenas (JONES, 1997:9). O povo ateniense nenhum papel desempenhara quando
da morte de Hiparco ou quando do aumento da autoridade por parte de Hípias, tanto que foi
preciso uma intervenção estrangeira para causar a derrocada do tirano.
Cleômedes esperava, após esta atitude, que Atenas correspondesse com a volta de
uma aristocracia e que voltasse a demonstrar boa vontade com Esparta – já que no período da
tirania as relações comerciais, políticas e culturais entre Atenas e Esparta foram bem menos
corriqueiras. Por dois anos foi isso que aconteceu, porém com a artimanha de um
Alcmeônida, o aristocrata Clístenes, toda a estrutura foi novamente alterada. A tirania passou
então a ser repudiada pelas novas formas de governo. Na democracia, ela será criticada e
execrada e, já no período helenístico temos uma lei contra a tirania73, confeccionada em uma
estela de mármore, com um relevo representando a democracia – nesta época já solidificada
– ao coroar o povo de Atenas74.
71 Claude Mossé (1982) nos aponta que os amantes seriam reverenciados séculos mais tarde – durante a democracia – como heróis anti-tirânicos e, no século IV, seus descendentes gozariam de vários privilégios. 72 Vale aqui ressaltar que Esparta foi uma das únicas cidades a nunca sucumbir a uma tirania. 73 A lei foi datada de 337-6, durante o arcontado de Frínicos, sob pritania de Leôntis, tendo como propositor da monção para votação Menêstratos de Aixone e tendo como realizador da monção Eucrates, filho de Aristôtimos, do Pireu 74 Para uma leitura da lei na íntegra ver: FUNARI, Pedro Paulo A. Antiguidade Clássica: a história e a cultura
114
Clístenes, como fazia parte do ghéne dos Alcmeônidas, foi exilado quando do
governo de Pisístrato, retornou a Atenas após a morte deste, mas foi novamente exilado
quando Hípias fortaleceu sua autoridade, após a morte de seu irmão. Após a derrubada dos
Pisistrátidas, Clístenes perde a disputa do governo para Iságoras, amigo pessoal de
Cleômedes. Iságoras é eleito pelos pares arconte em 508, sob pressão dos espartanos.
Clístenes apóia-se na manipulação do povo e faz com que este não permita que um
aristocrata a mando de um estrangeiro tome as decisões em Atenas. Deste modo, Clístenes
utiliza o mesmo estratagema que Pisístrato e assim é conduzido ao poder. Caracterizamos
Clístenes com o mesmo conceito de “homem providencial” pelo qual nomeamos Pisístrato.
Assim como o tirano, Clístenes sabia criar as condições para se tornar um governante
indispensável (TRABULSI, 2001:63): denuncia a tomada de poder por um aristocrata ligado
ao estrangeiro e une-se ao povo na luta a favor da hegemonia ateniense.
Mossé afirma que “o fim da tirania significava, pois, o puro e simples retorno ao
passado.” (MOSSÉ, 1982:21) Não foi isso que houve; Clístenes já havia percebido os modos
como Sólon e Pisístrato haviam conduzido a polis nas últimas décadas e constatou que não
seria possível instalar novamente costumes puramente aristocráticos, sob o risco de um
colapso social, promovido principalmente por aqueles que o conduziram à liderança. Então
Clístenes apresenta novas leis que complementam e confirmam a legislação soloniana de
noventa e quatro anos atrás.
Seguindo o exemplo de seus antecessores, Clístenes manteve a política de
distribuição de seu poder para evitar uma concentração de poder por poucos, o que
acarretaria em uma forte resistência à sua administração. Porém, o arconte foi mais além que
seu antecessor tirano: dividiu a cidade-estado em várias facções e deu poder total a elas,
descentralizando completamente as forças de resistência:
Clístenes criou dez novas phúlai (tribos) geográficas artificiais que ultrapassavam as velhas fronteiras naturais das quatro antigas tribos baseadas no parentesco e permitiram que homens, até então excluídos da cidadania, pudessem obtê-la. Cada tribo era composta de grupos de unidades de aldeias, demoi (dêmos) (...) espalhadas por toda a Ática. Esses demoi tinham seus próprios arranjos políticos locais e tornaram-se o foco das relações de lealdade e de atenção dos cidadãos (JONES, 1997:9).
Com este projeto, o arconte possuía objetivos de descentralização do poder, mas também a partir dos documentos. Campinas: Ed. Unicamp, 2003.
115
intenções militares – devido à ameaça persa, que passou a interessar-se por terras na
Península Balcânica: “(...) se retirava dos ghéne o controle direto sobre a cidadania e
igualava os cidadãos novos com os originais, constituía também, com as dez tribos, dez
distritos de recrutamento que deviam fornecer uma unidade de infantaria pesada.” (LEVI,
1991:44-45). Também ampliou o conselho que administrava a cidade para quinhentos
membros (boulé) e deu direito de voto na assembléia popular (ekklesía) a cidadãos
registrados no demos.
É importante deixarmos claro que não partilhamos completamente da idéia de
Clístenes ser o verdadeiro precursor da democracia ateniense. Contudo, é mister que o
arconte estendeu o poder para praticamente toda a população – os escravos e as mulheres, é
claro, ficaram de fora mais uma vez – fazendo desta forma nascer um sentimento de
igualdade que pode ter influenciado mais tarde Péricles e os teóricos da democracia.
Clístenes aproximava-se muito mais dos ideais democráticos do que, por exemplo, Sólon:
A reforma da cidadania realizada por Clístenes explica, portanto, por que a tradição histórica o coloca, junto com Sólon e Pisístrato, entre os políticos que eram favoráveis ao ‘povo’, ao dêmos, isto é, a todos quantos estavam excluídos dos privilégios e dos poderes exclusivos dos eupátridas, chefes dos ghéne (LEVI, 1991:43).
Aprimorando o caráter legislador do arconte, Clístenes elabora a lei da isonomia, a
igualdade face a face diante da lei, o que Mossé caracteriza como a base da cidadania
ateniense (MOSSÉ, 1993:27). Tanto Marcel Detienne como Jean-Pierre Vernant partem de
uma mesma noção para definir o que seria a isonomia: a de centralidade. A isonomia
caracteriza-se como a distinção entre interesses pessoais e coletivos através de um espaço
centrado (DETINNE, 1988:51); o poder está no centro e é utilizado para centrar os
indivíduos, como “o caminho do meio”. Vernant condiz com a afirmação de Detienne, e
enumera que a isonomia vem para fortalecer a corrente democrática – esta já em formação,
embora ainda não em sua condição plena – e para diminuir insatisfações que poderiam abalar
a evolução da polis: “(...) define todos os cidadãos, como tais, sem consideração de fortuna
nem de virtude, como ‘iguais’ que têm os mesmos direitos de participar de todos os aspectos
da vida pública.” (VERNANT, 1986:69). Com estas medidas legisladoras enraíza-se a
política na idéia dos atenienses. Esta noção política será importantíssima para o restante da
história de Atenas, haja vista que o homem político exercerá funções e se reconhecerá como
agente da política: “Esta dimensão política é até o que vai distinguir o homem dos deuses e
116
dos animais.” (TRABULSI, 2001:81).
É devido a estas questões que não podemos caracterizar Clístenes como um tirano.
Ele configura-se sim como um “homem providencial” quando da tomada do poder,
entretanto com o fim deste processo não conserva o poder somente para si. Percebemos que a
política no arcaísmo sente necessidade de uma liderança para modificar as estruturas
políades, haja vista a legislatura, a tirania e o arcontado:
Clístenes nos permitirá ir mais longe; até aqui pudemos constatar que, na realidade política do arcaísmo, toda ação importante que tem por objetivo mudar uma situação só se desencadeia pela ação de uma personalidade forte, um “homem providencial”. Ele sabe criar a necessidade de sua ação e/ou se aproveita de uma necessidade de liderança existente (TRABULSI, 2001:63).
Com esta série de transformações políticas ocorrendo em Atenas, não podemos nos
privar de compreendermos outras transformações que aconteciam simultaneamente no
mundo bárbaro e que influenciariam diretamente os rumos da polis ateniense. O Império
Persa havia, neste espaço de tempo, conseguido estruturar-se economicamente e iniciava
uma série de investidas contra o Ocidente, em busca de aumentar sua hegemonia no
continente Europeu. Seu líder, Ciro, foi responsável pela tomada tanto de regiões helênicas
importantes, como a Lídia e várias cidades gregas da costa, como de outras regiões bárbaras,
como o Império dos Medos. Seu sucessor, Dario, continuaria a conquista para o oeste,
anexando ao reino Persa a Trácia e a Macedônia – em 512 – já no fim do século VI. No
primeiro ano do século V, as cidades jônicas – já então conquistadas – decidiram pedir ajuda
às cidades-estado mais estruturadas; embora Esparta nada tenha feito, Atenas e Erétria
prometeram navios (JONES, 1997:10). Os atenienses possuíam um claro motivo para não
permitir o crescimento do Império Persa: o já idoso Hípias estava em contato com a corte
persa, possivelmente com a esperança de obter apoio em uma eventual restauração tirânica.
Com o fim do arcontado de Clístenes, o Conselho de Areópago75 é que vai determinar os
rumos de Atenas e da cidade dentro das Guerras Greco-Pérsicas, e não era interessante para
este Areópago a instalação novamente de uma tirania.
Com a entrada das duas cidades-estado, podemos dizer que têm início as Guerras
Greco-Pérsicas, pois Dario ficou ainda mais determinado em pôr em ação seu esquema de 75 De acordo com Moses Finley (1985), o Areópago era um resquício da política arcaica. Tratava-se de um conselho composto de ex-arcontes com mandato vitalício, que foi diluído em cerca de 462 e substituído paulatinamente pelo Conselho dos Quinhentos.
117
dominação da Ática. Esparta entra na batalha somente após uma ameaça real, em 490. Após
a tomada da baía de Maratona, Atenas envia um mensageiro – Fidípides, o primeiro corredor
de “Maratona” – pedindo auxílio – que chegou tardiamente. Os atenienses, apesar de baixas
em suas falanges vencem esta primeira batalha, o que foi motivo de orgulho; batalha que
ficou conhecida como “Batalha de Maratona” 76.
Após esta primeira investida contra os Persas da qual Atenas sai vitoriosa, uma
segunda batalha tem início, também com a vitória dos atenienses; porém não sem seqüelas.
Mario Attilio Levi relata-nos que, após esta batalha – comandada por Temístocles, que se
tornará uma figura política importante para Atenas – ocorreu uma tremenda baixa nos
produtos agrícolas – rebanhos e cereais – ocasionando uma crise de abastecimento na Ática
(LEVI, 1991:65). Em compensação, Atenas já contava com um grande poderio naval,
utilizado anteriormente nas guerras persas. Esta mesma frota naval será utilizada para o
comércio e a recuperação da economia ateniense; estas atitudes levarão a cidade-estado a
uma hegemonia econômica e política – sem falar na cultural, já estabelecida – que propiciará
o surgimento da forma de governo mais difundida até os dias de hoje – a democracia – e a
criação da Liga de Delos, cidades concorrentes à hegemonia ateniense. Assuntos estes sobre
os quais discorreremos no capítulo seguinte, assim como no que culminou a imagem a as
manifestações religiosas que englobam Dioniso e seu culto nesta época e a inserção total do
deus na sociedade.
76 Desta batalha participou o poeta trágico Ésquilo. Além de Maratona, as outras batalhas conhecidas por nós foram de Termópilas, Artemísion, Salamina, Platéias e Mícale; todas batizadas com o nome das regiões que serviram de palco para os conflitos.
118
CAPÍTULO 3
DIONISO NO PERÍODO CLÁSSICO: A FORMATAÇÃO DA IMAGEM E DO
CULTO NA TRAGÉDIA ATENIENSE
3.1. Ascensão de Péricles e apogeu da democracia
Em seu livro Comparar o Incomparável, Marcel Detienne questiona: “É uma opinião
bastante difundida que a democracia caiu do céu (...), na Grécia, e até sobre uma única
cidade, a Atenas de Péricles (...)” (DETIENNE, 2004:121). Antes de nos debruçarmos sobre
esta afirmação de Detienne, vamos discutir os processos históricos que levaram o autor a
comentar sobre a democracia.
Já foi visto no capítulo anterior como Clístenes alargou as influências de poder em
Atenas e como descentralizou a política e as funções públicas da mão de poucos homens, no
intuito de diluir as influências que poderiam causar uma instabilidade social. Porém será seu
neto que instalará a forma de governo mais conhecida como descentralizadora de poder e
justa: a democracia. Péricles, com o prestígio que consegue com a vitória nas Guerras Greco-
Pérsicas – nas quais participou como estratego – entra para a vida pública ateniense por volta
de 463, como acusador de Címon.
Quem era Címon? Com o fim do arcontado de Clístenes e da breve regência do
Conselho do Areópago, muitos nomes apareceram para disputar os rumos da vencedora
Atenas, agora promissora e líder de uma liga que englobava várias cidades-estado, a Liga de
Delos77, que saiu vencedora contra os persas. Efialtes, líder do demos e aliado de
Temístocles – considerado um dos grande heróis da guerra – foi propositor de várias
reformas no conselho das assembléias. A principal modificação que foi aprovada pelos seus
pares do Areópago nos é dita por Claude Mossé:
É preciso considerar, no entanto, que, ao privar o Aerópago de uma parte dos seus poderes para colocá-los nas mãos de órgãos que emanam diretamente do demos, Efialtes fez a cidade dar um passo enorme em direção ao estabelecimento de uma verdadeira democracia (MOSSÉ, 2008:62).
Embora Efialtes tenha o apoio de Temístocles, este não conseguiu efetivar estas
77 De acordo com Ciro Flamarion Cardoso (1987), a liga foi batizada com este nome porque o tesouro comum ficaria depositado na ilha de Delos, centro religioso jônico localizado no mar Egeu.
119
reformas sem causar distúrbios e agitações, tanto é que este foi assassinado logo depois de
suas tentativas – algumas bem sucedidas – de diminuir ao máximo o poder do Areópago,
provavelmente pelos próprios areopagitas. Após a saída da figura de Efialtes78, Címon79
entra em cena como questionador da política da polis. Consegue muito apoio do demos no
primeiro momento, tomando atitudes que, a nosso ver, se assemelham às atitudes que
Pisístrato tomou para conseguir manter sua tirania: “(...) Címon retirava a cerca das terras de
sua propriedade para que todos pudessem dela usufruir, provavelmente para o pasto e
animais; oferecia comida a todos que a pedissem e era também pródigo em donativos em
roupas e dinheiro.” (LEVI, 1991:77). É possível que o alcmeônida Péricles – que já era
conhecido pelos meios militares e elitistas de Atenas – tenha adquirido influência no demos
devido às suas acusações contra Címon; a primeira acusação trata da afirmação de Péricles
contra Címon, acusando-o de corrupção na condução da guerra na Trácia e em Tasos (LEVI,
1991:78).
Címon, assim como seu sogro Péricles, também conseguiu prestígio com as Guerras
Greco-Pérsicas – expulsando os persas de regiões costeiras e destruindo os últimos navios
fenícios (JONES, 1997:20) – ao contrário de seu rival, defendia uma continuidade nas
relações com Esparta com o fim das batalhas. Já Péricles era a favor de aproveitar o
momento de bonança para reafirmar a hegemonia ateniense perante o restante da Ática.
Címon, por ser um sujeito economicamente abastado, pode ter afastado de si aqueles que
temiam que ele usasse sua riqueza para adquirir uma ascendência sobre o demos (MOSSÉ,
2008:63).
Entretanto, a força de Péricles em Atenas só fez aumentar – talvez por sua oratória
aliada ao fato da história de seu avô e da campanha na guerra contra os persas – e Címon
passou a ser perseguido pelas forças políticas então em ascensão, sendo condenado ao
ostracismo80. Peter Jones aponta-nos que Péricles e seu grupo político conseguiram incutir
78 Moses Finley (1985) nos diz que, como a absorção das mudanças realizadas por Efialtes não foram retratadas em nenhuma fonte, isto pode nos dar a idéia de uma certa “tranquilidade” neste período. Porém, o autor atenta para o fato dele ter sido assassinado e afirma que esta “tranquilidade” é duvidosa. 79 As fontes quase não fazem menção à origem de Címon, o máximo que temos é a afirmação contida na Constituição de Atenas que diz que Címon era o chefe das “pessoas honestas”. 80 O ostracismo é uma lei atribuída a Clístenes – não sem contradições – e tratava-se de um processo excepcional, que se dava com a reunião do demos na Ágora para indicar aquele que deveria representar perigo para a polis. Inicialmente a lei surge contra possíveis tentativas de tiranias, mas com o passar do tempo é cada vez mais utilizada, em diversos casos. O indivíduo seria então exilado por dez anos e perderia seus direitos políticos (atimia). A lei obteve este nome porque se escrevia o nome daquele que era considerado perigoso em um caco de cerâmica (ostrakon). De acordo com Mossé (2008), foram encontradas várias ostraka que atestam a realidade desta prática. Em outra obra de Mossé (1985), a autora afirma que a atribuição a Clístenes da lei sobre
120
nos cidadãos a idéia de que, por serem líderes da liga formada, deveriam ter o direito de
gozar da prosperidade que vinha com os frutos do império (JONES, 1997:22); império
alcançado somente com a desarticulação da oligarquia Esparta. A data do ostracismo de
Címon é incerta, mas podemos aliá-lo com o rompimento total das relações atenienses com
sua antiga aliada: Esparta, em 462-461. A acusação contra Címon foi fundamentada na ajuda
que este concedeu a Esparta, quando ela estava com problemas de uma reforma na utilização
do trabalho compulsório dos hilotas81. Abalada por um terremoto em 464, Esparta se viu
dentro de uma grave crise social, pois os hilotas acharam que este era o momento certo para
reivindicarem seus direitos. Címon envia ajuda aos espartanos e causa a fúria das forças
políticas atenienses:
De qualquer modo, foi provavelmente quando ele voltava da expedição de socorro aos lacedemônios que seus adversários manobraram para que fosse condenado ao ostracismo. Teria sido a acusação formulada por Péricles, que, segundo Plutarco, acusou Címon de ser “amigo dos lacedemônios e inimigo da democracia?” (MOSSÉ, 2008:63).
Com o ostracismo de Címon, Péricles governaria soberano por mais ou menos trinta
anos na cidade de Atenas82, fundamentando os conceitos da democracia e da cidadania
ateniense:
O regime chamado democracia assume, então, uma significação dupla, segundo designe um sistema político em que a soberania reside na comunidade de cidadãos ou um sistema no qual a arraia-miúda (os pobres) que controla a cidade. É este último sentido que parece ter sido escolhido por Péricles, quando ele diz que as decisões dependem “da maioria”, do maior número (pleiôn). Por que é evidente que a arraia-miúda em geral compunha essa maioria. Aliás, esse é o sentido que lhe atribuiriam os teóricos políticos do fim do século V e do século IV (MOSSÉ, 2008:70).
É sabido que as transformações democráticas não ocorreram somente com a ascensão de
o ostracismo é um erro de Aristóteles, haja vista a vontade do autor de “reabilitar” Clístenes e o desejo de atribuir a um único legislador o conjunto de reformas em que a democracia se assentava. De acordo com Trabulsi (2001), o dia da ostracoforia era fixado em datas festivas em que estavam reunidas várias pessoas. Mesmo que isto não significasse a participação da maioria, tinha-se a impressão de que toda a cidade estava lá e que o processo seria democrático. 81 População servil que trabalhava nas terras da aristocracia lacedemônia. Já foi elucidado neste trabalho que Esparta nunca viveu uma tirania e sempre se manteve oligárquica. Provavelmente a experiência vivida por outras cidades fizeram com que estes trabalhadores se revoltassem. 82 A principal fonte que narra a trajetória política de Péricles e seu governo democrático em Atenas é a História da Guerra do Peloponeso, do historiador Tucídides.
121
Péricles e o enraizamento de seu governo. Clístenes foi o grande responsável pela mudança
do governo tirânico para outro tipo de governo e, de certa forma, Efialtes também tem sua
parcela de contribuição. Sabemos também que Péricles possuía uma oratória reconhecida por
seus contemporâneos; não podemos acreditar que o discurso somente legitima a prática, pois
um bom discurso carrega em si a potencialidade de suscitar ações. Embora os ideais
democráticos fossem pautados na soberania do demos, ainda havia uma forte política
centralizadora do poder.
Ao contrário de seu avô, Péricles diminuiu o número de cidadãos, fazendo ser votada
uma medida que restringia o número de indivíduos com direitos à cidadania. Um indivíduo
nascido de mãe que não fosse ateniense – mesmo que o pai fosse – não era mais considerado
um cidadão. Esta atitude de Péricles pode ter sido funcional – pois diminuindo o número de
cidadãos diminuiria também o número de pessoas beneficiadas com carregamentos
estrangeiros e metais – ou simbólica. Simbólica porque, se filhos de mães não atenienses não
fossem considerados cidadãos, então Temístocles e Címon nunca teriam sido cidadãos
atenienses. A cidadania foi uma noção muito almejada durante toda a democracia ateniense.
Somente um cidadão teria certos direitos de decisão política, poderia exercer uma função de
alto escalão e ter poder de influência social. As fratrias eram agrupamentos de “famílias”
ligadas intrinsecamente à admissão de um cidadão:
Na época clássica, as frátrias desempenhavam um papel essencial nos actos ligados à vida do cidadão: nascimento, iniciação dos adolescentes, casamento, adopção, funerais. Além disso, embora não se organizassem à volta de um culto comum a todos os membros da frátria, eram o quadro de uma das festas mais importantes do calendário religioso (...). Tanto para os homens quanto para as mulheres, a pertença à comunidade cívica estava condicionada à admissão na frátria (MOSSÉ, 1993:38).
As formas de ascensão à cidadania só podiam ser atingidas desde que o indivíduo
fosse filho de um cidadão com uma filha de cidadão – mulheres, mesmo filhas de cidadãos,
não eram consideradas cidadãs. Desde o nascimento, que era assistido pelas mulheres da
família e sacerdotes responsáveis pela purificação do ambiente (FLORENZANO, 1996:14),
o cidadão passava por diversos rituais de iniciação – em sua maioria ligados à religiosidade –
que eram verdadeiros “roteiros” que deveriam ser seguidos para que um cidadão não
perdesse seus costumes e suas tradições.
Um não-ateniense poderia tornar-se cidadão durante a época clássica, desde que
122
prestasse eminentes serviços a Atenas – seja na guerra ou em trabalhos cívicos. Contudo,
esta não era a regra. Um cidadão também participava na manutenção da alteridade ateniense
(FIALHO, 2006:81); as formas e os rituais de cidadania formavam uma identificação entre
os indivíduos. Exercendo a cidadania, o ateniense tinha a noção: “sou ateniense porque não
sou espartano”; “exerço funções cívicas e religiosas de cidadão ateniense e assim me
diferencio dos não-atenienses”. A cidadania ateniense significava uma identidade ateniense,
que era exercida cotidianamente na polis.
Mossé exemplifica que houve ocasiões nas quais os acessos à cidadania ocorreram de
modo ilegal: em um testemunho do século IV, um estrangeiro rico compra o depoimento de
pessoas que iam ao tribunal se declararem seus parentes (MOSSÉ, 1993:44-45). Percebemos
como a cidadania era uma questão mais social e simbólica do que econômica. Mesmo um
estrangeiro abastado não tinha vez no corpo cívico ateniense, e como ele almejava isto, haja
vista os métodos que utilizou para obter a cidadania que lhe daria direito à influência na
sociedade.
Já que citamos a questão da economia, Mossé constata: “Pode causar algum espanto o
facto de a vida económica não figurar entre os domínios da actividade cívica.” (MOSSÉ,
1993:51). As atividades econômicas – à exceção do trabalho da terra, considerado uma
ligação com a natureza e com os deuses – tinham muito pouca, ou quase nenhuma,
importância na definição da cidadania; estavam ligadas quase exclusivamente à questão da
subsistência. A cidadania ligava-se a outras estruturas, principalmente a política (MOSSÉ,
1993:53). Um cidadão era aquele ser político capaz de zelar pelo bem estar de sua pátria, e
não pensar em outras pátrias em detrimento da sua – é por esta razão que Címon pode ter
caído: “Entre os gregos, nunca houve noção de cidadania que ultrapassasse o quadro da
cidade, a tal ponto que o cidadão (polités) era o homem com direitos apenas em sua cidade
(polis).” (FUNARI, 2006:22).
Péricles, em seu governo, copia a noção de prosperidade que Pisístrato passara a seu
povo quando este foi governante. Seu incentivo às artes, às construções monumentais –
como o Pártenon – à criação da coregia83 e à idéia do “governar para todos” fizeram do líder
democrático uma pessoa querida por seu povo.
É neste quadro político e social que se desenvolvem os ideais democráticos e aflora o
chamado “imperialismo ateniense”. Este conceito gera vária polêmicas, haja vista que é um
83 Fundo que garantia o financiamento das representações dramáticas – sobretudo as do culto a Dioniso – e as manifestações musicais.
123
conceito moderno. Atenas, após as Guerras Greco-pérsicas, passa a ser a liderança dos
aliados vencedores da guerra, e por muitas vezes colocou sua posição contrária a Esparta,
com o término da guerra, às cidades aliadas. Destarte, os próprios gregos não possuíam uma
palavra para denominar este “imperialismo”, e o termo pode tornar-se obscuro quando
aplicado à Antiguidade, embora renomados estudiosos, como a historiadora Claude Mossé,
utilizem este termo, não sem ressalvas:
O termo “imperialismo”, usado pelos modernos para definir a autoridade exercida por Atenas sobre os aliados da liga de Delos, remete a conceitos alheios à língua grega. O que depois da segunda guerra médica foi uma symmachia, uma aliança militar, destinada a garantir sua defesa comum contra a volta da ameaça persa (MOSSE, 2008:94).
Pedro Paulo Funari afirma que o conceito de Imperialismo Ateniense é enganoso; não
por se tratar de um anacronismo, mas pelo fato de Atenas possuir uma frágil estrutura
administrativa imperial (FUNARI, 2006: 29), que não elevaria a cidade à categoria de
império. Atitudes como o pagamento de tributos das cidades aliadas para obras de infra-
estrutura e melhoramentos urbanos executadas por Atenas demonstram a soberania da polis
em relação às outras cidades. As colônias pan-helênicas tornaram-se outra forma de
alargamento das influências atenienses. Vilarejos que antes não passavam de aldeias ou
povoados – como o de Túrio – foram elevados à categoria de cidade, tendo direito a uma
constituição própria e construções urbanas, todas patrocinadas por Atenas.
A política social de Péricles foi outro aspecto que poderia se caracterizar como um
instrumento de dominação, já que muito se assemelhava à da tirania de Pisístrato: foram
criadas as clerúquias, forma de distribuição de terras às pessoas mais pobres, não só de
Atenas, mas de todas as cidades da Liga de Delos; estas mesmas clerúquias irão desaparecer
quando Atenas passa a endurecer seu regime sobre as aliadas. Desta forma, Péricles
“conservava” as cidades como suas aliadas, não correndo o risco de perder o apoio das
mesmas para Esparta, agora sua principal rival. Porém, com o passar do tempo: “Esta
[Atenas] passou a castigar as cidades que tentassem abandonar a aliança. O tesouro comum
foi transferido para Atenas (...), onde passou a ser usado em despesas da própria pólis
ateniense e não da liga (...)” (CARDOSO, 1987:37).
Voltemos à frase de Marcel Detienne colocada por nós no início do capítulo. A
democracia em Atenas de certa forma caiu mesmo do céu. Governantes, com suas idéias,
implantaram um novo sistema e, principalmente, uma nova noção política e social. Contudo,
124
qual é o papel do povo acerca do comportamento exigido dentro de um ideal de democracia?
O povo participava deste ideal ativa ou passivamente? Mario Attilio Levi nos diz: “Na
realidade, naquele tempo havia uma tendência política, apoiada pelos alcmeônidas e seus
adeptos como arma de luta política que defendia um conceito de democracia que significa
‘governo do interesse do povo’ ao invés de ‘governo do povo’ (LEVI, 1991: 79). Desta
forma, o ideal de governo do povo na prática se traduziria em uma noção distinta.
Mas vamos embarcar na mesma indagação feita por Nicole Loraux: “Existiria uma
maneira democrática de falar de democracia?” (LORAUX, 1994:189). A demokratía
combina o poder soberano do demos ao reconhecimento da lei da maioridade (LORAUX,
1994:191), ou seja, o demos é soberano em suas afirmações legais; esta seria a idéia.
Destarte, nem o discurso utilizado pelos governantes idealizadores da democracia condizia
com a idéia que a palavra demokratía significava, haja vista que Péricles e nenhum outro
governante democrático deixaram nenhum legado escrito; a teorização da democracia ficava
por conta dos filósofos e teóricos, como Platão.
Outra discussão é se esta democracia, como Detienne nos diz, nascida essencialmente
em Atenas, influenciou outras polis para aderirem a seu ideal. É sabido que cidades como
Esparta não aderiram a esta nova forma de governo, haja vista que nunca saíram de seu
governo exclusivamente oligárquico. Sabemos também que, contrariando algumas
tendências, a tirania não foi um caminho para a democracia. O tirano coríntio Cipselos não
abriu caminho para uma democracia em Corinto. A cidade nunca viveu plenamente a
democracia como Atenas. Provavelmente por estas cidades serem rivais na guerra e nas
tradições com Atenas possuíam a tendência de negar qualquer ideal formado na cidade. As
cidades da Liga de Delos é que poderiam aderir a esta idéia de governo de sua grande líder.
Vamos ver o que Mossé nos diz acerca do controle da política das outras cidades aliadas por
parte de Atenas:
No entanto se, por um lado, a dominação de Atenas sobre seus aliados não se traduzia, necessariamente, na obrigatoriedade da adoção de instituições democráticas, por outro, Atenas dispunha de meios de controle político sobre os aliados. Temos a certeza, em especial, da presença de magistrados atenienses em certas cidades do império, com o título de vigilantes (episkopoi), ou, mais freqüentemente, de arcontes. Ao que parece, suas funções eram bastante amplas, mas não muito precisas (MOSSÉ, 2008:99).
Por que Atenas teria a necessidade de enviar magistrados para, entre outras coisas,
125
fiscalizar a política destas cidades? Podemos especular que o governo de Atenas não era
facilmente aceito por outras cidades. Ou que os magistrados tomavam conta da política pelo
medo de uma tomada de poder por algum tirano. Ambas as hipóteses são plausíveis e talvez
nunca sejam confirmadas. O que é passível de conclusão é que, para Atenas precisar de uma
vigilância sobre suas aliadas é porque as relações políticas não ocorriam plenamente como
Atenas desejava.
Podemos pensar também que Atenas estava mais interessada no pagamento do foro e
no recolhimento de suprimentos das cidades aliadas (MOSSÉ, 2008:98). Desta forma, iremos
concluir que a idéia de política serviria como controle financeiro. Sabemos que Péricles
auxiliou a implantação da democracia em algumas de suas aliadas, como Samos, que a
oligarquia foi esmagada e a democracia implantada de cima para baixo. Em prol de um ideal
democrático, as cidades continuariam como aliadas políticas e financeiras de Atenas.
Afirmarmos que os gregos não viveram em uma democracia se pautando na noção e
na idéia de democracia atuais é um caminho certo para o anacronismo. Os gregos
conheceram e viveram sim a democracia, porém o conceito, assim como o de tirano e de
alguns outros já colocados por nós, se modificou e Renhart Kosselec (2006) já tratou de
elucidar teoricamente estas questões. Moses Finley agrega-se ao nosso argumento: “A
equação democracia = regime eleitoral, está tão fortemente enraizada em nossa cultura que
se requer um esforço deliberado para pô-la inteiramente de lado no estudo da política
antiga.” (FINLEY, 1985:88). Nos tópicos que se seguem vemos como Dioniso se inseriu
nesta idéia de democracia e de que forma seu culto e imagem foram difundidos em uma
Atenas agora completamente diferente daquela no qual sua imagem e seu culto se formaram.
3.2. A questão do rito
Sobre a importância do ritual, temos de ter como certa uma constatação realizada por
Walter Burkert:
Por finais do século passado, impôs-se, na generalidade dos estudos da religião, o conceito de que os rituais são mais importantes e elucidativos para a compreensão das religiões antigas do que os mitos em constante alteração. Deste ponto de vista, a Antiguidade não se encontra isolada, mas incluída na globalidade das religiões chamadas “primitivas”, enquanto as religiões “superiores”, desenvolvidas teologicamente, esta mesma base se encontra sem dúvida alguma presente na prática, mas, na reflexão, é
126
remetida para segundo plano (BURKERT, 1993:125).
É evidente que quando Burkert escreve “finais do século passado” está se referindo ao XIX,
pois a obra foi escrita ainda no século XX. O século de Tylor e Frazer credita ao rito uma
importância maior por este ser “palpável”, por existirem relatos que comprovam que os
mesmos realmente existiram. Para a ideologia das “ciências positivas” estava claro que algo
que se comprovava – como o ritual – era merecedor de mais atenção do que algo abstrato,
como o mito. O rito passou a ser estudado, na primeira metade do século XX, como parte de
uma pesquisa etnográfica. Não se concedia uma correta conceituação do termo e o estudo
estava pautado em explicar este costume como mais uma parte integrante de uma sociedade:
Na prática etnográfica, os automatismos dominaram a recolha de dados, sem que as variações teóricas sobre o rito e o mito perturbem o trabalho de campo. Apressados em redigir a sua monografia e em terminar a sua tese, os etnólogos classificam os rituais segundo critérios usados nos manuais de Oxford e Paris. Demonstram a boa vontade do observador, descrevendo o que passa, em lugar de descreverem o que se conta (DETIENNE, 1987:60).
Com os atuais estudos, é sabido que mito e rito são categorias de análise que não se
dissociam. Marcel Detienne escreveu, em 1987, um verbete clássico – intitulado
“Mito/Rito”, publicado no volume cinco da Enciclopédia Einaudi – que será utilizado por
nós para percebermos a fronteira que existe entre os dois conceitos e como o rito é
importante para o estudo da religião, porém sem descartar o caráter mítico do mesmo:
E os mitos, como os ritos, explicam-se essencialmente pela sua função na organização social: a mitologia é ‘a carta pragmática’, constitui a espinha dorsal pragmática da civilização primitiva. Contam-se os mitos para justificar, reforçar, codificar as práticas e as crenças postas em prática na organização social, totalmente investida pelo discurso ritual. Enquanto para o antropólogo das terras birmanesas, que admite a existência de um quadro de referência incidindo sobre a adesão geral dos membros do grupo, os mitos não visam, de modo algum, equilibrar ou estabilizar a sociedade, mas constituem uma linguagem que serve para exprimir os direitos, os estatutos contrapostos e rivais (DETIENNE, 1987:67).
O rito serviria, desta forma, para criar costumes comuns a uma certa sociedade. Os
gregos, de uma forma geral, cultuam certas divindades para estabelecerem sua identidade e
sua individualidade perante o restante da sociedade. Desta forma, os rituais estariam
inseridos neste processo de aproximação dos indivíduos de certo grupo com um interesse em
127
comum. O rito seria o mito em sua forma prática, o aglutinador de pessoas com uma mesma
identificação. O rito também serve para aproximar o humano do divino e vice-versa; o deus
está no indivíduo, quando este está em êxtase ritualístico: “Só na prática do culto e a seu
nível se realiza (...) a unidade concreta do deus que toma consciência do Eu e do Eu que
toma consciência do deus.” (DETIENNE, 1987:58). Os integrantes do rito dionisíaco
sentiam-se possuídos pelos deus quando da ingestão de álcool, como uma forma de
“enlouquecimento” divino.
Percebemos que as constatações de Detienne assemelham-se à idéia de ritual como
uma forma de linguagem coletiva (BURKERT, 1993:126); os indivíduos participam de um
rito que os identifica enquanto grupo e os faz comunicar entre eles próprios. As
características do ritual, que envolvem dança e música, embaladas por um chorós – coro – e
celebradas com bebidas alcoólicas – nos rituais em honra a Dioniso isso é muito comum –
faz com que as expressões religiosas do grupo sejam colocadas para fora através da
manifestação: “A embriaguês provocada pelo vinho, como alteração do estado de
consciência, é interpretada como intervenção de algo divino.” (BURKERT, 1993:318). Estas
manifestações foram encaradas como uma forma de êxtase, mas a questão não é assim tão
simples. A mais antiga interpretação para este estado da alma é éntheos: seu significado é “o
deus dentro de si” (BURKERT, 1993:225). O deus possuía a pessoa iniciada no ritual através
das danças, da embriaguês e até de práticas orgiásticas. Em alguns rituais – como o
dionisíaco – o deus pode controlar completamente o indivíduo, levando-o até a matar. Em
outros ritos, o êxtase poderia ser profético, inspirado pela divindade em questão; este êxtase
é muito alcançado por adivinhos:
Platão distingue a “loucura profética” de Apolo e a “loucura teléstica” de Dioniso, às quais associa o entusiasmo poético e o “erótico” ou filosófico. Com a nomeação de Apolo e Dioniso, os fenômenos marginais da consciência são articulados em esferas bem definidas, aqui a mântica, ali a consagração (BURKERT, 1993:228).
Ainda nesta questão do êxtase – que é uma palavra grega – acreditamos ser
importante a definição deste conceito e os meandros que seu significado propõe. Como
consenso quase geral temos esta definição nos dada por Trabulsi: “ No fenômeno extático,
há, portanto, uma alteração da atividade mental do indivíduo, com conseqüências sobre sua
interpretação de realidade e de seu próprio ego.” (TRABULSI, 2005:221). Uma palavra
também muito utilizada para se referir ao êxtase é “transe”; mas a definição para esta palavra
128
grega que obteve até hoje mais sucesso foi possessão. O indivíduo possuído age conforme a
divindade deseja e a loucura torna-se então divina:
Na possessão há, portanto, uma força sobrenatural (deus, demônio, bom ou mau) que toma conta do indivíduo. É, portanto, uma categoria da cultura estudada que funda essa classificação. Mais recentemente, e sempre no mundo anglo-saxão, esta categoria dos “estados alterados da consciência” (como categoria geral oposta ao estado alerta normal) foi abundantemente utilizada no estudo do êxtase (TRABULSI, 2005:221).
Vamos agora para o ritual em si. Primeiramente devemos colocar que o ritual
dionisíaco – como praticamente todos os rituais – eram cíclicos e aconteciam repetidamente,
pois, de acordo com Rachel Gazolla: “Algumas de nossas atuais ciências e algumas linhas da
psicologia e da antropologia, principalmente, explicam sem necessários ao homem os rituais
sagrados cíclicos, pois as celebrações desse tipo expurgam mimeticamente os males de uma
comunidade.” (GAZOLLA, 2001:25). A estrutura do rito consistia na entrada do coro – o
Parodos – exaltando os três elementos base do hino cultural: “(...) a physis (natureza,
atributos, santuário dos deuses), o genos (genealogia, relato de nascimento), a dynamis
(poder, campo de ação, feitos, invenções do deus).” (TRABULSI, 2005:210). Este coro é
essencial, pois inicia os trabalhos do rito. No caso dos rituais que homenageiam Dioniso,
existe a ingestão de bebidas alcoólicas, principalmente o vinho, além de práticas de orgia e
sexo: “Os que sustentam que o orgiasmo não poderia se produzir sem álcool e sexo
chegaram a dizer que a imagem de paz e calmo abandono das mênades (...) é típico da
satisfação sexual que segue ao orgasmo.” (TRABULSI, 2005:212). Se tomarmos como
exemplo a peça As Bacantes, no qual só havia mulheres na montanha, fica difícil falarmos
em orgias sexuais sem nos remetermos à prática homoerótica; porém isto é uma constatação
difícil de provar. Nem mesmo a orgia possuía um caráter como conhecemos hoje. Esta era
uma prática que requeria certa, se podemos assim dizer, moral religiosa:
Com efeito, o que é a orgia na montanha, ou, para falar grego, a oribasia? Contrariamente à noção moderna de orgia, que saiu sem dúvida de um desenvolvimento tardio que fez dos banquetes dionisíacos ocasiões de licença sexual, noção popularizada pelos “renascimentos” de classicismo que a recolocaram várias vezes na moda na tradição cultural ocidental, a orgia clássica, e especialmente na peça de Eurípides, não tem, em princípio, o sexo como fundamento (TRABULSI, 2005:214).
E como os rituais em honra a Dioniso se configuram? Temos que deixar claro que
129
não é possível falar em uma unidade quando se trata de rito. Os rituais modificam-se
cronologica e geograficamente. O culto primordial de Dioniso em Tebas, retratado por
Eurípides na peça As Bacantes, não é o mesmo culto da Atenas do século V. Trabulsi diz que
existem variantes sociais que modificam o ritual, mesmo no dionisismo, que se propunham a
desfazer a diferença entre os indivíduos e os grupos: “(...) um príncipe, um aristocrata, um
camponês ou um escravo não se colocam da mesma maneira face a uma religiosidade.”
(TRABULSI, 2005:174). Existem também as diferenças sexuais – homens e mulheres – e
etárias – jovem, adulto, ancião. O que tentaremos nesta dissertação é trabalhar com a idéia
conceitual de rito e tentar aplicá-la a realidades como os mitos de resistência, os rituais rurais
das montanhas e as festas políades.
Como mitos de resistência, consideram-se aqueles que retratam uma resistência ao
culto de Dioniso. Embora mitos, retratam uma realidade vivenciada, assim, o culto de
Dioniso sofre resistência de uma aristocracia e, podemos dizer, até da tirania, quando da sua
forma original. Por isso, a transformação sofrida pela imagem e pelo culto dionisíaco
ocorrida nas mãos dos tiranos. São três os mitos de resistência relevantes que chegaram até
nós: o primeiro trata da recusa de filhas de aristocratas em participar do culto de Dioniso; o
deus lança sobre elas a manía, fazendo-as saírem errantes pelos campos e abandonarem seus
afazeres no oikos. O segundo mito de resistência trata da história do rei bárbaro Licurgo, que
persegue Dioniso e suas mênades, em um claro sentimento de que as mulheres não deveriam
abandonar seus lares para cultuarem um deus. O terceiro mito é o que será minuciosamente
analisado por nós nesta dissertação: o do rei de Tebas Penteu contra Dioniso, que volta às
suas origens.
O poder irá utiliza estes mitos de resistência como forma de propagação do próprio
dionisismo, alertando que a cidade deveria não mais recusar o deus, e sim aceitá-lo, como
forma de um exercício de democracia. Recusar o deus traria conseqüências para a polis,
assim como Penteu, que recusa o deus e vê seu palácio ser destruído pela força divina.
Os ritos rurais são aqueles ocorridos nas montanhas, longe dos olhos do poder oficial.
Estes rituais são os primordiais, aqueles que iniciaram a tradição de culto a Dioniso; foram
estes os sufocados pelo poder tirânico e que Eurípides relata em sua peça. São cultos em que
as práticas sexuais, como já foi dito, estão presentes, juntamente com o álcool, a música e a
dança. Este ritual era praticado essencialmente por mulheres, pois a entrada de homens não
era, pelo menos em sua forma ideal, permitida. Esta constatada participação de mulheres
representava um perigo para a organização políade, já que as mulheres sequer tinham direito
130
a uma opinião própria e eram consideradas pelos homens seres inferiores: “A maior crítica
que faziam [os homens] ao universo feminino era atestarem-no como seres que falam muito.
Não pensam e não sabem raciocinar, ou seja, não são nada inteligentes.” (FORTUNA,
2005:142). Embora Marlene Fortuna possa ter exagerado em sua afirmação, haja vista que,
se o homem considerasse a mulher como um ser que não raciocina, este não entregaria todos
os afazeres do oikos e todas as responsabilidades na organização da casa a elas, é fato que
seria inconcebível para a sociedade patriarcal que mulheres deixassem seus afazeres e
saíssem a cultuar um deus, sem autorização de seu marido. Dioniso é o deus que dá força às
mulheres e faz com que estas tenham uma autonomia de escolha e decisão:
Dioniso é Gynaimanès, o que faz as mulheres delirarem (...); nas representações sobre os vasos de cerâmica, as danças menádicas são sempre femininas; em As Bacantes, os thiasos são exclusivamente femininos, e quando Penteu quer ir para a montanha, ele se veste de mulher. Quer haja ou não participação masculina, devemos pensar que o “comportamento menádico” é um comportamento reputado feminino (TRABULSI, 2005:216).
A manía era celebrada como um estado divino. Estar em transe, “fora de si” e com “o
deus dentro de si”, era uma prática nos ritos dionisíacos, assim como o sacrifício;
despedaçamento de vítimas – o sparagamós – e até consumo de carne crua – omofagia –
embora estas duas práticas não possam ser comprovadas. A participação masculina se dará
comprovadamente somente nos séculos V e IV, quando da instalação das festas dionisíacas
nos centros urbanos. Anterior a estes séculos, fica muito complicado confirmar ou refutar a
presença de homens no ritual, porém algumas fontes, como As Bacantes, retratam alguns
homens – Cadmo, por exemplo – se travestindo de figura feminina para participar do ritual
na montanha. O fogo era um elemento muito utilizado pelo ritual. De acordo com Walter
Burkert:
(...) é a defesa mais primitiva contra os animais selvagens – e também contra os espíritos malignos –, dá calor e luz, apesar de permanecer doloroso e perigoso, representante primeiro da destruição: o que era grande, sólido e tangível desfaz-se ardendo em fumo e cinzas” (BURKERT, 1993:136).
Já o culto políade – as festas oficiais que aconteciam dentro do perímetro urbano de
Atenas – surgiram com a ascensão do poder tirânico – no caso de Atenas, na tirania de
131
Pisístrato – como uma forma de controlar este ritual que antes acontecia longe das cidades e
dos olhos do poder. Neste período, ao contrário da contemporaneidade, não acontecia uma
distinção entre as festas cívicas e as festas religiosas (FARIA, 2007:28), visto que ambas
caminhavam juntas, como a própria política caminhava junto da religião, de um modo geral.
Estas festas passaram a seguir o calendário oficial da polis84 e a ter toda uma organização e
um cronograma pré-estabelecidos: “(...) todas as festas de Dioniso, na Ática do século V, são
cerimónias oficiais de caráter plenamente cívico.” (VERNANT, 1991:164). Mas o que
entendemos por festa? Concordamos com Norberto Luiz Guarinello quando este escreve que
a festa não se opõe ao cotidiano, mas faz parte e está integrada com ele (GUARINELLO,
2001:971); desta forma a festa faria parte do próprio cotidiano políade, sem contrapô-lo, mas
como uma forma de interrupção na vida social para chamar a atenção para um episódio, um
evento ou, no nosso caso, uma divindade:
Festa é, portanto, sempre uma produção do cotidiano, uma ação coletiva, que se dá num tempo e lugar definidos e especiais, implicando a concentração de afetos e emoções em torno de um objeto que é celebrado e comemorado e cujo produto principal é a simbolização da unidade dos participantes na esfera de uma determinada identidade. Festa é um ponto de confluência das ações sociais cujo fim é a própria reunião ativa de seus participantes (GUARINELLO, 2001:972).
Partindo desta definição, podemos compreender que as festas em honra a Dioniso que foram
implantadas pelo poder tirânico ateniense possuíam como principal intenção adentrar no
cotidiano da sociedade para inserir o deus, como uma forma de propiciar a participação
social em um evento criado pelo poder:
Elas [as festas] são laboriosamente e materialmente preparadas, custeadas, planejadas, montadas, segundo regras peculiares a cada uma e por atividades efetuadas no interior da própria vida cotidiana, da qual são necessariamente o produto e a expressão ativa; (...) (GUARINELLO, 2001:971)
Vemos a seguir a descrição destas festas para tentarmos entender as transformações
que ocorreram com o culto primordial e estas festas democráticas e cívicas. As principais
84 De acordo com Burkert (1993), o calendário mais conhecido é o ático e os meses jônio-áticos terminados em –ón provém de nome de festas. Este calendário foi fixado ainda no século VI, como parte da legislatura de Sólon. Curiosamente o calendário não é regido pelo ritmo natural, como o ano agrícola. Os nomes dos meses são todos retirados de festas da polis.
132
festas que ocorriam em Atenas são quatro: as Dionisíacas Rurais, que ocorriam entre
dezembro e janeiro; as Lenéias, ocorridas entre janeiro e fevereiro; as Antestérias, que
aconteciam nos meses de fevereiro e março e, finalmente, as Grandes Dionisíacas, nos meses
de março e abril85. Podemos notas que são cinco meses do ano reservados a festas em honra
a Dioniso.
É evidente que estas festas não duravam os cinco meses ininterruptamente; se
acreditarmos nisto, então Dioniso será mais celebrado do que a protetora da cidade, a deusa
Atena. As festas aconteciam em alguns dias do mês, e nestes dias não se trabalhava nem
havia função pública. Também temos de deixar claro que estas festas ocorriam antes mesmo
da promoção pelo tirano – se bem que com características bem distintas daquelas propostas
pela tirania e posteriormente pela democracia – e que também aconteciam em diversos locais
diferentes, e não só em Atenas.
As Dionisíacas Rurais, celebradas no mês de Poseidon, eram comemoradas nos
distritos um pouco afastados da ágora. Parecia ser uma festa de muita descontração, pois as
provas propostas – como a askoliasmós, que consistia em pular vasos cobertos de óleo –
provocavam muito riso (TRABULSI, 2004:193). Mas o mais importante da festa para nós é
constatarmos a faloforia, uma adoração ao falo como órgão divino e primordial. O falo-
pássaro, tendo a cabeça e o pescoço substituído por um pênis, representava a independência e
a livre escolha: “Nas Dionísias rústicas, o falo é pedestre e de tamanho mais modesto.
Pintado recentemente, cuidadosamente erguido, o pássaro-falo de Dioniso está pronto para
aparecer.” (DETIENNE; SISSA, 1990: 269-270). A procissão fálica possuía todo um
simbolismo que a legitimava e lhe concedia um caráter sagrado:
A invenção de “carregar o falo”, dita faloforia, dá-se sob a influência de uma aparição de Dioniso, chamada, por seu turno, em grego, epidemia, “chegada ao país”. Dioniso apresenta-se com,o deus que vem, surge, irrompe, revelando o vinho na terra de Icário, ou na cidade ateniense do rei Anfictião (DETIENNE; SISSA, 1990:270).
Por ser uma festa rural, as Dionisíacas Rurais possuíam muitas características de um
dionisismo primitivo, aos moldes do que ocorria no período homérico, essencialmente
rústico e até certo ponto misterioso, um dionisismo pré-políade (TRABULSI, 2004:193).
Uma constatação interessantíssima colocada a nós por Trabulsi é o fato de que as festas
85 Deixemos claro que estamos reproduzindo o nosso calendário.
133
dionisíacas mais desenfreadas que ocorriam na Ática eram as da região de Brauron;
exatamente a região onde estavam localizadas as terras de Pisístrato. Um fato curioso nestas
festas é a presença do riso constantemente: provas que faziam as pessoas caírem ou se
encontrarem em situações grotescas aconteciam durante este festejo. Por ser uma festa
agrária, havia esta “tolerância” maior quanto às extravagâncias, como o riso: “(...) riso
libertador do pavor e da morte, das angústias, do luto, da constrição das proibições e das
conveniências, riso que liberta a humanidade de pesadas constrições sociais.” (VERNANT;
VIDAL-NAQUET, 1999:178).
As próximas festas, Lenéias, aconteciam no mês Gamélion. O nome da festa sempre
gerou controvérsias acerca de seu significado, inclusive entre os próprios antigos: “A
interpretação mais simples pareceu ser a de ‘Dionisíacas do Lenaion’, do nome do local onde
se desenvolvia a celebração. O Lénaion seria um grande recinto onde se teriam realizado as
representações teatrais antes da construção do teatro.” (TRABULSI, 2004:194). Com esta
afirmação podemos, então, concluir que as Lenéias eram festejos muito antigos –
provavelmente os mais antigos – já que datam de antes da formação dos lugares teatrais. O
nome lénai é o equivalente jônico para bacante e o verbo lenaizen indica “fazer as bacantes”
(TRABULSI, 2004:195), ou seja, a celebração das Lenéias envolveria o ritual em honra a
Dioniso parecido com aquele primordial, em que as mulheres se “faziam bacantes”. Esta
festa foi a menos popular quando do governo tirânico, e a democracia de forma alguma
diferiu; as Lenéias jamais foram completamente incorporadas pela vida cívica:
(...) poderíamos avançar a hipótese que é precisamente por seu aspecto “autenticamente dionisíaco”, orgíaco pelo menos na segunda parte, que elas não receberam a atenção do tirano e, depois dele, da democracia. Entre as diversas cerimônias dionisíacas, elas eram talvez aquelas que combinavam menos com a integração do deus na cidade (TRABULSI, 2004:196).
Estas festas são, talvez, as que mais se assemelham ao rito descrito por Dioniso na peça As
Bacantes – tema de nosso último tópico; as Lenéias guardam um pouco do caráter primeiro
do culto dionisíaco. O resgate de características mais primitivas é comum em todas as
sociedades: “Em quase todas as sociedades, há festas que conservam por muito tempo um
caráter ritual. O observador moderno vê aí, sobretudo, a transgressão das proibições.”
(GIRARD, 1990:151).
As Antestérias eram celebradas no mês de seu nome, Anthestérion, e era uma das
festas mais cívicas em honra a Dioniso, celebradas como um renascimento com o fim do
134
inverno e o início da primavera: “São as palavras ánthos, flor, e o verbo anthein, florescer,
que a explicariam, em referência ao nascimento do mundo vegetal que se produz no início da
primavera.” (TRABULSI, 2004:197). Nesta festa se faz claro o consumo do vinho, já que no
primeiro dia eram abertos os vasos onde a bebida foi guardada para fermentação; este
momento era esperado por todos os participantes, pois é através do vinho que se celebra o
deus e, no segundo dia da festa, começavam os concursos baseados na ingestão do vinho. A
festa se estendia por três dias e cada dia tinha um nome próprio: Pithoígia – abertura de
barris – Chóes – jarros – e Chýtroi – panelas (BURKERT, 1993:456).
Entretanto, são dois os acontecimentos durante esta festa que são analisados por nós
nesta digressão. A primeira é a questão do casamento do deus com a rainha da cidade. Após
a chegada de Dioniso na Grécia, através do mar Egeu86, o deus desposa a então esposa do
Arconte-Rei, em um rito de união sagrada. Metaforicamente, o casamento de Dioniso com a
rainha soberana seria o casamento do deus com a própria Atenas, que o recebia como
soberano da cidade. Podemos encarar a rainha como a Deusa-mãe, ou como Ariadne, em um
claro vestígio da religião primordial de Dioniso (VERNANT, 1991:164). Realizando um
cotejamento com a peça As Bacantes, de Eurípides, podemos dizer que: “Neste casamento,
Atenas acolhe o deus como a Tebas de Penteu deveria ter feito.” (TRABULSI, 2004:200). A
esposa de Dioniso pode ser representada como Ariadne – um de seus amores (BURKERT,
1993:460).
O outro ocorrido ainda nas Antestérias está no terceiro e último dia da festa.
Acreditava-se que, ao abrir os vasos com vinho no primeiro dia da festa, libertavam-se
também as almas do outro mundo. Desta forma, eram oferecidas no terceiro dia as Chutroi,
espécies de marmitas feitas com a refeição dos vivos que eram oferecidas aos mortos, além
de água (TRABULSI, 2004:200). Este terceiro dia não era dedicado somente ao culto de
Dioniso, mas também ao culto de seu irmão Hermes, o deus mensageiro que guia as almas
até o outro mundo. Está aí uma prova da relação entre Dioniso e Hermes e, também, entre
Dioniso e o mundo dos mortos.
As Grandes Dionisíacas eram as festas dionisíacas mais importantes do calendário
políade. Tal como ela existe no período democrático, é uma invenção de Pisístrato, e pouco
tem de características que nos remetem a tempos longínquos, por ser uma festa estritamente
cívica, muitas vezes chamadas de Dionisíacas Urbanas. Quem sabe podemos nos remeter a
86 Trabulsi (2004) constata que esta alegoria de Dioniso chegando diretamente do mar Egeu é mais uma prova que vem a somar com as teses de um Dioniso estrangeiro, já que o deus chega proveniente do Oriente.
135
alguma coisa das Dionisíacas Rurais, como a questão da faloforia. Porém, se constata que as
Grandes Dionisíacas surgem de outra festa não muito distante cronologicamente. Acontecida
no mês Elaphebolion, a festa, celebrada à noite, contava com imagens fálicas celebradas por
filhas dos cidadãos atenienses abastados (DETIENNE; SISSA, 1990:270), que agora
aceitavam Dioniso e seu culto, diferentemente da aristocracia homérica. É nas Grandes
Dionisíacas que se formaram os concursos trágicos, como forma de homenagear o deus;
sobre isto explanaremos nos tópicos seguintes.
Estas Grandes Dionisíacas foram utilizadas com muita força pelos tiranos para a
difusão de sua política religiosa e estão entre as mais integradas festas em honra a Dioniso,
muito mais que as Antestérias, que também possuíam um caráter extremamente cívico. O
fato se dá porque durante o mês de Anthestérion, ainda não havia se reiniciado a navegação.
Desta forma, Atenas – e outras cidades-estado também seguiam a mesma lógica – ainda não
estava sendo visitada por estrangeiros e mercadores: “No momento das Grandes Dionisíacas
(...) com a navegação já retomada, “toda a Grécia” podia assistir à manifestação de brilho da
poderosa Atenas.” (TRABULSI, 2004:202). Nos ritos da faloforia e nos banquetes, o
ambiente não era anárquico e desordenado, e muito menos se percebia nele uma igualdade
entre os indivíduos e muito menos um aspecto selvagem. Diferentemente dos ritos
primordiais ou até das festas mais antigas – Dionisíacas Rurais e Lenéias – as Grandes
Dionisíacas mostravam o papel de uma festa oficial: civilizar para controlar. Nas palavras de
Trabulsi:
Uma festa nova, muito mais civilizada, favorecida pelos tiranos, e depois pela democracia, em detrimento de festas mais antigas, porém menos adaptadas às suas necessidades. No final do século VI, ela marca um compromisso entre a necessidade de dar satisfação às reivindicações do démos, componente essencial das bases sociais do poder tirânico, mas ao mesmo tempo reforçando as estruturas de um Estado centralizado contra o particularismo aristocrático, necessidade que um dionisismo desabrido não poderia satisfazer. Na época clássica, esta festa anual se torna quase tão importante quanto as Panatenaicas, e, sem qualquer dúvida, a festa dionisíaca mais importante (TRABULSI, 2004:203).
Assim como no ritual, nas festas também se utilizava o fogo, como forma de dar vida
a este deus tão popular: “(...) no fogo da procissão dionisíaca o povo incandescido associa à
alegria, à vida e ao desejo de bem-estar libertador o desejo de morte, de transformação
iluminada, metamorfose, pela luz das tochas.” (FORTUNA, 2005:98). Marlene Fortuna
136
caracteriza as festas que honravam Dioniso como uma carnavalização do cotidiano: “As
inversões carnavalizantes de Dioniso são permeadas de todas as características típicas da
carnavalização: o grosseiro, o cômico, os valores contrários, o riso, a sátira (...)”
(FORTUNA, 2005:83). Para a autora, todas as hierarquias, os valores e as normas passavam
por uma reviravolta durante estes festejos. Discordamos neste ponto da visão de Fortuna. A
primeira vista pode mesmo parecer que todas as hierarquias ruíam durante as festas. Mas,
como já elucidamos, estas festas – principalmente as estritamente urbanas – possuíam um
caráter cívico de manutenção da ordem vigente. A democrática Atenas permitia toda a
diversidade de indivíduos e costumes durante os festejos, mas sempre sob os olhos
controladores do Estado. Festas que possuíam uma essência ruralizada não eram tão
divulgadas pelo estado ateniense. O fato de o Estado permitir esta carnavalização está em
promover uma “válvula de escape” para a população. De acordo com Guarinello, uma festa
não é um espaço sem regras ou invertido da ordem social: “Toda festa tem suas próprias
regras, seus códigos de conduta, sua rede de expectativas recíprocas, que podem ser escritas,
ou fortemente ritualizadas, ou fortemente espontâneas e informais (...)” (GUARINELLO,
2001:973).
A festa – principalmente as dionisíacas – se constituía como um lazer patrocinado
pelo Estado e sob sua regência e, embora com uma igualdade aparente, com especificidades
bem segregadoras: “(...) quanto mais a festa é importante para a polis, menos a participação é
igualitária e indiferenciada. Mesmo em relação ao ‘deus que não faz distinções em favor de
ninguém, a polis faz com que alguns sejam mais iguais que outros.” (TRABULSI,
2004:203). Contudo, também não podemos cair na ingenuidade de afirmar que as pessoas
seguiam obedientes todas as hierarquias implicitamente impostas. Jon Elster, em sua obra
Peças e Engrenagens das Ciências Sociais, traça um panorama dos momentos em que a
racionalidade falha. Para o autor, o poder realmente deseja incutir uma racionalidade em
todas as suas ações, mas quando se verifica o que a pessoa realmente fez – ou o que
realmente aconteceu – é fácil perceber elementos distintos daqueles impostos de antemão
(ELSTER, 1994:47). Todavia, as festas dos períodos tirânico e democrático eram, sem
dúvida, mais controladas do que àquelas manifestações primordiais de períodos anteriores.
Podemos perceber a questão segregacional nestas festas pela presença das
137
representações de falos87. O falo – phalós – representa a fertilidade viril e, principalmente, a
soberania deste em detrimento da vulva. Como coloca Daniel Barbo, a representação fálica
estava estritamente ligada à questão sócio-política; o falo representava a força política do
homem viril, não efeminado, aquele que penetra e que domina:
(...) associam a simbologia do falo ereto com esse poder político; demonstram a exclusão dos outros grupos sociais, em particular o das mulheres (...); demonstram o amplo escopo do erotismo legítimo exclusivo aos homens (o poder de penetrar mulheres e jovens de qualquer classe social); demonstram quão execrável era para o homem o comportamento efeminado, visto como uma conspurcação da masculinidade devida ao falocentrismo (...) (BARBO, 2008:85).
Neste caso, as festas dionisíacas serviriam para uma segregação implícita no cotidiano
festivo. A festa seria um produto de divulgação desta masculinidade, lançando mão de
subterfúgios psicológicos que incutiriam estas idéias na moral do cidadão.
Dioniso foi o deus utilizado para a disseminação da idéia supracitada88.
Provavelmente o deus foi escolhido exatamente por seu caráter de aproximação das
diferenças. Temos aí uma dicotomia: o deus que traz a igualdade é representado pelo
símbolo da segregação, e só é representado por este símbolo porque traz a noção de
igualdade. Esta falsa noção de igualdade faz com que as diferenças apareçam sem
questionamento por parte da sociedade:
Na verdade, o phalós representava a própria virtualidade, tão apaixonada, de Dioniso. O phalós é um órgão que se movimenta sem que o intelecto o comande, aumenta e diminui de volume; se contrai e se alonga; amolece e enrijece-se; ora, o que não é Dioniso senão esse movimento do virtual que vai e vem, aparece e desaparece, endurece com a maior virulência, em seguida pode amolecer com a maior piedade? (FORTUNA, 2005:137).
Ainda de acordo com Guarinello, as festas não diminuem as diferenças. Elas seguem a
seguinte dinâmica: “A festa não apaga as diferenças, mas antes une os diferentes”
87 De acordo com Giulia Sissa e Marcel Detienne (1990), estes falos eram feito de madeira e fabricados por carpinteiros esmerados. Os preços, tanto da matéria-prima quanto da confecção, eram elevados. 88 Porém, é perceptível nas imagens que representam Dioniso que o deus nunca é representado itifálico; não se confunde com os sátiros com o falo pungente. O deus não é bestializado e selvagem como os outros indivíduos de seu cortejo. Sempre mantém um caráter temperante representando seu autocontrole, deixando a manía e a masturbação para as mênades e os sátiros, respectivamente. Assim como um cidadão deveria se portar, Dioniso se controla e detém o comando de seu cortejo. Mesmo assim Dioniso é o único deus principal que se manifesta pelo pênis e através do pênis.
138
(GUARINELLO, 2001:973). Desta forma, as diferenças continuariam a existir plenamente;
só estariam unidas durante estes dias para, com o término da festa, distanciarem-se
novamente.
Acreditamos que este caráter irracional do desejo sexual manifestado no falo também
se assemelha ao dionisíaco da manía e da orgia. Porém, não conseguimos ver uma
sobreposição deste fato às questões políticas. O dionisismo, desde a época dos tiranos, sofreu
transformações que vão afetar seu caráter primordial para atender aos interesses políticos de
uma elite. Dioniso primordialmente é o deus que não faz distinção, mas outros fazem esta
distinção em nome dele. Nas palavras de Giulia Sissa e Marcel Detienne;
Dioniso não pode ser confundido com um vulgar falocrata: o falo manifestando a “potência vital” da natureza não pertence a nenhum corpo masculino. Transcende o corpo, excede a sexualidade humana, assim como a força do vinho ultrapassa os limites do banquete e da cratera, entre os que bebem e os convivas. No dia do falo, é a onipotência de Dioniso que exibe – espetáculo da força vital, para a cidade inteira, irrigando a natureza, as plantas, as árvores e os viventes, quaisquer que sejam seu sexo e os detalhes de suas relações. Cabe a outros regulamentá-las (DETIENNE; SISSA, 1990:277).
Dioniso estava regido por um poder que o padronizava, mesmo que não totalmente. O
controle que o poder exercia sobre a religiosidade e sobre a festa criava padrões próprios de
sociabilização e representação.
Toda festa (...) implica uma determinada estrutura de produção e de consumo e, portanto, uma estrutura de poder, passível de controle diferenciado. Controle que se estende da produção material da festa, de seus objetos, vestimentas, instrumentos, bens de consumo, à definição do papel ou lugar de cada participante em sua execução e consumo até, de modo mais amplo, à definição do sentido da própria identidade que produz (GUARINELLO, 2001:973).
Esta padronização pode muito bem ser exemplificada no último tópico desta dissertação: a
tragédia como forma de manifestação do dionisismo. Não é nossa intenção neste trabalho
realizar nenhum tipo de juízo de valor acerca deste poder e sobre seus supostos benefícios ou
malefícios. Queremos somente constatar como a questão do poder insere-se na sociedade e
modifica suas diversas estruturas.
139
3.3 O teatro democrático do século V e a imagem de Dioniso
Como forma de compreender como Dioniso foi inserido na tragédia ateniense,
tentamos neste tópico propor uma brevíssima história do teatro grego, tendo como ponto
norteador alguns aspectos da obra Poética, de autoria do já estudado filósofo Aristóteles.
Esta obra, redigida do século IV, nos cede apontamentos que tratam das impressões que o
filósofo tem acerca da tragédia89. E o teatro nasceu na Grécia? Pierre Grimal, analisando
Aristóteles, aponta que nem os gregos estavam em consenso, e muito menos em relação à
tragédia e à comédia terem surgido na mesma época e no mesmo meio90 (GRIMAL,
2002:25). Nem a constatação de que o teatro surge no mundo helênico é dada como certa.
Jose Antonio Dabdab Trabulsi acredita que as manifestações teatrais têm uma incidência
quase universal, e que ninguém pode postular uma origem grega para o teatro em geral
(TRABULSI, 2004:140).
Porém, é com o teatro grego que iremos trabalhar, e este nasce, segundo a maioria
dos especialistas, durante o período compreendido entre os séculos VI e V: “Os três grandes
gêneros dramáticos (...) foram a tragédia, a comédia e o drama satírico (...). Os três nasceram
no mundo helênico e foi em Atenas que se representaram as peças que levaram os três
gêneros ao mais alto grau de perfeição.” (GRIMAL, 2002:25). O ditirambo91 atesta a origem
dionisíaca das representações: “Colocando o ditirambo nas origens dos outros gêneros, ele dá
conta dos laços entre Dioniso e o teatro, pois o ditirambo é um canto-dança ritual
incontestavelmente dionisíaco.” (TRABULSI, 2004:142). Este ditirambo primitivo evolui
para uma complexidade maior, com vários personagens e menos participação do coro. A
tragédia grega durou ao todo oitenta anos, e os oitenta anos de apogeu ateniense – entre a
vitória nas guerras Greco-Pérsicas e a derrota na Guerra do Peloponeso.
Trabulsi aponta que das noventa tragédias escritas por Ésquilo, conhecemos apenas
89 A obra de Aristóteles tratava de dois gêneros teatrais muito difundidos em Atenas: a tragédia e a comédia. Contudo, a parte conservada que durou até os dias de hoje foi somente o texto sobre a tragédia. Do texto sobre a comédia nada sobrou. O que sabemos da opinião de Aristóteles acerca da comédia são alguns cotejamentos que este realizou enquanto escrevia o tópico da tragédia. 90 Como iremos trabalhar com um texto trágico, é importante situarmos que o primeiro poeta trágico a quem este título foi atribuído foi Téspis, da cidade de Metimna, na ilha de Lesbos. O tragediógrafo ganhou o prêmio de melhor tragédia, instituído por Pisístrato em 534, durante a festa das Grandes Dionisíacas. Entretanto, os tragediógrafos mais conhecidos na contemporaneidade são Ésquilo (525-456) – do qual temos a primeira tragédia conservada na íntegra: Os Persas – Sófocles (495-406) e Eurípides (485/480-407). É importante ressaltar que as datas de nascimento e morte dos escritores não é consenso; aqui utilizamos a datação de Jacqueline de Romilly (1998). 91 Primeiro tipo de representação – também em honra a Dioniso; tratava-se de um diálogo entre um personagem e o coro.
140
sete. Quanto a Sófocles a questão é mais complexa: também conhecemos sete, em um
universo de mais de cento e vinte peças compostas. Eurípides, embora existam controvérsias,
compôs noventa e duas peças e conhecemos dezenove (TRABULSI, 2004:145). Trabulsi
realiza uma breve discussão em sua obra tentando conjecturar o que aconteceria se a peça As
Bacantes não tivesse sido conhecida por nós, ou se a peça Orestia não tivesse sido escrita.
Acreditamos que esta discussão é irrelevante; o caso é que estas foram as peças que nos
chegaram e são somente com elas que poderemos traçar uma história do teatro ateniense.
Provavelmente se outras peças tivessem resistido ao tempo, teríamos sim uma outra visão
sobre o século V, mas o caso é que não resistiram.
Antes de nos debruçarmos sobre a fonte, é importante situarmos que o teatro não foi
algo concebido durante a democracia. O mais antigo local de espetáculos teatrais foi
provavelmente o teatro de Dionysos Eleuthereus – Dioniso Elêuteras – construído no século
VI, na Beócia, que também passou a ser um dos possíveis locais de nascimento do deus
(GRIMAL: 2002,14). É perceptível, pelo nome do teatro, que Dioniso está intrinsecamente
ligado ao teatro – e, sobretudo, à tragédia92: “A tragédia nasceu do culto a Dioniso: isto,
apesar de algumas tentativas, ainda não se consegui negar.” (BRANDÃO, 1985:9). A
principal cidade desta região é Tebas – onde não houve uma tirania nos moldes da ateniense
ou da coríntia; desta forma, não podemos afirmar que a relação entre o teatro e Dioniso tenha
sido uma invenção dos tiranos. A questão é que, particularmente em Atenas, as
apresentações teatrais iniciaram-se dentro das festas que celebravam Dioniso; os tiranos –
sobretudo Pisístrato – utilizaram da popularidade do deus para inserir os concursos.
Pierre Grimal aponta-nos que a palavra “tragédia” – tragoidía – tem como significado
“canto do bode”. Duas são as hipóteses mais plausíveis: ou se refere ao coro, que no início
era feito por pessoas representando sátiros – que, de acordo com o autor, em algumas
tradições são seres metade homens metade bodes – ou refere-se ao sacrificio de um bode,
animal preferido do deus, que sempre era sacrificado em sua honra durante as festas e nos
fins de espetáculos trágicos. Concordamos com Jacqueline de Romilly quando esta discorda
da questão dos sátiros. Os sátiros jamais foram identificados como bodes (ROMILLY,
1998:17); talvez pudesse referir-se a Pã – este sim realmente era representado metade
homem metade bode – mas este deus não fazia parte de nenhum elemento da tragédia, muito
menos do coro satírico. Desta forma, a segunda opção apontada por Grimal nos parece –
92 As antigas improvisações religiosas foram organizadas em representações que aconteciam durante as festas políades em honra deste deus.
141
embora efetivamente mais “sem-graça” – mais plausível. Rachel Gazolla alerta-nos para o
fato de que a palavra tragédia não se refere à “tragédia” conhecida por nós. Como um ritual
que está dentro de uma festa, e celebrando um deus festivo, pode representar dor e
sofrimento? A tragédia ática não tem a conotação de drama da maneira que conhecemos;
tragédia é um substantivo que designava um ritual religioso-político apresentado na forma de
encenação, e não um adjetivo para designar sofrimento (GAZOLLA, 2001:19). A palavra
tragikon é muito mais aplicada à literatura do que à vida na Grécia antiga (MOST, 2001:23).
Todavia, a escrita da tragédia não nasce sem sequelas de outro gênero: a epopéia.
Podemos reparar que, salvo exceções, as tragédias tratam de temas épicos: a Guerra de Tróia
e as penosidades vividas por Héracles são alguns dos temas caros à epopéia:
De qualquer maneira, os autores de tragédias buscaram na epopéia a inspiração para suas obras. E não há dúvida de que dali extraíram, ao mesmo tempo, a arte de construir personagens e cenas capazes de comover. Conferir o sentimento da vida, inspirar terror e piedade, partilhar um sofrimento ou ansiedade foram sempre traços da epopéia, que ela ensinou aos trágicos. Poder-se-ia igualmente dizer que, se a festa criou o gênero trágico, foi a influência da epopéia que fez dele um gênero literário (ROMILLY, 1998:21).
A tragédia tem como matéria prima a lenda heróica, e os heróis épicos figuram na maioria
das tragédias (VERNANT; VIDAL-NAQUET, 1999:215). Assim, a tragédia seria um gênero
que retomou muitas das lendas que já eram muito conhecidas do povo grego, e elaborou uma
nova forma de encarar estes contos, embora Pierre Grimal alerta-nos de que a leitura feita
por muitos, de que a tragédia é apenas uma retomada dos costumes primitivos e de cultos
arcaicos, é errônea (GRIMAL, 2002:25). É certo que os autores aproveitaram de estórias já
conhecidas pelos espectadores para elaborar seus argumentos e assim prender a atenção do
público. As Bacantes é um ótimo exemplo: Eurípides elabora um novo argumento em cima
do mito de fundação de Tebas, muito conhecido pelos gregos.
Mas alguns indícios levam-nos a refletir que a escrita da tragédia pode ter acontecido
antes da institucionalização dos espaços teatrais: “Diversos testemunhos, um de Sólon, outro
de Heródoto, deixam vislumbrar que a primeira tragédia foi inventada não em Atenas, mas
em Sícion, no Peloponeso, (...), e que esta tragédia foi obra do poeta Aríon (que viveu no
século VII a.C.).” (GRIMAL, 2002:26). Se concordarmos com estes testemunhos, então o
142
teatro seria concebido ainda no período homérico93, porém esta afirmação é demasiadamente
difícil de sustentar. No caso de Atenas, Pisístrato foi um grande incentivador das
apresentações de teatro, e com a continuidade de seu governo com os Pisistrátidas, muitos
artistas e muitas inovações teatrais chegaram até Atenas e propiciaram uma nova formatação
da tragédia, muito parecida com as tragédias do período clássico que conhecemos94. Era
importante para as tiranias que festas que tratassem de temas como o poder – tema central da
maioria das tragédias – fossem organizadas pelo poder tirânico e oferecidas ao povo: “(...) é
muito provável que a tragédia só tenha podido nascer quando aquelas improvisações
religiosas das quais ela surgiria foram reorganizadas sob o comando de uma autoridade
política, com apoio do povo.” (ROMILLY, 1998:15). Deste modo, a tragédia não é só uma
questão literária; é, sobretudo, uma questão política:
Assim, a instituição dos concursos de tragédias e o advento do próprio género no ciclo das festas da cidade seriam o resultado de duas causas interligadas: uma causa literária, que foi a descoberta por um poeta genial (sem dúvida, Téspis) das possibilidades do género e, ao mesmo tempo, uma causa política, o desejo de os tiranos darem ao povo festas em que se forjaria a unanimidade da cidade (GRIMAL, 2002:28).
Da mesma forma, Dioniso continuou sendo utilizado pelo poder, assim como o teatro,
do qual era patrono: “Dioniso tem, portanto, relações íntimas com o teatro e, por
conseguinte, mais ou menos indiretamente, com o poder, pois a influência do teatro faz dele
um verdadeiro ‘aparelho ideológico do Estado’.” (TRABULSI, 2004:145). Embora Trabulsi
possa ter sido um tanto quanto althusseriano em sua afirmação – o que está longe de ser um
problema, por vezes é até uma solução – é perceptível que o poder do Estado – tanto o
tirânico como o democrático – utilizou de Dioniso e do artifício do teatro para padronizar o
culto e o rito cthônico, da mesma forma que ocorrera com as festas políades.
Diferentemente do que ocorre na contemporaneidade, onde o teatro é, por diversas
vezes, utilizado como elemento de contestação e reflexão acerca dos problemas
93 Alguns autores – como Grimal (2002) – afirmam que Aríon era da mesma terra de Téspis. Outros, como Romilly (1998), colocam-no como habitante de Corinto. Mesmo que Aríon não fosse de Lesbos, podemos constatar que a ilha era um local rico em manifestações teatrais, mesmo que somente escritas e, ao que tudo indica, Téspis “aperfeiçoou” a inovação estilística de seu talvez compatriota Aríon, para ter condições de ganhar o concurso. 94 Jacqueline de Romilly (1998) afirma que a primeira seleção de tragédias – ao todo trinta e duas – foi feita já no período romano, na época do governo imperial de Adriano. Estas cerca de trinta peças são ínfimas, pois se acredita que foram confeccionadas mais de mil, que se perderam com o tempo e não chegaram aos dias de hoje.
143
contemporâneos95, o teatro na Antiguidade foi instituído pelo poder para neutralizar a
manifestação livre do indivíduo: “O teatro não é apenas uma forma de arte, é uma instituição
social que, pela fundação dos concursos trágicos, a cidade coloca ao lado de seus órgãos
políticos e judiciários.” (VERNANT; VIDAL-NAQUET, 1999:10). O teatro também não era
só um artefato do lazer, ele possuía um tremendo poder como instrumento pedagógico; poder
este que foi, por diversas vezes, utilizado como formador de opinião. Não queremos afirmar
que o teatro ateniense era desprovido de crítica, pelo contrário, haja vista todo o senso de
crítica da comédia, sobretudo de Aristófanes, e também de várias tragédias – como a crítica
ao civismo contida na Orestia, de Ésquilo. O que estamos propondo é um retorno às palavras
de Henri Lefebvre (2006), onde este afirma que a tragédia marca o fim dos mitos e o início
de sua representação; na tragédia o mito primordial não existe mais, o que existem são
representações deste mito. A tragédia é o mito manifestado dentro de uma redoma chamada
poder:
Na Grécia, todas as correntes religiosas confluem para uma bacia comum: sede de conhecimento contemplativo (gnôsis), purificação da vontade para receber o divino (kátharsis) e libertação desta vida “geradora”, que se estiola em nascimentos e mortes, para uma vida de imortalidade (athanasía). Mas, essa mesma sede nostálgica de imortalidade, preconizada pelos mitos naturalistas de divindades da vegetação, que morre e ressuscita, divindades (Dioniso, sobretudo) essencialmente populares, chocava-se violentamente com a religião oficial e aristocrática da pólis, cujos deuses olímpicos estavam sempre atentos para esmagar qualquer “démesure” (desmedida) de pobres mortais que aspirassem à imortalidade. Os deuses olímpicos sentiam-se ameaçados e o Estado também, uma vez que o homo dionysiacus, integrado em Dioniso, através do êxtase e do entusiasmo, se libera de certos condicionamentos e de interditos de ordem ética, política e social (BRANDÃO, 1985:11).
A representação é aquilo que torna existente o imaginado. Desta maneira, aquele
imaginário mítico passa a ser materializado em um tempo e espaço próprios para isto: “A
tragédia nasce (...) quando se começa a olhar o mito com olhos de cidadão.” (VERNANT;
VIDAL-NAQUET, 1999:10). A tragédia demarca nitidamente as distâncias e exalta as
contradições. A máscara que o ator utiliza em suas representações demonstra exatamente a
presença de algo que se encontra ausente: a divindade está ali representada por aquela
máscara: “Joga, portanto, com o imaginário do espectador, com a ausência e a presença tão
95 Para uma análise da evolução histórica da tragédia, ver: MARSHALL, Francisco. “A Historicidade Trágica”. Anos 90-UFRGS. Porto Alegre, v.6, p. 124-154, 1996.
144
pertinente a esse Dioniso mascarado e mascarador, que se manifesta nos esconderijos
escolhidos a seu bel-prazer (...) que anuncia esse jogo de presença-ausência (...)
(GAZOLLA, 2001:46-47). A máscara é um semióforo essencial para que a representação
teatral aconteça.
A própria literatura transforma-se em uma forma de poder. A tragédia como forma de
arte padroniza tanto o mito quanto o rito:
Lembremos a fórmula tão freqüente citada por Marx: “Mas a dificuldade não está em compreender que a rate grega e a epopéia estão ligadas a certas formas de desenvolvimento social. Eis a dificuldade: elas nos causam ainda um prazer artístico e, de certo modo, nos servem de norma, são para nós um modelo inacessível” (VERNANT; VIDAL-NAQUET, 1999:211).
Vernant e Vidal-Naquet estão se referindo à obra Introdução Geral à Crítica da Economia
Política, de autoria de Karl Marx. De acordo com Marx, a arte e a estética criadas nas mais
diversas sociedades acabam por servir a um poder, seja ele um poder macro ou um poder
micro.
Da mesma forma, o espaço físico onde se concentram as apresentações também se
configuram como espaços do poder. O teatro passa a ser um local sagrado, um local de
manifestações religiosas regidas por uma regra e uma moral própria. Não se pode celebrar o
mito através de um ritual primordial, deve-se celebrar este mito de acordo com as
representações teatrais. Uma estátua de Dioniso era disposta nos teatros; na orquestra –
orkhêstra – erguia-se um altar de pedra e nas arquibancadas sentava-se, em um trono
esculpido, o sacerdote de Dioniso. Não conseguimos imaginar toda esta parafernália naquele
Dioniso cthônico, que se embriagava e dançava junto às figuras bestiais. Este Dioniso cívico
depende de engrenagens – para utilizar um termo caro a Jon Elster (1994) – que o façam
funcionar como deus dentro da cidade. O espaço teatral também se constituía como um
espaço abstracional, onde diversas localidades diferentes eram representadas e diversas
idéias distintas trabalhadas:
A tragédia ática exerceu uma prática espacial múltipla, mediante a idéia de espaço como infinito, como algo pleno, como extensão material, como vazio. Também como um pré-requisito para o surgimento, emanação e sincronização de fenômenos, que garante as leis naturais, como um sustentador do cosmos e também, ocasionalmente, como uma abstração confusa e absurda (TOBIA, 2005:19).
145
Destarte, o espaço do teatro ainda era demasiadamente precário no período arcaico,
bem diferente de quando atinge seu apogeu, na época clássica:
Não existia qualquer tribuna, qualquer plataforma, nem qualquer espaço, sobrelevado destinado aos actores. Isso só aparecerá mais tarde, fruto de uma longa evolução. Actores e membros do coro misturavam-se na orchêstra: distinguiam-se pelos trajos e, muito particularmente, pelo facto de os actores calçarem sapatos de sola espessa, o coturno, parecendo assim mais altos do que os coreutas (GRIMAL, 2002:15).
O choros – coro – possui um papel de extrema e primordial importância no teatro arcaico; já
no período clássico ele não está mais no mesmo nível dos atores, e passa a possuir um papel
mais secundário. De acordo com Cíntia de Moura Siqueira, alguns pensadores, como
Aristóteles, apontam que a maneira euripidiana de apresentar o coro é errada, pois neste não
está presente nenhum ator principal; para o filósofo, no coro também deveria haver a
presença dos atores, como fazia Sófocles (SIQUEIRA, 2008:25). Ao longo do século V os
espaços teatrais foram sendo modificados; a construção das skênai96 propiciou um maior
realismo ao espaço de encenação. As arquibancadas foram aperfeiçoadas e agora eram
dispostas em um semicírculo. O avanço de técnicas mecânicas que ocorreu na Atenas
clássica também ajudou no realismo da encenação:
Quando havia que fazer intervir uma divindade do Olimpo, utilizava-se uma “máquina” (mêchanê) que transportava um actor pelo ar e o colocava na orchêstra (ou no logeion, no teatro helenístico) ou o elevava e fazia desaparecer atrás do telhado da skênê. Esta máquina era uma espécie de guindaste que punha em movimento um cabo que passava por cima da skênê (GRIMAL, 2002:20-21).
As aparições infernais – como os fantasmas, as Fúrias e as divindades subterrâneas –
surgiam literalmente das entranhas da terra. Os atores utilizavam uma passagem subterrânea
escavada por baixo da orchêstra, que os arquitetos chamavam de “escadas de Caronte”
(GRIMAL, 2002:21). Dos espaços físicos destes teatros muito pouca coisa sobrou em forma
de ruína. Somente a explanada foi construída com material durável; os edifícios para atores
eram feitos de madeira e as skênai, primeiramente, eram confeccionadas com pano
(MARTIN, 1956: 283).
96 Espécies de barracas que permitiam instalar os cenários com maior realismo e precisão. Segundo Grimal (2002), isto foi muito útil nas representações trágicas, pois o cenário sempre representava, naturalmente, a fachada de um palácio.
146
Outro elemento importantíssimo na peça é a catarse – kátharsis. A catarse é o ponto
máximo de uma tragédia; é onde ela sempre caminha para chegar. A catarse é o momento de
purificação, reflexão e, muitas vezes, arrependimento das personagens diante do fato trágico
que acontece ao fim. A vingança, os erros, a arrogância, o medo e outros sentimentos
humanos estão presentes nos personagens que compõem a tragédia, e é sempre por isso que o
momento trágico acontece; são estas fraquezas humanas que fazem ocorrer o momento de
dor do final da peça.
Já escrito acerca da tragédia, deveremos também situar o público que assistia à peça.
Os espaços do teatro não eram freqüentados somente pelos cidadãos abastados. Era
permitida também a entrada de escravos nas apresentações teatrais. Eram reservados a eles
os piores lugares – os mais acima da arquibancada – e jamais poderiam ir sozinhos; estavam
sempre acompanhando os filhos de seus senhores ou as esposas destes. Os homens cidadãos
sentavam-se nos primeiros lugares e suas companheiras nos últimos, talvez até atrás dos
escravos.
Temos de ter claro que os autores de tragédias eram homens abastados – cidadãos –
escolhidos pelos governantes para disputarem concursos. Desta forma: “eles escreviam na
qualidade de cidadãos que se dirigem a cidadãos” (ROMILLY, 1998:15). Quando o poeta
trágico humaniza os heróis – fazendo-os sentirem dor, inveja, vergonha e muitos outros
elementos da psicologia humana97 – este aproxima os personagens dos cidadãos presentes no
teatro (GAZOLLA, 2001:38). Os espectadores se identificam com os trágicos, por estarem
sentindo exatamente o que está sendo retratado na peça.
Falemos agora da obra Poética. Este documento trata de todos estes elementos que
compõem a tragédia. Mesmo Aristóteles tendo vivido no período helenístico – no qual o
teatro já se encontrava modificado – este foi grande leitor das obras do teatro clássico, e
assim pôde tecer seus comentários. Porém, devemos analisar esta fonte estando ciente dos
dizeres de Jean-Pierre Vernant e Pierre Vidal-Naquet:
Antes mesmo que se passassem cem anos, o veio trágico se tinha esgotado e, quando no século IV, na Poética, procura estabelecer-lhe teoria, Aristóteles não mais compreende o que é o homem trágico que, por assim dizer, se tornara estranho para ele (VERNANT; VIDAL-NAQUET, 1999:7).
97 Estes sentimentos também são encontrados entre os deuses na epopéia. Poderia ser esta mais uma característica que a tragédia herdou das epopéias.
147
Aristóteles era um filósofo do método, então este realiza uma tentativa de enquadrar a
tragédia em um método próprio. Mas o filósofo já não vivia mais a tragédia em sua pujança;
não foi testemunha ocular das festas e das representações teatrais clássicas. Albin Lesky
chega a afirmar que os gregos nunca desenvolveram uma teoria do trágico, e que a Poética
seria somente um ponto de vista que não sairia do aspecto do trágico dentro da análise de
obra de arte (LESKY, 1990:22). Uma coisa é certa quando analisamos a obra, e isto foi
comprovado por vários especialistas: Aristóteles estava muito mais interessado na escrita da
peça do que na sua encenação (MALHADAS, 2003:11). Não é que Aristóteles não
considerasse a encenação como algo importante, mas para o filósofo era na escrita onde se
encontrava a verdadeira poesia, a verdadeira arte.
Acreditamos que realizar uma exaustiva análise da Poética não traria nada de novo
para o trabalho historiográfico. Inúmeros autores – desde o período romano até a
contemporaneidade – já se debruçaram na análise da obra, e já teceram todos os diferentes
comentários sobre ela98. O que iremos realizar neste tópico é identificar alguns conceitos
cruciais para o entendimento de como uma tragédia se constituía. Centraremos nossa análise
na primeira parte da obra.
O principal conceito que queremos trabalhar é o de mímese99. A mímese é colocada
por Aristóteles como a representação – e não como imitação, como erroneamente alguns
afirmam – aquilo que é representado pelo autor, a partir do que ele vê escrito. Contudo,
temos de deixar claro que Aristóteles não define o que é a representação: “Limita-se a dizer
que a tendência para representar, por ser inata no homem, é a causa primeira do nascimento
da poesia. Toda poesia, então, é representação.” (MALHADAS, 2003:18-19).
A representação aristotélica é aquela em que os tragediógrafos representam de
formas diferentes, mesmo que uma mesma história. A tragédia sempre foi pautada em
estórias que o povo grego já conhecia. Assim, os autores representam-nas de formas
distintas, conforme suas concepções. A mímese também é utilizada em outros gêneros – nem
todos teatrais, como aponta Aristóteles já no primeiro capítulo de sua obra:
98 Para uma análise sobre a evolução do pensamento acerca da Poética ver: SKULSKY, Harold. “Aristotle’s Poetics Revisited”. Journal of the History of Ideas. vol. 19, n°2, 1958. Já para uma análise de toda a Poética, ponto a ponto, ver: BARRIVIERA, Alessandro. Poética de Aristóteles – tradução e notas. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; Instituto de Estudos da Linguagem; Departamento de Lingüística, 2006. (Dissertação de Mestrado) 99 Também podemos encontrar a grafia mímêsis. Aqui concordaremos com a tradução proposta por uma tese de doutorado em Filosofia: GAZONI, Fernando Maciel. A Poética de Aristóteles: tradução e comentários. São Paulo: Universidade de São Paulo; Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas; Departamento de Filosofia, 2006. (Dissertação de Mestrado)
148
A epopéia, assim como a poesia da tragédia, como a da comédia e a poesia dos ditirambos, e em grande parte a arte da flauta e da citara, coincidem quanto a mímese, mas diferem entre si de três maneiras, seja pelos meios de realizar esta mímese, seja pelo que se utiliza mímese, seja por realizar a mímese de modos diferentes e não do mesmo modo (Aristóteles. Poética, 47a13).
Podemos concluir que a mímese não é um artefato somente do teatro. A partir do momento
em que existe a arte, existe a necessidade de se representar algo, seja na poesia épica, na
trágica ou nas artes da música.
Aristóteles concorda que a tragédia possa ter vários elementos da antiga epopéia – e
até que possa ter se originado desta – mas diz que as duas possuem várias diferenças e não
podem ser confundidas.
A epopéia coincide com a tragédia porque ambas são mímese de pessoas nobres. Porém, a tragédia difere da epopéia porque esta possui um metro simples e é apresentada em forma de narração. E também se distinguem quanto à extensão, pois uma trata, maximamente, de desenrolar-se em um único período solar, com pouca variação; já a epopéia diferentemente é limitada quanto ao tempo. No princípio, porém, as tragédias e as epopéias eram iguais quanto a isto (Aristóteles. Poética, 49b9).
Aristóteles coloca que a epopéia e a tragédia eram mais parecidas quando criadas, e foram
distanciando seus estilos. No último tópico desta dissertação, trataremos de uma tragédia em
particular: As Bacantes, de Eurípides. Neste documento textual, que trata exclusivamente do
dionisismo, identificamos o que se tornou a imagem de Dioniso no período clássico.
3.4. As Bacantes e a imagem do deus Dioniso
Neste último tópico, tratamos efetivamente do texto teatral intitulado As Bacantes, de
autoria do tragediógrafo ateniense Eurípides. Antes de tratarmos da fonte, falemos
brevemente da vida de seu autor. Como já foi dito, Eurípides nasceu por volta de 484 em
uma família abastada – embora a comédia sempre tenha zombado de sua origem. Seu pai
Mnesarco era dono de terras e, assim como sua mão Clito, fazia parte do dêmos da Flia
(WEFFORT, 2008:35). Começou suas apresentações em 455, mas obteve sua primeira
vitória somente quatorze anos depois. Algumas peças receberam vitórias póstumas – como
As Bacantes – pelo seu filho ou sobrinho (WEFFORT, 2008:36). Uma tradição diz que teve
149
três filho, e que era melancólico e anti-social, sempre lendo dentro de uma gruta. Sua peça
mais antiga que chegou aos nossos dias foi Alceste, datada de 438. Eurípides foi, certamente,
o escritor que mais se preocupou com temas psicológicos e da alma humana. Influenciado
pela filosofia da época, Eurípides fará parte da nata intelectual ateniense:
Aberto às novas descobertas de espírito, Eurípides se move num ambiente intelectual onde as tradições são questionadas pela exigência de uma racionalidade discursiva, acessível ao entendimento e passível de exame; onde o homem, segundo a expressão de Protágoras, “é a medida de todas as coisas”; onde, seguindo a tendência dos sofistas, tudo é possível conhecer, definir e defender. Todos os matizes e as contradições desse novo espírito discursivo encontrarão reflexo em sua obra. A proximidade intelectual com os sofistas e a influência de suas idéias vai lhe custar alguns desafetos, como o do poeta cômico, Aristófanes, contemporâneo seu, que o acusa publicamente em suas comédias de ser um dos grandes responsáveis pela corrupção dos antigos valores (WEFFORT, 2008:37).
O escritor só foi vencedor cinco vezes nos concursos – sendo três postumamente,
como já elucidamos – em um total de quase oitenta peças apresentadas100. É perceptível que,
se não era amigo do poder, ao menos não agradava aqueles jurados, todos cidadãos de
Atenas. Dos três tragediógrafos mais conhecidos, Eurípides foi o que mais viveu o período
de maior crise em Atenas.
As Bacantes de Eurípides é o maior testemunho do dionisismo101, ao modo que o
tragediógrafo enxergava. Devemos ressaltar que o culto retratado não era exatamente o culto
que era praticado; não chegaremos a este extremo interpretativo. Eurípides retrata o ritual
através de uma memória religiosa – haja vista que esta espécie de rito certamente não era
mais praticado na Atenas democrática – escrevendo muito mais sobre aquilo que ouviu do
que sobre aquilo que presenciou:
Cabe registrar também que não há qualquer sinal de menadismo na região ática, apesar dos 1190 metros do monte Pentelikós e dos 1413 do Parnés, como se observou recentemente. Eurípides teria presenciado o fenômeno do menadismo na Macedônia, onde, de acordo com Plutarco (Vida de Alexandre o Grande), esse culto era freqüente. (...) [essa hipótese] não altera, contudo, um fato importante: o poeta viveu numa época em que as discussões sobre a linguagem ganham peso extraordinário no ambiente
100 Todavia, José Antonio Dabdab Trabulsi (2004) aponta-nos que Eurípides foi reverenciado no final da Antiguidade e a maioria dos escritos cristãos que tratam de Dioniso partem dos pontos apresentados em sua peça As Bacantes. 101 Devemos constatar que os gregos não conheciam este termo “dionisismo” como manifestação religiosa. Este termo é produto do estudo de história das religiões moderna, fundado por Friedrich Nietzsche.
150
intelectual ateniense (VIEIRA, 2003:41).
Devemos deixar claro também que, nesta peça, Eurípides não inovou em nada o
gênero teatral (TRABULSI, 2004:154). Podemos dizer que As Bacantes é uma peça
“comum”, sem muitas inovações e sem muita ambição quanto à evolução do gênero trágico.
Tampouco Eurípides se preocupava com os temas relacionados ao dionisismo. O ciclo
troiano, por exemplo, ocupa um lugar de destaque muito maior no conjunto de tragédias
compostas pelo autor. Entretanto, esta peça é importante para nosso trabalho, como já
dissemos, pelo seu valor como fonte para o entendimento de Dioniso e de seu ritual.
Segundo Jean Pierre-Vernant, duas leituras sobre a intenção de Eurípides ao escrever
sobre este tema nesta peça foram realizadas pelos autores dos séculos XIX e início do XX.
Alguns viram na peça uma condenação ao dionisismo e um ataque anti-religioso, feito por
um escritor que poucas crenças teve ao longo de sua vida; outros acreditaram que Eurípides,
já no final de sua vida, se converteu ao dionisismo e esta peça se trataria de uma exaltação à
força de Dioniso e de seu culto (VERNANT, 1991:170). Acreditamos que os dois extremos
estejam equivocados. O que é um homem grego de poucas crenças? Era possível um “ateu”
na antiga Atenas? As relações que o homem grego possuía com a religiosidade eram
completamente diferentes das relações modernas, pautadas em uma necessidade de crer. A
religiosidade dos homens atenienses era muito mais filosófica do que simplesmente crente.
Assim, seria difícil acreditar que Eurípides quisesse simplesmente atacar a dionisismo. Por
outro lado, não poderemos jamais afirmar com todas as certezas – tão inexistentes na
História – de que o idoso Eurípides tornou-se ele mesmo um bacante. Sobre isto discutimos
mais a frente deste tópico.
O coro neste texto é formado pelo grupo de mênades que acompanhou o deus desde a
Lídia. Vamos notar ao longo da peça que, embora estas mulheres fossem adoradoras do deus,
não estavam no mesmo nível de loucura que as mulheres da realeza castigadas pelo deus; a
loucura desenfreada é um castigo, não uma celebração: “Dominadas pelo transe, fora de si,
penetradas pelo sopro divino, obedecem a Dioniso, transformam-se no instrumento de sua
vingança. Mas não são fiéis suas, não lhe pertencem.” (VERNANT, 1991:188). O coro
também faz parte do rito, só que não está no mesmo nível de manía das mulheres tebanas.
Toda a peça é permeada pelo sentimento de manía. Esta loucura exerce um elemento
desagregador da ordem políade. É a forma do deus se colocar contra os costumes de Tebas.
Dioniso não é um deus abstrato e conceptual; ele necessita de um corpo para se manifestar, e
151
por isso arrasta seguidores para uma experiência modificadora (MOTA, 1998:2). Não é a
loucura benéfica concedida pelo deus durante seu ritual; é a loucura maléfica concedida por
um castigo divino:
Para castigar Tebas, o deus começa por expulsar toda a parte feminina da polis, sob o aguilhão na manía, para fora da cidade, para a montanha. As mulheres vivem lá casta e pacificamente, em comunhão com a natureza, como faria um autêntico tíaso. Vendo a cidade assim perturbada, a outra componente de Tebas, os homens, intervêm então para restabelecer a ordem e trazer as mulheres para casa. A manía toma imediatamente a forma de um completo desarranjo do espírito, num surto de violência insensato (VERNANT, 1991:190).
A peça, encenada após a morte de seu autor, é dividida em várias partes. Seguiremos
aqui a definição dada por Marcos Mota: de início temos o prólogo, onde há um monólogo de
Dioniso; após isto o párodo, onde o coro fala e em seguida o primeiro episódio, com
Tirésias, Cadmo e Dioniso. Após este primeiro episódio, temos o estásimo – mais uma vez o
canto coral das bacantes – e o segundo episódio, o diálogo entre o rei tebano e herói trágico
Penteu e Dioniso; novamente o estásimo – o coro – e o terceiro episódio em seguida, com
uma interação entre Dioniso, Penteu, um mensageiro e o coro. Antes do quarto episódio,
temos mais um estásimo e a ação entre Penteu e Dioniso; após um novo estásimo temos no
quinto episódio a morte de Penteu. Para encerrar a peça, temos o último estásimo e o êxodo,
relação entre os personagens Agave, Cadmo e Dioniso (MOTA, 1998:3). Quem nos explica
o significado de cada uma destas partes é Aristóteles, em sua obra Poética:
O prólogo é uma parte inteira da tragédia, anterior ao párodo do coro; o episódio é uma parte inteira da tragédia, que está entre os cantos inteiros do coro; o êxodo é uma parte inteira da tragédia à qual não se segue o canto do coro; o párodo do coro é o primeiro discurso inteiro do coro; o estásimo é o canto do coro sem anapestos nem troqueus; o kommos é uma lamentação conjunta entre o coro e o ator. (Aristóteles. Poética, 52b19)
O prólogo, que se constitui como um momento tipicamente euripidiano, já que este
autor foi o primeiro a utilizar a técnica de apresentar uma imagem antecipada, selecionando
traços que serão posteriormente dramatizados (MOTA, 1998:3), inicia-se com a apresentação
feita por Dioniso, que retorna a Tebas, depois de ter ido até a Ásia. Este início da peça nos
confirma as características de Dioniso elucidadas anteriormente. Eurípides lançou mão do
imaginário social que já enxergava o deus como um deus estrangeiro e rural:
152
DIONISO Deus, filho de Zeus, chego à Tebas cthônia Dioniso. Deu-me à luz Semele cádmia. O raio – Zeus porta-fogo – fez-me o parto. Deus em mortal transfigurado, achego-me ao rio Ismeno, ao minadouro dírceo. Avisto o memorial de minha mãe Relampejada junto ao paço. Escombros de sua morada esfumam com o fogo, ainda flâmeo, de Zeus, ultraje eterno de Hera contra Semele. Louco Cadmo: sagrou à filha o espaço não-pisado, que circum-ocultei com verdes vinhas em cachos. Deixo Lídia e Frigia pluri- -áureas; plainos da Pérsia calcinados; Báctria emurada; a Média, terra gélida; Arábia venturosa; pleniaberta ao mar salino, a Ásia, onde, em tantas urbes de torres multilindas, grego e bárbaro compunham gigantesco aglomerado. Na Grécia, por aqui me introduzi. Fundei meu rito em coros dançarinos: Um deus-demônio, ao homem manifesto (Eurípides. As Bacantes, v. 1-22)
Comecemos com a retomada que Eurípides faz do mito de fundação da cidade de Tebas.
Dioniso cita sua mãe Semele, fulminada pela luz de Zeus, além de seu avô Cadmo e diz que
foi ali em Tebas que ele introduziu seu culto na Grécia. Aí está um exemplo da mímese
aristotélica: Eurípides se utiliza de um mito conhecido por todos para realizar a sua
representação, conforme sua leitura.
Tebas é uma cidade a leste da Península Balcânica. Desta forma, é compreensível que
tenha relações com o Oriente e que possa sim ter sido a porta de entrada deste culto
barbarizado, já que o próprio deus assim se define nestes versos: “Irrupção súbita, como se
Dioniso surgisse sempre vindo de alhures: estrangeiro, mundo bárbaro, além. Irrupção
conquistadora que, de cidade em cidade, de lugar em lugar, propaga e instala o culto do
deus.” (VERNANT, 1991:176). No último verso, temos o termo “deus-demônio”; este
“demônio” não deve ser confundido com o conceito cristão, por motivos óbvios; Dioniso por
muitas vezes era identificado como um dáimon, uma divindade rústica, mas sempre um deus.
Não podemos comparar Dioniso com os seus sátiros, que também eram dáimones.
Seguindo a peça, vemos – ainda na fala de Dioniso – o primeiro indício de que a
participação feminina era primordial neste culto:
153
Fêmeas tebanas portam, todas elas forçadas, paramentos para a orgia, tresloucadas, dos lares, todas, extra- ditadas, turba entremesclada às Cádmias sob o cloroso abeto, sobre as pedas (Eurípides. As Bacantes, v. 34-38)
A manía está presente nestas mulheres: arrematadas por uma força maior que elas mesmas,
saíram dos seus lares para cultuar o deus. As “Cádmias” a qual Dioniso se refere são as filhas
de Cadmo, irmãs de Semele. Eram elas que comandavam este cortejo. Estas mulheres faziam
parte da estirpe real tebana, e se recusaram a aceitar o culto do deus. Como castigo, Dioniso
joga sobre elas sua loucura, fazendo-as delirar. Este comportamento fez com que o rei Penteu
recusasse a reverência a este deus:
(...) Cadmo e Penteu, filho de uma outra Filha, outorga o apanágio de tirano- -rei. Contra mim, Penteu move uma teo- maquia: libações me nega e preces. (Eurípides. As Bacantes, v. 43-46)
Seu primo Penteu é o atual rei de Tebas. Filho de Agave e também neto de Cadmo, o rei
recusa o reconhecimento desta nova divindade. Eurípides coloca na boca de Dioniso a
palavra “tirano” para criticar o rei. Em plena democracia, caía muito bem uma crítica à
antiga política.
Entra, a partir do verso sessenta e três, o coro. Já vimos sua importância para o
andamento da peça. Na primeira aparição o coro vem explicar como Dioniso chegou à sua
antiga pátria, Tebas:
CORO Deixando o solo asiático transposto o sacro Tmolo, em penar prazeroso, em dor indolor, empenho-me por Brômio, deus-Rumor, no louvor a Baco! (Eurípides. As Bacantes, v. 63-69)
O Dioniso euripidiano era asiático e barbarizado, e vem confirmar alguns dos aspectos
presentes no deus desde o início de sua representação. Destarte algumas outras
características – como a juventude e os aspectos femininos do deus – vão contra àquelas
representações, em uma mescla de imaginários antigos e contemporâneos. Brômio, deus-
154
Rumor e Baco102 – Bákchos – são outros nomes referentes ao deus. O coro continua sua fala
exaltando as mulheres asiáticas que já se entregaram ao dionisismo:
Vamos, bacantes! O rumoroso deus, de um deus nascido, Dioniso, conduzi dos montes frígios À Grécia de amplas ruas – Brômio, Deus-Rumor (Eurípides. As Bacantes, v. 83-87)
Ainda na fala do coro, este faz uma alusão a antiqüíssimos cultos gregos. Réia é uma
titanida, irmã e esposa do titã Cronos – o tempo – mãe de Zeus e conseqüentemente avó de
Dioniso. Réia era uma deusa cultuada desde o período minóico, e é evocado na peça como a
deusa mãe – como era conhecida nos períodos minóico e micênico – quando o coro descreve
aspectos do cortejo sagrado que se dirigia para a montanha, para celebrar Dioniso:
No tenso bacanal, sintonizam-no ao suave sopro de flautas frígias, e o põem nas mãos de Réia-Mãe: trom entre evoés a Baco! E ensandecidos sátiros recebem da deus mãe o instrumento de coros trianuais, para o dionísio regozijo! É doce nas montanhas, girando em velozes tíasos, tombar na terra, (Eurípides. As Bacantes, v. 126-137)
Os sátiros sempre estavam presentes nos cortejos, e recebiam especialmente da deusa Réia
instrumentos para realizar o culto. A montanha está presente nesta peça como uma
representação do desconhecido. As florestas e os montes suscitaram nos homens diversas
reações imagéticas, que surgiam pelo desconhecimento destes. A montanha representa na
peça o desconhecido e, conseqüentemente, o medo.
Este rito realizado fora dos olhos oficias era extremamente barbarizado, desde os
instrumentos até os cantos, muitos na língua frígia, e não na língua grega:
No luxo do áureo veio tmólio,
102Por isso o nome da peça, Bakxai, que convencionalmente foi traduzida para o português como As Bacantes. Baco foi também o nome utilizado pelos romanos para se referirem ao deus relacionado a Dioniso.
155
celebrai Dioniso, ao rumor barítono dos tímpanos, alegrai com evoés o deus Evoé, gritos em língua frigia, enquanto, sonora, a flauta-loto sagra, com seu rumor, o rito lúdico, (Eurípides. As Bacantes, v. 154-164)
Finda a fala do coro, entram em cena o velho Cadmo, fundador de Tebas, e Tirésias, um
velho adivinho103. Ambos irão aderir ao culto; querem se travestir de mênades para celebrar
o deus. Tirésias pede para chamarem Cadmo para se prepararem para o cortejo:
TIRÉSIAS: Quem monta guarda? Chame o Agenoreide Cadmo! Saia fora do palácio. Vindo de urbe sidônia, ergueu torres em Tebas. Vamos! Alguém o avise que Tirésias procura-o. Sabe por que vim aqui, pois pactuamos – um sênex com um sênior –, brandir o tirso, usar pelames nébridos, coroar a fronte com hera frondosa (Eurípides. As Bacantes, v. 170-177)
Cadmo responde ao chamado de Tirésias e aceita fazer parte do cortejo, pois já se acredita
velho e sem muitas responsabilidades. É interessante Tirésias ser o fomentador do culto, pois
foi o único indivíduo que obteve tanto a experiência masculina quanto a feminina em tempos
distintos – diferente do deus Hermafrodito, que possui os dois sexos ao mesmo tempo.
Tirésias, o homem com experiência feminina, se traveste para poder obter a experiência
dionisíaca. O feminino e o masculino se confundem em alguns momentos da peça;
momentos que tratam da nova experiência do menadismo. Continuando na peça, Cadmo
exalta seu neto divino e diz que este culto serve para esquecer os problemas:
O fato de uma filha minha ser mãe de Dioniso – um deus entre os mortais –, nos preme a ressaltar sua magnitude.
103 Cego, Tirésias aparece tanto no ciclo troiano quanto no ciclo tebano, estando presentes desde obras como a Odisséia até em peças de Eurípides e Sófocles. De acordo com Pierre Grimal (2000), Tirésias viu duas cobras copulando e as feriu – ou as matou, como dizem alguns – e se tornou mulher. Após sete anos, ele encontrou no mesmo local mais duas serpentes e repetiu o ato, tornando-se homem novamente. Ainda de acordo com Grimal, Zeus lhe pergunta quem sente mais amor sexual: o homem ou a mulher; Tirésias diz que é a mulher nove vezes mais. Por conta de revelar o segredo feminino, Hera tira-lhe a visão. Como forma de compensação, Zeus concede-lhe o dom da profecia. Uma outra tradição, provavelmente tardia – do período helenístico – é narrada por Nicole Loraux (2003); esta tradição conta que Tirésias ficou cego como castigo por ter presenciado a nudez da deusa Atena, enquanto esta se banhava.
156
Urge dançar! Mas onde percutir os pés, onde agitar melena cinza? Explica a um velho, ó velho sapientíssimo! Pulsar diuturno o solo com o tirso Não me tira a energia: doce é esquecer a senectude (Eurípides. As Bacantes, v. 181-188)
É interessante a fala “um deus entre os mortais”. Dioniso é aquele deus não olímpico
– como já foi colocado por nós diversas vezes neste trabalho – que está com o povo e faz
parte dele. O velho rei gostaria de esquecer sua idade avançada. Desta forma, integra o
cortejo do deus, que não faz distinção etária; todos são bem vindos a celebrar a divindade. O
sábio Tirésias deixa claro esta relação etária em sua fala:
Se é velho ou moço quem deva integrar o coro, ao deus é igual; congraçamento é o que deseja, obter honras de todos, rejeita distinguir quem o engrandeça. (Eurípides. As Bacantes, v. 206-209)
A partir do verso duzentos e quinze entra finalmente Penteu, que estava ausente de
Tebas. Penteu é o rei tebano, primo de Dioniso. Este é o herói trágico104, o personagem de
estirpe real representando a cidadania e a nobreza. Alguns autores, como Rachel Gazolla,
caracterizam Penteu como um estranho herói euripidiano ou até como um anti-herói, pois se
pensarmos que a um herói trágico cabe o excesso que toca o divino, ou seja, uma essência
para perceber o divinizado, Penteu não atende a esta principal exigência (GAZOLLA,
2001:90). O rei também não consegue controlar seus sentimentos – no caso o ódio e a
aversão – tornando-se um indivíduo impulsivo e frágil: “Penteu já está possuído pelo delírio
desde o início, todas as suas ações e pensamentos estão perturbados, o que o torna um herói
frágil diante de outros heróis trágicos.” (GAZOLLA, 2001:99).
O rei inicia sua fala criticando todo aquele novo rito que adentrou sua cidade. Sua
primeira fala é muito rica para compreendermos o papel do Estado no culto:
PENTEU Durante a minha ausência desta terra, pude escutar notícias más da polis: nossas mulheres abandonam lares, fingindo-se inspiradas por Baco. Entram em plúmbeos montes, coreografam danças:
104 De acordo com Rachel Gazolla (2001), o herói trágico deve descender sempre de pelo menos um outro herói. No caso, Penteu é neto do herói Cadmo, fundador da cidade de Tebas.
157
pelo deodâimon, por Dioniso – seja ele quem for! –, transbordam as crateras no tíaso. Cada qual, a sós, num canto, cede à vontade masculina. Mênades, sacerdotisas de um ritual, alegam ser; mas preferem Afrodite a Baco. Em quantas pus as mãos, os carcereiros mantêm-nas algemadas na cadeia; quantas não capturei, caço nos montes: quem me gerou, Agave, Ino também, e a mãe de Actéon, Autônoe. Se as coloco atrás das grades, ponho fim ao sórdido bacanal. Nos informam que chegou da cthônia Lídia um forasteiro, um mago impostor. Seus cabelos ondulados exalam doce olor. Tem as maçãs do rosto cor de vinho e o olhar de Cípirs; conviva de donzelas, noite e dia, ensina-lhes evoés e os seus mistérios (Eurípides. As Bacantes, v. 215-238)
O rei tebano reclama das mulheres sem virtudes, que saem errantes pelos bosques,
abandonando seus afazeres domésticos e seu papel de mulher. O próprio rei diz que prendeu
várias delas, em um claro controle do Estado sobre o comportamento humano. Como a
maioria das tragédias, o comportamento humano é analisado: neste caso, o poder oficial
suprime o que há de mais primitivo e animalesco nos homens, civilizando-os, nem que seja
através de correntes. As próprias mulheres da realeza, como sua mãe Agave e sua tia Ino,
perderam a razão e juntaram-se ao cortejo. Nem a realeza foi capaz de escapar da loucura
dionisíaca.
A descrição que Penteu faz de Dioniso coloca o deus, a primeira vista, como
essencialmente asiático: “(...) chegou da cthônia Lídia um forasteiro (...)”. Já vimos que nesta
peça Eurípides se utiliza tanto do mito fundador como do mito de nascimento de Dioniso;
desta forma, o deus seria tebano. O que Penteu quis dizer foi provavelmente que os traços
asiáticos do deus tornaram-no um bárbaro, um forasteiro incapaz de aderir à cidadania, de
acordo com aquela idéia de bárbaro para os gregos, já discutida por nós.
Continuando a peça, Penteu fica horrorizado em perceber que seu avô e o velho
Tirésias aderiram ao culto deste forasteiro, e critica veementemente o par:
Tirésias envolvido numa nébrida tigrada,e o meu avô, multi-risível dionísio-porta-férula! Envergonha olhar um par senil perder o juízo! Joga fora a hera, põe no lixo o tirso,
158
ó pai de minha mãe, ó meu avô! Persuadiste-o Tirésias. Entre nós infiltraste o neodâimon: sondar aves, queres, lucrar com vítimas combustas (Eurípides. As Bacantes, v. 249-257)
A desonra que Penteu sente é a de que seu próprio avô, fundador da dinastia tebana, possa ter
aderido a um culto que não se enquadra nos costumes normativos da polis. Ele crítica a idade
avançada dos novos bacantes, como se para os velhos fosse reservado somente um espaço
pré estabelecido socialmente, assim como para as mulheres. A palavra “neodâimon” aparece
freqüentemente na peça: por ela podemos entender a referência a um novo dáimon, ou uma
nova divindade, que não fazia parte do grupo dos titãs ou dos olímpicos. A hera e o tirso são
elementos que estão presentes no cortejo dionisíaco, como pode ser conferido em muitas
representações de cerâmica.
Prosseguindo, Tirésias retoma a fala, explica a Penteu sobre o culto e nos traz uma
constatação importante, já realizada por nós nos capítulos anteriores: a relação de Dioniso
com o elemento vegetal, com o elemento úmido e com a própria deusa Deméter:
(...) Em dúplice pilar, assenta – moço – a humanidade: Terra ou Deméter – nomeia-a como o queiras –, de quem provém o nutrimento seco; e seu êmulo, o filho de Semele, que ao mundo trouxe o sumo invento: sumo da vinha, licor puro! O triste anima-se ao consumir a linfa da uva, fármaco inigualável contra a dor, oblívio do diário dissabor, o sono de Hipnos. (Eurípides. As Bacantes, v. 274-283)
Deméter como terra não deve ser entendida como a divindade Terra – o planeta, se assim
fosse poderíamos acreditar que os próprios gregos sentiam-se confusos em relação ao papel
de Gaia, o que não é verídico. A terra a que Eurípides se refere é o elemento, a força do rural.
Deméter dá aos homens o nutrimento seco, o trigo e os demais alimentos que a terra fornece;
este é um dos pilares que sustentam o homem.
O outro pilar é o que a terra fornece de úmido: a vinha, de onde se tira o puro vinho
que faz com que os homens esqueçam suas dores e seus problemas cotidianos – o
pharmakós, um remédio que, se não utilizado na dosagem correta, pode tornar-se veneno. É
o vinho que promove a ligação dos homens com o divino, com o êxtase dionisíaco e com o
sono, propiciado pelo deus Hipnos: “O coro das suas fiéis mênades da Lídia aprova Tirésias
159
que pôs em paralelo Deméter e Dioniso: o deus é para o elemento líquido, a bebida, o que a
deusa é para o sólido e comestível.” (VERNANT, 1991:184).
Logo em seguida, temos uma referência ao antigo mito de nascimento de Dioniso – o
Zagreus – que certamente era conhecido por Eurípides:
Zeus contramaquinou qual faz um deus: um setor do céu seccionado, circum- -térreo, fez e deu a Hera, qual penhor da querela, uma cópia de Dioniso. Com o passar do tempo, os homens dizem: “Ele é o Senhor-do-fêmur do Cronida!”, mera metástase de nome. Um deus à deusa penhorado. E vira história (Eurípides. As Bacantes, v. 291-298)
É, de acordo com alguns autores, deste primeiro mito que surge o nascimento do segundo
Dioniso:
Segundo Eurípides, Zeus imagina um ardil para acalmar Hera, decidida a matar Dioniso, fruto da relação extraconjugal do marido. Como salvar Dioniso? Zeus corta uma parte (meros) do céu e a entrega a Hera como ‘penhor’ (hómeros), em lugar do primeiro Dioniso. Como o tempo, os homens, devido à semelhança entre méros e meros (coxa), criam o mito da geração de Dioniso da coxa de Zeus. Segundo o poeta, a forma (meros/hómeros) gera o mito, o significante produz novos sentidos (FUNARI, 2001:308).
O vinho causa a possessão do deus, que se manifesta através da manía. Esta possessão faz
com que o deus esteja entre os homens, como reflete Tirésias, no texto euripidiano:
Ele é um demônio mântico: baqueu e demente têm vínculo com mântica. Quando o divino adentra fundo o corpo, faz dizer futuro a quem delira. Da moira de Ares participa: o pânico domina hoplitas, antes de tocarem a lança: isso é a loucura dionisíaca. Verás o deus saltando rochas délficas, sobre dois picos, empunhando o archote, agitando e brandindo o ramo báquico, magno na Hélade. Atenta, Penteu, peço-te: não penses que o poder é dono do homem, tampouco creias – há doença nessa crença! – que saibas algo. Acolhe o deus em Tebas, liba, dionisa-te, coroa-te de hera! Dioniso não impõe moderação
160
à mulher, frente à Cípris; na natura o moderar-se em tudo está presente. (Eurípides. As Bacantes, v. 299-316)
O sábio Tirésias alerta Penteu sobre o que pode acontecer se o jovem rei lutar contra o ritual,
e aconselha este a entrar junto no cortejo, pois a força da loucura dionisíaca é maior que a
lança de um exército hoplita. Alguns autores – como Marcel Detienne (1988) – colocam que
Dioniso era um deus guerreiro, e possuía sim um exército. A diferença é que seu exército
empunhava o tirso, a flauta e o vinho, ao invés de lanças e escudos, mas não era menos
destrutivo.
Penteu retoma novamente a fala, desta vez insultando os velhos Cadmo e Tirésias, e
também ao próprio deus:
À cidade, os demais! Sigam o rastro Desse estrangeiro adamado, porta- -doença nova à mulher, enodoa-leitos. (v. 352-354)
No verso cento e cinqüenta e três, temos duas pistas importantes: a primeira é a palavra
“estrangeiro” – também é traduzida com “alienígena”, mas consideramos esta tradução
inadequada, pois a palavra alienígena certamente não era de conhecimento entre os gregos –
denota um ser de fora daquelas terras, um ser bárbaro. A segunda é a palavra “adamado”105.
Sabemos que quando Dioniso se populariza, no século VI, ele é um homem adulto e rústico.
Nesta peça, escrita no finalzinho do século V, provavelmente o deus já estava com traços
mais joviais e, ao analisar esta palavra da peça, mais efeminado. Dioniso, no período
helenístico, será claramente um efebo, normalmente efeminado – haja vista as imagens do
deus daquele período que chegaram até nós – mas neste final de período clássico os traços já
apareciam. Eurípides, embora retome vários aspectos do antigo Dioniso, em relação à sua
aparência, acreditou ser melhor colocá-lo como era conhecido por seus espectadores. A
acusação de que Dioniso trouxe uma nova doença às mulheres, que agora deixam seus leitos,
é a loucura. Esta nova doença contagia cada vez mais mulheres; é o Dioniso epidêmico de
Marcel Detienne (1988).
No fim deste primeiro episódio, podemos constatar que este é o momento onde
Penteu está mais distante de Dioniso (MOTA, 1998:7); sua recusa em aceitar o culto e seu
veto aos companheiros no palácio faz com que o ódio aflore do corpo do rei. A exaltação ao
105 “Adamado” aqui é uma outra forma de expressar “efeminado”.
161
mundo bárbaro continua a aparecer na peça, na fala do coro:
Pudera eu estar em Chipre, ínsula afrodisíaca, onde habitam Amores fascina-corações; ou em Pafos, carente de intempérie, mas frutífera, por cem bocas que jorram do rio bárbaro; ou na Piéria pluribela, sagrada encosta olímpia, sede musical das Musas (Eurípides. As Bacantes, v. 403-410)
Podemos notar que o mundo bárbaro de que o coro fala – como Chipre, Pafos e Piéria – se
assemelham a uma espécie de paraíso, com sensações causadas por Eros106 e Afrodite,
embaladas pela música das Musas. Temos de ter em mente que Eurípides compôs esta peça
na corte bárbara do rei Arquelau. A insatisfação do tragediógrafo com Atenas – que o
convidou a se retirar – pode ter feito com quem este exaltasse um outro mundo, até então
negado. O mundo bárbaro foi o refúgio de Eurípides, e certamente o Dioniso bárbaro da peça
tem relação com o “momento bárbaro” que o idoso Eurípides estava vivenciando. Desta
forma, o autor sempre ressalta o caráter bondoso do deus com aqueles que aceitam seu culto:
Equânime, ele concede ao rico e ao pobre, o júbilo antimágoa do vinho! Mas odeia quem insiste, à luz do dia e à noite amiga, no estar de mal com a vida. Sábio é manter o coração e a mente longe do cerco de arogantes. O que vulgo, a massa mais depauperada recolhe e acolhe para mim é dádiva! (Eurípides. As Bacantes, v. 421-433)
A exaltação das pessoas simples – sem distinção entre os ricos e os pobres – faz de
Dioniso um deus de todos, e a todos ele oferece sua loucura, conseguida através do álcool.
Contudo, aqueles arrogantes e que não estão preparados para a celebração recebem o ódio do
deus. A total entrega do coro ao deus é perceptível em toda a peça, e representa o poder de
106 Filho de Afrodite; deus do amor. É equivalente ao Cupido romano.
162
Dioniso diante da população e, principalmente, a antipatia desta ao poder do prepotente
Penteu.
Nas palavras de Penteu – após este ter capturado o forasteiro, sem ainda saber que se
tratava de um deus – percebemos a beleza de Dioniso. A alegoria de Dioniso como um
simples e jovem forasteiro – sem se identificar – deixa clara a presença e a importância da
máscara:
1) no personagem que encena de modo duplo, ou seja, é e não é o próprio Dioniso quem fala como deus, pois a fala é do jovem estrangeiro que, no entanto, não anuncia a si mesmo como portador do deus; apresenta-se o próprio deus utilizando-se do pronome na primeira pessoa (...) (GAZOLLA, 2001:95).
Esta beleza também nos remete ao final do período clássico, pois no período arcaico o deus
não era belo:
PENTEU Podem soltar-lhe as mãos, já que caiu na rede; não é uma flecha que me escape lesta. Teu corpo, forasteiro, é escultural, aos olhos das mulheres, por quem chegas. Do pugilato é que não vêm madeixas densas a orlar teu rosto, voluptuosas; cultivas o brancor da tez, avesso aos dardos de Hélio-Sol (amas a sombra). (Eurípides. As Bacantes, v. 451-458)
Tradicionalmente, Eros é o deus que carrega consigo a beleza. Dioniso torna-se um deus belo
tardiamente. Este aspecto ressaltado na peça de Eurípides mostra que o autor realiza uma
mescla de elementos do dionisismo primordial com aspectos do dionisismo de sua época,
inclusive a questão da origem do deus, em um diálogo entre o deus e o rei. Penteu pergunta
aquele estranho forasteiro qual a sua origem:
DIONISO É fácil responder-te, sem vanglória: alguém já te falou do flóreo Tmolo? PENTEU Sim. A cadeia que envolve a urbe Sárdea. DIONISO De lá eu vim; a Lídia é minha pátria.
163
PENTEU E de onde trazes teus mistérios à Hélade? DIONISO Dioniso, filho de Zeus, nisso me instruiu-me. (Eurípides. As Bacantes, v. 461-466)
Dioniso – embora ainda não identificado como divindade – não considera mais a
Grécia sua pátria. Entretanto, digamos mais uma vez que Eurípides segue o mito fundador de
Tebas e o mito do nascimento de Dioniso; desta forma o deus seria tebano. Concordamos
com Trabulsi que, quando se trata da origem do deus, o texto é por vezes ambíguo
(TRABULSI, 2004:158). Acreditamos que o que o autor quis dizer foi que Dioniso se
considera muito mais um bárbaro. Entrando na questão do barbarismo já discutida
anteriormente, Dioniso não se sente bárbaro por não ter nascido em solo helênico, ele se
sente bárbaro por ter aderido a costumes não helênicos; para os gregos é isto que importa.
Embora Eurípides concorde com o mito de seu nascimento, coloca-o como lídio por este ter
aderido a diversos traços lídios, deixando de ser grego para se tornar bárbaro. O elogio que
Dioniso tece aos costumes bárbaros deixa clara esta questão:
DIONISO Só coreografam essa orgia os bárbaros. PENTEU Pois, no pensar, são piores que os helenos DIONISO São melhores: adotam outras normas. PENTEU Celebras ritos diurnos ou noturnos? DIONISO Noturnos sobretudo. A treva é sacra PENTEU Para as mulheres, uma burla sórdida. DIONISO Também de dia o torpe mostra a cara. (Eurípides. As Bacantes, v. 482-506)
Todas estas perguntas que o rei faz ao deus não são uma tentativa de conhecimento
do culto, mas sim uma forma de conhecer o que será combatido: “Pois o que quer saber
164
Penteu com suas perguntas senão a posse dos meios para impor seu palácio, (...)? Perscruta e
esquadrinha de onde veio o deus, como são seus mistérios,(...) recebendo em troca palavras
que para ele não dizem nada (...)” (MOTA, 1998:10). Penteu não aceita os cultos bárbaros,
diz que são piores que os helenos. Já Dioniso diz que são melhores, pois são regidos por
normas diferentes das normas gregas. Esta dicotomia entre o selvagem e o civilizado já há
muito tempo era debatida em Atenas, e estava cada vez mais saliente com a Guerra do
Peloponeso. Dioniso é o deus selvagem, que incomoda os civilizados:
Dioniso faz fugir das cidades, sair das casas, abandonar os filhos, esposos, família, deixar ocupações e trabalhos quotidianos. É celebrado de noite, em plena montanha, nos valados e nos bosques. As suas servas tornam-se selvagens, lidam as serpentes, aleitam, como se fossem suas, as crias dos animais. Com todos os animais, selvagens e domésticos, se encontram em comunhão, estabelecendo com a natureza interia uma nova e alegre familiaridade (VERNANT, 1991:183-184).
Está muito clara a posição de Eurípides em criticar o sistema políade em que viveu.
Duas hipóteses são mais plausíveis: a primeira é pensar que o tragediógrafo possa mesmo ter
se encantando com os costumes bárbaros, quando do seu exílio, e almejou tecer um elogio a
estes costumes. Há correntes de vários especialistas em Antiguidade do século XIX que
colocam que Eurípides, antes cético em relação aos deuses, havia sofrido uma “conversão”
na velhice. Todavia, não podemos afirmar que Eurípides se tornou mesmo um bacante pelo
fato de esta informação ser praticamente impossível de ser comprovada. A segunda hipótese,
e acreditamos que esta é a mais viável de ser explicada, é que Eurípides estivesse desgostoso
com sua pátria Atenas e com aqueles que comandavam a política – tanto é que o
perseguiram. Desta maneira Eurípides está relatando como os gregos – sobretudo os
atenienses – são intolerantes com o diferente.
Há um outro aspecto que deve ser levado em conta. O período em que Eurípides
viveu foi um período de incerteza em sua pátria, Atenas. A peste que afetou uma grande
parte da população, além da derrota na Guerra do Peloponeso, fez com que os atenienses
passassem a questionar e ter incertezas quanto às suas divindades. O barbarismo pode ter
sido elogiado por Eurípides – assim como a inclusão de aspectos bárbaros nesta sua última
peça – como uma forma de exaltar deuses que até então nunca eram vistos pelos atenienses,
assim como retornar a épocas em que a Grécia conhecia seu crescimento e,
conseqüentemente, seu apogeu: “Eurípides, no final da vida, diante de uma Atenas esgotada
165
por mais de duas décadas de guerra contra Esparta, reavalia noções tradicionais da cultura
grega, que remontam a Homero, como prudência e piedade religiosa.” (VIEIRA, 2003:18). O
período chamado de “declínio” deixou sequelas na maioria dos cidadãos de Atenas:
Suas conseqüências foram aprofundadas, do ponto de vista da psicologia individual e coletiva, pela peste (430-426), o que faz do último terço do século V em Atenas uma época de incertezas, de dúvida, de crise de confiança. A religião ateniense era demasiado política para não sofrer estes efeitos, junto com a polis no seu conjunto. Ela deixou de ser capaz de responder às novas necessidades. As fontes literárias concordam com a cerâmica pintada, mostrando o avanço dos cultos estrangeiros durante a guerra e depois dela: (a) instalação do culto da Mãe da montanha Frigia, Cibele; (b) da deusa da trácia Bendis; (c) dos mistérios traço-frígios de Sabazius, que se misturam cada vez mais com Dioniso; (d) os ritos dos “deuses que morrem” Attis e Adônis; (e) os progressos muito rápidos de Esculápio, com suas promessas de cura mágica (...) (TRABULSI, 2004:165).
Continuando na peça, Penteu se irrita com o forasteiro com quem estava dialogando,
e assim o prende, em uma clara tentativa de afirmar seu poder real sobre aquele estrangeiro.
Após prender Dioniso, Penteu diz que irá prender as mulheres e fazê-las retornar aos seus
afazeres domésticos:
PENTEU: Prendei-o nos estábulos eqüinos; que encare assim o breu da escuridão! Pratica lá tua dança! Quanto às cúmplices no cortejo nefasto, ou eu as vendo ou delas faço flâmulas ao tear. Já chega de tam-tans e tamborim! (Eurípides. As Bacantes, v. 509-514)
O poder oficial que Penteu representa o faz agir como um verdadeiro cidadão: quem quer
praticar cultos “estranhos”, que vá fazer escondido, preso em estábulos; e que as mulheres,
esposas de cidadãos, voltem a seus teares no oikos. Está clara a não concordância de
Eurípides com alguns destes costumes, mesmo que ele, no passado, tenha exercido a
cidadania. Eurípides poderia ser caracterizado como um “subversivo”? Acreditamos que é
extremamente complexo utilizar desta palavra para os estudos na Antiguidade. O que
sabemos é que Eurípides criticava alguns costumes atenienses – e pelo visto não agradava,
haja vista o número muito reduzido de vitórias conseguidas nos concursos teatrais.
Apesar disto, este era um cidadão e vivia a cidadania em Atenas. O seu exílio foi algo
166
muito particular: a acusação de impiedade pela assembléia ateniense. Podemos acreditar que
Eurípides foi convidado a se retirar de Atenas por ser subversivo aos costumes. Mas
Eurípides não foi exilado por criticar os costumes em suas peças teatrais, foi exilado por
discordar na assembléia – um fato muito mais grave. Não fosse esta discordância, talvez
Eurípides tivesse morrido em Atenas, escrevendo suas peças, algumas delas críticas ao
sistema político e aos costumes.
Retornemos ao documento. A peça continua com o coro alertando Penteu de que não
deveria prender o forasteiro, e em seguida temos um dos momentos mais importantes da
peça: Dioniso revela seu poder, e para prova-lo, destrói completamente o palácio do rei
Penteu:
DIONISO Ó Sismo augusto, abala os alicerces! CORO Ah! O paço de Penteu logo estremece e se espedaça. Dioniso adentra o paço. Venerai-o! Veneremo-lo Olhai! Por sobre o colunário dançam traves marmóreas! É o deus Rumor quem no interior ulula! DIONISO O raio olho-de-fogo relampeja! Inflama, inflama a casa de Penteu! CORO Ah! O fogaréu, não vês como fulgura em torno à tumba sacra de Semele? É a flama do trovão, o lança-chamas de Zeus que outrora deixou-a, fulminada. (Eurípides. As Bacantes, v. 585-599)
Esta alegoria coloca o poder real como impotente diante do poder divino. Eurípides quase
nunca escreveu peças de cunho estritamente religioso – Ésquilo e Sófocles sempre utilizaram
muito mais a religião em suas peças do que Eurípides – e na maioria de suas tragédias os
deuses não exerciam um papel decisivo. Em As Bacantes temos uma exceção. Eurípides
coloca em Dioniso toda a responsabilidade pelos acontecimentos principais da peça. Até a
167
própria catarse que, embora não tenha sido feita pelo deus, foi realizada por intermédio dele.
Nos próximos versos da peça, entra outro personagem, um mensageiro, que vem
trazer notícias de Citero, o monte onde estava ocorrendo o ritual báquico:
A chegada do mensageiro retoma a técnica da multiperspectivação. A verdade contada e não vista projeta para a palavra a função mediadora entre o palco e a platéia. Nada acontece em palco além da presença figurada da linguagem que fornece para a recepção o campo de referências a ser assumido pela imaginação (MOTA, 1998:12).
Este mensageiro foi testemunha das manifestações das mulheres, enquanto ia cuidar de um
rebanho, e suas descrições são essenciais para compreendermos o que acontecia naquele
ritual:
MENSAGEIRO À grimpa de uma encosta, eu mal tocara a manada, no horário em que Hélio-Sol aquece a cthônia terra com suas setas, e vi, em triplo tíaso, os femininos coros: a um liderava Autônoe; ao outro, Agave, tua mãe; Ino, o derradeiro. Somatizavam sem tensão o sono: em tufos de pinheiro umas pousavam o dorso, outras, em folhas de carvalho reclinavam a fronte recatadas, e não, como dizias, ao som da flauta, ébrias de vinho, lúbricas na selva, buscavam Cípris. Quando ouviu mugir o córneo boi, tua mãe gritou, no centro: “Do corpo remover o sono de Hipnos!” Do olhar, a sonolência foi expulsa. Em pé, se nota o bem composto cosmo: moças, matronas, virgens insubmissas soltavam sobre a espádua a cabeleira, reapertavam os frouxos nós das nébridas e as peles tachetadas iam cingindo com serpentes que lhes lambiam a face. Outras erguiam cabritos, feras crias lupinas, branco leite oferecendo-lhes as que traziam os seios ainda túrgidos, neofilhos renegados, hera à fronte, floridas briônias, folhas de carvalho. Alguém empunha o tirso e o pula à pedra, de onde borbulha, cristalino, o arroio. Arremessam a férula na terra e exsurge a fluxo o vinho – quis o deus. A desejosa do galácteo sorvo,
168
Injetava o chão os próprios dedos, Colhendo o jato lácteo. De seus tirsos De hera destilam doces rios de mel. (Eurípides. As Bacantes, v. 677-711)
As mênades – ou bacantes – estavam descansando, certamente de uma noite de ritual. Mas
quando ouviram barulho, imediatamente despertaram de seu sono e voltaram à manía.
Percebemos vários elementos da natureza agindo em conjunto com as mênades, o que exalta
a idéia do deus cthônico, do vegetal. O leite e o mel estão presentes na fala do mensageiro,
assim como o vinho. Os animais servem como caça para as mênades107; e a caça estava
presente em toda a Grécia, principalmente na parte rural, a chóra. A flauta, o tirso, a hera,
tudo o que é utilizado nos rituais está presente no relato euripidiano.
Tanto mulheres velhas quanto jovens e virgens participavam do ritual, tendo como
elemento comum o fato de serem do sexo feminino. Esta relação entra no que foi discutido
por Marcel Detienne (1987), no verbete Mito/Rito: o ritual agrupa um certo número de
pessoas com uma certa afinidade. As mulheres, que viviam em função do oikos, passam a
viver em função da loucura dionisíaca, trocam a família pela montanha e pelo rito.
O mensageiro continua seu relato:
(...) No horário costumeiro em que brandiam o tirso para o rito, invocaram o deus Rumor, uníssonas. Tudo se dionisava, monte e feras, Nada era estático! Tudo corria! Ao meu lado saltou Agave e eu dei um bote, com o intuito de pegá-la, moita vazia, que o meu corpo ocultara. Sobregritou: “Cadelas minhas, ágeis, esses homens nos caçam! Compareçam, quais hoplitas, vibrando exímios tirsos.” Nossa fuga preserva-nos a vida da dilaceração bacante; à mão nua, atacam novilhas na pastagem. Puderas ver naquelas mãos a vaca: mamas repletas, bipartida, muge! Houve quem o vitelo desmembrasse. Era de ver o lombo e o casco – dupla forquilha – a esmo lançados: gotejava, sangüinolento, um charco dos abetos. (Eurípides. As Bacantes, v. 723-742)
O mensageiro – que na verdade se porta como um pastor – se esconde na montanha e espera
107 Conforme Marcus Mota (1998), este elemento de dilaceração de animais presente na peça chama-se sparagmós, uma violência sacrifical, onde o animal vivo recebe os signos da morte.
169
a momento de invocar Dioniso. Com a loucura, as mênades tornam-se descontroladas e
extremamente violentas, caçando animais e matando cruelmente. O próprio mensageiro teve
de fugir para não ter o mesmo destino das caças. As mulheres, sempre frágeis perante a
cidadania masculina, tornam-se extremamente fortes e perigosas, com a manía provida por
Dioniso.
Penteu fica ao mesmo tempo que irado e extremamente curioso. Irado, pois além de
serem mulheres desrespeitando a polis, eram mulheres de sua própria família, incluindo sua
mãe. Curioso ficou para ver como isto acontecia, como a loucura aparecia manifestada nos
seres do gênero feminino. Esta sensação de tirar proveito através do ver, do contemplar, é
analisada por Vernant:
A irrupção de Dioniso no mundo, a sua presença insólita põem portanto em causa esta visão “normal”, ao mesmo tempo ingênua e segura, na qual Penteu crê poder basear a sua rejeição do deus e todo o seu comportamento – visão que se quer positiva, racional, mas que trai tudo o que comporta de obscuro e de turvo no “voyeurismo” exacerbado do jovem rei, no seu desejo apaixonado, irreprimível (...) de ser espectador (...), de contemplar, nas torpezas nas mênades, precisamente aquilo que ele pretende abominar (...) (VERNANT, 1991:178).
A curiosidade de Penteu é tamanha que este é persuadido por Dioniso a conhecer o culto,
mas para isto o deus deixa claro que Penteu teria de se parecer com uma mulher, pois o culto
era direcionado às mênades e, caso contrário, seria morto por elas:
DIONISO Ah! Nos montes queres vê-las congregadas? PENTEU Exato, nisso empenho o meu tesouro DIONISO Como Eros te enredou no megamor? PENTEU Eu as veria penosamente bêbadas. DIONISO Terias prazer em ver o que te aflige? PENTEU Certo, sentado quieto sob o abeto.
170
DIONISO Com o faro que têm, elas te encontram. PENTEU Disseste-o bem; eu não me ocultarei DIONISO Necessitas de um guia? Estás partindo? PENTEU Vamos, pois desaprovo tua demora. DIONISO Cobre o corpo com túnica de linho. PENTEU O que propões? Sou macho, não me adorno. DIONISO Te matarão, se virem homem lá. PENTEU Correto; és como um sábio de outras eras! DIONISO Nisso, Dioniso foi a nossa musa. PENTEU Como concretizar teus bons conselhos? DIONISO No paço cuidarei de sua toalete. PENTEU Toalete feminina? E eu me decoro? DIONISO Não mais queres fazer-te espectador? PENTEU Em que consistirá minha toalete? DIONISO Peruca longa ao crânio sobreponho-te. PENTEU É tudo ou pensas em outros adornos? DIONISO Peplo bem rente ao chão; à fronte a mitra. PENTEU É tudo, ou acrescentas algo mais?
171
DIONISO Portas o tirso e a nébrida tigrada. PENTEU Não posso me vestir feito mulher! DIONISO Mas sangue correrá num prélio báquico. PENTEU Sim; devo começar pela espionagem (Eurípides. As Bacantes, v. 810-838)
Inicia-se com este diálogo algo que estará presente até o fim da peça: o travestimento. Penteu
critica seu avô Cadmo e o velho Tirésias por vestirem-se como mulher. Um cidadão jamais
deveria comportar-se como uma mulher. Desta forma, estaria se rebaixando a uma das
camadas mais inferiores da sociedade e negando seu papel de cidadão. Uma prática muito
comum em Atenas era a pederastia, ideal educacional pautado pelo amor entre dois homens:
o professor – erasta – e o aluno – erômeno108. Este amor era permitido desde que seguisse a
moral pederástica: poderia haver toque nos órgãos sexuais, fricção e movimentos
intrafemurais, mas não era permitida nenhuma espécie de penetração; o ato de deixar ser
penetrado significaria que um cidadão desceu ao estágio inferior, o de uma mulher. Isto não
quer dizer que não havia gregos que não sentissem vontade de serem penetrados e que
efetivamente o eram; conhecemos a moral pederástica, mas, como toda moral, teria
indivíduos para quebrá-la.
Desta forma, os efeminados eram ridicularizados – tanto na vida cotidiana quanto nas
peças de teatro – e sofriam os piores preconceitos em toda a Ática (SOUSA, 2008:22), pois
eram homens que se assemelhavam às mulheres, não possuindo nenhum direito. Se fosse
provado que um cidadão se comportou como uma mulher no ato sexual e se deixou ser
penetrado, perderia seus direitos e poderia até ser exilado. Um cidadão – e alguém da estirpe
real, como os personagens da peça – jamais se vestiria de mulher se não estivesse tomado
pela loucura dionisíaca. Assim aconteceu com Cadmo e Tirésias e, de certa forma, estava
começando a acontecer com Penteu. Os elementos femininos só eram permitidos aos atores,
quando da encenação de suas peças. Como não havia atrizes, os atores se vestiam de
108 Para saber mais sobre a pederastia ver: SOUSA, Luana Neres de. A pederastia em Atenas no período clássico: relendo as obras de Platão e Aristófanes. Goiânia: Universidade Federal de Goiás; Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia; Departamento de História, 2008. (Dissertação de Mestrado)
172
mulheres e se mascaravam – mais uma importância fundamental da máscara – para
representar a realidade:
Provavelmente, ao andrés cabe todos os afazeres em um teatro grego: atuar, escutar, representar. Mas, com as roupas femininas que leva sobre os ombros tal cidadão ator, com os acessórios muito marcados que, como o grande vestido tradicional, constituem o traje teatral, se verá a destacada manifestação da relação que o teatro mantém o a feminilidade, relação que pode ser revelada por diversos signos, começando pela “androginia” do deus titular Dioniso (LORAUX, 2003:15).
Percebemos um aspecto violento no próprio Dioniso, apontado por René Girard
(1990). Ao mesmo tempo ele é o deus que agrega e que dá oportunidade àqueles que aceitam
seu culto, ele é sádico com aqueles que não o aceitam. Após convencer Penteu, Dioniso
evoca as bacantes:
DIONISO: Mulheres, o homem caiu em nossa rede; até as bacantes vem, mas Dike, a Justa, o mata. À ação, Dioniso-deus presente! Urge puni-lo! Rouba-lhe a razão; Insânia leve infunde: se ajuizado, Não vai querer vestir-se de mulher, Mas quererá, se não tiver bom juízo. Desejo que os tebanos riam do rei: conduzo-o pela polis; fêmeoforme, outrora tão terrível nas ameaças... Enfeitarei Penteu. Que baixe ao Hades ínfero, pelas mãos da própria mãe Dilacerado! Saberá que Zeus gerou à perfeição um deus: Dioniso, entre terribilíssimo e gentil! (Eurípides. As Bacantes, v. 847-861)
Pelo verso oitocentos e cinqüenta e um: “Insânia leve infunde: se ajuizado” podemos notar
que Dioniso inspirou uma “ligeira” loucura em Penteu, que faz com que o rei aceite algumas
exigências do deus. Se concordarmos com a teoria que coloca Eurípides como um escritor
racionalista, podemos afirmar que esta cena possui uma característica negativa, pois Penteu é
manipulado pelo deus, sendo incapaz de perceber o que acontecia à sua volta e a real
situação de perigo em que se encontrava (VIEIRA, 2003:30). É interessante a constatação de
Trajano Vieira quando de seu cotejamento desta parte da tragédia As Bacantes com a Poética
aristotélica:
173
O dramaturgo antecipa de certo modo a conhecida passagem da Poética (1451b), em que Aristóteles, ao defender a superioridade da poesia em relação à história, observa que a segunda “fala do que ocorreu”, enquanto a primeira, “do que poderia ocorrer”. Sem se dar conta do alcance de seu discurso, Penteu cogita da possibilidade de o passado ter sido a invenção poética do presente (VIEIRA, 2003:31).
Nesta cena, temos também a realeza ridicularizada pelo poder dionisíaco.
Provavelmente Eurípides estava interessado em realizar uma crítica àqueles governantes de
Atenas, que o hostilizaram. Percebemos que a ridicularização do rei acontece através de seus
trajes femininos, confirmando nosso argumento apresentado anteriormente.
Dioniso diz que, se Penteu perder o juízo, se vestirá de mulher. E o rei aceita. Deste
modo, Penteu já estava começando a perder a sanidade e se deixar ser apossado pela manía,
pela loucura báquica. A partir do verso novecentos e quinze, temos o momento exato do
travestimento. Dioniso contempla Penteu, vestido em trajes femininos:
Em fêmeos parâmetros, louca báquica, espião da própria mãe, de seu cortejo, és um retrato nítido das Cádmias. PENTEU Afigura-se a mim que o sol dobrou, Tebas também dobrou, cidade sete- -portas, e, guia, tu me pareces touro, os cornos projetando-se do crânio – taurificando ou já eras, antes, fera? DIONISO O deus outrora hostil nos acompanha, aliou-se a nós. Ti vês qual deves ver. PENTEU Como pareço? Tenho o porte de Ino? Tenho a postura maternal de Agave? DIONISO És elas! Quando vejo-te eu as vejo! Mas penteia a melena descomposta, que fixei com esmero sob a mitra. PENTEU No instante e, que me dionisei, no vai e vem lá dentro, foi que eu desgrenhei-a. DIONISO Mas como estou aqui para servir-te, reponho-a em seu lugar. Ergue a cabeça!
174
PENTEU Vai! Me adorna! Me entrego a ti agora! DIONISO Os calcanhares não te cobre a túnica com dobras retas: teu cinto se afrouxa. PENTEU: Também se me afigura, ao pé direito; mas, do outro lado, cai perfeitamente. DIONISO Dirás: “és meu amigo mais querido!”, quando as vês a pensar a contra-lógica. PENTEU Reproduzo fielmente as fêmeas báquicas, O tirso á destra, ou à outra mão portando-o? (Eurípides. As Bacantes, v.915-942)
O primeiro verso “Afigura-se a mim que o sol dobrou” pode ser interpretado como uma
espécie de embriaguês dionisíaca; o rei enxerga dois sóis em sua cidade. Penteu gostaria de
ter o mesmo porte de sua mãe ou sua tia, o porte real feminino. O rei absteve-se de sua
virilidade, própria dos cidadãos, para adequar-se ao culto:
Para participarem na experiência dionisíaca, os homens têm que se afastar de múltiplas maneiras das normas, dos comportamentos habituais, no trajar e nas atitudes. É-lhes necessário abandonar a boa aparência, a dignidade viril na postura, o constante domínio de si que são próprios do seu sexo (VERNANT, 1991:168).
Este elemento de efeminização acontece dentro da própria representação teatral. O ator deve
vestir-se como uma mulher, ainda portando a máscara (VERNANT, 1991:169). Dioniso é o
deus masculino com trajes e cabelos femininos, e transforma em femininos aqueles viris,
iniciando-os no transe báquico. O deus já não é mais aquele homem rústico; agora é o
homem belo e, na medida do possível, temperante. Ele não aparece em manía em nenhum
momento da peça, pelo contrário, sua frieza é tanta que calcula todos os seus movimentos,
inclusive quem serão as pessoas que receberão a loucura como forma de castigo:
Trata-se de um Dioniso “apolíneo”. Nada a ver com o grande macho barbudo e um pouco assustador ao qual estávamos habituados na cerâmica arcaica. Eurípides se inspira na nova imagem dionisíaca e, sem dúvida, contribui fortemente para o seu sucesso, pelo prestígio imediato e
175
prolongado da sua peça (TRABULSI, 2004:160).
Este Dioniso “apolíneo” é perceptível quando da localização urbana: todo teatro – que é um
“templo” a Dioniso – está ao lado de um templo de Apolo. Desta forma, Eurípides não é um
mero sofredor das influências imaginárias do período clássico. Ele também influencia e
auxilia na construção deste imaginário; o Dioniso com traços de Apolo, que nasce no período
clássico e se solidifica no período helênico, obteve uma ajuda de Eurípides109.
Caminhando para a parte final da peça, Dioniso prepara a sua vingança contra o rei
que o negou e a seu culto. Veremos dois momentos da peça onde Dioniso instiga as
mênades, enquanto Penteu sobe morro acima e se acomoda escondido, vestido com trajes
femininos. Na segunda parte – que é narrada pelo mensageiro – o próprio deus delata a
presença do rei às mênades:
DIONISO A prova singular singulariza alguém tão singular: verás inscrita, no urânio-céu, tua glória. Agave e irmãs de sangue, mãos à frente! Trago o moço ao megaembate. Se eu vencer, Rumor, o deus, terá a vitória. Os fatos falam. CORO Ágeis perras da Fúria, ide à montanha onde as Cádmias mantêm o tíaso! Instigai-as contra o imitador de fêmeas na indumentária, enraivecido espião das loucas! Primeiro a mãe o avista olhando de pedra lisa ou de um pináculo, a pela às menades (...) (Eurípides. As Bacantes, v. 971-984) ......................................................... Antes de as ver, as loucas o notaram: praticamente oculto no alto posto (o estrangeiro, a essa altura, não visível), altíssona uma voz ressoou, etérea, (era Dioniso, ao que parece): “Jovens,
109 Mas Trabulsi (2004) alerta que seria errôneo dizer que o Dioniso jovem e efeminado apresentado no teatro seja uma invenção de Eurípides. Ésquilo já havia apresentado Dioniso desta forma e o deus teria sido até zombado na comédia por causa de seus traços. Porém, é com esta peça de Eurípides que acontece uma maior divulgação do deus e, conseqüentemente, dos seus traços.
176
conduzo quem de vós, da orgia mofava, ria dos ritos. A vós cabe a desforra!”( Eurípides. As Bacantes, v. 1075-1081)
O vingativo Dioniso, antes bondoso com aquelas mulheres, que ele julga incompreendidas,
parte para o ataque, castigando o rei que zombou de seu culto. O deus que provocou a
igualdade entre os seres também é o responsável pela distinção entre os que o aceitam e os
que não o aceitam:
Inicialmente pacífica, a não-diferença dionisíaca desliza rapidamente para uma indiferenciação violenta particularmente intensa. A abolição da diferença sexual, que aparece na bacanal ritual como uma festa do amor e da fraternidade, transforma-se em antagonismo na ação trágica (GIRARD, 1990:163).
Notamos que Eurípides, além de ridicularizar o poder oficial – travestindo-o de
mulher – agora atesta a fraqueza deste diante do poder divino. A seguir, o mensageiro
continua relatando o momento de Penteu na montanha, e podemos ver as indagações
propostas por René Girard (1990); um momento de extrema violência concedido pelas
mênades, que se encontravam possuídas pela loucura de Dioniso:
Sentado no alto, do alto precipita-se Penteu, multiplicando suas lamúrias ao cair, do seu quase desastre cônscio. Sacerdotisa da matança, a mãe o ataque principia. Tirando a mitra – pois se o reconhecera, não matava-o a desditosa Agave –, diz, e toca-lhe a face: “Mãe, sou eu, Penteu, teu filho, geraste-me no paço com o Ofídio- -Equíon. Deixa eu viver! Por erros meus, não imoles a mim, que sou teu filho!” Ela espuma e espiralada, contorcendo, pupilas, ignorando o que ignorar não deveria: dionísia, não o ouvia. Agarra-o firme pelo braço esquerdo e, impondo os pés no flanco do infeliz, sem mais esforço, seu úmero arrancou – facilidade ás mãos o deus lhe dera. Ino labora do outro lado, rompe a carne. Autônoe, todo o bando báquico acomete em uníssono clamor. Urrava enquanto a vida lhe soprou; ululavam. Alguém portava um braço, outra, com bota, os pés. Costelas nuas
177
por dilaceração. Sangue nas mãos, a carne dele jogavam feito bola. O corpo desmembrado jaz em ásperas pedras, no denso matagal do bosque, duro de achar. A mísera cabeça, por mero acaso quem a leva é a mãe, infixa à cúspide do tirso (aos olhos dela é de um leão montês); pelo Citero vai, restam as irmãs no coro louco. No gáudio do butim funesto, Agave cruza os muros e sobreclama a Baco, sócio na caça e na carnificina bélico ufana. Galardão: o pranto! (Eurípides. As Bacantes, v. 1112-1147)
Mesmo o filho gritando para a mãe que se tratava de sua cria, Agave parece não ouvir
o jovem filho. Os versos seguintes descrevem o aspecto de Agave, espumando e contorcendo
as pupilas. Fica clara a possessão. A dionísia – como aparece referenciado na própria peça –
Agave está tomada pela manía, e nada do mundo real faz sentido a ela. A morte de Penteu é
descrita com riqueza de detalhes por Eurípides: o rei tem seus membros dilacerados pelas
bacantes, que possuíam uma força sobre-humana, concedida por Dioniso. Tem seu corpo
desmembrado, cada membro está na mão de uma bacante, que jogavam sua carne uma para
outra. De acordo com Rachel Gazolla, a morte de Penteu por despedaçamento seria uma
alusão que Eurípides quis fazer à antiqüíssima lenda do primeiro Dioniso – Zagreus – que
também morre despedaçado (GAZOLLA, 2001:95). Este é um indício que vem somar àquele
dos versos 291-298, do nascimento de Zagreus. Se concordarmos com as versões destes
autores, então poderemos afirmar que esta primeira passagem deste Dioniso longínquo não
estava completamente perdida.
A parte sacrifical existia em quase todos os cultos e festas divinizadas. É a violência
fazendo parte do sagrado. As tragédias foram vistas como um exemplo de “festas que
acabam mal” (GIRARD, 1990:160). Esta violência está presente tanto nos momentos de
sacrifícios de animais, muito comuns em ritos cthônicos, até a morte de algum ser humano,
como é o caso da peça em questão.
As mênades não reconhecem que a carne que jogam é carne humana. Agave tem a
cabeça do ser – que ela julga ser um leão – e sai pela cidade em comemoração à nova caça:
AGAVE Portamos da montanha ao paço, recém-cortado, um cacho, fera egrégia.
178
CORO Eu vejo. Ingressa em nossa festa! AGAVE Sem rede o capturei, filhote de leão selvático, conforme o vês. (Eurípides. As Bacantes, v. 1169-1775)
A caça – como já foi dito por nós – é um elemento da ruralidade, e um elemento também do
mundo selvagem, da floresta, dos campos não arados. No ritual báquico, os seres humanos
fazem aflorar os seus sentimentos mais primitivos. Um animal dilacerado pelas mãos de
mulheres coloca em evidência as atitudes mais animalescas do ser-humano, assim como as
práticas sexuais que ocorriam nos rituais. Até o assassinato acontece nos usos dionisíacos,
tamanha é a importância dos elementos ritualísticos:
Reconhece-se nele o sparagmós, cujos traços distintivos são idênticos aos vários sacrifícios descritos (...): 1. Todas as Bacantes participam da imolação. Encontramos aqui a exigência de unanimidade que ocupa um lugar de importância em numerosos rituais; 2. nenhuma arma é utilizada: a vítima é despedaçada com as mãos nuas (GIRARD, 1990:167).
Podemos interpretar que as mênades representariam a multidão, o povo, e Penteu o poder.
Dioniso assim demonstra o poder das multidões sobre o poder oficial, que não permite a
manifestação da população.
Devemos deixar claro que Eurípides retoma um ritual que ele mesmo provavelmente
não presenciou. No século V, estes rituais – como já foi colocado – já estavam
completamente transformados, sobretudo em Atenas, em festas políades, promovidas pelo
Estado. Estes rituais, não temos como datar exatamente de quando são. Contudo, é certo que
são de um momento no qual a cidade não estava tão grande e urbanizada, e os ambientes
rural e urbano ainda não estavam completamente claros e difundidos. Podemos acreditar que
no período homérico estes ritos poderiam ser mais comuns, já que o ambiente rural se
constituía como quase a totalidade do território grego; o perímetro urbano seria somente a
região dos palácios, dentro das muralhas, cercado por uma infinidade de terra – a chóra –
com moradores de costumes rurais.
Na parte final na peça, Agave, de volta ao destruído palácio, mostra a caça – na
verdade a cabeça de seu filho – ao seu pai Cadmo, que tenta trazer de volta a lucidez em sua
filha, mas os esforços são em vão. Cadmo, então, vai até a montanha e recolhe os restos
179
mortais de Penteu. Agave e as outras mênades saem do transe dionisíaco e percebem o que
fizeram:
CADMO De quem é a fronte que entre os braços trazes? AGAVE De um leão, tal qual diziam-me as caçadoras. CADMO Repara bem. Não custa examiná-la. AGAVE Oh! O que vejo? Nas mãos carrego o quê? CADMO Fixa-te bem e o saberás melhor. AGAVE Oh! Vejo: dor imensa, desventura! CADMO A ti parece um ícone leonino? AGAVE Não! Porto – ó dor! – o crânio de Penteu. CADMO Pranteei-o, antes que tu o reconheceras. AGAVE Quem o matou? Por que o tenho nas mãos? CADMO Oh, a destempo, é triste o desvelar! AGAVE Diz! Do que há de vir, dói-me o coração. CADMO Mataste-o tu, mais tuas irmãs de sangue. AGAVE Em que lugar morreu? Em casa? Como? CADMO Onde a matilha estraçalhara Actéon. AGAVE Por que foi ao Citero esse infeliz?
180
CADMO Escarnecia do deus, dos seus baqueus. AGAVE Mas nós, como ganhamos tais paragens? CADMO Loucura; a polis toda dionisou-se. AGAVE Dioniso nos destruiu, entendo agora. (Eurípides. As Bacantes, v. 1277-1296)
O castigo de Dioniso se concretizou. Além do assassínio de Penteu, o deus pode castigar
toda a estirpe real tebana, com a tragédia de a própria mãe matar o filho. Nossas duas últimas
citações da peça tratam, consecutivamente, do lamento de Cadmo e do arrependimento de
Agave, por ter recusado o deus, e de seu exílio da cidade. É neste momento que temos a
catarse, a redenção e o arrependimento de Agave por não ter aceitado Dioniso:
AGAVE Penteu participou da minha insânia? CADMO A vós ele igualou-se, adverso ao deus, que a todos nós reuniu num só castigo, a vós e a ele, o palácio me aruinando, e a mim, privado de um varão na estirpe. O fruto do teu ventre agora vejo morto, o pobre, tão torpe e tristemente! Mantinhas o palácio, em ti a luz, filho de minha filha, todos viam. Ninguém me maltratava, um velho, em face a ti, o rei: fazias tremer a polis, penalizavas com o aval de Dike. Do reino, agora banem-me sem honra, a Cadmo, magno: a raça dos tebanos semeei; que bela seara eu colho agora! Ó mais caro dos homens, mesmo ausente, a mais ninguém devoto apreço idêntico! Não mais me afagarás a barba com a mão, nem, me abraçando, me dirás: “meu avô”, perguntando: “quem te ofende injustamente? Quem, mesquinho, aflige-te? Fala-me, ó pai, que o injusto há de sofrer!” Sou desgraçado, és miserável qual tua própria mãe, Agave, e suas irmãs! Se alguém pretende sobrepor-se aos numes, que atende à morte dele, creia nos deuses! (Eurípides. As Bacantes, v. 1301-1326)
181
....................................................................... AGAVE E eu, sem tua companhia, ó pai, me exilo. CADMO Por que as mãos, infeliz, me circunlanças Qual cisne ao pobre pássaro grisalho? AGAVE Êxul, que direção eu vou tomar? CADMO Não sei, teu pai tem pouca serventia. AGAVE Adeus, palácio, adeus, cidade ancestre, vos deixo à contra-corte, eu, fugitiva do tálamo. CADMO Busca Aristeu no campo. AGAVE Por ti lamento, pai. CADMO Choro por ti, por tuas irmãs também. (Eurípides. As Bacantes, v. 1364-1373)
A tristeza e o momento de dor fazem com que estes personagens reavaliem suas posições e
entrem em um momento de reflexão; reflexão que faz com que Cadmo e Agave se decidam
pelo exílio. A catarse é exatamente a aproximação do ser humano com seus sentimentos mais
doloridos e ocultos. O auto-exílio significa a redenção e o início de um momento de
purificação das emoções:
Lembremos que a palavra kátharsis significa, rigorosamente, limpeza – de katharós, limpo, puro, no sentido do que não está misturado a, como o joio já separado do trigo. É purificação necessário devido a contágio impuro, a algo que se misturou ao que não devia ser misturado – o sagrado com o profano, por exemplo (GAZOLLA, 2001:41).
A peça tem seu fim com este exílio da estirpe real tebana. Dioniso toma a cidade para
ele e para o seu culto. Tebas agora é toda de Dioniso; a cidade de seu nascimento agora é
sua. A vingança do deus está completa. É importante exaltarmos um caráter estritamente
182
“psicológico” do Dioniso euripidiano. Como já foi colocado por nós, Dioniso sempre foi
perseguido, principalmente por Hera, mas também por outros reis – como Licurgo, que
expulsa o ainda jovem Dioniso de seu reino – e deuses; Dioniso nunca sentiu-se querido, e
assim cresceu. Era um deus sem o respeito que um deus merecia. Quando chega à sua terra
natal, seus próprios “parentes” o hostilizam, causando assim a ira do deus. Dioniso revive
um trauma quando chega a Tebas: o trauma de nunca ter sido realmente aceito pelo seu
povo.
A realidade que Eurípides viveu era diferente desta descrita em Tebas. O
tragediógrafo passou sua vida na Atenas democrática, no qual as festas dionisíacas já faziam
parte da oficialidade:
Acolhendo Dioniso e celebrando todos os anos a sua união com ele por intermédio da rainha, a cidade de Atenas faz pois o contrário do que Eurípides descreve nas Bacantes: com efeito, em Tebas, todas as mulheres da família real se recusam a honrar Dioniso que vem para ser reconhecido, não como patrono de uma comunidade religiosa isolada, do grupo restrito de uma tíase, mas como deus de toda a cidade (...) (VERNANT, 1991:165).
A posição que Dioniso reivindica não é a de um deus de uma seita – como Adônis ou a
antiga Cibele; é o de deus da cidade, ele não se contenta com um secto de seguidores, quer a
cidade toda integrada em seu culto e em suas festas. Na peça, encontramos duas forças
antagônicas que estão em constante conflito: a realeza e a oficialidade de Penteu contra o
devaneio e a manía de Dioniso. Desta forma, o episódio narrado em As Bacantes configura-
se como um conjunto de causas dialéticas, que se contrapõem para formar uma síntese do
momento dionisíaco:
As Bacantes de Eurípides vivem de um conflito entre forças irredutíveis, de que Dioniso e Penteu são a face concreta. Por trás das duas figuras instala-se a antítese de diversos pressupostos: de divino e humano, de natural e social, de racional e emocional, de feminino e masculino, de grego e bárbaro (SILVA, 2007:11).
Entretanto, as forças não são iguais. Eurípides deixa claro que o poder divino é maior
que o poder político humano. A igualdade que o deus parece promover é aparente: “Entre a
onipotência de Dioniso e a fraqueza culpada de Penteu, nunca parece ter havido igualdade. A
diferença que vence vem recobrir a simetria trágica.” (GIRARD, 1990:165). Encerramos este
último tópico com uma fala de Aristóteles, presente na obra Poética, que na verdade é uma
183
defesa a Eurípides, que tanto sofreu críticas em seu próprio tempo:
Assim se equivocam também quem critica Eurípides por proceder assim e porque muitas de suas tragédias terminam em desgraça. Porém, isto é que é correto, como se disse. Como indício notório teremos com o feito de que, nas encenações e nos concursos, tais tragédias, quando são bem representadas, se manifestam como as mais trágicas, e Eurípides, ainda que não disponha bem das demais partes, é, certamente, o mais trágico dos poetas. (Aristóteles. Poética, 53a23)
O tragediógrafo, de acordo com o filósofo, une o medo com o belo, a boa sorte com a má
sorte (SIQUEIRA, 2008:23), e esta sensibilidade fascina Aristóteles. Embora este discorde
da maioria dos “estilos” trágicos de Eurípides, concede ao autor o título de “mais trágico dos
poetas”.
Com isto, podemos concluir que a peça As Bacantes constituí-se como um
documento peculiar, pois não demonstra as imagens de Dioniso somente no momento em
que estava sendo escrita; Eurípides passa por vários momentos anteriores do dionisismo,
retomando lendas mais antigas e até tradições orais para compor sua digressão acerca do
culto ao deus. O belo e jovem efebo – outrora selvagem – é também o forte e violento deus,
que sabe assumir o seu papel de divindade.
184
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A idéia primeira desta pesquisa era compreender como Eurípides e a tragédia As
Bacantes retrataram Dioniso no período clássico. Porém, com as leituras e o contato com
outras fontes, nossa pesquisa foi expandida. A intenção passou a ser compreender como as
imagens dionisíacas foram se alterando ao longo da história políade ateniense. Contudo, o
trabalho ainda estava para ser expandido. Com o contato com as fontes iconográficas, nos
deparamos com peculiaridades – como a transformação na imagem do deus nos vasos– que
nos levaram a abordar outros assuntos nos quais até então não tínhamos pensado.
A pesquisa, que antes iria ser realizada com um documento, um autor e um momento,
se transformou amplamente, abarcando aspectos que acabaram por enriquecer o trabalho e
transformaram-no em um verdadeiro estudo sobre o dionisismo. Compreender como Dioniso
configurava-se – ou não – no período homérico, para aí entender que foi durante as tiranias
que esta manifestação religiosa ganhou força dentro das fontes – escritas ou iconográficas –
nos fez concluir que o poder político – e também econômico – foi imprescindível para que a
população conhecesse e aceitasse este culto antes misterioso.
É claro que as manifestações populares independem do que o poder oficial iria
decidir, mas não podemos negar que este influencia e muito na participação e manifestação
das multidões. O culto, que pouco era presenciado dentro dos aglomerados urbanos no
período homérico, passou a ser ovacionado pelos habitantes da polis no período clássico.
Desta forma, não podemos descentralizar as decisões que aconteciam no sistema políade do
poder político, embora muitos colocariam que esta é uma leitura tradicional acerca da Grécia
antiga.
Também é óbvio que Dioniso existia tanto como divindade como culto antes das
tiranias. Discutimos os termos representação e imaginário exatamente para elucidar que,
independente das relações de poder que ocorrem de cima para baixo, as manifestações
psicológicas sempre acontecerão com os indivíduos. O que os governantes realizaram foi
uma padronização, tanto da divindade como de seu culto. O deus que antes era livre, sem
denominações, passa a ser o deus do vinho, da fertilidade e do teatro. Dioniso como deus do
teatro é uma construção do poder. Constitui-se como uma forma de engessamento das
manifestações primordiais dos cidadãos. O ritual agora acontecia perto dos olhos dos
governantes e dos princípios que regiam a sociedade políade. O misterioso culto retratado
por Eurípides – que por vezes incitava até medo – agora não tem nada de proibido; quase
185
tudo é permitido dentro dos padrões da polis.
No período homérico, vimos que a ausência do deus também nos diz muito sobre sua
participação na religiosidade daquele período. Confirmamos que o deus já era conhecido,
haja vista as passagens envolvendo seu nome na Ilíada e na Odisséia, mas pouca
participação possuía em um período onde os costumes aristocratas de poucos predominavam,
mesmo tendo a grande maioria da população vivendo nos campos. Contudo, também não
podemos dizer que o culto ao deus não ocorria nesta época, pelo contrário. Como a maioria
da população era ruralizada, é quase certo de que o deus possuía grande popularidade entre a
maioria das pessoas.
Entretanto, os detentores da escrita e das produções intelectuais no período homérico
eram homens abastados da elite, que reproduziam o pensamento elitista de seus pares. Não
podemos afirmar que a ausência quase total de Dioniso dos documentos escritos e a ausência
total do deus nas imagens de cerâmica significavam uma ausência do deus da vida da
população grega. O que podemos afirmar é que a difusão do dionisismo pouco aconteceu
neste período devido à aristocracia e sua empatia maior com os deuses altivos e poderosos.
Zeus e Poseidon diziam muito mais sobre esta elite do que o rústico Dioniso.
O Hino Homérico a Dioniso, embora dificilmente tenha sido redigido neste período,
mostra um Dioniso forte e vingativo, assim como uma pessoa bela e com características
joviais. Este Hino mostra a ganância de marinheiros que, pensando em ter raptado o filho de
algum rei, e pretendendo exigir dinheiro como resgate, prendem o deus Dioniso, que mostra
toda a sua fúria de deus. Esta fúria também fica clara em um outro documento, a peça As
Bacantes.
Já no período arcaico, o dionisismo conheceu suas maiores transformações. A
manifestação religiosa antes pouco vista e praticamente não registrada agora tomar forma de
festa dentro dos muros da polis. Pisístrato e sua tirania, com o intuito de aproximar as
populações menos favorecidas – como as campestres – para dar uma legitimidade maior ao
seu governo, oficializa o culto dionisíaco e coloca-o no calendário oficial de Atenas. As
obras Histórias, de autoria do historiador Heródoto, e Constituição de Atenas, escrita pelo
filósofo Aristóteles, cada uma a seu modo, retratam este período com certa clareza. A frágil e
conturbada política de Atenas faz com que governantes tenham que se utilizar de artimanhas
para se manterem no poder. Dioniso foi mais uma destas artimanhas.
Destarte, esta inserção do culto ao deus, que ocorreu em forma das festas, também fez
com que este mesmo culto perdesse elementos primordiais. Agora o transe, a selvageria, a
186
embriaguês descontrolada não eram mais tão característicos nestas festas. Muito mais
importante era a procissão da falofolia ou os concursos teatrais, estes um caso a parte. Mas o
governo tirânico também fez Dioniso aparecer como imagem. A partir do século VI, os
primeiros vasos representando Dioniso são confeccionados pelos pintores. Sófilos e Kleitias
iniciam uma tradição que vai continuar até o fim do período helenístico – ou poderíamos
dizer também até o fim da própria civilização grega. A representação de Dioniso passa a ser
corriqueira em várias cerâmicas e também em afrescos. Estas representações nos vasos vão
ser maiores durante o período clássico, e vão transformando as caracterísitcas do deus, quer
por questões políticas e sociais, quer por questões ideológicas de cada pintor.
O período clássico, conhecido pela excelência democrática, também foi o período da
excelência dionisíaca. O apogeu do teatro ateniense – tendo em Ésquilo, Sófocles e Eurípides
os principais expoentes – fez com que Dioniso se tornasse o deus primordial do espetáculo.
O teatro era um verdadeiro templo a Dioniso, e as representações teatrais tinham como
essência uma ritualística que remetia ao culto ao deus. Quando se estava fazendo teatro –
seja escrevendo ou representando – estava-se cultuando Dioniso. É neste século V que foi
composta uma das principais fontes que relatam Dioniso e seu ritual: a peça As Bacantes,
escrita por Eurípides.
A peça justifica o título de nosso trabalho; o Dioniso arcaico, sempre ruralizado,
torna-se o efeminado do período clássico. Mas o Dioniso de As Bacantes não é só
efeminado; ele também é selvagem, a medida que não aceita aqueles que vão contra seu
culto e seus novos costumes. Esta peça se assemelha em alguns momentos com o Hino
Homérico a Dioniso: ao mesmo tempo que a beleza e a jovialidade de Dioniso encanta quem
se depara com sua figura, também sofre aquele que incita a ira do deus.
No Hino Homérico – de autor, local e data desconhecidos – os marinheiros, que
ficam impressionados com o jovem, sentem a fúria do deus. Aprisionado ao mastro do navio,
Dionsio faz nascer parreiras de uvas por toda a nau e acaba por transformar os marinheiros
em golfinhos, como castigo por terem prendido um deus. Mas Dioniso é bondoso com o
piloto, que desde o início insistia para que não prendessem o jóvem. No texto trágico As
Bacantes, Dioniso aparece em sua cidade natal Tebas, após uma longa estada na Ásia.
Adorado por um grupo de mulheres asiáticas, as mênades – ou ainda, bacantes – Dioniso
adentra na polis e logo sente uma resistência de seu culto e de sua própria imagem por parte
de alguns integrantes da realeza tebana.
Com isto, o deus faz com que as mulheres da corte saíssem pelos montes ao redor de
187
Tebas, em loucura – manía – cultuando o “novo deus”. Nem o fundador de Tebas, Cadmo,
escapa da loucura dionisíaca. Travestido de mulher, ele e o adivinho Tirésias também
tornam-se bacantes. Porém Penteu, rei de Tebas, passa a refutar este culto e a contestar
Dioniso. À semelhança do Hino Homérico, o deus também é acorrentado e é também neste
momento que mostra sua fúria. O palácio de Penteu é destruído, e como castigo o deus insere
o rei em um transe dionisíaco, fazendo-o travestir-se como mulher – o que causou grande
dano a imagem real – e ir até o local de culto ao deus, onde não era permitido a homens
estar. O defecho da história é a morte de Penteu, esquartejado por sua própria mãe e suas
tias, que se encontravam em manía dionisíaca e não possuíam discernimento sobre suas
ações. O rei e toda a família real tebana que maltrataram Dioniso foram castigados pelo deus,
assim como os marinheiros do Hino Homérico.
Estas constatações de que os dois documentos são semelhantes não significa que
acreditamos que possam ter sido escritos pelo mesmo autor, ou um ter influenciado a escrita
do outro, mesmo que esta segunda hipótese possa até ser plausível. Provavelmente nunca
conseguiremos comprovar que isto aconteceu. O que estamos tentando colocar nestas últimas
linhas do trabalho é que as caracterísitcas de Dioniso, embora tenham se modificado
considerávelmente nestes três século que recortamos para analisar nesta dissertação,
conservou algumas caracterísiticas que o acompanharam em toda a sua trajetória helênica.
Acreditamos que as caracterísitcas de selvagem a efeminado, ou de selvagem e
efeminado, são, sem dúvidas, as mais marcantes. O selvagem Dioniso do período homérico,
que teve de continuar selvagem no início do período arcaico, para que as camadas
campestres se sentissem contemplados pelo governo tirânico, era rústico e beberrão. Com
uma longa barba e correndo em festejos, este deus selvagem foi, por muito tempo, o deus da
simplicidade camponesa e da “brutalidade” rural. Já o Dioniso das imagens mais próximad
do período clássico mostram, se não um Dioniso asiático, ao menos uma divindade com
caracterísitcas orientais. O deus que antes sempre estava de pé agora senta para receber
adorações de uma mênade ou para conversar durante um simpósio. A barba encolhe, assim
como sua idade; o velho rústico torna-se o jovem altivo, acusado de ser adamado por parte
do rei de Tebas.
Entretanto Dioniso também possui as duas características em uma só. Ao mesmo
tempo em que é o jovem temperante, que dança junto com mulheres em um culto embalado
por flautas, é o velho rústico, que se enfurece com aqueles que não o aceitam, fazendo assim
com que apareça seu lado mais primitivo e, por que não, mais antigo. O selvagem e o
188
efeminado se confundem neste deus. Estas ambigüidades mostram uma fraqueza e uma
força; uma vontade de ser o que é novo sem perder o primordialmente antigo. As angustias
de alguém que é selvagem e efeminado aparecem por meio do temor que esta divindade tem
de não ser aceito. Não há melhor representação do ser humano do que este deus.
189
BIBLIOGRAFIA
A) DOCUMENTAÇÃO TEXTUAL
ARISTÓTELES. A Constituição de Atenas/Athenaíon Politeía. Trad. Francisco Murari Pires.
São Paulo: Hucitec, 1995 [edição bilíngüe português – grego].
____________. Poética. Trad. Eilhard Schlesinger. Buenos Aires: Emecé, 1952.
ARISTOTE. Poétique. Trad. J. Hardy. Paris: Les Belles Lettres, 2002. [edição bilíngüe
francês – grego].
EURÍPIDES. As Bacantes/Bakxai. Trad. Trajano Vieira. São Paulo: Perspectiva, 2003.
[edição bilíngüe português – grego].
__________. As Bacantes. Trad. Eudoro de Souza. São Paulo: Abril Cultural, 1976.
HERÓDOTO. Histórias. Trad. Mario da Gama Kury. Brasília: Ed. UNB, 1988.
HERODOTE. Histoires: index analytique. Trad. Ph. – E. Legrand. Paris: Les Belles Lettres,
2003 [edição bilíngüe francês – grego]
HOMERO. Ilíada. Trad. Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.
_________. Iliade. Trad. Paul Mazon. Paris: Les Belles Lettres, 2002. [edição bilíngüe
francês – grego]
_________. Odisséia. Trad. Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.
_________. Odyssee. Trad. Paul Mazon. Paris: Les Belles Lettres, 2002 [edição bilíngüe
francês – grego]
B) OBRAS DE REFERÊCIA
GRIMAL, Pierre. Dicionário de Mitologia Grega e Romana. Rio de Janeiro: Bertrand, 2000.
STAVROPOULOS, D. N. Oxford English-Greek Dictionary. Oxford: Oxford – USA II,
2008.
C) OBRAS GERAIS
ALBORNOZ, Suzana. “Os ideais morais segundo Ernst Bloch – a união de Dioniso e
Apolo”. Humanas. Porto Alegre. 28, n°: 2, p. 177-200, 2006.
ANDRADE, Marta Mega de. A Vida Comum: espaço, cotidiano e cidade na Atenas
190
Clássica. Rio de Janeiro: DP & A, 2002.
________________________. “Jean-Pierre Vernant à Vizinhança de Marcel Mauss”. Rio de
Janeiro: Mauad Editora; ano XIII, 2007, p. 238-256.
BACELAR, Aghata. “A Representação de Sólon nas Histórias.” In: Revista do Laboratório
de História Antiga. Rio de Janeiro.
BAGG, Robert. “The Bakkhai by Eurípides”. Theatre Journal. Baltimore. 31, n°: 3, 1979, p.
293-438.
BALANDIER, Georges. O Contorno: poder e modernidade. Rio de Janeiro: Bertrand, 1997.
___________________. O Dédalo: para finalizar o século XX. Rio de Janeiro: Bertrand,
1999.
BAPTISTA, Lyvia Vasconcelos. Procópio e a Reapropriação do Modelo Tucidideano: a
representação da peste na narrativa histórica (VI século d.C.). Goiânia: Universidade
Federal de Goiás, Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de História,
2008. (Dissertação de Mestrado)
BARBO, Daniel. O Triunfo do Falo: homoerotismo, dominação, ética e política na Atenas
Clássica. Rio de Janeiro: Editora E – papers, 2008.
BARRERA, J. C. Bermejo e PLATAS, F. Diez. Lecturas del mito griego. Madrid: Akal,
2002.
BARRIVIERA, Alessandro. Poética de Aristóteles – tradução e notas. Campinas:
Universidade Estadual de Campinas; Instituto de Estudos da Linguagem; Departamento de
Lingüística, 2006. (Dissertação de Mestrado)
BELEBONI, Renata Cardoso. A originalidade do olhar de Jean-Pierre Vernant sobre a
Grécia: diálogos, inovações e atualidade. Campinas: Universidade Estadual de Campinas;
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas; Departamento de História, 2001. (Dissertação de
Mestrado)
_______________________. “O mito na perspectiva de Jean-Pierre Vernant.” In: Boletim do
CPA. Campinas, n° 10, 2000, p. 69-75
BENCHIMOL, Márcio. Apolo e Dionísio: arte, filosofia e crítica da cultura no primeiro
Nietzsche. São Paulo: Annablume, 2002.
BÉRARD, Claude. Anodoi: essai sur l’imagerie des passages chthoniens. Roma: Institut
Suisse de Rome, 1974.
BIGNOTO, Newton. O Tirano e a Cidade. São Paulo: Discurso, 1998.
BOEDER, Deborah e RAAFLAUB, Kurt A. Democracy, Empire and the Arts in Fifth-
191
Century Athens. Harvard: Harvard University Press, 1998.
BOEGEHOLD, Alan L. e SCAFURO, Adele C. Athenian Identity and Civic Ideology.
Baltimore: The Johns Hopkins Press, 1994.
BRANDÃO, Junito de Souza. Teatro Grego: tragédia e comédia. Petrópolis: Editora Vozes,
1985.
BRAUDEL, Fernand. História e Ciências Sociais. Lisboa: Presença, 1976.
BROCK, Roger e HODKINSON, Stephen. Alternatives to Athens: varieties of political
organization and community in ancient Greece. Oxford: Oxford University Press, 2000.
BROWN, Truesdell. “Herodotus and His Profession”. In: The American Historical Review.
Washington. 59, n°: 4, 1954, p. 829-1115.
BURKERT, Walter. A Criação do Sagrado. Lisboa: Setenta, 1996.
_______________. Religião Grega na Época Clássica e Arcaica. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1993.
CARDOSO, Ciro Flamarion S. A Cidade-Estado Antiga. São Paulo: Ática, 1987.
CARPENTER, Thomas H. Art and Myth in Ancient Greece. Londres: Thames and Hudson,
1991.
_____________________. Dionysian Imagery in Archaic Greek Art: its development in
black – figure vase painting. Oxford: Clarendon Press, 1986.
CASSIRER, Ernest. O Mito do Estado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1976.
CATROGA, Fernando. “Memória e História”. In: PESAVENTO, Sandra J. (org.).
Fronteiras do Milênio. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2001, p. 43-69.
CHARTIER, Roger. A Beira da Falésia: a história entre certezas e inquietudes. Porto
Alegre: Ed. UFRGS, 2002.
CHASIN, Milney. Política, limite e mediania em Aristóteles. São Paulo: Universidade de
São Paulo; Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia; Departamento de História, 2007
(Tese de Doutorado)
CONDILO, Camila da Silva. “Aspectos da tirania na época arcaica grega (séculos VIII – VI
a.C.): uma perspectiva acerca de Atenas”. Ensaios de História. Franca: Ed. Unesp, v. 9, p.
11-23, 2004.
_______________________. Heródoto, as tiranias e o pensamento político nas Histórias.
São Paulo: Universidade de São Paulo; Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas;
Departamento de História, 2008. (Dissertação de Mestrado)
COTTERILL, H. B. Ancient Greece: Myth & History. New Lanark: Geddes & Grosset,
192
2004.
DETIENNE, Marcel. A Escrita de Orfeu. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991.
________________. A Invenção da Mitologia. Brasília: Ed. UnB, 1998.
________________. Comparar o Incomparável. São Paulo: Idéias & Letras, 2004.
________________. Dioniso a Céu Aberto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
________________. Dionysos mis à mort. Paris: Gallimard, 1998.
________________. "Mito/rito". In: Enciclopédia Einaudi: Mytho/Logos - Sagrado/Profano.
Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, v. 12, p. 58-74, 1987.
________________. Os Gregos e Nós: uma antropologia comparada da Grécia antiga. São
Paulo: Loyola, 2008.
________________. Os Mestres da Verdade na Grécia Arcaica. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1988.
________________ e SISSA, Giulia. Os Deuses Gregos. São Paulo: Companhia das Letras,
1990.
DODDS, E. R. “Maenadism in the Bacchae”. The Harvard Theological Review. v. 33, n: 3,
p. 155-176, 1940
___________. Os Gregos e o Irracional. São Paulo: Gradiva, 1995.
DOSSE, François. História do Estruturalismo, vol. I: o campo do signo (1945 – 1966).
Bauru: Ed. USC, 2007.
______________. História do Estruturalismo, vol. II: o canto do cisne (1945 – 1966).
Bauru: Ed. USC, 2007.
DURAND, Gilbert. O Imaginário: ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem. São
Paulo: Difel, 1999.
ELIAS, Norbert. Os Estabelecidos e os Outsiders: sociologia das relações de poder a partir
de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
ELSTER, Jon. Peças e Engrenagens das Ciências Sociais. São Paulo: Relume-Dumara,
1994.
FARIA, Keila Maria de. Medeia e Mélissa: representações do feminino no imaginário
ateniense do século V a.C. Goiânia: Universidade Federal de Goiás; Faculdade de Ciências
Humanas e Filosofia; Departamento de História, 2007. (Dissertação de Mestrado)
FIALHO, Maria do Céu. “Rituais de Cidadania na Grécia Antiga”. In: LEÃO, Delfim F.;
FERREIRA, José Ribeiro; FIALHO, Maria do Céu. Paidéia e Cidadania na Grécia Antiga.
Coimbra: Ariadne, 2006, p. 79-100.
193
FINLEY, Moses. A política no mundo antigo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
_____________. Democracia Antiga e Moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
_____________. Economia e Sociedade na Grécia Antiga. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
_____________. O Mundo de Ulisses. Lisboa: Presença, 1988.
FLORENZANO, Maria Beatriz Borba. Nascer, viver e morrer na Grécia Antiga. São Paulo:
Atual, 1996.
_______________________________.“Notes on the imagery of Dionysos on Greek Coins.
Reveue Belgue de Numismatique. Bruxelas, v 151. p. 37-48, 1999.
_______________________________.“Péricles, o Pártenon e a construção da cidadania na
Atenas clássica”. Coletâneas de Nosso Tempo – UFMT. v. 4, p. 103-112, 2000.
______________________________. “Polis e Oikos: o público e o privado na Grécia
Antiga”. Coletâneas de Nosso Tempo – UFMT. v 4, p. 113-118, 2000.
FORTUNA, Marlene. Dioniso e a Comunicação na Hélade: o mito, o rito e a ribalta. São
Paulo: Annablume, 2005.
FRANCISCO, Gilberto da Silva. Grafismos Gregos: escrita e figuração na cerâmica ática
do período arcaico (do século VII – VI a.C.). São Paulo: Universidade de São Paulo; Museu
de Etnologia e Arqueologia, 2007. (Dissertação de Mestrado)
FRANÇOISE, Laplatine e TRINDADE, Liana. O que é Imaginário?. São Paulo: Brasiliense,
1996.
FRONTISI-DUCROUX, Françoise. Le Dieu-Masque: une figure du dionysos d’athènes.
Paris: La Découverte, 1991.
FUNARI, Pedro Paulo A. Antiguidade Clássica: a história e a cultura a partir dos
documentos. Campinas: Ed. Unicamp, 2003.
_____________________. “A Guerra do Peloponeso”. In: MAGNOLI, Demétrio (org.).
História das Guerras. São Paulo: Contexto, 2006, p. 19-45.
_____________________. “Resenha de ‘Trajano Vieira, As Bacantes de Eurípides’”. Letras
Clássicas. São Paulo. 5, n°: 5, 2005, p. 307-309.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar, Escrever, Esquecer. São Paulo: Trinta e Quatro, 2006.
GARLAN, Yvon. Guerra e Economia na Grécia Antiga. Campinas: Papirus, 1991.
GASKELL, Ivan. “História das Imagens”. In: BURKE, Peter (org.). A Escrita da História:
novas perspectivas. São Paulo: Ed. Unesp, 1992, p. 237-272.
GAZOLLA, Rachel. Para Não Ler Ingenuamente Uma Tragédia Grega: ensaio sobre
aspectos do trágico. São Paulo: Loyola, 2001.
194
GAZONI, Fernando Maciel. A Poética de Aristóteles: Tradução e Comentários. São Paulo:
Universidade de São Paulo; Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas;
Departamento de Filosofia, 2006. (Dissertação de Mestrado)
GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.
GINZBURG, Carlo. Olhos de Madeira: nove reflexões sobre a distância. São Paulo:
Companhia das Letras, 2001, p. 969-975.
________________. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido
pela inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
GIRARD, René. A Violência e o Sagrado. São Paulo: Ed. Unesp, 1990.
GLOTZ, Gustave. A Cidade Grega. São Paulo: Difel, 1980.
______________. História Econômica da Grécia, volume I: desde o período homérico até a
conquista romana. Lisboa: Cosmos, 1946.
GRAMACHO, Jair. Hinos Homéricos. Brasília: Ed. UnB, 2003.
GRIMAL, Pierre. O Teatro Antigo. Lisboa: Setenta, 2002.
GUARINELLO, Norberto Luiz. “Festa, Trabalho e Cotidiano”. In: JANCSÓ, István e
KANTOR, Iris (orgs.). Festa: cultura & sociedade na América Portuguesa, volume II. São
Paulo: Edusp, 2001.
_________________________. Imperialismo Greco-Romano. São Paulo: Ática, 1994.
GUMBRECHT, Hans Ulrich. "Os lugares da tragédia". In: ROSENFIELD, Kathrin
Holzermayr (org.). Filosofia & Literatura: o trágico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
2001, p. 9-19.
HARDIE, R. P. “The Poetics of Aristotle”. Mind New Series. 4, n:15, 1985.
HARTOG, Françoise. A História de Homero a Santo Agostinho. Belo Horizonte: Ed.
UFMG, 2001.
_________________. El espejo de Heródoto: ensayo sobre la representación del otro.
México: Fondo de Cultura Económica, 1980.
HEMPEL, Carl G. “Explicação e leis”. In: GARDINER, Patrick (org.). Teorias da História.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984.
HIRATA, Elaine F. “Quem foi Homero?”. In: www.mae.usp.br/labeca. Março, 2009
JAEGER, Werner W. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes,
1994.
JONES, Peter V. (org.). O Mundo de Atenas: uma introdução à cultura clássica ateniense.
São Paulo: Martins Fontes, 1997.
195
JULIEN, Alfredo. Ágora, Demos e Laos: os modos de figuração do povo na assembléia
homérica – contradições, ambigüidades e indefinições. São Paulo: Universidade de São
Paulo; Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia; Departamento de História, 2006. (Tese
de Doutorado)
KAGAN, Donald. A Guerra do Peloponeso: novas perspectivas sobre o mais trágico
confronto da Grécia antiga. Rio de Janeiro: Record, 2003.
KERÉNYI, Carl. Dioniso: imagem arquetípica da vida indestrutível. São Paulo: Odysseus,
2002.
_____________. Os Deuses Gregos. São Paulo: Cultrix, 2002.
KNAUSS, Paulo. “O desafio de fazer História com imagens: arte e cultura visual”.
Artcultura: Revista do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia.
Uberlândia: Ed. UFU. 8, n:12. p. 97-115. Uberlândia: Editora UFU, 2006.
KOSSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos.
Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2006.
LAPLANTINE, François e TRINDADE, Liana. O que é Imaginário. São Paulo: Brasiliense,
2003.
LEFEBVRE, Henri. La Presencia y La Ausência: contribución a la teoria de las
representaciones. México: Fondo de Cultura Econômica, 2006.
LESKY, Albin. A Tragédia Grega. São Paulo: Perspectiva, 1990.
___________. História da Literatura Grega. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995.
LEVI, Mario Attilio. Péricles: um homem, um regime, uma cultura. Brasília: Ed. UnB, 1991.
LIMA, Luiz Costa. A Aguarrás do Tempo: estudos sobre a narrativa. Rio de Janeiro: Rocco,
1989.
_______________. História. Ficção. Literatura. São Paulo: Companhia das Letras. 2006.
LISPECTOR, Clarice. A Hora da Estrela. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.
LISSARRAGUE, François. L’autre Guerrier: archers, peltastes, cavaliers dans l’imagerie
attique. Paris: La Découverte, 1990.
LOREAUX, Nicole. A Tragédia de Atenas: A política entre as trevas e a utopia. São Paulo:
Loyola, 2009.
________________; CASSIN, Bárbara e PESCHANSKI, Catherine. Gregos, bárbaros e
estrangeiros. Rio de Janeiro: Trinta e Quatro, 1993.
________________. Invenção de Atenas. Rio de Janeiro: Trinta e Quatro, 1994.
________________. Las Experiências de Tiresias: lo femenino y el hombre griego. Buenos
196
Aires: Biblos, 2003.
MACEDO, José Marcos Mariani de. A Palavra Ofertada: uma análise retórica e formal dos
hinos gregos e da tradição hínica grega e indiana. São Paulo: Universidade de São Paulo;
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas; Departamento de Letras Clássicas e
Vernáculas, 2007. (Tese de Doutorado)
MACHADO, Roberto. O Nascimento do Trágico: de Schiller a Nietzsche. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2006.
MAFFRE, Jean-Jacques. O Século de Péricles: introdução à Civilização Grega. Lisboa:
Publicações Europa – América, 1993.
MALHADAS, Daisi. Tragédia Grega: o mito em cena. Cotia: Ateliê Editorial, 2003.
MARSHALL, Francisco. “A Historicidade Trágica”. Anos 90-UFRGS. Porto Alegre. 6, p.
124-154, 1996.
MARTIN, Roland. L’urbanisme dans La Grèce Antique. Paris: A. J. Picard, 1956.
McGINTY, Park. “Dionyso’s Revenge and the Validation of the Hellenic World-View”. The
Harvard Theological Review. Harvard. 71, n°: 1-2, 1978, p. 1-176.
McGLEW, James. Tyranny and Political Culture in Ancient Greece. Ithaca and London:
Cornell University Press, 1993.
MOMIGLIANO, Arnaldo. As Raízes Clássicas da Historiografia Moderna. Bauru: Ed. USC,
2004.
MOSSÉ, Claude. A Grécia Arcaica de Homero a Ésquilo (Séculos VIII – VI a.C.). Lisboa:
Setenta, 1989.
_____________. Atenas: a história de uma democracia. Brasília: Ed. UnB, 1982.
_____________. As Instituições Gregas. Lisboa: Setenta, 1985.
_____________. La Tyrannie dans la Grèce antique. Paris: Quadrige/PUF, 2004.
_____________. O Cidadão na Grécia Antiga. Lisboa: Setenta, 1993.
_____________. Péricles: o inventor da democracia. São Paulo: Estação Liberdade, 2008.
MOTA, Marcus. “A morte de Penteu: o equívoco do dionisismo catártico”. Revista
Humanidades. Brasília: Ed. UnB. n: 44, 1998, p. 1-16.
MOST, Glenn W. “Da tragédia ao trágico". In: ROSENFIELD, Kathrin Holzermayr (org.).
Filosofia & Literatura: o trágico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p. 20-36.
MYERS, Henry Alonzo. “Aristotle’s Study of Tragedy”. In: Educational Theatre Journal.
Baltimore. 1, n°: 2, 1949, 95-194.
NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia. São Paulo: Companhia das Letras,
197
1999.
OTTO, Walter Friedrich. Teofania: o espírito da religião dos Gregos antigos. São Paulo:
Odysseus, 2006.
PATLAGEAN, Evelyne. "História do Imaginário". In: LE GOFF, Jacques (org.). A História
Nova. São Paulo: Martins Fontes, 1988, p. 292-316.
PEIXOTO, Fernanda. “Vernant, Jean-Pierre. Entre mito e política.” Revista de Antropologia.
São Paulo: Ed. USP, 45, n: 1, p. 245-249, 2002.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. 2ª edição. Belo Horizonte:
Autêntica, 2005.
PIRES, Francisco Murari. "A morte do herói (co)". In: ROSENFIELD, Kathrin Holzermayr
(org.). Filosofia & Literatura: o trágico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
PLÁCIDO, Domingo. Introducción al Mundo Antiguo: problemas teóricos y metodológicos.
Madrid: Síntesis, 1995, 102-114.
POMIAN, Krzystof. “História Cultural, História dos Semióforos”. In: RIOUX, Jean – Pierre
e SIRINELLI, Jean – François. Para uma História Cultural. Lisboa: Editorial Estampa,
1998, p. 71-95.
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Ed. Unicamp, 2007.
ROBINSON JR., C. A. “Greek Tyranny”. The American History Review. Washington. 42,
n°: 1, 1936, p. 1-201.
ROMILLY, Jacqueline de. A Tragédia Grega. Brasília: Ed. UnB, 1998.
SANTOS, Dominique Vieira Coelho dos. As representações da cristianização da Irlanda
Celta: uma análise das cartas de São Patrício (V séc. d.c.). Goiânia: Universidade Federal
de Goiás; Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia; Departamento de História, 2008.
(Dissertação de Mestrado)
SANTOS, Nilton. “Os Gregos inventaram tudo. Entrevista concedida por Jean-Pierre
Vernant.” Primeira Versão, ano I, n° 43 - Setembro. Porto Velho: Ed. UNIR, n: 43, p. 2-9,
2001
SARIAN, Haiganuch. “Arqueologia da imagem: aspectos teóricos e metodológicos na
iconografia de Héstia”. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia – Universidade de São
Paulo: Anais da I Reunião Internacional de Teoria Arqueológica na América do Sul. São
Paulo: Ed. USP, 1999, p. 69-85.
_________________. Arqueologia da Imagem: expressões figuradas do mito e da religião
na antigüidade clássica. São Paulo; Universidade de São Paulo; Museu de Arqueologia e
198
Etnologia; Departamento de Arqueologia Clássica, 2005. (Trabalho de Livre – Docência)
_________________. “Posições Metodológicas no Estudo da Iconografia Grega”. Ciência e
Cultura. Belo Horizonte. 37, n°. 7, 1985, p. 83.
SAXONHOUSE, Arlene W. “The Tyranny of Reason in the World of the Polis”. The
American Political Science Review. Washington. 82, n°: 4, 1988, p. 1063-1449.
SENNET, Richard. O Declínio do Homem Público: as tiranias da intimidade. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998.
SILVA, Maria de Fátima Sousa. “Bacantes de Eurípides: símbolos em confronto”. Synthesis.
La Plata .14, p.11-30, 2007.
SILVA, Luiz Sérgio Duarte da. “Narrativa e Filosofia da História: o debate do pós-moderno
II”. In: SERPA, Elio Cantalicio e MENEZES, Marcos Antonio. Escritas da História:
narrativa, arte e nação. Uberlânia: Ed. UFU, 2007, p. 81-93.
SIQUEIRA, Cíntia de Moura. “Poética aristotélica: mímesis e verossimilhança em
Eurípides”. Scripta Clássica. Belo Horizonte: Ed. UFMG, p. 23-29, 2008.
SNODGRASS, Anthony. Archaeology and the Emergence of Greece. Edinburgh: Edinburgh
University Press, 2006.
____________________. Homero e os artistas: texto e pintura na arte grega antiga. São
Paulo: Odysseus, 2004.
SOUSA, Luana Neres de. A pederastia em Atenas no período clássico: relendo as obras de
Platão e Aristófanes. Goiânia: Universidade Federal de Goiás; Faculdade de Ciências
Humanas e Filosofia; Departamento de História, 2008. (Dissertação de Mestrado)
SOUZA, Eudoro de. Dioniso em Creta e Outros Ensaios: estudos de mitologia e filosofia da
Grécia antiga. São Paulo: Duas Cidades, 1973.
SKULSKY, Harold. “Aristotle’s Poetics Revisited”. Journal of the History of Ideas.
Pennsylvania. 19, n°: 2, 1958, p. 147-300.
TARNAS, Richard. A Epopéia do Pensamento Ocidental: para compreender as idéias que
moldaram nossa visão de mundo. Rio de Janeiro: Bertrand, 2002.
TEIXEIRA, Alexandre Henrique Carvalho. Mitiáticos e Coexistentes: mídia, mito e
midiações. Bauru: Universidade Estadual Paulista “Júlio Mesquita Filho”; Faculdade de
Arquitetura, Artes e Comunicação; Departamento de Comunicação, 2005. (Dissertação de
Mestrado).
THEML, Neyde. Público e Privado na Grécia do VIII° ao IV° séc. a.C.: o modelo ateniense.
Rio de Janeiro: Sete Letras, 1998.
199
TOBIA, Ana María Gonzáles. "La escena trágica griega: parámetro espacial de frontera y
ética." In: CERQUEIRA, Fábio Vergara et. all. (orgs.). Fronterias e Etnicidades no Mundo
Antigo. Anais do V Congresso da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos. Canoas:
Editora ULBRA, 2005.
TRABULSI, José Antonio Dabdab. Dionisimo, Poder e Sociedade na Grécia até o fim da
época clássica. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005.
_____________________________. Ensaio sobre a mobilização política na Grécia Antiga.
Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001.
____________________________. Participation directe et démocratie grecque: Une
histoire exemplaire?. Besançon: Press Universitaires de Franche-Comté, 2006.
VELLACOTT, Philip. “Ironic Drama: a study of Euripide’s method and meaning”. The
Modern Language Journal. Oxford. 59, n°: 8, 1975, p. 407-480.
VENERI, Alina. “Dionysos”. Lexicon Iconographicum Mythologiae Classicae (LIMC).
Atherion – Eros. Artenmis Verlag. 3, p. 1981.
VERNANT, Jean-Pierre. As Origens do Pensamento Grego. 5ª edição. São Paulo: Difel
Editorial, 1986.
___________________. “Ce que les grecs nous ont legue.” L´histoire. Paris, nº. 126, 1989.
___________________. Figuras, Ídolos, Máscaras. Lisboa: Teorema, 1991.
___________________. Mito e pensamento entre os gregos: estudos de psicologia histórica.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
___________________. Mito y religión en la Grecia antigua. Barcelona: Ariel, 2001.
___________________. O Universo, os deuses, os homens. São Paulo: Companhia das
Letras, 2000.
___________________; VIDAL-NAQUET, Pierre. Mito e Tragédia na Grécia Antiga. São
Paulo: Duas Cidades, 1977.
VIDAL-NAQUET, Pierre. O Mundo de Homero. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
VIEIRA, Trajano. “Introdução”. In: Euripides: As Bacantes/Bakxai. Trad. Trajano Vieira.
São Paulo: Editora Perspectiva, 2003, p.
VLASSOPOULOS, Kostas. Unthinking the Greek Polis: ancient Greek history beyond
eurocentrism. Cambridge/New York: Cambridge University Press, 2007.
WATERS, K. H. “Herodotos the Historian: his problems, methods and originality”. The
American Historical Review. Washington. 91, n°: 2, 1986, p. 245-518.
WEINRICH, Harald. Lete: arte e crítica do esquecimento. Rio de Janeiro: Civilização
200
Brasileira, 2001.
WEFFORT, Luís Fernando. Poesia, retórica e educação na Ifigênia em Áulis de Eurípides.
São Paulo: Universidade de São Paulo; Faculdade de Educação; Departamento de Educação,
2008. (Dissertação de Mestrado)
WHITLEY, J. The Archaeology of ancient Greece. Cambridge: Cambridge University Press,
2001.
YATES, Frances A. A Arte da Memória. Campinas: Ed. Unicamp, 2007.
ZAIDMAN, Louise Bruit e PANTEL, Pauline Schmitt. La religión Griega en la polis de la
época clásica. Madrid: Akal, 2002.
D) SITES
http://greciantiga.org/img/i/i281.jpg, acessado em 14/01/2010.
http://greciantiga.org/img/i/i824.jpg, acessado em 15/11/2010
http://greek.hp.vilabol.uol.com.br/teatro.htm, acessado em 23/08/2008
http://users.thess.sch.gr/ipap/Ellinikos%20Politismos/AR/im.ar.ag/Sofilos.jpg, acessado em
14/01/2010.
http://www.paideuma.net/dionysos.htm, acessado em 19/09/2008
http://www.charleskiefer.com.br/oficina/textos/Poetica.PDF, acessado em 17/10/2008
http://www.cfh.ufsc.br/~wfil/poetica.pdf, acessado em 17/10/2008
Livros Grátis( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download: Baixar livros de AdministraçãoBaixar livros de AgronomiaBaixar livros de ArquiteturaBaixar livros de ArtesBaixar livros de AstronomiaBaixar livros de Biologia GeralBaixar livros de Ciência da ComputaçãoBaixar livros de Ciência da InformaçãoBaixar livros de Ciência PolíticaBaixar livros de Ciências da SaúdeBaixar livros de ComunicaçãoBaixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNEBaixar livros de Defesa civilBaixar livros de DireitoBaixar livros de Direitos humanosBaixar livros de EconomiaBaixar livros de Economia DomésticaBaixar livros de EducaçãoBaixar livros de Educação - TrânsitoBaixar livros de Educação FísicaBaixar livros de Engenharia AeroespacialBaixar livros de FarmáciaBaixar livros de FilosofiaBaixar livros de FísicaBaixar livros de GeociênciasBaixar livros de GeografiaBaixar livros de HistóriaBaixar livros de Línguas
Baixar livros de LiteraturaBaixar livros de Literatura de CordelBaixar livros de Literatura InfantilBaixar livros de MatemáticaBaixar livros de MedicinaBaixar livros de Medicina VeterináriaBaixar livros de Meio AmbienteBaixar livros de MeteorologiaBaixar Monografias e TCCBaixar livros MultidisciplinarBaixar livros de MúsicaBaixar livros de PsicologiaBaixar livros de QuímicaBaixar livros de Saúde ColetivaBaixar livros de Serviço SocialBaixar livros de SociologiaBaixar livros de TeologiaBaixar livros de TrabalhoBaixar livros de Turismo