DA SUBORDINAÇÃO À INSUBMISSÃO: A TRAJETÓRIA DAS PERSONAGENS FEMININAS NO ROMANCE O AMANTE JAPONÊS
(2015) DE ISABEL ALLENDE
André Eduardo Tardivo (UEM)
Ana Maria Soares Zukoski (UEM)
Resumo
Objetiva-se apresentar uma análise interpretativa acerca das diferentes representações femininas no romance O amante japonês (2015) da escritora Isabel Allende. No romance corpus da análise desse trabalho, Allende apresenta-nos diferentes representações femininas por meio de duas personagens, nas quais a análise centrar-se-á: Lillian e Alma, mulheres de diferentes gerações e com trajetórias díspares, o que demonstra que mesmo estando próximas, essas duas mulheres distanciam-se no que diz respeito à sua percepção de si mesmas. Lillian corresponde ao ideal de mãe e esposa, posicionamento que satisfazia o horizonte de expectativa da época ao passo que Alma ostenta um posicionamento forte e goza de uma liberdade sexual que não era comum às mulheres no contexto social daquela época. Palavras-chave: Representação de personagens femininas; Literatura de autoria feminina; O amante japonês; Isabel Allende. Introdução
Ainda na contemporaneidade, frente a discussões acerca representatividade
nos mais diversos campos sociais e culturais, a literatura mantém-se submissa ao
cânone literário que enaltece obras produzidas por homens heterossexuais, brancos,
de classe média/alta e cristãos, deixando à margem a produção de negros,
mulheres, homossexuais e outras minorias. Percebe-se que a prática canônica,
valorizou excessivamente o valor autoral das obras do mundo masculino em
detrimento do que o conteúdo e a estética dos escritos literários, considerando que o
espaço social funcionava como extensão do âmbito privado no qual a mulher teria
de ser submissa ao poder masculino.
Elaine Showalter, revisitando obras marginalizadas pelo cânone, evidenciou
reflexões acerca da produção feminina. Para a estudiosa “os grupos minoritários
acabam por encontrar formas próprias de expressão em relação à sociedade
dominante em que estão inseridos” Showalter (apud ZOLIN, p. 329). As mulheres
encontraram modos de expressão inerentes à sua condição marcada pelo momento
histórico. Assim, Showalter apresenta-nos três fases na literatura produzida por
mulheres, quais sejam: a feminina, a feminista e a fêmea. A primeira trata da
internalização e reprodução dos padrões patriarcais; a segunda caracteriza-se pela
luta feminista manifestada nas obras e a terceira abarca questões identitárias, como
a busca pela autodescoberta.
Isabel Allende, com suas obras teve uma excelente acolhida no cenário
internacional, um de seus trabalhos mais recentes, o romance O amante japonês
(2015), apresenta-nos diversas personagens femininas que, mesmo próximas,
distanciam-se no que tange à percepção de si mesmas. O presente trabalho tem por
objetivo apresentar uma leitura acerca representação feminina, na tentativa de trazer
a baila questões contundentes à crítica feminista.
Desenvolvimento
Lillian é retratada na obra como o modelo ideal da figura feminina submetida
ao patriarcalismo. Ao longo de seu casamento, a personagem é submissa ao marido
e circunscrita ao ambiente doméstico, sendo sua responsabilidade o cuidado para
com os filhos, a supervisão do trabalho dos funcionários em sua casa, da execução
dos desígnios do cônjuge e do matrimônio das filhas e da sobrinha: “Lillian assumira
o dever de casá-la bem, convencida de que seria mais fácil do que havia sido casar
suas filhas pouco agraciadas” (ALLENDE, 2015, p. 126). Uma das atividades da
matriarca da família Belasco consistia em arranjar os casamentos das mulheres.
Devido ao curto espaço, focalizaremos na representação da personagem, o modo
como percebe e encara o matrimônio. É evidente que a prática exercida por Lillian é
o reflexo da perpetuação do ideário patriarcal, o qual prescreve às mulheres os
papéis de mãe e esposa, visto que era este o modelo mulher. Entretanto, mesmo
que a educação que as moças recebessem fosse voltada para o casamento, a
busca pelo matrimônio deveria cumprir alguns princípios de modo a não prejudicar a
fragilidade feminina. Segundo Hedges (2016, p. 102), “as mulheres são criadas para
o casamento, mas não podem buscá-lo ativamente, devendo esperar passivamente
que sejam escolhidas”. Lillian procura reproduzir nas filhas, sobretudo na sobrinha, a
prática a que foi submetida quando jovem: “– Isto de andar à caça de um noivo é
indigno, Lillian! [...] - Vinte e cinco?! Nessa idade ela não vai encontrar um bom
partido em lugar nenhum [...] – alegou Lillian”. (ALLENDE, 2015, p. 127)
Compreende-se que a preocupação da tia em arrumar um bom casamento
para a sobrinha reitera os ideais patriarcais vigentes, pois considerava que arrumar-
lhe um marido significava conseguir um futuro para a sobrinha. Assim, percebe-se
que para essa personagem, o casamento constitui-se como o centro de sua
existência. A dependência, não apenas financeira, que Lillian possui como seu
esposo é mais evidente quando o esposo falece, a matriarca da família Belasco é
acometida por males físicos: “Lillian, [...] perdeu a visão no mesmo dia em que ficou
viúva e andou nas trevas pelos anos que lhe restavam, sem que os médicos
descobrissem a causa.” (ALLENDE, 2015, p. 74). A cegueira repentina e sem
justificação, sofrida logo após a morte do esposo, pode ser interpretada como a
metáfora da impossibilidade de enxergar o mundo sem o crivo do olhar masculino,
ou seja, devido à personagem ter dedicado sua vida em função do esposo, e ter
incorporado o papel de esposa durante tantos anos, condiciona-a a uma
dependência, visto que a mesma nunca havia gozado da liberdade. Devido à
internalização dos padrões patriarcais, a morte do marido equivale a um forte golpe
para Lillian, e a cegueira demonstra que suprimida a figura masculina, a
personagem não consegue enxergar o mundo, que até então lhe era transmitido
através do marido. A aceitação, e consequentemente a cegueira, implica em uma
não vontade de enxergar o mundo e a si mesma pelos próprios olhos. Dessarte,
avulta que a construção da ideologia patriarcal exercia um poder tão forte, que
muitas mulheres a incorporavam, como é o caso de Lillian, que viveu em função de
corresponder a esses ideais, tidos como verdadeiros para sua constituição.
A segunda personagem analisada, Alma, ainda que inserida em uma
sociedade marcada por valores patriarcais seculares, não sentia que esses padrões
faziam parte de si e, ao longo de sua trajetória, nota-se que a mesma transgredirá
inúmeros padrões, sem sentir grandes culpas. Não tendo incorporados os valores de
pureza e preservação da virgindade ela também não se submetia ao recato e à
discrição, prescrito às mulheres. Nem a presença dos Belasco a intimidava: Abriu a porta e se jogou em seus braços. [...] Ichimei, desconcertado, [...] não soube como responder a tanta efusividade, mas Alma [...] segurou-o pela mão, puxou-o para dentro de casa [...] beijou-o na boca. Isaac Belasco estava na biblioteca [...] Pôde ver a cena, e chocado, se escondeu atrás do jornal, até que finalmente Alma conduziu o rapaz à sua presença. (ALLENDE, 2015, p. 148)
Considerando o contexto do século XX e a reação do patriarca, percebe-se o
quão transgressora é a atitude de beijar o rapaz, com o qual não nutria nenhum tipo
de relacionamento oficial. Outro aspecto relevante é o fato de que Ichimei mostra
uma posição de inibição perante a atitude de Alma, o que revela que nem mesmo
ele estava acostumado ao modo transgressor, ao qual Alma decidira viver.
A personagem não se contenta em viver o amor de Ichimei de forma
comedida vivenciando um relacionamento clandestino: Encontravam-se quase todos os dias [...] em um motel [...] Alma sempre chegava primeiro e pagava o quarto a um empregado
paquistanês, que a perscrutava dos pés à cabeça com profundo desprezo. Ela o fitava, orgulhosa e insolente, até que o homem baixava os olhos e lhe entregava a chave. (ALLENDE, 2015, p.153)
Alma rompe com o ideal de mulher da sociedade patriarcalista, gozando de
uma liberdade sexual que além de ser mal vista pelas pessoas era proibida, como é
explicitado pelo empregado do motel, que demonstra por meio do olhar a repulsa
que sente pela mulher que frequenta o motel e, ainda o paga, demonstrando que a
insolência pelas regras morais era custeada pelo dinheiro. A personagem não se
incomoda com os julgamentos e contrariamente, sente-se realizada em desafiar as
restrições sociais, vislumbrado pelo olhar insolente que dirige ao funcionário e
recusando-se a abaixar o olhar, mantendo contato visual até o que ele desista. Considerações finais
É notório que mesmo subjugadas ao poder patriarcal, muitas mulheres
transgrediram os padrões sociais, como é o caso de Alma que se preocupava
unicamente com a sua felicidade. Mesmo estando inserida em uma sociedade
patriarcal que preconizava o casamento e a virgindade em detrimento do acesso ao
conhecimento científico, Alma não toma tais padrões para sua vida. Já Lillian, por
seu turno, representa a mulher ideal da época, pois vivia em função do lar e da
família, principalmente do marido a quem estava sempre disposta a servir.
Referências ALLENDE, Isabel. O amante japonês. Tradução de Joana Angélica D’Avila Melo. 1. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2015. HEDGES, Elaine Ryan. “Posfácio”. In: GILMAN, Charlotte Perkins. O papel de parede amarelo. Tradução de Diogo Henriques. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2016. ZOLIN, Lúcia Osana. “Literatura de Autoria Feminina”. In: BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana (orgs.). Teoria Literária: Abordagens históricas e tendências contemporâneas. 3. ed. Maringá: Eduem, 2009.