Capítulo 1
Quando observo minha irmã, tenho esse disparate quanto a nossa relação.
Não há similaridades entre nós, é um desafio constante procurar uma forma de
equilibrar nossas afinidades, mesmo sendo seu irmão gêmeo.
Minha irmã Melanie, não possuiu o mesmo ímpeto intelectivo, não aprendeu a
leitura com três anos e não foi avaliada com o mesmo potencial. Eu fui adjudicado com
ensino privilegiado, mas é aparente que a maior diferença entre nós não é física ou
intelectual. Melanie possui uma excepcional capacidade de ter emoções complexas
enquanto eu não tenho nenhuma.
Fui batizado em homenagem a meu tataravó, Robert Quannt, mas recebi um
prenome monárquico, Richard. Somos membros de uma família de ascendência
privilegiada, destinados a assumir heranças e tradições de classes elitistas.
Nossa residência, próximas das colinas do norte da Inglaterra, tem mais de
cem anos, é isolada e com apenas um vizinho próximo. Este isolamento doutrinou
minha compreensão de realidade. Meu pai constantemente se desloca para
administrar os trabalhos nas minas de carvão, tarefas que tornam a paternidade uma
atividade familiar ausente.
Somos levados pelo motorista ao colégio, sempre percorrendo uma distância
razoável pelos muros de pedras e paisagens de névoa da manhã. Apesar de meus dez
anos me sinto envelhecido e restrito, já que socialmente recebemos convidados,
sempre formalizados e essas visitas não adicionam muito contato com outras pessoas.
Semanalmente realizamos saídas para a cidade, até Harrogate ou Leeds, algo
muito mais apreciado por Melanie e minha mãe. Nossos pais incentivavam nossas
diferentes capacidades, Melanie em suas brincadeiras e para mim a leitura:
- Mãe, gostaria de adquirir alguns volumes de ciência, preciso deles para
confirmar algo que estou lendo.
- E o que está lendo agora Richard?
- Júlio Verne. Estou lendo “Uma Cidade Flutuante”.
- Meu fiho é uma leitura de ficção, pode tentar outra?
- Não obrigado, compreendo sua preucupação, mas estou interessado nos
desafios de engenharia.
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- E você Melanie?
- Preciso de um amigo para meu urso e xicaras de chá.
- Claro, querida, terá seu novo amigo.
O isolamento era reduzido ao assistirmos televisão e o Reino Unido dos anos
setenta, não era um vislumbre de progresso, mas de rebeldia. Para mim a televisão
aproxima o que mais gosto, tecnologia e mesmo com pouca idade já sabia que isso me
afastava das pretensões do pai.
Seu olhar de orgulho pelos meus talentos, não percebem que não possuo
interesses nos negócios da família. Mesmo assim evito um confronto, seria
desgastante e sei que seria derrotado. Melanie, ao contrário de mim é uma eficiente
questionadora de tudo que acontece no universo.
Meus questionamentos são limitados ao estudo da dinastia de minha família.
Nela reconheci seu sucessor mais ávido, Robert Quannt. Minha curiosidade estava
além da biografia de meus antepassados, procurava um arquétipo para espelhar
objetivos. Durante a revolução industrial no Reino Unido, ele assumiu a mineração de
carvão nas terras da família logo após a morte do pai. Decidiu em não aceitar seu lugar
imposto na sociedade, mudou sua convicção e escrúpulos. Teve uma educação clássica
e enriqueceu além do modelo de classes burguesas. Meu tataravô não teve irmãos, e
para os dois filhos, além dos traços genéticos, cabelo castanho e estatura, deixou
poder.
Passo o tempo na biblioteca de casa, lendo sobre o poder e sua origem. Para
mim, há semelhança entre os trabalhadores de hoje e o poder do Reino Unido daquele
século. Era uma versão primitiva da economia atual.
Lá fora, minha irmã era acompanhada em cavalgadas, deleitava-se com sua
imaginação e corria sobre as terras de uma origem insipiente. Vejo nos antigos mapas
de dessas terras, o motivo da mansão Quannt ser singular e ter apenas um vizinho. No
século dezenove, ter conhecimento sobre minérios, impulsionou a ganância pelo
carvão. Nossas terras não foram ilegitimamente tomadas, mas Robert Quannt, um
grande orador, convenceu a muitos sobre ilusão da vida nas cidades:
“- Meus senhores, o país lhes estende a mão para oferecer uma vida melhor, este
é o momento de participar na criação da maior nação da terra. A oportunidade lhes
aguarda nas cidades, nas fábricas e no coração de nosso soberano Império. Deus salve a
Rainha!”
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Essa perspicácia em manipular multidões não passou despercebida durante a
lei do “cercamento de terras”. Nós, os Quannt, fomos incluídos e obtivemos nossas
vastas terras e assim adentrávamos a um seleto grupo que assumiu o dever de
garantir as reservas de carvão para manter o poderoso Império Britânico.
Minhas descobertas são interrompidas por Melanie procurando companhia
para correr. Deixo momentaneamente minhas buscas para tentar me aproximar do
membro mais importante na família. Ao entreter Melanie, entretenho a mim mesmo.
Minha mãe discorda sobre brincadeiras, Melanie deve ser uma dama, assumir
seu papel herdado em um proeminente futuro. Ela lembra constantemente que os
Quannt foram conselheiros políticos, populares nas cidades, mas oculta como somos
temidos em nossas terras.
Para mim, a casa não significava um lar. Meu pai se orgulhava de minhas
capacidades, mas sou jovem demais para ser levado a sério. Vago pela mansão e as
possibilidades de uma herança medíocre me fazem questionar as obrigações. Melanie
brinca pelas salas, derruba livros e perambula pela cozinha, os empregados a adoram,
mas se eu estiver por perto, acham que posso denunciá-los. É Melanie que me defende
e me aproxima de outras pessoas.
- Venha Richard, podemos comer escondido, venha, tem uma panela só pra
nós lambermos.
- Melanie isso é desprezível, mas delicioso.
Nessa época a apelidei em segredo, chamava-a de Cherry.
Aprecio a fuga da realidade, sou o novo descendente em um novo mundo,
mais complexo, ameaçador e infelizmente compreensível para mim. Associei minhas
expectativas aos tempos de ameaças nucleares, pois mesmo vivendo em uma mansão
afastada, sabia que em um conflito nuclear, o Reino Unido, seria um dos primeiros
alvos a ser destruído em sua totalidade.
A despeito destas ameaças, a rotina era comum, tivemos babás e empregados
que atendiam nossas necessidades. Apesar do ambiente tradicional minha infância
não foi nada normal.
Minha avalição sobre minha irmã provava que perdia experiências
importantes, já que Melanie era muito mais feliz, em todos os sentidos. Para mim, essa
capacidade de observar e entender um mundo ameaçado criava uma melancolia
continua.
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Prefiro a avaliação de Melanie sobre mim, tinha explicações simples para
minhas introspecções. Ela acreditava que, quando nascemos, eu fiquei com toda a
razão e ela com todas as emoções. Minha adorada irmã, seus cabelos ondulados
castanhos são um disfarce à suas peraltices. Ainda bem que a tenho, senão seria mais
uma sombra nessa casa.
Mas sei que nossa inevitável separação ocorrerá logo. Como recebi educação
privada, pude conviver com Melanie, mas agora concluiria o secundário e ela o
começaria. Para ela o regime de internado era fabuloso e para mim, podia antecipar os
efeitos típicos de um jovem gênio entre colegas maiores.
Meu autocontrole impede de me defender fisicamente e todas as vezes que
estive com outras crianças de minha idade, ouve confronto. Sabia que podia me
defender, mas gostava quando Melanie intervia ao me ver sendo hostilizado. Em casa
retribuía, Melanie é audaciosa e causa conflitos diários com nossos pais, nessas
ocasiões eu a defendo.
Ela possui qualidades que não consigo igualar, amizades na escola, com
empregados e com nossa única vizinha Caroll. Temos a mesma idade e elas possuem
uma profunda ligação. A família de Caroll tem influência política nas terras próximas
as nossas, mas são influências liberais.
Foi nestes contatos com Caroll que alterei meu comportamento autocentrado.
A família dela, menos recatada, permitia que eu fizesse comparações afetivas com
meus pais. Isso gerou certos discernimentos, em minha já afetada relação.
Em busca dessas emoções, às vezes participava de brincadeiras com elas,
perto do lago de dividia nossas terras ou nas matas atrás de sua residência:
- Richard venha, tem uma árvore caída aqui perto!
O tratamento para com as pessoas em nível de igualdade era uma qualidade
que não receberia da educação de meus pais conservadores.
No entanto, a influência de Melanie, sobre Caroll, é mais liberal e acumula
punições por seu comportamento:
- Ei cabeção, olhe, trouxe uns chocolates da Caroll, quer?
- Quero Cherry, mas coma todo o resto para não ser pega, não guarde para
depois.
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Ela guardou e foi descoberta. O castigo seria sete dias sem visitar a amiga, mas
eu sabotava os castigos em favor de Melanie, usando meus privilégios de confiança:
- Mãe, vou caminhar com a Cherry, voltamos logo.
Rompíamos o castigo e íamos direto para Caroll, para poupar tempo
atravessávamos o pequeno lago de barco. No retorno uma Melanie molhada, ampliava
a sua punição.
- Meu Deus menina, você é impossível. Será que tenho de construir uma torre
só para trancá-la lá!
O fato de eu também estar molhado nem é considerado.
Aos doze anos havia conseguido resultado perfeitos para ingressar no
instituto de educação superior. Melanie começaria seu internato. Encaro outra
realidade agora, ao me deslocar pelas cidades, é possível ver todo sistema atual de
governo se colapsando. Desemprego e lixo acumulado nas ruas, provas que o estilo
antiquado de administração, como nos negócios da minha família, não funcionam
mais.
Nas minhas primeiras semanas, minhas ideias admiradas pelos professores,
criaram uma imagem pré-concebida minha entre colegas. Pretencioso e arrogante:
- Ei! Filho do mineiro! Acha que é mais inteligente que a gente. Até o fim do
ano vai querer nunca ter vindo estudar aqui.
Um empurrão, alguns chutes e depois risos.
Defender-me estava nos meus planos, mas na ausência de emoções como o
medo, me impedia de reagir, além disso, não resguardava raiva ou tristeza e apenas
me aprofundava nos estudos.
Os desafios intelectuais eram transpostos, mas as pessoas não. Estava
constantemente dolorido por pequenos confrontos com outros alunos. Ocupei meu
tempo com uma questão que me atormentava, desde quando vagava pela mansão.
Qual o meu objetivo nesse mundo?
Testei minha individualidade através de meu ego. Fiz um teste de inteligência,
que teve o resultado contestado, eu preferi não refazê-lo.
Isolado, passo meu primeiro ano com mestres, que entendem melhor a
aplicação de meus conhecimentos. Sou apresentado a uma aptidão que me coloca uma
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vantagem potencial, a programação. Inicio um projeto de comunicações, tão bons, que
o mantenho para mim. Logo minha perspicácia na solução de problemas matemáticos
é reconhecida e minha influência acadêmica mencionada pela instituição.
Meu retorno para casa, no verão, é habitual, mas a idade pesa no
relacionamento entre Melanie e meus pais. Meus conselhos para Melanie, apesar de
úteis, são ignorados e ela sempre é punida pela insensatez. Seu primeiro convívio em
internato a tornou suscetível às influências, principalmente pela sua personalidade
flutuante. Acrescente comparativos comigo e isso a leva a humilhações e decepções.
- Melanie suas notas forma deprimentes, melhore-as ou irá para uma escola
local, onde o nível de estudo está mais condizente com seu desempenho, não quero o
nome da família associado a essas notas medíocres.
- Richard meu filho, foi um dos primeiros alunos deste país a terminar os
estudos aos doze anos e sabe exatamente o que esperamos de você.
Apesar da tentativa desproporcional de nos comparar para induzir um
espírito competitivo, meus pais não percebiam as qualidades de Melanie. Sua
vivacidade é o que há de mais valiosos nesta casa. Ela me faz correr, brigar e ter
amizades, nestas brincadeiras entre nós dois e Caroll, compreendi que apesar de
formularmos memórias diferentes daqueles momentos, tínhamos objetivos similares.
Se não tivesse minha irmã, inevitavelmente me tornaria como meu pai. Apesar de
admirar meu tataravô, Cherry me ajudou a preliminar um objetivo para quando
voltasse aos estudos.
Usei minha facilidade de encontrar soluções e sanei minha necessidade de
isolamento, criando um círculo de amigos com potencialidades.
Nos corredores capto meu próprio círculo de seguidores pontualmente, com
procedências muito diferentes:
- Olá, sou Richard, estou formando um grupo de estudo avançado, está
interessado em participar?
- Sou Nayf Fahd. Conte-me sobre esse seu grupo?
- Pretendo destacar esse grupo como o melhor desta Universidade e acredito
que posso fazê-lo com qualquer aluno que quiser participar.
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- Pretencioso meu jovem. Gostei e tenho outros colegas aqui poderiam
participar. Alguma restrição para ser aceito no seu grupo? Quero avisar que não temos
nenhum amigo Britânico.
- Na verdade, você se qualifica. E lhe aviso que eu também não tenho!
Todos os estudantes que comandava tinham mais de vinte anos em um grupo
que rapidamente conteve os melhores alunos. Os membros eram de origens remotas;
Arábia Saudita, Hong Kong, Tailândia, Índia e Alemanha, filhos de políticos, magnatas,
alguns gênios bolsistas e um membro da realeza, quase todos bem mais ricos que
minha família.
Dentre meus colegas, não cultivo amizades exoráveis, mas fui compreendido
melhor em uma troca de interesses com Nayf. O jovem Saudita é um visionário e sua
educação possuía uma aplicação mais prática em seu país. Uma de suas atribuições é
reconhecer as mentes mais capacitadas e convocar talentos. Ele percebeu minha
angústia intelectual.
Com o início dos anos oitenta no Reino Unido, a geração punk rock, os
trabalhadores e o governo conservador estavam em conflito o país precisava de
mudanças. Durante esses conflitos, meu ensino superior estava avançado, estudava
várias disciplinas ao mesmo tempo e meu potencial ia além da educação que recebia.
Percebi as mudanças pelo comportamento social e suas necessidades, havia
uma nova revolução chegando, a revolução tecnológica. Formei-me em engenharia e
arquitetura, como o pai quis, mas com especializações em eletrônica e programação.
Priorizei outras áreas para minhas capacidades, realizando cursos de idiomas, direito
e administração, assistindo aulas fora de minha grade e simulando suas capacidades a
fim de me avaliar. Neste ambiente mais produtivo percebi que não era mais
perseguido, mas elogiado.
Meus traços fortes, inertes não aparentam meus dezessete anos e meu
comportamento e humor depressivo me amadurecem. Não ligo para aparência, alto,
magro, com cabelo loiro castanho, rosto retangular e olhos claros são traços genéticos
dos Quannt. Tenho os mesmos ímpetos e desejos de minha idade, mas com um
autocontrole preventivo. No final de meus estudos não era o mais novo estudante que
a se formar, mas o que possuirá mais graduações de uma só vez.
Minha graduação com méritos aos dezessete anos é notória, mas foi algo
embaraçoso, sem a presença de meus pais. Fui elogiado pelo corpo docente, sendo
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recrutado com ofertas que poderiam direcionar meu potencial, mas previamente
dispenso todas, pois tenho uma agenda própria.
Os seis anos que passaram são irrevogáveis, apesar de a vida possuir etapas,
não farei pausas e esta noite continuarei com minha decisão. Espero a finalização da
graduação com despedidas e cumplicidade. Nayf se aproxima:
- Richard, parabéns, três graduações de uma só vez, vi que recebeu propostas
lucrativas. Mas como você está? Vamos partir hoje e espero que tenha deixado claro
para sua família o que fará. O voo é às dez da noite e preciso saber se pretende mudar
de ideia?
- Passamos anos discutindo isso e eu não vou retroceder agora. Você investiu
muito financeiramente e eu intelectualmente. Mas meu maior custo será emocional.
- Achei que não tivesse emoções?
- A única que possuo é a única que pode me afetar.
- Você consegue lidar com isso?
- Sim, de alguma maneira.
Despeço-me do amigo momentaneamente, retorno aos meus pertences e
percebo que tenho um tempo considerável antes de partir. Meu plano será executado
nesta data e eu não vou retornar para casa.
No momento não tinha economias, nem lugar para ficar, apenas um objetivo.
Esse objetivo estava em conflito direto com esse momento. Meus poucos pertences
cabem em uma mochila e são leves comparados a minha carga emocional.
Anoitece e chego à rua e antes de chamar um táxi, paro em uma cabine
telefônica, em uma última tentativa de contato. Mesmo palestrando minhas radicais
ideias sobre a economia para centenas de pessoas, não sabia o que dizer naquele
momento. Estava com roupas comuns, mochila e botina e faltam algumas horas para o
seu voo.
Naquele momento, sua decisão já estabelecida, inicia uma conflagração entre
a razão e emoção. Suas memórias entram em uma introspecção, enquanto uma garoa
molha a cabine e o frio o remete a distantes momentos.
O frio ar do campo sempre me mantinha em leituras, meus pais mantiveram a
disciplina em uma afabilidade, que em casa, sentia-me como um convidado. Cherry
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sofria pressão pelas suas qualidades, mas não pela sua singularidade. Sua
despreocupação com o pensamento dos outros fazia sua originalidade parecer uma
ofensa.
Eu sempre soube que Melanie não pertencia ao estilo de vida imposto a ela.
Um espírito livre aprisionado. O fato dela não ocultar sua personalidade para se
preservar, causava um incômodo e um contraste dentro da mansão.
Muitos de meus sentimentos eram cópias das ações dela. Eu não conseguia
espontaneamente demonstrar amor ou carinho, mas aprendi a simulá-los, por Cherry.
A frustração e raiva dela eram menos complexos de se aprender, mas a fonte dessa
dor vinha do aprendizado de Cherry forçado pela nossa mãe. Isso sempre me
perturbou:
- Melanie querida você se serviu em excesso, removam o prato dela e sirva-se
de novo.
- Mas eu estou com fome.
- Sirva-se com uma dama, somente o centro do prato deve ser preenchido.
As correções, por ela ser uma criança, para mim eram tolas:
- Melanie não desça a escada correndo, damas não correm nem de incêndios.
- Mas se eu morrer queimada?
- Então queimará com elegância.
Para minha irmã ser uma dama era impossível e questionar as regras levava a
nossa mãe ao limite. Nunca vi minha mãe descontrolar-se, ela podia testemunhar o
insuportável e não levantar sua voz. Cherry não amadureceu ao ficar mais velha, ela
usava a casa toda com seu quintal e a deixava como tal:
- Por que o vaso italiano da sala está quebrado? Nem sei por que pergunto,
Melanie venha até aqui, pois isto é um desastre você deve ter trato fino ao se mover.
Deve manter seu equilíbrio e dos objetos a sua volta.
Ambas tinham esses confrontos diários, eu gostaria de ter me confrontado
com meu pai. Em nossas conversas eu era um ouvinte, muitas das questões eu sabia a
resposta e sentia um despropósito em prolongá-las. Quando me aprofundei nos
estudos e realizei muitas conquistas, atendi suas expectativas e a relação paternal
ausente era alterada pelo orgulho providencial.
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Entre Melanie e nossa mãe, os enfrentamentos causados pela desobediência
sempre tiveram consequências, o método aplicado por minha mãe era a indiferença. O
amor de Melanie por tudo que existe era facilmente atingido por um olhar ou algumas
palavras:
- Mãe haverá uma apresentação no colégio e todos podem comparecer, aqui
está o convite.
- Coloque-o na mesa, verei se posso ir.
A indiferença era manipulada por ambas, mas funcionava somente contra
Cherry. Após o descaso de minha mãe, Melanie fingia não se importar. Mas sentia as
consequências, se continha e chorava escondida. Nesses momentos eu tinha reação
emocional:
- Cherry! Eu vou te assistir, pode ter certeza!
Meu amadurecimento precoce era apenas intelectual, apenas tardiamente
perceberia as consequências dessa proximidade. Descobriria que está dependência
aparentava ser maior por parte dela, mas resultaria no contrário. Haviam recordações
destas ocasiões, até contra o pai em favor dela:
- Melanie, esses papéis são de negócios, você nunca mais use meus papéis
para desenhar!
- Não foi ela senhor! Fui eu quem os retirou e dei a ela.
- A sim Richard, claro, evite que se repita.
Meu pai abdicava da responsabilidade e se afastava em favor do filho
exemplar, mas a cada intervenção em favor da irmã, eu apenas ampliava nossa
dependência.
A um preço a se pagar pela busca das realizações, o meu é emocional. Soube
da consequência assim que estabeleci minhas alternativas. Neste caso o preço seria
abandonar minha irmã com meus pais.
Apesar de não parecer grave, sentia culpa. Ironicamente um programa de
televisão que Melanie gostava me veio à mente. Era sobre o cão, Lassie, que precisava
se afastar por correr perigo, seu dono, um menino, atirava pedras para que ele se vá. O
cão hesita, mas eventualmente parte.
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Em nosso décimo quinto aniversário, há muitos convidados, todos de minha
irmã, eu apenas fico próximo de Caroll, ela não compartilha amizades em comum de
Cherry. Sempre senti estas comemorações como uma obrigação social, minha
presença, menos importante, sempre foi por minha irmã. Aquele foi nossa última
comemoração juntos.
No ano seguinte, evitava ir para casa e passava cada vez menos tempo com
Melanie. Ela frequentava escolas consideradas fracas e fazia amizades excêntricas. Nas
poucas datas, quando estávamos reunidos na mansão, não era mais cúmplice de seus
atos:
- Ei, cabeção, nossos pais e de Caroll não estão, vamos até lá. Ela está sozinha e
podemos ficar a toa.
- Não Cherry. E acho que Carol não está sozinha em casa.
- Qual seu problema. Virou um imbecil desde que foi para aquela
Universidade de conservadores. E desde quando não quer ir visitar a Caroll?
- Cherry, você não precisa de mim para decidir o que fazer. E para seu
entendimento, eu e Caroll nos damos muito bem.
- E para seu entendimento Caroll é minha amiga e você não sabe mais dela do
que eu. Até mais, imbecil!
Percebi que minha inveja da exuberante felicidade de Cherry possui uma
imperfeição. Nestes anos separados quando a reencontro, oposto a sua alegria, vejo
ansiedades e raiva. Ela estava infeliz e eu não podia ajudá-la, só o tempo podia. Em
breve deveria superar isso, pois iria para Universidade e nossa separação seria
permanente.
Ela sempre quis sair de casa e acredito que nesse novo ambiente ela fará
novas amigas, influenciará outros com sua individualidade e não precisará mais de
mim.
Por outro lado em minha casa tenho de enfrentar abertamente minha decisão
ou manter o meu silêncio.
Na noite antes do meu retorno para meu último ano na Universidade, fui à
sala de meu pai. Iria enfrentá-lo pela primeira vez e a minha maneira:
- Senhor, gostaria de conversarmos sobre o futuro.
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- Me diga o que o aflige, meu jovem?
- Quanto a minha graduação, gostaria que compreendesse que após minha
formatura não pretendo retornar para casa. Estarei assumindo um projeto em um
local distante.
- O que? Jamais! Eu pretendo que fique aqui. Você é um Quannt, não vai
trabalhar para ninguém. Você tem uma obrigação com está família!
- Acredito nisso e pretendo retornar. Mas, para minhas qualificações, as
melhores oportunidades estão fora do país. É exatamente o que preciso para alcançar
o máximo de meu potencial.
- Eu não paguei seus estudos para você virar um punk sujo e passear pelo
mundo, não pode decidir por si e vai fazer o que eu achar melhor. Irá se formar e
voltará para casa. Não quero ouvir mais nenhuma palavra sobre isso.
- Senhor, sinto muito que pense assim, mas não pretendo mentir. Eu vou
partir.
- NUNCA! Eu não pagarei mais seus estudos e não lhe darei mais nenhum
centavo. Se não estiver aqui após a formatura, estará deserdado. Não me desafie meu
jovem ou não será nem mais meu filho.
Penso, “eu n~o me considero seu filho h| muito tempo senhor Quannt.”
- Se esta é sua decisão eu não vou mais tomar seu tempo. Adeus senhor.
- Você está louco, ligarei para seus mestres e mostrarei com quem está
lidando. Você vai implorar para voltar, seu canalha infame e traidor vil. Saia de minha
casa e só retorno quando recobrar o juízo!
Anos aguardando o momento, apenas para uma discussão, que desprovê a
dinastia da família. A óbvia derrota era prevista e antecipei até este resultado. Não me
dispensariam da Universidade, já tinha projetos em andamento e uma bolsa de
estudos, se precisasse. Apesar do trágico resultado, fico apreensivo quanto à reação de
minha mãe e minha irmã.
Do lado de fora de seu escritório pessoas estarrecidas pelos gritos em minha
presença. Melanie me olha com se dissesse:
“- Sua raposa astuta e ardilosa. Vai me deixar aqui.”
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Aproximo-me de minha mãe:
- Você ouviu?
- Ouvi o suficiente para saber que pretende nos abandonar.
- Sua dramatização sobre isso não me comove, preciso apenas que aceite
minha decisão sem impor restrições.
- Você pode partir, mas nós ficaremos com seu pai. Se ele não o apoia como
nós poderíamos? Não vou impor nada, pois sei que não sente por nós o mesmo que
sentimos por você. Se quiser partir, apenas vá.
- Não fui eu quem estipulou estas condições.
- Nossa família sempre teve um herdeiro poderoso, o que você vai buscar?
- Poder? Não existe somente um tipo de poder. Este poder aqui é ilusório.
Estou inquirindo algo superior ao poder.
Melanie saiu de casa, foi para além dos muros, subindo a colina, pela estrada
de cascalhos deserta. Eu corro por ela e estamos próximos ao entardecer, eu a alcanço:
- Cherry, me perdoe!
- Eu sabia. Senti que você estava aprontando algo. Caroll me disse que você
estava diferente. Foi por isso que se afastou? O que vai fazer? Vai me deixar aqui,
sozinha? Eu sei que não nos falamos, mas sempre achei que ficaríamos próximos. Eu
apenas não sei o que pensar, mas estou orgulhosa, você enfrentou o “senhor”, em
grande estilo. Ele te chamou de “Punk vagabundo”, logo você! – risos.
- Foi “Punk sujo”, e eu n~o sou como você. N~o consigo cruzar a linha v|rias
vezes.
- Eu percebi, apenas uma vez e você estragou tudo que fez até hoje.
- É mesmo, eu te superei nessa.
- E por que vai embora, tem tudo aqui, te esperando?
- Eu vou partir, não pelos mesmos motivos que você tem. Estou pronto para
realizações extraordinárias, se ficasse me tornaria inapto e deixaria todos a minha
volta miseráveis.
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- Para onde está indo?
- Distante, muito distante.
- E quando vai retornar?
- Não vou, não posso, como pôde ver, não poderei retornar, mas vou voltar
por você!
- Você promete?
- Eu prometo.
Agora, dentro da cabine telefônica, a garoa e o silêncio deixaram minha mente
se ocupar. Iria ligar para Melanie para dizer que não vou manter minha promessa. Não
o faço, também não faço questão de ser feliz, se fui, em algum momento, foi por estar
com Cherry.
Aceitava o peso da gnose sapiência, se voltasse para casa me tornaria
medíocre e limitado e espalharia minha infelicidade. Não havia solução mais absoluta
que partir. Talvez meus familiares se recuperassem, eu não sou um perito em
emoções, apenas assumo meu declínio como membro da família por um motivo
egoísta e racional. Passaria a vida tentando alcançar uma verdade absoluta.
No sereno da noite fria, entro em um táxi para o aeroporto. Como combinado,
um voo aguarda, com destino marcado, Riad, Arábia Saudita.
Na aeronave é recebido pelo amigo e colega de Universidade, Príncipe Nayf
Fahd:
- Salaan Aleikum Richard. Meu país será seu país, meu convidado e amigo.
- Alaikum As-Salaam Nayf. Espero que possamos mudar o mundo logo meu
amigo. O atual está me enlouquecendo. Podemos partir agora.
A chegada seria difícil para um ocidental, mas nosso plano já estava em
execução. Um centro de tecnologia destinado a materializar projetos e desenvolver a
ciência em seu país. Cientistas e uma equipe, já assumiram a responsabilidade sobre
os projetos de Richard. Sua presença faz parte da finalização dos trabalhos dos últimos
anos.
Nayf era a mente jovem daquela nação e eu sou a prova de sua competência,
ambos compartilharíamos o sucesso. O dinheiro da família de Nayf estava
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patrocinando o meu projeto de satélites. Algo que nos colocaria na vanguarda da
comunicação. As peças do desenho do projeto foram fabricadas, na Europa,
importadas e montadas.
Em alguns momentos ligo para casa, os empregados sempre informam que
Melanie não está. Como nossa segurança é rígida não posso religar a todo o momento.
Conforme os meses se passam, concluo que qualquer ligação para Melanie será
neutralizada. A tática padrão de indiferença está sendo aplicada em meu nome.
Tentarei outros meios, mas prevejo um longo tempo sem contatá-la. Concentro-me em
meus projetos:
- Está terminado, carregaremos o software e concluiremos o treinamento
para a equipe de operação do satélite. Quanto ao lançamento, está agendado, tudo
dependerá do governo. O que precisa Nayf?
- Os obstáculos mais caros foram ultrapassados, o combustível, o foguete e o
local de lançamento. Mas falta a inclusão do meu país no tratado de exploração
espacial, para então sermos signatários de uma parte do espaço. Isto está sendo feito
pelo nosso Ministério da Defesa. O lançamento também é um conflito de interesses
com outros países, tenho de provar a intenção pacifica. É tudo política e por isso o
lançamento vai ser na América do Sul.
A construção dos satélites é cara, mas lucrativa, com dois mercados
economicamente viáveis, EUA e Japão. Um complexo plano como esses não aguardaria
conclusões, em paralelo outras, atividades se desenvolviam. Em breve deixarei este
país e seguirei com meus projetos. No momento as tentativas de Nayf me manter aqui
ou tentar me casar com uma de suas irmãs são constantes, mas as diferenças culturais
são demasiadas:
- Nayf, sabe que honro sua amizade e família, mas tenho que continuar meu
caminho. Vou partir seguindo para próxima fase. Isto foi só o começo.
- Sim amigo, mas antes que parta, viaje comigo, você gosta de aprender, vou
lhe mostra meu país e nossas fronteiras, será nossa última aventura.
- Está bem. Uma rápida experiência sempre é bem vinda.
Pelo menos um mês pelo deserto, pela zona neutra Saudita-Iraquiana, em
missões, incursões e conflitos, realmente experiências que ajudaram minha aparência
juvenil a ficar madura. Entendi que ele quis, o deserto faz o espírito endurecer e o
corpo adquirir experiências, forte experiências.