As possibilidades entre Geografia e Literatura: conteúdos geográficos em Morte e Vida Severina
Autores: Francisco Ednilson de O. Sá
Guilherme Menzl
Orientadora: Ms. Marlene Xavier dos Santos
São Paulo, 2010.
AGRADECIMENTOS
Agradecemos a Deus pela vida e pela possibilidade de concluirmos mais esta etapa de nossa vida.
Aos meus familiares, meus pais, Expedito e Meyrisflan por terem incentivado a realização deste
trabalho e a minha querida companheira Marisa, pois só ela sabe quantas noites foi para cama
sozinha, enquanto eu tentava dar ordem ao caos no processo de elaboração da redação final e a
minha avó Conceição (IN MEMORIAN) que não pôde esperar o bastante para ver o resultado de seus
preciosos conselhos e sua doce companhia. Sinto saudades dos seus cafunés...
À UNIBAN pela concessão da bolsa.
Aos professores Antonio Poso, Maria Alice, Maria Augusta, Eliston, Ricardo Ferreira, Renata, Amélia
Cristina, Célio, Eduardo Coelho (o semita), Edgar e Helenice. Vocês me fizeram chegar mais longe do
que eu mesmo imaginava.
Aos amigos que muito contribuíram, incentivaram e apoiaram esse trabalho. Valeu Edson, Ana,
Diógenes, Jorge, Andréia Cottini, Andreza, Cíntia e Suellen, que apesar da distância, continuou
incentivando meus estudos.
A minha orientadora, professora Marlene Xavier dos Santos pela sua paciência e perseverança,
acreditando e investindo em nosso potencial.
Francisco Ednilson de Oliveira Sá
À todos que de uma maneira ou outra colaboraram, incentivaram, criticaram, apoiaram todos os
momentos que fizeram com que eu chegasse até este ponto e que, continuam a me incentivar pela
continuidade desta nova fase de minha vida.
Em especial à minha companheira Eros Voluzia, principal apoiadora e incentivadora ao meu retorno à
academia, que teve de aguentar minhas inseguranças e mau-humores.
À minha filha Gaya que teve de dividir o pai com com a elaboração deste trabalho.
À grande amiga e mentora Maria Conceição D'Incao, que me deu olhos dialéticos para a
compreensão e apreciação do mundo e que desde sempre achou que eu deveria voltar a academia.
Aos professores, Maria Alice, Helenice, Ricardo, Amélia, Eduardo, Célio, Grillo, João Batista, Antonio
Poso, que acreditaram neste novo, "velho", aluno pelo incentivo
.
E, é claro, à Orientadora, Mestre e professora Marlene Xavier dos Santos, que além do incentivo e
críticas teve de aguentar e cortar os arroubos intelectuais.
Guilherme Menzl
“A Geografia está em toda parte.”
Dennis Cosgrove.
“È necessário saber pensar o espaço, para saber nele se organizar, para saber nele combater”.
Yves Lacoste.
“A literatura é um instrumento com grande capacidade para desenvolver um senso crítico de ver”.
Lloyd e Salter.
SUMÁRIO
Agradecimentos ................................................................................................................ 01
Introdução........................................................................................................................ 05
Geografia e literatura: um breve histórico.......................................................................... 07
1. O lugar da literatura como recurso pedagógico no pensamento geográfico.................... 10
1.1.1. A exclusão de dimensões do imaginário e simbólico na ciência geográfica:
uma questão política antes de metodológica................................................................. 14
1.1.2. O porquê dessa exclusão metodológica na geografia............................................... 15
1.1.3. A questão da fenomenologia e suas contribuições ao tema...................................... 17
1.1.4. Crise da Geografia Tradicional e solicitação às mudanças....................................... 20
1.1.5. A crítica à Geografia Cultural. De qual Geografia Cultural falamos ?..................... 29
1.2. Justificando a importância da arte como recurso pedagógico: espaços imprescindíveis a uma
análise geográfica que a literatura atinge e a Geografia não............................... 33
2. Morte e Vida Severina: contextualizando a escolha da obra................................. 36
2.1. A obra, o autor.............................................................................................................. 37
2.2. A obra constrói uma Geografia da fome: um retrato do Brasil.................................... 40
2.3.1. As migrações/a retirância: A população como recurso/a mobilidade como política
de Estado...................................................................................................................... 40
2.3.2. O conceito de lugar: aproximações com o tema....................................................... 48
2.3.3. Questões de Identidade: A construção de um mito: a unidade nacional fraca como
um retirante, um Severino......................................................................................... 53
2.3.4. Cidadania: afinal de que cidadania falamos?............................................................. 62
2.3.5. Cidadania e Geografia .............................................................................................. 63
2.3.6. Mapeamento das emoções: espacializando a trama.................................................. 67
3. Conclusão..................................................................................................................... 70
4. Bibliografia...................................................................................................................73
5. INTRODUÇÃO
A presente pesquisa procura utilizar a literatura enquanto recurso metodológico tanto no
ensino médio como no fundamental. Para demonstrarmos a importância desse recurso utilizaremos
como estudo de caso o poema Morte e Vida Severina do autor pernambucano João Cabral de Melo
Neto extraindo dele conteúdos geográficos que nos possibilitem uma visão interdisciplinar da obra
estudada.
O uso da literatura enquanto recurso pedagógico aliado à geografia é importante, pois ela (a
literatura) tem enorme potencial de abrangência concernente a temas que são de caráter universal
como: amor, ódio, perda, solidariedade, pobreza e paz, possibilitando sua utilização na produção do
conhecimento.
Outra característica importante da literatura é que a mesma é um produto social que carrega
em sua construção vários signos, símbolos e situações vivenciadas pela humanidade em seu
cotidiano. Embora essas questões sejam de caráter subjetivo/abstrato, elas se realizam através da
relação espaço-tempo do educando/indivíduo.
Dessa forma, visamos “resgatar” a sensibilidade do educando criando alternativas para uma
aprendizagem mais significativa e, ao mesmo tempo, mais condizente com sua realidade. Assim,
buscamos utilizar a objetividade da ciência junto à subjetividade literária, resultando numa
compreensão mais holística sobre o espaço geográfico e os fenômenos que se originam sobre ele.
1. GEOGRAFIA E LITERATURA: UM BREVE HISTÓRICO
No mundo ocidental, desde a antiguidade, o espaço geográfico é codificado, para que nele se
dê a localização das atividades humanas, a descrição dos lugares, dos fenômenos naturais e
"sobrenaturais".
A própria palavra geografia implica na descrição dos fenômenos observados e, portanto,
sujeita à percepção, à leitura de mundo daquele que a grafa. Os relatos míticos, do sagrado e do
profano, impregnados de imagens geográficas, são a interpretação e representação em linguagem
literária, do mundo conhecido e do desconhecido.
Relatos dos feitos humanos, mesmo quando se davam por imagens grafadas nas paredes das
cavernas, repletas de simbolismos, já continham descrições do espaço e seus fenômenos, neste caso,
aqueles que tinham relação direta com a subsistência e reprodução da vida; animais, caçadas, vida e
morte.
O espaço geográfico tem nos relatos de viagens, nos relatos de batalhas, conquistas e
derrotas, desde a "antiguidade", sua expressão mais literária e geográfica, visto que os lugares,
fenômenos naturais e artificiais, e principalmente, os povos contatados, subjugados ou não, vão
permear o imaginário documental destes registros, alguns dos quais sobreviveram até nossos dias.
Homero, com sua Ilíada, ou Heródoto ou ainda Estrabão, que realizaram estudos
descrevendo os aspectos naturais e sociais das terras, por onde andaram, são geografia e literatura
ao mesmo tempo.
A cartografia, enquanto linguagem, continha, como contém em nossos dias, não só a
descrição gráfica da localização dos lugares e dos fenômenos, mas também a visão subjetiva da
imaginação do mundo vivido. Monteiro1(2002, p.136), define assim essa característica humana:
Seja na escala daquela pequena comunidade marítima, no seu limitado espaço de atuação, seja na escala global hoje conquistada pelas altas tecnologias, o que existe como traço comum é aquele anseio de entender o espaço em que se vive.
A carta de Caminha narrando o achamento das Terras a sudeste de Portugal, é literária e
geográfica. Hans Staden, em suas peripécias pelo território tupinambá também o é. Marco Polo, com
seu relato, exitou a imaginação com suas descrições do mundo oriental, sua vastidão, povos e
marcos geográficos. Júlio César, com sua narrativa da campanha da Gália, mostra a importância da
geografia enquanto arma estratégica, e não deixa de ser literatura e filosofia política. A Bíblia, tirando
seu aspecto religioso, também contém uma geografia do Oriente Médio e é literária na medida em
que expressa a ação humana, seus dramas e fatos por sobre o espaço profano e o espaço do sagrado.
Podemos dizer então, que a imaginação literária contém um suporte espacial que pode ser
utilizado na compreensão dos fenômenos geográficos, físicos (naturais) e humanos e, por se
utilizarem de imagens, que nos remetem à nossa leitura de mundo, os tornam mais acessíveis e
fáceis de serem entendidos.
1 MONTEIRO, C. O mapa e a trama: ensaios sobre o conteúdo geográfico em criações romanescas. Florianópolis: Editora da UFSC, 2002.
Se pensarmos que a literatura é, por si mesma, uma leitura de mundo e que tem sua ação
nas relações humanas imbricadas no espaço e que essa ação, a trama (as histórias), pela qual a
condição humana é comunicada, então ela tem necessariamente que conter um lugar, uma
paisagem, real ou imaginária, aonde se desenrola. Portanto, esse conteúdo, em nosso estudo
geográfico, implícito ou explícito, pode ser extraído.
Essa questão, a do uso da literatura como recurso na ciência geográfica, discutida
timidamente desde o início do século passado, toma vulto a partir de 1970, com a crise
paradigmática por que passava o pensamento geográfico e que vai dar origem a uma Geografia
Cultural, de cunho humanista e à Geografia Crítica, de cunho marxista, em oposição a corrente da
“nova” geografia quantitativa dominante até então.
Essa corrente da Geografia Cultural, procura colocar o sujeito, como ator e não como
recurso, no centro de seus trabalhos e atenção. Direta ou indiretamente fazendo uso da
fenomenologia, utilizam-se da literatura como fonte para avaliar a originalidade e a personalidade
dos lugares. O lugar, então, é o foco central de seu discurso a medida que neste se realiza a
materialidade das relações sociais, do afeto e da identidade.
A literatura, por sua vez, tem sua trama realizada nos lugares, sejam ficcionais ou não, é a
representação de uma determinada localidade baseada no conhecimento/vivência do autor e de sua
leitura de mundo.
O professor geógrafo, pode então, em sala de aula, aliar essa característica da Geografia,
sondar os possíveis conteúdos geográficos (Monteiro, 2002, p. 136) em obras literárias, em nosso
caso, Morte e Vida Severina de João Cabral de Melo Neto.
A trama da obra, se localiza no nordeste brasileiro, num recorte geográfico que vai do sertão
ao litoral pernambucano, no período em que, o país passava e ainda passa, por uma "modernização"
das relações sócio-espaciais de produção: a substituição dos engenhos pelas usinas, dada a
necessidade exportadora em função da 2ª Grande Guerra. A intensificação da
urbanização/industrialização do sudeste e de partes urbano-litorâneas do país, gerando um
imaginário "libertador" mas, na realidade, transferindo a miséria do lugar, dos "sertões nacionais" ao
urbano/litoral, às periferias paulistanas, aos morros cariocas, aos mangues recifenses.
Severino, o personagem da trama, percebe e expressa liricamente a aceleração do tempo,
pela incorporação de novas tecnologias à produção canavieira; a substituição dos engenhos pelas
usinas e a consequentemente modernização dos saberes e do trabalho relacionados a ela.
"[...]
- Em qualquer das cinco tachas
de um benguê sei cozinhar;
sei cuidar de uma moenda,
de uma casa de purgar.
- Com a vinda das usinas
há poucos engenhos já;
nada mais o retirante
aprendeu fazer por lá?
- Ali ninguém aprendeu
outro ofício, ou aprenderá:
mas o sol, de sol a sol,
bem se aprende a suportar.
[...]”
Severino retirante, se aproximando do Recife, após a travessia do Agreste e da Zona da Mata,
têm a compreensão do tempo acelerado e o diz liricamente:
"[...]
Agora é que compreendo
porque em paragens tão ricas
o rio não corta em poços
como ele faz na Caatinga:
vive a fugir dos remansos
a que a paisagem o convida,
com medo de se deter,
grande que seja a fadiga.
[...]”
Essa aceleração do tempo, o rio não pára de correr, não se detém, como uma metáfora das
novas relações de produção, pode ser conceituada, nos dizeres de Milton Santos como a passagem
do Meio Natural ao Meio Técnico e utilizado como recurso pedagógico, na explicação da
reformulação da economia nordestina, sua inserção histórico-espacial na economia sistema mundo,
bem como das configurações sociais a ela atreladas. Das relações de poder político, econômico e
territorial à reprodução da miséria enquanto forma de domínio sócio-espacial.
De acordo com Monteiro (2002, p 137), a Geografia, "malgrado as limitações e insucessos
por que tem passado através dos tempos, vem permanecendo como veículo da Educação" e esta
associação com outros saberes, outros imaginários, pode permitir a compreensão do espaço
geográfico brasileiro, mundial, local, pela percepção do vivido, do experienciado, do outro em
relação a nós mesmos, na construção de uma nova cidadania.
1.1 - O lugar da literatura como recurso pedagógico no pensamento geográfico
Segundo o Parâmetro Curricular Nacional de Geografia (1998, p.26):
A Geografia tem por objetivo estudar as relações entre o processo histórico na formação das sociedades humanas e o funcionamento da natureza por meio da leitura do lugar, do território, a partir de sua paisagem.
A literatura é, em última análise, uma construção simbólica, de significados relacionados à
percepção do espaço interno e externo, físico e mental, tanto do narrador quanto do leitor, portanto,
ela pode fornecer uma leitura do mundo cujo entendimento está também relacionado aos tempos
históricos de vivência de ambos.
A geografia tem no espaço e nas relações humanas imbricadas o seu objeto de estudo e
ação; já a literatura tem sua ação nas relações humanas imbricadas no espaço, de modo que
podermos afirmar que ambas atuam dentro do mesmo campo: o espaço físico e vivido. Segundo
Monteiro2 (2002,p. 14) "À noção de realidade geográfica, juntar-se-ia aquela outra, antropológica do
imaginário".
Ao apresentar sua localização, nominal e geográfica, num ermo, afastado inclusive do
registro religioso, comum à época, em terras cuja propriedade ancestral nos remete à colonização do
sertão, no caso o nordestino, às sesmarias, e modernamente, nas mãos de coronéis, senhores da
morte e vida, fazedores de gentes, no entremeio da "serra da Costela" nos limites da Paraíba, nos dá
a idéia da quantidade de conteúdos geográficos, históricos, sociais, contidos no poema.
A serra da Costela, recurso literário, já que enquanto um lugar concreto a serra não existe,
trás consigo a imagem de ossos descarnados, à mostra, traduzindo liricamente, o relevo do semi-
árido sertão nordestino, suas chapadas caatingas, por onde respiram gentes, presas em suas mortes
em vida.
Nesses poucos versos, citados acima, pode-se abstrair conceitos que podem ser utilizados na
compreensão do espaço e suas relações com o homem e deste com outros homens. Conceitos como
relevo, lugar, do processo de ocupação do sertão nordestino, historicamente associado a produção
canavieira, exportadora, excludente.
As formas de domínio do território, do poder dos coronéis, senhores de terras e homens,
povoadores de mestiçagem e desigualdades, cujas "patentes militares", foram obtidas nas décadas
iniciais do século passado, como forma de aliciamento destes, ao combate às lutas "sociais" do
cangaço e, principalmente, à Coluna Prestes, cuja marcha ameaçava desestabilizar o "status quo”
vigente.
Come se vê, a Geografia pode então, se apropriar do discurso literário acrescido da
racionalidade científica, explicar a apropriação do espaço geográfico, de seus fenômenos sócio-
espaciais.
A geografia tem no lugar, na paisagem e no espaço seus conceitos centrais e na ação humana
sobre eles sua explicação e percepção. Monteiro3 (2002, p. 14), expondo suas idéias sobre a relação
entre espaço geográfico e literatura, considera que: "A construção do lugar ou do conjunto de
lugares que um romance contém levaria a consideração de que o espaço é ao mesmo tempo, meio
do sentido e também seu objeto”.
2 Ibid.
3 ibid.
Se pensarmos que nossa percepção primeira do mundo que nos cerca se dá através dos
sentidos, ou como diz, analogamente, Paulo Freire4, que a leitura do mundo antecede a leitura das
palavras, o mundo então, deixa de ser o mero suporte, meio da vida biológica para ser mundo a
partir do momento em que o ser humano intervém nesse suporte de maneira criativa, de outra
maneira, nos apropriando novamente da explanação de Monteiro5, (1999, p. 14):
A esse espaço exterior, contrapõe-se aquele outro, de dentro do individuo, para a passagem dos quais se realiza aquela 'viagem' (ler já é viajar) ao mesmo tempo trajetória física e moral, externa e interior, real e simbólica, que pode conduzir tanto à noção do cheio quanto do vazio.
Desta forma, compreendemos que, as imagens geradas pela percepção do espaço interno e
externo do sujeito e armazenadas no inconsciente, dão suporte à imaginação quando resgatadas
pela linguagem prosaica, poética ou artística. Estas imagens têm a função de explicar o desconhecido
pelo conhecido.
Percebemos a paisagem, o lugar, como uma imagem de um recorte do espaço atribuído de
sentido, cujo conteúdo vai além do visível, na medida em que impregnada pelo imaginário do
observador, tanto a nível do individual quanto coletivo que, quando comunicada, é ao mesmo
tempo, a descrição do momento vivido e a descrição do passado.
A comunicação humana, ou seja, a linguagem, pode ser compreendida como a significação
descritiva das coisas e ações, dando sentido e ordem a essas mesmas coisas e ações, e que, portanto,
contém todo um arcabouço de percepções do espaço, historicamente dinâmicas e cumulativas, desta
apreciação do mundo.
Isso reflete também a diversidade das concepções de mundo, de modos de vida, associados
aos mais diversos lugares e regiões na medida em que o homem, ao se apropriar coletivamente de
seu ambiente constrói sobre ele um conjunto de significados que vão propiciar a formação das
identidades, coletivas e individuais relacionadas a esse mesmo espaço. Como explica Cosgrove 6,
numa análise que faz da questão:
4 Freire, Paulo. A Importância do Ato de Ler. In Questões da Nossa Época em Três Artigos que se Completam. Editora Cortez, 2001.
5 Ibid.
6 COSGROVE, Dennis E. Em direção a uma Geografia Cultural Radical: Problemas da Teoria in Introdução à Geografia Cultural. Orgs. por CORRÊA, R. L., ROSENDHAL, Zeny. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.
Os seres humanos experienciam e transformam o mundo natural em mundo humano. Produção e reprodução da vida material, é, necessariamente, uma arte coletiva, consciente e codificada simbolicamente. Essa apropriação simbólica do mundo produz, linguagens, estilos de vida e paisagens distintas, histórica e geograficamente específicas.
Essas manifestações simbólicas, essas representações, aquilo que se convencionou chamar
arte, podem ser compreendidas como a comunicação codificada esteticamente dessa apreciação do
mundo vivido, seja qual for o suporte sobre o qual se apóiam.
O teórico literário Chklovsky7, em seu artigo "A Arte como Procedimento", diz:
A poesia assim como a prosa é antes de tudo, e sobretudo, uma certa maneira de pensar e conhecer e a poesia é uma maneira particular de pensamento, um pensar por imagens e essa maneira trás uma certa economia de energias mentais, 'uma sensação de leveza relativa.
Visto que a imagem "tem por objetivo ajudar-nos a compreender sua significação e visto que
sem essa qualidade a imagem priva-se de sentido, então ela deve ser para nós mais familiar do que
aquilo que ela explica".
Assim sendo, é importante observar que para a Geografia, a imagem está implícita no
conceito de paisagem, e que esta, trás em si a percepção do espaço pela imagem do objeto/lugar
observado. Portanto, a imagem é percebida como um conjunto de informações, a qual são atribuídos
sentidos e compreendidos pela consciência, associada à leitura de mundo do observador e que são
espaços vividos.
O lugar é provavelmente uma das noções de pertencimento mais antigas;
antropologicamente falando, desde que o ser humano, ao procurar abrigo e sepultar e reverenciar
seus mortos elegeu determinados locais de referência, atribuindo um sentido e significado afetivo a
ele, a noção de lugar passa a ter uma relevância geográfica na produção material e simbólica do
espaço vivido.
7 CHKLOVSKI, A Arte como Procedimento in Teoria de Literatura. Jornalistas Russos. Porto Alegre. Globo, 1976.
A constituição da noção de cidadania, também tem, nesta percepção de pertencimento a um
lugar, sua origem; a partir do desenvolvimento das aldeias e cidades, tanto como lugar de abrigo e
aconchego, de defesa, dos mitos do sagrado e do profano. A crescente organização e fragmentação
do espaço pela divisão social do trabalho e a conseqüente elaboração de códigos de direitos e
deveres, a instituição da Lei, enraízam esta idéia. Mesmo que essa noção seja percebida/apropriada
de forma diferente, pelos grupos que compõe o todo socio-espacial, ela é em si mesma, algo a ser
alcançado e ou vivido, apesar de que, na maior parte das vezes, negada.
Somam-se a isso, as correntes migratórias que fazem parte da apropriação/desapropriação
do espaço geográfico seja por questões naturais como o esgotamento das condições materiais de
sobrevivência - aumento demográfico, desastres naturais, como por questões político/econômicas
de expansão de determinado grupo e/ou de um novo modo de produção da vida material,
incorporação de novas tecnologias e redistribuição das áreas produtivas e, utilizada/incentivada pelo
Estado na incorporação e efetivação de domínio territorial, tal como ocorreu no Brasil, por exemplo,
com os Soldados da Borracha e posteriormente nas políticas de colonização do Centro-Oeste e da
Amazônia Brasileira.
Esta percepção do espaço, está também associada às imagens pretéritas da leitura de
mundo, uma vez que as recebemos de herança, impregnadas de emoções e significados, singular e
plural em sua localização. Essa percepção, também está presente nos ciclos literários brasileiros,
principalmente no Romantismo, no Realismo e no Modernismo. Essa literatura vai produzir,
regionalmente, percepções distintas, da produção do espaço brasileiro.
O romanceiro regional nordestino é exemplo disto, e este trabalho a que nos propomos,
busca mostrar as possibilidades geográficas aí contidas, para pedagogicamente, sensibilizar as
percepções, do educando, nos níveis fundamental e médio, pela vivência do outro, na percepção da
construção do espaço cidadão ao qual estamos inseridos.
A segregação espacial da sociedade é percebida nos versos. Os bairros ricos, a classe média
(funcionários e autônomos) e a população obreira, cada qual sendo enterrado em cemitérios
distintos, como se mesmo na morte, a diferenciação classista têm que ser reforçada. Morremos
todos, mas só nossas posses determinam qual nossa posição perante os vivos. O espaço mortuário
reproduz a desigualdade. A especulação "imobiliária" não permite a igualdade dos corpos ao mesmo
tempo em que naturaliza essa diferença.
1.1.1. Algumas considerações a respeito da exclusão de dimensões do imaginário e
simbólico na ciência geográfica: questão política antes de metodológica
Platão expulsa os poetas de sua República. Sua percepção do poder do simbólico, do
imaginário, como formas de conhecimento do mundo vivido, para além do racionalmente ordenado
e, portanto, passível de ser controlado, o leva a conclusão de que os poetas, portadores do sensível,
desestabilizadores da ordem devem ser excluídos da sociedade.
Da mesma forma, no período no qual o mundo ocidental imergiu no modelo feudal
teocrático e teológico, o universo do simbólico, do imaginário, percebido enquanto subversão da
ordem dominante, também era proibida. Umberto Eco, no romance O Nome da Rosa, mostra isso. A
questão do riso, como expressão do prazer dos sentidos, entrava em desacordo com a introspecção
contida do pensamento teológico, ordenador e dominante da sociedade de então.
Todo conhecimento advindo do simbólico, do imaginário, impregnado de sentidos e
significados, discordantes à ideologia teocrática, mesmo que provindos de autores consagrados,
deveriam ser expurgados, na medida do possível, queimados junto com seus criadores, como por
exemplo, Giordano Bruno, imolado por achar que havia outros mundos, outros imaginários, outras
maneiras de se enxergar o mundo e não apenas aquela imposta pela Teoria cristã na qual, os
europeus ocidentais, eram os únicos povos dotados de Razão, por direito Divino e, portanto,
destinados a se impôr sobre o planeta.
Conclui-se então que a exclusão do imaginário, do simbólico, no pensamento geográfico é
mais uma questão política. Na medida em que o mundo ocidental principalmente, na constituição
dos Estados Territoriais Modernos necessitava de quantificar e mensurar seu espaço, ou melhor,
racionalizar seu domínio, a instituição de um novo simbólico, a Nação, na figura do Rei, se impunha
por sobre os lugares e suas manifestações imateriais. O simbólico passa a ser a Nação, o território de
domínio da razão, da matemática, da estatística e, portanto, tudo o mais, têm que se adequar a essa
visão de mundo.
Galileu Galilei, ícone deste paradigma afirma que "Aquilo que não pode ser medido e
quantificado não é científico", se torna a máxima da chamada Era Moderna. Segundo Gonçalves8, o
mundo surgido daí, é um "mundo morto, desvinculado da visão, da audição, do paladar, do tato e do
8 GONÇAVES, Carlos W. P. Da Geografia às Geografias: Um Mundo em Busca de Novas Territorialidades; II Conferencia Latinoamericana y Caribeña de Ciencias Sociales, Universidad de Guadalajara, México, novembro 2001.
olfato" e, com isso, "relegou a sensibilidade ética e a estética, os valores, a qualidade, a alma, a
consciência e o espírito”. A experiência foi lançada para fora do âmbito do discurso científico.
1.1.2. O porquê dessa exclusão metodológica na geografia
A questão que se impõe aqui é que na medida em que a produção simbólica é apropriada por
parte do corpo social, em função da divisão social, espacial e sexual do trabalho humano, como
justificativa e forma de naturalização da dominação de um segmento social sobre outro separando e
fragmentando o conhecimento e codificando-o a "cultura" torna-se então, assim como os meios de
produção, uma categoria, um conjunto de saberes, propriedade de uma classe.
O conhecimento, fragmentado, pôde assim ser disseminado através das instituições
apropriadas, criadas com finalidade de reproduzir uma visão de mundo, de organização espaço-
temporal dos lugares, dos territórios que paira acima das massas despossuídas e despreparadas,
material e simbolicamente, para gerirem sua própria existência.
Todas as sociedades humanas transmitem seus saberes e valores de uma geração a outra e a
isto chamamos de Educação, mas a instituição escolar, responsável socialmente por esta
transmissão, surge, no mundo ocidental, no processo de transição entre o que chamou de modo de
produção feudal para o modo de produção capitalista, não só se caracteriza pela transmissão dos
saberes necessários a reprodução do capital como fragmenta o conhecimento, e, sobretudo,
reproduz especialmente os valores da classe dominante, naturalizando as diferenças sócio-espaciais.
Esse processo educacional, desde o início excludente, uma vez que, apenas o filho desta nova
classe de comerciantes, além é claro, de parte da nobreza, tinham acesso, vai reforçar o surgimento
de uma classe letrada, aos poucos enriquecida, tanto financeiramente quanto pelo conhecimento
adquirido no contato com outros povos e culturas. Essa mesma retomada comercial, vai impôr novas
maneiras de se produzir mercadorias em escala e ao mesmo tempo ensejar um novo papel às
cidades e ao território e, consequentemente, estruturar uma visão de mundo adequada às suas
necessidades.
Aliada à realeza, essa classe vai estruturar o Estado Moderno, onde a racionalidade contábil,
matemática na organização do território, com a unificação da moeda, de pesos e medidas e,
principalmente, com a unificação lingüística, permitiu a espacialização da Nação, enquanto uma
entidade acima dos indivíduos e personalizada na figura do Rei.
O processo de institucionalização da escola pública, surge como uma necessidade,
primeiramente nos principados germânicos, em função de uma futura unificação territorial, de
unificação cultural e submissão de uma população a um projeto nacional e, ao mesmo tempo, uma
necessidade de instruir a mão-de-obra às novas técnicas industriais que se aprimoravam noutros
países onde a Nação já havia se constituído e liberado as forças produtivas do capital no território.
O conhecimento advindo das novas técnicas e das descobertas de novas terras, seus recursos
e riquezas, além de novas culturas e povos, vão impor um novo ritmo ao modo de produção em
curso, desagregando ainda mais as formas tradicionais do modo de vida agrário em que se baseavam
as relações sociais e de poder e criando novas territorialidades. Este processo desencadeia uma crise
social sem precedentes, ao mesmo tempo em que gera uma riqueza, até então inimaginável gera
também uma miséria à grande maioria da população.
A sistematização das ciências, “concluída” em fins do século XIX, especializando cada ramo
do conhecimento e dentro de cada um, fragmentando seus conteúdos de forma que esses ramos não
dialogassem entre si, vão refletir na instituição escolar, onde esses saberes são transmitidos,
mecanicamente, de forma que o educando não tome conhecimento do todo, ao mesmo tempo em
que transmite valores como a organização do tempo, da disciplina e a tentativa de naturalização das
desigualdades sociais.
1.1.3 -A questão da Fenomenologia e suas contribuições
A fenomenologia é o estudo dos fenômenos que se dão na consciência, daquilo que se
percebe através dos sentidos e, que pode ser entendida como a percepção essencial do mundo que
engloba toda maneira de olhá-lo: consciente e inconsciente, objetiva e subjetiva, inadvertida e
deliberada, literal e esquemática. "A percepção nunca é pura: pensar, sentir e acreditar são
processos simultâneos e interdependentes” 9.
Surgida como uma corrente filosófica no início do séc. XX, com o filósofo Edmund Husserl,
em reação ao pragmatismo científico que embasava as ciências desde o séc. XVIII, a fenomenologia
se apóia na intuição essencial do mundo vivido e a busca dos sentidos e das intencionalidades
humanas.
9 LOWENTHAL, David. Geografia, experiência e imaginação: em direção a uma epistemologia geográfica in CHRISTOFOLETTI, A. Perspectivas da Geografia, São Paulo: Difel, 1982.
Nesse paradigma, o entendimento do espaço se desenvolve através da percepção que o
sujeito tem do espaço em que vive, ou seja, o espaço vivido através das subjetividades que o mesmo
obtém. Devemos ainda levar em consideração as questões concernente ao seu modo de vida, a
religião, a cultura de modo que o espaço deve ser compreendido em diferentes escalas, desde o
quintal de sua casa até um Estado-nação se tornam formas distintas de percepção do espaço vivido.
A construção do sentimento concernente ao espaço vivido além de variar de escala para
escala varia também a construção do significado em relação ao seu espaço, pois o homem está
envolto de espaços vividos que possuem e compreendem o espaço de maneira diferente. Dessa
forma, o geógrafo humanista deve, ao elaborar suas análises ir “se colocando como estrangeiro para
que consiga compreender o espaço vivido do outro”.
Na análise fenomenológica, é necessário procurar avançar na busca de unidades de
significado para o enriquecimento das análises sobre o espaço geográfico, ou seja, buscar entender
as subjetividades que o homem utiliza para representar o espaço vivido sejam elas imagens,
sensações, sentimentos, vivências que colaboram para a transformação da paisagem e
conseqüentemente, o espaço geográfico.
Outra característica importante da fenomenologia é a questão do sentido de lugar, pois cada
pessoa tem um lugar “natural” que é considerado como ponto zero do seu sistema pessoal de
referência10. Este lugar geralmente é colocado dentro de uma série de lugares que se juntam para
formar regiões significativas para os indivíduos delas participantes, porém existem alguns lugares
mais privilegiados dentro de uma “hierarquia espacial” do sujeito onde ele elege alguns lugares
preferenciais em função de experiências e acontecimentos por ele vivenciados.
Para a fenomenologia, a ciência se faz a partir de uma visão, de uma interpretação que o
homem dá ao objeto de estudo. Merleau-Ponty, filósofo para o qual a percepção é o ponto de
partida para a compreensão dos fenômenos, inclusive da ciência, diz:
Tudo aquilo que sei do mundo, mesmo por ciência, eu o sei a partir de uma visão minha ou de uma experiência do mundo sem a qual os símbolos da ciência não poderiam dizer nada. Todo o universo da ciência é construído sobre o mundo vivido, e se queremos pensar a própria ciência com rigor, apreciar exatamente seu sentido e seu alcance, precisamos primeiramente despertar esta experiência do mundo da qual ela é a expressão segunda.
10 BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
O espaço, na fenomenologia, é compreendido como o espaço presente, diferentemente do
espaço geométrico e científico. Para a Ciência o espaço é dimensional, mensurável, quantificável,
para a fenomenologia ele é um contexto, uma experiência sensível, uma percepção do "aqui"
relacionado a outros lugares e ao tempo, o "agora" que trás em si a lembrança do passado e a
projeção do futuro.
A noção de espaço, envolve uma complexidade de idéias, relacionada à percepção: o visual, o
tato, a audição, o movimento que combinadas nos dão a capacidade de reconhecer e estruturar a
posição dos objetos. Esse reconhecimento implica, por sua vez, no reconhecimento de intervalos e
da distância entre eles e, consequentemente, da noção de tempo.
Portanto, o espaço e, sobretudo, o lugar, na medida em que envolvem o emocionalmente
percebido são para a geografia humanista, as categorias centrais de seu enfoque epistemológico. A
valorização da percepção e das ações humanas decorre da preocupação em verificar os gostos, as
preferências, as características e as peculiaridades dos lugares; valorizam-se o contexto ambiental e
os aspectos que envolvem o encanto e a magia dos lugares, sua personalidade e distinção. Há um
entrelaçamento entre os homens e os outros lugares. Há também uma percepção temporal, uma vez
que espaço e tempo são aspectos de uma mesma realidade.
O filósofo Henri Lefebvre11, propõe uma concepção da produção do espaço a partir da
fenomenologia da percepção. Defendendo uma teoria única do espaço, uma ligação entre o espaço
físico - natureza, espaço mental - abstração formal sobre espaço e espaço social - espaço ocupado
por fenômenos sensoriais, inclusive os da imaginação, no qual os reinos da percepção, do simbolismo
e da imaginação não são separáveis dos espaços físicos e sociais.
Para ele, o espaço deve ser compreendido de forma espacialmente trialética, pois são três as
dimensões pela qual ele se manifesta. O espaço percebido, o espaço concebido e o espaço vivido.
O espaço percebido, nos é revelado pela decifração do espaço, é empírico e passível de
medição, portanto, materialista. É continuamente apropriado e reafirmado no mundo estruturado
com arranjos sócio-espaciais existentes, materializados no espaço construído e sedimentado nas
paisagens. Apresentam-se mesmo em suas contradições espaciais, num campo de mudanças, onde o
poder e seus limites são exercidos pelo Estado e pela sociedade.
11 Discutindo Conceitos e Metodologias: Paisagens, Textos e Produção do Espaço Migrante, 1º Simpósio de Pós-Graduação em Geografia do Estado de São Paulo, Rio Claro, 2008.
O segundo, o espaço concebido, é o espaço dos acadêmicos, urbanistas, tecnocratas. São,
“espaços mentais dominantes de discurso de regulação”, onde estão inseridas a ideologia, as
representações do poder, controle e vigilância, pela qual a ordem social é legitimada. É por ele, que
se interpreta a realidade: pelas representações imaginadas da espacialidade. É também o lugar para
as interpretações decodificadas, pensamentos e visões utópicas para a imaginação pura e criativa de
alguns artistas.
Por fim, o espaço vivido, que além de conter os dois primeiros, é ao mesmo tempo, distinto e
diferenciado de ambos. Pode ser interpretado como o espaço subversivo e clandestino da vida social
na medida em que desafia criativamente as práticas espaciais e o poder dominante. É um espaço
vivido, de usuários e habitantes. É o espaço do sujeito, das imagens e símbolos que o acompanham.
Um espaço da percepção que vai além da objetividade pragmática do espaço concebido.
Combinando o real com o imaginário, objetos e pensamentos em termos iguais, ou pelo menos sem privilegiar um sobre o outro a priori, esses espaços vividos de representações são o terreno para o desapontar de contra-espaços, espaços de resistência à ordem que decorrem precisamente da sua posição subordinada periférica e marginal, seria o espaço do outro12.
Para o geógrafo Carlos Augusto F Monteiro, a indissolubilidade da ligação espaço-tempo é
acrescida em complexidade, tanto pela variação escalar dos espaços quanto pelos sentidos do
tempo. Dessa forma, a ligação entre geografia e literatura deve ser compreendida como um
continuum entre a configuração da paisagem e a condição humana e explicar que tanto a paisagem
(tomada como expressão genérica de lugar), para o geógrafo, quanto à escrita, para o romancista,
estão centradas na condição humana.
Assim, podemos concluir que a Fenomenologia é importante não somente como
procedimento científico, mas também como caminho para a conscientização existencial
demonstrando a necessidade de compreendermos os valores envolvendo a vida cotidiana que
através de vários tipos de educação e socialização diferentes influenciam no desenvolvimento de
vários meios gêneros de vida.
A fenomenologia nos mostra que não há separação entre as dimensões de caráter tanto
subjetivo como objetivo concernente ao conhecimento científico e procura desmascarar falsos
12 Ibid.
questionamentos e pressupostos ideológicos de modelos científicos tradicionais. Todavia, sua ênfase
está na questão da experiência do sujeito mediante o mundo que o circunda e no qual ele é ao
mesmo tempo, protagonista como coadjuvante.
1.1.4.- Crise da Geografia Tradicional e a solicitação a mudanças
A geografia sempre foi uma ciência muito criticada pela sua falta de objetividade teórica e
metodológica. Suas abordagens sempre foram extremamente cientificistas e tradicionais o que
consequentemente influenciou diretamente na sua utilização no estudo do homem.
Suas explicações eram pautadas mediante dados frios, gráficos e generalizações, levando o
papel do sujeito para segundo plano. Entretanto, a geografia é uma ciência humana e como tal deve
trazer a tona os problemas de caráter social, econômico e cultural que se dão sobre o espaço
geográfico no qual a sociedade está inserida, ou seja, a geografia tem o papel de servir como
“óculos” visualizando os problemas e dificuldades situadas nos discursos e ações de nossos
governantes e demais agentes, construindo assim, um mundo mais justo e eqüitativo para que o
cidadão possa viver e desenvolver-se em sua totalidade.
Para isso a geografia necessitou de várias mudanças para melhor compreensão do sujeito
em suas múltiplas dimensões, mas principalmente buscando entender questões de caráter subjetivo
que, outrora foram esquecidas, porém voltaram à tona auxiliando no entendimento da vida humana.
A arte literária enquanto recurso pedagógico pode contribuir com a geografia na leitura da
sociedade, pois a arte consegue penetrar nas dimensões mais profundas do homem, resgatando seu
imaginário popular, suas emoções e seus sentimentos mas íntimos. Enfim, a arte nos possibilita
entender o homem e suas alegrias, tristezas, medos, sofrimentos e angústias que acontecem em
qualquer lugar do planeta, ou seja, são problemas que de caráter universal.
Para compreendermos melhor as mudanças efetivadas na ciência geográfica faremos então,
um pequeno panorama da história do pensamento geográfico buscando entender suas rupturas
teóricas e metodológicas.
A geografia nasce como ciência a partir do século XIX com o positivismo. Nele, a geografia era
pautada na redução da realidade, ou seja, com base na aparência dos fenômenos. Dessa forma todos
os trabalhos eram baseados em fatos reais, palpáveis e quantificáveis, limitando a geografia à
realização de trabalhos voltados ao empirismo.
Outra característica do positivismo era idéia de um único método de interpretação que fosse
padrão às demais ciências. Como conseqüência disso, observamos a tentativa de naturalização dos
fenômenos humanos que deveriam ser pautados pelas ciências naturais onde, segundos eles, eram
as ciências mais evoluídas.
O homem era visto apenas de maneira secundária, sendo considerado apenas em conjunto
com a natureza, apesar de citado nas várias introduções de trabalhos, acaba sendo reduzido a um
fator coadjuvante. Outra característica dessa corrente é a idéia da Geografia como ciência de síntese
onde a geografia relacionaria as várias áreas do conhecimento visando melhor entendimento do
mundo “real”. Isso resultou tanto no empobrecimento dos conhecimentos geográficos e na
superficialidade de suas análises.
São criados vários princípios para servir de sustentáculo dessa disciplina. Alguns deles
elaborados com base na pesquisa de campo e que jamais poderiam faltar nas análises de um
geógrafo entre eles: o princípio de atividade, princípio de extensão, princípio da localização, entre
outros. Esses princípios funcionaram como “guia” nas pesquisas geográficas e resultaram na
formação de várias generalizações e, consequentemente, numa série de propostas antagônicas tais
como: Geografia-Física, Geografia-Humana, Geografia Geral e Geografia Regional, entre outras. A
falta de objetividade e clareza concernente ao problema do objeto em seu nível teórico, continuará
assombrando a geografia por muito tempo.
A geografia sistematizada aparece no início do século XIX na Alemanha, país que estava
atrasado economicamente com relação aos demais países e fragmentado, pois não tinha um governo
centralizado que potencializasse as ações do estado sobre o território. O país era dominado pelos
grandes latifundiários, mantendo dessa forma, a estrutura feudal intacta. Porém, é nesse quadro que
aparecerá o capitalismo, sem alterar a ordem vigente, ou seja, há um relativo desenvolvimento do
capitalismo, mas com a mesma aristocracia agrária no poder.
A partir daí, temos um desenvolvimento econômico que integra elementos capitalistas como
à produção para o mercado externo junto à produção e o trabalho servil, porém as altas taxas
alfandegárias entre os principados13 e ducados alemães, não promovem grandes transformações e
crescimento das cidades bem como o próprio crescimento da burguesia fica prejudicado. Visto que
não há uma revolução democrático-burguesa na Alemanha, esta só se desenvolverá junto ao Estado,
13 A Alemanha era um aglomerado de feudos, os principais eram os principados, ducados e reinos.
Estado este dominado pela aristocracia agrária. Esta era a situação da Alemanha na virada do século
XVIII.
Em função do expansionismo napoleônico e da sedimentação das relações capitalistas vão
desenvolver nas classes dominantes a idéia de unificação nacional. Isso é observado como algo
prioritário para a continuação do desenvolvimento econômico da Alemanha. Em 1815, temos a
primeira tentativa de unificação concreta entre os principados alemães e reinos da Prússia e Áustria
que apesar de não constituir uma unificação nacional, já estabelecem maiores laços econômicos
entre seus membros. Nesse contexto, temos a propagação da Geografia. A geografia surge na
Alemanha, pois a questão espacial era de fundamental importância naquele país, naquele momento.
As principais contribuições de uma geografia sistematizada serão de dois autores prussianos
ligados à aristocracia: Alexandre Von Humboldt, conselheiro do rei da Prússia, e Karl Ritter,
proveniente de uma família de banqueiros. Ambos pertencem à geração que vivencia a Revolução
Francesa, pertencentes à elite acadêmica alemã. Humboldt tinha formação de naturalista, fazia
várias viagens e não tinha a intenção de formular princípios normativos para formação de uma nova
ciência.
Para ele a Geografia era uma espécie de síntese de todos os conhecimentos relativos à
terra14. Isso fica bem explícito mediante sua visão sobre o objeto de investigação da Geografia: “A
contemplação da universalidade das coisas, de tudo que existe no espaço concernente a substâncias
e forças, da simultaneidade dos seres materiais que coexistem na Terra15”. De acordo com sua visão,
a Geografia seria mais um ciência sintética preocupada com a associação entre os vários elementos
para a compreensão das causalidades provenientes da natureza.
Já a obra de Ritter é extremamente metodológica, visa a proposição de uma Geografia de
caráter normativo, sua formação é bem distinta, é formado em Filosofia e História, já Humboldt era
geólogo e botânico. Para Ritter, o conceito de sistema natural é uma área delimitada dotada de uma
individualidade, ou seja, a geografia deve estudar as particularidades da terra e cada arranjo
comportaria um conjunto de elementos que representam uma totalidade , onde o principal agente
seria o homem. Dessa forma, a Geografia seria um estudo dos lugares visando a individualidade
destes.
A proposição de Ritter é antropológica, pois para ele o homem é o sujeito da natureza,
buscando o entendimento das individualidades dos lugares valorizando a relação homem-natureza.
Ritter vai enfatizar as suas análises sob as perspectivas empiristas, variando de observação em
14 MORAES, A. C. R. Geografia: Pequena História Crítica. São Paulo: Editora Hucitec, 1983. 15 Ibid.
observação. Esses autores são os sustentáculos da Geografia Tradicional, todos os trabalhos
posteriores serão baseados em seus pressupostos sejam para confirmá-los ou para contradizê-los.
A Geografia de Ritter é antropocêntrica, voltada para valorização homem como agente
principal da relação entre homem-natureza. Já Humboldt, busca abarcar todo o Globo sem privilegiar
o homem16. Vale ressaltar a importância que eles tiveram na institucionalização da Geografia como
ciência embora não tenham deixado discípulos, influenciaram todas as escolas da Geografia
Tradicional posteriores. A geração precedente avançará na sistematização de estudos especializados
(Geografia e Climatologia) do que com a Geografia Geral.
Há um intenso revigoramento no processo de sistematização da Geografia vai ocorrer
através dos estudos de Friedrich Ratzel. Este autor de origem prussiana e alemã é participante da
constituição real do Estado nacional alemão de modo suas formulações estão pertinentes e
correspondem com a época e sociedade da qual participou. A geografia de Ratzel foi um instrumento
de legitimação das políticas expansionistas do Estado alemão recém-formado.
Mesmo com a antiga Confederação Germânica, o poder ainda continuava muito espalhado
em várias unidades confederadas de maneira que as autoridades locais exigiam a constituição de um
governo central. A Prússia e a Áustria disputavam a hegemonia dentro da Confederação a tal ponto
que começaram uma guerra entre os reinos. A Prússia sai vencedora determinando que a
organização e a unidade administrativa fossem lideradas pela Prússia, ou seja, a Prússia teria o papel
de imprimir suas características na nova nação.
Uma das principais características da Prússia seria a organização militarizada da sociedade e
do Estado. Sua direção estava sob o controle da aristocracia Junker os donos das terras e
representantes da velha ordem feudal17. Essa administração estendeu a ação do Estado a todos os
outros setores da sociedade. Uma intensa repressão interna junto a uma agressiva política exterior
completou as mudanças implementadas pela nova nação, formando assim, o imperialismo alemão.
Outra estratégia utilizada para essa unificação alemã foi uma política cultural nacionalista estimulada
pelo Estado somado a sua participação em várias guerras com o objetivo de conquistar mais
territórios.
Ratzel é um autêntico representante do Estado, sua obra é uma proposta para o
expansionismo bismarckiano onde exalta o imperalismo ao dizer que a luta pela obtenção de
territórios é um dos principais motivos das guerras e disputas entre os povos sobre o globo terrestre.
16 Ibid.17 Ibid.
A principal obra de Ratzel foi escrita em 1882, cujo título é Antropogeografia – Fundamentos da
aplicação da Geografia à História, obra que pode ser considerada como fundadora da Geografia
Humana onde Ratzel considera como objeto geográfico o estudo das influências que as condições
naturais exercem sobre a humanidade.
Estas influências atuariam tanto na questão fisiológica como na questão psicológica (caráter)
dos indivíduos através da sociedade. Outro ponto importante é que a natureza influenciaria na
própria constituição social, em função das riquezas provenientes dos recursos obtidos em
determinadas localidades onde está inserida a sociedade. A natureza também influenciaria ou não a
expansão de um determinado povo que poderia ocasionar na mestiçagem ou no isolamento do
mesmo.
Para ele a sociedade é um organismo que mantém íntimas relações com o solo em função da
necessidade de moradia, alimentação, entre outros. À medida que esta sociedade se desenvolve,
torna-se necessária maior utilização do solo e consequentemente, a obtenção de mais territórios. De
acordo com ele, quando há organização da sociedade para defender um determinado território, o
mesmo constitui-se território. A perda de território seria símbolo de decadência de uma sociedade,
porém o progresso induziria a conquista de novos territórios.
Ratzel elabora o conceito de “espaço vital” que representaria certo equilíbrio entre
determinada população e os recursos de seu território sendo que à medida que os recursos não
fossem suficientes para sua manutenção, haveria a necessidade de anexar outros territórios para sua
sobrevivência, possibilitando assim, o imperialismo do Estado Prussiano.
Ratzel propôs uma Geografia que possibilitou a abertura de várias áreas de estudo, áreas
que valorizam a História e o espaço, formação de territórios, difusão dos homens sobre a terra
(migrações e colonizações). Enfim, buscando compreender a atuação da natureza sobre a evolução
da sociedade.
Os discípulos ratzelianos constituíram a chamada “escola determinista” de Geografia onde
afirmavam que o homem é um produto do meio, descaracterizando suas formulações. As teses
deterministas foram bastante utilizadas, apesar de sua fragilidade teórica, só para citarmos um
exemplo, basta observarmos os exemplos obtidos pela interpretação histórica brasileira concernente
essa teoria: o subdesenvolvimento como fruto da tropicalidade.
Outro ponto forte na obra de Ratzel foi a Constituição da Geopolítica, área de estudo voltada
à dominação dos territórios através das ações do Estado sobre o território. Os autores
desenvolveram técnicas que funcionavam visando à legitimação do imperialismo, entre os principais
autores estão: Mackinder, Haushofer e Kjéllen.
A escola ambientalista foi à última derivada das formulações de Ratzel. Nessa escola, o meio
ambiente é visto como suporte a vida humana, ou seja, existe uma relação de troca entre o homem e
os recursos naturais.
Posteriormente, teremos a Escola de Geografia Francesa instituída por Paul Vidal de La
Blache, embora essa corrente teórica venha se opor intensamente à Escola Alemã, observaremos o
contexto social e político sob a qual foi instituída.
A França em função da Monarquia Absolutista foi uma das nações que mais rapidamente
realizaram sua unificação, o que possibilitou a formação de uma burguesia com fortes aspirações a
nível nacional, transformando e implantando rápido domínio das relações capitalistas.
Com a Revolução Francesa, temos a ampliação dos debates referente a política, pois as
camadas populares travavam vários embates com a consolidação do domínio burguês. Assim,
percebemos que a “França foi o local do nascimento do socialismo onde o caráter das classes da
democracia burguesa de consolidou primeiro”.
As jornadas de 1848 e a Comuna de Paris junto com suas repressões evidenciaram o
declínio da fase heróica da burguesia e a sua luta para se manter no poder. Porém são mantidos os
discursos como veículos ideológicos visando a manutenção do status quo. Assim, a França mostra-
nos a rápida consolidação e domínio da sociedade burguesa. A Geografia serviu como instrumento
de análise para a população que fazia questão de manifestar suas diferenças com relação sistema
político vigente.
A geografia francesa começou a se desenvolver com certo dinamismo depois da derrota para
a Alemanha que resultou na perca dos territórios de Alsácia e Lorena de modo que acreditavam que
a guerra tinha sido ganha em função da atuação dos generais alemães, isso obrigou a França e pensar
melhor as ações e estratégias utilizadas para manutenção do território, ou melhor, para expansão do
território francês. Isso resultou na reorganização do ensino, dando maior atenção para as disciplinas
da Geografia e História no nível secundário.
Para Vidal, a Geografia nunca foi considerada como social, ao contrário, ele a considerava
uma ciência dos lugares. Foi criador da Escola chamada por muitos de possibilismo, pois para ele, o
meio exerce influência sobre o homem, porém o homem tem a possibilidade de transformar seu
entorno.
Vidal de La Blache foi encarregado de “pensar o espaço francês” de modo que buscou
através do liberalismo que era então apoiado pelas classes dominantes a buscar meios para
potencializar o discurso geográfico na França.
Sua Geografia era uma geografia dos Estados, voltada para manutenção e crescimento do
poderio francês que aliada a Geografia dos Professores, alienavam o verdadeiro significado desta
ciência em virtude da pouca ênfase dada ao fator humano, pois isso já mostrado de maneira bem
implícita por La Blache em seus dizeres: A Geografia é a uma ciência dos lugares.
Suas análises foram voltadas principalmente para a questão do conceito de região, pois La
Blache era um exímio pesquisador de campo, dizia que o geógrafo deveria desenvolver um olho
clínico para analisar as formações regionais. Para ele, as regiões eram lugares dotados de aspectos
físicos, econômicos que se sobrepunham aos aspectos humanos.
Atribuiu intensa importância ao conceito que chamava de “gênero de vida”. Para ele gênero
de vida era o conjunto de ações que se interavam junto aos costumes utilizados para adaptação dos
homens ao meio geográfico. Algo próximo do conceito antropológico de cultura.
Dessa forma, podemos observar que a Geografia Tradicional não abria possibilidades para as
análises do âmbito do simbólico, ou seja, das questões referentes às características subjetivas dos
sujeitos sobre seu ambiente d convívio.
Posteriormente, o impacto do pós-guerra sobre a Geografia estimulou diversos debates
acerca de sua natureza juntamente com o impacto da tecnologia sobre o conhecimento geográfico,
isso levou os geógrafos a buscarem reformulações científicas e filosóficas sobre seus pressupostos.
Essa reformulação resultou na elaboração de vários métodos de análise: Teoria dos sistemas,
Teoria dos jogos, reformulação do Estruturalismo, entre outros. Desenvolve-se então um intenso
debate a respeito da natureza e as metodologias do conhecimento geográfico.
Uma das conseqüências dessas discussões, foi a criação da corrente geográfica Teórico-
Quantitativa que de tinha como principais característica, o uso de modelos matemáticos e
estatísticos em suas análises. Seus defensores negavam a importância do trabalho de campo, pois
acreditavam que as análises laboratoriais dariam conta de explicar os problemas a partir de tabelas,
gráficos e diagramas.
Ao contrário dos trabalhos empíricos, a Geografia Teorética buscava nas reflexões teórico-
matemáticas para a resolução dos problemas geográficos. Essa corrente é iniciada com os trabalhos
do geógrafo sueco Torsten Hargerstrand no final da década de 40, como resultado de sua
preocupação com as modificações ocorridas na agricultura com a utilização de novas técnicas
implantadas através das máquinas agrícolas.
É nos Estados Unidos que essas idéias tiveram grande difusão, pois vários estudantes 18
estudaram as relações entre os estudos urbanos, a comunicação e métodos utilizados nas reflexões
de caráter geométricos na análise dos problemas de caráter espacial social e econômico.
Países como a Alemanha e a França que tiveram sólida formação Clássica serviram como
pontos de resistência contra as idéias quantitativas que estavam sendo amplamente nas academias
geográficas americanas e inglesas através de livros, congressos e sobretudo, a União Geográfica
Internacional. Até mesmo no Brasil, suas idéias tiveram bastante aceitação de modo que a UNESP se
tornou um dos principais centros de estudos e propagação dos ideais quantitativos do Brasil.
Por outro lado, os geógrafos que buscavam compreender questões de caráter social
vinculados aos problemas situados na realidade brasileira19 reagiram buscando uma interpretação
marxista dos problemas de âmbito geográfico. Esses geógrafos buscavam mostrar a importância e o
comprometimento que os geógrafos deveriam ter com asa transformações sociais que estavam
acontecendo no Brasil.
Outra vez, podemos observar o desprezo dos geógrafos pragmáticos em enfatizar a
importância do homem sobre o meio, ou seja, o homem é apenas um fator secundário nas análises
geográficas quantitativas, pois o que realmente interessa são os dados, gráficos e tabelas para
explicação do conhecimento geográfico.
A partir dos anos 70, temos a difusão da corrente chamada por muitos de Geografia Crítica,
cujo papel principal foi desmarcar o papel de neutralidade ideológica obtido pela geografia e se
configurar como arma de transformação social contra a ordem instituída. Essa corrente objetiva a
ruptura com as demais correntes geográficas (Tradicional e Teorética). Essa geografia propõe uma
Geografia Militante, que lute por uma sociedade mais justa e igualitária, pensando assim, a Geografia
como instrumento de emancipação humana.
Essa corrente, de origem marxista procura compreender as razões que levaram essa ciência a
se tornar um discurso ideológico vazio, sem utilização prática para a sociedade. Assim, esclarecem o
importante papel da Geografia na organização do espaço e nas relações entre homem e meio
18 Estudantes como Walter Christaller e Alfred Weber.
19 Entre eles Caio Prado Junior e Josué de Castro.
ambiente que, muitas vezes é analisada sem levar em conta a divisão de classes e os conflitos que
são gerados em função disso.
Esses geógrafos demonstram a importante relação entre a geografia e dominação das
classes no capitalismo. Um de seus principais autores foi Yves Lacoste com seu livro: A Geografia –
isso serve em primeiro lugar, para fazer a guerra onde o autor propõe que o discurso geográfico
pode ser realizado em dois objetivos: a Geografia dos Estados-Maiores e a Geografia dos Professores.
A primeira sempre existiu, pois o poder sempre esteve presente na luta pela obtenção de
terras de modo que esse objetivo visa o estabelecimento de estratégias de ação para domínio
terrestre. Já a Geografia dos Professores, procura mascarar a importância da Geografia como um
saber estratégico através da elaboração de teses e monografias tediosas sobre a população, relevo,
entre outras. Porém sem mostrar a importância de uma análise integrada dos fatos e das variáveis
em questão.
A Geografia Crítica teve suas origens nas alas progressistas da Geografia Regional francesa,
essa ala vai gradualmente interando-se nos processos de caráter econômico e social na organização
do espaço, abrindo as discussões mais políticas nas análises geográficas. Tal discussão possibilitou
maior ênfase no elemento humano na Geografia Francesa. Assim, a Geografia aproximou-se da
História e da Economia.
A obra, Geografia Ativa escrito por vários geógrafos, entre eles: Pierre George, Yves Lacoste,
Bernard Kayser e R. Guglielmo, marcaram toda uma geração de geógrafos, pois o objetivo desta obra
era descobrir todas as contradições espaciais do modo de produção capitalista, ou seja, explicar as
regiões com base nos seus sistemas de operação, suas contradições sociais: pobreza, miséria, favelas
e outras condições negativas em que a população se encontrava.
Outro dos mais importantes geógrafos da Geografia Crítica foi Milton Santos que buscou
elaborar um renovado arcabouço teórico-metodológico para esta ciência. Começando pela
explicação do que é a Geografia e como devem ser realizadas as análises geográficas. Para ele, o
espaço geográfico é um verdadeiro campo de forças onde as energias são provindas da dinâmica
social. Classifica o espaço como algo histórico, pois ao mesmo em que é a morada humana, é
também obra do trabalho,constituindo assim, uma categoria que auxilia na compreensão da
realidade.
Ele argumenta que toda ação do homem sobre o espaço geográfico implica na transformação
da superfície terrestre criando outras formas, de modo que, a cultura, a tecnologia e a organização
da sociedade determinam a organização do mesmo. O autor advoga a idéia de que nas sociedades
capitalistas, a organização do espaço e voltada em função da acumulação. Dessa forma, alguns
lugares dotados de boa infra-estrutura, acabam se tornando os locais de distribuição desigual e
combinada de capital, originando as verdadeiras ilhas econômicas.
Para ele, a geografia deve ter como unidade de análise, o Estado-Territorial, pois somente
analisando essa escala pode-se realmente entender os processos que se configuram em
determinados lugares do território. Enfim, a Geografia Crítica ainda que tenha evoluído concernente
à análise e o papel do homem na transformação do espaço, ainda não se desenvolveu de forma
suficiente para resolução de problemáticas de caráter abstrato e/ou simbólicos.
Concluímos que tanto a Geografia Clássica como a Quantitativa ou a Crítica não focaram o
homem e seus atributos internos nas análises geográficas, contribuindo para o atraso da disciplina
em lidar com questões de caráter abstrato e/ou subjetivo, tornando esta ciência
1.1.5.- À Crítica a Geografia Cultural. De qual Geografia estamos falando
Antes de mais nada, devemos explicitar o que entendemos por cultura. A cultura para nós, é
tudo que o homem produz, seja material ou imaterial. Não se pode separar a produção da
materialidade da vida biológica da produção simbólica, de sentido e de significados sobre a qual essa
materialidade se processa e se transforma. Denis Cosgrove diz que o papel da geografia cultural é
compreender a interação da dimensão humana com a natureza e seu papel na ordenação do espaço.
À medida que o ser humano interage com a natureza de forma consciente com fins a sua
reprodução biológica ele constrói os instrumentos simbólicos, os significados e os objetos materiais
com os quais vai transformar essa mesma natureza. A natureza é humanizada através do uso
humano, não tem forma nem coerência fora da atividade humana, que reproduz sociedade e
natureza num modo de vida, que dá origem a regiões e lugares distintos.
Marx e Engels, em seus postulados afirmam que nos tornamos verdadeiramente humanos ao
produzir nossos meios de subsistência e de vida material de modo definido, e que esse modo de
produção não deve ser considerado apenas como simples reprodução da existência física dos
indivíduos, mas como forma definida da expressão de suas vidas, do modo de vida definido por parte
destes. Desta forma, concebiam a produção material e a produção simbólica como unidade dialética,
onde uma não pode existir sem a outra, embora se neguem mutuamente, são ambas produto da
ação humana.
É essa relação dialética, o determinante é ao mesmo tempo determinado, que produz
"linguagens, estilos de vida e paisagens distintas, histórica e geograficamente específicas". A essa
produção de significados, simbólicos e materiais, chamamos culturas, no plural, pois são, sociais,
temporal e espacialmente distintas e diversas.
A geografia cultural, que têm afinidades com a antropologia, na medida em que a cultura e
suas manifestações espacialmente localizadas são consideradas categorias centrais de seu objeto:
"compreender o mundo vivido de grupos humanos", ao eleger estes fenômenos não-materiais,
espacialmente localizados, tende a uma análise geograficamente determinista e regional. Daí a
centralidade do lugar em seus postulados.
Os primeiros geógrafos culturais, segundo Cosgrove, influenciados pelo determinismo
geográfico, no qual os fenômenos culturais não materiais eram considerados resultados de fatores
geográficos ao mesmo tempo enfatizam a unidade da sociedade e a importância da compreensão
histórica.
Para ele, Vidal de la Blache reconheceu uma relação entre vida humana e natureza muito
similar a de Marx e Engels:
Noção de que um país é um ventre no quais as sementes adormecidas da vida foram semeadas pela natureza, mas no qual seu crescimento e uso dependem do homem ao submeter à terra a seus usos, revela sua individualidade para a incoerência de circunstancias locais ele introduz um conjunto sistemático de forças definido e diferenciado que se torna, com o tempo, uma medalha gravada na imagem de um povo20.
Modo de vida é a unidade de cultura e natureza. O reconhecimento de Vidal emerge de sua
prática de geografia e história, mas é substancialmente o mesmo reconhecimento que Marx derivou
a partir do encontro filosófico com o idealismo hegeliano.
Nos EUA, Sauer, defendeu uma unidade entre cultura e natureza, ao afirmar que "os objetos
que existem juntos na paisagem formam um todo indivisível, no qual terra e vida têm devem ser
20 COSGROVE, Denis. Em Direção a uma Geografia Cultural Radical: Problemas da Teoria in Introdução à Geografia Cultural. Lobato, R., ROSENTHAL, Zeni, Bertrand Brasil, Rio de Janeiro.
vistas juntas”. Ao dividir, conceitualmente, a paisagem em natural e cultural, sendo uma um estágio
sobre o qual a outra opera, ele remete a um processo de transformação.
A maneira pela quais as características culturais se combinam, no espaço, produz um modo
de vida e a personalidade da paisagem, também remetem às questões teóricas levantadas por Marx.
Tanto Vidal quanto Sauer, em face ao forte determinismo em geografia, enfatizaram a cultura
humana como sendo uma força determinista na transformação da natureza.
Vital e Sauer forneceram à geografia conceitos estáticos: região e paisagem cultural; e
dinâmicos: modo de vida e ação humana que dependem, inicialmente de compreender a relação
entre cultura e natureza dialeticamente, não privilegiando nenhuma, apesar de que na prática, a
corrente determinista, derivada do positivismo linear venha à tona. Posteriormente, Ley mostrou
que essa escola vidaliana, produziu uma degeneração na abordagem dialética na coleta/classificação
dos fatos da paisagem que foram destituídos do contexto histórico e tratados funcionalmente.
A dialética não foi considerada através da especificidade da produção humana e dissolvida
tanto na reificação idealista da cultura como agente de mudança, como num semi-determinismo
"possibilista", empobrecendo a geografia cultural, preservando um sentido de significado cultural na
compreensão da paisagem, mas falho em aprofundar uma análise teórica. Para alguns autores, de
acordo com Cosgrove:
O geógrafo cultural não está preocupado em explicar o funcionamento interno da cultura ou com a descrição dos padrões de comportamento que afetam a terra e seu ecletismo: a geografia cultural revela um padrão de preferências pessoais...uma ênfase sobre o papel do homem como agente da modificação ambiental, um viés em favor de áreas rurais, uma preocupação com a cultura material, a busca de suporte na antropologia, uma preferência por trabalhos de campo em vez de uma geografia de gabinete.
Considerações importantes a respeito do tema da ação humana sobre o ambiente levaram as
contribuições geográficas às teorias ecológicas e de difusão. A evolução tecnológica é considerada
como tendo seu próprio momento interno ou baseada em condições ambientais apelando-se para
princípios ecológicos de adaptação e difusão.
Apesar do foco em idéias, crenças, atitudes e valores, nascidos historicamente a partir da
relação entre grupos humanos e seus ambientes e tendendo a tratar a "Weltanschaung 21" como
autônoma, internamente lógica e auto-transformadora, esses estudos levantam inevitavelmente
questões sobre origem e transformação do sistema de crenças. Tuan, "submete-se à tentação de
basear estes em atributos humanos biológicos ou fisiologicamente universais, dando assim pouca
oportunidade para explicar as mudanças".
Geógrafos culturais, cujo interesse pela tecnologia, trabalho humano e recursos (as forças de
produção) tem sido abrandados pelo interesse mais recente pelas relações de produção - a forma de
interação social que estrutura essas forças e lhes dá significado.
A interação simbólica, na qual "torna-se difícil separar o processo de comunicação da
substância da cultura se adotar a visão de que todo comportamento, num contexto social-
sensorial, é comunicação". O comportamento humano é inconcebível fora de um contexto
social-sensorial e a essência desse contexto é a produção humana.
A Cultura, então, pode ser reduzida à interação entre pessoas. A interação de um
indivíduo com outro modela a natureza de seu eu e é uma advertência importante contra a
reificação da cultura, mas despreza contextos materiais. Falta aqui, de acordo com Cosgrove,
o conceito de modo de produção, isto é, "pela forma de apropriação dos excedentes e a
forma correspondente de distribuição social dos meios de produção".
O tema homem-meio ambiente na geografia cultural é de interesse comum para a geografia
cultural e o marxismo. O interesse do geógrafo cultural pela paisagem, mesmo que afastado do
discurso teórico, pode trazer ao marxismo uma dimensão ignorada. "Reconhecer a individualidade
dos lugares produzidos e mantidos pela ação humana é o fundamento mais duradouro da geografia
e, na prática, sua contribuição acadêmica mais significativa."
O reconhecimento de paisagens e lugares como produtos da atividade humana intencional,
repleta de significados, vem ampliar a compreensão da cultura na geografia humana e relaciona-la
mais intimamente aos insights das ciências sociais, entretanto, a geografia humanista focaliza sua
atenção sobre indivíduos, negligenciando exames históricos das relações de produção, voltando-se
para o idealismo fenomenológico.
Geógrafos radicais, sugeriram que o conceito de Formações Econômico Sociais (FES), pode
em sua especificidade geográfica introduzir a síntese de elementos em específicas áreas que
21 Significa visão de mundo no idioma alemão.
determinam sua personalidade. O conceito de FES é flexível tanto em seu reconhecimento da
importância dos modos subdominantes de produção, quanto de sua vinculação com áreas
específicas.
O capitalismo globalizado, ao final do séc. XX, atravessa até mesmo os limites dos Estados-
Nacionais, obscurecendo o caráter distinto das áreas tradicionalmente estudadas pelos geógrafos
culturais. Isso fez, com que estes, se voltassem frequentemente, às formas do passado e suas
características residuais, que deram personalidade a áreas locais, em detrimento do estudo das
relações entre modo de produção e lugar. Dessa forma Cosgrove afirma que “A incorporação de uma
sensibilidade e a compreensão do significado dos lugares na teoria marxista seria uma contribuição
inestimável da geografia cultural”.
1.2. Justificando a importância da arte como recurso pedagógico: os “espaços”
imprescindíveis a uma análise geográfica que a literatura atinge e a Geografia não.
A arte sempre foi um meio de comunicação universal, não importando qual seja seu suporte
físico, seja nas paredes das cavernas, o pergaminho, o papiro, os papéis de arroz chinês, as tábuas
cerâmicas da mesopotâmia, sempre foram à representação gráfica, codificada do sagrado e do
profano, do sentimento e da visão de mundo.
A arte tem como objetivo principal à busca de sentido, criação, inovação, buscando
responder os desafios que se processam diariamente em nossa realidade circundante. Juntos aos
demais conhecimentos formam as representações simbólicas de cada povo e cultura.
As manifestações artísticas buscam constituir uma síntese das nossas significações através de
imagens poéticas, visuais, sonoras e corporais. Porém, as representações artísticas estão interligadas
à objetividade daquilo que é material junto à lógica e construção do imaginário social. Desta
maneira, podemos observar que a arte possibilita ao educando e/ou sujeito múltiplas leituras e
interpretações que variam tanto na dimensão subjetiva como a objetiva.
A arte nos possibilita a constituição de uma “mente criadora” que permite ao ser humano a
articulação e a possibilidade de criar situações, experiências, fatos e idéias que interligados junto à
linguagem, permite-nos expressar nossas sensibilidades e visões relativas ao mundo em que
vivemos.
Assim, a arte é um instrumento de comunicação com vários indivíduos e culturas, pois
expressam diferenças e semelhanças entre as culturas, ou seja, ela é uma estrada de mão dupla visto
que nos permite um dialogo entre o observador e a obra em diferentes escalas espaço-temporais.
Concordamos dessa forma com o que diz o PCN de Artes (1998):
Cada obra de arte é, ao mesmo tempo, produto cultural de uma determinada época e criação singular da imaginação humana, cujo sentido é construído pelos indivíduos a partir de sua experiência.
À medida que o processo civilizatório se desenrola, esta codificação, vai sendo incorporada e,
ao mesmo tempo, sendo apropriada por segmentos sociais, dentro da divisão social e sexual do
trabalho, que vão impor uma naturalização das diferenças sociais e espaciais das comunidades. Aqui
podemos retomar, os dizeres de Cosgrove22:
Os seres humanos experienciam e transformam o mundo natural em mundo humano. Produção e reprodução da vida material são, necessariamente, uma arte coletiva, consciente e codificada simbolicamente. Essa apropriação simbólica do mundo produz, linguagens, estilos de vida e paisagens distintas, histórica e geograficamente específicas.
Na medida em que as manifestações artísticas são representações codificadas esteticamente
de determinada realidade, sua leitura, evoca sentimentos, lembranças, percepções, que estão além
do racional. A própria linguagem é uma representação simbólica, codificada, das coisas e das
relações entre o sujeito e o outro e, entre o sujeito e o mundo para que se dê essa comunicação.
Mesmo que diversas regiões tenham desenvolvido línguas diferentes ao longo do processo
de apropriação do espaço mundial, gerando culturas singulares e diferenciadas, visões de mundo e
modos de vida diferentes, essas linguagens contêm elementos que são, por assim dizer, universais,
tais como, o sentimento de pertencimento, o afeto, o ódio, o sofrimento, etc. O que nos identifica,
em qualquer lugar, com a única coisa que temos em comum, nossa humanidade.
A arte, em especial a literatura, segundo alguns autores, é “pensar por imagens”. Na
literatura, principalmente em sua forma poética, as imagens têm função de “explicar o desconhecido
pelo conhecido” dado que as imagens nos ajudam a compreender sua significação, na medida em
22 Ibid.
que nos remetem a coisas familiares, fazendo com que o desconhecido seja percebido e
compreendido, pelo conhecido. As imagens, observadas, lidas são processadas no inconsciente,
através da leitura de mundo do leitor, sendo assim, compreendidas.
Chklovski23, afirma que as “imagens são transmitidas de século em século, de poeta em poeta
sem serem mudadas”, quanto mais às compreendemos, mais percebemos que as imagens “são
tomadas emprestadas de outros”. Esta maneira de pensar nos remete ao conceito de arquétipos
coletivos de Jung, para o qual, algumas imagens, são permanentes e inatas ao ser humano, na
medida em que são transmitidas, inconscientemente de geração em geração, formando um
imaginário presente em toda humanidade.
Chklovski24, nos diz ainda que o caráter estético de um objeto é o resultado de nossa maneira
de perceber e que, portanto, as imagens podem ser percebidas de duas formas: “a imagem como
meio prático de pensar, de agrupar objetos e a imagem poética que reforça essa impressão. A
imagem poética é um dos meios de criar uma impressão máxima” e recorre a um pensamento de
Tolstoi, em seu diário, que diz: ”para devolver a sensação de vida, para sentir os objetos, para provar
que pedra é pedra, existe o que se chama arte”.
O objetivo da arte é dar a sensação do objeto como visão, não como reconhecimento. É
singularizar os objetos, obscurecer suas formas, aumentando a dificuldade e a duração de sua
percepção. Segundo Chklovski, “O ato de percepção em arte é um fim em si mesmo e deve ser
prolongado; a arte é um meio de experimentar o devir do objeto, o que já é passado não importa
para a arte”.
Desta forma, a vida da obra de arte se estende da visão ao reconhecimento, da poesia a
prosa, do concreto ao abstrato. “O objeto se acha diante de nós, sabemo-lo, mas não o vemos”. A
liberação do objeto do automatismo da percepção se estabelece por diferentes meios. O
procedimento de singularização do objeto é dado não pela sua nomeação, mas pela descrição deste,
objeto ou fato, como se fosse visto ou acontecido pela primeira vez.
A Literatura é considerada pelo senso comum, uma criação artística, enquanto que a
Geografia é uma construção científica. Qual a relação que se pode estabelecer, ou melhor, que
isomorfismo encontramos entre estas duas díspares construções humanas?
23 CHKLOVSKI, A. Arte como Procedimento in Teoria de Literatura. Jornalistas Russos. Porto Alegre. Globo, 1976.
24 Ibid.
Podemos concluir então que, a geografia tem no espaço seu objeto de estudo e ação e a
literatura têm sua ação configurada no espaço. Ambas dialogam dentro do mesmo campo: o espaço
físico e imaginário.
A construção do lugar, ou conjunto de lugares que a obra literária contem, leva a
compreensão de que o espaço é ao mesmo tempo, “meio do sentido e também seu objeto”. Sua
concretude, qualificada como um espaço exterior, geográfico, seria uma necessidade corpórea
realizada num continuum local, mais ou menos definido, cuja percepção pelo leitor, identifica uma
realidade concreta. A este espaço, exterior, contrapõe-se outro, o do sujeito, o espaço do imaginário.
Nesse sentido, é que se realiza a viagem (ler é viajar), ao mesmo tempo uma trajetória física
e moral, externa e interna, real e simbólica que pode conduzir à noção do cheio quanto à do vazio. É
desta relação entre a imagem dada, pela literatura, e a imagem percebida pelos sentidos do sujeito,
que construímos a compreensão de nossa realidade.
Dessa maneira podemos observar a importância da Literatura enquanto recurso pedagógico,
pois a mesma colabora para nossa melhor compreensão dos fenômenos subjetivos a abstratos que
ocorrem cotidianamente sobre o espaço vivido e por nós percebido. Junto a Geografia, ajuda-nos na
narração e observação dos fenômenos geográficos realizando assim a confluência entre a
objetividade científica e a subjetividade literária para melhor entendimento do mundo e dos atores
que colaboram na sua constante construção.
2 MORTE E VIDA SEVERINA: CONTEXTUALIZANDO A ESCOLHA DA OBRA
Para demonstrar a importância da literatura enquanto recurso pedagógico, vale ressaltar a
importância da obra Morte e Vida Severina do autor pernambucano, João Cabral de Melo Neto.
A escolha do poema Morte e Vida Severina deu-se em função de sua importância tanto no
contexto social brasileiro, onde ela funciona como instrumento de denúncia as atrocidades sofridas
pelos trabalhadores rurais da região do Nordeste em função da grande exploração dos grandes
latifundiários sobre os camponeses como pela sua importância no âmbito educacional, pois a obra é
utilizada como sugestão no Caderno de Orientações e Expectativas no Ensino Fundamental de
Geografia25, reafirmando a utilidade da relação geografia/literatura no ensino escolar.
A obra selecionada nos dá um leque de alternativas para serem trabalhadas em sala de aula
ou no campo com os alunos, pois o poema da margem para que os educandos façam uma espécie de
dialogo e reflexão com os temas trabalhados na obra. Entre os principais temas que poderiam ser
abordados concernentes a disciplina geográfica, temos: os aspectos físicos, sociais, econômicos,
políticos, culturais, religiosos, industriais e migrações.
Essas possibilidades se ampliam ainda mais quando os alunos têm no histórico familiar,
pessoas que são provenientes da região nordestina, pois lhes permitem desenvolverem melhor o
aprendizado com base nas experiências, histórias e vivencias de parentes e amigos que geralmente
partilham, trocam e somam idéias e conhecimentos a respeito da temática em voga.
Além disso, essa metodologia busca estimular o desenvolvimento de habilidades e
características que são de caráter abstrato/subjetivo, onde o aluno busca entender melhor as
questões que são provenientes dos seus sentimentos como: o amor, o ódio, a perda, a amizade, a
contemplação do que é belo, entre outras características que podem ser potencializadas através do
poema junto a uma Geografia.
Enfim, o poema Morte e Vida Severino nos permite um mosaico de abordagens para serem
desenvolvidas e trabalhadas didaticamente, o que contribui para formação do educando e a
utilização do conhecimento em várias áreas do saber, constituindo-se assim, numa obra com
envergadura interdisciplinar e, ao mesmo tempo, estimulando a formação cidadã através de uma
analise que consegue ser simultaneamente uma bela poesia e uma enérgica reivindicação política
concernente a diminuição das desigualdades sociais que predominam no território brasileiro.
2.1. A obra, o autor
João Cabral de Melo Neto, nasce em Recife, Pernambuco em janeiro de 1920, filho de família
de senhores do engenho. Sua infância se passa em parte pelos canaviais, pelos aglomerados
25 In: Referencial de expectativas para o desenvolvimento da competência leitora e escritora no ciclo II : caderno de orientação didática de Geografia / Secretaria Municipal de Educação – São Paulo: SME / DOT, 2006.
humanos resultantes dessa dinâmica e suas manifestações culturais como o romance de barbante, a
literatura de cordel e os cantores de feira, que vão futuramente ser o adubo para o seu
desenvolvimento como poeta.
Sendo filho letrado, por sua condição de filho de senhor de engenho, sempre curioso
concernente ao mundo, absorvia em grande parte a cultura e o imaginário popular que se
intensificava pela leitura que o menino fazia.
Viveu grande parte de sua vida fora do Recife e do país em função de suas atividades
enquanto diplomata em vários paises, onde observava e aprendia sobre diversos povos e culturas,
pois ele mesmo em certa ocasião diz:
Sempre escrevi poemas sobre o Recife longe da cidade, não precisava estar longe para recriar o universo sobre o qual falo em meus poemas. Não acabaram as favelas nem as populações ribeirinhas do Capiberibe, que conheci na minha adolescência andando pelos mangues perto e casa, na jaqueira.
Os poucos anos vividos entrelaçados com a cultura dos corumbás26, das freiras e cantadores,
formaram o caldo no qual vai perceber a dimensão do espaço sertanejo, sofrido e a riqueza do
imaginário popular na construção da identidade nordestina.
No Recife, sua educação primaria ficaria por conta dos padres do colégio Marista, cuja falta
de higiene associada à educação religiosa o levará a escrever o poema “As lágrimas do Colégio Maris -
ta do Recife”.
Aos dezessete anos de idade, ingressa no serviço público onde faz carreira, primeiro em
Recife e posteriormente na capital federal, Rio de Janeiro. Durante suas rotinas na carreira
burocrática, vai conhecer vários outros funcionários que formação a elite cultural brasileira, que
muito contribuirão para sua formação intelectual e artística, entre as principais personalidades,
conhece Murilo Mendes, Vinicius de Moraes, Jorge de Lima e Carlos Drummond de Andrade.
É nesse período, que cresce como poeta e começa a publicar seus primeiros livros. Suas
poesias já contem um rigor construtivo e estético e uma clareza que vai dotá-lo de características
26 Corumbás são indivíduos que descem do sertão à procura de trabalho temporário ou permanente nas usinas, engenhos, nas estradas tangidos, não só pela seca, mas também por sazonalidades de agriculturas subsistentes, perda de terras, etc.
singulares. Sobre a influência de Joaquim Cardoso, pernambucano, engenheiro e poeta publica “O
engenho”, passando a ser conhecido como o poeta-engenheiro. Sua obra busca a partir daí, busca o
rigor matemático em sua obra sem deixar o equilíbrio entre a emoção e o sonho.
A literatura brasileira teve uma época marcada por obras de caráter regionalista, onde teve
como principais representantes: Graciliano Ramos, Eça de Queiroz e José Américo de Almeida que
tinha em comum a crítica contra a dura realidade nordestina, cujas características serão mantidas na
obra de Cabral.
No contexto social e político, o Brasil estava passando por uma reformulação político-
econômica inauguradas com a revolução de 1930, principalmente com a ampliação da
industrialização no sudeste e a conseqüente urbanização proveniente dessas políticas públicas.
Esta fase coincide com a fase conceituada pelo iminente Geógrafo Milton Santos de período
técnico, na economia brasileira. Esse pode ser percebido de forma mais direta nos discursos e ações
do Estado concernente ao papel da industrialização que seria a solução para os nossos problemas
econômicos e sociais que assolavam o país.
Nessa mesma época, inicia sua carreira como diplomata na Espanha, encontrando a
geniosidade de Garcia Lopes e aprende sobre as poemas de origem ibérica medieval na construção
da cultura popular nordestina, sobretudo suas características de caráter religioso.
O poema Morte e Vida Severina se tornou um dos maiores sucessos em termos de Literatura
brasileira tanto em escala nacional como em escala internacional.27 O poema do Pernambucano João
Cabral de Melo Neto nasceu de uma encomenda de uma peça teatral a pedido da teatróloga mineira
Maria Clara Machado que não aprovou o poema dizendo que o mesmo não retratava diretamente
um auto de natal e alegava ainda que o teatro não tinha condições técnicas suficientes para a
encenação.
Coincidentemente, seria no teatro que sua obra ganharia enorme expressão, o TUCA (Teatro
da PUC-SP) seria o palco que abriria o caminho para seu sucesso e para sua maior divulgação através
do musical composto por Chico Buarque de Holanda denominado funeral de um lavrador.
As encenações da peça junto ao musical composto por Chico Buarque de Holanda permitiram
que sua obra alcançasse uma extraordinária dimensão artística e social onde denuncia as injustiças
sociais vividas pelos camponeses transformando-a em linguagem literária. A encenação no TUCA
27 Sendo adaptado pela Rede Globo de Televisão e posteriormente ganhando o prêmio de melhor telenovela em 1983.
projetou Morte e Vida Severina, assimilada primeiramente pelos intelectuais e estudantes e
posteriormente por camadas populares. Até hoje ela é encenada pelas escolas públicas e por grupos
amadores que continuam difundindo sua obra.
Os poemas escritos por João Cabral de Melo Neto tem uma característica peculiar: expor de
modo literário, uma concepção e uma defesa da vida, denunciando as origens sociais da opressão,
miséria e fome encontrados no cotidiano pernambucano. Outra característica importante é a
concepção estética que sua obra obtém, pois o autor une seu raciocínio poético à rigorosa
construção temática. A temática é composta por imagens conectadas por um raciocínio lógico.
O poema Morte e Vida Severina é uma obra peculiar, pois procura relatar a típica realidade
dos pernambucanos que fogem da seca em busca do Recife e terminam morando em favelas
ribeirinhas ou até mesmo, encontrando a morte. Porém, o poema de João de Cabral é também um
salto de esperança, pois mesmo onde há morte, a mesma morte Severina e independente de qual
seja o problema, ela (a vida) pode e deve ser vivida.
2.2. A obra constrói uma Geografia da fome: um retrato do Brasil
O poema de João Cabral de Melo Neto é uma obra extremamente geográfica, política e social
simultaneamente, mostrando os problemas e desafios localizados no território nacional. A temática
principal do poema faz uma alusão ainda que de maneira indireta ao livro do médico Josué de Castro
chamado A Geografia da Fome.
Embora o primeiro seja de caráter artístico e o segundo de caráter científico, trazem a tona a
questão da miséria sofrida pela população pernambucana e nos demais estados do território
brasileiro e suas imensas dificuldades resultantes das próprias características fisiográficas da região
juntamente ao intenso conflito entre os grandes proprietários de terra e as populações camponesas
que são cotidianamente exauridos da posse da terra, do alimento e principalmente da vida.
Essa situação se torna o ambiente perfeito para a inspiração de João Cabral de Melo Neto
que utiliza de toda sua genialidade em prol de criar mecanismos de combate às injustiças por ele
presenciadas em sua terra natal. O próprio nome do personagem Severino representa não apenas
sua identidade, mas sobretudo, sua condição, ou melhor, a condição de vários cidadãos que tiveram
seus direitos roubados e que estão à margem no que diz respeito ao crescimento econômico e
igualdade social.
2.3.1. As Migrações/a retirância. A população como recurso, a mobilidade como política de
Estado.
O Estado enquanto órgão gerenciador das atividades e empreendimentos que são
construídos sobre o território nacional, sempre se utilizou do recurso das massas em prol de seus
objetivos e trunfos, ou seja, a população sempre obteve um papel importante nas políticas realizadas
pelo Estado.
De acordo com Raffestin28, o território é um espaço onde se projeta uma ação, seja ela
trabalho, energia ou informação. O território se apóia no espaço, porém não é o espaço. O território
é uma produção através do espaço, a própria utilização da representação se torna importante para
apropriação visando controle de determinada área e/ou recurso. Dessa maneira, o conhecimento e
prática são importantes para realização de ações ou comportamentos que pressupõem a posse de
códigos que possibilitaram as objetivações espaciais, ou seja, os processos sociais que são utilizados
para concessão dos objetivos propostos.
Assim, a representação compõe o “palco” ideal para a organização de ações buscando a
tomada do poder. Uma dessas representações que foram muito utilizadas para esse fim, foram as
representações cartográficas, pois as imagens são instrumentos de poder, desde as origens do
homem. Uma imagem pode ser utilizada de diversas maneiras visto que temos o habito de agir mais
sobre as representações do que pelos próprios objetos.
A cartografia moderna na Renascença paralelamente ao nascimento do Estado Moderno.
Essa cartografia desde cedo já visava à modelagem dos comportamentos concernente ao poder
obtido pela combinação de elementos que seriam fundamentais para sua execução: o ponto, a linha
e a reta.
Para compreendermos melhor esse “jogo espacial”, é importante analisarmos as políticas
espaciais dos Estados em relação às suas realizações de caráter territorial, pois a eficiência dos
sistemas sêmicos é realizada de forma descentralizada e sutil, ou seja, o ponto, a linha e a reta
colaboram para manutenção do controle ideológico que se estabelecem sobre determinadas áreas.
28 RAFFESTIN, Claude. Por uma Geografia do Poder. São Paulo: Editora Ática, 1993.
O funcionamento das representações cartográficas é obtido através de pontos que
representam à localização de outros atores ou áreas que interessam ao ator, retas que juntas a
outros pontos delimitam uma superfície. O importante na compreensão desses esquemas, é buscar
entendê-los como representação de um espaço onde o ator busca realizar suas ações.
Porém, devemos observar que nunca há apenas um ator disputando determinada áreas,
recursos ou territórios, indicando sempre o estabelecimento de uma relação de poder onde os atores
buscam sempre a hegemonia absoluta sobre os territórios disputados. Os sistemas territoriais
geralmente são compostos por texturas, nós e redes.
Os indivíduos ou grupos sociais se distribuem em modelos aleatórios, concentrados ou
regulares visando sempre à questão da acessibilidade como a distância tanto em termos espaciais
como em termos psicológicos, temporais e econômicos, conduzindo a formação de malhas, de nós e
redes que são imprimidos no espaço colaborando para a constituição territorial, o que por sua vez,
resultam em divisões hierárquicas visando melhor ordenação do território de acordo com os
objetivos dos atores e/ou grupo sociais.
A estrutura (texturas-nós-redes) é realizada por um grupo que pode se manifestar de várias
formas, ainda que possamos explicar suas origens ou suas raízes no grupo ou nos indivíduos. Com
isso, torna-se possível a construção de uma matriz que justifique esse conjunto estrutural que
estando exteriorizado, produz uma infinidade de imagens. Para entendermos melhor, valem à pena
citarmos os diferentes modelos urbanos, os modelos de distribuição de densidade são exemplos
claros de uma mesma estrutura comandada por vários objetos e por ações distintas que constroem
imagens diferenciadas das cidades.
As imagens por sua vez, revelam as relações produtivas e as relações de poder, que sendo
decifradas chegam-se as estruturas reais. Do Estado ao indivíduo, passando para os tipos de
orientações, encontraremos atores que produzem o espaço. O Estado está sempre se reorganizando
através de novos recortes, novas ligações, novos empreendimentos. O mesmo acontece com as
empresas que são apoiadas pelo Estado e realizam a produção de seus próprios territórios.
A noção de textura implica limites, pois limite é uma questão básica visto que permite ações
referentes à: definição, classificação, decisão, entre outros, pois quando falamos em território,
fazemos uma menção de uma área delimitada do espaço, onde vivem indivíduos e grupos sociais que
interagem simultaneamente sobre o mesmo local. Delimitar também é manifestar um poder numa
área específica, pois todo sistema de objetos e de ações é sempre norteado por uma série de
princípios que revelam ordem e hierarquia.
A textura tem como objetivo assegurar o controle sobre a população, visto que a textura é
sempre um enquadramento de poder, porém as texturas de origem política têm uma duração maior
das aquelas resultantes de atores empregados na realização de programas, ou, seja, as texturas
econômicas geralmente se adaptam melhor as mudanças estruturais e conjunturais.
O ponto é importante para a análise, repartição e principalmente na hierarquização, pois os
pontos simbolizam para o ator a expressão do ego individual e coletivo, pois representa locais de
poder absoluto e/ou relativo. A localização do outro é de enorme interesse, pois indicam aqueles
atores que podem nos prejudicar ou possuírem recursos da qual iremos precisar.
Esses autores buscam criar redes entre eles. A rede é um sistema de linhas que desenham
tramas, cujo principal objetivo é desenhar os limites e as fronteiras de uma determinada localidade.
Porém, essas redes podem assegurar o que foi concebido e ainda bloquear outras comunicações de
acordo com a escala do local. Essas redes são infra-estruturas que ligam pontos específicos em
determinado território, possibilitando a hierarquia dos pontos.
Dessa forma, as redes nos possibilitam múltiplas alternativas para seus atores, pois são
imagens de poder ou de atores dominantes que interligam pontos que possibilitam certo domínio do
espaço. Um domínio de escala espaço-temporal na realidade. Assim, os Estados ou organizações que
possuem domínio sobre as redes podem conduzir sérias mudanças no corpo social, pois o sistema é
ambíguo: produz uma organização no território e ainda implanta uma ideologia na organização
atingindo as finalidades estratégicas planejadas.
A população é uma coleção de seres humanos. Dessa forma, ela é um recurso que pode ser
mensurado, o que nos possibilita uma imagem de sua posição. O recenseamento obtém uma
representação da sociedade que nos auxilia no processo de intervenção visando aumentar o arsenal
de informações sobre determinado grupo e/ou organizações.
O recenseamento aparece na formação dos Estados Modernos cujo objetivo é o
fortalecimento dos Estados ou a formação de novos Estados. Assim, o recenseamento é a
organização de energia pelo Estado visando alcançar suas estratégias. Entretanto, o recenseamento
da população é um fator ambíguo, pois sendo um instrumento de controle pode ajudar em diversas
ocasiões, porém sua utilização pode ser voltada para fins destrutivos visto que o Estado não é o único
a utilizá-la: as empresas, as igrejas e outras instituições sociais dispõem de vários mecanismos
normativos para seu benefício.
Os fluxos começaram a despertar interesse e começaram a ser analisados mais
detalhadamente. Os fluxos podem ser de origens naturais como aqueles obtidos pela natalidade e
pela mortalidade ou aqueles de caráter espacial, provenientes das migrações – seja das migrações ou
das emigrações.
Com base nisso, o Estado implementa suas políticas de localização, de transferência sendo
por meio de medidas coercivas ou não. Dessa maneira, o Estado utilizará a população seja através de
seu deslocamento ou crescimento visando o alcance de seus objetivos. Sendo assim, a população
deve ser analisada tanto de maneira quantitativa como qualitativa, ou seja, devem ser levadas em
consideração suas propriedades econômicas, políticas, sociais, culturais que possibilitam a
identificação de suas características de homogeneidade e heterogeneidade da população.
Todavia, alguns fatores colaboram de maneira contraditória, ora como recursos, ora como
entraves, influenciando assim, nas manobras estatais para obtenção de seus trunfos. A imagem da
população é necessária na ação das organizações, pois procuram manter múltiplas relações visando
equilibrar o “estoque humano”, ou seja, o exercito de reserva na medida em que a economia vai
sendo aquecida.
Porém, o Estado procura manter estável o diálogo com as instituições sociais, porém
mantendo a idéia de população mínima, mas se o interesse é o poderio, busca-se atender a
população de maneira integral. A questão da melhoria do bem estar social é algo cujos objetivos são
múltiplos, pois para que o Estado venha a atingir um ótimo nível populacional, é necessário
pressiona-la para reivindicar o mínimo possível.
As ações estatais para o fortalecimento de uma população em nível máximo requerem uma
efetiva política distributiva dos recursos necessários à satisfação integral da mesma, porém isso só é
viável mediante uma troca de energias entre o Estado e a coletividade social.
Assim, o Estado poderá encorajar a natalidade, pois a mesma não modificará a composição
étnico-racial, diferentemente das imigrações que podem gerar vários problemas, principalmente
alterações dos contingentes populacionais concernente à miscigenação cultural, ou seja, a anexação
de outros saberes a cultura vigente.
O Estado ao se utilizar de políticas de incentivo a natalidade busca uma transformação da
população de maneira mais lenta, porém preservando a composição étnico-racial e cultural da
mesma. Isso supõe que o Estado invista em políticas públicas voltadas para educação, saúde,
moradia, emprego, entre outras. Porém, o Estado também pode utilizar-se de meios contraceptivos
visando controlar e impedir o crescimento populacional, chegando muitas ao extremo: genocídio29.
29 O Genocídio é um meio de limitar a população, porém em muitos casos seus objetivos são diferentes, pois visam eliminar uma etnia ou uma raça que representa obstáculo para obtenção de determinado território
Já os incentivos às políticas migratórias, colaboram para que o estado “ganhe tempo” na
efetivação de suas políticas de adensamento populacional e integração de determinada área do
território. Essas mudanças alteram a pirâmide demográfica, ou seja, criam novos sistemas de
relações.
As relações verticais se transformam modificando as hierarquias e colocando-as em
discussão. As relações horizontais ou intersexuais também são influenciadas, ocasionando vários
problemas. Essas migrações podem ser de caráter familiar ou individual. Quando um Estado visa o
povoamento de uma região, pode utilizar-se da imigração para realizar seu programa levando em
considerações a questão do tempo, do espaço e dos meios que serão utilizados.
Já as empresas e grandes organizações preferem as imigrações buscando alcançar uma
variedade de mão-de-obra (ou seja, remuneração mais barata) onde se objetiva uma determinada
faixa etária na pirâmide demográfica. Apesar disso, a população constantemente reage e demonstra
resistência às políticas estatais e/ou empresariais que são empreendidas buscando a desapropriação
de determinadas localidades ocasionando numa coalizão de forças, discordância normativa e,
sobretudo, uma contestação da relação.
O individuo é controlado pelo Estado até mesmo em suas relações sexuais que no papel de
procriação, interessam demasiadamente ao Estado. O imperador Augusto buscava elevar os índices
de nascimento através de compensação financeira as famílias numerosas, pois nasciam pouca
crianças das famílias ricas e o celibato se difundia de forma muito rápida, ocasionando na diminuição
dos exércitos, ele também instituiu leis que desabilitavam os celibatários de receber heranças.
No século XVII houve intensos incentivos para o aumento da população, pois as políticas
mercantilistas precisavam de em enormes contingentes populacionais para sua mão-de-obra, o que
automaticamente colaborava para manutenção das baixas remunerações. Os próprios sistemas
totalitários tanto nazistas como fascistas também desenvolveram políticas natalistas.
Assim observamos que as políticas natalistas têm várias implicações, pois o indivíduo é
classificado como “objeto” reprodutor sendo controlado pelo Estado até em suas relações sexuais,
onde devem ser úteis ao Estado. Dessa forma, essas relações funcionam de maneira multilateral,
onde o Estado age por meio de um conjunto de códigos (geralmente agindo de forma coersiva) para
tornar as relações produtivas, ou melhor, fecundas.
Podemos observar que é extremamente difícil controlar tanto a natalidade como a
mortandade, porém mais complicado ainda é controlar a s migrações visto que para esse fim não
ou sua integração.
depende apenas o Estado, pois várias outras organizações estão interessadas em mobilizar e
distribuir a população sobre o espaço.
O mais importante na análise das migrações são as relações de forças utilizadas para
provocarem o fenômeno, pois são vários os problemas e objetivos que podem provocá-la, entre eles:
trabalho e guerras.
Segundo Raffestin (1993, p. 88), a mobilidade pode ser autônoma quando resulta de uma
escolha própria ou heteronômica quando resulta de uma coersão. Porém há exceções visto que
podemos classificar como mobilidade autônoma aquela que onde a população tem que escolher
entre o “retirância” ou a morte como é o caso do personagem Severino que busca na mobilidade a
oportunidade de sobrevivência e melhores condições de vida e, sobretudo, esperança de um futuro
melhor. Basta observarmos suas próprias palavras a respeito de sua descida rumo a Sergipe:
[...]
Nunca esperei muita coisa,
Digo a Vossas Senhorias.
O que me fez retirar
Não foi a grande cobiça;
o que apenas busquei
foi defender minha vida
da tal velhice que chega
antes de se interar trinta;
se na serra vivi vinte,
se alcancei lá tal medida,
o que pensei, retirando,
foi estendê-la um pouco ainda.
[...]
É importante ressaltar que mesmo no caso das mobilidades autônomas, várias organizações
adotam diversas estratégias visando aumentar o movimento ou para limitá-lo. As migrações são
instrumentos de extrema importância para manutenção e controle do espaço geográfico.
Os Estados Unidos é um exemplo claro concernente às políticas migratórias, pois o país em
1790 observou um rápido crescimento de sua população que fazia questão de se “americanizar” em
função dos princípios democráticos existentes no Estado. Entretanto, alguns grupos constituíram
núcleos isolados em função das perseguições européias ou de outros continentes.
A partir de 1798, buscam diminuir os movimentos migratórios para os EUA. Um dos
principais alvos eram os povos advindos da Irlanda em função de sua religião e costume que iam
contra os costumes e tradições dos protestantes americanos. Por vezes, o preconceito contra o
catolicismo serviu como argumento da não aceitação de estrangeiros na população americana.
Posteriormente, os EUA resolveram desenvolver várias medidas restritivas para impedir as
migrações de maneira que essas medidas eram não apenas quantitativas, mas qualitativas também,
pois uma dos principais fatores de restrição era a questão racial. Todavia, no período do Pós-Guerra,
em 1952 os EUA incentivaram as migrações a todos aqueles que obtinham mão de obra qualificada,
concedendo até mesmo acesso à naturalização, ao mesmo tempo em que alguns fatores de exclusão
de reforçavam.
Com este exemplo, podemos observar como é difícil manter o controle e o domínio dos
fluxos migratórios, principalmente quando o objetivo é a preservação de certas proporções e índices
considerados importantes em detrimento do crescimento de determinados grupos étnicos que não e
considerado necessário.
A política imigratória não é um recurso apenas do Estado, mas de múltiplos atores e
organizações que se desenrolam no interior do corpo social. As estratégias utilizadas mostram as
intensas e conflituosas relações entre o Estado, a população e os diversos grupos que possuem
objetivos e interesses distintos, pois o Estado pode ter como objetivo, o controle dos fluxos
populacionais, mas já as empresas podem estimular tal prática visando o estoque de mão-de-obra
em excesso, o que consequentemente, irá torná-la mais barata.
Na atualidade, observamos que as migrações internas nos países capitalistas ocidentais são
determinadas pelas grandes empresas multinacionais que selecionam determinadas parcelas do
território para servirem de suporte temporário para suas atividades. Isso se torna ainda mais
complicado visto que as multinacionais ao se retirarem de determinados locais, provocam altos
índices de desemprego, obrigando o Estado a pensar outras maneiras para mantê-la no local onde
outrora estava30.
As multinacionais acabam criando suas próprias territorializações de mão-de-obra de modo
que buscam unicamente seus próprios interesses, não se importando com os contingentes
populacionais que provavelmente ficarão sem nenhuma segurança em termos de seguridade social.
A economia “nômade” é o resultado dessas políticas implementadas pelas grandes empresas
que acabam causando intensa instabilidade em determinadas regiões. Dessa forma, as relações entre
as empresas com as regiões e territórios provocam intensos conflitos e manifestações o que por sua
vez, geram as resistências. Os embates dessas relações podem atingir seu ápice provocando diversas
greves, manifestações e ocupações de determinados locais como forma de reivindicação.
Os choques entre as territorialidades abstratas das grandes multinacionais e a
territorialidade concreta e estável da população se dão em função da busca de um salário onde a
população é pressionada a romper com seu meio simbólico e conseqüentemente, com sua
identidade, ou seja, todo o conjunto de ritos, costumes e tradições da qual o sujeito é portador
torna-se para ele um conceito abstrato visto que ele não consegue constituir vínculos e muito menos
o sentimento de pertencimento em determinados lugares onde qualquer cidadão deveria possuir.
Enfim, para conseguir seus objetivos tanto as empresas como o Estado combinam
informação e energia, porém de formas diferentes, pois o Estado procura meios de incitar a
população a migrar para determinados locais, porém as multinacionais propagam a informação de
forma muita mais sedutora, geralmente oferecendo mais benefícios ainda que isso seja apenas
ilusório.
Dessa forma, a energia aplicada na informação geral do Estado deveria ser muito mais eficaz
para tornar-se atrativa para população. Portanto, a estratégia estatal é bem mais forte que as
estratégias empresariais, pois agem de maneira abstrata e ideológica sendo assim menos seguidas,
pois não demonstram muitos benefícios como nas propostas corporativas.
2.3.2. O conceito de lugar: o lugar hoje e aproximações com o tema
30 Muitas vezes oferecendo incentivos fiscais ou isenção total do aluguel ou no caso de compra do mesmo, até financiando o dinheiro da compra como foi o caso da Empresa Vale do Rio Doce no governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso.
O conceito de lugar é um dos mais discutidos em várias áreas do conhecimento de modo que
tem sido alvo de diversas interpretações ao decorrer do tempo. Uma das definições mais antigas
sobre lugar é elaborada pelo filósofo Aristóteles que considerava lugar como o limite que circunda o
corpo. Posteriormente, o filósofo Descartes definiu que o conceito de lugar deveria ser definido
através da posição de um corpo em relação à posição de outros corpos.
Embora o conceito de lugar seja um conceito-chave para explicação do espaço, é um
conceito menos desenvolvido no campo de conhecimento geográfico. Atualmente, o conceito é
motivo de vários debates e discussões nas academias que divergem a respeito de seu significado ou
de sua conceituação. Com base nisso, faz-se importante analisarmos suas diferentes interpretações
no decorrer no tempo.
As discussões teórico-metodologicas sobre o lugar na Geografia são realizadas sobre três
perspectivas, sendo que em todas elas o objetivo é ultrapassar a idéia de lugar como localização
espacial e avançar rumo à definição que esteja mais condizente com nossa realidade.
Na Geografia Humanística este conceito é difundido a partir dos anos 70 onde sua linha de
pesquisa se caracteriza pela valorização das afetividades desenvolvidas pelos indivíduos e sua
percepção junto ao ambiente da qual faz parte, ou seja, como o sujeito percebe o espaço vivido, de
que forma as experiências se manifestam no espaço. Outra característica importante desta corrente é
a analise das subjetividades dos indivíduos e as interpretações sobre o mundo.
Na Geografia Humanística, lugar é o espaço que se torna familiar ao individuo, é o seu
espaço vivido, seu espaço experienciado. Esse conceito está no centro das discussões de caráter
teórico, como afirma o geógrafo humanista Tuan (1982, p. 143):
“A Geografia Humanística procura um entendimento do mundo humano através do estudo
das relações das pessoas com a natureza, do seu comportamento geográfico bem como dos seus
sentimento e idéias a respeito do espaço e do lugar”.
A experiência está no centro da abordagem humanística, pois ela é o meio pelo qual
singularizamos parcelas do espaço, constituindo-as como lugares. Assim, lugar também é aquele
local que nos transmite boas lembranças e por onde nutrimos nossas afetividades pessoais. Podemos
observar as palavras do Buttimer (1985, p. 228): “lugar é o somatório das dimensões simbólicas,
emocionais, culturais, políticas e biológicas”.
Todavia, esses lugares só são constituídos a partir de interesses que os sujeitos obtêm pelo
mesmo, ou seja, a constituição do lugar e dada através da interação entre as qualidades existentes
no lugar e interesses pretendidos pelos atores que constroem o espaço. Assim, os lugares são criados
pelos humanos para serem usufruídos por eles.
É importante ressaltar que o senso de lugar não é uma coisa instantânea, pelo contrário, ele
vem com o passar do tempo, uma relação construída lentamente, pois o sentimento de
pertencimento ao lugar é um processo que resulta do envolvimento intenso com o local onde vive,
trabalha, estuda, entre outros.
A experiência do lugar também se manifesta em diversas escalas: bairro, escola, cidade e
países. Porém, é o lar a principal referência de lugar que nós possuímos, pois é nele que nos
abrigamos, local de proteção contra perigos potenciais que possam nos assolar. Nós podemos ir para
qualquer local ou ambiente, porém sempre retornamos para o lar. Ele é o centro de nossa rotina
diária. Dessa maneira, o homem constrói uma relação simbiôntica com o meio ambiente.
Na concepção histórico-dialética, o lugar é entendido dentro do processo de globalização,
como resultado deste processo, temos simultaneamente a homogeneização das práticas sociais e a
fragmentação e antagonismos sociais. Dessa forma, para entendermos o processo de globalização é
necessário uma analise profunda das particularidades dos lugares, pois aquilo que se manifesta em
escala local, pode influenciar o global em função da interdependência entre os lugares em função das
redes e dos fluxos que formam uma “verdadeira teia informacional”.
Sendo assim, o lugar, meio de manifestação da globalização sofreria influências de acordo
com suas particularidades e em função de suas possibilidades frentes aos demais Estados ou lugares
de influência na economia mundial. Além disso, o lugar também representa as lutas e conflitos dos
quais os cidadãos reivindicam melhor participação concernente à utilização do espaço, visto que o
lugar é também uma construção social, deveria ter como finalidade, o viver bem, o habitar, ou seja, a
participação mais efetiva por parte da sociedade que tanto participa de sua construção, mas não de
seu usufruto. Assim, as palavras de Carlos (2007, p.22) relativas ao lugar são de extrema importância:
Deste modo o lugar se apresentaria como ponto de articulação entre a mundialidade em constituição e o local enquanto especificidade concreta, enquanto momento. É no lugar que se manifestam os desequilíbrios, as situações de conflito e as tendências da sociedade que se volta para o mundial. Mas se a ordem próxima não se anula com a enunciação do mundial, recoloca o problema numa outra dimensão, neste caso o lugar enquanto construção social, abre a perspectiva para se pensar o viver e o habitar, o uso e o consumo, os processos de apropriação do espaço.
Outra concepção de lugar é discutida pela ótica do pensamento pós-moderno onde o lugar é
concebido como uma parte da totalidade sendo fruto do confronto entre a concepção marxista e a
pós-moderna. Dessa forma, a epistemologia pós-moderna advoga a desconstrução e fragmentação
da totalidade como fundamento para explicação da realidade.
O conceito de lugar na ótica pós-moderna enfatiza suas explicações com base numa relação
não com a totalidade, mas sim através dos fragmentos, pois como afirma Silveira (1993, p. 204):
A totalidade é uma categoria tautológica, que revela um novo determinismo geográfico. A única coisa que tem existência empírica,e, portanto, é possível se analisar, é o lugar, o fragmento, o indivíduo. A totalidade só pode ser uma idéia, soma dos fragmentos, mas muito dificilmente uma realidade empírica.
Diante desta análise, a autora busca conceituar lugar como a própria totalidade em
movimento que cotidianamente se afirma e se nega, construindo e reconstruindo fragmentos do
espaço de maneira a constituir novos subespaços para a atuação de novos atores com novas
intenções sobre o espaço global.
Em função do processo de globalização, perguntamos: qual é a principal função do lugar? A
reprodução da vida para o cidadão ou a satisfação e circulação do capital? Entendemos o lugar como
local onde o cidadão sente-se pertencendo ao lugar. Ou seja, numa relação de troca, onde o cidadão
possa participar de sua construção e utilização de maneira que se sinta integrado com o ambiente
onde reside.
Porém, o lugar também é utilizado para fins contrários à construção e manutenção da vida e
das relações sociais sobre o espaço, ou seja, lugares que são construídos para o culto ao vazio,
lugares estes que tem como finalidade preservar unicamente a manutenção de poder em diferentes
escalas em determinados lugares.
Basta observarmos o exemplo de Brasília que já foi construída com a função de centralizar o
poder no centro do território brasileiro para distanciar-se dos protestos e manifestações dos diversos
grupos e minorias que buscam reivindicar seus direitos às autoridades responsáveis.
Observando a morfologia do local, perceberemos a ausência das pessoas, um projeto que foi
concebido para os que estão circulando de carro, grandes avenidas, a distância entre os
estabelecimentos que são criados objetivamente para rápida circulação, não incentivando sua
parada ainda que passageira sobre o local, obrigando as pessoas (as poucas que tem no local) a
andarem no ritmo dos semáforos numa paranóia sem fim. Para entendermos melhor essa idéia,
basta observarmos as palavras do CARLOS (2007, p.19):
O espaço do poder enquanto espaço do vazio é o espaço do interdito/interditado. Os espaços da monumentalidade se cruzam, é o espaço do poder, e por isso “do ver”. O espaço é constituído em função de um tempo e de uma lógica que impõem comportamentos, modos de uso, o tempo e a duração do uso.
Essas situações refletem como as estratégias e mecanismos do capital interferem em nossa
vida cotidiana, afetando até na construção dos lugares e das relações afetivas que nós adquirimos
com o passar do tempo. Isso mostra o poder que o capital obtém, pois transforma radicalmente o
espaço para seu maior controle e sua reprodução. Transformando radicalmente as paisagens tanto
no sentido físico como humano.
Dessa forma, o lugar é gradualmente modificado, porém deixando de lado sua principal
função como nos relata a autora CARLOS (2007, p. 20):
O caminho que se abre à análise é pensar o cotidiano – onde se realizam e o mundial-que é um tecido pelas maneiras de ser, conjunto de afetos, as modalidades do vivido, próprios a cada habitante produzindo uma multiplicidade de sentidos. Podemos buscar o entendimento do lugar nas práticas mais banais e familiares o que incita pensar a vida cotidiana segundo a lógica que lhe é própria e que se instala no insignificante, no parcelar, no plural.
Quando falamos sobre o conceito de lugar, quase automaticamente nos remete à outro
conceito que está em discussão atualmente na Geografia e nas demais ciências. Este conceito é uma
derivação da idéia de lugar, pois se os lugares são os espaços onde construímos uma relação de
afetividade, intimidade, subjetividade e convivência, os não-lugares são seu avesso, pois é possível
que você viva em determinados locais sem com eles desenvolver nenhuma relação afetiva e/ou
emocional.
Os não-lugares se caracterizam pelo sentimento de não pertencimento das quais eles geram
em nossas trajetórias pessoais, ou seja, lugares que embora visitamos ou freqüentamos diariamente
ou com certa freqüência, porém neles não nos sentimos protegidos, próximos, íntimos com aquele
local e os sujeitos que dele fazem parte.
Para o antropólogo Augé31, os não-lugares se constituem dos espaços onde não há senso
identitário, nem relacional e muito menos histórico, ou seja, lugares propícios para o
desenvolvimento da individualidade humana, pois mesmo que o sujeito esteja rodeado de pessoas,
sente-se solitário. São espaços que cultuam o efêmero, aquilo que é transitório de modo que não
criam-se raízes, vínculos com o local.
Diferentemente dos lugares, os não-lugares são constituídos por locais freqüentados pelos
grandes contingentes populacionais que podem ser analisados através da tríade: superfície, volume e
distância. Como exemplo, temos as ferrovias, os aeroportos, os terminais rodoviários, a grandes
redes de hotéis, os parques de lazer, as estações, as grandes redes restaurantes fast-food, ou até
mesmo, as conexões a cabo ou sem fio que mobilizam os espaços extraterrestres para uma
comunicação genérica, fria e sem o calor humano32.
Esses não-lugares colaboram para proliferação dos simulacros, ou seja, das simulações de
experiências, lugares e objetos que de forma artificial, procuram representar o real. Entre os
principais lugares podemos observar os resorts que geralmente estão construídos em regiões
litorâneas onde se poderia desfrutar de imensas possibilidades junto ao aspecto natural do local, é
substituído por uma representação, ou seja, grandes construções com diversos tipos de atrações
como as piscinas que simulam até mesmo as ondas do mar.
Além disso, esses hipermercados influenciam diretamente nas relações cidade-campo, no
sistema de tráfego, entre outros. Os hipermercados acabam propiciando a formação de grandes
aglomerações de pessoas que não somente consomem muitas vezes excessivamente, mas também,
transformam-se as relações com os objetos, pois os mesmos já são produzidos visando sua
obsolescência, ou seja, período de rápida circulação e descarte para obtenção de “novos” produtos.
31 AUGÉ, Marc. Não-Lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade. São Paulo: Papirus, 2008.
32 Ibid.
Enfim, a atual condição humana nos mostra como é importante a construção e a obtenção
do lugar em seu sentido mais estrito, pois o seu não pertencimento implica em várias outras
questões que avançam devastando as relações sociais elevando os sujeitos a condição de simples
consumidores seja de lugares ou objetos, tornando-os simulacros de sua própria existência.
2.3.3. Questões sobre Identidade
Segundo Hall33, no mundo moderno, “as culturas nacionais em que nascemos se constituem
em uma das principais fontes de identidade cultural”. Não sendo impressas geneticamente, pensamos
nelas como parte integrante de nossa natureza, de nosso “ser”.
Mas esta construção, a “identidade nacional”, está ligada a um processo histórico de domínio
sócio-espacial, projeto de uma classe que se apropriando dos meios de produção, se apropria ,
reproduz e impõe uma visão de mundo, em função de uma unificação lingüística, ao codificar os
signos e significados, ao racionalizar o espaço, enfim, ao dar como natural e socialmente totalizadora,
sua interpretação do Estado Territorial Moderno e sua cultura. A Nação passa a ser a referência
enquanto sentimento de pertencimento, tendo na língua sua maior expressão.
O filósofo Scruton, argumenta que:
A condição de homem (sic) exige que o indivíduo, embora exista e aja como um ser autônomo, faça isso somente porque ele pode primeiramente identificar a si mesmo como algo mais amplo – como membro de uma sociedade, grupo, classe, estado ou nação, de algum arranjo, ao qual ele pode até não dar um nome, mas que ele reconhece instintivamente como seu lar.
Para Hall, as culturas nacionais são formações modernas na medida em que as lealdades e
identificações, nas sociedades tradicionais (tribo, povo, região, religião) são transferidas gradualmente,
no mundo ocidental, à cultura do Estado-Nação. As diferenças étnicas e regionais foram, e ainda estão
sendo, gradualmente submetidas, ao viés político, fonte e resultado poderoso, homogeneizante, desta
visão de Nação.
As culturas nacionais, compostas não apenas de instituições culturais, são, sobretudo,
símbolos e representações ou um discurso, um modo de construírem sentidos e ações que dão
significado a concepção de nós mesmos.33 HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro:DP&A Editora, 2006.
Darcy Ribeiro34, nos diz que marcados desde o nascedouro, enquanto “país” pela contradição
primordial das relações entre senhores e escravos, entre índios e brancos, entre brancos e negros, já
dentro de um sistema “mundializado” pelo capital comercial, antecipando o próprio modo de produção
capitalista, uma vez que o país já nasce como uma empresa. Para ele, a ordenação social, o modo de
produção aqui implantado, a própria conquista do espaço geográfico, impulsionada pela relação
colônia/metrópole, são as causas desta (des)identidade. Podemos pensar que o país, o Estado
Territorial, se fez primeiramente que a Nação.
As causas desse descompasso devem ser buscadas em outras áreas. O ruim aqui, e efetivo fator causal do atraso, é o modo de ordenação da sociedade, estruturada contra os interesses da população, desde sempre sangrada para servir a desígnios alheios e opostos aos seus. Não há, nunca houve, aqui um povo livre, regendo seu destino na busca de sua própria prosperidade. O que houve e o que há é uma massa de trabalhadores explorada, humilhada e ofendida por uma minoria dominante, espantosamente eficaz na formulação e manutenção de seu próprio projeto de prosperidade, sempre pronta a esmagar qualquer ameaça de reforma da ordem social vigente.
Por outro lado, essa miscigenação, provocada pela imigração forçada, na conquista
empresarial das novas terras, pela importação de mão-de-obra, incorporando à população os saberes
tradicionais de vários povos, provocando um sincretismo cultural, vai aos poucos construir e ainda
constrói, uma identidade e, cuja configuração mais consistente encontra-se justo no povo nordestino,
por ser a região que primeiro foi ocupada e adensada.
O conceito de identidade, considera que o homem se constitui no meio e através deste.
Portanto, pode ser localizado nos estudos de identidade social. A identidade social é “aquela parte do
auto-conceito de um indivíduo derivada do conhecimento do seu pertencimento a um grupo ou grupos
sociais juntamente com o significado valorativo e emocional associado a este pertencimento35”
Esta identidade nordestina, pode ser vista, nas expressões culturais impressas em todas as
periferias das grandes cidades, para onde foram deslocados os excedentes populacionais, no processo
de modernização da economia nacional, em sua primeira fase, em meados do século passado, e que
ainda ocorre, se bem que em menor grau. 34 RIBEIRO, Darcy. Sobre o obvio in Encontros da Civilização Brasileira, nº.1. Civilização Brasileira, Rio de
Janeiro, 1978.35 Valera, S., & Pol, E. (1994). El concepto de identidad social urbana: uma aproximación entre la Psicología Social y la Psicología Ambiental. Revista Anuário de Psicologia, 62, 5-24. Citado por Mourão, Ada Raquel T. , e Cavalcante, Sylvia. O processo de construção do lugar e da identidade dos moradores de uma cidade reinventada. Revista Estudos de Psicologia. Fortaleza, 2006.
A cultura e os saberes sobre o espaço geográfico, climatológico das populações originais
nativas, permitiram aos novos senhores, o conhecimento sobre como viver nos trópicos. Não fosse
isto, seria impossível aos povos de clima temperado, enfrentar os desafios, tanto da floresta, quanto
dos sertões nordestinos.
São esses mestiços, que vão se apropriar e povoar os sertões nordestinos, incorporando, mais
tarde, as miscigenações advindas do povo negro e suas culturas, em nome de uma economia subalterna
e subordinada à empresa colonial exportadora. Dessa forma, vão reproduzir as relações de servidão, de
propriedade, de ordenamento social dos senhores coloniais.
Nós brasileiros, somos um povo em ser, impedidos de sê-lo. Um povo mestiço na carne e no espírito, já que aqui a mestiçagem jamais foi crime ou pecado. Nela fomos feitos e ainda continuamos nos fazendo. Essa massa de nativos oriundos da mestiçagem viveu por séculos sem consciência de si, afundada na ninguendade. Assim foi até se definir como uma nova identidade étnica nacional, a de brasileiros36.
Para além da faixa nordestina de terras frescas e férteis do massapé, onde se implantaram os
engenhos de açúcar, desdobram-se as terras de uma outra área ecológica. Começam pela orla
descontínua ainda úmida do agreste e prosseguem com as enormes extensões semi-áridas das
caatingas. Mais além, já penetrando o Brasil Central, elevam-se em planalto, os campos cerrados por
milhares de km quadrados.
Esta área forma um vastíssimo mediterrâneo de vegetação rala, confinado por um lado, pela
floresta da costa atlântica, do outro pela floresta amazônica e , fechando o sul por zonas de mata e
campinas naturais. Matas de galeria cortam esse mediterrâneo, acompanhando o curso dos rios
principais, adensando-se em capões de mata ou palmeiras de babaçu, carnaúba ou buriti, onde
encontra terreno mais fresco.
A vegetação comum, porém, é pobre, formada de pastos naturais ralos e secos e de arbustos
enfezados que exprimem em seus troncos e ramos tortuosos, a pobreza das terras e a irregularidade do
regime de chuvas. Nos cerrados, e sobretudo nas caatingas a vegetação alcança uma adaptação à
secura do clima, predominando as cactáceas, os espinhos e as xerófilas que, condensam a umidade das
madrugadas frescas para conservar as folhas fibrosas e nos tubérculos as águas da estação chuvosa.
No agreste, depois nas caatingas e nos cerrados desenvolveu-se uma economia pastoril
36 Ibid .
associada à produção açucareira, como produtora de carne, couro e bois de serviço. Uma economia
pobre e subsidiária. Mesmo assim, com o crescente mercado interno, relacionado à expansão da
produção canavieira exportadora, da exportação do couro, expandiu-se consideravelmente, o que
acabou por incorporar uma considerável parcela da população, cobrindo e ocupando áreas territoriais
mais extensas que qualquer outra atividade produtiva.
Isso gerou um tipo particular de população, com uma subcultura própria, marcada pela
especialização no pastoreio, pela dispersão espacial e por um modo de vida, refletido na organização
familiar, na estruturação do poder, na vestimenta típica, nos folguedos estacionais, na dieta, na
culinária, na visão de mundo e numa propensa religiosidade messiânica.
Trazidos pelos portugueses, o gado se aclimata à criação extensiva, onde os animais procuram
suas aguadas e alimento. Distantes o suficiente para não ameaçar a produção canavieira, se dispersam,
em currais, ao longo do curso dos rios, formando as ribeiras pastoris. A dispersão e expansão deste
pastoreio se faziam dependendo da posse do rebanho e do domínio das terras de criação, cedidas em
sesmarias pela Coroa, aos “merecedores” dos favores reais.
Antes que o gado atingisse qualquer terra, esta era legalmente apropriada em sesmarias doada
pala coroa ou pelo detentor de sesmaria maior, ou da própria capitania. Assim, dado que o gado só
podia se instalar nas raras aguadas, próximos aos barreiros, de onde consumiam o sal, e pela pobreza
dos pastos naturais, essas sesmarias se faziam imensas. Cada qual com seus currais, separadas às vezes
por dias de viagem, entregues aos vaqueiros, que recebiam, uma parcela (1 para 3) do gado cuidado.
Juntando aos poucos seu próprio rebanho, distanciava-se ainda mais, em zonas mais ermas, ainda não
alcançadas pelas sesmarias.
As relações trabalhistas aí formadas, não se pautavam, como nos engenhos pela escravidão,
mas por um regime de “parceria”, pelo qual o vaqueiro recebia em espécie parcela do gado cuidado.
Nesses núcleos em torno dos currais, as famílias viviam, plantavam roçados e produziam para sua
subsistência: o queijo e o leite. Embora rigidamente hierarquizada, essa relação, com o proprietário
das terras não era tão desigual como nos engenhos.
Este quando se fazia presente, era compadre e padrinho, respeitado por seus homens, embora
por de sua dignidade pessoal. Como dono e senhor, tinha autoridade indiscutida sobre os bens e, às
vezes, sobre as vidas e frequentemente sobre as mulheres que lhe interessassem.
Podemos ilustrar isto, com a fala de João Cabral, através de Severino:
[…]
Mas isto ainda diz pouco:
há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.
[…]
A própria atividade pastoril destacava o brio e as qualidades na luta diária da dura lida do
campo, fazendo-os peritos e de maior valor pessoal que os lavradores e empregados serviçais. Nesta
atividade, mais atrativa, se destacam como precursores,os brancos pobres e os mestiços dos núcleos
litorâneos.
O regime de trabalho nos engenhos não era atrativo para os trabalhadores livres e menos
ainda àqueles afeitos a vida aventurosa e vadia dos vilarejos litorâneos. Isto os fez se dirigirem aos
sertões, ao pastoreio, com o intuito de um dia se tornarem criadores. Deste modo, a oferta de mão-de-
obra se fazia constante, dispensando a mão-de-obra escrava.
A disputa das terras com os domínios tribais de territórios de caça indígena, lutando com o
índio que substituía a caça nativa, tornada rala pela caça ao gado, o domínio do sertão se fez a sangue
e entranhas. Roubando do índio suas mulheres, ou acolhendo-os em seus currais e criadouros, gerou as
características do povo nordestino no geral.
As enormes distâncias entre os núcleos humanos dispersos pelo sertão deserto, aproximavam
os moradores dos currais da mesma ribeira, desenvolvendo um tipo de sociedade. A necessidade de
ajuntar e apartar o gado, gerou formas de cooperação que terminaram por desenvolver competições de
habilidade, transformadas por vezes em festas regionais, as vaquejadas.
O culto aos santos padroeiros e festas religiosas, concentradas em torno de capelas e
cemitérios dispersas pelos sertões, proporcionavam ocasiões regulares de convívio entre as famílias
vaqueiras, que resultavam em festas, bailes e casamentos. Fora destas ocasiões, o convívio era
praticamente inexistente. O isolamento dos núcleos sertanejos, autarquicamente estruturado, voltado a
si mesmo, era a regra.
As atividades pastoris, em extensas regiões sujeitam as secas periódicas, cobertas por pastos
pobres, terminaram por conformar não só a vida, mas também o gado e o próprio homem. “Um e outro
diminuíram de estatura, tornaram-se ossudos e secos de carnes37”. Como mercadorias que conduz a si
mesma, associada ao homem, penetraram terra adentro até ocupar quase todo sertão interior.
A distância cada vez maior dos mercados foi desbastando a criação pelos abates de subsistência. De
pouso em pouso, em torno de aguadas e pastagens melhores, onde se recuperavam, marchavam
adiante.
Muitos destes pousos se transformariam em vilas, povoados permanentes, célebres por suas
feiras de gado. Onde a terra não permitia a criação bovina, a criação caprina se desenvolve, tornando-
se, com o passar do tempo, a única carne consumida pelo vaqueiro.
Podemos pensar então que identidade de lugar é uma subestrutura da identidade profunda da
pessoa e é constituída por cognições sobre o mundo físico, relativas à variedade e complexidade dos
lugares nos quais ela vive e satisfaz suas necessidades biológicas, psicológicas, sociais e culturais.
Mesmo que este entorno, seja por suas características, um espaço de dificuldades, de vazios
repletos de contradições, os vínculos emocionais com ele são igualmente importantes na formação da
identidade de lugar do sujeito. Esse aspecto é ressaltado por Tuan (1983), quando destaca a diferença
entre as noções de espaço e lugar. Para o autor, lugar está relacionado à segurança e estabilidade, e
espaço, a liberdade e movimento.
O espaço indiferenciado, caracterizado como o local da aventura, da liberdade e do
movimento, transforma- se em lugar à medida que o sujeito o vivencia através do tempo e da
intensidade, passando, então, a ser dotado de valor afetivo para o sujeito.
Diz nosso personagem:
[...]
Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
a mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas,
e iguais porque o sangue
37 Ibid.
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).
Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina:
a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,
a de querer arrancar
algum roçado da cinza.
Mas, para que me conheçam
melhor Vossas Senhorias
e melhor possam seguir
a história e minha vida,
passo a ser o Severino
que em vossa presença emigra.”
[...]
Esta força de trabalho excedente, é apropriada primeiramente, pelas fazendas, rompendo com
o modo tradicional de pagamento em espécie, em reses, e assalariando os vaqueiros, obrigados a
consumir do barracão, do armazém, pouco sobrava ao trabalhador. Noutras áreas, a população
sobrevivia de atividades extrativistas, como da exploração dos carnaubáis, para produção de cera e
artefatos de palha, sempre em regime de meação com os proprietários ancestrais ou sesmeiros. Todas
estas atividades aliciavam centenas de milhares de trabalhadores em virtude da miséria das populações
nordestinas, mesmo que combinadas às lavouras de subsistência, propiciavam apenas uma renda
mínima que permitia a sobrevivência.
Estas zonas de criação, com o aumento da população se transformaram em criatórios de
gentes, de mão-de-obra barata a requeridos pelas demais regiões do país. Utilizadas como recurso,
parte desta população se desloca, aliciada, em direção a Amazônia nos períodos áureos da borracha, e
posteriormente em direção ao sudeste, para incrementar o chão das fábricas, no processo de
industrialização modernizante e acelerada, principalmente após a Segunda Guerra Mundial.
As populações sertanejas, desenvolvendo-se longe da costa, isoladas, dispersas, conservaram
traços arcaicos, aos quais acrescentaram peculiaridades adaptativas ao meio e a função produtiva que
exerceram ou decorrentes dos tipos de sociedade que desenvolveram. Contrastam, em sua mentalidade
fatalista e conservadora com as populações litorâneas, mais afeitas ao convívio e comunicação com o
mundo.
Na verdade, a sociedade sertaneja distanciou-se não só espacialmente, mas sobretudo, social e
culturalmente das comunidades litorâneas. O sertanejo arcaico caracteriza-se por sua religiosidade
singela, com tendências messiânicas, por seu laconismo e rusticidade, por sua carranca, e por sua
predisposição ao sacrifício e à violência. Por outro lado, caracterizam-se pelo culto a honra pessoal, o
brio e fidelidade às suas chefaturas. Duas formas de manifestação desta personalidade sertaneja foram
o cangaço e o fanatismo religioso, desencadeados pelas condições de penúria suportada, mas
conformadas por seu mundo cultural.
É importante assinalar, que o cangaço surgiu, no enquadramento social do sertão, fruto do
próprio sistema senhorial do latifúndio, que aliciava jagunços pelos coronéis como capangas e como
vingadores. Apesar do receio despertado por estes bandos, a população tinha neles padrões ideais de
honorabilidade e valor, sendo suas façanhas cantadas em versos, e seu modelo de justiça realçados e
louvados.
Uma outra característica do mundo sócio-cultural sertanejo é o fanatismo religioso, cujas
raízes são comuns ao cangaço. São ambas as expressões da penúria e do atraso. Incapazes de se
manifestar em formas mais altas de consciência e luta conduziram massas desesperadas ao
descaminho da violência e do misticismo militante. Baseado na crença, vivida no sertão inteiro, da
vinda de um salvador, que com sua corte real, vai subverter a ordem do mundo, reintegrando aos
humildes a dignidade ofendida e aos pobres seus direitos espoliados.
“O sertão vai virar mar, o mar vai virar sertão” numa alusão as discrepâncias entre as
sociedades litorâneas espoliadoras e o sertão espoliado. Crença esta reflexa do messianismo português
vivido pelo sebastianismo. Canudos representaram sua expressão máxima e sua destruição à vitória
dos proprietários e coronéis sertanejos frente à desestabilização das relações de produção e de
propriedade vividas no processo messiânico.
A modernização ensejada, a partir da década de trinta do século passado, vai quebrar o poder e
desarmar os proprietários e coronéis, cujas fazendas foram cortadas por estradas nas quais caminhões
carregados de gentes, mercadorias e novas idéias percorriam. Ao mesmo tempo, a difusão radiofônica,
o cinema itinerante e nas vilas vão proporcionar ao sertanejo o contato com o mundo externo.
A autoridade central se sobrepõe, mesmo que amalgamada à local dos coronéis, já é capaz de
impor “leis e a justiça”. As tensões sociais, reprimidas, se deslocam e se estruturam de novas formas.
As desavenças coronélicas se deslocam para as lideranças política nacionais, que aliciam os
fazendeiros, afazendados e dependentes, em partidos políticos opostos a tudo, menos em defesa da
ordem fazendeira, donde saem seus representantes e quadros dirigentes.
Ao mesmo tempo, esta incorporação da técnica ao espaço nordestino, vai alterar as relações
tradicionais de produção, ampliando a área de cultivo, reformulando as profissões relacionadas à
produção canavieira pela transformação dos engenhos em usinas, segregando ainda mais do mercado
de trabalho, as profissões menos capacitadas e forcando uma emigração em direção aos novos
territórios industrializados do sudeste e mesmo as cidades litorâneas, aumentando assim, a segregação
espacial urbana.
Mas, este movimento também produziu, na literatura, o chamado ciclo regional, que, embora
em grande parte, realizado pelos filhos da elite, gritavam contra a desigualdade e as condições em que
viviam os homens do nordeste. A difusão radiofônica vai também ser aliada aos cantadores de feira
sertanejas, às novas idéias que percorriam os sertões na boléia dos caminhões, estimular o sentimento
de revolta pelas condições sociais decorrentes da propriedade da terra e da exploração conseqüente do
homem sertanejo. Nosso autor, representante desta corrente literária, nos mostra, com um lirismo
agressivo parte desta luta:
[...]
Esta cova em que estás,
com palmos medida,
é a conta menor
que tiraste em vida.
É de bom tamanho,
nem largo nem fundo,
é a parte que te cabe
deste latifúndio.
Não não é cova grande
é cova medida,
é a terra que querias
ver dividida.
[…]
Agora trabalharás
só para ti, não a meias,
como antes em terra alheia.
[...]
O nordestino, malgrado as condições de vida à que está submetido, deste o regime de
propriedade às condições climatológicas, sujeita a períodos de secas, que o obrigam a se deslocar leva
consigo, uma identidade arraigada de tal forma que, mesmo longe, reproduz em parte, aspectos de sua
cultura e, sobretudo trás consigo o desejo de retornar, em novas condições para se apropriar de uma
terra, que é sua e está impregnada em sua alma, na qual possa exercitar sua cidadania.
2.3.4. Cidadania: afinal de qual cidadania falamos?
A cidadania implica, necessariamente, um sentimento de pertencimento e de identidade em
relação ao corpo sócio-espacial no qual estamos inseridos e implica também, no reconhecimento do
outro, enquanto sujeito de direito e de deveres iguais.
Construída no tempo histórico do devir humano, endeusada e vilipendiada é, ao mesmo
tempo, uma conquista gerada nas lutas sociais contra a segregação e o desenvolvimento desigual e
uma meta a vir ser atingida em sua plenitude, uma vez que, o sistema socioeconômico em curso e os
anteriores, têm como premissa a produção de riqueza para uns e exclusão, pobreza e miséria para
muitos. É portanto, gerador de cidadanias diferenciadas no tempo e no espaço.
Em seu processo de apropriação do mundo natural, o homem foi construindo especializações
sócio-espaciais ao mesmo tempo em que, dialeticamente, ia construindo um arcabouço de valores
simbólicos, morais que justificassem e explicassem essa construção.
As especializações geradas pela divisão social, espacial e sexual do trabalho, aos poucos,
produzem não só, estamentos ou classes sociais distintas, mas principalmente, formas distintas de
apropriação do produto deste trabalho por parte de um segmento social, e mesmo no seio deste,
pela força ou pela naturalização de uma pretensa superioridade, organização e defesa da
coletividade, seus valores, seus espaços sagrados e profanos.
O surgimento das cidades, cidades-estados e os primeiros impérios urbanos, vão aprofundar
os conflitos de interesses entre os grupos sociais, cada vez mais numerosos, no interior desses
aglomerados, ao mesmo tempo em que produzem uma coesão em relação a sua territorialidade. Isso
provocou o aparecimento de pensadores que produzirão filosofias, tanto em relação à própria
essência da natureza humana, quanto da natureza em si, da natureza do poder e do saber, da
diferenciação social, etc.
A criação de conselhos, assembléias, fóruns, formas de governo e, consequentemente a
criação leis que explicitem direitos e deveres que vão reger a convivência do corpo social, foram a
saída encontrada e o reflexo desses conflitos entre proprietários e não proprietários, entre senhores,
serviçais e escravos, entre homens e mulheres, entre o mundo urbano e o rural.
As formas de organização política que na antiguidade clássica - no mundo ocidental
representados por Grécia e Roma, produziram ao longo de quase mil anos, um conjunto de noções
de direito e deveres, valores e regras, muitas vezes por meio de conquistas sangrentas, que vão
embasar, em parte até nos dias de hoje, o conceito de cidadão ainda em construção.
O mundo ocidental europeu, com o refluxo civilizatório, autocentrado, gerido pelo
imaginário teocrático e teológico do período feudal, surgido após a derrocada romana, vai estagnar,
temporariamente, as lutas por direitos sociais. Estas serão retomadas na imanência de um novo
processo de produção desencadeado pela retomada do comércio inter-regional e internacional, de
novas tecnologias, na redescoberta das ciências e da filosofia na explicação racional do mundo.
É desta cidadania, a do sujeito de direito, uno e múltiplo, social e espacialmente concreto em
suas relações de igualdade com o Outro, percebido como um ser no-do mundo, iguais em suas
diferenças e diferentes em sua igualdade, que falamos. O do sujeito usufrutuário do direito à vida, a
liberdade, à saúde, à educação, ao lazer e a cultura e, ao produto de seu trabalho e meios de
subsistência.
2.3.5. Cidadania e Geografia
A cidadania está umbilicalmente ligada à noção de lugar, ao pertencimento à determinada
localidade, à questão da territorialidade, do espaço vivido. E, no decorrer da história humana, é nas
cidades da antiguidade que esta noção vai se desenvolver, e vai ser "aprimorada" a cada
configuração espacial que se impõe como dominante e expandida ao entorno na medida em que
essa dominação cria redes de fluxos, comerciais, de exploração de recursos humanos e materiais,
além de culturais.
Monteiro, como já havia adiantado, afirma que dar localização às atividades humanas,
espacializando seu sentido e significado, posição e situação, foi uma das primeiras manifestações da
linguagem humana, não importando o meio pelo qual essa comunicação se dava.
A geografia, foi um dos saberes práticos que (re)nasceu na constituição do mundo moderno-
colonial, antes mesmo de se tornar um saber sistematizado, com foros de Ciência, no séc. XIX. O
geógrafo, surge como um funcionário do Rei, especialista em (re)presentar o espaço, delimitar
fronteiras para o Estado nascente. Já surge com uma função política, mais do que prática, de
procedimentos de controle, de contabilidade e de mensuração. Segundo Gonçalves 38, “O espaço,
como o poder absoluto, não estava em discussão”
38 GONÇALVES, Carlos W. P. Da Geografia às Geografias: Um Mundo em Busca de Novas Territorialidades; II Conferencia Latinoamericana y Caribeña de Ciencias Sociales, Universidad de Guadalajara, México, novembro 2001
Assim, é a partir da perspectiva do Estado, do poder, que o espaço é organizado. O espaço e
o território se colocam, como conceitos chaves para compreensão dos processos que vão
desembocar no mundo em crise, tal como o conhecemos hoje.
É preciso considerar que cada sociedade é antes de tudo, um modo próprio de estar junto,
implicando assim, em que cada sociedade no seu processo de consolidação, se faz construindo seu
espaço, não separando o social do espacial, do geográfico. Esta imbricação se dá numa relação de
causalidade, seja da sociedade para com o espaço, seja do espaço para a sociedade: “o ser social é
indissociável do espaço”.
O território não se configura como uma substância que contêm recursos naturais e uma
população. O território pressupõe um espaço que é apropriado e que neste processo – apropriação,
territorialização, conforma identidades – territorialidades, que sendo dinâmicas, materializam-se a
cada momento, uma determinada ordem, uma configuração territorial, uma topologia social.
A geograficidade da existência vai além das condições naturais, como aceito pelas ciências
sociais. A natureza faz parte da materialidade constituinte do espaço geográfico. Mas o ser humano
só se apropria daquilo que faz sentido, só se apropria daquilo a que atribuem significação, assim toda
apropriação material é ao mesmo tempo simbólica.
Cassirer39, nos diz que a “classificação é uma das características fundamentais da linguagem
humana”, dar nome a um objeto ou ação equivale a colocá-lo em um conceito de classe. Sendo
humanos, são variáveis no sentido e significado. Não se destinam a referir-se a entidades
independentes que existam por si só. Antes, são determinados por interesses e propósitos humanos.
Baseiam-se em certos elementos constantes, repetitivos, de nossa experiência sensorial.
Milton Santos40, reapresenta esta indissociabilidade entre o material e o simbólico, na
medida em que para ele, o espaço geográfico é um ”misto, um híbrido, formado pela união
indissociável de sistemas de objetos e sistemas de ações. Os sistemas de objetos, o espaço-
materialidade, formam configurações territoriais, onde a ação dos sujeitos, a ação racional ou não,
vem instalar-se para criar um espaço”.“Neste sentido não há significação independentes dos
objetos”.
O mundo ocidental, cujo pensamento se impõe homogeneizante, pela perspectiva abstrata
da matemática que sobrevaloriza a quantidade em detrimento da qualidade, revela seu desconforto,
39 CASSIRER, Ernset, Antropologia Filosófica. São Paulo: Ed. Mestre Jou, 1977.
40 SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço – técnica e tempo/razão e emoção. São Paulo: Edusp, 2008.
diante deste paradigma dicotômico, na medida em que o espaço na geometria, consiste na variação
quantitativa deste mesmo espaço, enquanto que os espaços geográficos contem uma “materialidade
como atributo onde co-existem os diferentes”.
E, mais, essas relações espaciais não são apreendidas pelas estruturas clássicas de ação e
representação, mas são inteligíveis como princípios de coexistência da diversidade, da alteridade, e
que constituem uma garantia nas possibilidades de comunicação. Isto leva alguns autores, segundo
Gonçalves, a reconhecer que há uma dimensão territorial ou uma lógica geográfica da cultura.
A este espaço, o de convivência do diverso, contíguo, de vivência diária, Santos, ousa chamá-
lo de espaço banal, que é onde exercemos ou deveríamos exercer a cidadania. A contigüidade que
interessa ao geógrafo, vai além da definição das distâncias que a separa. Ela tem a ver com a
proximidade física das relações entre sujeitos que as vivem com intensidade, gestando assim laços de
solidariedade, laços culturais, e por fim, a identidade, tanto do sujeito, singular em sua coletividade.
O espaço geográfico é o locus de convivência com o diverso, natureza e cultura ao mesmo
tempo. O lugar, o espaço compartilhado pelas mais diversas escalas de convivência, é por sua própria
natureza, o espaço do conflito e da cooperação, que são a base da vida em comunidade
O lugar é o quadro de referência pragmática do mundo, o teatro das paixões humanas, que
se manifestam diversificadamente em espontaneidade e criatividade, ao mesmo tempo em que
impõe ao território compartilhado, a 'interdependência como práxis mediadora dos papéis
específicos de cada um, e também, cada vez mais, um espaço de resistência à ordem
homogenizadora do mundo.
No mundo a partir do século XV, sobre o qual se homogeneizou uma visão “euro-americana”,
as identidades culturais, segundo Hall41, estão relativizadas pelo impacto da compressão espaço-
tempo. Concomitantemente ao fluxo de decisões, de mercadorias, de imagens, estilos de vida
ocidentais e identidades consumistas, de dentro para fora das metrópoles e das economias centrais,
há um fluxo de pessoas das periferias em direção ao centro, em suas diversas escalas:global, regional
e local.
Impulsionadas pela pobreza, seca, fome, subdesenvolvimento, desenvolvimento
dependente, distúrbios políticos, etc, atraídas pelas mensagens disseminadas pelo consumismo
globalizado, essa massa se dirige aos locais aonde estão os “bens”, em tese, onde as chances de
sobrevivência são maiores. Esse movimento, gera, nos territórios de chagada, enclaves étnicos,
enclaves de culturas regionais diversas, gestando novas territorialidades.
41 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. DP&A Editora, Rio de Janeiro, 2006
Essas tensões de territorialidades rompem, no pensar de Foucault42, a instituição da
sociedade disciplinar transmutando-a numa sociedade de controle. As instituições, os espaços de
conformação da subjetividade – a família, a escola, a prisão, a fábrica, o estado-nação, o mundo, não
são mais definidos da mesma maneira. “Os espaços cercados que costumavam definir o espaço
limitado das instituições foram derrubados. [...] A lógica que funcionava dentro das paredes
institucionais agora se espalha por todo terreno social”
A geografia está diretamente relacionada ao espaço, seus paradigmas e paradoxos,
“modernos”, dependendo da visão conceitual subjacente, podem permitir uma apreensão total ou
parcial das relações entre o sujeito e o espaço, entre o homem e o meio.
A cidadania se insere nesta lógica, reificada com um direito, trás consigo a idéia de controle,
para coexisti-lo é necessário se submeter às leis do convívio social. As diferenças e desigualdades
sócio-espaciais são naturalizadas, em nome da ordem. Para se obter a cidadania é necessário adquiri-
la. E só se pode adquiri-la mediante a sujeição do indivíduo ao controle e às leis do mercado, digo da
“sociedade”. A cidadania é mercantilizada.
A lógica cartesiana, na qual a sociedade mundializada se fez a si mesma, está impressa na
consciência comunicada mercadologicamente. Não mais o “Penso, logo existo”, e sim o “Tenho, logo
existo”. Ter cidadania e não Ser cidadão.
A geografia, malgrado todos os percalços por que passou, é, segundo Monteiro, um veículo
da Educação. E esta é, dentro da concepção neoliberal, formadora do conceito de cidadania. Por este
olhar, a cidadania é a do sujeito servil, sujeito de direitos e deveres. Para se tornar, “civilizado” ou
adquirir cidadania, é necessária a observância das regras e normas pré-estabelecidas, a liberdade só
pode ser praticada dentro dos limites impostos pela sociedade. Os desprovidos de “educação” não
tem direito a participação.
A participação política, fundamento central da cidadania, não é questionado, muito pelo
contrário. A cidadania implica na observância do conflito e em sua superação, em todas as
dimensões espaciais. Seja no interior do lar, seja na apropriação do espaço público enquanto
sentimento de pertencimento a este mesmo espaço. Implica na aceitação do outro como um igual
em sua diferença.
42 FOUCAULT, Michel. A Microfísica do Poder, in Gonçalves, Carlos W. P. Da Geografia às Geografias: Um Mundo em Busca de Novas Territorialidades; II Conferencia Latinoamericana y Caribeña de Ciencias Sociales, Universidad de Guadalajara, México, novembro 2001.
A cidadania para Santos, “é uma lei da sociedade que, sem distinção, atinge a todos e investe
cada qual com a força de se ver respeitado contra a força, em qualquer circunstância” e ao mesmo
tempo uma conquista do indivíduo e que se aprende a exercê-la. Em que se pese a luta pelos direitos
sociais, conquistados a custa de muito sangue, a cidadania, da forma com que foi e é percebida,
esconde toda uma ordenação do mundo.
Para o capital exercer toda sua possibilidade, o cidadão tem que ser, controlado, numerado,
identificado, e portanto alienado. Sem ordem, não há crescimento nem geração de riqueza. A ação
do cidadão se restringe à esfera do mercado. Tratado como objeto, como cidadão de segunda classe,
seus direitos são afirmados enquanto possibilidade a ser alcançada, mas o são negados e burlados na
prática cotidiana .
O lugar, o local, articulado ao entorno mundial, representa a materialização do vivido,
constituindo-se assim em um contraponto, um diferencial, o foco e o lócus da resistência. Sua
conquista, material e simbólica, é a afirmação do sujeito frente à igualdade homogeneizadora.
É também a (re)politização das relações internas e externas. Sendo assim, materializa a
consciência do eu, do nós e dos outros. A percepção do outro em nós assim como de nós nos outros
nos leva a construção de uma cidadania plena.
2.3.6 Um mapeamento das emoções: espacializando a trama
Morte e Vida Severina, escrito por João Cabral de Melo Neto, retrata a viagem de um
retirante do Sertão, para a zona da mata; tomando como base a analise de fatores hidrológicos
podemos verificar a descrição de algumas regiões. “É o Severino da Maria de Zacarias, lá da serra da
Costela, limites com a Paraíba”
Para Eduardo Pazera, professor de geografia da Universidade Federal da Paraíba a serra da
Costela é um local fictício, próximo ao território paraibano, como início teve a nascente do rio
Capibaribe (já que o mesmo cita que vem seguindo o rio), na serra do Jacarará, município de Poção –
também nos limites com a Paraíba.
“Onde a caatinga é mais seca, irmão das almas, onde uma terra que não dá nem planta brava.”
A caatinga, é o único bioma exclusivamente brasileiro, o que significa que grande parte do
seu patrimônio biológico não pode ser encontrado em nenhum outro lugar do planeta. A caatinga
ocupa uma área de cerca de 750.000 km², cerca de 11% do território nacional englobando de forma
contínua parte dos estados do Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco,
Alagoas, Sergipe, Bahia e parte do Norte de Minas Gerais (Sudeste do Brasil).“ Seu guia, o rio
Capibaribe, cortou com o verão”
O Rio Capibaribe é um dos rios do estado de Pernambuco, no Brasil. Nasce na Serra de
Jacarará, no município de Poção (PE) e deságua no Oceano Atlântico, no centro do Recife. Possui
duzentos e quarenta quilômetros de extensão, e sua bacia, aproximadamente, 5.880 quilômetros
quadrados. Possui cerca de 74 afluentes e banha 32 municípios pernambucanos, entre eles Toritama,
Santa Cruz do Capibaribe, Salgadinho, Limoeiro, Paudalho, São Lourenço da Mata e o Recife.
Seu curso é dividido em três partes: o alto e o médio curso, situados no Polígono das Secas,
onde o rio apresenta regime temporário (cheio sazonalmente); e o baixo curso, quando se torna
perene a partir do município de Limoeiro, no agreste do Estado. O rio encontra-se hoje bastante
degradado pelo assoreamento e poluição devido a dejetos de matadouros, lixões, bem como esgotos
urbanos e industriais.
“O algodão, a mamona, a pita, o milho, o coroa” essa representa as culturas que eram
plantadas no sertão na época em que o retirante faz sua viagem.“ Não senti diferença entre o
Agreste e a caatinga, e entre a caatinga e aqui a Mata a diferença é a mais mínima”
Agreste (do latim: relativo ao campo, campestre) designa uma área na Região Nordeste do
Brasil de transição entre a Zona da Mata e o Sertão, que se estende por uma vasta área dos estados
brasileiros da Bahia, Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte; Possui solo essencialmente
pedregoso,rios temporários,vegetação rala e tamanho pequeno (mirtáceas, combretáceas,
leguminosas e cactáceas). Tecnicamente o agreste junto ao sertão compõe o
ecossistema denominado caatinga.“A terra se faz mais branda e macia quando mais do litoral(zona
da mata)a viagem se aproxima”
A Zona da Mata é uma região litorânea do Nordeste, que se estende pelos estados de
Pernambuco, Paraíba, Alagoas e Sergipe, formada por uma estreita faixa de terra (cerca de 200
quilômetros de largura) situada no litoral. A vegetação original na zona da mata era
predominantemente mata atlântica. É uma área que possui alto nível de urbanização, nessa região se
concentra os principais centros regionais do Nordeste. No setor agrícola destacam-se as grandes
propriedades de tabaco, cana-de-açúcar e cacau, existe uma larga produção agrícola, devido a terra
ser altamente produtiva - solo massapé.
Nos últimos anos nessa região tem ocorrido crescimento industrial, impulsionado por
incentivos fiscais. Diante do exposto acima, detém-se que muitos saem da zona da caatinga, onde a
seca é uma das principais causas da retirada, para a Zona da Mata onde procura-se uma melhor
condição de vida, porém com a falta de especialização das mãos-de-obra esse quadro não muda e as
grandes cidades das pessoas, para buscar uma melhor condição de vida.
3. CONCLUSÃO
Através desta pesquisa, podemos confirmar como a literatura ainda é um recurso pedagógico
pouco utilizado no ensino de Geografia, pois muitas das metodologias utilizadas ainda estão presas
aos resquícios da Geografia Tradicional, o que contribui para o atraso de sua renovação no âmbito
educacional.
Embora, há várias publicações que estão sendo publicadas sobre essa vinculação entre
Geografia e Literatura. Através de metodologias baseadas nas correntes geográficas tanto
humanística como a cultural contribuem para um ensino mais significativo e condizente com a
realidade dos educandos.
Desta maneira, é possível observar que a literatura junto à Geografia possibilitam uma
multiplicidade de alternativas para o ensino que se torna mais completo em função do estímulo
dados aos educandos concernente suas dimensões afetivas e emocionais que são trabalhadas
através da dimensão artística. Isso se caracteriza em função do resgate ao imaginário social e a
mundo simbólico que a Geografia Tradicional não trabalhou de forma suficiente, ou muitas vezes até
omitindo essa dimensão em suas análises e práticas educacionais
Ao observarmos o poema trabalhado, podemos concluir que as migrações são temas
trabalhados somente pelo viés econômico, não levando em consideração outras dimensões que
também integram a constituição do sujeito/educando. Desta forma, a geografia realiza uma
formação fragmentada, não valorizando o viés humano em suas propostas didáticas.
A sensibilidade se torna um fator de extrema importância ao se tratar de assuntos discutidos
com base na literatura, pois os alunos acabam dialogando com a obra que estão lendo, fazendo
associações com seu próprio cotidiano e questionando as situações que se desabrocham através da
palavra escrita e dos momentos vividos pelo mesmo em diferentes escalas espaço-temporais da vida.
Essa metodologia torna-se bastante dinâmica em razão de buscar a racionalidade cientifica
junto à subjetividade literária de maneira a valorizar mais as questões humanas que geralmente só
são analisadas pela ciência de forma fria e calculista.
Por outro lado, o poema Morte e Vida Severina nos ajuda a compreender vários problemas
de caráter geográfico e social que afetam o nosso país. Um dos principais deles é vivido através do
personagem Severino que nos conta sua história a partir da sua emigração.
A obra nos dá um mosaico de alternativas para trabalharmos os conceitos geográficos
através da literatura em questão.
O fenômeno migratório mostra de maneira contundente a situação de milhares de pessoas
que vivem como nômades em busca de melhores condições de sobrevivência. Dessa forma, o Estado
utiliza os contingentes populacionais para alcançar suas estratégias e trunfos enquanto a população
é “jogada de um lado para outro”.
Dessa forma, não há como não fazermos uma ponte com a questão do lugar, pois o nosso
personagem, acima de tudo, busca encontrar novos horizontes onde possa se estabelecer visando
refazer sua história, ou seja, se lugar significa sentir-se pertencente há algum local, desenvolver por
ele afetividade e intimidades, isso deixa-nos claro a falta de “senso de lugar” que Severino
desenvolve no decorrer de sua retirância.
A questão da identidade é outro conceito que ganha força no poema, pois a identidade está
diretamente ligada à questão do lugar. A identidade é expressa diversas vezes no poema em função
do próprio nome Severino que vai muito além da sua apresentação, enfoca diretamente à condição
dos muitos “Severinos” que como ele lutam em busca de novas oportunidades:
O meu nome é Severino,
não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria;
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.
[...]
Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas,
e iguais também porque o sangue
que usamos tem pouca tinta.
[...]
É importante analisar que a emigração realizada pelo personagem Severino é resultado da
ausência do Estado em cumprir com os direitos expressos na Constituição Brasileira, pois o que
observamos é o verdadeiro descaso em relação aos vários “Severinos” cujos direitos não são
cumpridos pela legislação vigente.
O que nos induz a entender que: não há como considerar-se cidadão quando não temos nem
mesmo o direito ao lugar, ou seja, o sentimento e a posse de fato de um pedaço de terra onde se
possa viver, quando somos dilacerados em nossos aspectos identitários de modo que não somos
reconhecidos em nossas características étnico-raciais e principalmente quando somos medidos ou
julgados pela nossa condição social (leia-se financeira).
Isso demonstra de maneira incisiva a fraca unidade nacional que o nosso país obtém, sendo
necessário uma maior mobilização da população visando à possibilidade de reformas que protejam o
corpo social, reformas estas de caráter educacional, agrário, entre outras, resultando na construção
de uma geografia mais humanizadora, onde o cidadão possa realmente ser tratado como tal, não
apenas como um pagador de impostos, mas como um indivíduo dotado de habilidades, direitos e
deveres e principalmente a vontade de transformas positivamente a nação.
Dessa forma, podemos afirmar que Severino é um cidadão? É possível falarmos de cidadania
quando nem mesmo uma grande parcela da sociedade não conquistou nem mesmo seu local de
origem, sendo submetido a viver como nômade em razão da busca incessante por parte dos grandes
latifundiários e empresários do agronegócio por mais e mais capital.
Assim, buscamos através do poema Morte e Vida Severina, conscientizar nossos alunos no
tocante à relação dos problemas sócias, econômicos, políticos e culturais que passam pela questão
espacial, ou seja, devem ser compreendidos dentro de uma ótica geográfica e que são auxiliados
através da literatura que consegue ultrapassar as barreiras científicas e atingir o sujeito em sua
totalidade, funcionando como veículo nessa transferência de conhecimento aos educandos.
Concluímos então que a Literatura muito pode contribuir com a Geografia na construção do
conhecimento servindo como instrumento para desvendar as ideologias impostas pelas classes
dominantes ao mesmo tempo em que procura desenvolver nos alunos uma perspectiva mais
holística sobre as múltiplas dimensões que compõem o sujeito, sejam elas de caráter físico ou
abstrato.
Sendo a literatura uma forma de representação da sociedade e a Geografia uma
representação do espaço, ambas procuram compreender os fenômenos que se realizam sobre o
espaço terrestre. Essas representações têm como objetivo, entender melhor as relações que se
realizam sobre o mundo de maneira que possa, de alguma forma, buscar através da educação, um
caminho que possa tornar o mundo mais justo e eqüitativo. Assim podemos dizer como foi
mencionado certa vez pelo professor Mangabeira Unger43: “Se aceitarmos que a sociedade é feita e
imaginada, devemos também acreditar que ela possa ser refeita e reimaginada”.
43 Citado livro de Roberto Mangabeira Unger, não publicado no Brasil chamado Social Theory: Its situation and its task (Cambridge: Cambridge University Press, 1987).
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