Ano I, Nº 03, Juiz de Fora, dezembro/2010 - março/2011
EditorAlexandro Souza
Conselho EditorialRicardo Vélez Rodríguez
Marco Antonio Barroso FariaHumberto Schubert CoelhoAntonio Gasparetto Júnior
Fábio Caputo DalpraBernardo Goytacazes de Araújo
Conselho ConsultivoAntonio Paim (Instituto Brasileiro de Filosofia)Leonardo Prota (Instituto de Humanidades)
Ernesto Castro Leal (Universidade de Lisboa)
DesenvolvimentoPortal Sophia
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SUMÁRIO
Apresentaçãop. 03-04
Artigos
MEMÓRIAS DA GRANDE GUERRA (1914-1918) NA “RENASCENÇA PORTUGUESA”
Ernesto Castro Lealp. 5-21
A TEORIA DA JUSTIÇA EM JOHN RAWLS Antonio Adelgir de Oliveira Almeida p. 22-32
DIOGO ANTONIO FEIJÓ E A EMANCIPAÇÃO INTELECTUAL DO BRASIL COLONIALBruno Maciel Pereira p. 33-45
ANGÚSTIA EM PERSONA, DE INGMAR BERGMAN: APONTAMENTOS KIERKEGAARDIANOSAlexandro F. Souza
p. 46-55
ROSENBLATT, Helena (ed.). The Cambridge Companion to Constant. New York: Cambridge University Press 2009, 416 pág.A/C Marco Antonio Barroso
p. 56-61
KROKER, Arthur & WEINSTEIN, Michael A., “Data Trash: The Theory of the Virtual Class”, New York, St. Martin’s Press, 1994, 165 pág.A/C Ronaldo Pimentel
p. 62-66
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APRESENTAÇÃO
Saudando o novo ano que se inicia, este terceiro número da Revista
Cogitationes oferece-nos seis contribuições que, passando por temas como história
das ideias, cinema e tecnologia, compõem um interessante quadro, bem ao estilo da
revista.
Em Memórias da Grande Guerra (1914-1918) na Renascença Portuguesa,
Ernesto Castro Leal, professor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa,
procura revisitar criticamente algumas obras memorialísticas de combatentes
portugueses durante a Primeira Guerra Mundial. Destacando alguns nomes da
intelectualidade e elite militar, Castro Leal aborda as consequências do conflito para
a sociedade portuguesa, salientando a formação de uma “ética do patriotismo”
que, segundo ele, se evidenciava em “[...] novos discursos de legitimação ético-
política e uma nova hierarquia social devedora da coragem física e da integridade
moral, que não excluía a intenção de 'morrer pela Pátria' [...]”.
Antonio Adelgir de Oliveira Almeida procura debater, em A Teoria da
Justiça em John Raws, o papel filosófico dos escritos do autor norte-americano.
Para Oliveira Almeida, a partir do pensamento aristotélico, Raws busca um ideal de
justiça que não se restringe à esfera distributiva e que se encaminha à análise de
uma justiça coercitiva. Na perspectiva do autor, “[a] relevância e a atualidade desse
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entendimento aristotélico fizeram com que John Raws […] retomasse os
argumentos de Aristóteles, procurando mostrar que o Estado é que deve dar
condições para que seus cidadãos procurem viver de uma maneira feliz para a
realização do bem comum”.
Já em Diogo Antonio Feijó e a Emancipação Intelectual do Brasil Colonial,
Bruno Maciel Pereira, membro do Núcleo de Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos
da Universidade Federal de Juiz de Fora, procura analisar, a partir dos caminhos
apontados por autores como Miguel Reale, o lugar de Diogo Antonio Feijó na
história das ideias no Brasil. Para Maciel Pereira, os escritos de Feijó no estudo de
Kant mostram que, mesmo antes da Independência, havia já uma certa liberdade de
pensamento do Brasil ante a metrópole.
Fechando a seção de artigos encontra-se Angústia em Persona de Ingmar
Bergman: Apontamentos Kierkegaardianos, uma tentativa de se analisar a obra do
mestre sueco a partir de O Conceito de Angústia, de Soren Kierkegaard. A artigo
procura salientar o tema da angústia a partir das personagens centrais da trama de
Bergman: a atriz Elisabeth Vogler e a enfermeira Alma.
As resenhas de Marco Antonio Barroso Faria e Ronaldo Pimentel finalizam
esta terceira edição da Revista Cogitationes. O primeiro, em resenha sobre a obra
The Cambridge Companion to Constant, procura nos aproximar da recente
redescoberta da obra do pensador franco-suíço Benjamin Constant de Rebecque e o
segundo, em Data Trash: The Theory of Virtual Class, procura nos trazer algumas
reflexões sobre o mundo virtual que nos cerca.
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MEMÓRIAS DA GRANDE GUERRA (1914-1918) NA “RENASCENÇA PORTUGUESA”
Ernesto Castro LealProfessor da Faculdade de Letras da Universidade
de LisboaInvestigador do Centro de História da
Universidade de [email protected]
“Eu os vejo, […] o tronco envolto na samarra, e as pernas nos safões, hirsutos e felpudos, como os Lusitanos bárbaros de outrora. Descem do seu calvário, patujando, a fundo, com as suas toscas botifarras dentro da neve e da lama, nos trilhos aspérrimos da trincha. Vergam ao peso das armas, da mochila, do capote, do capacete, da máscara, e mais ainda da miséria, da doença, do cansaço.”
Jaime CORTESÃO1.
“Os factores espirituais e materiais expressam-se numa dimensão de tensões e complementaridades […]. Na recorrente visualização dramática, emerge o homem, na sua expressão de classe e actividade, levando Cortesão a privilegiar os aspectos unificadores
1 Jaime CORTESÃO. Memórias da Grande Guerra (1916-1919). Porto: Edição da “Renascença Portuguesa”, 1919, p. 237.
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que acompanham a sua acção voluntária.” José Esteves PEREIRA2.
Considerações iniciais
Neste texto revisitamos criticamente algumas obras memorialísticas de
combatentes portugueses durante a Primeira Guerra Mundial, que foi consagrada
na Europa como a Grande Guerra, em virtude das suas profundas consequências
humanas, económicas, políticas e civilizacionais. A amostra representativa, que
escolhemos, incorpora livros que foram publicados na cidade do Porto, pelas
edições do Grupo “Renascença Portuguesa”, entre 1916 e 1924, incluindo os artigos
publicados no número especial da revista portuense A Águia de Abril/Junho de 1916
(“Portugal e a Guerra”).
Entre os autores das narrativas memorialísticas, onde se destaca as
Memórias da Grande Guerra de Jaime Cortesão, ou dos estudos críticos, estão
importantes vultos das elites intelectuais e das elites militares, como Jaime
Cortesão (capitão miliciano médico na guerra da Flandres), Basílio Teles, José de
Macedo, Bento de Carvalho Lobo (Visconde de Vila-Moura), Alfredo Barata da
Rocha, Adelino Mendes, general Manuel Gomes da Costa, tenente-coronel
Alexandre Malheiro, tenente-coronel médico Eduardo Pimenta, capitão Augusto
Casimiro, capitão Carlos Afonso dos Santos (usa o pseudónimo de Carlos Selvagem)
e tenente João Pina de Morais.
Quanto aos colaboradores do referido número da revista A Águia, figuram,
entre outros pensadores portugueses, Teixeira de Pascoaes (pseudónimo de
Joaquim Teixeira de Vasconcelos), Teófilo Braga, Leonardo Coimbra, Alberto de
Oliveira, Raul Proença, Jaime de Magalhães Lima, João de Barros, Francisco Mayer
Garção, Henrique Lopes de Mendonça e Marcelino Mesquita, com prosas; Jaime
Cortesão, Augusto Casimiro, António Gomes Leal e Augusto Gil, com poesias.2 José Esteves PEREIRA. “A Teoria da História de Jaime Cortesão”. In: Percursos de História das Ideias. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2004, p. 383 e 387.
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1. História, Literatura e Guerra
O processo social de construção da identidade, quer se trate de uma
sociedade, de um grupo ou de um indivíduo, faz uso da íntima relação entre
memória (passado), vivência (presente) e projecto (futuro), recorrendo a várias
categorias de referentes identitários, entre os quais se encontram os materiais e
físicos (território ou clima), os históricos (origens ou acontecimentos marcantes), os
psicoculturais (sistema de valores ou hábitos colectivos) e os psicossociais
(actividade ou motivação).
Há sempre, com óbvia diferença de intensidade, um “jogo dos possíveis”,
entretecendo o biológico e o cultural, que mobiliza uma dimensão genealógica e
uma dimensão ambiental, definindo assim traços de uma personalidade de base.
Durante o processo de identificação-singularidade, torna-se necessário, seguindo
Eric Erikson, operar uma distinção, atribuir um significado e conferir um valor3. A
escrita diarística e memorialística evidencia esse processo de construção social da
memória, mas também alicerça a construção historiográfica do passado. Afirma
Jacques Le Goff que a “memória, onde cresce a história, que por sua vez a alimenta,
procura salvar o passado para servir o presente e o futuro”4.
O tempo da escrita das presentes narrativas de guerra tem uma grande
proximidade com o exaltante tempo histórico descrito (tensão trágica entre a vida e
a morte), impregnando por isso as descrições de uma forte dramatização emocional
que não lhe retira o imediatismo, habitualmente “reformulado nos termos
distanciados e amadurecidos que o memorialismo implica [...]”5. Pode então 3 Eric ERIKSON. Identity, youth and crisis. New York: W.W. Norton & Company, 1968.4 Jacques LE GOFF. “Memória”. In: Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984, vol. 1, p. 47.5 Carlos REIS; Ana Cristina M. LOPES. Dicionário de Narratologia. Coimbra: Livraria Almedina, 1990,
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colocar-se o problema de se estar mais perto do género narrativo do
diário/autobiografia do que do género narrativo das memórias, se se enunciar a
questão da distanciação.
Por outro lado, convive com frequência um discurso auto-justificativo e
propagandístico do cidadão-político combatente (ideologicamente motivado) com
o fino olhar crítico reconstrutivo de tensões psicológicas, de circunstâncias físicas
ou de situações de confronto militar, revelando-se assim uma “encruzilhada de
escritas”, onde se mistura a literatura de justificação com a literatura
historiográfica. Um dos riscos que daqui decorre é o do uso e abuso da História – na
expressão consagrada de Moses Finley – como lugar legitimador de discursos
ideológicos6.
No mundo destas narrativas de guerra é fácil surpreender discursos que
comunicam memórias elaboradas de experiências, transportando para o presente
uma clara intenção política. O Homem, ao vaguear pelo tempo-memória com
finalidade interveniente, propicia um acto comunicativo que apela a uma
cumplicidade partilhada. Deste modo, a guerra vivida (e sofrida individualmente) ao
ser recordada (e comunicada publicamente) permite a generalização de um mundo
de atitudes e de valores que, ao propiciar a activação de um sistema de incitações
inter-individuais, pode criar uma área de opinião pública.
O narrador-antigo combatente que pretende seguir esta estratégia reinventa
o concreto “tempo-vivência” no decurso da elaboração utópica do “tempo-
projecto”, podendo até evocar um “tempo-memória” da experiência nacional, lido
como referente exemplar. Veja-se o caso de Jaime Cortesão, nas Memórias da
Grande Guerra, que, em face de uma imagem de Portugal como “Nação
entorpecida” desde os finais do século XVI e assente no “génio do Povo” que se
tinha revelado em “isolados clarões de relâmpago”, como aqueles que se
p. 99-101.6 Moses I. FINLEY. Uso e Abuso da História. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora, 1989.
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manifestaram durante as Invasões napoleónicas (1807-1811), o Ultimato inglês de
1890, a Revolução republicana de 1910 ou a Primeira Guerra Mundial (1914-1918),
propõe um novo “abalo” na vida portuguesa em direcção a uma República
“progressiva e fecunda”, fazendo-a “entrar nas grandes correntes do trabalho
moderno”7.
A defesa intransigente do intervencionismo português na Primeira Guerra
Mundial, espelhado nas narrativas dos republicanos Jaime Cortesão, Augusto
Casimiro, João Pina de Morais ou Carlos Selvagem, transportava uma visão profética
prometeica, radicada numa dupla justificação de profundo sentido patriótico: a
justificação política de aliados naturais do bloco demoliberal anglo-francês contra o
expansionismo cesarista alemão; a justificação ética de uma proposta de
revigoramento moral e de regeneração nacional que, fundamentalmente, o soldado
combatente encarnava.
No número especial da revista A Águia de 1916, vários intelectuais, incluindo
Jaime Cortesão e Augusto Casimiro com textos poéticos, exprimiram também em
textos ensaísticos esse tipo de argumentos ético-políticos. Por exemplo, Teixeira de
Pascoaes, evocando a velha aliança anglo-portuguesa, proclama que o “Passado
vela pelo Futuro” e conclui pela íntima ligação da sorte de Portugal à sorte da
Inglaterra e da França; Teófilo Braga alega o risco de se perder a “Ocidentalidade”
como matriz de base do equilíbrio europeu; Raul Proença apela à mobilização moral
dos portugueses para estabelecer um “nexo patriótico” e sustentar a nossa
participação na guerra, caracterizada fundamentalmente como guerra económica,
ao contrário de Cortesão que desde o início a considera eminentemente política;
Francisco Mayer Garção detecta a oposição essencial entre o direito e a força no
conflito; Henrique Lopes de Mendonça adverte para o perigo do germanismo
ameaçar a civilização greco-latina, “única verdadeiramente expansiva e fecunda”;
Leonardo Coimbra define um sentido da guerra marcado pelo “esforço
7 Jaime CORTESÃO. Memórias da Grande Guerra, p. 13-24 e 239-242.
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transcendente das forças espirituais” contra “a vertigem materialista do mundo
moderno”.
2. Ética do patriotismo e redenção nacional
Na diarística e no memorialismo de guerra encontra-se habitualmente uma
versão apologética da acção do soldado combatente (principalmente um camponês
fardado, o “magala” português), mas também surge a valorização da oficialidade
miliciana que correu riscos na frente de combate. Panteonizados civicamente nos
túmulos dos Soldados Desconhecidos ou nos vários monumentos aos Mortos da
Grande Guerra, deste modo se evidenciava novos discursos de legitimação ético-
política e uma nova hierarquia social devedora da coragem física e da integridade
moral, que não excluía a intenção de “morrer pela Pátria”, moldando assim uma
ética do patriotismo.
A narrativa intervencionista de Jaime Cortesão é paradigmática a este
respeito, estando percorrida por uma leitura redentorista da acção do soldado
combatente, que devia convergir politicamente com a acção de uma vanguarda
elitista iluminada: “Colectivamente na guerra, na nossa guerra, salvou-se o soldado.
Ele foi, sempre que o não enganaram, paciente, sofredor e heróico [...]. Entre os
oficiais, por via de regra, quanto mais galões, pior [...]. Porque a guerra educa [...],
as velhas virtudes da arraia-miúda, que nele soldado dormiam, acordaram […]
para se afirmarem mais uma vez a única grande força da grei [...]. De novo, como
sempre, uma reduzida minoria de eleitos e iluminados […] se encontrou
unicamente com a arraia, para realizar os milagres que redimem […]”8.
Nessa mesma parte das Memórias da Grande Guerra, Jaime Cortesão
pretende mostrar a guerra como escola de valores (honra, valentia, solidariedade),
propiciando uma mudança de carácter que, no caso do “magala”, o transformara de
8 Jaime CORTESÃO. Memórias da Grande Guerra, p. 232-238.
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“soldado bonacheirão e humilde”, “sonâmbulo”, “galhofeiro e manhoso”, num
“homem novo”, numa “legião de gigantes”, onde estavam o Esgalhado, o Baldaia
ou o Rancheiro da Segunda, que aprenderam a “desprezar a morte e o sofrimento”
e souberam entender qual é o valor da vida, construindo pilares da regeneração
urgente do corpo nacional. Assim, construiu um processo narrativo, revelando o
homem confrontado com a morte e desocultando o que chamaria em 1926 “as
máscaras de convencionalismos e mentiras”, por meio das quais o ser humano
esconde as verdadeiras faces: “As almas ficaram a nu e guardaram por muito tempo
– e quantas para sempre! – o jeito de se mostrarem na sua esplêndida nudez […]]”9.
Sendo uma constante nas narrativas intervencionistas a evocação do
heroísmo dos soldados, tal não obstou a que se produzisse uma leitura
antropológica dos seus hábitos profundos, que Carlos Selvagem de forma vigorosa
sintetizou: “O nosso lapuz das Beiras e Alentejo – a grande massa destas tropas – é,
por natureza, por hábitos ancestrais, por desamor de si próprio, desleixado e
porcalhão. Todo o navio fede a um fartum gordurento e sórdido, misto de rancho
coagulado e pé descalço. E, com a falta de água doce para as lavagens frequentes,
os miseráveis uniformes de cotim cinzento ganham uma cor parda, de causar
engulhos aos menos susceptíveis […]”10.
À partida, portanto, colocava-se o problema do espírito militar, quer dos
9 Jaime CORTESÃO. “A literatura da Grande Guerra. I – Portugal e o estrangeiro”. In: A Guerra. Lisboa, ano 1.º, n.º 4, 9 Abril 1926, p. 24.10 Carlos SELVAGEM. Tropa d’África. Porto: Edição da “Renascença Portuguesa”, 1919, p. 24-25; na 4.ª Edição de 1925, a obra intitular-se-á Tropa d’África. (Jornal de campanha dum voluntário do Niassa. Noutro relato memorialístico – também com grande audiência na opinião pública da época – sobre a viagem imediatamente seguinte, que levou para Moçambique novos contingentes dessa 3.ª expedição militar, confirma-se o mesmo ambiente de degradação no interior do vapor: “[...] o pequeno corrimão de ferro frio, engordorado e salitroso, dá-me um contacto glacial; as paredes de ferro, pintadas a cinzento, exsudam uma camada orvalhenta que dá náuseas; os degraus de madeira estão torpemente empastados de gordura, de restos de rancho, que se derramou e de mascarras esverdeadas de vómitos. Reprimo a custo uma convulsão de estômago em contacto com este estendal ignominioso. Continuo a descer e vou pensando como haja organismos humanos capazes de resistir a esta hedionda atmosfera [...]. Uma agonia glacial estrangula-me a garganta. Estou no fundo da quadra, no fundo deste porão maldito que nitidamente faz lembrar a horrorosa casa do pêndulo de que fala o sombrio Edgar Poë [...]” – António de CÉRTIMA. Epopeia Maldita. O drama da guerra d’África: que foi visto, sofrido e meditado pelo combatente [...]. Lisboa: Edição do Autor [Portugal-Brasil Depositária], 1924, p. 29.
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soldados quer da capacidade dirigente das chefias em face dessa massa humana. É
precisamente na verificação positiva da sua resposta a nível dos comandos
intermédios (tenentes e capitães) que surge a evocação generalizada e o elogio da
liderança dos oficiais milicianos vindos das Universidades, “com alma de
condestáveis”, na opinião modelar de Augusto Casimiro11.
Há, contudo, a considerar também o enunciado de versões críticas face a
sectores da classe política e das chefias militares ou perante a estratégia de guerra
desenvolvida: “Portugal vivo, Portugal da Flandres, os soldados de África e da
França choram o abandono a que os votaram as sombras de Portugal […]. Os
calvários da França hão-de ser a redenção da nossa miséria […]”12; “as nossas elites
governativas, todas elas, mais ou menos, são incapazes dos grandes actos
redentores, enquanto o Povo, apesar de ignorante e desorientado, é ainda e
sempre a maior esperança […]”13; “Nada se organizou com método, com acerto,
como se pensa em fazer para as tropas de França. [...] a pobre tropa de África
[...]”14; “De Portugal nem um reforço [...]”, numa alusão à política do regime
presidencialista de Sidónio Pais15.
2.1. “Entre as brumas da memória”: a partida e a saudade
Momento de forte tensão física e psicológica, o embarque dos combatentes
no cais de Alcântara-Mar, em Lisboa, surge em várias narrativas como lugar
privilegiado de observação e de interpretação de comportamentos perante
realidades humanas e materiais que se tornariam fisicamente ausentes. Jaime
Cortesão divulga a seguinte imagem, captada no ambiente de despedida do
11 Capitão Augusto CASIMIRO. Nas Trincheiras da Flandres. Porto: Edição da “Renascença Portuguesa”, 1918, p. 93-98. 12 Capitão Augusto CASIMIRO. Nas Trincheiras da Flandres, p. 120.13 Jaime CORTESÃO. Memórias da Grande Guerra, p. 222.14 Carlos SELVAGEM. Tropa d’África, p. 20 e 373.15 Capitão Augusto CASIMIRO. Calvários da Flandres. Porto: Edição da “Renascença Portuguesa”, 1920, p. 78.
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contingente onde ia o seu cunhado e amigo íntimo Augusto Casimiro: “Há lágrimas,
abraços, olhos atados em êxtase, e uma alegria doida no rosto dos que vão [...]. Não
há um único rosto triste. Antes uma alegria generosa e bárbara, que brota da
profunda consciência da sua missão, radia das suas faces, enaltecendo-lhes as
rústicas figuras de cavões e zagais [...]”16.
Por certo que os discursos patrióticos das Sociedades de Instrução Militar
Preparatória, das Sociedades de Assistência Religiosa em Campanha (católicas e
protestantes), das Comissões de Madrinhas de Guerra ou da Cruzada Nacional das
Mulheres Portuguesas prepararam muitas consciências intervencionistas, mas
também é verdade que as consciências anti-intervencionistas não deixaram de
existir na sociedade portuguesa fortemente polarizada sobre a participação na
frente europeia da Primeira Guerra Mundial.
O choro do único soldado que Jaime Cortesão divisou na imensa e compacta
massa de combatentes, como contraponto a uma alegria colectiva (com excessos
que atribuía ao vinho), com certeza que não teria essa singularidade, pois o
sentimento (afecto, saudade, sobrevivência) é uma das dimensões da pessoa
humana. A estratégia descritiva visava promover uma argumentação de civilismo
republicano intervencionista, posição considerada essencial para defender o que
considerava ser a “terra sagrada da Pátria”. Na Cartilha do Povo, adquirida aos
milhares pelo Ministério da Guerra para distribuição propagandística entre os
soldados, Cortesão era bem explícito, quando na voz do personagem Manuel,
Soldado proclama: “Antes eu morra cem vezes na guerra do que os meus e a minha
Pátria fiquem para sempre enxovalhados e miseráveis! [...]”17.
A dor da partida não estava, obviamente, ausente, e as leituras triunfalistas,
muitas vezes hiperbolizadas pela retórica literária e política, devem ser relativizadas
no processo de construção histórica do passado. João Pina de Morais refere, na 16 Jaime CORTESÃO. Memórias da Grande Guerra, p. 37-38.17 [Jaime CORTESÃO]. Cartilha do Povo. 1.º Encontro. Portugal e a Guerra. Porto: Edição da “Renascença Portuguesa”, 1916, p. 28.
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despedida serrana dos futuros soldados, soluços a bater e gritos dolorosos 18; Carlos
Selvagem vê no dia de embarque um dia de lágrimas e balbúrdia 19; Eduardo Pimenta
comunica o embarque tumultuário: “Na loucura romântica de uma visão de glória
partiam para o país distante, onde os clamores da guerra são gritos de fúria
selvagem, tempestades violentas de crime [...]”20.
Augusto Casimiro regista, vibrantemente, a sua partida, exprimindo uma
mentalidade de fundo messiânico sobre o destino histórico português: “Os navios
abalam … Jerónimos, Torre de Belém, espectro da Aurora nascente … E a terra
passa, fica, os soluços mudos largam o voo … O coração dilata-se … Ah! – que doce
embalo! … Que nau nos leva? … É o mar! … É outra vez o mar! O mar … [...]”.
Cumpria-se assim a sua sistemática campanha, que exprimiu na palavra de ordem
“Mandem-nos partir!”21.
Devedor do programa cultural do Saudosismo do sector republicano do
Grupo “Renascença Portuguesa”, que se identificava com as reflexões sobre a
identidade nacional de Teixeira de Pascoaes22, João Pina de Morais percorre o seu
discurso com justificações para o estado de espírito nostálgico dos soldados, o qual,
no entanto, dispõe de um forte poder criador: “Que admira tanta Saudade [...]! Era
lusíada! [...] A saudade lusíada é o velo de oiro dos espaços, à procura das cinzas do
bem perdido, que o pecado de todos espalhou na Via Láctea, não sei onde [...]. A
18 Tenente Pina de MORAIS. Ao Parapeito. Porto: Edição da “Renascença Portuguesa”, 1919, p. 11.19 Carlos SELVAGEM. Tropa d’África, p. 11.20 Eduardo PIMENTA. A Ferro e Fogo. Na Grande Guerra (1917-1918). Porto: Edição da “Renascença Portuguesa”, 1919, p. 97.21 Capitão Augusto CASIMIRO. Nas Trincheiras da Flandres, p. 23, 30-31.22 O Saudosismo de Pascoaes era uma proposta de compreensão da “peculiaridade” da “alma lusíada”, a “Saudade”, mas também recobria uma dimensão interventiva na busca de um ideal de “Renascença”: “Deu-nos a revelação da Saudade o conhecimento da essência espiritual da nossa Raça, na sua íntima figura extática e nas suas exteriores e activas qualidades. Logicamente nos dará também o conhecimento do seu profundo sonho secular, cada vez mais despedido da originária névoa encobridora e mais alumiado nas suas formas definidas. Sabemos que a Saudade, ou a alma pátria, significa, em vida activa e sentimental, em génio popular, a eterna Renascença [...]. Se a ideia da Renascença, em Portugal, se tornou génio colectivo, deve competir ao povo português convertê-la em concreta realidade social ou nova Civilização [...]” – Teixeira de PASCOAES. Arte de Ser Português. 1.ª Edição, 1915; Edição definitiva, 1920. Lisboa: Assírio & Alvim, 1991, p. 107 e 113.
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sua saudade nasce nos corações, ergue-se nas Fragas, corta Oceanos, peleja nas
batalhas, voa nos céus e dorme na História [...]23.
Esta representação psicológica tem inerente, por conseguinte, uma dinâmica
de acção, buscando glória para um regresso triunfal, atitude partilhada por Jaime
Cortesão e Augusto Casimiro: é uma construção intelectual para um novo despertar
heróico republicano da consciência nacional portuguesa. Cortesão, em 1916, deu um
grito anunciador, por intermédio de João Portugal: “Levanta-me essa cabeça.
Chegou a hora [...]. Vai para onde a Pátria te chamar [...]”24 .
O problema é que, como observa Carlos Selvagem, os soldados combatentes
na sua grande maioria não conhecem, não sabem, não sentem o que seja a Pátria, a
não ser aquela que se refere ao seu lugar de nascimento, de trabalho e de vida: “A
palavra Portugal ainda decerto os emociona e enternece. A ideia de Pátria, porém
não lhes perturba as digestões nem o funcionamento regular do sistema
circulatório [...]”25.
2.2. “Pela Pátria lutar”: a vida e a morte nas trincheiras
Jaime Cortesão interpreta nas Memórias da Grande Guerra o espaço
geográfico envolvente de guerra que viveu – a Flandres francesa –, através de uma
meticulosa observação da relação entre a terra e as gentes, comunicando
configurações do solo, clima, plantações, tipo de habitação rural (a ferme),
23 Tenente Pina de MORAIS. O Soldado-Saudade na Grande Guerra. Porto: Edição da “Renascença Portuguesa”, 1921, pp. 15-16. A mesma linha de pensamento pode observar-se noutro depoimento: “Os rasgos de heroísmo, as feridas sangrentas, os mortos, tudo exalta, decuplica as almas, doira de púnico entusiasmo os combatentes [...]” – Capitão Augusto CASIMIRO. Calvários da Flandres, p. 47. Um não-combatente mas escritor com várias obras publicadas pela “Renascença Portuguesa” recria desta forma o ambiente da partida e da chegada: “[...] o embarque – filas de homens pálidos rasgando as massas torporosas dos que ficavam [...]; por fim o desembarque de todos aqueles soldados atordoados, cheios de saudades, mas firmes, crentes, como que amando, querendo já à Morte, que de alguma sorte iam buscar, procuravam a milhares de léguas! [...]” – Visconde de VILA-MOURA. Pão Vermelho. Sombras da Grande Guerra (Novela mensal). Porto: Edição da “Renascença Portuguesa”, 1923, p. 24.24 [Jaime CORTESÃO]. Cartilha do Povo. 1º Encontro. Portugal e a Guerra, p. 5.25 Carlos SELVAGEM. Tropa d’África, p. 28.
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características das cidades, psicologia dos homens, para, por fim, se deter na área
da frente de guerra e hierarquizar o perigo dentro de uma faixa – um grande
triângulo isósceles – na qual se desenvolve a vida diária do Corpo Expedicionário
Português. Será contudo nas trincheiras de Neuve-Chapelle – “a grande cova, onde
se aprende o ofício de morto” – que encontrará a imagem real do combatente
português: “Pálidos, magros, exaustos, os pulmões roídos dos gases, os pés
triturados das marchas, sem esperança nem apoio moral [...]”26.
O contacto com o ambiente ao redor das trincheiras propicia a Jaime
Cortesão uma leitura dramática e nauseabunda da relação entre a vida e a morte no
quotidiano da guerra, como está bem patente nesta descrição: “Os vivos têm de
viver em promiscuidade com os mortos, mais do que isso, com as mutilações dos
cadáveres. Ali, ao pé da trincheira, a meio duma dessas paredes dum poço de
explosão, emergem os dois ossos duma perna em farrapos de podridão suspensos e
uma bota ainda calçada [...]. Todo o chão exala carnagem, loucura, nevoeiros de
morte. Em certos pontos dir-se-ia que a terra ainda está ensopada de sangue negro
[...]”27.
A “miséria da trincha”, onde “se vive fora do tempo e do mundo” numa
“fraternidade do sangue e das almas”, adquire nas várias descrições um lugar
obviamente central. O quotidiano era pautado pela frequente ocorrência de chuvas,
com as inevitáveis inundações das trincheiras, trazendo a lama (o “homem-lama”) e
esboroando os taludes, ou pelo aparecimento de fortes nevoeiros e da gélida neve,
o que dificultava a capacidade de resposta militar daqueles que vigiam no parapeito:
“O parapeito de argila queimada, de sacos rotos e madeiras esfareladas, é o
pedestal duma infinidade de estátuas vivas e incompreensivelmente heróicas. Do
mar à fronteira aos Alpes faz-se uma formatura de heróis! [...]”28.
26 Jaime CORTESÃO. Memórias da Grande Guerra, p. 165.27 Jaime CORTESÃO. Memórias da Grande Guerra, p. 87-88.28 Tenente Pina de MORAIS. Ao Parapeito, p. 38.
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A vida nas labirínticas trincheiras não era fácil e dentro delas caminhava-se
sobre “passadeiras”, quando existiam, senão, na invernia, os pés e as pernas
enterram-se na lama e a sobrevivência física é posta em causa quando não chega
ajuda ou se acrescenta uma acção militar do inimigo. Erguem-se então “calvários”
que passam a povoar as “searas da morte”, onde “crucificadas, exangues,
agonizam almas lusíadas”, como de forma expressiva nos comunicou Augusto
Casimiro29.
Segundo a narrativa do general Manuel Gomes da Costa, genericamente, os
trabalhos nas trincheiras começavam pelas vinte e uma horas, com diferentes
grupos a executar tarefas de reparação e aperfeiçoamento dos dispositivos de
combate ou de assistência e manutenção sanitária e reposição de abastecimentos.
Há então uma trégua tácita, mas vigilante, entre os beligerantes, pois uma
metralhadora “facilmente dispersaria essas formigas trabalhadoras [...]”. À uma
hora e meia da manhã, os trabalhos são suspensos e dormita-se. Ao amanhecer,
tudo “A postos!”, pois é o momento provável dos ataques, atingindo o ponto alto
às nove horas, com os habituais bombardeamentos. Depois, cava-se, melhorando e
aumentando as trincheiras. Ao meio-dia, janta-se, e entre as catorze e as dezassete
horas volta um sobressaltado repouso, sempre à espera de um novo “estoiro de
shrapnell”, com feridos e mortos. Das dezoito horas ao crepúsculo, ocorrem
habitualmente os ataques aéreos30.
São marcos de um horário da guerra, mas a guerra alimenta-se da surpresa e
29 Capitão Augusto CASIMIRO. Calvários da Flandres, p. 67, 87-94.30 General Gomes da COSTA. O Corpo de Exército Português na Grande Guerra. A Batalha do Lys, 9 de Abril de 1918. Porto: Edição da “Renascença Portuguesa”, 1920, pp. 84-112. Veja-se também esta descrição após o combatente “mergulhar nas trincheiras”: “Aí a música era outra e o perigo sempre diante dos olhos. Havia os atiradores especiais, para liquidar o triste que se descuidava erguendo a cabeça um palmo acima do parapeito. O canto da metralhadora, o ronco de morteiro, o berro ensurdecedor da peça de artilharia, a luz ofuscante do very-light, a traiçoeira granada de gás, o raid à terra de ninguém e a rede de arame farpado e as minas, o assobio arrepiante da bomba de avião. E muitas outras armadilhas para denunciar o inimigo, para o deter, para o matar. Quando se saía daquele inferno labiríntico experimentava-se uma sensação de alívio, de segurança, de contentamento e como que de ressurreição [...]” – João Sarmento PIMENTEL, Memórias do Capitão [1962]. 2.ª Edição. Porto: Editorial Inova, 1974, p. 191.
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a “Morte domina misteriosa e implacável”, na observação de Eduardo Pimenta31.
Será uma “guerra maldita”, afirma Alexandre Malheiro, feito prisioneiro na batalha
de La Lys e libertado após a assinatura do Armistício32. Comparando com a Flandres,
em Moçambique, à torreira do sol africano junta-se o “fundo lodacento” das
“absurdas trincheiras” de Palma, os homens pior preparados e os abastecimentos
mais escassos, levando os combatentes portugueses a um desigual
circunstancialismo mas ao mesmo trágico destino: “Filhos ambos das mesmas
serras [...], o sangue que ambos vertem, com tão céptico fatalismo, é igualmente
generoso e simples [...]”33.
Considerações finais
O universo narrativo, que foi sujeito a análise, exprime-se por meio de
discursos de diversa natureza – diários, memórias, crónicas ou ensaios. Manifesta-
se, no entanto, em quase todos a característica comum de depoimento vivencial
republicano intervencionista, aderindo genericamente às posições dos governos
republicanos de então, por vezes muito condicionado pela leitura ideológica pessoal
sobre o destino português.
Também podemos encontrar nesses textos um rico repositório de reflexões
críticas sobre a participação portuguesa na Primeira Guerra Mundial,
31 Eduardo PIMENTA. A Ferro e Fogo. Na Grande Guerra (1917-1918), p. 79.32 Atente-se no seu comentário: “Ó guerra maldita! Se há trezentos anos o Padre António Vieira te classificava já de monstro, que nome poderá existir hoje no nosso vocabulário que bem possa abranger todas as crueldades e infâmias que à tua sombra vem agora praticando a humanidade? [...]” – Tenente-Coronel Alexandre MALHEIRO. Da Flandres ao Hanover e Mecklenburg. (Notas dum prisioneiro). Porto: Edição da “Renascença Portuguesa”, 1919, p. 85.33 Carlos SELVAGEM. Tropa d’África, pp. 142, 328, 368. Outro combatente republicano, que será fundador da revista cultural e política Seara Nova em 1921, com experiência de guerra em Angola e na Flandres, deixou-nos o seguinte registo comparativo: “Logo fui aliciado por Gomes da Costa para fazer parte do seu Quartel-General. Aceitei todo pimpão, não suspeitando que ia ‘passar as passas do Algarve’ encafuado naquelas trincheiras do front, um frio de morrer e a imobilidade enervante da guerra de cerco, capaz de tirar o juízo e a coragem a qualquer veterano, e muito mais a nós, os combatentes de África, habituados a um clima tropical e à guerra de movimento [...]” – João Sarmento PIMENTEL. Memórias do Capitão, p. 187.
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fundamentalmente desenvolvida por antigos combatentes na Flandres francesa,
com a excepção de um antigo combatente em Moçambique. A participação
portuguesa no conflito mundial acabou por ser um importante factor para a
legitimação nacional da República em Portugal, sagrando com sangue a Bandeira
portuguesa.
Bibliografia
Fontes:
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Guerra. Porto: Edição da “Renascença Portuguesa”, 1916.
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CORTESÃO, Jaime. Memórias da Grande Guerra (1916-1919). Porto:
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“Renascença Portuguesa”, 1920.
MALHEIRO, Tenente-Coronel Alexandre. Da Flandres ao Hanover e
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Editorial Inova, 1974 (1.ª Edição, 1962).
ROCHA, Alfredo Barata da. Névoa da Flandres. (Versos). Porto: Edição
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SELVAGEM, Carlos. Tropa d’África. Porto: Edição da “Renascença
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(Novela mensal). Porto: Edição da “Renascença Portuguesa”, 1923.
Estudos:
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Grande Guerra. 1914-1918. Matosinhos: Quid Novi Edições e
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Nuno Álvares Pereira e as Origens do Estado Novo (1918-1938). Lisboa:
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Coimbra: Livraria Almedina, 1990.
VEYNE, Paul. Como se escreve a História. Lisboa: Edições 70, 1983.
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A TEORIA DA JUSTIÇA EM JOHN RAWLS
Antonio Adelgir de Oliveira AlmeidaBacharel em Direito, Graduando em Filosofia/UFJF Membro
do Centro de Pesquisas “Paulino Soares de Sousa” [email protected]
“A Justiça é a primeira virtude das instituições sociais, como a verdade o é dos
sistemas de pensamento.” 1
(Jonh Rawls)
“Construir uma teoria da Justiça capaz de guiar as práticas e as escolhas. ” 2
(Catherine Audard e outros)
1 JUNIOR, Amandino Teixeira Nunes. In Revista de Informação Legislativa (2002: 53).2 AUDARD, Catherine e outros .”Avant –propos de l ´editeur”. In MAIA, Antonio Cavalcanti. Jürgen Habermas: Filósofo do Direito (2008: 106).
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O presente trabalho visa instigar o debate acerca do papel filosófico
desenvolvido em escritos de John Rawls para a filosofia contemporânea,
notadamente na anglo-saxã. Nessa perspectiva, o trabalho de Rawls contribui
sobremaneira na construção de uma verdadeira Teoria. Será a partir do pensamento
aristotélico que emergirão seus apontamentos na busca de um ideal de justiça, não
só na esfera distributiva mas também na análise de uma justiça coercitiva. Este
papel foi inicialmente explicitado por Aristóteles, que afirmava serem as virtudes
éticas inseridas no contexto de toda sociedade. A relevância e a atualidade desse
entendimento aristotélico fizeram com que John Rawls, em sua “Teoria da Justiça”,
retomasse os argumentos de Aristóteles, procurando mostrar que o Estado é que
deve dar condições para que seus cidadãos procurem viver de uma maneira feliz
para a realização do bem comum.
Por outro lado, Rawls pontua no sentido de haver uma certa contraposição
de dois planos: o primeiro pode ser caracterizado como o da interioridade moral,
definido pelo mestre Aristóteles como o das virtudes dianorréticas, isto é, a virtude
ética de cada indivíduo pautada na convicção; num segundo momento, vai aparecer
o plano das convenções sociais, ou seja, aquele cujo resultado serão as virtudes
éticas e que, vinculado ao direito da polis, garantiriam o convívio social.
Nessa perspectiva, será condição necessária para haver justiça a prática de
uma moral no seio de toda sociedade. Tal posicionamento nos mostra que a ideia de
justiça irá se estabelecer a partir dessa construção. Então para que haja uma
verdadeira justiça, será preciso que se cultive entre os cidadãos uma ética
fundamental na busca da equidade. Partindo dessa premissa de ideia de justiça,
alhures desenvolvida por Aristóteles, é importante destacar o que nos apresenta
em seus escritos acerca dos procedimentos que cada indivíduo deve ter para que a
sociedade não perca seus objetivos.
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Procuraremos, assim, fazer um apanhado desse pensamento propugnado,
buscando a inserção e a possibilidade de implementação dessas ideias
desenvolvidas por Rawls na sociedade brasileira.
Rawls procura nos mostrar a importância do Estado na sociedade
contemporânea, pois é a emanação do Estado que vai garantir nossos direitos, ou
seja, se a pessoa for injustiçada, ela vai buscar o Estado para tentar obter a
satisfação de suas agruras, para satisfação de seus direitos. O Estado será o
elemento central para o ressarcimento de qualquer dano. Nessa perspectiva, será
mais importante que a própria convenção originária de um debate político muitas
vezes carente de virtudes éticas, face haver interesses escusos em jogo.
Ressalte-se a importância desse mínimo ético a ser exigido de cada
cidadão para que a sociedade não desabe. Entre os estudiosos que se dedicaram à
reflexão e, como expoentes do tema ora apresentado, pode-se destacar a figura de
HABERMAS (1997:19), que, ao discorrer em sua obra sobre a Consciência Moral, vai
afirmar que para chegarmos a uma correta distribuição de justiça na sociedade,
devemos buscar no direito essas razões. Nessa linha de raciocínio, procura pontuar
na sua teoria do “agir comunicativo” uma mudança paradigmática da razão prática
baseada no individuo, ampliando-a para uma razão comunicativa, com a
participação de todos os cidadãos pertencentes a uma sociedade. Com efeito o
mestre da escola de Frankfurt nos transmite o seguinte posicionamento in verbis:
[...] Por esta razão, eu resolvi encetar um caminho diferente, lançando mão da teoria do agir comunicativo: substituo a razão prática pela comunicativa. E tal mudança vai muito além de uma simples troca de etiqueta.3
Na esteira do pensamento habermasiano ao discutir a origem dos direitos
humanos e da soberania popular, pois ambas se pressupõem mutuamente, MAIA
3 HABERMAS, Jürgen. In Direito e Democracia – Entre Facticidade e Validade. Vol.l . (1997: 19).
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(2008: 104-105) pontua no sentido de que os filósofos liberais, entre eles Jonh
Rawls, procuram explicitar em seus discursos a prevalência da autonomia privada
em relação à autonomia coletiva, buscando o fim primordial de uma sociedade bem
ordenada, primando pelas questões de ordem moral, nos seguintes termos.
[...] Os liberais se sentem herdeiros de Locke, de Kant e de Stuart Mill. Eles compartilham o mesmo cuidado em relação à liberdade de consciência, o mesmo respeito pelos direitos do indivíduo, e uma desconfiança vis-a-vis à ameaça que pode constituir um estado paternalista. Toda essa discussão de Habermas acerca dos direitos humanos e das problemáticas a eles relativos só pode ser entendida tendo como pano de fundo – como já referido na introdução deste capítulo – a reabilitação da filosofia prática operada deste o início dos anos 70, com a obra crucial do pensamento filosófico-político do século XX: a Teoria da Justiça, de Jonh Rawls. Ora, tanto a discussão sobre direitos humanos, como as cogitações acerca dos modelos possíveis concernentes ao desenvolvimento da democracia no hemisfério norte desdobraram-se, tendo como epicentro a teoria das instituições justas desenvolvida pelo professor de Harvard.2
Por outro lado, MAIA (2008:40) salienta que é a partir das ponderações de
Rawls, explicitadas na sua Teoria da Justiça , que vai ocorrer uma mudança
substancial nas discussões filosóficas. Habermas reafirma essas proposições nos
seguintes termos:
(...) marcou uma cesura na história recente da filosofia política. Graças a sua obra, as questões morais, por longo tempo deixadas de lado, reen-contram seu estatuto de estudos científicos sérios.3 (grifo nosso).
2 Maia, Antonio Cavalcanti. In Jürgen Habermas: Filósofo do Direito (2008:104-106).3 Maia, Antonio Cavalcanti. In Jürgen Habermas: Filósofo do Direito (2008:40)
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Reforçando a tese de cunho individualista desenvolvida por Rawls em sua
Teoria da Justiça, e aceita pelos indivíduos que compõem a esfera social, com um
mínimo de componente ético, que é uma ideia clássica de Aristóteles, Fabriz
(2003:117-118) corrobora o seguinte:
John Rawls apresenta uma teoria da Justiça, que, em seus aspectos gerais, defende uma ideia de justiça baseada no indivíduo, encontrando-se esse acima dos interesses sociais. Rawls coloca como papel preponderante da justiça a virtude das instituições sociais.[...]
Rawls sabe dos problemas que surgem em torno de um consenso sobre o que deve ser compreendido como mais ou menos justo.[...] No que se refere ao objeto da Justiça, indica Rawls como sendo a conformação adequada da estrutura básica da sociedade.4
(grifo nosso).
Para enriquecimento do debate e, sobretudo, para mostrar as dificuldades
que o direito constitucional enfrenta na pós-modernidade no que tange
principalmente às diferenças – e não para os consensos no âmbito da justiça,
vivenciados pelo excesso de demandas constitucionais –, é importante destacar o
que nos diz CANOTILHO (2003:1358-1360) em sua obra fundamental, onde vai
mostrar uma certa preocupação com os reflexos que poderiam ocasionar a
moderna Teoria da Justiça arquitetada por John Rawls, in verbis:
A teoria do liberalismo político de John Rawls procura recortar as instituições básicas de uma “democracia constitucional” ou de um “regime democrático’. As concepções abstratas utilizadas por este autor – “justiça com equidade” , “sociedade bem ordenada” , “estrutura básica”, “consenso de sobreposição”, “razão publica” – servem para aprofundar o ideal de democracia constitucional. A democracia constitucional será, no fundo, aquela que dá resposta ao problema central do liberalismo político: “como é que é possível a existência de uma sociedade justa e estável de cidadãos livres e iguais que se mantêm profundamente divididos por doutrinas
4 FABRIZ, Daury Cesar. In Bioética e Direitos Fundamentais (2003:117-118).
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religiosas, filosóficas e morais razoáveis”. Muitas das categorias a que Rawls faz apelo – legitimidade, consenso constitucional, direitos e liberdades básicos, razão pública, elementos constitucionais essenciais – há muito que fazem parte do arsenal clássico da teoria da constituição. A própria ideia de razão pública entendida como “razão dos cidadãos iguais que, como corpo colectivo exercem um poder político e coercivo decisivo uns sobre os outros elaborando leis ou emendando a sua constituição”, retoma, sob vestes construtivistas, a discussão teorético-constitucional do poder constituinte. De um modo ainda mais claro, a ideia de que “num regime constitucional com fiscalização da constitucionalidade das leis (judicial review), a razão pública é a razão do seu Supremo Tribunal”, Rawls retoma o problema central do constitucionalismo moderno – o direito de exame dos actos legislativos pelo poder judicial – e em termos que, como o próprio reconhece, não tem nada de novo. Finalmente, a análise da “estrutura básica” à qual pertence a “constituição política” bem como a discussão das “liberdades básicas” retomam em termos originais e inovadores a problemática clássica da ordenação constitucional e das garantias de direitos desde sempre associada à teoria da constituição.5
Prosseguindo em seu raciocínio, o constitucionalista português introduz o
pensamento de HABERMAS (1360-1361), afirmando que a teoria do filósofo alemão
– ao deparar com questões envolvendo direito, democracia e estado de direito –
terá como resultado uma teoria da constituição, ao ponderar que:
Ele próprio confessa que pretende clarificar os paradigmas do direito e da constituição e reabilitar os pressupostos normativos inerentes às práticas jurídicas existentes. Reagindo contra o próprio cepticismo dos juristas. Habermas reabilita o medium normativo do direito – sobretudo do direito constitucional – para percorrer os problemas clássicos (confessa também que os seus conceitos pressupõem as categorias tradicionais da constituição e do constitucionalismo) e fornecer uma compreensão do estado de direito democrático e da teoria da democracia, tentando fugir quer ao autismo da validade normativa quer à pura facticidade típica da objectivação sociológica.6
5 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. In Direito Constitucional e Teoria da Constituição (2003:1358-1360).6 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. In Direito Constitucional e Teoria da Constituição (2003:1360-
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Já o professor DALLARI (2003:277) vai na direção contrária daquela
apontada recentemente por MAIA e CANOTILHO, ensejando que essa concepção do
liberalismo faz com que o Estado deixe de proteger os menos favorecidos. Ademais,
pontua no sentido de uma situação de privilégio para os economicamente mais
fortes. Assim, discorre:
[...] Ao lado disso, a concepção individualista da liberdade , impedindo o Estado de proteger os menos afortunados, foi a causa de uma crescente injustiça social, pois, concedendo-se a todos o direito de ser livre, não se assegurava a ninguém o poder de ser livre.7
Ampliando a temática acerca da justiça e tendo o direito como elemento
propulsor nas sociedades modernas, é prudente introduzir a ideia apresentada pelo
professor JUNIOR (2002:56), verbis:
[...] Vê-se, pois, que os princípios de justiça social têm um nítido caráter “substancial”, e não meramente formal, na teoria de RAWLS. Logo no início de sua obra, ele é bem claro quando sustenta que o que o preocupa é a justiça verificada na atribuição de direitos e liberdades fundamentais às pessoas, assim como a existência real da igualdade de oportunidades econômicas e de condições sociais nos diversos segmentos da sociedade.8
Esses princípios apontados serão para o filósofo considerados como a
“estrutura básica da sociedade”, cujo objetivo central será uma distribuição mais ou
menos equânime de direitos e deveres para os cidadãos envolvidos no contexto
social. Assim, Rawls (p. XIII – XIX) apresenta um conceito de “justiça como
equidade” através do seguinte argumento:
1361).7 DALLARI, Dalmo de Abreu. In Elementos da Teoria Geral do Estado (2003:277).8 JUNIOR, Amandino Teixeira Nunes in Revista de Informação Legislativa (2002:59-60) .
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Minha esperança é a de que a justiça como equidade pareça razoável e útil, mesmo que não seja totalmente convincente, para uma grande gama de orientações políticas ponderadas, e portanto expresse uma parte essencial do núcleo comum da tradição democrática.9
Mesmo sendo sua teoria bastante conceitual, pois visa formular conceitos
muito abrangentes acerca da justiça, será prudente expor formulações encetadas
por outros estudiosos do tema. Nessa perspectiva, uma nova visão vai ser inserida
por ABREU (2006:150), nos seguintes termos:
Ao contrário, vamos aqui explorar RAWLS a partir de uma dupla hipótese de pesquisa: (a) o objetivo de uma teoria é o de construir critérios a partir dos quais seja possível discutir o justo; e (b) a construção desses critérios pode ser percebida como o exercício de uma filosofia crítica e, portanto, não dogmática. 10
A partir dessa inferência, o autor procura mostrar que Rawls não se
restringe a uma verdade científica, mas vai mostrar quais seriam os fundamentos
para que se construa uma sociedade justa baseada em princípios morais. Por outro
lado, quer mostrar os elementos normativos necessários para o bem justo de uma
organização social.
Entretanto, é importante salientar que esse debate propugnado por
RAWLS não teve terreno fértil em nosso país, apesar da importância do tema, pois a
ausência do Estado ocorre com uma certa frequência em diversas demandas do dia-
a-dia. Em decorrência dessa situação, a ausência da justiça estatal, vai levar muitas
vezes a uma ação direta do cidadão na busca da “justiça”. Essa justiça com as
“próprias mãos” não teria lugar numa sociedade em que se respeitassem os direitos
e deveres do cidadão como elementos da práxis de uma moral social.
9 JUNIOR, Amandino Teixeira Nunes. In Revista de Informação Legislativa (2002:60).10 ABREU,Luiz Eduardo de Lacerda. In Revista de Informação Legislativa (2006:150).
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O problema a ser enfrentado por toda a sociedade, visando à justiça como
principio ético, pontuado alhures por Aristóteles – incorporado na
contemporaneidade por Rawls – restringe-se, no caso brasileiro, a fazer com que
os atores políticos não corrompam a função social do Estado. Vale dizer que os
políticos não invertam o bem público com o privado. O Estado deve ser
administrado em benefício de toda a sociedade e, não em benefício desse ou
daquele grupo político.
Nesse diapasão, faz-se necessário nos dias de hoje que se recoloque a
questão em debate, tendo em vista que a função social do Estado é a de garantir a
justiça para todos os cidadãos. Na atualidade, o problema é que devemos garantir
nossos direitos, mas primeiro deveremos saber quais são esses direitos.
O Estado como bem comum, tão explicitado por Aristóteles nas suas
prelações, vai de encontro com a tese de “políticos” não comprometidos com a
sociedade brasileira, pois ao gerir o público como se privado fosse, acabam
comprometendo a essência comunitária desenvolvida por Aristóteles. Então, o que
Rawls procura fomentar é um olhar crítico do indivíduo sobre os procedimentos
adotados por políticos no contexto da política.
No caso brasileiro, é urgente a reflexão sobre essa teoria , pois será Rawls –
a partir de Aristóteles – quem procurará mostrar o caminho a ser seguido nas
sociedades modernas, visando àquelas virtudes éticas emanadas de todas as
comunidades sociais. Todavia, será na busca de uma correta administração, visando
o bem comum de toda a sociedade, que atingiremos a verdadeira justiça. A
participação do Estado na construção de uma teoria moral desembocará num
sistema justo e eficaz de justiça.
Por outro lado, vozes se levantam no sentido de indicar uma certa
dificuldade na implementação dessa teoria, por ser a sociedade brasileira muito
diferente daquela onde o filósofo desenvolveu seus escritos, ou seja, a sociedade
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Ano I, Nº 03, Juiz de Fora, dezembro/2010 - março/2011
norte-americana. Nesta linha de raciocínio, importante prescrever o entendimento
do professor ABREU (2006:149-150):
[...]qual o sentido que a justiça como equidade pode ter para nós? Minha hipótese inicial é que estamos diante de duas tradições de pensamento político distintas mesmo considerando que a tradição brasileira não formulou conscientemente os seus princípios e principais consequências num sistema do tipo que RAWLS propõe. Aliás – e me adianto –, uma das razões pelas quais RAWLS parece ser interessante é justamente porque ele difere de maneira bastante acentuada de nossas concepções políticas em aspectos centrais. Em outras palavras, é porque somos diferentes que temos tanto o que conversar. 11
No debate que ora apresentamos, é salutar o entendimento do jusfilósofo
REALE (2004:376), que embora considerando os méritos da teoria neokantiana
desenvolvida por RAWLS, coloca-se numa posição desfavorável ao tema nos
seguintes termos:
Eis, por conseguinte, como e porque a justiça deve ser, complementarmente, subjetiva e objetiva, envolvendo em sua dialeticidade o homem e a ordem justa que ele instaura, porque esta ordem não é senão uma projeção constante da pessoa humana, valor-fonte de todos os valores através do tempo.
É a razão pela qual entendemos insuficiente, não obstante os seus méritos, a compreensão neocontratualista de base kantiana que nos oferece J. Rawls, com paradigmas que seriam necessários à legitimidade da experiência jurídica, como, por exemplo, a imparcial, potencial e proporcional correlação que deve haver entre os direitos de um e de outros. São princípios referenciais úteis à focalização do tema, mas que nos deixam no vestíbulo da ordem justa.
(grifo nosso).
Podemos concluir que o tema apresentado é de grande importância,
devendo ser estudado e debatido entre a opinião pública brasileira, pois a
11 ABREU, Luiz Eduardo de Lacerda. In Revista de Informação Legislativa (2006:149-150).
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Ano I, Nº 03, Juiz de Fora, dezembro/2010 - março/2011
verdadeira justiça deve ser construída no seio de toda a sociedade através de
virtudes éticas. Será a partir desse debate que garantiremos a pacificação social.
Todavia, somente se vai chegar a algum lugar, a partir da extinção da discrepância
que é a inversão do público como se privado fosse. Começa a florescer em nossas
instituições algo eficaz no combate as discrepâncias políticas. Estamos vendo que
recentes decisões incorporadas no âmbito do judiciário brasileiro através do
Supremo Tribunal Federal, no sentido de extirpar a triste figura do nepotismo
enraizado, há algumas décadas, no sistema político e também no judiciário, onde
magistrados inescrupulosos gerenciavam seus gabinetes como se fossem uma
extensão de sua família.
BIBLIOGRAFIA:
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da
Constituição. 7. ed. Coimbra - Portugal: Livraria Almedina, 2003.
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 24
ed. São Paulo: Saraiva, 2003.
FABRIZ, Daury Cesar. Bioética e Direitos Fundamentais. Belo
Horizonte: Mandamentos, 2003.
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre facticidade e
validade. Rio de Janeiro :Tempo Brasileiro, 1997.
MAIA, Antonio Cavalcanti. Jürgen Habermas: Filósofo do Direito. Rio
de Janeiro: Renovar, 2008.
REALE, Miguel. Lições Prelimanares de Direito. 27 ed. - São Paulo:
Saraiva, 2004.
Revista de Informação Legislativa. Brasília, a.39, n.156, out./dez. 2002.
Revista de Informação Legislativa. Brasília. a.43, n. 172, out./dez.
2006.
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Ano I, Nº 03, Juiz de Fora, dezembro/2010 - março/2011
DIOGO ANTONIO FEIJÓ E A EMANCIPAÇÃO INTELECTUAL DO BRASIL COLONIAL
Bruno Maciel PereiraBolsista de Iniciação Científica/UFJF.
Aluno do curso de História/UFJF.Membro do Núcleo de Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos/ UFJF
I- QUESTÕES METODOLÓGICAS
Grande parte das obras de Introdução aos Estudos Históricos não tratam da
problemática da História das Idéias. Este panorama se justifica por conta deste
campo da história estar associado de forma intrínseca e necessária à filosofia. É
necessário, portanto, que o historiador possua alguma afinidade com a disciplina
em questão, o que, infelizmente, não ocorre na maioria dos casos, culminando em
uma apatia para com o estudo de nossa orientação filosófica.
Devemos, no entanto, nos lembrar que o estudo de História das Idéias não
implica somente no estudo dos sistemas filosóficos, o que, aliás, é objeto de
perquirição da História da Filosofia. Em outras palavras, a finalidade da História das
Idéias não é especular sobre sistemas em um plano ideal, abstrato, sendo sim sua
reconciliação com o plano temporal e espacial. Em outras palavras, a História das
Idéias tem como diferencial o fato de estar sempre caminhando a esteira da
história, sendo importantes apenas as idéias que de alguma forma contribuíram de
modo efetivo ao nosso desenvolvimento histórico. É importante ao historiador das
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Ano I, Nº 03, Juiz de Fora, dezembro/2010 - março/2011
idéias entender os diferentes nexos de causalidade que levaram o aparecimento de
determinado sistema filosófico em nosso país1. Sendo seus resultados deveras
importantes enquanto instrumento desvelador das fontes ideológicas que
compõem a História do Brasil.
A Filosofia no Brasil, conforme nos fala (ROMERO 1878), trata de uma
sucessão de influências estrangeiras, sobretudo européias, importadas para atender
uma determinada finalidade ideológica. Todavia, também devemos levar em
consideração as idéias assistemáticas, ou seja, aquelas assimiladas de forma
empírica pelo povo. Como é o caso da idéia de cristianismo, arraigada fortemente
ao nosso senso comum2. Usando a terminologia da fenomenologia, não podemos
ignorar as experiências do mundo do viver comum (lebenswelt). Policiando-nos,
todavia, para não recair nossas pesquisas em uma sociologia do conhecimento3.
Todavia, o estudo deste saber espontâneo está além dos objetivos deste presente
estudo, restrito apenas à investigação das idéias que nos chegam de alhures.
A supervalorização do que vem do exterior se explica pelo nosso
complexo de inferioridade, fenômeno que ainda hoje se mostra assente em nossa
cultura, além de nossa constante preocupação em captar as últimas descobertas do
pensamento contemporâneo. Esta postura provocou em nosso país um efeito
bastante peculiar. Vivemos uma descontinuidade em nosso desenvolvimento
mental, ou em outras palavras, as diferentes correntes filosóficas que emergem em
nosso país não são originarias de uma filiação comum, estando nosso pensamento
subsumido aos modismos que insurgem, de tempos em tempos, na história do
pensamento universal4. A não relação genética ou lógica entre as diferentes
correntes filosóficas que se desenvolveram em nosso país torna o puro estudo da
1 Cf. TOBIAS, J. A. História das Idéias no Brasil, EPU, São Paulo, 1987. p. 7- 12.2 Cf. TOBIAS, J. A. História das Idéias no Brasil, EPU, São Paulo, 1987. p. 7- 12.3 Cf. REALE, M. Filosofia em São Paulo. 2ª Ed ( restaurada e revisada). Grijalbo, São Paulo, 1976. p. 9.4 Cf. REALE, M. Filosofia em São Paulo. 2ª Ed ( restaurada e revisada). Grijalbo, São Paulo, 1976. p 7- 13
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História da Filosofia no Brasil algo essencialmente enciclopédico.
Eis então a necessidade do estudo da História das Idéias no Brasil,
pois este é o campo do conhecimento que analisa as condições histórico-culturais
que condicionaram a recepção destas doutrinas alienígenas, assim como sua
repercussão.
Acreditamos que as doutrinas filosóficas transplantadas ao nosso
país assumiram funções distintas das existentes em seu ambiente cultural de
origem, sofrendo alterações ou até mesmo deformações no horizonte de nossa
cultura. Deste modo, a peculiaridade de nossas idéias reside sim na escatologia que
se esconde por detrás de sua recepção, ou seja, nos motivos que levaram a
apropriação de determinada doutrina estrangeira em nosso país. A História das
Idéias é, portanto, a ferramenta que nos permite identificar a que fins as correntes
do pensamento estrangeiras se desenvolveram em nosso país, além de conferir
unidade aos diferentes e extrínsecos sistemas filosóficos desenvolvidos no Brasil.
II- CONTEXTO HISTÓRICO
Em 1555, D. João III entrega o controle do sistema de ensino português à
ordem dos jesuítas. Os inacianos nos duzentos anos ulteriores traçaram os rumos
tomados pela cultura portuguesa, imperando de forma absoluta5. O programa
educacional jesuíta tinha como objetivo principal conter os avanços da Reforma, o
que culminou em uma drástica ruptura entre a tradição humanista renascentista
portuguesa, adormecidas pelos princípios da anacrônica Filosofia Escolástica. Tal
feito afasta Portugal das verdadeiras diretrizes de sua história6. Esta cisão com a
tradição portuguesa repercute, conseqüentemente, no sistema educacional
colonial, que também ficara sob a responsabilidade dos inacianos.
5 Cf. COSTA, J. C. Contribuição à História das Idéias no Brasil, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1967. p. 32.6 Cf. COSTA, J. C. Contribuição à História das Idéias no Brasil, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1967. p 23.
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A Companhia de Jesus imperou absoluta na península ibérica até a chegada
da congregação oratoriana na primeira metade do século XVIII, apoiados por D.
João V. Instalando em Portugal suas próprias escolas, os oratorianos substituem os
já obsoletos livros empregados pelos jesuítas por obras mais recentes. Sendo que já
a partir de 1730 começam a surgir as críticas à lógica Escolástica. .
Em 1746 a obra o “Verdadeiro Método de Estudar”, de autoria do padre
oratoriano Luis Antonio Verney, ganha grande repercussão em Portugal7. Nesta
obra, Verney crítica duramente o sistema pedagógico jesuíta fazendo defesa da
filosofia cartesiana e do dito empirismo mitigado de Bacon e Hume.
Em 1759, durante o governo de José I, o Ministro Pombal, inspirado nos
escritos de Verney, dá início as suas reformas educacionais que tinham por objetivo
substituir o modelo pedagógico jesuíta que, segundo ele, era a grande causa da
estagnação mental portuguesa. Em outras palavras, Pombal, com suas reformas,
visava adequar Portugal ao espírito moderno. Contudo suas idéias estavam ainda
muito longe das que agitavam a Europa no período. Se por um lado Pombal
introduzia a filosofia cartesiana e o empirismo inglês em seu modelo educacional,
por outro censurava as obras de Spinosa, Hobbes, Voltaire, Diderot, entre outros.
É certo que as reformas pombalinas culminaram em certos avanços no
sistema educacional português, entretanto, no que tange a manutenção das
políticas coloniais suas reformas foram desastrosas.
“Este ministro” diz Antonio Ribeiro Sanchez, “quis um impossível político; quis civilizar a nação e ao mesmo tempo fazê-la escrava: quis espalhar a luz das ciências filosóficas e o mesmo tempo elevar o poder real ao despotismo.8”
7 Cf. COSTA, J. C. Contribuição à História das Idéias no Brasil, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1967. p. 47. 8 Apud. BRAGA, T, História da Universidade de Coimbra. Vol III, p. 569. COSTA, J. C. Contribuição à História das Idéias no Brasil, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1967. p 57.
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Como nos diz Cruz e Costa, o grande paradoxo das reformas pombalinas
reside em seu apelo à modernização e a ilustração associado, ao mesmo tempo, ao
ideal de querer “conservar a nação um viveiro de eunucos intelectuais9.”
Embora posteriormente, no reinado de Maria I, tenha havido uma
retaliação ante as reformas pombalinas, já não havia mais a possibilidade de retorno
ao modelo educacional jesuíta. Os rebentos do programa de Pombal se
encarregaram a não deixar que suas conquistas caíssem por terra. Sendo este novo
período marcado por uma maior lucidez intelectual e pela simpatia por novas
formas do pensar. É dentro deste contexto histórico que se insere a obra de Diogo
Antônio Feijó.
III- DIOGO ANTONIO FEIJÓ E OS PRIMÓRDIOS DO KANTISMO NO BRASIL
Em 1912, Eugênio Egas publicou a obra “Diogo Antonio Feijó”. Este livro,
composto por dois volumes, consiste, além dos estudos de Egas, de alguns
compêndios cuja autoria é atribuída ao próprio Regente do Império. Dentre estes
escritos, dois em especial merecem nossa atenção, tendo em vista que se tratam
dos mais antigos estudos conhecidos, produzido no Brasil, que adotam,
explicitamente, princípios preconizados pela doutrina de Kant. Este fato passara
despercebido até 1949, ano em que Miguel Reale trás novamente a tona estes
escritos esquecidos pelos anais da história.
Intrigado com a “redescoberta” de grandiosa importância do campo da
História das Idéias no Brasil, Miguel Reale tratou logo de se certificar quanto à
autenticidade dos documentos. Por conseguinte, ele verificou que Octávio
Tarquínio de Sousa, eminente biógrafo de Feijó, tinha conhecimento de tais escritos.
Usando as palavras do próprio historiador, “a inconfundível ortografia em que
9 Cf. COSTA, J. C. Contribuição à História das Idéias no Brasil, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1967. p. 56.
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estão ambos escritos não merece deixar duvidas quanto a sua autoria 10”. A obra
“Necrologia do Senador Diogo Antonio Feijó”, publicada por Mello de Morais em
1861 também faz uma menção a escritos que converge com a descrição da
publicação do inicio do século passado, “um curso de filosofia racional e moral
também por um compêndio seu, extraído de autores notáveis e das doutrinas
kantianas até então desconhecidas no local11”. A leitura dos escritos reeditados por
Reale não nos deixa quaisquer dúvidas quanto a ambos estarem se referindo a um
texto comum nas referências supramencionadas.
Não satisfeito com as informações obtidas, Reale procurou o próprio
Eugênio Egas a fim de encontrar uma prova cabal que atestasse a legitimidade dos
compêndios atribuídos a Feijó.
Foi nessa oportunidade que fiquei sabendo que os referidos trabalhos de Filosofia haviam sido confiados a Eugênio Egas pelo Doutor Jorge Tibiriçá, antigo presidente do Estado de São Paulo. Tal informação foi-me confirmada por Dona Anita Tibiriçá, filha do antigo chefe do governo paulista, tendo ela esclarecido que um de seus antepassados, João Tibiriçá de Piratininga, havia sido efetivamente aluno do padre em Itu, dele recebendo os “cadernos de filosofia”, conservados como relíquia de família12.
Tendo em vista a dúvida quanto ao título geral do compêndio, Miguel Reale
e Luís Washington Vita reeditaram os escritos de Egas sob o título “Cadernos de
Filosofia”, pelo mesmo motivo acima apresentado. Provem desta reedição todos os
subsídios utilizados para confecção do presente artigo.
10 Apud. SOUSA, O. T. Diogo Antônio Feijó. Rio de Janeiro, 1942, p. 29. FEIJÓ, D. A, Cadernos de Filosofia (Introdução e notas de Miguel Reale),Grijalbo, São Paulo, 1967, p. 29.11 Apud. Escrita por XXX. Necrologia do Senador Diogo Antonio Feijó (publicada por Mello de Morais), Rio de Janeiro, 1861. p. 6. FEIJÓ, D. A, Cadernos de Filosofia (Introdução e notas de Miguel Reale),Grijalbo, São Paulo, 1967, p. 29.12 FEIJÓ, D. A, Cadernos de Filosofia (Introdução e notas de Miguel Reale). Grijalbo, São Paulo, 1967, p. 10.
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Infelizmente Reale não pôde ter acesso aos escritos originais de Feijó, pois,
segundo consta, foram destruídos em um incêndio. Portanto, tudo o que resta
sobre os escritos de Feijó é a publicação de Egas. Não se sabe ao certo a que ponto
vão as alterações por ele realizadas durante a edição. Mas o certo é que Egas
contraria o plano do autor quanto à disposição dos capítulos. Como nos aponta
Reale, a advertência de Feijó, extraída de seus escritos dedicados a Lógica, ao qual
mostraremos na passagem a seguir, deixa evidente a anterioridade do capítulo
referente às investigações metafísicas. “Os estados da alma relativos à verdade já
foram observados em Metafísica13”. Do mesmo modo, o antigo Integralista defende
a tese de que os dois compêndios apresentados por Egas tratam-se na verdade de
trabalho único. A meu ver tal ilação se faz perfeitamente plausível, tendo em vista
que diversas questões tratadas nos capítulos referentes à Lógica e Metafísica são
reiteradas nas páginas de Feijó dedicadas a Filosofia moral.
No tocante ao período em que foram redigidos os compêndios, segundo
evidências, deve ter ocorrido em algum momento entre os anos de 1818 e 1821, ou
seja, durante os anos que Feijó residiu em Itu. Chegamos a esta conclusão tendo em
vista que seus escritos consistiam em roteiros de aulas de Filosofia. É verdade que o
futuro Regente do Império já lecionava desde 1808, todavia, foi apenas no período
supramencionado que ele ministrou aulas sobre a disciplina.
Quanto ao problema da autenticidade dos documentos, devemos lembrar
que mesmo os críticos do estudo de Reale, no sentido pejorativo da palavra, não
põem em duvida a legitimidade dos escritos divulgados por nosso jusfilosófo
brasileiro. Estes se empenham sim em minimizar a importância dos “Cadernos de
Feijó”, alegando que suas reflexões não passam de noções obsoletas de
racionalismo abstrato, sistema este que, aliás, o próprio Kant se empenhou em
demolir.
13 FEIJÓ, D. A, Cadernos de Filosofia (Introdução e notas de Miguel Reale), Grijalbo, São Paulo, 1967, p. 116.
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Reale rebate alegando que jamais contestou que os escritos de Feijó
continham noções, hoje superadas, acerca da doutrina de Kant, fato este facilmente
justificável pela precariedade das fontes em que os precursores do kantismo no
Brasil se valiam (abordaremos mais minuciosamente esta questão no decorrer do
artigo). Por hora, devemos esclarecer que o que está em jogo aqui não é se Feijó
conseguiu reproduzir fielmente o projeto original de Kant, o que seria praticamente
impossível a alguém que recebeu toda sua formação em nosso país naquele
período, visto que ainda começava a surgir os primeiros estudos sobre Kant fora da
Alemanha. O que torna os escritos de Feijó tão especiais, assim como outros
possíveis escritos que se perderam com o tempo, é o simples fato de estudiosos
brasileiros, ainda em princípios do século XIX, adotarem, decididamente, o
criticismo kantiano em nosso país14.
Além de Martim Francisco, Diogo Antonio Feijó e Monte Alverne, várias
fontes indicam que haviam outros disseminadores do kantismo em São Paulo no
início do século XIX. Este é um dado considerável, tendo em vista o pequeno
número de letrados e a ausência de centros universitários no país no período.
Em contraponto, como nos aponta o historiador português Cabral de
Moncada, o interesse real pela filosofia de Kant em Portugal se dá apenas em 1834,
quando começa a florescer em seu país os ideais liberais15. Até então os portugueses
se valiam a esquemas da escolástica, do empirismo sensista e do racionalismo
wolffiano.
Lembrando que esta correlação apontada por Moncada entre Kant e o
Liberalismo não é condição necessária, embora existam evidências que a
importação do kantismo tanto no Brasil quanto em Portugal seja fruto deste
14 FEIJÓ, D. A, Cadernos de Filosofia (Introdução e notas de Miguel Reale), Grijalbo, São Paulo, 1967, p. 45.15 Apud. MONCADA. C. de. Subsídios para uma História da Filosofia do Direito em Portugal, 2ª ed, Coimbra, 1938. FEIJÓ, D. A, Cadernos de Filosofia (Introdução e notas de Miguel Reale), Grijalbo, São Paulo, 1967, p. 22.
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casamento. O fato de o Brasil passar por este processo muito antes de Portugal nos
induz a dizer que muito antes do ato formal da Proclamação da Independência já
havia se iniciado em nosso país o processo de libertação ideológica ante a
Metrópole. Sendo a busca de uma nova ordem política e jurídica o motivo da
implantação da doutrina de Kant em nosso meio cultural.
Embora Kant não seja propriamente um pensador liberal, suas idéias sobre
o Direito e sobre e o estado, assim como sua teoria sobre a liberdade, desperta a
simpatia dos liberais.
Kant se empenhou contra as formas de inatismo, que segundo os
racionalistas abstratos comanda nossas ideias. Kant proclama curiosamente o
direito da liberdade como algo inato a nossa condição humana, adotando, portanto,
uma postura comum a dos liberais. A influência de Kant em Feijó, portanto, não
reside propriamente na influência do criticismo, mas sim nas suas reflexões
desenvolvidas no plano ético e social, onde Kant sofre influência de Rosseau16. Em
outras palavras, Feijó chega a Kant por via liberal.
Pela causa mesma Kant no século XIX é entendido como uma das grandes
figuras do Liberalismo. É nítido que o conceito de liberdade adotado por Feijó em
seus cadernos se vale do pensamento kantiano, sobretudo, no que tange a defesa
da necessidade de uma harmonia entre liberdade individual e coletiva.
Todo homem é, portanto, obrigado a respeitar este direito e não pode embaraçar o exercício de liberdade de outrem, senão quando injustamente atentar contra seus direitos.
O direito de liberdade pode considerar-se como o mesmo direito de propriedade, pois a liberdade é uma propriedade pessoal, inata, essencial do homem17.
16 REALE, M, Filosofia em São Paulo. 2ª Ed ( restaurada e revisada). Grijalbo, São Paulo, 1976. p. 19.17 FEIJÓ, D. A, Cadernos de Filosofia (Introdução e notas de Miguel Reale), Grijalbo, São Paulo, 1967, p. 145.
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Devemos salientar que os estudos de Miguel Reale não nos possibilitam
afirmar que Diogo Antonio Feijó seja o introdutor da doutrina de Kant no Brasil.
Todavia, suas reflexões nos permitem chegar a conclusões esclarecedoras.
Considerando que Feijó escreveu seus cadernos no final da década de 10 do
século XIX, podemos descartar a hipótese de que a obra “Compêndio de Filosofia”
de Monte Alverne tenha sido a precursora das diretrizes tomadas pela doutrina de
Kant no Brasil, visto que sua obra data de 1833. Além de Alverne, há a hipótese de
que Martim Francisco tenha escrito o primeiro estudo sobre Kant em nosso país.
Respaldando esta hipótese, fontes indicam que Martim Francisco já ministrava aulas
sobre Kant, em nosso país já em 1803, antes mesmo da morte do filósofo de
Königsberg. Em um artigo publicado em 1922 seu neto, de mesmo nome, alegou ter
recebido de Lúcio Campelo manuscritos de seu avô supostamente datados de 1808
ou 180918. Entretanto, só foram publicados alguns fragmentos destes escritos, que
segundo consta, consistiam de oito densos cadernos. Lamentavelmente o
documento nunca foi reproduzido na íntegra, caindo novamente no esquecimento.
José Salgado Martins afirma, conforme o descoberto em suas pesquisas, que a
doutrina de Kant também já era estudada no Rio Grande do Sul em 180319.
Lembrando que Reale não desconsidera a possibilidade de Feijó ter sido
influenciado por Martim Francisco. Indícios como a grafia atípica do nome Kant com
a letra “c” pode ser a evidência de que Feijó tenha sido discípulo de Martim
Francisco. Por outro lado, pode também indicar que ambos bebem de uma fonte
comum, tese esta defendida por Miguel Reale.
18 Apud. Francisco. M. (III). Dum Manuscrito, Ver. Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, vol XXXI, Rio de Janeiro 1933-1934. FEIJÓ, D. A, Cadernos de Filosofia (Introdução e notas de Miguel Reale), Grijalbo, São Paulo, 1967, p. 16.19Apud MARTINS. S, Breve História das idéias no Rio Grande do Sul, Revista Brasileira de Filosofia, 1972, fasc. 87. p 325.
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Sabemos que o pensamento kantiano chega ao Brasil, inicialmente, por
intermédio das interpretações produzidas pelos franceses. No caso especifico da
obra de Feijó, Reale acredita haver fortes evidências que apontam para o fato de
que seus escritos tomavam como base a obra “Filosofia de Kant ou Princípios
Fundamentais da Filosofia Transcendental” de Charles Villers, publicado em francês
em 1801. Este fato é confirmado por Laerte Ramos de Carvalho em sua obra “Feijó e
o Kantismo” de 1952. O artigo “Reise in Brasilien” produzido pelos estudiosos J. B.
von Spix e C. F. P. Martius em 1823 na Alemanha, menciona a utilização dos escritos
de Villers em 1818 em São Paulo, respaldando a afirmativa de Reale.
o estudo de Filosofia, que antes era aqui, assim como na maioria das escolas brasileiras, ensinada por um livro antiquado, modelado pela teoria de Brucher, tomou outro rumo recentemente, desde que a filosofia de Kant se tornou acessível aos pensadores brasileiros, pela tradução de Villers20.
Quanto à citação acima Reale adverte que não se tratava de uma tradução
da obra de Kant, mas sim uma interpretação da obra do filósofo alemão realizada
por Villers. O Culturalista brasileiro também frisa que não há nada que nos permite
concluir que Feijó tenha se valido apenas do estudo de Villers em seus escritos,
lembrando os trabalhos de Degerando, Buhle e Madame de Stael que poderiam
muito bem ter sido utilizados por Feijó, assim como pelos demais precursores da
doutrina de Kant no país.
20Apud. SPIX. J. B. von e MARTIUS. C. F. P. Viagem pelo Brasil. Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, 1939. FEIJÓ, D. A, Cadernos de Filosofia (Introdução e notas de Miguel Reale), Grijalbo, São Paulo, 1967. p. 20.
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CONCLUSÃO
Percebemos, a partir do estudo de Miguel Reale, que os primeiros
desenvolvimentos das idéias de Kant no Brasil datam do início do século XIX,
período este em que ainda começavam a surgir os primeiros estudos em francês
acerca da obra do filósofo de Königsberg.
Como nos aponta Moncada, o kantismo no Brasil precedeu em algumas
décadas a chegada desta doutrina na Metrópole. O significado desta afirmação é
extremamente significativo, visto que temos aqui resquícios de autonomia
intelectual em relação ao projeto ideológico da metrópole antes mesmo da vinda da
família real para o Brasil.
Todavia, mesmo diante de uma descoberta desta magnitude, os
compêndios de História das Idéias ainda hoje, em sua maioria, insistem em dizer que
os primeiros passos da emancipação cultural e intelectual do Brasil ante a antiga
metrópole só se deram após o ato formal da independência em 1822.
Este fato se explica pelo kantismo ter chegado a nosso país por intermédio
dos Liberais. O não reconhecimento da importância dos Cadernos de Filosofia de
Antônio Feijó se deve a disputas ideológicas decorrentes do espírito estreito da
intelectualidade brasileira que insiste em não considerar as elucubrações
desenvolvidas por estudiosos de outras orientações. Estes são movidos por paixões
que os cegam inteiramente a realidade que escapa aos princípios preconizados em
sua linha de pensamento, fugindo a quaisquer espécies de dialogo, transformando a
intelectualidade brasileira em um arquipélago repleto de intelectuais
ensimesmados. Movidos por interesses políticos se esquecem do princípio
fundamental da filosofia “o amor a verdade”. Como já dizia Olavo Bilac em 1915,
“Sem ideal, não há nobreza de alma; sem nobreza de alma, não há desinteresse;
sem desinteresse não há coesão; sem coesão, não há pátria”.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
COSTA, J. C. Contribuição à História das Idéias no Brasil, Civilização
Brasileira, Rio de Janeiro, 1967.
FEIJÓ, D. A, Cadernos de Filosofia (Introdução e notas de Miguel Reale),
Grijalbo, São Paulo, 1967.
REALE, M, Filosofia em São Paulo. 2ª Ed (restaurada e revisada). Grijalbo,
São Paulo, 1976.
TOBIAS, J. A. História das Idéias no Brasil, EPU, São Paulo, 1987.
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ANGÚSTIA EM PERSONA, DE INGMAR BERGMAN: APONTAMENTOS KIERKEGAARDIANOS
Alexandro F. SouzaMestre em Ciência da Religião/UFJF
Doutorando em Ciência da Religião/[email protected]
“Anjo ou animal, jamais o homem poderia
sentir a angústia. Contudo, considerando que
é uma síntese, pode senti-la e tanto mais
intimamente a sente, mais aumenta a sua
humana grandeza”.
Soren Kierkegaard. O conceito de angústia, p.
157.
“A ansiedade que sentimos, todos os sonhos
não realizados, a crueldade inexplicável, o
medo da morte, a visão dolorosa da nossa
condição terrestre desgastou nossa esperança
de uma salvação divina. Os gritos de nossa
dúvida contra a escuridão e o silêncio são uma
prova terrível da nossa solidão e medo”.
Persona, Ingmar Bergman
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Filme de 1966, com roteiro e direção do sueco Ingmar Bergmann [1918-
2007], Persona, que no Brasil recebeu o título de Quando duas mulheres pecam,
narra o relacionamento entre uma atriz, que recusa o contato com o mundo apesar
de sua aparente saúde física e psíquica, e sua enfermeira. Depois de uma malograda
apresentação de Electra, a atriz Elisabeth Vogler decide se internar no que parece
ser uma clínica psiquiátrica. No entanto, como aparenta ser uma pessoa saudável
que, deliberadamente se recusa a falar, a sua médica recomenda uma temporada de
descanso e encarrega uma de suas enfermeiras, Alma, de cuidar da atriz. A atriz e
sua enfermeira seguem para o destino escolhido e, durante a recuperação de
Vogler, as duas acabam se aproximando, numa estranha cumplicidade onde uma
parece confundir-se com a outra. Como toda obra de arte, o filme se abre a diversas
possibilidades de interpretação. A mais imediata, sugerida talvez pelo título da
obra1, encontra amparo na teoria psicológica de Carl Gustav Jung [1875-1961] e na
sua teoria da persona que, segundo o autor suiço, “[...] representa um
compromisso entre o indivíduo e a sociedade, acerca daquilo que 'alguém parece
ser': nome, título, ocupação, isto ou aquilo [...]”2.
O conceito de persona da psicologia junguiana se coaduna bem com aquilo
que, queremos crer, é representado no filme, e o próprio Bergman admitia essa
possibilidade de interpretação3. Como diz a médica à atriz Elisabeth Vogler, a
questão do filme se resume àquilo que se é em sociedade e o que se é realmente,
ou, em termos junguianos, “[a] persona é um complicado sistema de relação entre a
consciência individual e a sociedade; é uma espécie de máscara destinada, por um
lado, a produzir um determinado efeito sobre os outros e por outro lado, a ocultar a
1 Persona era o nome da máscara usada pelos atores no teatro grego. A palavra deriva-se do verbo “personare” (soar através de). 2 JUNG, Carl Gustav. O eu e o inconsciente, p. 32.3 Perguntado em uma entrevista se lhe aprazia essa interpretação junguiana da sua obra, Bergman afirma: “Acho isto muito bem dito e é uma fórmula que se aplica bem, também, ao meu filme. Para mim, estes seres que primeiro trocavam suas máscaras e depois subitamente dividem a mesma máscara, era fascinante”. BERGMAN, Ingmar. In: O cinema segundo Bergman. BJÖRGMAN, Stig et alii, p. 164.
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verdadeira natureza do indivíduo”4. Segundo o pensamento junguiano, tal
concessão à coletividade significa um auto-sacrifício, uma rejeição do si-mesmo
(self) em favor de uma figura ideal advinda do exterior5. O si-mesmo é mascarado
em favor de expectativas alheias e se perde em sua individualidade.
Ao falarmos em extravio da individualidade surge-nos, entretanto, um
outro caminho também interessante de abordagem da obra de Ingmar Bergman em
questão. Abandonando a trilha aberta pelo pensamento junguiano, podemos tentar
uma uma interpretação de Persona a partir da filosofia de Soren Kierkegaard [1813-
1855], mais notadamente a partir do seu conceito de angústia, explanado na obra
de mesmo nome6.
A angústia segundo Kierkegaard
Em O conceito de angústia, Kierkegaard define a angústia como a pura
possibilidade da liberdade do indivíduo. O indivíduo é a relação entre alma e corpo.
Relação essa orientada para a interioridade e que pode ser denominada de espírito.
Entretanto, no mesmo momento em que se coloca como espírito, o indivíduo
também se coloca como angústia, uma vez que descobre que toda a sua existência
é um puro possível, absoluta liberdade que repousa sobre o Nada. Segundo
Kierkegaard:
A angústia pode ser comparada à vertigem. Quando o olhar imerge num abismo, existe uma vertigem que nos chega tanto do olhar como do abismo, visto que nos seria impossível deixar de o encarar. Esta é a angústia, vertigem da liberdade, que surge quando, ao desejar o espírito estabelecer a síntese, a liberdade imerge o olhar no abismo das suas possibilidades e agarra-se à finitude para não soçobrar.7
4 JUNG. Op. cit. p. 68.5 Ibidem, p. 69.6 KIERKEGAARD, Soren. O conceito de angústia.7 KIERKEGAARD. Op. cit., p. 66.
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Sem um sentido, a não ser o dado por si mesmo em sua total liberdade;
sem um destino, a não ser o atribuído por si mesmo, o indivíduo descobre-se
absolutamente livre para a sua própria realização; descobre que o seu “eu” não é
dado, o que é dada é a pura possibilidade de realização desse “eu”. Sem ter onde
apoiar-se, o indivíduo sente a angústia de estar entregue à sua própria
responsabilidade. Como diz Gilles em sua História do existencialismo e da
fenomenologia, “[s]ó na medida em que for capaz de sofrer a prova desse
abandono será [o indivíduo] existencialmente livre”8.
Para Kierkegaard a angústia é ambígua, pois, ao mesmo tempo que abre as
possibilidades para o indivíduo, mostra também que não há nenhuma garantia de
realização de alguma dessas possibilidades. O indivíduo é convidado ao risco e,
naturalmente sente o medo de abandonar o já conhecido, o familiar. Procurando
escapar da pura possibilidade, pode o indivíduo mergulhar na imediaticidade,
procurando assim mascarar a sua angústia. Em O conceito de angústia, Kierkegaard
procura também apreender as formas de manifestação desse fenômeno. Para o
autor dinamarquês, a angústia pode ser objetiva ou subjetiva. No primeiro caso é a
angústia do espírito que sonha em ser livre, é o reflexo interior da liberdade como
puro possível. Nas palavras de Kierkegaard:
Em tal estado existe calma e descanso; porém existe, ao mesmo tempo, outra coisa que, entretanto, não é perturbação nem luta, porque não existe nada contra que lutar. O que existe então? Nada. Que efeito produz, porém, este nada? Este nada dá nascimento à angústia. [...]. Sonhador, o espírito projeta a sua própria realidade, que é um átimo, e a inocência vê sempre e sempre, diante de si, este nada.9
Já a angústia subjetiva é justamente a angústia da vertigem, o descobrir-se
lançado em meio à pura possibilidade. Segundo Giles, “[a] condição dessa
8 GILES, Thomas Ransom. História do existencialismo e da fenomenologia, p. 44.9 KIERKEGAARD. Op. cit., p. 45.
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potencialidade indeterminada é a angústia. O indivíduo sente a precariedade da sua
situação, mas é a própria liberdade que o impede de escapar da angústia” 10. Essa
angústia pode ser encontrada sob a forma da angústia do Mal ou da angústia do
Bem, está última designada também como o demoníaco. A angústia subjetiva
mostra-se no momento em que o espírito mergulha no abismo da liberdade e
descobre-se como pura possibilidade. Nas palavras de Kierkegaard, em tal momento
“[...] tudo se modificou, e quando a liberdade se levanta, acha-se culpada”11. A
angústia do Mal, uma das formas da angústia subjetiva caracteriza-se como a
negação desse momento em que o Indivíduo descobre-se como pura possibilidade.
A outra forma da angústia subjetiva, a angústia do Bem, ou o demoníaco,
caracteriza-se como uma escolha da liberdade pelo fechamento em si mesma, uma
escolha pela não-liberdade. Segundo Kierkegaard, “[n]a inocência, a liberdade não
era estabelecida como tal e o seu possível equivalia no indivíduo à angústia. A
relação inverte-se no demoníaco. A liberdade coloca-se, aqui, como não-liberdade, e
está, efetivamente, perdida, e o seu possível equivale outra vez à angústia”12.
A angústia, essa constante e amarga companheira é, segundo Kierkegaard,
insuperável. O indivíduo está sempre diante da realização ou não de suas
possibilidades. Como bem lembra Giles, para Kierkegaard, “[a] angústia é a
expressão de uma perfeição da natureza humana, pois é só através dela que o
homem poderá elevar-se à existência autêntica”13.
10 GILES. Op. cit., p. 44.11 KIERKEGAARD.Op. cit., p. 66.12 Ibidem, p. 26.13 GILES. Op. cit., p. 44.
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A angústia em Persona
- A angústia na a-espiritualidade: Alma
O indivíduo é uma síntese entre alma e corpo, síntese essa suportada pelo
espírito. Tal espírito tende a tornar-se mais forte com o aprofundar da relação, com
o voltar-se para o interior de si mesmo e isso se traduz na busca de uma existência
autêntica à despeito do risco de sua não realização. Aqui a angústia toma parte
como esse convite à realização de si mesmo, descortinando para o indivíduo as suas
possibilidades. O oposto de tal atitude é a a-espiritualidade, onde o indivíduo ainda
não realizou o salto qualitativo e sua liberdade é apenas um mero devaneio. Para
Kierkegaard, “[a]inda que na a-espiritualidade a angústia, do mesmo modo que o
espírito, seja abolida, permanece aí como expectativa”14. Ao tocar nesse ponto do
pensamento kierkegaardiano, nossa intenção é procurar observá-lo no
comportamento de uma das personagens da obra de Bergman.
Alma, a jovem enfermeira sente que o seu caminho já está traçado: ela se
casará com Karl-Henrik, terá filhos e continuará com o seu trabalho de enfermeira,
uma vocação “herdada” de família. Como ela própria afirma, “[...] tudo isto está
predestinado [...]”. Em tal personagem a liberdade não se efetiva e seu espírito vive
a sonhar com outras possibilidades de realização. Tais divagações aumentam com o
contato com Elisabeth Vogler; para Alma, a atriz “[...] pode fazer o que quiser [...]”,
enquanto ela não tem o que pensar. Assim, no contato com Elisabeth Vogler, Alma
sente que seu espírito é pequeno demais para dar conta do problema da atriz que,
como veremos mais adiante, é justamente o oposto da a-espiritualidade de Alma.
Em suas conversas com a atriz, a enfermeira deixa transparecer sua ingenuidade e
uma certa falta de sentido para a sua existência, que se resume a incorporar a si
atitudes alheias. Dessa forma Alma toma parte numa orgia à beira-mar e assume,
também, atitudes de Elisabeth. Pode-se, nesse sentido, falar em uma persona, no 14 KIERKEGAARD. Op. cit., p. 101.
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mesmo sentido junguiano de uma máscara utilizada em detrimento de sua própria
autenticidade. Essa afirmação se coaduna com o pensamento de Kierkegaard, pois,
como diz o autor em O conceito de angústia, o indivíduo na a-espiritualidade pode
assumir atitudes alheias, manifestando uma certa interioridade que, na verdade,
não possui:
O homem a-espiritual pode afirmar completamente as mesmas coisas que o espírito mais bem dotado, apenas com a diferença de que não as afirma em razão do espírito. A orientação a-espiritual transforma o homem numa máquina falante, que pode aprender de cor seja uma ladainha filosófica, seja qualquer profissão de fé ou discurso demagógico.15
Em sua a-espiritualidade, Alma presente que algo não está bem, que a sua
existência pode se tornar algo maior do que é no momento. Assim, ao mesmo
tempo em que afirma ser preguiçosa demais para mudar, afirma também que isso a
faz sentir-se culpada, que isso a angustia. Ao ler a carta de Elisabeth Vogler, Alma se
reconhece na existência um tanto ingênua descrita pelo olhar mordaz da atriz, o
que a leva a iniciar um processo de desagregação de seu “estilo” existencial,
processo esse que poderia levá-la à afirmação de si como indivíduo autêntico, mas
que parece redundar no mais absoluto fracasso quando, no confronto com
Elisabeth, ela não consegue mais articular-se de maneira coerente.
A angústia do Bem: Elizabeth Vogler
No outro extremo temos a atriz Elisabeth Vogler. Bonita, bem sucedida nos
palcos e na vida pessoal, nada parece lhe faltar, como bem lembra a enfermeira
Alma no início do filme. Entretanto, apesar disso, ela se recusa a manter contato
com o mundo, decidindo fechar-se em si mesma. “Eu viveria assim para sempre”,
15 Ibidem, p. 99.
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diz ela, “em silêncio, vivendo uma vida reclusa, com poucas necessidades, sentindo
minha alma finalmente se acalmar”.
Pode-se afirmar que antes do episódio do palco, Elisabeth e Alma eram bem
parecidas. Como Alma, Elisabeth levava uma existência sem um sentido, sem a
busca de sua própria autenticidade. Sua profissão é uma metáfora de sua própria
vida, máscaras que vêm e vão ao sabor do instante, sem nenhum engajamento
profundo. Mas, algo no palco lhe revela a insensatez de sua vida e, angustiada, a
atriz sente a precariedade de sua existência. Esse algo que abre o reino da pura
possibilidade para Elisabeth é o instante, um “piscar de olhos” que desvela os
fundamentos da existência humana. Esse instante experimentado por Elisabeth,
segundo Giles:
[É] o ponto de ligação entre o eterno e o temporal. É a forma do tempo que toca a eternidade. No instante o indivíduo faz uma opção entre o estádio estético e o ético, opção que é a plenitude do presente e o prognóstico do futuro, objeto de um futuro que volta como passado. Trata-se de pensar o instante, permanecendo ao mesmo tempo no interior do devir, pois o paradoxo da existência consiste em penetrar na existência consciente de estar bem além dela.16
O instante, esse momento em que o temporal e o eterno se tocam é
também um momento de vertigem do espírito, momento em que o indivíduo é
convocado a uma existência autêntica que pode ou não ser aceita. Elisabeth Vogler
opta por viver na imediaticidade, num estranho jogo de cena onde a sua liberdade
deseja fechar-se como não-liberdade. De maneira livre, a atriz recusa o salto para
uma existência autêntica, representado na película pelo seu mutismo e pela recusa
das responsabilidades de esposa e mãe.
Em nossa tentativa de analisar a obra de Bergman a partir do pensamento
16 GILES. Op. cit., p. 50.
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kierkegaardiano, poderíamos dizer que Elisabeth Vogler apresenta a angústia do
Bem, ou seja, como espírito ela nega as suas possibilidades. Essa manifestação da
angústia é denominada por Kierkegaard de o demoníaco e pode manifestar-se
como o hermetismo, tal como apresentado por Elisabeth Vogler:
O demoníaco constitui a não-liberdade que se deseja fechar sobre si mesma. Ato impossível, visto que a não-liberdade será sempre conservar uma relação que permanece ainda quando pareça inteiramente desaparecida, e a angústia mostra-se a partir do momento em que haja contato.17
A liberdade, que é sempre comunicação e comércio com o mundo torna-se
mutismo e negação da comunicação; negação essa que é, mais uma vez, angústia. E
essa é justamente a atitude de Elisabeth Vogler, o fechamento em si mesma,
negação do contato com o mundo e negação de sua própria liberdade. Porém, em
seu exílio de si mesma, Elisabeth é constantemente “invadida” pela realidade, seja
através de uma música no rádio, seja através das imagens da TV, onde um monge
põe fogo em seu próprio corpo18.
Conclusão:
Podemos, então, traçar um retrato esquemático da angústia em Persona.
Num extremo encontramos Alma e seu estado de a-espiritualiade e, no outro,
Elisabeth e sua recusa da liberdade. Em comum, as duas personagens possuem a
angústia, comum a todos os seres humanos, mas que na especificidade de Persona,
é uma angústia que leva uma a invejar a própria condição da outra e vice-e-versa.
Alma, em sua angústia, tateia um sentido para sua existência, encontrando em
17 KIERKEGAARD. Op. cit., p. 127.18 O corpo que Elisabeth vê incinerar-se é do monge budista Thich Quang Duc, nascido em 1897, que se sacrificou até a morte numa rua movimentada de Saigon, em 11 de junho de 1963.Enquanto seu corpo ardia sob as chamas, o monge manteve-se completamente imóvel.Não gritou, nem sequer fez um pequeno ruído. Seu ato foi uma forma de protesto contra a perseguição da elite católica vietnamita ao budismo.
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Elisabeth uma espécie de modelo a ser invejado. Por sua vez, Elisabeth recusa a sua
liberdade e inveja a “existência inocente” de Alma. Dessa forma, uma deseja
“trocar” de persona com a outra ou, como na atitude vampiresca de Elisabeth, uma
deseja “sugar” o ser da outra, fugindo assim às suas próprias condições. Assim
vemos as duas “soarem” através de suas próprias inautenticidades, uma buscando
refugiar-se na máscara alheia em detrimento de suas próprias individualidades.
Em ambos os caso o que temos é o fracasso: em sua tentativa de imitação
de Elisabeth, Alma acaba colocando a sua própria existência em risco, representada
pela desagregação da linguagem e incapacidade de expressar seus pensamentos de
maneira racional. Elisabeth, por sua vez, retomará suas atividades no palco, do
teatro e da existência, continuando a representar um papel e negando a sua própria
liberdade, O resultado de tais atitudes em ambas termina num círculo vicioso, mais
uma vez angústia, essa amarga e fiel companheira que está sempre a lembrar o
indivíduo de sua vocação para a autenticidade.
Referências Bibliográficas:
BERGMAN, Ingmar. Persona. Quando duas mulheres pecam. Versátil
Seleções, 2006 [1966], 84”, DVD.
BJORGMAN, Stik et alii. O cinema segundo Bergman. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1978.
GILES, Thomas Ransom. História do existencialismo e da
fenomenologia. São Paulo: EPU, 1975.
JUNG, Carl Gustav. O eu e o inconsciente. Petrópolis: Vozes, 1978.
KIERKEGAARD, Soren. O conceito de angústia. São Paulo: Hemus,
1968.
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Ano I, Nº 03, Juiz de Fora, dezembro/2010 - março/2011
ROSENBLATT, Helena (ed.). The Cambridge Companion to Constant. New York: Cambridge
University Press 2009, 416 pág.
Marco Antonio BarrosoMestre em Ciência da Religião/PPCIR-UFJF,
Doutorando em Ciência da Religião/PPCIR-UFJF
Quando procuramos nas mais conhecidas obras de história da filosofia,
dificilmente encontramos o nome de Benjamin Constant de Rebecque (1767-1830).
No Brasil o nome deste autor se encontra, quase exclusivamente, ligado às
questões do pensamento político – o que não é para menos, uma vez que sua obra
influenciou decisivamente nosso destino histórico. Durante algum tempo a
produção intelectual rebecquiniana caiu no quase total esquecimento; todavia, um
movimento de redescoberta desta obra vem se realizando nos últimos anos nos
Estados Unidos, na França, e principalmente na Suíça (terra natal do pensador).
Segundo acentua Ricardo Vélez Rodríguez, um dos principais estudiosos do
pensamento político de Constant, no Brasil, “temas como a representação, o
controle moral do poder, a limitação da soberania popular, a monarquia como
poder neutro, os direitos inalienáveis do cidadão à vida, à liberdade e às posses, o
sentido da moderna democracia foram objeto de análise do pensador francês. [...].
As suas teses continuam tendo rara atualidade, conforme frisa um de seus mais
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Ano I, Nº 03, Juiz de Fora, dezembro/2010 - março/2011
importantes estudiosos contemporâneos.”1 Benjamin é notadamente um liberal,
que dedicou grande parte de sua vida à ação pública e aos escritos sobre a
representatividade, enfatizando a liberdade como bem maior da humanidade.
Ao contrario do que se possa imaginar, a obra de Constant de Rebecque
não se resume ao pensamento político. Nesta retomada da obra de Rebecque,
outras facetas do autor também vem aparecendo. Por exemplo, sua obra literária
Adolphe, que nos anos 90 teve releitura em dois filmes. A respeito da vertente
literária da obra rebecquiniana, frisa o historiador da arte, Arnold Hauser, que foram
Constant de Rebecque e Mme. de Staël os autores mais criativos do romantismo
literário francês, à revelia de Napoleão.
Embora não fosse um filósofo, pelo menos não no sentido ortodoxo do
termo, podemos encontrar em toda obra rebecquiniana um fundo comum – um
esforço racional para explicar a realidade humana, levando em conta toda sua
complexidade. Dentro da vasta obra deixada por Constant de Rebecque,
encontramos livros que vão da teoria política à literatura, passando pela filosofia e
história da religião. Destacando-se, por exemplo, os livros Principes de politique,
manancial de reposição sobre as teorias da representatividade; a narrativa, já citada,
Adolphe, obra clássica do romantismo psicológico francês; ou, o seu De la religion,
aclamado na contemporaneidade por fenomenólogos ou cientistas da religião, tais
como van der Leew ou Michael Meslin.
Como mostra deste novo movimento em torno ao pensamento de
Constant de Rebecque, temos o recente livro The Cambridge Companion to
Constant, organizado e editado pela professora Helena Rosenblatt (do History at
Hunter College and the Graduate Center of the City University of New York), que se
apresenta na forma de uma coletânea de ensaios críticos, sobre a vida e a obra do
autor em questão. Os presentes textos foram elaborados por algumas das
1 Ricardo VELÉZ RODRÍGUEZ. O liberalismo francês – a tradição doutrinaria e sua influência no Brasil. Juiz de Fora, 2002, p.53. disponível em: www.institutodehumanidades. com.br
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Ano I, Nº 03, Juiz de Fora, dezembro/2010 - março/2011
principais autoridades hodiernas na interpretação do pensamento do autor ao qual
se dedica a coletânea. Um verdadeiro painel internacional de pesquisadores,
composto por norte-americanos, ingleses, franceses e um autor italiano – o que
demonstra a força com que vem sendo retomada a meditação de Benjamin
Constant em paragens estrangeiras. O livro é composto de três partes, que
convergem sobre os principais campos temáticos desenvolvidos ao longo das obras
escritas pelo autor ao longo de sua vida. Somam-se a estas partes introdução e
conclusão. Nem todos os ensaios são originais, sendo, na verdade, a maioria deles
capítulos de outras obras, dedicadas parcial ou integramente ao pensamento de
Constant de Rebecque.
A introdução é escrita por Dennis Wood, considerado pela crítica
especializada como um dos mais importantes biógrafos de Constant na
contemporaneidade, sendo este o autor da biografia crítica Benjamin Constant: A
Biography (1993). Na introdução, Wood, traça os dados biográficos do autor franco-
suíço, ligando-os ao desenvolvimento de sua vida política e intelectual. A escrita é
conduzida de forma clara e profunda, possibilitando ao leitor perceber a estreita
ligação entre as diversas dimensões que compõe o caráter de Benjamin Constant de
Rebecque, homem de vida conturbada, mas de intelecto robusto e privilegiado.
A primeira seção do volume denomina-se “The Political Thinker and Actor”,
é a peça mais substancial, em matéria de número de páginas, que compõe o livro;
isto se dá, com certeza, porque, como muito bem acentua seu título, é nela que
encontraremos a repercussão da vida e escritos políticos de Constant – que possui
grande apelo nos meios acadêmicos em geral, mas principalmente entre os norte-
americanos. Aqui se encontra o ensaio de Marcel Gauchet, “Liberalism’s Lucid
Illusion”, que foi publicado originalmente em francês no livro De la liberté chez les
Modernes, (Paris: Livres de Poche, 1980); em seguida, temos “The Liberty to
Denounce: Ancient and Modern” de Stephen Holmes, em que o autor retoma a
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meditação de Constant sobre a liberdade dos modernos comparada a dos antigos, e
a influência que ela teve sobre a formatação da compreensão do direito
constitucional moderno, reflexão rebecquiniana extremamente cara aos povos de
língua inglesa, tal como acentua a editora da obra em apreço (Cf. p.xi). Na mesma
trilha do ensaio anterior, temos o professor inglês Jeremy Jennings, “Constant’s
Idea of Modern Liberty”, que faz a análise da atualidade do texto Da liberdade dos
modernos compara aquela dos antigos. Os outros três ensaios subseqüentes situam
a reflexão de Constant no seio do liberalismo de seu próprio tempo, principalmente
através de sua atuação prática no senário francês dos períodos pós-revolucionários
e da restauração, são eles: “Benjamin Constant and the Terror” do pesquisador
italiano Stefano de Luca, “Constant’s Thought on Slavery and Empire” de Jennifer
Pitts, e “Benjamin Constant as a Second Restoration Politician” do canadense
Robert Alexander.
A segunda seção (The Psychologist and Critic) compõe-se de quatro
ensaios, que procuram focalizar a faceta de Constant como psicólogo e analista
social. De modo multidisciplinar são abordados temas nos campos da literatura,
filosofia da história e psicologia. No primeiro ensaio Steven Vincent, em “Constant
and Women”, analisa, através dos escritos autobiográficos de Constant, a
conturbada relação do autor com o gênero feminino e a contribuição daquelas para
a forte construção intelectual do mesmo, mas, ao mesmo tempo, para sua fraqueza
de caráter. “Individualism and Individuality in Constant”, de Gerald Izenberg, relata
a contribuição da idéia romântica de individualidade para a construção do
pensamento político de Rebecque. Em seu ensaio “Literature and Politics in
Constant”, Patrick Coleman cria uma ponte interpretativa acerca da produção
literária, propriamente dita, do pensador franco-suíço e sua produção política. E no
ultimo ensaio da segunda seção, “The Theory of the Perfectibility of the Human
Race”, Etienne Hofmann, através de uma pesquisa histórica e filosófica, analisa o
conceito de perfectibilidade, chave para a compreensão das idéias de verdade,
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política e religião na obra do autor.
Por fim, na terceira e ultima seção do livro ora apresentado, encontramos
aquela parte da meditação de Constant de Rebecque, que fora por muito tempo
deixada de lado – muito provavelmente, devido à secularização e ao ateísmo em
que se fechou o mundo acadêmico francês, entre os fins do século XIX e meados do
século XX, que tornou a religião subproduto de outras formas de representação
social. Falamos, pois, do Constant de Rebecque que procura, através da crítica e da
história das religiões, construir uma filosofia da religião que se sustenta no
sentimento religioso e que tem como seu contraponto, e ao mesmo tempo seu
complemento, as religiões positivas. Em “The Analyst and Historian of Religion”
temos a participação daquele que talvez seja mais completo interprete vivo da obra
rebecquiniana: Tzvetan Todorov. No ensaio “Religion According to Constant”,
ressalta a originalidade e a atualidade da obra prima, ainda muito desconhecida, à
qual Constant se dedicou por toda sua vida, De la religion considerée dans sa
sources, ses formes et ses developpements; em sua analise, Todorov, observa a
citada obra como sendo uma daquelas que dá origem à “antropologia da religião” –
assim como van der Leew já havia destacado, usando a nomenclatura mais
apropriada de fenomenologia da religião, e aproximando a importância de De La
religion àquela de Über die Religion de Schleiermacher. Já Bryan Garsten, “Constant
on the Religious Spirit of Liberalism,” destaca a ligação entre a postura liberal de
Rebecque e seu posicionamento diante das religiões; aponta a defesa de uma
postura neutra do Estado frente à diversidade religiosa, o anti-clericalismo e o
caráter privado do sentimento religioso, tal como formulado por Constant de
Rebecque. Para finalizar a última seção, Laurence Dickey, procura demonstrar com
o pensamento do autor franco-suíço está relacionado à longa tradição filosófica
teísta, isto em “Constant and Religion: ‘Theism Descends from Heaven to Earth’.”
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Como conclusão do volume, Rosenblatt, destaca a recepção das teorias de
Benjamin Constant de Rebecque, tanto nos E.U.A quanto na França, destacando a
multiplicidade de interpretações que foram dadas a elas. A editora também explana
sobre a reputação póstuma do autor, sobre o quase esquecimento em que suas
idéias caíram e sobre a retomada, que vem acontecendo nos últimos anos, do
pensamento daquele que foi um dos mais importantes teóricos franceses do
período napoleônico. A conclusão que se chama “Eclipses and Revivals: Constant’s
Reception in France and America 1830–2007” foi publicada originalmente por
Rosenblatt em seu livro Liberal Values: Benjamin Constant and the Politics of
Religion (Cambridge University Press, 2008).
Apresentado o conteúdo do livro The Cambridge companion to Constant,
acreditamos que ele possa ser de grande utilidade, tanto para aqueles que
pretendam aprofundar seus estudos sobre Benjamin Constant de Rebecque quanto
para aqueles que, já possuindo certa bagagem acadêmica ou cultural, queiram se
iniciar nestes estudos – isto porque, a obra em questão apresenta um panorama
geral dos assuntos que formam léxico rebecquiniano. Contudo, por serem escritos
por especialistas do assunto, os ensaios aprofundam de forma enriquecedora as
temáticas às quais são dedicados – o que possivelmente atrapalharia um aluno
iniciante em assuntos acadêmicos, ou sem o resguardo cultural que é demandado
pelo texto.
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KROKER, Arthur & WEINSTEIN, Michael A., “Data Trash: The Theory of the Virtual Class”, New York, St.
Martin’s Press, 1994, 165 pág.
Ronaldo PimentelLicenciado e Bacharel em Filosofia – UFJF
Mestre em Lógica e Filosofia da Ciência – [email protected]
Data Trash é um livro que investiga o fetichismo por trás da realidade
virtual. O que leva um casal de adolescentes a postarem para o mundo virtual cenas
de sexo no TwitCam? O que leva a uma mulher traída a postar o knockout dado na
amante do marido no YouTube? O que leva as pessoas a consumirem tecnologia?
Entre outras barbaridades comuns no mundo virtual, o que está por trás de atos
como esses é o desejo de virtualização, aquilo que sustenta a cultura digital.
Data Trash é um livro de teoria crítica sobre a cultura digital que segue a
linha nietzschiana de pensamento. Aqui, Nietzsche tem um netbook e um modem.
Nietzsche pensava que o ideal ascético retirava o homem do mundo em que vive,
negando a vida em prol de algo que nem se sabe se existe como a vida eterna fora
do mundo. Na verdade, o ideal ascético é uma das utilidades da vontade de
potência. Se não podemos realizar os nossos desejos aqui nesse mundo trágico que
ao mesmo tempo nos dá prazer e dor, então projetamos a existência de um mundo
além através da vontade de potência, vivemos a ascese moral nesse mundo
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negando todos os prazeres da carne. Matando-nos, fazemos nossas malas e nos
mudamos para o mundo imaginário do além-vida. O mesmo acontece na era digital
em Data Trash. A vontade de potência aqui é isomorfa ao desejo de virtualização.
A frase da capa nos diz: “a cheirar as flores virtuais e a contar os mortos por
atropelamento da supervia digital”. Os mortos são aqueles que se matam em vida
para viver o ideal ascético proporcionado pela realidade virtual. A carne dos mortos,
o que tem de real, é aquilo que faz o asfalto do caminho que leva a todos para
dentro da realidade virtual, o paraíso do qual os histéricos partidários da experiência
telemática nunca querem sair. O mundo virtual é uma espécie de mundo
inexistente, produto de um emaranhado de fibra ótica e impulsos elétricos. O
mundo virtual está devidamente armazenado em bancos de dados espalhados pelo
mundo. O mundo digital progride no estado da arte de designers, computação e de
efeitos psicológicos feitos para nos determos cada vez mais dentro dessa realidade.
O papel do mundo virtual é proporcionar uma experiência, a experiência
telemática do corpo, um corpo sem corpo que pode realizar tudo o que quiser no
mundo virtual. Lá a pessoa pode ter prazeres que nunca teria na realidade, pode ter
milhares de amigos que nunca irá conhecer na vida real. Sexo sem contato... Redes
de amigos... Pseudônimos... Plataforma Moodle... Wikipedia... Na verdade, a pessoa
pode morrer em vida, desde que continuem vivas as suas experiências do corpo
telemático. A realidade virtual é o software. O nosso corpo, a nossa vida comum, é o
hardware. Curiosamente, o software nega a existência do hardware nesse caso,
matando-o metaforicamente.
Assim como o padre asceta, o tecnocrata digital é o responsável por nos
deter dentro do mundo digital. Existem dois tipos de tecnocratas digitais. Os
visionários que fazem o prospecto daquilo “que podem ganhar” com a realidade
virtual de modo a nos deter cada vez mais dentro dessa realidade em prol de “um
sistema operacional amigável” ou de uma rede social qualquer e os cientistas que
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criam os mecanismos para a sustentação de toda a realidade virtual, são aqueles
que fazem a manutenção da supervia digital. Bill Gates, Steve Jobs, todos vendem
uma ideologia, a tecnotopia: compre o novo Windows, o novo pacote Office, o novo
Mac Book ou o iPhone. Ou compre ou não terá acesso à realidade virtual. Os
tecnocratas detêm a ideologia: a tecnotopia.
Os tecnocratas são os detentores do poder hoje porque hoje tudo é
informação. A informação está armazenada em algum data wirehouse da Sun Micro
Systems, ou em algum Mac Book, ou foi processada no pacote Office ou
manipulada por um banco de dados criado por algum pacote de desenvolvimento
da Embarcadero Technologies, etc. Deter o conhecimento tecnológico para o lucro?
Não. Porque dinheiro é apenas mais um bit num campo de banco de dados.
A supervia digital é como se fosse uma estrada. Tomamos uma estrada
porque estamos interessados em ir para algum lugar, o mesmo acontecendo com
quem entra na supervia digital. O endereço é a realidade virtual que não está em
lugar nenhum, é apenas produto de um circuito elétrico comandado pelo
tecnocrata. Aqueles que entram na supervia digital pagam o pedágio ao tecnocrata,
são atropelados e mortos, da sua carne é feito o asfalto que leva à realidade virtual.
Tomamos o rumo da realidade virtual pela supervia digital e nesse momento,
negamos a nossa existência enquanto seres reais e podemos ser o que quisermos
dentro do mundo digital. Por exemplo, o pedófilo pode ser a criança mais tenra. Lá,
o pedófilo mata a sua realidade de um adulto traumatizado e renasce dentro da
experiência do corpo telemático da criança sem traumas. Tudo devidamente
sustentado pelo desejo de virtualização, pela experiência telemática, pela
tecnotopia.
A tecnotopia vende a idéia de que existe uma grande comunidade virtual
onde todos se comunicam não importa onde estejam. Nessa comunidade virtual,
existem várias possibilidades de interações sociais virtuais. Há comunidades de
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desenvolvimento virtuais, etc. O que acontece aqui é que a pessoa pode ter várias
dessas experiências virtuais, mas pode ser que na realidade da pessoa seja
totalmente antissocial. Portanto, a tecnotopia vende a possibilidade de alguém ser
algo que não condiz com a sua realidade, e, portanto, não muda em nada a sua
realidade. A tecnotopia transforma as pessoas em esquizóides, vivem na borda de
um mundo irreal e de um mundo real que estão a negar a todo momento. E pagam
ao tecnocrata para isso.
A tecnotopia é contraditória. Tudo resulta em poder para o tecnocrata
enquanto que alguém tem uma experiência telemática ilusória. Por trás da
tecnotopia estão os ansiosos pela experiência telemática que não aceitam nenhum
tipo de crítica, ao mesmo tempo em que compram todas as idéias vindas dos
tecnocratas que sustentam a realidade virtual. A idéia é adaptar-se para a realidade
virtual e tornar-se um consumidor ávido dessa realidade. Morre-se numa supervia
digital que não existe, seduzido por uma elite que detém a informação.
Tudo que é real degrada-se perante a tecnotopia. Uma vez dentro das
experiências telemáticas proporcionadas pela realidade virtual, não há mais sentido
em realizar os desejos sexuais mais infantis no mundo real. Tudo está a um clique.
Tudo é infantilizado para sermos pegos pelos desejos mais infantis.
Não há, para a tecnotopia, fronteiras internacionais. A tecnotopia instalou a
economia virtual, o capitalismo a toda parte, o “capitalismo da Nintendo” em que
os mecanismos perversos do capitalismo real são mapeados em sistemas
capitalistas irreais do mundo virtual. Pague com o seu cartão Visa para ter acesso à
determinada informação ou realização do desejo ou não entrará na comunidade.
Tudo roda sobre o software do capitalismo virtual. Uma vez sobre o capitalismo
virtual, nenhum valor cultural é mantido, tudo é recombinado, implementado e
criptografado. Análises mais profundas sobre a economia virtual podem ser
encontradas no livro.
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O objetivo da tecnotopia é seduzir. Esse processo ocorre pelas imagens. As
imagens não possuem um valor artístico nesse caso. Elas apenas são propagandas,
para nos tomar por aspectos emocionais. Cada imagem é um link que nos leva para
dentro da realidade virtual. Qualquer coisa que venha a ser representada é
liquidificada em códigos, em rotinas de programação úteis para nos direcionar ao
caminho do pedágio do tecnocrata.
O livro termina com uma reflexão sobre história e a realidade virtual. A
história é um arquivo de dados virtual onde estão contidos os que foram seduzidos
pela experiência telemática. Nesse caso, a história é uma grande experiência
telemática. O corpo é capaz de ser recombinado através de códigos dentro dessa
história, recortado, copiado e colado. Na realidade, todos estão mortos
(metaforicamente). Porém, na realidade virtual, todos podem estar vivos. Tudo
acontece como se fosse na atualidade.
No arquivo da história virtual, não há tempo, já que o que está acontecendo
na realidade virtual pode ser reprogramado e recombinado infinitas vezes para
acontecer de novo e do modo como se quer que aconteça. Isso porque uma história
virtual nunca existiu, assim como uma realidade virtual nunca existiu. Porém, o
desenvolvimento das tecnologias e o poder sedutor da tecnotopia geram um “fim
da história” expresso numa grande realidade virtual atemporal, reprogramável pelo
tecnocrata.
Claro, isso é apenas um cenário filosófico, mas que nos chama a atenção
para lançarmos um olhar crítico para o que está acontecendo à nossa volta em
relação às barbaridades on-line que reverberam em nosso mundo real. Data Trash é
uma leitura obrigatória para filósofos, comunicadores e educadores ou para
qualquer um que lida com as tecnologias contemporâneas.
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