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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
MESTRADO INTERINSTITUCIONAL - UFSM/UNIJUÍ - MINTER
A TEORIA NORMATIVA DA DEMOCRACIA DE NORBERTO BOBBIO
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
Leandro Andrighetti
Santa Maria, RS, Brasil 2009
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A TEORIA NORMATIVA DA DEMOCRACIA DE NORBERTO
BOBBIO
por
Leandro Andrighetti
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado Interinstitucional - MINTER – UFSM/UNIJUÍ do Programa de Pós-graduação em Filosofia, Área de Concentração em Filosofia Política, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM,RS), como requisito parcial para obtenção do grau
de Mestre em Filosofia.
Orientador: Prof. Dr. Ricardo Bins Di Napoli Co-orientador: Prof. Dr. Cláudio Boeira Garcia
Santa Maria, RS, Brasil
2009
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Universidade Federal de Santa Maria Centro de Ciências Humanas
Programa de Pós-Graduação em Filosofia
A Comissão Examinadora, abaixo assinada, aprova a Dissertação de Mestrado
A TEORIA NORMATIVA DA DEMOCRACIA DE NORBERTO BOBBIO
elaborada por Leandro Andrighetti
como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Filosofia
COMISÃO EXAMINADORA:
Ricardo Bins Di Napoli, Dr. (Presidente/Orientador)
Cláudio Boeira Garcia, Dr. (UNIJUÍ) (Co-orientador)
Jair Krassuski, Dr. (UFSM)
Santa Maria, 05 de agosto de 2009.
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Agradecimento especial aos
familiares pelo apoio, à Mauricéia
Morgado de Oliveira pelo incentivo,
ao Centro de Defesa dos Direitos da
Criança e do Adolescente de Ijuí pelo
aprendizado, aos colegas de curso
pelo companheirismo, ao
professores do Curso de Mestrado
Interinstitucional - MINTER de
filosofia pela transmissão de
saberes, ao orientador desta
dissertação Ricardo Bins Di Napoli e
ao co-orientador Cláudio Boeira
Garcia pela dedicação, atenção,
compreensão e ensino.
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“A liberdade de dissentir necessita
de uma sociedade pluralista, uma
sociedade pluralista permite uma
maior distribuição do poder, uma
maior distribuição do poder abre as
portas para a democratização da
sociedade civil e finalmente a
democratização da sociedade civil
alarga e integra a democracia
política” (BOBBIO, 2004a, p. 76).
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RESUMO Dissertação de Mestrado
Programa de Pós-Graduação em Filosofia Mestrado Interinstitucional – UFSM/UNIJUÍ
A TEORIA NORMATIVA DA DEMOCRACIA DE NORBERTO BOBBIO
AUTOR: LEANDRO ANDRIGHETTI
ORIENTADOR: RICARDO BINS DI NAPOLI CO-ORIENTADOR: CLÁUDIO BOEIRA GARCIA
Data e Local da Defesa: Santa Maria, 05 de agosto de 2009.
A presente dissertação visa elucidar o que é a democracia. É uma forma de governo que estabelece quem governa (um, poucos, muitos) ou é ela, uma forma de governo que determina como se governa (de forma despótica e autocrática ou democrática)? A hipótese é a de que em sociedades cada vez mais complexas a democracia se define a partir de valores e regras fundamentais que estabelecem quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais procedimentos. Esta democracia oferece condições à efetivação de princípios fundamentais como os da igualdade e de liberdade política, considerados tanto na perspectiva dos indivíduos, quanto da sociedade. Tais princípios, por sua vez, são garantidos jurídica e politicamente por um conjunto regras capazes de assegurá-los. A pesquisa tem como objetivo examinar os argumentos de Norberto Bobbio acerca do que é a democracia. Para tal, distingue-se a abordagem da ciência com relação à da filosofia no exame da democracia; examina-se as justificativas do Estado democrático; caracteriza-se a democracia antiga e moderna; e as regras e os procedimentos democráticos. A investigação se dá através de pesquisa bibliográfica das principais obras políticas de Bobbio, tais como: Igualdade e liberdade; Liberalismo e democracia; O Futuro da democracia; A era dos direitos; Teoria geral da política; Qual socialismo? Discussão de uma alternativa e Dicionário de política (co-autoria). Nestas obras Bobbio discute o problema da democracia e destaca que a ciência política aborda a questão da democracia de modo distinto da filosofia política. A primeira considera a democracia como ela é, a segunda considera a democracia como deveria ser. Considera como justificativas principais do Estado democrático a liberdade e igualdade dos indivíduos. Define que o problema central da democracia, nos dias de hoje, é o de como se governa, dito de outro modo, como se exerce o poder? Pois, um governo monárquico pode governar democraticamente, enquanto que um governo democrático pode governar despoticamente. Não é a quantidade de pessoas que governam que define se um regime de governo é democrático ou não, mas o modo como se exerce o poder. Para que o poder seja exercido democraticamente é necessário um conjunto de regras fundamentais, que estabelece, quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais procedimentos. A partir destas conclusões observa-se que a democracia em Bobbio assume um caráter essencialmente ético na medida que postula valores fundamentais como os da liberdade e igualdade política. A garantia desses valores são condições básicas para o desenvolvimento dos indivíduos e da sociedade. Palavras-chave: Bobbio; democracia; liberdade; igualdade
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ABSTRACT Master’s thesis
Post-Graduate Program in Philosophy Interinstitutional Master’s Program – UFSM/UNIJUÍ
THE NORMATIVE THEORY OF DEMOCRACY IN NORBERTO
BOBBIO
AUTHOR: LEANDRO ANDRIGHETTI SUPERVISOR: RICARDO BINS DI NAPOLI
C0=SUPERVISOR: CLÁUDIO BOEIRA GARCIA DATE AND PLACE OF DEFENSE: Santa Maria, August 05th 2009.
This thesis aims at clarifying what democracy is. Is it a form of government
that establishes who rules (one, a few, or many) or is it a form of government that determines how it can be ruled (in a despotic and autocratic way or in a democratic manner)? The hypothesis is that in more complex societies, democracy is defined as the fundamental values and rules that establish who is authorized to make collective decisions following determined procedures. That democracy offers conditions towards the accomplishment of fundamental principles such as equality and political freedom, both from the perspective of individuals as well as from the society. Such principles, in their turn, are judicially and politically guaranteed, by a set of rules capable of ensuring them. The objective of this research is to examine the arguments that Norbert Bobbio holds concerning what democracy is. To do so, the social sciences approach is distinguished from the philosophical approach in the analysis of democracy; the justifications of the democratic State are analysed; and the ancient and modern democracy, as well as the democratic rules and procedures are defined; The investigation is carried out through bibliographical research of the main political works by Bobbio, such as: Equality and liberty; Liberalism and Democracy; The Future of Democracy: a Defense of the Rules of the Game; The Age of Rights; General Theory of Politics; Which Socialism?; Dictionary of Politics (co-authorship). In those works, Bobbio discusses the problem of democracy and highlights that political science approaches the issue of democracy from a different perspective from that of political philosophy. The former considers democracy as it is, and the latter how it should be. It considers as the main justifications of the democratic State, the freedom and equality of individuals. Does it define that the main problem of democracy, nowadays, is how it rules, or in other words, how it exercises power? For, a monarchic government can rule democratically whereas a democratic one can rule despotically. It is not the number of people that rule that defines if a regime is democratic or not, but how it exercises power. For power to be exercised democratically, it is necessary a set of fundamental rules that establish who is authorised to make decisions and with what procedures. From those conclusions, it can be observed that democracy in Bobbio takes an essentially ethical character inasmuch as he presupposes fundamental values such as political equality and freedom. The guarantee of those values is basic conditions for the development of individuals and society. Keywords: Bobbio; democracy; freedom; equality
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SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 9
1 CIÊNCIA POLÍTICA, FILOSOFIA POLÍTICA E DEMOCRACIA ........................... 12
2 A JUSTIFICAÇÃO DO ESTADO DEMOCRÁTICO ............................................... 17 2.1 A LIBERDADE ................................................................................................................................................... 17 2.2 A IGUALDADE .................................................................................................................................................. 23 2.3 A VISIBILIDADE DO PODER ............................................................................................................................... 32 2.4 O INDIVIDUALISMO .......................................................................................................................................... 37 2.5 O PLURALISMO ................................................................................................................................................ 41 3 A DEMOCRACIA ANTIGA E MODERNA .............................................................. 48 3.1 A DEMOCRACIA DIRETA ................................................................................................................................... 48 3.2 A DEMOCRACIA REPRESENTATIVA .................................................................................................................. 52 3.3 OS LIMITES DA DEMOCRACIA REPRESENTATIVA ............................................................................................. 58 3.4 A COMPATIBILIDADE OU INCOMPATIBILIDADE ENTRE DEMOCRACIA E LIBERALISMO ...................................... 64 3.5 A COMPATIBILIDADE OU INCOMPATIBILIDADE ENTRE DEMOCRACIA E SOCIALISMO ........................................ 69 4 REGRAS E PROCEDIMENTOS DEMOCRÁTICOS .............................................. 74 4.1 AS REGRAS DO JOGO DEMOCRÁTICO ............................................................................................................. 74 4.2 A REGRA DA MAIORIA ...................................................................................................................................... 78 4.3 O CONSENSO E O DISSENSO ........................................................................................................................... 82 4.4 O SUFRÁGIO UNIVERSAL ................................................................................................................................. 85 4.5 O VOTO E O PARADOXO DA REPRESENTAÇÃO ................................................................................................ 89 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 94
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................... 99
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INTRODUÇÃO
A presente sequência de idéias esclarece os termos com que o autor expõe o
argumento segundo o qual, a democracia é a forma de governo mais adequada para
efetivar os princípios e valores da liberdade e da igualdade política.
Para Bobbio, usualmente, define-se a democracia como “um conjunto de
regras (primárias ou fundamentais) as quais estabelecem quem está autorizado a
tomar as decisões coletivas e com quais procedimentos” (BOBBIO, 2000a, p. 30).
Tal definição é insuficiente porque a descrição da democracia não pode se limitar
aos aspectos da organização do poder, do acesso a ele e de sua manutenção. A
democracia oferece condições à efetivação dos princípios da igualdade e da
liberdade, considerados tanto na perspectiva dos indivíduos quanto da sociedade.
Tais princípios, por sua vez, são garantidos jurídica e politicamente, por um conjunto
regras, capazes de assegurá-los. Trata-se, pois, para Bobbio, de garantir a liberdade
e a igualdade assim como de estabelecer as regras necessárias e adequadas para
tal.
Trata-se, também, de expor a análise de Bobbio acerca das questões
teóricas e práticas dos regimes democráticos atuais, sobretudo no que tange aos
temas da liberdade, da igualdade, da melhor forma de governo, e das regras e
procedimentos, através dos contrapontos que ele apresenta entre esses regimes e
aqueles configurados pela Grécia antiga e pelos tempos modernos.
Para abordar o tema proposto, exploram-se considerações de caráter
filosófico mais restrito apresentadas por Bobbio, ou seja, aquelas em que enfatizam
as dimensões especulativas e valorativas do seu pensamento acerca do assunto.
O estatuto da democracia em Bobbio ultrapassa a compreensão mecanicista
e metodológica de organização do poder, do acesso a ele e de sua manutenção. A
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democracia vale por si mesma, pois, cria condições à efetivação e garantia jurídica
dos princípios da liberdade e da igualdade individual e política.
A democracia não se restringe aos processos eleitorais, em que os cidadãos
têm o poder de decidir, periodicamente, quem melhor representa seus anseios, e
sim, possibilita que os indivíduos se desenvolvam livremente e igualmente, de forma
a estarem aptos a manifestarem sua opinião, a todo instante, nas coisas que lhe
dizem respeito.
Bobbio observa que a natureza do homem, enquanto indivíduo é ser livre, e
enquanto ser social é estar com os demais indivíduos numa relação de igualdade.
Liberdade e igualdade são valores fundamentais na democracia. Nos regimes de
Estado autocráticos e totalitários há a supressão da liberdade individual e da relação
de igualdade entre os indivíduos. Bobbio vê no Estado democrático a única forma de
governo capaz de por os homens em condições de exercerem a liberdade e a
igualdade a partir do que denominou as “regras do jogo”. Destas decorre a
legitimação do poder democrático, através da ampla participação na escolha dos
representantes, que baseados num conjunto normativo, buscam criar as condições
necessárias para a ampliação da liberdade e da igualdade, fundamentais para o
desenvolvimento dos cidadãos.
O problema central da democracia não é tanto quem governa, ou seja, um,
poucos, ou muitos, mas como governa, de forma despótica e autocrática ou
democrática. Visto que um governo monárquico pode governar democraticamente,
enquanto um governo democrático pode governar despoticamente. Ou seja, a
questão fundamental da democracia, para Bobbio, é como se exerce o poder. Não
se trata de uma abordagem científica deste “como”, mas de uma abordagem
filosófica, isto é, “como” deveria ser exercido o poder.
A pesquisa empreendida é exposta em quatro capítulos. O primeiro destaca a
perspectiva filosófica em que Bobbio abordou a questão da democracia. No segundo
examinamos o que Bobbio denominou justificativas do Estado democrático:
liberdade; igualdade; visibilidade do poder; individualismo; pluralismo. O terceiro
descreve e distingue as características da democracia antiga da democracia
moderna: a primeira característica - democracia direta – efetiva-se sem
intermediários, com decisão nas “mãos do povo”; a segunda - democracia
representativa – efetiva-se com participação limitada, com intermediários ou
representantes e com a decisão nas “mãos” do eleito. Esse capítulo indaga, ainda,
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sobre limites da democracia direta na era moderna e sobre a compatibilidade e
incompatibilidade entre democracia liberalismo e socialismo. O quarto capítulo
identifica as regras e os procedimentos democráticos: as regras do jogo (condições
mínimas para funcionamento do regime democrático); a regra da maioria (a principal
regra do regime democrático); o consenso e o dissenso (princípios inevitáveis de um
regime democrático); o sufrágio universal (momento impar da luta pelo direito de
participação dos cidadãos nos assuntos que lhe dizem respeito); o voto e o
paradoxo da representação (entre a representação política e a representação dos
interesses).
O legado de Bobbio acerca de nosso tema é examinado nas seguintes obras:
Igualdade e liberdade; Liberalismo e democracia; O Futuro da democracia; A era dos
direitos; Teoria geral da política; Qual socialismo? Discussão de uma alternativa;
Dicionário de política (co-autoria).
1 CIÊNCIA POLÍTICA, FILOSOFIA POLÍTICA E DEMOCRACIA
Não desfrutando até agora de um estatuto específico, a filosofia política deixa inevitavelmente aos seus cultores uma certa liberdade. Se puder expressar a minha preferência, contudo sem qualquer intenção de apresentá-la como melhor que as outras, eu diria que hoje a função mais útil da filosofia política é analisar os conceitos políticos fundamentais, a começar pelo próprio conceito de política (BOBBIO, 2000c, p. 99).
A abordagem de Bobbio no tema da democracia se perfaz sob a convicção de
que a filosofia política e a ciência política têm propósitos diferentes. Esclareceremos,
nesse capítulo, suas considerações sobre o que distingue e que aproxima a filosofia
e a ciência política, assim como sua abordagem filosófica acerca da democracia.
Tais percursos serão afinados para apresentar o tema dessa dissertação, nos
termos em que foi enunciado na introdução.
A Ciência Política observa Bobbio, tem como objetivo o estudo de certos
fenômenos ou comportamentos políticos, examinados por métodos específicos das
ciências que se ocupam com fatos. Tem uma função descritiva e explicativa e, no
essencial, trata da política1 como ela é. “A ciência política estuda os fenômenos
políticos com a metodologia das ciências empíricas e com o uso de técnicas de
investigação da ciência do comportamento” (SANTILLÁN, 2003, p. 57). Ou seja, a
ciência política investiga como se apresenta a democracia de fato.
A filosofia política, por sua vez, aborda a democracia sob uma forma ideal,
isto é, não do que é, mas do que deve ser. Enquanto tal ela pode ser caracterizada
1 Por política entende-se dois significados: clássico e moderno. Derivado do adjetivo originado de polis (politikós), que significa tudo o que se refere à cidade e, conseqüentemente, o que é urbano, civil, público, e até mesmo sociável e social, o termo Política, que deve ser considerada como o primeiro tratado sobre a natureza, funções e divisão do Estado, e sobre as várias formas de Governo, com a significação mais comum de arte ou ciência do Governo, isto é de reflexão, não importa se com intenções meramente descritivas ou também normativas, dois aspectos dificilmente discrimináveis, sobre as coisas da cidade. Ocorreu assim desde a origem uma transposição de significado, do conjunto das coisas qualificadas de um certo modo pelo adjetivo “político”, para a forma de saber mais ou menos organizado sobre esse conjunto de coisas: uma transposição não diversa daquela que deu origem a termos como física, estética, ética e, por último, cibernética. O termo política foi usado durante séculos para designar principalmente obras dedicadas ao estudo daquela esfera de atividades humanas que se refere de algum modo às coisas do Estado... Na época moderna, o termo perdeu seu significado original, substituído pouco a pouco por outras expressões como “ciência do Estado”, “doutrina do Estado”, “ciência política”, “filosofia política”, etc., passando a ser comumente usado para indicar a atividade ou conjunto de atividades que, de alguma maneira, têm como termo de referência a pólis, ou seja, o Estado (BOBBIO, 2004b, p. 954).
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por quatro estilos de consideração. Um primeiro teoriza a “ótima república” ou a
construção de um modelo ideal de Estado fundado em postulados éticos. Este caso
conforme Bobbio está presente na Obra “Utopia” de Thomas More. Pode ser
ilustrado com a pergunta: o que posso esperar? More propõe um Estado perfeito,
livre da desgraça da corrupção e das injustiças do seu tempo. Outro distingue entre
política e demais saberes. Determinação do conceito geral de “Política”, como
atividade autônoma, modo ou forma do espírito. Exemplifica-se na Obra “O Príncipe”
de Maquiavel e pode ser ilustrado com a pergunta: o que posso saber? Maquiavel
rompe com a teoria tradicional da melhor forma de governo e instaura uma nova
perspectiva no estudo das teorias políticas. Segundo o autor a atividade específica
da política é distingui-la da moral e da religião. Além disso, sua teoria apresenta
técnicas para conquista e manutenção do poder absoluto.
Um terceiro se exerce quando se indaga por um fundamento último do poder
que permite responder a pergunta: a quem devo obedecer? E por quê? Trata-se da
natureza e função do dever de obediência política. Busca-se determinar um ou mais
critérios de legitimação do poder. Tal é o caso do “Leviatã” de Hobbes. A pergunta
que aqui cabe é: como devo me comportar? O autor procura, aí, oferecer as razões
pelas quais o Estado deve existir. Um quarto corresponde ao discurso crítico voltado
para as condições de verdade sobre as pretensões de objetividade da Ciência
Política.
Tais estilos, para Bobbio, apresentam peculiaridades que os tornam “mais ou
menos” aceitos, contudo todos apresentam problemas. Em Hobbes, por exemplo,
apesar de o Estado ter boas justificativas para sua existência, não significa que o
mesmo, possa estabelecer, por si mesmo, uma ordem justa: não depende da
natureza deste Estado o dever da obediência do homem? Um Estado fundado
unicamente no aparato coercitivo elimina o dever e consequentemente a pergunta
sobre a existência de uma melhor forma de Estado. “O melhor Estado é
paradoxalmente o não-Estado” (BOBBIO, 2000c, p. 72). Da mesma forma, que a
pergunta pela natureza do Estado cabe a discussão acerca da natureza e
atribuições da filosofia política.
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A filosofia política não se submete às condições inerentes à ciência política2
enquanto busca de investigação da natureza política não é passível de verificação
empírica, visto que pretende determinar a essência da política e esta supõe que
esteja para além dos fenômenos ou das aparências próprias da análise e
interpretação científica, orienta-se por princípios e valores e apresenta um caráter
prescritivo: “é valorativa e não pretende deixar de sê-lo” (BOBBIO, 2000c, p. 75).
O saber filosófico pressupõe a afirmação de princípios valorativos que tornam
a vida dos homens propensa a um estado de harmonia. A evidência destes
pressupostos pode ser constatada, por exemplo, na opressão de um determinado
Estado sobre os indivíduos. Enquanto a ciência apenas descreve como se dá a
opressão, a filosofia política faz a crítica à opressão e busca fundamentar o princípio
ético da não-opressão com base no valor da liberdade.
A virtude do filósofo se dá pela apropriação valorativa do objeto do qual se
ocupa: “a não-valoração é a virtude do cientista, assim como a imparcialidade é a
virtude do juiz: não passaria pela cabeça de ninguém sugerir a um juiz que, sendo
difícil ser imparcial, tanto vale não o ser” (BOBBIO, 2000c, p. 76).
A noção da não-valoração da ciência merece particular atenção, visto que no
“cenário” moderno, representado pela “revolução científica”, há teses que afirmam
dois argumentos contrários a possibilidade da ciência não-valorativa, as quais
Bobbio define como “fracas”. Trata-se de que a investigação científica assume uma
posição de dissimulação e insinuação. A primeira posição está relacionada à recusa
pela responsabilidade da escolha ou do compromisso de um determinado cientista.
A segunda posição é atribuída ao fato de que o cientista ao investigar, analisar e
apresentar sua teoria pode prescindir do valor da verdade.
Todavia, Bobbio considera que as teses contrárias a não-valoração do
cientista se tornam fracas quando se entende que:
um estudioso que queira estudar cientificamente um fenômeno social: ele faz uso de todas as técnicas de pesquisa que lhe permitam tanto quanto
2 a) submeter as próprias conclusões à verificação empírica possível com os dados à disposição (...); b) valer-se de operações mentais, tais como operações de hipóteses, construções de teorias, enunciações de leis tendenciais que permitam perseguir o objetivo específico de toda pesquisa científica (...); c) não ter a pretensão de emitir qualquer juízo de valor sobre as coisas das quais se ocupa deduzindo em seguida prescrições imediatamente úteis à práxis (...) Pode-se ainda resumir estas condições da seguinte forma: a) o princípio da verificação como critério de validação; b) a explicação como objeto; c) a não-valoração como pressuposto ético (BOBBIO, 2000c, p. 74).
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possível eliminar aquele universo de aproximações no qual se insinuam mais facilmente as avaliações pessoais. Quase poderíamos definir o conjunto de regras às quais o pesquisador se submete para fazer com que sua própria pesquisa seja aceita como uma pesquisa científica – e não um compêndio de opiniões pessoais mais ou menos geniais (BOBBIO, 2000c, p. 77).
Bobbio ao apresentar a noção de política não assume uma posição pessoal
sobre o tema, mas apenas descreve as características gerais deste saber no período
clássico e moderno. Utilizou do mesmo método descritivo, por ocasião do Congresso
Tradizione e Novità della Filosofia della Política, quando foi um dos conferencistas,
para delimitar as fronteiras das doutrinas políticas de caráter filosófico, histórico,
sociológico e do direito, além de traçar um “mapa da filosofia política” (sentido
metafórico), estabelecendo quatro áreas distintas deste saber. Para seguir a
metáfora, apontou quatro regiões da filosofia política: “descrição do ótimo Estado ou
da melhor forma de governo, justificação (ou injustificação do dever de obediência
política [obbligo político],...definição da categoria da política e teoria da ciência
política” (BOBBIO, 2000c, p, 79). A descrição das regiões no mapa da filosofia
política foi situado a partir de algumas definições, a partir da concepção de
diferentes autores:
a) Paul Bastid – “consiste na investigação dos primeiros elementos ou dos princípios fundamentais da organização social (...); b) Raymond Polin - “tornar inteligível a realidade política”, explicava que ela era, no universo do conhecimento, insubstituível, e desempenhava uma função “crítica e normativa”, a maior delas sendo a de levar em consideração e favorecer “um devir de liberdade”(...); c) Renato Treves – constatava que duas era as acepções predominantes da expressão, sendo entendida, de um lado, como descrição do ótimo Estado e, de outro, como investigação sobre a natureza e os objetivos da atividade política, que devia ser distinguida das outras atividades do espírito (...) Treves postulou a preferência por um terceiro significado de filosofia política: “deveria ser considerada como “metodologia da ciência política, como reflexão sobre a linguagem, os limites e os fins da ciência”” (apud BOBBIO, 1996, p. 88).
Treves e Bobbio se aproximam na compreensão do significado da filosofia
política. Bobbio vai além na medida que considera uma outra acepção: a da filosofia
política como busca da justificação do dever da obediência política. Estas acepções
ilustram brevemente o debate em torno da compreensão dos objetivos da filosofia
política.
Bobbio que teve grande influência nesse debate expressa que “se um curso
de filosofia política tem uma razão de ser, diferente dos cursos de história das
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doutrinas políticas e de ciência da política, é o estudo e a análise dos chamados
temas recorrentes” (BOBBIO, 2000c, p. 94). Entende por temas recorrentes aqueles
que perpassam a história do pensamento político, isto é, dos gregos aos nossos
dias. Para análise desses temas recorrentes, segundo Bobbio, o método analítico
parece melhor aproximar-se da filosofia política, pois busca a elucidação de
conceitos dos chamados temas recorrentes na história do pensamento político. Essa
tarefa é primordial à medida que evita erros reprováveis como “misturar questões
filosóficas com os problemas sociais políticos e religiosos” (BOBBIO, 2000c, p. 98).
Uma vez expostas as considerações de Norberto Bobbio acerca dos modos
distintos sob os quais a filosofia política e a ciência política abordam a política, vida e
as instituições sociais, trata-se no segundo capítulo de apresentar as considerações
filosóficas de Bobbio acerca dos temas relacionados aos princípios, normas e
valores sob os quais devem se assentar a efetivação e justificação das sociedades
democráticas contemporâneas.
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2 A JUSTIFICAÇÃO DO ESTADO DEMOCRÁTICO
São cinco os principais princípios/ valores, requisitos do Estado democrático:
A liberdade, a igualdade, a visibilidade do poder, o individualismo e o pluralismo.
Com o exame das condições distintivas do Estado democrático, Bobbio pretende
justificar o agir humano a partir de valores primordiais de sua existência. Embora não
tenha se limitado a esses elementos do Estado democrático os quais serão tratados
nesse capítulo, ocupou-se, também, da participação dos cidadãos na república, do
poder de decidir sobre as coisas que lhe dizem respeito, do controle público sobre o
Estado, temas, que aqui serão abordados indiretamente.
2.1 A liberdade
Historicamente as definições em torno deste conceito foram diversas, sempre
assumindo perspectivas específicas, como: liberdade religiosa, liberdade de opinião,
liberdade de propriedade, liberdade econômica, liberdade política, liberdade de
imprensa, etc. Bobbio, no essencial, aborda a questão da liberdade política sob duas
perspectivas: a liberdade liberal (ação – licitude – liberdade negativa) e a liberdade
democrática (vontade - autonomia – liberdade positiva).
O autor entende a liberdade liberal como faculdade de cumprir ou não cumprir
certas ações, isto é, com ausência de quaisquer impedimentos externos a si mesmo.
Para ser mais preciso optamos pela definição do autor:
Quando falo de liberdade segundo a doutrina liberal, uso este termo com a intenção de indicar um estado de não-impedimento, da mesma forma que, na linguagem comum, dizemos que é “livre” o homem que não está na prisão, a água que corre sem barreiras, a entrada em um museu nos feriados, o passeio no jardim público. “Liberdade recobre a mesma extensão do termo “licitude” ou esfera daquilo que não sendo nem obrigado nem proibido, é permitido. Como tal, opõe-se a impedimento. Em palavras simples, poderíamos dizer que o que caracteriza a doutrina liberal do Estado é a exigência por uma diminuição da esfera das permissões: os limites dos poderes do Estado são demarcados pela esfera, mais ou menos ampla segundo os autores, da licitude (BOBBIO, 2000c, p. 279). .
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Por liberdade democrática entende o poder do homem de dar as leis a si
mesmo, e obedecer-lhes de modo espontâneo.
O mesmo termo “liberdade” na doutrina democrática tem um outro sentido (que é próprio da linguagem técnica da filosofia): significa “autonomia”, ou seja, o poder de estabelecer normas a si próprios e de não obedecer as normas além daquelas estabelecidas para si próprios. Como tal, opõe-se a coerção. Por isso se diz “livre” o homem não conformista, que raciocina com a própria cabeça, é imparcial, não cede a pressões, adulações, promessas de cargos etc. (BOBBIO, 2000c, p. 279).
A liberdade da doutrina liberal vem acompanhada da ação livre, sem
impedimentos, portanto, lícita. A liberdade, neste sentido, não é determinada por leis
proibitivas ou imperativas, isto é, “obrigado por quem detém o poder coativo a fazer
aquilo que não deseja ou não está impedido de fazer o que deseja” (BOBBIO,
2000b, p. 20). Lei alguma pode se opor ao princípio da liberdade de ação. A
liberdade democrática vem acompanhada da vontade ou do querer como
autodeterminação. Esta liberdade procede da ação regulada segundo o princípio da
“autonomia”. Ambos os significados são legítimos e indicam estados desejáveis do
homem. “O problema em torno da melhor liberdade se reduziria a esta indagação:
qual dos dois é mais desejável, o estado do não-impedimento ou o estado da lei
espontaneamente aceita?” (BOBBIO, 2000c, p. 280). Ou ainda, sendo tais
significados legítimos e desejáveis que liberdade é politicamente a melhor, isto é,
mais apta a fundar a ótima república?
Segundo Bobbio, duas são as máximas em disputa:
a) O estado deve governar o menos possível, porque a verdadeira liberdade consiste em não ser assoberbado por leis em demasia; b) Os membros de um Estado devem governar a si próprios, porque a verdadeira liberdade consiste em não depender dos outros, mas apenas de si próprios, na regulamentação da própria conduta (BOBBIO, 2000c, p. 281).
Quando referidas ao Estado absoluto, cujo poder é arbitrário e sem limites,
em ambos os casos, as máximas se tornam contrapostas, pois a liberdade de ação
ou a liberdade de querer estão acima do poder despótico.
A doutrina liberal do Estado tem como característica a constante busca pelo
desenvolvimento de técnicas capazes de restringir o poder do Estado. Para Bobbio,
essa limitação do poder pode ocorrer de duas formas: uma material e uma formal.
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Uma limitação material consiste em subtrair aos imperativos positivos e negativos do soberano uma esfera de comportamentos humanos que são reconhecidos livres por natureza (a chamada esfera da licitude); e a limitação formal, consiste em colocar todos os órgãos do poder Estatal abaixo das leis gerais do mesmo Estado (BOBBIO, 2000c, p. 276).
Estas duas formas de limitação do poder consistem, no primeiro caso, em
garantir os direitos individuais, por parte dos poderes públicos, e no segundo caso, o
controle dos poderes públicos, por parte dos indivíduos.
Resumidamente podemos dizer que a proclamação dos direitos e a divisão dos poderes são os dois institutos fundamentais do Estado Liberal entendido como Estado de direito, ou seja, como Estado cuja a atividade é, em duplo sentido, isto é, materialmente e formalmente, limitada (BOBBIO, 2000c, p. 276).
A doutrina do Estado liberal, como limitação dos poderes se afirmou
historicamente, através da luta da classe burguesa contra o Estado absoluto de
direito divino, representado pelo Rei soberano ou grupo muito restrito. Todavia, há
uma tendência a se deturpar esta concepção, visto que, a conquista do poder pela
burguesia, aliada à classe feudal, serviu apenas para ascender ao poder de uma
classe chamada burguesa (elitizada). Esta crítica procede das teorias socialistas.
Bobbio faz duas observações referentes à crítica:
a) a doutrina liberal, enquanto teoria do Estado limitado colocava de modo abstrato, limites não apenas à monarquia absolutista, mas a qualquer outra forma de governo, e portanto ao próprio governo da burguesia (a qual conhece muito bem o seu Estado absolutista, que é o Estado fascista); b) enquanto doutrina do estado representativo, estabelecia condições que permitiriam que novos grupos sociais, prontos a se tornarem mais representativos do que a burguesia, chegassem ao poder em seu lugar (BOBBIO, 2000c, p. 277).
Estas observações são fundamentais, pois, o Estado liberal da limitação dos
poderes combate o Estado absoluto das arbitrariedades, mas apresenta uma outra
característica que é limitar o poder abusivo de qualquer classe ou grupo
representativo que esteja no governo, e alternar os mesmos à medida que se tornam
mais representativos às garantias de liberdade individual dos indivíduos. Assim
temos: um Estado de direito, garantias individuais, poder do Estado limitado e
convivência social mais civilizada e menos selvagem.
O princípio da liberdade de ação que num dado momento histórico sofreu
duras críticas por servir à classe burguesa, passa a ser defendido também pela
20
classe proletária, menos favorecida, contra os abusos de poder da classe burguesa.
Ou seja, os ideais de liberdade, proclamados pela doutrina liberal, não pereceram, e
isso não aconteceu porque até o momento não foi possível essa superação por
aqueles que a condenavam.
Todavia, a crítica é procedente, quando se trata da liberdade democrática,
como princípio de autonomia. A liberdade democrática é limitada e até o momento,
apenas hipoteticamente realizável. Hoje não mais podemos prescindir de um
sistema representativo, devido às complexas sociedades industriais, o que significa
limitar o ideal de participação direta, sendo assim, “aqueles que tomam as decisões
mais significativas para o direcionamento político não são todos os cidadãos, mas
uma exígua representação deles; em segundo lugar as decisões dessa exígua
representação são tomadas pela maioria” (BOBBIO, 2000c, p. 282).
Ora, é possível falar de autonomia num sistema representativo? Imagina-se
que os representados numa determinada situação tivessem o poder de decidir algo
de interesse coletivo: a decisão destes seria a mesma dos representantes? O que
dizer das tomadas de decisão pela maioria, quando a vontade autônoma das
minorias é obrigada a acatar a decisão dos muitos?
Pois, se a verdade da doutrina liberal é combater o Estado absoluto com a
limitação dos poderes, é na mesma medida, a verdade de que o poder da maioria
também necessita de limites. “Portanto as razões que subsistiam para a limitação do
poder do príncipe subsistem ainda hoje para a limitação do poder da maioria, que
continua sendo um poder distinto do poder de todos (irrealizável)” (BOBBIO, 2000c,
p. 282).
Outro aspecto da liberdade como autonomia reside no fato de que a liberdade
como não-impedimento é condição para uma vontade autônoma. Ou seja, “uma
situação geral de ampla licitude é condição necessária para a formação de uma
vontade autônoma” (BOBBIO, 2000c, p. 282). Dito desta forma, aquela tendência,
nos dias de hoje, de expressar a preferência pela liberdade democrática (autonomia)
em relação à liberdade como não-impedimento (licitude), não se justifica, pois,
somente quando garantidos alguns direitos fundamentais de liberdade, como, por
exemplo, a liberdade de pensamento, a liberdade da palavra, o uso público da
razão, dá-se início a construção de uma liberdade autônoma. Com a palavra os
indivíduos expressam os desejos dos cidadãos. “Para que os desejos dos cidadãos
21
sejam conhecidos, é necessário que o maior número possível deles possa se
expressar livremente (isto é, sem impedimentos externos)” (BOBBIO, 2000c, p. 282).
A liberdade de ação é um princípio, que, através da opinião pública,
determina a efetividade de um regime democrático. Quando os indivíduos estiverem
impossibilitados, por fatores externos, a exprimir suas próprias convicções não há
um regime efetivamente democrático. Portanto, o nexo irrevogável entre a liberdade
como não-impedimento e a liberdade como autonomia é o que constitui a condição
para a verdadeira democracia.
A doutrina liberal do Estado, tendo surgido como reação ao Estado absolutista
dos poucos, sustenta a limitação dos poderes do Estado através da separação
destes poderes. Mas os reacionários entendem que “ampliando o poder dos poucos
aos muitos, dos muitos a todos, torna supérflua qualquer limitação, porque se é
facilmente pensável o abuso do poder de poucos para o prejuízo dos muitos, é
impensável o abuso de cada um em relação a si próprio” (BOBBIO, 2000c, p. 285).
Conforme Bobbio, historicamente predominaram duas doutrinas distintas
sobre a separação dos poderes: - a primeira, uma teoria das formas de governo, que
postula o equilíbrio dos poderes através da composição de um governo com a
participação do rei, os aristocratas, e o povo, tradicionalmente conhecido como
governo misto. Esta teoria defendia a impossibilidade de governar para a coisa
pública através do governo exclusivo de uma classe, e, portanto, a separação dos
poderes em classes é uma forma superior em relação a qualquer uma delas (teoria
clássica); - a segunda, uma teoria da organização estatal, que postula a organização
do poder através da delimitação de funções e atribuições não mais por classes, mas
por órgãos distintos. Desta forma, não são as diferentes classes (monarquia,
aristocracia, democracia) que cumprem o papel de separar o poder, mas as funções
(legislativa, executiva, judiciária), (teoria moderna) (BOBBIO, 2000c, p. 286).
Nessa teoria, cada função corresponde a um conjunto de aparatos e
instrumentos jurídicos que constituem o chamado Estado de direito. São eles
responsáveis por garantir as liberdades fundamentais dos indivíduos através do
cumprimento dos princípios da legalidade e imparcialidade que são valores
irrevogáveis deste Estado. O princípio da legalidade remete à dependência do poder
executivo e do poder judiciário em relação ao poder legislativo ao qual tem a função
primordial de estabelecer normas gerais, através de um procedimento formalmente
rigoroso. O princípio da imparcialidade que trata de distinguir os órgãos a fim de que
22
o judiciário tenha independência em relação aos órgãos legislativo e executivo a fim
de evitar abusos derivados de juízos arbitrários e parciais na relação governantes e
governados.
Segundo Bobbio, a separação dos poderes não é algo aceitável para os
críticos do Estado burguês como Karl Marx. Segundo a teoria marxista do Estado a
divisão dos poderes nada mais é que a perpetuação de um modelo classista. A
relação entre liberdade e Estado pelo viés desta teoria se dá a partir da extinção do
Estado burguês. Para Bobbio o significado de “extinção do Estado” na teoria de
marxista é:
a eliminação gradual da coação, considerada com razão o elemento característico daqueles aparatos de execução de regras gerais e individuais nos quais consiste o Estado. E a coação estaria, como é sabido, destinada a desaparecer com o aplainar-se dos conflitos de classe, para as quais foi instituída (BOBBIO, 2000c, p. 293).
O que caracteriza fundamentalmente a extinção do Estado coercitivo é a
eliminação do Estado de direito, caracterizado pelo aparato formal, instrumental e
burocrático da divisão de poderes, por outro lado, a extinção do Estado liberal
clássico, dá-se pelo impedimento, de forma a ampliar a liberdade dos indivíduos. No
primeiro caso, temos a extinção do Estado através de uma sociedade orgânica, em
que cada indivíduo cumpre sua função social com relação ao seu próprio dever, no
segundo caso, a extinção do Estado através de uma sociedade atomista onde cada
um exerce seus próprios direitos.
Bobbio postula que tanto o Estado da não-coereção como o Estado do não-
impedimento são necessários, e se tiver que exprimir qual seria o Estado perfeito,
não diria ser o Estado da ausência de coerção. “Ao meu ver, parece mais razoável
dizer que seja o Estado no qual o máximo de não-coerção pode ser conciliado com o
máximo de não-impedimento” (BOBBIO, 2000c, p. 297).
Portanto, Bobbio trata de afirmar a liberdade como um valor fundamental na
vida do homem e assim sugere: “cada um de nós dedique a sua própria obra a
defender a liberdade onde estiver ameaçada e onde nos toca viver” (BOBBIO,
2000c, p. 297).
23
2.2 A igualdade
A igualdade para Bobbio, do mesmo modo que a liberdade, é um valor
distintivo da democracia. Por se tratar de um princípio, é abstrata. O fato de
prescindir de um conteúdo específico possibilitou que as mais diversas ideologias
políticas se apropriassem de sua generalidade, a fim de alcançar seus objetivos,
nem sempre “justos”.
O problema da relação entre igualdade e justiça surge a partir dos diferentes
modos e formas em que a igualdade se apresenta. “A questão é saber se existem
modos e formas de igualdade que permitam distinguir uma doutrina igualitária de
uma que não é, e quais são esses modos e essas formas” (BOBBIO, 2000c, p. 298).
Tal questão remete às seguintes especificações: igualdade entre quem? Igualdade
com relação a que coisas?
Bobbio define quatro formas de discursos ou práticas possíveis numa
sociedade igualitária: - Igualdade de alguns em alguma coisa; - Igualdade de alguns
em tudo; - Igualdade de todos em alguma coisa ; - Igualdade de todos em tudo. As
três primeiras nada dizem de uma doutrina igualitária. A primeira não é significativa,
pois qualquer norma geral pode ser aplicada a uma categoria de destinatários em
que estes, sejam iguais em alguma coisa. A segunda se refere a uma sociedade
igualitária parcial, a qual Bobbio faz analogia àquela encontrada na República de
Platão, isto é, “onde um número relevante de princípios, que geralmente
caracterizam as doutrinas igualitárias valem exclusivamente para uma única classe
de membros da república, para a classe de guerreiros” (BOBBIO, 2000c, p. 299). A
terceira nada tem a ver com uma sociedade igualitária, pois que todos podem gozar
juridicamente de certas liberdades, não significa em absoluto que se produza uma
sociedade igualitária. Esta concepção pode ser identificada nas constituições
liberais. A quarta remete à doutrina da igualdade de todos em tudo é a mais
relevante. Que todos os membros de uma determinada sociedade sejam iguais em
tudo é desejável, mas que todos efetivamente assim possam ser é um ideal-limite.
Uma doutrina igualitária pode ser definida como aquela que exige a igualdade do
maior número de indivíduos para o maior número de bens.
24
O que de fato torna o conceito de igualdade valorativo são suas
especificações, ou seja, as respostas que damos às perguntas: igualdade entre
quem? Igualdade em quê?
A dificuldade de estabelecer esse significado descritivo reside sobretudo em sua indeterminação, pelo que dizer que dois entes são iguais sem nenhuma outra determinação nada significa na linguagem política; é preciso que se especifique com que entes estamos tratando e com relação a que são iguais (BOBBIO, 1996, p. 11).
O que torna o conceito de igualdade um valor na linguagem política é
precisamente a relação que se estabelece entre os entes. Se por um lado a
liberdade é um valor para os indivíduos, compreendidos isoladamente, a igualdade é
um valor para os indivíduos compreendidos na relação de entes numa sociedade
orgânica. “Diferentemente do conceito e do valor da liberdade, o conceito e o valor
da igualdade pressupõe para sua aplicação, a presença de uma pluralidade de entes
cabendo estabelecer que tipo de relação existe entre eles” (BOBBIO, 1996, p. 13).
Desta forma, o que caracteriza a liberdade é a qualidade do ente, isto é,
aquelas propriedades da pessoa que procedem da vontade ou da ação. A igualdade
tem como característica o fato de ser simplesmente uma relação formal, sendo
possível preencher com os mais diversos conteúdos. A igualdade é uma relação que
tem por princípio o tratamento igual entre os iguais e desigual entre os desiguais. É a
especificação dos conteúdos que tornam uma relação de igualdade valorativa, de
modo mais desejável ou menos desejável numa doutrina igualitária. O fim da
doutrina igualitária não é a igualdade, mas a justiça entre os entes. A igualdade é
uma meta humana desejável na medida em que é considerada justa.
Segundo Bobbio a compreensão clássica de justiça foi teorizada por
Aristóteles. Postula dois significados de justiça, isto é, a justiça como legalidade e a
justiça como igualdade. No caso da justiça como legalidade, justa é ação conforme a
lei, independentemente de serem leis positivas ou naturais. As leis são superiores e
análogas às leis divinas, justas em sua natureza. Justo é o homem que age
habitualmente conforme a lei. No caso da justiça como igualdade, justa é a lei, ou
seja, que institui ou respeita uma relação de igualdade. Bobbio considera insuficiente
agir de acordo com a lei é necessária uma relação de equidade.
Não é exata a opinião comum segundo a qual é possível distinguir os dois significados de justiça referindo o primeiro sobretudo à ação e o segundo sobretudo à lei, pelo que uma ação seria justa quando conforme a uma lei e
25
uma lei seria justa quando conforme ao princípio de igualdade: tanto na linguagem comum como na técnica, costuma-se dizer – sem que isto provoque a menor confusão – que um homem é justo não só porque observa a lei, mas também porque é equânime, assim como, por outro lado, que uma lei é justa não só porque é igualitária, mas também porque é conforme uma lei superior (BOBBIO, 1996, p. 14).
Ambas as ideias de justiça: legalidade (ação) e igualdade (lei) remete ao
princípio de ordem social, isto é, não do ponto de vista das partes, mas da sua
totalidade. Uma sociedade civilizada, ordenada e harmônica é aquela que produz
leis justas e as respeita. Respeita-as, por que são superiores as partes. A harmonia
da sociedade necessita: a) atribuir “a cada um o lhe cabe” b) que o “equilíbrio
alcançado seja mantido por normas universalmente respeitas” (BOBBIO, 1996, p.
15). O respeito às normas é condição para uma sociedade harmônica e justa. Por
justa se entende aquela relação de igualdade ideal que considera as partes
relacionadas a um todo.
Assim, a instauração de uma certa igualdade entre as partes e o
respeito da legalidade são as duas condições para a instituição e conservação da ordem ou da harmonia do todo, que é – para quem se coloca do ponto de vista da totalidade e não das partes – o sumo bem (BOBBIO, 1996, p. 15)
Observamos que os conceitos de igualdade e justiça possuem uma relação
estreita a ponto de serem consideradas univocamente. Ocorre que os dois valores
são diferentes na vida civil. Afirma Bobbio: “a expressão mais correta é liberdade e
justiça e não liberdade e igualdade, já que a igualdade não é por si mesma um valor”
(BOBBIO, 1996, p. 16). Dito dessa forma, a liberdade é o bem individual por
excelência, a justiça o bem social por excelência e a igualdade em si não é um valor,
mas condição para que se estabeleça a justiça, isto é, o ordenamento, harmonia e
equilíbrio das partes.
A justiça é um ideal, a igualdade um fato. A justiça pressupõe uma relação, a
igualdade não. “Não é em si mesmo nem justo nem injusto que duas bolas de bilhar
sejam perfeitamente iguais entre si” (BOBBIO, 1996, p. 16).
Bobbio distingue duas espécies de justiça: justiça atributiva e retributiva.
Considera politicamente relevante a esfera de aplicação da justiça atributiva.
Particularmente sobre a noção de justiça, os conceitos são etimologicamente
diferentes dos que remontam a tradição aristotélica, no entanto, o conteúdo é
análogo.
26
As duas espécies de justiças foram identificadas por Bobbio, como “situações
de justiça”. Assim definiu as espécies de justiça: Justiça retributiva é “aquela na qual
estamos diante de uma ação de dar (ou fazer), da qual, se deva estabelecer a
correspondência anterior com um ter ou posterior com um receber, de onde resulta a
seqüência ter-dar-receber-ter” (BOBBIO, 1996, p. 16).
A justiça retributiva diz respeito à uma situação relacional bilateral e recíproca
que se estabelece através de uma equivalência de coisas que num sistema social se
caracteriza como relações de troca.
Justiça atributiva é “aquela na qual nos encontramos diante do problema de
atribuir vantagens ou desvantagens, benefícios ou ônus, direitos ou deveres (em
termos jurídicos), a uma pluralidade de indivíduos pertencentes a uma determinada
categoria” (BOBBIO, 1996, p. 17).
A justiça atributiva diz respeito à uma situação relacional multidirecional e
unidirecional, que se estabelece através de uma equiparação de pessoas, que num
sistema social se caracteriza como relações de convivência. Esta espécie de justiça
é exigida numa infinidade de situações, como, por exemplo, na relação de cônjuges
- mulher e marido, na relação de trabalhadores - operários e empregados, etc. Por
outro lado, a justiça retributiva se apresenta em situações menos complexas e são
tipicamente definidas em quatro tipos: “relações entre mercadorias e preço, relação
entre pagamento e trabalho, relação entre dano e indenização, relação entre crime e
castigo” (BOBBIO, 1996, p. 17).
Definido-se as “situações de justiça” a pergunta é: o que torna uma igualdade
justa ou uma igualdade injusta? A diferença entre uma igualdade justa de uma
igualdade injusta diz respeito aos critérios da justiça.
Entende-se por critérios da justiça aqueles valores que permitem
“estabelecer, situação por situação, em que duas coisas ou duas pessoas devem ser
iguais a fim de que a igualdade entre elas possa ser considerada justa” (BOBBIO,
1996, p. 18). Muitos são os critérios de justiça: a cada um segundo o mérito,
segundo a capacidade, segundo o talento, segundo o esforço, segundo o trabalho,
segundo o resultado, segundo a necessidade, segundo o posto, etc. Os critérios de
justiça não possuem valor absoluto, nem por isso são escolhas aleatórias. A
aplicação de um critério de justiça, ao invés de outro é dada a partir de uma
determinada situação objetiva. Em muitos casos, partem de um situação ideológica
inconsciente sobre uma certa noção de ordem social. Por exemplo: é mais justa a
27
sociedade onde a cada um é dado segundo o mérito, ou aquela onde a cada um é
dado segundo a necessidade?
Exposto o que torna uma igualdade justa de uma igualdade injusta, é
necessário acrescentar outro aspecto sobre a igualdade: a regra de justiça. “Por
regra de justiça, entende-se a regra segundo a qual se devem tratar os iguais de
modo igual e os desiguais de modo desigual” (BOBBIO, 1996, p. 20).
A regra de justiça é a determinação da justiça, ou seja, aquela regra que
conserva a ordem social. A regra da justiça pressupõe que as situações de justiça,
isto é, a atributiva e retributiva já estejam resolvidas, de modo que escolhidos os
critérios de equivalência das coisas e equiparação das pessoas, possa determinar
que sejam tratados igualmente os que fazem parte de uma mesma categoria.
A regra de justiça é também chamada de justiça formal e prescinde de
qualquer relação de conteúdo. A regra de justiça não é absoluta. Uma regra
considerada justa num momento, pode se tornar injusta noutro, e, portanto, deve ser
passível de mudança. Para Bobbio, a regra de justiça, mesmo assim, tem “um valor
social que é de garantir a velha ordem até que esta seja substituída pela nova”
(BOBBIO, 1996, p. 16). A respeito da justiça formal ou regra de justiça se deve
sublinhar a sua importância pelo fato de determinar a justiça. E não apenas
determina a justiça como tende a conservar em harmonia a sociedade de forma
justa. Esta harmonia depende, significativamente, da aplicação imparcial da lei a
uma determinada categoria de destinatários. No entanto, diferente do que entendem
muitos juristas, o problema da justiça como valor social não se reduz unicamente à
legalidade.
A igualdade e a justiça são tratadas de modo distinto. A justiça como um valor
na relação entre os entes e a igualdade axiologicamente neutra. Historicamente, em
particular, as ideologias políticas, não fizeram esta distinção. A igualdade e a justiça
são uma só coisa, que recebeu o nome de igualdade. Para Bobbio, trata-se de uma
tendência emotiva que considera a seguinte máxima: “todos os homens são (ou
nascem) iguais” (BOBBIO, 1996, p. 16). À medida que se pretende descrever a
igualdade se percebe a generalidade e até mesmo falsidade da proposição. O termo
todos é radical e não aceita categorias diversas de homens. Basta indagar sobre as
questões igualdade entre quem? Igualdade em quê? e imediatamente as respostas
se tornam difíceis.
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A solução da primeira indagação é óbvia, a igualdade é entre os homens,
porém a resposta da segunda questão não se dá prontamente. A máxima de que
todos os homens sejam iguais é um ideal-limite. A máxima se apropria daquele
desejo dos homens em considerar um valor a igualdade da essência humana. Trata-
se das qualidades do homem, tais como o livre uso da razão, a capacidade jurídica,
a capacidade de possuir, a dignidade. Mas a igualdade da essência humana, não é
a única igualdade possível, por exemplo, a da igualdade econômica, da igualdade
política, da igualdade social, etc.
Para Bobbio o único tipo de igualdade que acolhe a máxima “todos os
homens são iguais” é por excelência a igualdade diante da lei.
Das várias determinações históricas da máxima que proclama a igualdade de todos os homens, a única universalmente acolhida – qualquer que seja o tipo de Constituição em que esteja inserida e qualquer que seja a ideologia na qual esteja fundamentada – é a que afirma que todos os homens são iguais perante a lei, ou com outra formulação, a lei é igual para todos (BOBBIO, 1996, p. 25).
Que todos os homens são iguais perante a lei pode caracterizar um Estado de
ordens e estamentos, ou seja, aquele que produziu um significado histórico da
divisão da sociedade civil entre camponeses, burgueses e nobreza, isto é, leis
condicionadas com exceções e privilégios aos superiores. A natureza dessas leis
justificam “certas” discriminações apoiadas na chamada “natureza das coisas”. A
generalidade do princípio de igualdade perante a lei é polêmica.
A Constituição francesa atribuía um significado negativo ao Estado de
estamentos, por restringir a liberdade e a igualdade do homem. Bobbio cita uma
frase do preâmbulo da Constituição francesa, em que é explícito tal significado: “não
mais existe para nenhuma parte da nação ou para nenhum indivíduo, qualquer
privilégio ou exceção ao direito comum de todos os franceses” (BOBBIO, 1996, p.
27).
A frase tem um significado distinto com relação a natureza da máxima “todos
os homens são iguais perante a lei”. Observamos uma igualdade perante a lei e uma
igualdade de direito. No primeiro caso temos uma espécie de igualdade restrita,
específica e historicamente determinada de igualdade de direito. No segundo caso
temos uma espécie de igualdade ampla que significa para além da igualdade
perante a lei, a igualdade nos direitos fundamentais assegurados
constitucionalmente. Para ilustrar, Bobbio cita o exemplo de duas célebres
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formulações: “os homens nascem e permanecem livres e iguais nos direitos
(Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, 1789); Todos os homens nascem
livres e iguais em dignidade e direitos (Declaração Universal dos Direitos do Homem,
1948)” (BOBBIO, 1996, p. 29).
Uma outra espécie de igualdade, distinta da igualdade perante a lei e a
igualdade de direito é a chamada igualdade jurídica. Afirma Bobbio: “por igualdade
jurídica se entende, habitualmente, a igualdade naquele atributo particular que faz
de todo membro de um grupo social, inclusive a criança, um sujeito jurídico, isto é,
um sujeito dotado de capacidade jurídica” (BOBBIO, 1996, p. 30). A igualdade
jurídica é uma espécie de igualdade restrita e polêmica, por justificar discriminações.
Enquanto a igualdade perante a lei é uma sociedade de estamentos, a igualdade
jurídica é uma sociedade escravista, isto é, em que nem todos os membros são
sujeitos de direitos ou pessoas jurídicas.
Desta forma, a igualdade perante a lei não significa o mesmo que igualdade
de direitos e tão pouco, o mesmo que igualdade jurídica. Cabe acrescentar outras
duas espécies de igualdade da mesma forma importantes. A igualdade de
oportunidades e a igualdade de fato.
A igualdade de oportunidades é um conceito genérico. Este princípio de
igualdade coloca os indivíduos numa situação inicial igual nos pontos de partida.
Assim, um indivíduo que esteja inicialmente numa situação desigual por nascimento,
é correto introduzir artificialmente certas discriminações, a fim de igualar os pontos
de partida. Por exemplo, com relação a fatores econômicos um pobre e um rico
encontram-se em pontos distintos e desiguais. É necessário estabelecer uma
desigualdade no tratamento entre pobres e ricos como instrumento de igualdade nos
pontos de partida. Após esta adequação a vida social dos indivíduos se torna uma
competição na qual há vencidos e vencedores.
O princípio da igualdade das oportunidades, quando elevado a princípio geral, tem por objetivo colocar todos os membros daquela determinada sociedade na condição de participar da competição pela vida, ou pela conquista do que é vitalmente mais significativo, a partir de posições iguais (BOBBIO, 1996, p. 31).
Por outro lado, a igualdade de fato “entende-se a igualdade com relação aos
bens materiais, ou igualdade econômica” (BOBBIO, 1996, p. 32). No entanto, há
muitos bens possíveis que podem ser pretendidos, o que nos remete à perguntas
30
fundamentais: Mas que bens? Seriam aqueles que satisfazem, mais do que outros,
as necessidades de igualdade dos homens? E que critério distingue a satisfação de
uma necessidade em relação à outra? Seria o critério da utilidade social, isto é, do
que é socialmente útil em relação ao que é socialmente nocivo ou aquele da
correspondência à natureza, isto é, das necessidades naturais em relação ao das
necessidades artificiais?
Uma vez determinada a natureza dos bens com relação aos quais os homens derivam ser iguais, o problema da igualdade ainda não está resolvido: é preciso também estabelecer os modos através do quais os homens entram e permanecem em relação com esses bens. É necessária a posse ou basta o uso? (BOBBIO, 1996, p. 33).
Após identificar os bens relevantes à igualdade justa de uma sociedade e
estabelecido a relação dos membros de um grupo com relação a esses bens, pode-
se ainda indagar: esta igualdade será absoluta ou relativa? Dá-se a cada um em
partes iguais ou se estabelece uma relação proporcional? Caso se trate de uma
relação proporcional, proporcional em relação a quê? Bobbio entende que,
o caráter igualitário de uma doutrina não está na exigência de que todos sejam tratados de modo igual com relação aos bens relevantes, mas que o critério com base no qual esses bens são distribuídos seja ele mesmo o mais igualitário possível (BOBBIO, 1996, p. 34).
As doutrinas igualitárias identificam a desigualdade social como um mal e a
igualdade algo desejável e digno de ser perseguido. A tendência dessas doutrinas é
a modificação do estado de fato, são reformadoras. Não estão preocupadas com
relação ao fato de os homens nascerem ou serem iguais por natureza, mas com
aquilo que os torna mais próximo possível de serem iguais.
As doutrinas não-igualitárias identificam a desigualdade social necessária
para o progresso da civilização. A tendência dessas doutrinas é conservar o estado
de coisas, são conservadoras. Ignoram a igualdade natural em função da paz social.
Esta acepção está presente na teoria do Estado de Hobbes, em que através do
contrato se instaura uma relação de desigualdade artificial entre quem manda e
quem obedece.
As doutrinas igualitárias e as não-igualitárias são antitéticas. Enquanto que o
igualitarismo afirma que todos os homens são iguais em tudo, as doutrinas não-
31
igualitárias afirmam que “somente alguns homens são iguais, ou, no limite, que
nenhum homem é igual a outro” (BOBBIO, 1996, p. 41).
O mesmo não se pode afirmar, em absoluto, do igualitarismo e do liberalismo.
O liberalismo nega a máxima de que todos os homens são iguais em tudo, e afirma
que os homens são iguais, mas não devem ser iguais em tudo. Os homens somente
são iguais nos chamados direitos fundamentais, ou naturais. São os também
chamados direitos civis e políticos dos Estados constitucionais, que asseguram o
igual gozo de liberdade dos cidadãos.
O liberalismo é uma doutrina parcialmente igualitária: trata-se de uma
igualdade formal que protege algumas liberdades, que comprometem o
desenvolvimento de uma sociedade igualitária, como, por exemplo, o da livre
iniciativa econômica, que tem dado origem a grande parte das desigualdades sociais
nas sociedades capitalistas.
Liberalismo e igualitarismo são dois modos distintos de conceber a sociedade.
Por uma lado é procedente a crítica dos Estados liberais às doutrinas igualitárias
com relação à restrição da liberdade individual em prol da sociedade organicista, por
outro lado é procedente a crítica das doutrinas igualitárias com relação à prática
liberal do isolamento das partes que compõe a sociedade.
Liberalismo e igualitarismo deitam suas raízes em concepções da sociedade profundamente diversas: individualista, conflitualista, e pluralista, no caso do liberalismo; totalizante, harmônica e monista, no caso do igualitarismo. Para o liberal, a finalidade principal é a expansão da personalidade individual, abstratamente considerada como um valor em si; para o igualitário, essa finalidade é o desenvolvimento harmonioso da comunidade (BOBBIO, 1996, p. 42).
A liberdade e a igualdade são valores para os indivíduos e fundamento da
democracia: são valores aos indivíduos na medida em que “os homens preferem ser
livres a ser escravos. Preferem ser tratados de modo justo e não injusto.” São
fundamentos da democracia não por ser uma sociedade de livres e iguais, que é
apenas um ideal-limite, “mas uma sociedade regulada de tal modo que os indivíduos
que a compõem são mais livres e iguais do que em qualquer outra forma de
convivência” (BOBBIO, 1996, p. 8).
32
2.3 A visibilidade do poder
O tema da visibilidade do poder se origina no ideário democrático antigo que
considera como condições da política a liberdade de opinião, uso público da razão,
participação dos cidadãos nas decisões políticas e publicidade do poder. Por outro
lado, em contraste com estes princípios democráticos, os regimes autocráticos
consideram como condições da política, o segredo do poder, o disfarce, o
ocultamento, a falsidade, a espionagem e a coação para obtenção máxima da
segurança do poder, seja do ponto de vista particular ou do Estado.
Bobbio identifica esses elementos contrários ao ideário democrático e
sustenta a visibilidade do poder. Considera o poder visível como uma das condições
fundamentais para o adequado funcionamento da democracia e afirma que:
desde quando a democracia foi elevada a melhor forma de governo possível (ou da menos má), o ponto de vista a partir do qual os regimes democráticos são avaliados passou a ser a das promessas não cumpridas. A democracia não cumpriu a promessa do autogoverno. Não cumpriu a promessa da igualdade não apenas formal, mas também substancial. Terá cumprido a promessa de derrotar o poder invisível? (BOBBIO, 2000a, p. 114).
Sendo a natureza da democracia, a do poder visível, nada pode ficar
confinado ao mistério. Bobbio observa que:
como regime do poder visível, a democracia nos faz imediatamente pensar na imagem, transmitida pelos escritores políticos de todos os tempos que se inspiram no grande exemplo de Atenas de Péricles da “ágora” ou da “ecclesia”, isto é, da reunião de todos os cidadãos num lugar público com o objetivo de apresentar e ouvir propostas, denunciar abusos ou fazer acusações, e de decidir, erguendo as mãos ou com cacos de terracota, após terem apreciado os argumentos pró e contra apresentado pelos oradores (BOBBIO, 2000a, p. 98).
A democracia antiga pode ser definida, de modo geral, com a forma de
governo do povo e para o povo. Essa forma de governo, segundo Bobbio, foi
censurada por Platão que acusava o povo de vulgo, de plebe e incapaz. Para ele o
vulgo não tem condições de discernimento, porque é fortemente dominado por
paixões e se deixa influenciar facilmente pelos demagogos. Considera que o bom
governo é o governo dos melhores e não da multidão, de muitos ou do número.
33
Após a democracia ser considerada durante vários séculos irrelevante, com
as revoluções americana e francesa, no período moderno, voltou a ser considerada
importante para garantir os princípios da liberdade e igualdade humana. A
democracia moderna renasce em contraposição à autocracia e com ela o ideal do
governo público em público. Desta forma, as ações dos governantes se tornam
conhecidas pelo povo soberano, exceto em alguns casos, por medida de segurança
pública, e que o cidadão deve conhecer, somente à medida que cesse o perigo.
Assim, para Bobbio, os aspectos da regra e da exceção devem ser considerados
nos seguintes termos: “o caráter público é a regra, o segredo a exceção, e mesmo
assim é uma exceção que não deve fazer a regra valer menos, já que o segredo é
justificável apenas se limitado no tempo” (BOBBIO, 2000a, p. 100).
O caráter público do governo democrático é característico da tradição antiga
na qual a publicidade do poder se dá através da participação direta dos cidadãos
nos assuntos que lhe dizem respeito, e, portanto, as decisões coletivas são
essencialmente públicas. Por outro lado, nas democracias modernas, a participação
direta se tornou um ideal-limite, devido à complexidade das cidades modernas, salvo
algumas exceções, como por exemplo, os plebiscitos (consulta com vista a aferir
opinião sobre legislação a ser feita pelo parlamento) e dos referendos (consultas
com vistas a aferir opinião sobre legislação já feita pelo parlamento) ou, outras
formas que podem ser implementadas. A democracia representativa se tornou a
forma mais eficaz de participação dos cidadãos e de controle do poder autocrático
através de um conjunto normativo que garante a segurança dos indivíduos ao uso
arbitrário do poder. A democracia representativa surge como uma adequação à
realidade política moderna. Afirma Bobbio, “que todos decidam, diretamente, sobre
tudo em sociedades sempre mais complexas como são as modernas sociedades
industriais é algo materialmente impossível” (BOBBIO, 2000a, p. 54). Na democracia
representativa, o sufrágio universal, é um ideal-limite, visto que, após o voto, todas
as decisões coletivas são realizadas pelos representantes, ao cidadão cabe acatar
as decisões tomadas. Para Bobbio, existe um ideal de representação que deve ser
observado, por todos aqueles, autorizados a tomar as decisões coletivas. Identifica
em Carl Schimitt a passagem que elucida precisamente o caráter da representação.
A representação apenas pode ocorrer na esfera da publicidade. Não existe nenhuma representação que se desenvolva em segredo ou as portas fechadas (...) Um parlamento tem um caráter representativo apenas quando
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se acredita que sua atividade própria seja pública. Sessões secretas, acordos e decisões secretas de qualquer comitê podem ser muitos significativos e importantes, mas não podem jamais ter um caráter representativo (apud BOBBIO, 2000a p. 101).
O tema da visibilidade do poder no governo democrático representativo está
diretamente ligado ao conteúdo da descentralização do poder. O poder invisível é
inabalável, tanto mais se distanciar da visibilidade do povo; o poder visível será
inabalável, quanto mais próximo do povo. Bobbio observa que: “de fato, a
visibilidade não depende apenas da apresentação em público de quem está
investido do poder, mas também da proximidade espacial entre governante e
governado” (BOBBIO, 2000a, p. 102). Uma democracia representativa legítima,
entre outros aspectos, é aquela que expressa o caráter público (visível) do poder,
por conseguinte aquela que, entre outras características, estabelece uma
proximidade espacial entre governantes e governados e permite ao cidadão fazer o
uso público da razão. O poder visível é, pois, condição mínima para um adequado
funcionamento da democracia.
Retomando a análise da publicidade, há o entendimento de que é uma
categoria tipicamente iluminista, centrada no uso público da razão e que contrapõe o
obscurantismo próprio das sociedades secretas do período medieval. Sobre este
aspecto, Bobbio afirma que o nexo entre a opinião pública e publicidade do poder,
encontra-se relevância teórica em Kant, seja quando convida o homem a fazer uso
público da razão, expondo suas idéias a respeito da melhor constituição, seja
quando afirma a importância do uso público da razão, acompanhado da publicidade
do poder e destaca a seguinte máxima: “Todas as ações relativas ao direito de
outros homens, cuja máxima não é suscetível de se tornar pública, são injustas”
(apud BOBBIO, 2000a, p. 104). A publicidade do poder é um aspecto relevante do
iluminismo na polêmica contra o Estado absoluto: um Estado que funciona mediante
o poder implacável, invisível e onividente do soberano, equiparado a um Deus.
Reina absoluto e protege os súditos em troca da obediência. O Estado absoluto e o
Estado autocrático postulam concepções idênticas, em que o segredo não é a
exceção, mas a regra.
Bobbio observa que o poder secreto se constitui de duas técnicas específicas
que se complementam: “subtrair-se da vista do público no momento em que se
realizam deliberações de interesse político e colocar a “máscara” quando se está
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obrigado a apresentar-se em público” (BOBBIO, 2000c, p. 303). A máscara pode ser
entendida como metáfora ou no sentido real, quando o agente se transforma em
ator, a ação política em uma representação e o jogo de expressões em mistério. Mas
onde existe o supremo poder oculto existe o contra-poder. Tanto o poder invisível,
como o contra-poder invisível agem simultaneamente. À medida que o soberano cria
estratégias para exercer o poder em relação aos súditos ou aos seus inimigos,
distante dos olhares do soberano, tramas, complôs, golpes e conspirações são
preparadas contra o poder invisível.“ Só o poder secreto consegue derrotar o poder
secreto do outro” (BOBBIO, 2000c, p. 303). Este poder que pretende ser onividente
e invisível, conforme Bobbio, foi descrito por Foucault na análise do Panopticon de
Bentham. Um conjunto de celas separadas, cada uma das quais recolhendo um detento, dispostas num círculo de raios e terminando numa torre, do alto da qual o vigilante, símbolo do poder, pode acompanhar a todo o momento até mesmo os mínimos atos do vigiado (apud BOBBIO, 2000a, p. 111).
Para a democracia o ideal do poder visível, é “ver e ser visto”. Para a
autocracia o ideal do poder invisível é ver tudo, sem ser visto. Como na torre central
vê-se tudo, sem ser visto. O Estado absoluto se caracteriza por essa estrutura,
fundada no princípio máximo da coação e o mínimo de liberdade.
É preciso admitir que, o propósito do Estado absoluto, não apenas busca
concentrar o poder, mas garantir o bom funcionamento do Estado. A figura eminente
do soberano é a razão do Estado, assim como um rebanho precisa de um pastor, os
órgãos do corpo da cabeça, um filho pequeno do pai. Sobre este pretexto tradicional
metafórico é justificado a razão deste Estado.
A natureza do poder autocrático estabelece uma relação de necessidade
entre o soberano e os súditos. Parte do pressuposto de que o súdito é incapaz por si
mesmo, não sabendo nem quando e nem como decidir o que melhor convém diante
dos riscos de sobrevivência. Por isso, o Soberano onividente (que tudo vê) protege
os súditos dos inimigos em troca da obediência.
Os elementos que caracterizam o poder invisível nos regimes autocráticos
são diversos e se manifestam de vários modos. No entanto, cabe a seguinte
indagação: estes elementos são exclusivos dos regimes autocráticos ou também
fazem parte da democracia? Para Bobbio, “na autocracia, o verdadeiro Estado é um
só, o poder invisível o que gera demandas por transparência, assim como em um
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Estado democrático ocorrem denúncias sobre a falta de transparência” (BOBBIO,
2000c, p. 410). Isso, no entanto, não quer dizer que a democracia e a autocracia se
confundam. A autocracia tem a necessidade de tornar o poder invisível, enquanto
que na democracia o poder deve ser visível.
O poder invisível se instala na “sombra” da democracia e atua de várias
formas, sendo que, somente em algumas circunstâncias específicas ao tornar-se
público, acaba por ser combatido. As denúncias sobre a falta de transparência na
democracia mostram que a visibilidade do poder continua ser um ideal. É possível
eliminar o poder invisível da democracia?
Bobbio observa que a emergência do Estado moderno democrático introduziu
novas formas de poder invisível, como é o caso da tecnocracia.
O saber técnico, cada vez mais especializado, torna-se progressivamente um conhecimento de elite, ao qual a massa não tem acesso. Também a tecnocracia tem seus arcana, isto é, poder. Para a massa da mesma forma, trata-se de um saber esotérico, incompatível com a soberania popular pelo mesmos motivos pelos quais em um regime autocrático considera-se o vulgo como incompetente e incapaz de entender os assuntos de Estado (BOBBIO, 2000c, p. 410).
O poder invisível de um Estado democrático adquire maior resistência,
sobretudo nas relações internacionais, com respeito à política externa e a segurança
do Estado. Sobre esta questão, o segredo numa democracia é condenável pela
opinião pública, pois uma guerra pode explodir, tomando a todos por surpresa, sem
que a população possa fazer uso da legítima defesa. As ações dos governantes
numa democracia devem ser públicas. Ou como diz Bobbio “o segredo é admissível
quando garante um interesse protegido pela Constituição sem afetar outros
interesses igualmente garantidos (ou pelo menos, é necessário comparar os
interesses)” (BOBBIO, 2000c, p. 414).
Por fim, cabe destacar que a democracia, apesar dos problemas acima
mencionados, não se encontra a “beira do túmulo”. O natural da democracia é sua
constante transformação. Para Bobbio, “enquanto a presença de um poder invisível
corrompe a democracia, a existência de grupos de poder que se sucedem mediante
eleições livres permanece, ao menos até agora, como a única forma na qual a
democracia encontrou a sua correta atuação” (BOBBIO, 2000a, p.21).
37
2.4 O individualismo
É comum a contraposição entre o individualismo moderno e o organicismo da
tradição antiga. Segundo Bobbio, estas concepções se originam com Aristóteles e
Hobbes.
O princípio constitutivo do organicismo foi formulado de uma vez para sempre por Aristóteles, nas primeiras páginas da política: “o todo precede necessariamente à parte, com o que, quebrado o todo, não haverá mais nem pés nem mãos”, com a conseqüência de que “a cidade é por natureza (atente-se: “por natureza”) anterior ao indivíduo”. Para se encontrar uma completa e perfeitamente consciente teoria individualista é preciso chegar a Hobbes, que parte da hipótese de um estado de natureza em que existem apenas indivíduos separados uns dos outros por suas paixões e por seus interesses contrapostos, indivíduos forçados a se unir de comum acordo numa sociedade política para fugir da destruição recíproca (BOBBIO, 2000b, p. 46).
A concepção individualista de sociedade nasce no Estado moderno, com a
crítica ao organicismo, através das teorias racionalistas, que defendiam a idéia de
que os indivíduos não dependem do organicismo para viverem, mas unicamente da
razão, que os possibilita a ser livres e capazes de se desenvolverem fora do “berço
materno”. Assim, instaura-se uma nova ordem de organização da sociedade. Os
indivíduos que na concepção orgânica de sociedade não tem valor, na concepção
moderna de sociedade são considerados em sua singularidade dotados de valor e
dignidade.
Conforme Bobbio, o individualismo da sociedade moderna encontra seus
fundamentos na teoria de Hobbes, da qual, hipoteticamente, concebe o indivíduo
titular do poder soberano, mas que devido às paixões e interesses desenfreados
necessitam de um acordo que evite a autodestruição dos mesmos. À medida que os
indivíduos, em comum acordo, delegaram ao Estado a representação de seus
interesses, este passou a deter o poder absoluto e coercitivo. Ocorre que, sendo
uma convenção, à medida que este Estado não representar satisfatoriamente os
interesses individuais, não há razões que justifiquem sua existência. Como
exemplos, as revoluções francesa e americana que surgiram quando o Estado
absoluto se tornou incapaz de responder os interesses dos indivíduos. Surge assim,
o Estado Liberal, que segundo Bobbio não nasce de uma vez por todas.
38
primeiro liberal, no qual os indivíduos que reivindicam o poder soberano são apenas uma parte da sociedade; depois democrático, no qual são potencialmente todos a fazer tal reivindicação; e, finalmente, social, no qual os indivíduos, todos transformados em soberanos sem distinções de classe, reivindicam – além dos direitos de liberdade – também os direitos sociais, que são igualmente direitos dos indivíduos: o Estado dos cidadãos, que não são mais somente os burgueses, nem os cidadãos de que fala Aristóteles no início do livro III da política, definidos como aqueles que podem ter acesso aos cargos públicos, e que, quando excluídos os escravos e estrangeiros, mesmo numa democracia, são uma minoria (BOBBIO, 2004, p. 114).
O Estado liberal possibilitou que os indivíduos se tornassem titulares de
direitos, sejam eles naturais ou positivos. Segundo Bobbio, houve uma “inversão na
relação entre poder e liberdade, fazendo-se com que a liberdade precedesse o
poder” (BOBBIO, 2004, p. 114). Este fato contrapôs tanto a concepção aristotélica
quanto a hobbesiana, na medida em que, em ambos os casos, os indivíduos não
possuiam direitos, e sim apenas obrigações, ou seja, os indivíduos não eram
soberanos. Porém, há modos distintos de se compreender a soberania, ou seja, na
concepção antiga a soberania reside no “povo” enquanto que na concepção
moderna de soberania reside no indivíduo singular. Para Bobbio, o conceito “povo” é
ambíguo e enganoso. “Sempre se falou de “povo”, a começar do populus romano,
passando pelo poder das cidades medievais, até chegar aos governos populares da
idade moderna, mesmo quando os direitos políticos pertenciam a uma minoria da
população” (BOBBIO, 2000c, p. 379).
A ambiguidade do conceito “povo” é de utilidade pública para os governantes,
a quem pertence o poder político, não apenas na sociedade tradicional. O conceito
“povo” na democracia moderna nada significa. No entanto, é utilizado de modo
retórico, por representantes políticos, a fim de que suas decisões possam ser aceitas
pela maioria. Quando se diz, por exemplo, que uma decisão foi tomada beneficiando
o “povo”, não significa dizer que todo o povo tenha sido beneficiado, e aqui
entendido, todos os indivíduos que compõem o povo. É improvável que os
governantes expressem publicamente que suas decisões são tomadas a favor de
uns ou de outros. Usa-se uma técnica para dissolução do problema de governar
numa sociedade individualista marcada pela pluralidade de interesses. Mas antes
que os representantes se utilizem do discurso retórico com respeito às suas
decisões, está o conceito de indivíduo que decide sobre quem está autorizado a
decidir coletivamente e com quais procedimentos. Quem decide não é o povo, mas
os indivíduos. Afirma Bobbio:
39
As decisões coletivas não são tomadas pelo povo, mas pelos indivíduos, muitos ou poucos, que o compõem. Numa democracia, quem toma as decisões coletivas, direta ou indiretamente, são sempre e apenas os indivíduos singulares, no momento em que depositam seu voto na urna. Isso pode soar mal para quem só consegue pensar a sociedade com um organicismo; mas, quer isso agrade ou não, a sociedade democrática não é um corpo orgânico, mas uma soma de indivíduos. Se não fosse assim, não teria nenhuma justificação o princípio da maioria, o qual, não obstante, é a regra fundamental de decisão democrática. E a maioria é o resultado de uma simples soma aritmética. Onde o que se soma são os votos dos indivíduos, um por um. Concepção individualista e concepção orgânica da sociedade estão em irremediável contradição (BOBBIO, 2004, p. 115).
Para Bobbio, o individualismo da sociedade moderna se caracteriza por três
dimensões de saber: ontológico, ético e metodológico. Ontológico na medida em que
considera o indivíduo singular, anterior a qualquer espécie de relação, tal como se
apresenta tanto na reconstrução do estado de natureza que precede o Estado civil
na filosofia política de Hobbes a Kant. Ético na proporção em que a esfera da ação
individual é condicionada a uma razão moral do ser humano, diferente de todos os
outros seres do mundo. Metodológico na medida em que estuda as ações dos
indivíduos, mais do que as ações da sociedade, considerada como um todo superior
às partes.
Assim, a análise da sociedade é antes uma análise das ações dos indivíduos
que a compõem. A primazia das partes em relação ao todo encontra seu
fundamento na ideia de que as partes precedem o todo. O todo é uma ideia abstrata
e vazia de conteúdo. O que preenche esta ideia são as partes que são portadoras
de conteúdo.
Vimos até aqui, nesta concepção individualista de sociedade a ênfase das
partes com relação ao todo. O estudo centrado no indivíduo, mais do que na própria
sociedade nos remete a seguinte questão: A atomização do indivíduo é suficiente
para se compreender o todo da sociedade? Segundo Bobbio, “a concepção
individualista da qual estamos falando nas três diferentes dimensões, ontológica,
ética e metodológica, não prescinde da consideração de que o homem é também
um ser social” (BOBBIO, 2000c, p. 381). E ainda: “nenhuma concepção individualista
de sociedade prescinde do fato de que o homem é um ser social, nem considera o
indivíduo isolado” (BOBBIO, 2000b, p. 47). É necessário ainda considerar que a
concepção individualista de sociedade, que emerge do liberalismo, é distinta da
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concepção individualista de sociedade que emerge da concepção democrática,
apesar de ambas serem contrapostas ao organicismo.
o primeiro por gradual corrosão da totalidade, através da qual os indivíduos, como filhos tornados maiores de idade, destacam-se do grupo primitivo onipotente e onipresente e conquistam espaços sempre mais amplos de ação pessoal; o segundo por dissolução interna da compacta unidade global, donde se formam partes independentes umas das outras e todas juntas do inteiro, e começam a ter vida própria (BOBBIO, 2000b, p. 47).
Feita esta observação, é também necessário analisar não apenas o indivíduo
isolado na sua dimensão atômica, mas um indivíduo de relação social. O
individualismo da sociedade moderna tem suas expressões mais significativas no
individualismo da tradição liberal-libertária e no individualismo da tradição
democrática. Conforme Bobbio,
o primeiro arranca o indivíduo do corpo orgânico da sociedade e o faz viver fora do regaço materno, lançando-o ao mundo desconhecido e cheio de perigos da luta pela sobrevivência, onde cada um deve cuidar de si mesmo, em uma luta perpétua, exemplifica pelo hobbesiano bellum omnium contra onnes. O segundo agrupa-o a outros indivíduos semelhantes a ele, que considera seus semelhantes, para que da sua união a sociedade venha a recompor-se não mais como um todo orgânico do qual saiu, mas como uma associação de indivíduos livres. O primeiro reivindica a liberdade do indivíduo em relação à sociedade. O segundo reconcilia-o com a sociedade fazendo da sociedade o resultado de um livre acordo entre indivíduos inteligentes. O primeiro faz do indivíduo um protagonista absoluto, fora de qualquer vínculo social. O segundo faz dele o protagonista de uma nova sociedade que surge das cinzas da sociedade antiga, na qual as decisões coletivas são tomas pelos próprios indivíduos ou por seus representantes (BOBBIO, 2000c, p. 381).
A tradição liberal-libertária considera o indivíduo capaz de se autoformar, de
desenvolver as suas faculdades intelectuais e morais em condições de ampla
liberdade em relação a vínculos externos impostos coercitivamente. A tradição
democrática exalta a capacidade de o indivíduo superar o isolamento através de
vários expedientes capazes de permitir a instituição de um poder comum não
tirânico. O indivíduo do primeiro observa o que está voltado para o interior; o
indivíduo do segundo, o que está voltado para o exterior.
O indivíduo da concepção liberal e o da concepção democrática possuem
características distintas. No entanto, o ponto de partida de ambas as concepções
repousam numa concepção individualista de sociedade. Desta forma, ambos se
contrapõem ao organicismo que predominou em grande parte da história do
pensamento político.
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Por fim, analisamos o individualismo e sua relação com o Estado. A
contraposição entre o individualismo e o organicismo com relação ao Estado é ainda
mais nítida.
Enquanto o organicismo considera o Estado como um grande corpo composto de partes que concorrem - cada uma segundo sua própria destinação e em relação de interdependência com todas as demais – para a vida do todo, e, portanto não atribui nenhuma autonomia aos indivíduos uti singuli, o individualismo considera o Estado como um conjunto de indivíduos e como o resultado da atividade deles e das relações por eles estabelecidas entre si (BOBBIO, 2000b, p. 45).
Numa concepção organicista de Estado, o todo é superior às partes, portanto,
a liberdade de ação do indivíduo é negada em prol do interesse da sociedade
orgânica. Considerar o Estado como uma totalidade anterior e superior às partes
significa, para uma coerente concepção orgânica, não atribuir nenhum espaço às
esferas de ação independentes do todo, como, por exemplo, aquelas relações
privadas que ocorrem nas leis de mercado. Isto é, não pode haver distinções entre
esfera privada e esfera pública.
A concepção organicista do Estado, ao considerar o todo superior às partes,
se contrapõe à democracia. A democracia parte de uma concepção ascendente do
poder e fundamenta a autonomia dos indivíduos. Numa concepção organicista do
Estado o poder é descendente, próprio dos modelos autocráticos de governo. “Uma
concepção descendente, se inspira em modelos autocráticos de governo: difícil
imaginar um organicismo em que sejam os membros a comandar e não a cabeça”
(BOBBIO, 2000b, p.46).
Após considerar que a democracia moderna nasceu de uma concepção
individualista da sociedade, em que o todo está em função das partes, contraposta à
concepção orgânica, que predominou o período antigo e medieval, em que as partes
estão em função do todo, passamos ao exame do pluralismo no Estado democrático.
2.5 O pluralismo
Bobbio postula que as doutrinas democráticas tendem a caracterizar a
democracia como uma sociedade individualista, de indivíduos soberanos e ausentes
42
de corpos intermediários e identifica três eventos que expressam esta tendência, por
sua vez, negada pelos fatos, com o surgimento do pluralismo.
O primeiro evento é aquele proveniente do contratualismo de Seiscentos e
Setecentos que concebe hipotéticamente uma soberania dos indivíduos como livres
e iguais, num Estado de natureza que antecede a criação da sociedade civil e do
qual, em comum acordo, os indivíduos instituem um poder comum, que permite
assegurar-lhes a vida, a liberdade e a propriedade (BOBBIO, 2000a, p. 34).
O segundo evento diz respeito ao nascimento da economia política na qual se
analisa a sociedade e as relações sociais a partir do indivíduo considerado em sua
singularidade, trata-se, como diz Bobbio do “homo economicus e não o politikón
zôon da tradição” (BOBBIO, 2000a, p. 34). Isto é, o indivíduo é considerado em si
mesmo, e não a partir de uma comunidade política.
O terceiro evento postula uma filosofia utilitarista a partir de uma ética
objetivista, “capaz de distinguir entre os indivíduos o bem do mal, prescindindo de
“recorrer a conceitos vagos como “natureza” e outros” (BOBBIO, 2000a, p. 35).
Nos escritos de Bobbio, predomina a análise do primeiro evento, no qual a
doutrina democrática parte da hipótese de um Estado de natureza, que os indivíduos
singulares são igualmente soberanos e para garantir o que lhes é comum criam a
sociedade política. A partir dessa hipótese, a doutrina não imaginava corpos
intermediários, os indivíduos eram em si mesmo soberanos, diferente por sua vez,
das sociedades corporativas medievais e dos Estados de estamentos.
O que aconteceu nos Estados democráticos foi exatamente o oposto: sujeitos politicamente relevantes tornaram-se sempre mais em grupos, grandes organizações, associações da mais diversa natureza, sindicato das mais diversas profissões, partidos das mais diversas ideologias, e sempre menos os indivíduos. Os grupos e não os indivíduos são os protagonistas da vida política numa sociedade democrática, na qual não existe mais um soberano, o povo ou nação, composto por indivíduos que adquiriram o direito de participar direta ou indiretamente do governo, na qual não existe mais o povo como unidade ideal (ou mística), mas apenas o povo dividido de fato em grupos contrapostos e concorrentes, com a sua relativa autonomia diante do governo central (autonomia que os indivíduos singulares perderam ou só tiveram num modelo ideal de governo democrático sempre desmentido pelos fatos) (BOBBIO, 2000a, p. 35).
Assim, se por um lado, o individualismo da sociedade moderna representa a
tese contrária da sociedade organicista tradicional, não se pode falar o mesmo da
sociedade pluralista em relação à sociedade individualista. Isso significa que o ideal
da sociedade individualista só existiu teoricamente, mas não na prática. Os
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indivíduos de fato, cada vez mais deixam de ser considerados em sua singularidade,
não mais estando em função do todo, mas em função das partes, que já não são os
próprios indivíduos, mas os grupos que representam os indivíduos em relação ao
todo. De tal forma que os indivíduos criaram uma organização social de categorias
distintas que disputam democraticamente os espaços de poder político, de poder
econômico, de poder ideológico, etc.
Para Bobbio, a sociedade democrática não pode ser confundida com a
sociedade pluralista, pois, apesar de serem um remédio contra um mal comum, não
são a mesma coisa. “O conceito de democracia e o conceito de pluralismo, diria um
lógico, não tem a mesma extensão. Pode-se muito bem encontrar uma sociedade
pluralista que não seja democrática e uma sociedade democrática que não seja
pluralista” (BOBBIO, 2000a, p. 71).
No primeiro caso, a idéia pode ser representada pela sociedade feudal, uma
sociedade constituída por diversos centros de poder em concorrência entre si, com
interesses próprios e um poder central débil. A sociedade feudal é pluralista, mas
não democrática. No segundo caso, a ideia pode ser representada pela democracia
dos antigos, onde a atividade pública se desenvolve na pólis, de forma direta, sem
intermediários entre os indivíduos e a cidade. A sociedade antiga é democrática,
mas não pluralista.
Segundo Bobbio, não se trata de escolher entre uma sociedade democrática
ou uma sociedade pluralista: a escolha é inútil. É mais relevante compreender que a
sociedade moderna, diferente da pólis antiga, é constituída por diversos centros de
poder.
E é simplesmente uma conseqüência deste fato que a democracia dos modernos deva fazer as contas com o pluralismo, diferentemente do que ocorria na democracia dos antigos. Antes de ser uma teoria, o pluralismo é uma situação objetiva, na qual estamos imersos (BOBBIO, 2000a, p. 71).
A sociedade democrática é permeada por diversas esferas de poder, como,
por exemplo, a esfera das relações econômicas, políticas ou ideológicas. Nestas
esferas de poder é que o pluralismo se dá objetivamente. Na esfera econômica, o
pluralismo se desenvolve a partir das leis do mercado, a concorrência de empresas,
a distinção entre público e privado, etc. Na esfera política, o pluralismo se dá na
existência de uma pluralidade de partidos em concorrência entre si e de movimentos
políticos internos que reivindicam e disputam espaços específicos de poder na
44
sociedade e no Estado, etc. Na esfera ideológica, o pluralismo compreende as
diversas orientações sobre doutrinas de Estado, visões de mundo, programas
políticos, etc. Dado o fato de que nas democracias atuais o pluralismo é uma
situação objetiva, por este motivo é que a democracia dos modernos deve fazer as
contas com o pluralismo.
A democracia de um Estado moderno nada mais pode ser que uma democracia pluralista. Vejamos por quê. A teoria democrática e a teoria pluralista têm em comum o fato de serem duas propostas diversas, mas não incompatíveis (ao contrário, são convergentes e complementares) contra o abuso do poder; representam dois remédios diversos, mas não necessariamente alternativos contra o poder exorbitante. A teoria democrática toma em consideração o poder autocrático, isto é, o poder que parte do alto, e sustenta que o remédio contra este tipo de poder só pode ser o poder que vem de baixo. A teoria pluralista toma em consideração o poder monocrático, isto é, o poder concentrado numa única mão, e sustenta que o remédio contra este tipo de poder é o poder distribuído (BOBBIO, 2000a, p. 72).
A teoria democrática e a teoria pluralista como remédios diversos combatem o
abuso do poder das teorias de Estado autocrático. O primeiro através do poder
ascendente e o segundo através do poder distribuído. “Contra o poder que parte do
alto em nome do poder que vem de baixo, e contra o poder concentrado em nome
do poder distribuído” (BOBBIO, 2000a, p. 73).
A democracia dos modernos se funda nestas duas perspectivas, contra o
abuso do poder. A primeira é caracterizada pela democracia direta que pode ser
composta por um único centro de poder do Estado: a assembléia dos cidadãos. Com
o surgimento das complexas cidades modernas, a democracia direta, cedeu lugar à
democracia representativa no qual o controle do poder se dá de forma indireta.
Resta saber se esta forma de controle é suficiente. Para Bobbio, o controle a partir
de baixo é necessário, mas não suficiente.
Deve também poder contar com o controle recíproco entre os grupos que representam interesses diversos, os quais se exprimem por sua vez através de diversos movimentos políticos que lutam entre si pela conquista temporária e pacífica do poder (BOBBIO, 2000a, p. 73).
Bobbio observa que o defeito da democracia representativa em relação à
democracia direta é o fato de que os comitês dirigentes dos partidos tendem em se
transformar em pequenas oligarquias. O remédio contra estas pequenas oligarquias
é a democratização da sociedade civil, em que cada vez mais os indivíduos
45
participam “fazendo com que o poder não seja apenas distribuído, mas também
controlado” (BOBBIO, 2000, p. 73).
Segundo Bobbio, Montesquieu atribui ao pluralismo um sentido positivo, como
necessário para o controle do exercício arbitrário do poder soberano. Postula a
necessidade de ordens intermediárias como a nobreza, o clero e as antigas ordens
privilegiadas, e identifica na natureza dessas ordens, em relação ao Estado, o fato
de se constituírem em um contrapoder. Identifica o governo dos corpos
intermediários como garantia à liberdade individual e à não opressão. Por outro lado,
para Bobbio, Rousseau atribui um sentido negativo a estas ordens intermediárias,
pois são causas de desigualdades entre os homens, ou seja, privilégios para uns e
prejuízo para outros. “A subordinação do interesse geral aos interesses parciais, era
a causa e ao mesmo tempo o efeito de uma sociedade de desiguais” (BOBBIO,
2000c, p. 320 - 321).
Na concepção jusnaturalista de sociedade, não há lugar para os corpos
intermediários. O contrapoder não nasce de um governo misto, mas do consenso
entre os indivíduos livres e iguais através do contratualismo.
Contra o perigo do despotismo, a doutrina jusnaturalista não opôs o remédio da unidade articulada, mas sim o remédio do poder derivado do consenso: a sua idéia dominante não foi a liberdade através da fragmentação do poder, mas sim a liberdade através da tomada do poder por parte dos cidadãos, não o pluralismo, mas o contratualismo (BOBBIO, 2000c, p. 323).
O contratualismo busca assegurar a ampliação da esfera de liberdade dos
indivíduos singulares com relação ao poder do Estado. Desta forma, o Estado se
torna limitado e os indivíduos livres para perseguir o que desejam.
Com relação à doutrina dos corpos intermediários há duas críticas possíveis:
uma cujo ponto de força é a unidade do Estado e o outra cujo ponto de força é a
liberdade do indivíduo. Segundo Bobbio, quando se trata de fazer a crítica aos
corpos intermediários do ponto de vista do Estado, Rousseau se torna um
referencial, pois, condenou as sociedades parciais responsáveis por impedir a
vontade geral.
O fenômeno que, julgado positivamente, é chamado de pluralismo (e não pode haver democracia sem pluralismo), julgado negativamente é chamado novo feudadismo (...), isto é, falta de um verdadeiro centro de poder, desagregação da estrutura social em mil centros de poder aparentemente mantidos juntos em uma ordem hierárquica, mas na verdade continuamente em luta entre si e com o poder central, predomínio dos interesses
46
particulares, setoriais ou corporativos sobre o interesse geral (BOBBIO, 200c, p. 338).
O feudalismo como um fenômeno histórico se caracterizou por um poder
central débil. A crítica que dele se fez em prol da unidade do Estado através da
união dos indivíduos numa vontade geral, não foi a única crítica aos corpos
intermediários. Segundo Bobbio, Pareto ((1921) em Transformazioni della
democracia) também contribui nesta perspectiva, quando postula sobre o
“despedaçamento do Estado”, não mais por aquele regime feudal, mas ”devido ao
crescente poder dos sindicatos que, recolhendo sob suas bandeiras todos os
descontentes, estavam minando o poder do Estado” (apud BOBBIO, 2000c, p. 339).
Quando se parte do ponto de vista da liberdade dos indivíduos, a crítica aos
corpos intermediários é aquela que diz respeito à impossibilidade dos indivíduos
desenvolverem todos os recursos de sua natureza. Numa sociedade policrática, os
indivíduos estão numa relação de poder diversa. Cada vez menos os indivíduos são
protagonistas de sua história e cada vez mais os diversos centros de poder atuam
em concorrência dos interesses parciais. “O indivíduo que acreditou ter-se liberado
de uma vez por todas do Estado-senhor torna-se, em uma sociedade policrática,
servo de muitos senhores” (BOBBIO, 2000c, p. 340).
Com isso, o problema da liberdade que estava diretamente vinculado à
relação de poder do Estado, acaba por se tornar um problema vinculado à relação
de poder (da) e na sociedade civil. Para Bobbio:
o problema atual da liberdade não pode mais estar restrito ao problema da liberdade em relação ao Estado e no Estado, mas diz respeito à organização mesma da inteira sociedade civil, investe não o cidadão enquanto tal, isto é, o homem público, mas o inteiro homem, enquanto ser social (BOBBIO, 2000c, p. 341).
A indagação a ser feita é: de onde nasce o problema da liberdade? Segundo
Bobbio, o problema da liberdade nasce de uma sociedade administrada, não surge
unicamente do sistema político, mas no sistema social como um todo. Por exemplo,
numa sociedade hipoteticamente tecnocrata, a liberdade do homem não é a
liberdade civil ou política, mas a liberdade humana. Numa sociedade
hipoteticamente tecnocrata o indivíduo “é reduzido a autômato, à engrenagem de
uma grande máquina da qual não conhece nem o seu funcionamento, nem sua
finalidade” (BOBBIO, 2000c, p. 342).
47
A liberdade se apresenta basicamente em três níveis, assim descritos:
a falta de liberdade no nível ideológico se apresenta como conformismo de massa, no nível econômico, como alienação do trabalho humano, inclusive do trabalho intelectual, no nível político, como exclusão de qualquer participação no comando da sociedade (BOBBIO, 2000c, p. 342).
Os três níveis em que ocorre a liberdade não são absolutos. Bobbio entende
que a história da liberdade é sempre seguida de perdas e conquistas, por isso, nos
instiga a não sermos pessimistas. Não há nem liberdade perdida para sempre nem liberdade conquistada para sempre: a história é um entrelaçamento dramático de liberdades e de opressões, de novas liberdades de encontro às quais vêm novas opressões, de velhas opressões derrubadas, de novas liberdades reencontradas, de novas opressões impostas e de velhas liberdades perdidas (BOBBIO, 2000c, p. 342).
O problema do pluralismo no pensamento de Bobbio é caracterizado a partir
dos seis argumentos seguintes: - Os grupos e não os indivíduos são os
protagonistas da vida política numa sociedade democrática; - Antes de ser uma
teoria, o pluralismo é uma situação objetiva, na qual estamos imersos; - O
individualismo da sociedade democrática é um ideal-limite, sempre desmentido pelos
fatos. - A teoria democrática e a teoria pluralista apesar de representarem dois
remédios diversos contra o abuso do poder, não são necessariamente alternativos
contra o poder exorbitante; - A teoria democrática sustenta o poder ascendente
contra o poder autocrático e a teoria pluralista sustenta o poder distribuído contra o
poder concentrado; - O pluralismo representa a cisão da unidade do Estado e o
condicionamento da liberdade do indivíduo aos diversos centros de poder da
sociedade civil, nas disputas de interesses parciais.
48
3 A DEMOCRACIA ANTIGA E MODERNA
Uma das tarefas essenciais ao se examinar a democracia é fazer a distinção
entre a democracia antiga e a moderna. Bobbio fez esta distinção e ainda examinou
os limites da democracia representativa, além disso, investigou a compatibilidade ou
incompatibilidade entre o liberalismo e a democracia e a compatibilidade ou
incompatibilidade entre o socialismo e a democracia. A partir de suas considerações
passamos à análise destas questões.
3.1 A democracia direta
A democracia direta é um tema historicamente marcado por ideologias
políticas e de aplicação prática diversas. As características fundamentais desta
democracia são: a soberania do povo, a ausência de corpos intermediários e a
participação direta dos cidadãos nas coisas que lhe dizem respeito.
Segundo Bobbio, a crescente demanda por democracia direta revela que a
democracia representativa não é suficientemente capaz de responder aos desejos e
necessidades humanas. Com base nisso, resta saber se nas complexas sociedades
industriais ainda é possível falar de democracia direta. Sendo possível, é também
desejável? Qual o papel da democracia direta neste contexto, o de complementação
à democracia representativa ou da sua substituição? Segundo Bobbio, usualmente,
estas indagações são respondidas de dois modos: uma que considera a democracia
descritivamente e a outra que considera a democracia de modo valorativo. No
primeiro caso, se tem a distinção clássica entre democracia direta e democracia
representativa e no segundo caso, há uma “disputa” teórica com relação ao sentido
da democracia. Por um lado, “aqueles” que valorizam os aspectos negativos da
democracia, e do outro, os que valorizam seus aspectos positivos.
O fato é que, anterior ao modo como a democracia veio a ser tratada, está o
conceito de democracia. Segundo Bobbio, o conceito de democracia nasce com os
gregos. O termo democracia significava literalmente poder do démos, (poder do
povo), e não como hoje, poder dos representantes do démos. Para os antigos a
49
praça é um símbolo da democracia. Neste espaço, os cidadãos se reúnem para
deliberar sobre os assuntos que lhe dizem respeito.
Segundo Bobbio, a democracia como governo do povo recebeu duras críticas,
como aquelas de Platão, Aristóteles, Maquiavel e Hobbes. De acordo com o autor,
Platão entendia a democracia como governo dos pobres, da plebe, do vulgo, do
incapaz para as coisas da pólis e ainda, considerava o governo do povo desregrado,
licencioso, ignorante, incompetente e intolerante. O “vulgo”, considerado por Platão,
significava “um monstro terrível, leviano, preguiçoso, medroso, precipitado, desejoso
de coisas novas, ingrato, em suma, uma mistura de vícios sem a companhia de
nenhuma virtude” (apud BOBBIO, 2000c, p. 376). Para Aristóteles, a democracia
designa o mau governo popular, isto é, em que o povo fica prisioneiro dos
demagogos, aduladores e corruptores. Em Maquiavel, “os homens que nas
repúblicas servem as artes mecânicas não podem saber comandar como príncipes
quando são prepostos a magistraturas, tendo aprendido sempre a servir” (apud
BOBBIO, 2000c, p. 376.) Para Bobbio, Hobbes segue os postulados de Aristóteles,
em que afirma que o povo é facilmente corrompido pelos demagogos. Diante desse
desprezo da democracia, é ainda possível justificar a democracia nos dias de hoje?
Segundo Bobbio, a crítica à democracia reflete mais o desprezo histórico pelo
povo por parte dos grupos oligárquicos, do que propriamente um mau governo
popular, nos termos de Aristóteles. Para Bobbio, o que possibilitou atribuir à
democracia um juízo positivo, foi a tomada de uma nova referência. A referência
original era um corpo coletivo (démos) considerado sempre em sentido pejorativo,
isto é, entendido como a “massa”, o “vulgo”, a “plebe”, enquanto a nova referência
não é mais o corpo coletivo, mas os indivíduos que o constituem. Numa democracia
não é a massa quem decide, mas os indivíduos singulares. O povo nada decide.
Quem decide são os cidadãos que formam a comunidade dos cidadãos.
”Povo” não é apenas um conceito ambíguo, precisamente porque não existe senão como metáfora um todo chamado “povo”, distinto dos indivíduos que o compõem, mas é também um conceito enganoso: sempre se falou de “povo”, a começar do popolus romano, passando pelo poder das sociedades medievais, até chegar aos governos populares da idade moderna, mesmo quando os direitos políticos pertenciam a uma minoria da população (BOBBIO, 2000c, p. 379)
Com isso, o conceito “povo” apresenta basicamente os seguintes
fundamentos: a) a soberania do povo; b) da ausência de corpos intermediários, e c)
50
a participação direta dos cidadãos nas decisões que lhe dizem respeito. Conforme a
clássica compreensão grega, a soberania do povo consiste numa democracia direta
no qual os cidadãos se reúnem em assembléia para decidir sobre as coisas que lhe
dizem respeito, isto é, quem decide não é o representante eleito como temos nas
democracias modernas, mas é o próprio povo através daqueles cidadãos com
direitos políticos. Esta democracia é muita restrita se comparada à democracia
representativa, pois a soberania do povo não é apenas participação direta de uma
minoria, mas a participação do maior número possível de cidadãos aptos a
decidirem sobre o que lhes diz respeito, isto é, o sufrágio universal.
Como estudioso dos pensadores clássicos, Bobbio encontrou em Rousseau o
sentido mais adequado para o conceito de soberania, quando fez uma crítica à
liberdade dos ingleses. “A soberania não pode ser representada”, e portanto, “o povo
inglês acredita ser livre mas se engana redondamente; só o é durante a eleição dos
membros do parlamento, uma vez eleitos estes, ele volta a ser escravo, não é mais
nada” (apud. BOBBIO, 2000a, p. 53). Nesta concepção, a soberania do povo
somente se dá pela participação direta e permanente. Segundo Bobbio, Rousseau
reconhecia a soberania como sendo um ideal da democracia. Para ele “uma
verdadeira democracia jamais existiu, e jamais existirá” (apud BOBBIO, 2000c, p.
376). Identificou o problema da soberania dos indivíduos como algo impossível de
ser realizado plenamente devido a algumas exigências difíceis de serem reunidas,
como, por exemplo, “um Estado muito pequeno, (...) uma grande simplicidade de
costumes, (...) uma grande igualdade de condições e fortunas, (...) um pouco ou
nada de luxo” (apud. BOBBIO, 2000, p. 53).
Segundo Bobbio, os Estados se tornaram cada vez mais populosos, não
havendo a possibilidade de se conhecer todos os cidadãos; os costumes ao invés de
mais simples, sempre mais numerosos, sendo os problemas multiplicados; as
desigualdades ao invés de diminuírem, aumentaram; e o luxo não apenas não
desapareceu, como tem se intensificado através das sociedades industriais.
(BOBBIO, 2000a, p. 54). O ideal de democracia direta teorizada pelos gregos não
comporta a expansão populacional dos nossos dias. A participação direta é um
ideal-limite. Então, teria sentido falar democracia direta em nossos dias? Evidente que, se por democracia direta se entende literalmente a participação de todos os cidadãos em todas as decisões a eles pertinentes, a proposta é insensata. Que todos decidam sobre tudo em sociedades
51
sempre mais complexas como são as modernas sociedades industriais é algo materialmente impossível (BOBBIO, 2000a, p. 54).
Para Bobbio, a democracia direta, não pode ser pensada como uma
transposição do método antigo, para os dias de hoje. A democracia direta deve ser
pesada como um ideal de adequação à democracia representativa, como as que já
existem ou ainda podem ser implementadas. quando se fala, hoje, de democracia direta, se pretende referir, (...) a instituições como o referendum, através do qual, todos os cidadãos com direitos políticos são chamados a exprimir o próprio parecer sobre temas de particular interesse nacional ou local (BOBBIO, 1983, p. 69).
O referendum é uma das formas que a democracia direta encontrou para se
adaptar as exigências de maior participação dos cidadãos nas questões políticas
das democracias representativas. Mas, para além da opinião acerca de um
determinado assunto, do direito ao voto ou exercício deste direito, a participação dos
cidadãos consiste também no controle do poder. O cidadão precisa estar atento
sobre como se dá o governo representativo, ou seja, se representa de fato os
cidadãos em geral ou se representa os interesses particulares.
Com base neste conjunto de idéias sobre a democracia direta é possível
estabelecer o seguinte comparativo entre a democracia direta e a democracia
representativa. Na democracia direta o cidadão é quem decide; o lugar das decisões
é a praça pública onde ocorre a assembléia dos cidadãos; o poder é do démos =
povo; a participação direta é a regra e a eleição, a exceção; cidade-Estados;
sociedade organicista (todo superior as partes); soberania do povo; democracia
como governo dos pobres; participação política de uma minoria; participação
ilimitada; participação sem intermediários. Na democracia representativa o cidadão
elege quem decide por ele; o lugar das decisões é a cabine eleitoral durante a
eleição; o poder é dos representantes do démos; a eleição é a regra e a participação
direta, a exceção; considera-se a democracia como o governo de todos os cidadãos
indiferente de sua condição social; Estados territoriais; sociedade individualista
(parte superior ao todo); soberania dos cidadãos; participação ampla – sufrágio
universal; participação limitada pelo voto; participação com intermediários. Estes
temas podem ser melhor compreendidos a partir do exame da democracia
representativa.
52
3.2 A democracia representativa
Bobbio considera que a democracia representativa, em nossos dias, é a
forma mais adequada para o exercício do poder político, em função das complexas
cidades modernas, que torna impraticável o ideário democrático antigo da
democracia direta. O ideário antigo da participação nas decisões coletivas se tornou
um ideal-limite, dado as características exigidas para sua efetivação.
Bobbio parte da crítica de Rousseau à questão da representação na qual
afirma que a soberania não pode ser representada. No entanto, vai além, quando
propõe o estudo das condições de representação política, já que a democracia direta
se apresenta como um ideal-limite na sociedade moderna em que o próprio
Rousseau havia reconhecido. Pode-se afirmar neste sentido que Bobbio é um
pensador realista, mas que não se limita às condições objetivas da realidade, e sim,
propõe um ideal de sociedade pautado por princípios e regras que assegurem a
liberdade e a igualdade do homem como valores universais e fundamentais da
democracia. Segundo o autor, podemos atribuir o seguinte significado à democracia
representativa:
a expressão democracia representativa significa genericamente que as deliberações coletivas, isto é, as deliberações que dizem respeito à coletividade inteira, são tomadas não diretamente por aqueles que dela fazem parte, mas por pessoas eleitas para esta finalidade (BOBBIO, 2000a, p. 56).
Destaca que muitas das críticas feitas ao Estado parlamentar ou à
democracia representativa são equívocas, visto que, a crítica ao Estado parlamentar
não significa a crítica à democracia representativa. Assim entende o Estado
parlamentar como:
uma aplicação particular, embora relevante do ponto de vista histórico, do princípio da representação, vale dizer, é aquele Estado no qual é representativo o órgão central (ou central ao menos em nível de princípio, embora nem sempre de fato) ao qual chegam as reivindicações e do qual partem as decisões coletivas fundamentais, sendo este órgão central o parlamento (BOBBIO, 2000a, p. 56).
Um Estado representativo não se reduz a um Estado parlamentar, que tem
um conteúdo determinado e sim, manifesta-se em forma de princípio tornando
53
possível a aplicabilidade deste, em diversos espaços de caráter político. Segundo
Bobbio, “um Estado representativo é um Estado no qual as principais deliberações
políticas são tomadas por representantes eleitos, importando pouco se os órgãos de
decisão são o parlamento, o presidente da república, o parlamento mais os
conselhos regionais, etc” (BOBBIO, 2000a, p. 57). Da mesma forma que a crítica ao
Estado parlamentar não implica necessariamente a crítica à democracia
representativa, nem toda crítica à democracia representativa conduz diretamente à
democracia direta. O conceito de representação possui características diversas.
Assim, o papa é o representante de Deus na terra, não é a mesma coisa que
declarar que Obama representa o povo dos Estados Unidos, assim como afirmar
que o senhor Álvaro representa o laboratório farmacêutico não é a mesma coisa que
confirmar que o ilustre senador Paim representa um partido no parlamento.
No caso da representação política, Bobbio considera relevante dois
elementos: como o representa? e que coisa representa? Com relação, ao como
representa introduz outros dois conceitos: o de delegado e o de fiduciário. Com
relação ao primeiro conceito, afirma: é pura e simplesmente um porta-voz, um núncio, um legado, um embaixador, de seus representados, e, portanto o seu mandato é extremamente limitado e revogável (...) Se em vez disso é um fiduciário (...) tem o poder de agir com uma certa liberdade em nome e por conta dos representados, na medida em que, gozando da confiança deles, pode interpretar com discernimento próprio os seus interesses (BOBBIO, 2000a, p. 58).
Em relação a que coisa representa faz a seguinte distinção: uma
representação pode ocorrer segundo os interesses gerais dos cidadãos ou no
âmbito dos interesses particulares, isto é, no interesse da categoria dos operários,
dos comerciantes, dos profissionais liberais, etc.
Quando se trata de representar os interesses gerais dos cidadãos, o
representante pode fazer parte de qualquer categoria: operário, médico, professor,
etc. Ao se tratar de uma exposição de interesses particulares, para que uma
representação seja efica,z é necessário que o outorgado faça parte da mesma
categoria do representado, ou seja, um médico representando a categoria dos
médicos, um professor a dos professores, um operário a dos operários.
54
Desta forma, uma representação na condição de delegado assume o caráter
de representação dos interesses particulares, e de outro lado o representante
fiduciário a representação dos interesses gerais. Para Bobbio, as democracias representativas que conhecemos são democracias nas quais por representante entende-se uma pessoa que tem duas características bem estabelecidas: a) na medida em que goza da confiança do corpo eleitoral, uma vez eleito não é mais responsável perante os próprios eleitores e seu mandato, portanto, não é revogável; b) não é responsável diretamente perante os seus eleitores exatamente porque convocado a tutelar os interesses gerais da sociedade civil e não os interesses particulares desta ou aquela categoria (BOBBIO, 2000a, p. 60).
Baseado nestas características é que surgem as críticas à democracia
representativa. Em primeiro lugar a crítica ao mandado imperativo, dado que, uma
vez realizado o processo eleitoral, o mandato se torna irrevogável. Em segundo
lugar a crítica à representação dos interesses gerais em nome da representação
orgânica ou funcional. Como orgânica ou funcional entende-se aquela cujos
interesses são específicos de uma categoria.
Este modelo de representação é considerado defeituoso por diversos autores.
Mas segundo Bobbio, a crítica radical a este modelo de representação é
equivocada. Bobbio observa que, existem situações nas quais ela é não só desejável como inevitável. Que um conselho de faculdade seja composto por professores de faculdade e não por representantes de partidos políticos é uma coisa óbvia. Mas é menos óbvio que dele não participem com direitos paritários representantes dos estudantes ou do pessoal administrativo, como a conseqüência de que o defeito está não no fato de ser orgânico mas de sê-lo muito pouco (BOBBIO, 2000a, p. 63).
A representação orgânica não é mal em si mesma, mas quando tomada fora
de seus limites que lhe são próprios, isto é, quando se passa de uma representação
própria de uma categoria, para outra, que não é própria. Por exemplo, numa
representação de bairro, os interesses são os dos cidadãos e não os “desta” ou
“daquela” categoria.
Outro aspecto a ser considerado é o de que, quando se argumenta a favor da
democracia representativa não significa a negação da democracia direta. Por outro
lado, quando se defende a democracia direta não significa declarar que por si, ela
seja suficiente. A passagem de uma para outra é ininterrupta. Afirma Bobbio:
55
implica que, de fato democracia representativa e democracia direta não são dois sistemas alternativos (no sentido de que onde existe uma não pode existir outra), mas são dois sistemas que se podem integrar reciprocamente. Com uma fórmula sintética, pode-se dizer que num sistema de democracia integral as duas formas de democracia são ambas necessárias, mas não são consideradas em si mesmas, suficientes (BOBBIO, 2000a, p.65).
Para compreender esta questão basta tomar o exemplo do referendum que se
constitui, numa das formas possíveis de aplicação da democracia direta, em
circunstâncias extraordinárias, e que possibilita uma completariedade à democracia
representativa.
O problema da democracia, hoje, não é tanto da passagem da democracia
representativa à democracia direta, mas na passagem da democracia política para a
democracia social, isto é, da democratização do Estado à democratização da
sociedade. Observa Bobbio:
o processo de expansão do poder ascendente, está se estendendo da esfera das relações políticas, nas quais o indivíduo é considerado em seu papel de cidadão, para a esfera das relações sociais, onde o indivíduo é considerado na variedade de seus status e de seus papéis específicos, por exemplo, de pai e de filho, de cônjuge, de empresário e de trabalhador, de professor e de estudante (...) (BOBBIO, 2000a, p. 67).
Com o processo de expansão do poder ascendente Bobbio se coloca a
seguinte pergunta: “é possível a sobrevivência de um Estado democrático numa
sociedade não-democrática?” (BOBBIO, 2000a, p. 68). Sustenta que após o sufrágio
universal em que se estendeu a participação política a todos os cidadãos em
condições de exercer a cidadania através do voto, o indicador do desenvolvimento
da democracia deixou de ser o de “quem” vota, para o de “onde” se vota, seguido de
uma ressalva, diz o autor: “não pretendo de forma alguma limitar a participação ao
voto” (BOBBIO, 2000a, p. 68). Considerando que além de desejável é também
possível o desenvolvimento da democracia através da conquista de novos espaços
de poder na esfera da sociedade, pode-se afirmar que a democracia está longe de
alcançar este objetivo, pois, conforme Bobbio, “a grande empresa e a administração
pública – não foram até agora sequer tocados pelo processo de democratização”
(BOBBIO, 2000a, p. 70).
À medida que no processo democrático político se vincula a esfera das
relações sociais, que, por sua vez, não possui uma identificação imediata com
Estado e é baseada em diversos centros de poder, cria-se a necessidade de
56
estabelecer uma relação entre a democracia e esta concepção plural de poder. Após
frequentemente ouvir que sociedade pluralista e sociedade democrática são a
mesma coisa, Bobbio discorda e afirma: “isto não é verdade: o conceito de
democracia e o conceito de pluralismo, diria um lógico, não tem a mesma extensão.
Pode-se muito bem encontrar uma sociedade pluralista que não seja democrática e
uma sociedade democrática que não seja pluralista” (BOBBIO, 2000a, p. 71). Como
exemplo, de sociedade pluralista, refere-se à sociedade feudal, que possuía vários
centros de poder, num conjunto de oligarquias, mas que não partilhavam de um
poder central forte. Com relação à sociedade democrática, cita o exemplo da pólis
grega, onde se desenvolvia toda a atividade pública de forma direta e, portanto, sem
intermediários.
Acontece que nas sociedades modernas o pluralismo é uma situação objetiva,
por isso, não é possível negá-lo se quisermos medir o desenvolvimento da
democracia. Conforme Bobbio, “um Estado moderno nada mais pode ser que uma
democracia pluralista” (...) “contra o abuso do poder; representam dois remédios
diversos, mas não necessariamente alternativos contra o poder exorbitante”
(BOBBIO, 2000a, p. 72).
Contra o abuso do poder são travadas duas lutas: a que parte da sociedade
democrática ascendente contra o poder descendente, e a que parte da sociedade
pluralista contra o poder concentrado em nome do poder distribuído. A emergência
do pluralismo de interesses, numa democracia representativa, mostra a existência
de novas oligarquias, e a necessidade de intervenção da sociedade civil nestes
centros de poder, de modo que, o poder não apenas seja distribuído, mas
controlado.
Numa sociedade democrática e pluralista onde frequentemente o consenso é
considerado fundamental e é expresso pela regra da maioria, surge no âmbito das
discussões políticas um outro elemento, isto é, o dissenso que é expresso pela regra
da minoria. Bobbio observa que a democracia é um sistema político que pressupõe o
dissenso. De resto que valor tem o consenso onde o dissenso é proibido?, onde não existe opção entre o consenso e o dissenso, onde o consenso é obrigatório e até mesmo premiado, e onde o dissenso não apenas é proibido mas é também punido?; é ainda consenso ou é pura e simples aceitação passiva do comando do mais forte?; se o consenso não é livre, que diferença existe entre o consenso e a obediência superior tal qual prescrita por todos os ordenamentos hierárquicos? (BOBBIO, 2000a, p. 74).
57
Ao vincular o pluralismo ao dissenso, Bobbio considera que somente numa
sociedade pluralista é possível o dissenso. Desta forma, Bobbio chega a seguinte
conclusão: “a liberdade de dissentir necessita de uma sociedade pluralista, uma
sociedade pluralista permite uma maior distribuição do poder, uma maior distribuição
do poder abre as portas para a democratização da sociedade civil e finalmente a
democratização da sociedade civil alarga e integra a democracia política” (BOBBIO,
2000a, p. 76).
A partir desse exame da democracia representativa, destacamos os seguintes
aspetos: a) a democracia representativa nos dias de hoje, é a forma melhor
adequada de exercício do poder político, b) as deliberações que se referem ao
respeito à coletividade inteira, são tomadas por pessoas eleitas para esta finalidade,
c) a crítica feita ao Estado parlamentar não significa, imediatamente, a critica à
democracia representativa, d) nem toda a crítica à democracia representativa
conduz diretamente à democracia direta, e) o conceito de representação tem
significados distintos a partir das seguintes atribuições: como o representa? e o que
representa?, f) o representante pode ser delegado ou fiduciário, g) na democracia
representativa o representante possui duas características específicas:
na medida em que goza da confiança do corpo eleitoral, uma vez eleito, não é mais responsável perante os próprios eleitores e seu mandato, portanto, não é revogável, e não é responsável diretamente perante os seus eleitores exatamente porque convocado a tutelar os interesses gerais da sociedade civil e não os interesses particulares desta ou aquela categoria (BOBBIO, 2000a, p. 60);
Destaca-se ainda: h) a democracia representativa e democracia direta não
são dois sistemas alternativos, ambas são necessárias, mas não são consideradas
em si mesmas, suficientes; i) O problema da democracia, hoje, não é tanto da
transição da democracia representativa à democracia direta, mas na passagem da
democracia política para a democracia social; j) Com uma fórmula sintética, pode-se
dizer que num sistema de democracia integral as duas formas de democracia são
necessárias, mas não são consideradas em si mesmas suficientes” (BOBBIO,
2000a, p.65); l) Estado moderno nada mais pode ser que uma democracia pluralista;
m) a democracia pressupõe o dissenso. Após esse exame da democracia
representativa e de suas principais características passamos à exposição dos limites
da democracia representativa.
58
3.3 Os limites da democracia representativa
Bobbio entende que a democracia é dinâmica, enquanto que o despotismo é
estático e sempre igual a si mesmo. Isto é, a democracia se transforma, ao passo
que as mais diversas interpretações surgem, como forma de descrever este
fenômeno. Há quem prefira chamar essas transformações de crises da democracia.
Segundo Bobbio, a palavra crise apresenta uma conotação negativa e, é usada,
normalmente, por aqueles que condenam a democracia. Os que veem a democracia
como algo positivo, normalmente, atribuem o termo transformações da democracia.
Mas, mesmo neste sentido, o termo transformações da democracia não representa
em nada um avanço. O termo transformação, é “vago”, ou seja, dela procedem as
mais diversas avaliações. Para Bobbio, é mais útil “concentrar a reflexão sobre o
contraste entre os ideais democráticos e a “democracia real””. (BOBBIO, 2000a, p.
34). Deste contraste é que podemos identificar as transformações de forma mais
objetiva. Trata-se do exame entre o que foi prometido e o que foi efetivamente
realizado, ou seja, do limite entre o plano teórico às “condições” factuais. Bobbio
indicou seis limites da democracia que chamou de promessas não-cumpridas.
Passamos ao exame das seis promessas não-cumpridas pela democracia, estas
não representam uma ordem cronológica ou de importância.
A primeira promessa não-cumprida pela democracia é aquela que parte da
concepção individualista de sociedade em contraposição ao ideal organicista de
sociedade, postulado por Aristóteles, mas que, posteriormente se transforma numa
sociedade pluralista. A concepção individualista de sociedade tinha como ideal a
soberania do indivíduo e a ausência de corpos intermediários. Nesta acepção não
existe o soberano e tão pouco o povo ou nação como uma unidade ideal. O que há
de fato são os indivíduos singulares que compõem o todo. Ocorre que este ideal se
transformou numa promessa não cumprida, segundo Bobbio, à medida que “sujeitos
politicamente relevantes se tornaram cada vez mais em grupos, grandes,
organizações, associações das mais diversas natureza, sindicatos das mais diversas
profissões, partido das mais diversas ideologias, e sempre menos os indivíduos”
(BOBBIO, 2000a, p. 35). Os indivíduos não são mais protagonistas da vida política, e
sim, os grupos. Como protagonistas da vida política, os grupos possuem um poder
parcial, às vezes, contraposto e concorrente, em que os interesses são diversos. O
59
ideal de um poder central forte, capaz de organizar e harmonizar os indivíduos se
tornou um ideal-limite. A sociedade individualista é uma sociedade dividida. Este
modelo de sociedade produziu um poder fraco, no qual se disputam interesses
parciais. Um poder que permaneceu como um ideal, sempre contrariado pelos fatos.
A segunda promessa não-cumprida nasce da democracia moderna em
contraposição à democracia antiga. A democracia moderna tem como característica
a representação política, onde o representante é chamado a servir os interesses da
nação, isto é, não pode estar submetido a um mandato vinculado, ou seja, a
perseguir interesses particulares como ocorre no direito privado. Para citar um
exemplo, de acordo com o princípio da representação política, um deputado, uma
vez eleito, deve se desvincular de quem o elegeu, a fim de representar os interesses
da nação. Na condição de representante político, este não possui nenhum mandato
vinculado. O fato é que a representação política continua sendo um ideal. A
representação política mesmo nos Estados democráticos mais desenvolvidos é
continuamente violada. Bobbio faz a seguinte observação:
Numa sociedade composta de grupos relativamente autônomos que lutam pela sua supremacia, para fazer valer os próprios interesses contra os outros grupos, uma tal norma, um tal princípio podem de fato encontrar realização? (BOBBIO, 2000a, p. 37).
A violação dos ideais da representação política se dá em grande medida entre
grupos partidários, grupos sociais e parlamento. São estes grupos que determinam
a maior ou menor representação política dos eleitos, quando agem em vista de
interesses particulares ou nos interesses da nação. Pois, como consideramos, os
protagonistas da vida política, não são os indivíduos, mas os grupos. Fica a
pergunta: Podemos encontrar um representante que não represente interesses
particulares?
A terceira promessa não-cumprida pela democracia é a derrota do poder
oligárquico. A democracia moderna nasce influenciada pelo princípio da liberdade
como autonomia. Isto é, a capacidade de dar leis a si próprio. Este ideal eliminava a
tradicional distinção entre governantes e governados, pois, aquele que dá as leis é o
mesmo que recebe. No entanto, segundo Bobbio, “a democracia representativa, que
é a única forma de democracia existente e em funcionamento, é já por si mesma
uma renúncia ao princípio da liberdade como autonomia” (BOBBIO, 2000a, p. 38).
Com a democracia representativa, a liberdade como autonomia existe apenas
60
durante o processo eleitoral de escolha do representante. Uma liberdade autônoma
deveria permitir que o cidadão, a todo instante, pudesse estar apto a decidir por
aquilo que lhe diz respeito. Uma liberdade assim, só é possível num modelo ideal de
democracia ou na hipótese de que com o avanço da era eletrônica, o cidadão
pudesse transmitir o seu voto da sua própria casa. Bobbio considera que este
modelo de democracia se traduz no que Dahrendorf chama de “cidadão total”. O
“cidadão total” produziria como efeito a “saciedade de política e a apatia eleitoral”
(apud BOBBIO, 2000a, p. 39).
Segundo Bobbio, “nada ameaça mais matar a democracia que o excesso de
democracia” (BOBBIO, 2000a, p. 39). A democracia hoje não corre sérios riscos,
pois o que existe de fato na democracia, não é o cidadão total, tão pouco o cidadão
parcial, e sim, a presença de muitas oligarquias em concorrência entre si na busca
do voto popular e do poder temporário.
A quarta promessa não-cumprida pela democracia é da ocupação de todos os
espaços onde se exerce um poder, que vincula um grupo social por inteiro. A
democracia moderna nasceu com o propósito de legitimar e controlar as decisões
políticas que vinculassem os indivíduos. Para Bobbio, o problema da democracia
enquanto legitimação ou controle do poder, não é o de distinguir entre governo de
poucos ou governo de muitos, mas o de realizar a distinção entre o poder
ascendente e o poder descendente. Após o sufrágio universal o único modo efetivo
para se examinar o desenvolvimento da democracia é não o de quem vota, mas
onde se vota. Ou seja, quais os espaços em que se exerce este direito. Conforme
Bobbio a concessão do direito político abre as “portas” para os direitos de liberdade
e a única garantia do respeito ao direito de liberdade é o direito de controlar o poder.
Segundo Hirst, “o problema do controle, em outras palavras, não é tanto o problema
das matérias sobre as quais o poder é exercido, mas o fato de que seja realmente
incontrolado, isto é, não esteja ele mesmo sob controle”. (HIRST, 1992, p. 35)
A quinta promessa não-cumprida pela democracia real é a que diz respeito à
eliminação do poder invisível. A democracia ideal se caracteriza pela publicidade do
poder. Este modelo de democracia nos remete à clássica cidade de Atenas na
Grécia, onde a ágora era o lugar de encontro dos cidadãos, que a luz de suas
convicções, após terem ouvido os oradores, manifestavam a sua opinião acerca das
coisas que lhe diziam respeito. Uma democracia como essa não permite forma
alguma de disfarce, dissimulação, segredo entre outras características próprias do
61
poder invisível. A publicidade do poder faz com que os cidadãos tomem
conhecimento dos atos do governo, além disso, permite que os cidadãos controlem
o poder e distingam o que é lícito do que não é. Segundo Bobbio, Kant afirma que
lícito é a ação cuja manifestação pública não causa escândalos e ilícita é a ação que
ao ser submetida publicamente, imediatamente, suscitaria a reprovação pública
(BOBBIO, 2000a, p. 42). Basta que observemos o seguinte exemplo: “que
funcionário público pode afirmar em público que usará o dinheiro público para
interesses privados”? (BOBBIO, 2000a, p. 42).
Na democracia moderna é cada vez mais comum a demanda por
transparência do poder. O uso de técnicas e instrumentos refinados tornam o poder
incontrolável. A democracia não garante efetivamente a visibilidade do poder. O uso
de técnicas como a burocracia e o aparato tecnológico dificulta a aproximação entre
os governantes e os governados. A computadocracia ao mesmo tempo em que
aproxima as ações dos governantes é uma ferramenta muito utilizada, para controle
dos cidadãos. Técnicas novas são comuns, quando o fim é o controle dos cidadãos,
por aqueles que detêm o poder.
A visibilidade do poder é uma exigência do correto funcionamento da
democracia. Uma democracia em que reina o segredo, o disfarce, o ocultamento, a
espionagem, não é uma democracia verdadeira. Numa democracia verdadeira os
cidadãos estão espacialmente próximos dos governantes e conhecem todos os seus
atos, já que eles são visíveis.
A sexta promessa não-cumprida pela democracia é a da educação para a
cidadania. Segundo Bobbio a educação para a cidadania perpassa o exercício da
prática democrática e da consciência comunitária. É pela prática democrática que os
cidadãos exercem efetivamente a sua cidadania. Pela consciência de pertencerem a
uma comunidade em que os cidadãos passam a “amar” a coisa pública.
O exercício da prática democrática apresenta duas características: uma em
que o cidadão é obrigado por força de lei a exercer a sua cidadania, e outra em que
o cidadão é livre para exercer ou não a sua cidadania. Quando o exercício da
prática democrática vincula a lei (obrigatoriedade) como um expediente para
participação ampla dos cidadãos, o que ocorre é a diminuição da esfera da liberdade
negativa e consequentemente a diminuição da responsabilidade. Desta forma, o
cidadão tende a se tornar passivo, despreparado, inapto, conformista, desregrado e
improdutivo.
62
Para Bobbio, há uma característica que deve ser destacada: o fato de que o
cidadão ao se sentir obrigado a interromper, por um momento, as ações cotidianas,
percebe a conexão existente entre o seu interesse pessoal e a dos membros de uma
comunidade. Assim, o cidadão ao realizar esta reflexão passa a compreender e a
educar-se para o exercício da cidadania, através do efeito vinculante da lei. Quando
o cidadão é livre para exercer a sua cidadania, sente-se mais comprometido com os
próprios interesses e de uma inteira coletividade. Nesta perspectiva o cidadão é
ativo, preparado, apto, inconformista, regrado e produtivo. Bobbio observa que na
obra de John Stuart Mill Considerações sobre o governo representativo, o autor já
indicava a divisão entre “cidadãos ativos e cidadãos passivos” (apud BOBBIO,
2000a, p. 44).
Segundo Bobbio, os governantes preferem os cidadãos passivos, pois, é mais
fácil dominá-los e transformá-los em súditos dóceis e indiferentes. Mas a democracia
necessita de cidadãos ativos. O cidadão ativo participa das decisões políticas. O
exercício da cidadania, independente de ser um dever ou um direito, produz o que
podemos chamar de cidadãos educados politicamente. Um dos meios para o
exercício da prática democrática e que citamos como exemplo, é a participação
eleitoral. De acordo com Stuart Mill a participação eleitoral tem um grande valor
educativo, que se desenvolve e se traduz em consciência comunitária. Por outro
lado, o cidadão passivo produz a apatia política, que é responsável pela diminuição
do voto de opinião e aumento do voto clientelar ou de permuta. Mesmo nas
democracias mais avançadas o voto clientelar tem resistido às inúmeras críticas
oferecidas pela literatura universal. É comum a expressão popular “venda do voto”
ou como sustentam os intelectuais a “mercantilização do voto” que visa interesses
pessoais, ao invés dos interesses políticos.
Em suma, a formação do cidadão educado compreende o exercício da prática
democrática e a consciência de que os indivíduos são membros de uma
comunidade. Além disso, a democracia necessita de cidadãos ativos para assegurar
que as decisões políticas sejam em prol do interesse coletivo.
Após examinarmos as promessas não-cumpridas pela democracia,
destacamos as causas que determinaram o surgimento de obstáculos não previstos
na democracia. Bobbio indicou três obstáculos: o governo dos técnicos, o aparato
burocrático e o baixo rendimento.
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As sociedades à medida que foram se desenvolvendo, transformaram-se de
uma economia familiar à economia de mercado e da economia de mercado a uma
economia protegida. Ampliou-se a necessidade de controle, exigindo competências
sempre mais específicas, para problemas cada vez mais complexos. A partir deste
momento surgem os técnicos, os especialistas, os cientistas. Surge o que Bobbio
denominou de antítese, entre o governo dos especialistas (tecnocracia) e o governo
popular (democracia). “A democracia sustenta-se sobre a hipótese de que todos
podem decidir a respeito de tudo. A tecnocracia, ao contrário, pretende que sejam
convocados para decidir apenas aqueles poucos que detêm conhecimentos
específicos” (BOBBIO, 2000a, p. 46).
O segundo obstáculo não-previsto se deu com o surgimento do aparato
burocrático. Contrário ao sistema democrático em que o poder parte da base em
direção ao vértice, o poder despótico parte do vértice em direção à base, isto é, num
poder ordenado hierarquicamente. O uso do aparato burocrático é uma
característica predominante do poder despótico. A burocracia é um recurso
frequentemente utilizado para impedir ou protelar o exercício das liberdades
fundamentais. Com a extensão dos direitos aos indivíduos, imaginava-se a
dissolução do poder burocrático. Num primeiro momento com a extensão do voto
aos proprietários, depois aos analfabetos, em seguida aos não-proprietários e,
posteriormente, às mulheres. A quantidade e variedade de interesses demandados
pelos grupos, ao Estado, exigem deste, mecanismos cada vez mais complexos, não
apenas para assegurar os direitos adquiridos pelos cidadãos, mas para limitar o
excesso de demandas, tendo em vista a incapacidade do Estado em satisfazer
plenamente os interesses dos indivíduos.
O terceiro obstáculo não-previsto é o do baixo rendimento. Bobbio entende
como baixo rendimento, a capacidade do Estado em prover as demandas dos
cidadãos. Estas originaram dois problemas específicos que resultaram na chamada
“ingovernabilidade” da democracia. O primeiro de ordem quantitativa e o segundo de
ordem temporal. O primeiro se refere a um número de demandas da sociedade civil
ao Estado sempre maior que a capacidade do Estado de resolvê-las. O segundo é a
rapidez com que as demandas chegam ao Estado. O sistema político democrático
não possui os mecanismos tão eficientes para dar conta desta realidade. Neste
sentido, ocorre o que Bobbio chama de “sobrecarga” do Estado e a necessidade de
64
se fazer opções. Neste caso, a opção não-satisfeita produz nos cidadãos afetados
um descontentamento que gera a ingovernabilidade.
Apesar dos problemas mencionados, a democracia está longe de ser
comparada à autocracia. Bobbio afirma: Pois bem, a minha conclusão é que “as
promessas não-cumpridas e os obstáculos não-previstos de que me ocupei não
foram suficientes para “transformar” os regimes democráticos em regimes
autocráticos” (BOBBIO, 2000a, p. 50). Outro ensinamento fundamental é aquele em
que Bobbio cita Karl Popper: “o que distingue essencialmente um governo
democrático de um não democrático é que apenas no primeiro os cidadãos podem
livrar-se de seus governantes sem derramamento de sangue” (apud BOBBIO,
2000a, p. 51).
3.4 A compatibilidade ou incompatibilidade entre democracia e liberalismo
É frequente nos escritos políticos de Bobbio o interesse pelos temas
democracia e liberalismo. Tal interesse, resultou na Obra Liberalismo e democracia
onde aborda diversos conceitos relacionados à questão da democracia e do
liberalismo. Ao tratar desses temas, o autor não se preocupa em produzir um
conhecimento sistemático, mas em contribuir com uma noção geral do problema. A
discussão de diversos conceitos aponta para um problema central a que chamamos
de compatibilidade ou incompatibilidade entre democracia e o liberalismo. No
conjunto da obra, Bobbio dialoga com diversos expoentes do pensamento político e
examina as divergências ou convergências acerca da compatibilidade ou
incompatibilidade entre a democracia e o liberalismo.
Segundo Bobbio, a acepção mais comum do liberalismo é aquela que
entende o Estado com poderes e funções limitadas, contrapondo-se ao Estado
absoluto e ao Estado social. Por democracia entende-se comumente como sendo
uma das várias formas de governo, em que o poder é distribuído a todos ou à
maioria, contrapondo-se a formas autoritárias, como, por exemplo, a monarquia e a
oligarquia.
O nascimento do Estado liberal se funda a partir da contraposição ao Estado
absoluto e é marcado fundamentalmente pela concepção jusnaturalista, segundo a
65
qual todos os homens, indiscriminadamente, possuem certos direitos por natureza,
como, por exemplo, o direito à vida, à liberdade, à segurança, à felicidade,
independente de sua própria vontade e tão pouco da vontade dos outros. Ou seja, a
doutrina jusnaturalista afirma a existência de “leis não postas pela vontade humana”
(BOBBIO, 2000b, p. 12). Desta concepção hipotética de caráter puramente racional,
nasce o pressuposto filosófico do liberalismo, na medida em que este saber
prescinde de verificações empíricas. A doutrina jusnaturalista limita o poder e as
funções do Estado e atribui direitos aos indivíduos. Os indivíduos, anterior ao Estado
liberal possuíam deveres, mas com o surgimento das doutrinas jusnaturalistas
passam a ser portadores de direitos. A influência da doutrina jusnaturalista teve
repercussão prática através das revoluções americana (Estados Unidos da América
do Norte - 1776) e francesa em (1789). Segundo Bobbio “o Estado liberal nasce de
uma contínua e progressiva erosão do poder absoluto do rei e, em períodos
históricos de crise mais aguda, de uma ruptura revolucionária” (BOBBIO, 2000b, p.
14). O Estado liberal se justifica a partir da compreensão de que os indivíduos
libertos dos comandos de alguns poucos ou de um, convencionam livremente sobre
vínculos necessários para uma convivência pacífica e duradoura. O homem
naturalmente livre constroi uma sociedade política baseada no consenso e, portanto,
uma sociedade de soberania limitada. O Estado liberal é fruto do consenso político
entre indivíduos livres por natureza, que decidem acordar por um poder comum e
superior que garanta os direitos fundamentais. Direitos esses que não dependem da
instituição de um soberano, pois já o são, por natureza, direitos dos indivíduos.
A concepção de direitos do homem e à concepção do contratualismo estão
estritamente ligados. Estas duas concepções partem de uma concepção
individualista de sociedade. No primeiro caso, os direitos do homem nascem do
interesse e carências dos indivíduos, disso decorre a “assunção de uma hipotética
lei da natureza e depois da sociedade” (BOBBIO, 2000b, p. 15). Ou seja, contrária à
tese organicista de sociedade que prevalece o todo em relação às partes. No
segundo caso, o contratualismo inverte a relação entre os indivíduos e a sociedade.
A sociedade não é mais um fato natural, que independe da vontade dos indivíduos,
mas uma criação artificial que busca satisfazer as carências e interesses dos
envolvidos no exercício de seus direitos.
A concepção de direito faz nascer o Estado de direito que compreende
basicamente dois aspectos: a) os limites dos poderes do Estado; b) e os limites das
66
funções do Estado. De acordo com a doutrina liberal o que representa o primeiro é o
Estado de direito e o que representa o segundo é o Estado mínimo. No que diz
respeito ao Estado mínimo, este se contrapõe ao Estado máximo, isto é, ao Estado
absoluto ou totalitário. No Estado mínimo os cidadãos têm o máximo de liberdade e
o mínimo de restrição.
O Estado de direito é aquele em que os poderes públicos são regulados por
normas gerais fundamentais ou constitucionais contra o Estado absoluto. A não ser
naqueles casos em que o cidadão ao ser violado em seus direitos, recorre a um juiz
independente, a fim de que seja reconhecido e refutado o abuso ou excesso do
poder. Além disso, se deve acrescentar ao Estado de direito o que Bobbio chama
“constitucionalização dos direitos naturais, ou seja, a transformação desses direitos
em direitos juridicamente protegidos, isto é, em verdadeiros direitos positivos”
(BOBBIO, 2000b, p. 18). Trata-se da superioridade do governo das leis em relação
ao governo dos homens. Cabe destacar ainda, que o Estado de direito se
caracteriza por mecanismos constitucionais que impedem o exercício arbitrário do
poder. Bobbio destacou os seguintes:
a) o controle do Poder Executivo por parte do Poder Legislativo; ou, mais exatamente, do governo, a quem cabe o Poder Executivo, por parte do parlamento, a quem cabe em última instância o Poder Legislativo e a orientação política; b) o eventual controle do parlamento no exercício do Poder Legislativo ordinário por parte de uma corte jurisdicional a quem se pede a averiguação da constitucionalidade das leis; c) uma relativa autonomia do governo local em todas as suas formas e em seus graus com respeito ao governo central; d) uma magistratura independente do poder político (BOBBIO, 2000b, p. 19).
O Estado liberal se consagra como a doutrina dos limites jurídicos ao poder
estatal. Fato que resulta num progressivo alargamento da liberdade do indivíduo. O
processo, decorrente deste alargamento da liberdade, resultou predominantemente
num significativo progresso das esferas da liberdade religiosa e a da liberdade
econômica. No primeiro caso, ocorreu a passagem de um Estado confessional para
um Estado laico, neutro, agnóstico. No segundo caso, o fim dos privilégios e das
relações paternalistas. A liberdade econômica inaugura um modelo de economia
baseado numa relação horizontal e não como descrito na tradição feudal, isto é, de
forma vertical, marcada por privilégios e hierarquias.
O rompimento com a tradição fez emergir uma nova relação entre o homem e
o Estado. Bobbio expressa esta relação ao citar Humboldt.
67
o homem verdadeiramente razoável não pode desejar outro Estado que não aquele no qual cada indivíduo possa gozar da mais ilimitada liberdade de desenvolver a si mesmo, em sua singularidade inconfundível, e a natureza física não receba das mãos do homem outra forma que não a que cada indivíduo, na medida de suas carências e inclinações, a ela pode dar por seu livre-arbítrio, com as únicas restrições que derivam dos limites de suas forças e de seu direito (apud BOBBIO, 2000b, p. 24).
A inviolabilidade dos direitos naturais dos indivíduos é o que fundamenta o
Estado Liberal. Com base nestes, surgidos a partir da concepção liberal de
sociedade, as teorias democráticas dividiram-se em teorias procedimentais e teorias
substanciais. As teorias procedimentais afirmam a inviolabilidade dos direitos
naturais a partir das regras do jogo, previamente estabelecidas, enquanto que as
teorias substanciais buscam assegurar um conteúdo mínimo que garanta a
inviolabilidade destes direitos. A formação do Estado liberal se deu através das
teorias procedimentais que resultam na democracia formal. Com as teorias
substanciais nasce a antítese à democracia formal. A democracia substancial atribui
um significado ético às normas procedimentais, culminando na interminável
discussão acerca do conteúdo destas normas, com base nos inúmeros critérios
possíveis para a escolha dos conteúdos. O caráter ético igualitário que as
democracias substanciais postulam, tornam complexo o problema da relação entre
liberdade e igualdade. O que importa ao liberalismo é a expansão da personalidade
individual, independentemente do desenvolvimento concomitante do grupo ou
comunidade de que faz parte este indivíduo. Para o igualitário, ao contrário, o que
realmente importa é o desenvolvimento da comunidade, mesmo que sob a pena de
diminuir a esfera das liberdades singulares. Ou seja, trata-se de valores antitéticos
que conforme Bobbio “não se pode realizar plenamente um sem limitar fortemente o
outro” (BOBBIO, 2000b, p. 39). A única forma de compatibilidade da igualdade em
relação à liberdade é a igualdade na liberdade, que inspira os dois princípios
fundamentais da igualdade, isto é, a igualdade perante a lei e a igualdade de
direitos. A primeira que trata de uma forma de igualdade restrita, e a segunda que
trata de uma forma de igualdade ampla. No primeiro caso temos uma espécie de
igualdade restrita, historicamente determinada de igualdade de direito. No segundo
caso temos uma espécie de igualdade ampla que significa para além da igualdade
perante a lei, a igualdade nos direitos fundamentais assegurados
constitucionalmente.
68
Historicamente, a igualdade dos direitos fundamentais surge após a “batalha”
do Estado liberal contra o Estado Absoluto. Na formação do Estado liberal a
concepção de direitos estava reservada a alguns poucos que detinham
propriedades. Estado liberal e democracia não estavam diretamente interligados. A
luta pela igualdade de direitos surge com as revoluções americana e francesa e
culmina na Declaração Universal dos Direitos Humanos, que postula: “todas as
pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. Mediante este princípio
igualitário, o Estado liberal e a democracia cada vez mais se tornaram
interdependentes. Através do sufrágio universal e das regras do jogo democrático, a
democracia como método se torna a salvaguarda dos direitos fundamentais da
pessoa que estão na base do Estado liberal e, por conseguinte, a salvaguarda
destes direitos representa o correto funcionamento do método democrático. O
método democrático garante a ampla participação dos indivíduos nos assuntos
públicos e permite a limitação e controle do poder do Estado. O correto
funcionamento da democracia se inicia com o voto, em que cada indivíduo é livre
para depositar na urna a sua opinião. Mas a democracia não se limita ao processo
eleitoral, seus mecanismos ampliam as esferas da liberdade, permitindo que os
indivíduos se desenvolvam economicamente, socialmente, culturalmente e
politicamente.
Os Ideais liberais e o método democrático vieram se combinando
gradativamente. Por um lado, com os direitos de liberdade que tornaram possível a
aplicação das regras do jogo democrático e, por outro lado, com o desenvolvimento
da democracia tornou-se possível a defesa dos direitos fundamentais.
Em suma, para Bobbio, entre liberalismo e democracia ocorrem três espécies
de relações: a) de compatibilidade; b) de antítese; c) de necessidade. Por relação de
compatibilidade, entende a possibilidade de existência de um Estado liberal e
democrático, sem que se exclua a possibilidade de existência de um Estado Liberal
não-democrático (liberais conservadores) e, até mesmo, da existência de um Estado
democrático não-liberal (democratas radicais). O liberalismo e a democracia formam
uma relação antitética na medida em que o excesso de democracia acaba por
destruir o Estado liberal, como afirmam os liberais conservadores, ao passo que a
democracia plenamente realizada, segundo os democratas radicais, somente é
possível através de um Estado social, isto é, mediante a extinção do Estado mínimo,
defendido pelos liberais conservadores. A outra relação possível entre liberalismo e
69
democracia é a de necessidade. De acordo com esta tese, somente a democracia
realiza plenamente os ideais liberais e apenas o Estado liberal está em condições de
realização da democracia.
3.5 A compatibilidade ou incompatibilidade entre democracia e socialismo
A atitude primeira daqueles que defendem o socialismo é lançar a crítica ao
liberalismo e daqueles que defendem o liberalismo criticar o socialismo. Entre
liberalismo e socialismo ocorre uma relação de antítese. E nisso, não há como
expandir um, sem limitar o outro.
O ideal socialista nasceu em contraposição ao ideário liberal. Para o socialista
a liberdade econômica, pressupõe a defesa ilimitada da propriedade privada, que se
torna a principal responsável pela desigualdade entre os homens. Conforme as
teorias socialistas, somente através da revolução de classes e do confronto aos
interesses burgueses poderá haver o progresso histórico da humanidade. Mas para
o liberalismo, o desenvolvimento depende da liberdade econômica, pois esta é
condição para todas as demais liberdades. Segundo os socialistas a liberdade
defendida pelo liberais é simplesmente uma ideologia burguesa, que assegura
privilégios a alguns poucos, que são proprietários, e desvantagens à grande maioria
dos indivíduos.
Segundo Bobbio, liberalismo e socialismo são antitéticos desde a sua origem.
É impossível imaginar a conciliação entre estes conceitos. Por outro lado, a relação
entre democracia e socialismo é de complementariedade. Ambas defendem o poder
ascendente em contraposição ao poder descendente. A ampliação da democracia
possibilita não apenas o surgimento dos ideais socialistas, mas o seu
desenvolvimento. Isso significa que a democratização da sociedade civil resulta num
processo de transformação social, isto é, a extinção da propriedade privada, pela
coletivização dos meios de produção. Ao fazer a crítica ao liberalismo, o socialismo
trata não apenas da ilimitada liberdade de propriedade privada, mas da democracia
formal, da qual se tem uma liberdade de princípio, mas não uma liberdade de fato,
entre todas as pessoas. Para o socialismo a igualdade diante da lei, não é sinônimo
nem de liberdade e tão pouco de uma sociedade igualitária. O que torna o homem
70
livre e uma sociedade igualitária é a igualdade de direitos. É como descreve Bobbio
quando cita Francesco de Sanctis:
onde existe desigualdade, a liberdade pode estar escrita nas leis, no
estatuto, mas não é coisa real: não é livre o camponês que depende do
proprietário, não é livre o empregado que permanece submetido ao patrão,
não é livre o homem da gleba sujeito ao trabalho incessante dos campos
(apud BOBBIO, 2000b, p. 75).
É a partir deste pressuposto que se dá a relação de complementariedade
entre democracia e socialismo. Pela democracia ocorre a expansão da sociedade
socialista e a transformação social por meio de uma distribuição igualitária do poder
econômico e do poder político, ou seja, a massa popular ascende da opressão. Uma
sociedade socialista favorece uma maior participação política, pois não há
intermediários, a participação é direta. Os teóricos socialistas sustentam a
complementariedade entre socialismo e democracia por acreditarem que de fato o
advento do socialismo se dá através da democracia. Para os teóricos da
democracia, o socialismo é condição para o desenvolvimento da própria democracia.
Conforme Bobbio, para além da relação de complementariedade entre
democracia e socialismo, deve-se acrescentar que esta relação não deixa de ser
também polêmica. Bobbio se pergunta: a transformação social deveria ser iniciada
com o imediato alargamento da democracia, independente da certeza do seu
desenvolvimento? Ou, através da tomada imediata do poder através da revolução
socialista, mesmo que por um momento se prescindisse do método democrático?
Diante desta polêmica os ideais socialistas resistiram contra a crítica liberal de
abandono do método democrático pelos socialistas. A democracia socialista
apresenta três argumentos de defesa: a) A democracia liberal nasceu como
democracia representativa de eleitos, sem qualquer vínculo de mandato, enquanto
que na democracia socialista ocorre a democracia direta de todo o povo, sem
representantes ou intermediários e sim de delegados cujo mandato é vinculado e
passível de revogação; b) a democracia liberal permitiu o sufrágio universal, mas
somente a democracia socialista permitiu a participação popular nas decisões
políticas e nas decisões econômicas. Enquanto que numa sociedade liberal-
capitalista as decisões partem de cima, nas sociedades socialistas as decisões
71
partem da base, isto é, da massa, permitindo o exercício da soberania popular que é
a essência da democracia; c) a democracia liberal dissocia a distribuição do poder
político com relação ao econômico e atribui maior importância à democracia formal.
A democracia socialista transforma a democracia formal em democracia substancial.
Para a democracia socialista além da distribuição do poder político, a distribuição do
poder econômico é essencial para a realização do princípio último da democracia: a
igualdade entre os homens. Para Bobbio, as razões socialistas contra as razões
liberais são aceitáveis. Mas do ponto de vista prático o socialismo é inatingível
através do método democrático. E ainda, o socialismo sem o método democrático
instaura um regime de ditadura e não consegue realizar a passagem a um regime de
democracia. Afirma Bobbio:
Todos nós sabemos que, hoje, é questão de vida ou morte para o futuro do
socialismo a recuperação da instância democrática, no único sentido em
que se pode falar racionalmente de democracia sem permitir enganos, ou
seja, um sistema no qual vigorem e sejam respeitadas algumas regras que
permitam o maior número de cidadãos participar direta e indiretamente das
deliberações que em diversos níveis (locais, regionais, nacionais) e nas
mais diferentes sedes (a escola, o trabalho, etc.), interessam a coletividade
(BOBBIO, 1983, p. 46).
Para Bobbio o desenvolvimento do socialismo foi comprometido com o erro
dos teóricos da democracia industrial, que acreditavam, que a resolução do
problema da democracia política dar-se-ia via a democratização econômica, isto é, o
governo dos cidadãos, no autogoverno dos produtores. Além disso, é possível
identificar um outro erro, isto é, da impossibilidade de controlar democraticamente, a
partir de baixo o poder econômico, tanto nos Estados capitalistas, quanto nos
Estados socialistas.
Uma democracia, quando incontrolada, tende a degenerar-se. Por isso, não é
possível imaginar uma relação entre democracia e socialismo, senão por meio de
regras que permitam o controle do poder econômico, pois “é exatamente nesse
terreno, no terreno do controle democrático do poder econômico, que se vence ou
se perde a batalha pela democracia socialista” (BOBBIO, 1983, p. 90). “Ou se
entende por um método, isto é, um conjunto de regras para a formação da vontade
72
coletiva, ou não sei, absolutamente, do que se pretende falar” (BOBBIO, 1983, p.
82).
Segundo Bobbio ninguém até agora conseguiu responder o problema
dramático e crucial da relação entre democracia e socialismo. Dramático na medida
em que até hoje as palavras (ambíguas e adaptáveis a contextos distintos) não
favoreceram o desenvolvimento de uma idéia comum sobre o problema. Crucial, na
medida em que a esfera das liberdades individuais se torna limitada e a sociedade
necessitada de maior controle, e esta, sempre mais incontrolável.
Bobbio identifica a relação entre democracia e socialismo como o problema
dramático do nosso tempo. Segundo o autor,
o poder quando incontrolado pode degenerar e que contra possíveis
degenerações do poder ocorre predispor remédios, alçar barreiras, levantar
defesas eficazes como o controle democrático, a proteção de algumas
liberdades civis, em primeiro lugar a de exprimir a própria opinião, uma
competitiva pluralidade das forças sociais e de suas organizações (BOBBIO, 1983, p. 77).
A partir do momento em que o socialismo elimina o método democrático
avança em direção à ditadura. E uma ditadura mesmo que socializante acaba
sempre na massa oprimida. Trata-se apenas de uma mudança de patrão, nada
mais. Basta considerar os fatos históricos que demonstram que democracia e
socialismo, na prática, nunca se realizaram e tão pouco individualmente. Segundo
Bobbio,
aqueles que desejam salvaguardar uma imagem positiva do socialismo
tendem a afirmar que a União Soviética não é um estado socialista, ou pelo
menos que representa um socialismo não acabado, ou melhor, desviado ou
degenerado; aqueles que, ao contrário, querem tirar daquele regime uma
confirmação do juízo negativo sobre o socialismo tendem a sustentar a tese
oposta, isto é, que a União Soviética é um estado socialista (BOBBIO, 1983,
p.109).
Bobbio considera que as regras são fundamentais num regime democrático,
mas que, não são suficientes. Segundo ele, se estivesse contente com isso não
estaria se metendo no debate entre democracia e socialismo, isto é, no debate em
73
que para se eliminar as desigualdades é que se coloca o problema de superar o
capitalismo (BOBBIO, 1983, p. 101).
Todos aqueles que defendem a democracia como uma via para o socialismo
acreditam ser o melhor meio para este fim. Mas, qual seria este fim? Qual o seu
conteúdo? As respostas não são fáceis, se é que elas existem. A literatura universal
lançou “luzes” sobre o problema, mas jamais chegou a uma conclusão comum
quando se trata de definir estas questões. Segundo Bobbio, as dificuldades em
estabelecer os fins do socialismo e o seu conteúdo se dão pelo seguinte motivo: “o
socialismo é como a felicidade: todos o desejam porque cada um pode imaginá-lo de
acordo com seus próprios desejos” (BOBBIO, 1983, p. 107). Então, se a democracia
é o caminho para o socialismo, resta saber, para onde?
74
4 REGRAS E PROCEDIMENTOS DEMOCRÁTICOS
Segundo Bobbio, o único modo que permite uma definição comum de
democracia é o de entendê-lo como um “conjunto de regras (primárias ou
fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar as decisões coletivas
e com quais procedimentos” (BOBBIO, 2000a, p. 30).
O autor vê na democracia uma via, ou um método, para se tomar as decisões
coletivas. As regras permitem estabelecer os pontos de partida e não os pontos de
chegada. A democracia, portanto, não define quais as decisões coletivas que devem
ser tomadas, mas como estas decisões devem ser tomadas, isto é, considerando
certos princípios, como, por exemplo, o valor da liberdade e da igualdade política
entre os homens.
Após o exame das regras do jogo analisamos a regra da maioria, a principal
regra do jogo, seguido do sufrágio universal. A primeira que é a regra procedimental
de decisão e a segunda, um critério que permite avaliar o desenvolvimento
democrático. A seguir descrevemos a relação entre consenso e dissenso na
democracia. Concluímos o capítulo com a análise sobre o voto e o paradoxo da
representação política.
4.1 As regras do jogo democrático
As regras do jogo democrático se caracterizam por permitirem uma ampla e
segura participação da maioria dos cidadãos de forma direta ou indireta nas
decisões que interessam a coletividade por inteiro. Para Bobbio são seis as regras
fundamentais da democracia:
1) todos os cidadãos que tenham alcançado a maioridade etária sem distinção de raça, religião, condição econômica, sexo, devem gozar dos direitos políticos, isto é, cada um deles deve gozar do direito de expressar sua própria opinião ou de escolher quem expresse por ele; 2) o voto de todos os cidadãos deve ter igual peso; 3) todos aqueles que gozam dos direitos políticos devem ser livres para poder votar segundo sua própria opinião formada, ao máximo possível, livremente, isto é, em uma livre disputa entre grupos políticos organizados em concorrência entre si; 4) devem ser livres também no sentido de que devem ser colocados em
75
condições de escolher entre diferentes soluções, isto é, entre partidos que tenham programas distintos e alternativos; 5) seja para as eleições, seja para as decisões coletivas, deve valer a regra da maioria numérica, no sentido de que será considerado eleito ou será considerada válida a decisão que obtiver o maior número de votos; 6) nenhuma decisão tomada por maioria deve limitar os direitos da minoria, particularmente o direito de se tornar por sua vez maioria em igualdade de condições (BOBBIO, 2000c, p. 427).
Bobbio admite que esta concepção de democracia, baseada num conjunto de
regras é restrita, mas assim o prefere, a conceber significados amplos, como, por
exemplo, de que a democracia é o governo do povo para o povo. Uma definição
desta espécie em nada contribui para um entendimento verdadeiro do que significa
democracia. O autor acrescenta que as regras do jogo democrático são condições
preliminares, o que significa que estas não bastam por si mesmas. Bobbio
reconhece que a democracia formal é limitada. Assim fala o autor: “basta a
inobservância de uma dessas regras para que um governo não seja democrático,
nem verdadeiramente, nem aparentemente” (BOBBIO, 2000c, p. 427).
A existência de várias regras é o que distingue o regime democrático do
regime autocrático. Um regime democrático opera com várias regras, que
estabelecem claramente as condições legítimas para uma decisão coletiva. Destas
regras, Bobbio elegeu duas como sendo as mais importantes: o sufrágio universal e
a regra da maioria. O sufrágio universal por entender que é expressão de maior
democratização e a regra da maioria “regra a base da qual são consideradas
decisões coletivas” (BOBBIO, 2000a, p. 31). Apesar de considerá-las importantes, o
elevado número de cidadãos que possuem o direito de participar direta ou
indiretamente das decisões coletivas, e a regra da maioria como condição de se
saber quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais
procedimentos, é indispensável um terceira condição: “é preciso que aqueles que
são chamados a decidir sejam colocados diante de alternativas reais e postos em
condições de poder escolher entre uma e outra” (BOBBIO, 2000a, p. 32).
Por outro lado, um regime autocrático opera com uma única regra, isto é, o
que estabelece o autocrata é a lei. O caráter de suficiência da regra expressa pelo
autocrata, determina uma decisão coletiva. O indivíduo nesta circunstância é um
objeto de manobra política a serviço dos interesses do governante. Diferente do que
ocorre neste regime de governo, a democracia em primeiro lugar reconhece como
princípios a liberdade e igualdade do homem; em segundo lugar amplia os espaços
76
políticos de participação direta ou indireta dos cidadãos; em terceiro lugar estabelece
as regras do jogo; em quarto lugar, respeita-as como condição para o correto
funcionamento do regime democrático; em quinto lugar, para além dos espaços
políticos, os cidadãos, estão aptos a ampliar os espaços de participação nas
instituições da sociedade civil.
Quando nos referimos à democracia, no sentido acima, tratamos da
democracia moderna, também conhecida como democracia representativa. Esta
democracia apesar de estar pautada por regras previamente estabelecidas nem
sempre chega aos melhores resultados, isto é, depende do correto exercício do
poder do representante e ainda da escolha das melhores regras. Portanto, é difícil
saber previamente o melhor resultado da democracia. A democracia cria as
condições para a busca dos melhores resultados. O melhor resultado, segundo
Bobbio, “é aquele que se atinge com as melhores regras, entre as quais a mais
importante é, certamente, a da maioria” (BOBBIO, 1983, p. 57). Mas sobre esta
regra deixemos para examiná-la a seguir.
Desde que a democracia direta foi proclamada como um ideal-limite, para
Bobbio, a democracia representativa surgiu como a melhor forma de governo e as
regras do jogo se tornaram elementares para o desenvolvimento da democracia. A
confiança no método democrático expandiu os regimes democráticos e com eles
surgiram alguns paradoxos: a) Devido à pluralidade e complexidade das
organizações, a aplicação das regras do jogo democrático é cada vez mais difícil; b)
Com o alargamento do aparelho burocrático nas instituições representativas criou-se
uma estrutura hierárquica ao invés de democrática; c) A igualdade jurídica de todos
diante da lei, restringiu o poder do estado sobre as demandas dos cidadãos; d)
Democracia e tecnocracia estão em irremediável contradição, no sentido de que a
tecnocracia é o governo dos especialistas e a democracia é o governo de todos os
cidadãos independente de serem ou não especialistas; e) A massificação de todas
as grandes sociedades resulta num conformismo generalizado que suprime o senso
de responsabilidade individual, característico de uma sociedade democrática
(BOBBIO, 1983, p. 59-62).
Não obstante aos paradoxos da democracia representativa, Bobbio considera
em primeiro lugar, que hoje, o método democrático seja necessário para a
salvaguarda dos direitos fundamentais da pessoa, que estão na base do Estado
liberal; em segundo lugar, que a salvaguarda desses direitos seja necessária para o
77
correto funcionamento do método democrático. Disso resulta a defesa de duas
teses: A primeira - A democracia é a melhor forma de governo no que diz respeito à
garantia dos direitos fundamentais, ou seja, dentre as várias formas de governo
possíveis (aristocracia, monarquia, oclocracia, oligarquia) a democracia é a única
que ao defender os princípios da liberdade e igualdade entre os homens possibilita o
pleno desenvolvimento dos indivíduos; A segunda - Não basta saber quais e
quantos são os governantes, é preciso saber o modo de governar. Não à forma de
governo, mas o modo de governar.
A democracia definida como um conjunto de regras primárias ou
fundamentais que estabelece quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e
com quais procedimentos introduz a crença de que a democracia é por excelência o
“governo das leis”, e não o “governo dos homens”. Bobbio se pergunta: Qual o
melhor governo, o das leis ou o dos homens? Desta forma, introduz uma outra
distinção: entre o bom e o mau governo. O bom governo é o que governa
respeitando as leis ou aquele em que as leis são boas, porque os governantes são
sábios? Para os que defendem o governo das leis, o pressuposto é que os
governantes são maus e usam o poder em benefício próprio. Por outro lado, os que
defendem o governo dos homens, o pressuposto é a ideia do grande legislador,
como descrito na tradição antiga. Desta forma, se o governante é sábio que
necessidade teria de submeter o governante às leis gerais? Mas, se o governante é
mau, não deveríamos submetê-lo às leis gerais impedindo o uso arbitrário do poder
e da satisfação dos próprios interesses?
É inegável o fato de que hoje, muito mais que outros tempos ocorre a
primazia do governo das leis sobre o governo dos homens. O governo das leis
prescreve as regras com as quais são tomadas as decisões coletivas e deixa livre o
homem para escolha do seu conteúdo. Assim, o ideal do regime democrático
representativo pode ser plenamente satisfeito, bem como apresentar defeitos. O
defeito da democracia representativa, assim, não reside em “ser representativa”,
mas em “não ser suficientemente representativa”. Como exemplo, apresentamos a
persistência de pequenas oligarquias políticas, que são os comitês centrais dos
partidos, a burocratização da administração pública e a intocabilidade da democracia
nas grandes empresas. A efetividade de um regime democrático depende da
escolha dos conteúdos.
78
A insuficiência da democracia representativa não nos leva imediatamente à
democracia direta. A democracia direta pode apenas corrigir a democracia
representativa, mas nunca substituí-la. Se, por um lado, admite-se que as duas não
são alternativas excludentes, que elas podem até mesmo se integrar
reciprocamente, por outro lado, exclui-se a possibilidade da primeira ser suficiente
por si só. A democracia direta como ideal de participação de todos os cidadãos nas
decisões coletivas é limitado por aquelas condições estabelecidas pelas regras,
como, por exemplo, a de que somente quem atingir certa idade pode votar. “A
onicracia, como governo de todos, é um ideal-limite” (BOBBIO, 2000a, p. 31).
Após expor as regras do jogo democrático e caracterizar o método
democrático passamos ao exame da regra da maioria, a qual Bobbio considera
como uma das mais importantes da democracia.
4.2 A regra da maioria
Democracia e regra da maioria estão intimamente ligadas. Difícil imaginarmos
na democracia atual, a ausência deste mecanismo de decisão coletiva. Ocorre que a
regra da maioria não é exclusividade dos sistemas democráticos. Também, sistemas
não-democráticos se utilizam da regra da maioria. Nada impede que sistemas não-
democráticos utilizem a regra da maioria, seja para “eleição de um supremo órgão
decisório, seja para formação de supremas decisões coletivas” (BOBBIO, 2000c, p.
429). Tão pouco, que num sistema democrático se possam tomar decisões coletivas
independentes da regra da maioria e que nem por isso, não seja considerado um
sistema democrático. Desta forma, tanto o sistema democrático quanto um sistema
não-democrático pode operar com a regra da maioria, mesmo que os fins sejam
totalmente distintos.
A regra da maioria na democracia é, geralmente, compreendida sob dois
pontos de vistas. O que exerce o valor numérico e aquele que exerce um valor de
ordem técnica. A distinção entre a regra da maioria (numérica) e a regra da maioria
(técnica) nasce a partir do exame da concepção antiga e da concepção moderna. Na
Obra “A política” de Aristóteles tem-se a comparação da democracia com outras
formas de governo, isto é, a oligarquia e a monarquia. O autor definiu a democracia
79
como o governo dos muitos em relação ao governo dos poucos (oligarquia) e
governo de um só (monarquia). Neste contexto, a democracia é encarada do ponto
de vista numérico, que se caracteriza pela participação do maior número possível de
cidadãos nas decisões coletivas.
Quando na tripartição clássica das formas de governo, a democracia é definida como governo da maioria em oposição à oligarquia e à monarquia, o que se quer dizer é que o poder político está nas mãos dos mais e dos muitos em oposição de um só ou de poucos; não significa em absoluto dizer que o poder político seja exercido mediante a aplicação da regra da maioria (BOBBIO, 2000c, p. 429).
A regra da maioria na concepção clássica de democracia é entendida como
aquela forma de governo em que o poder político pertence, não apenas ao monarca,
aos ricos e aos nobres, mas à população em geral, na sua maioria pobre.
Democracia e regra da maioria na concepção antiga não significam o mesmo que na
democracia moderna. O que para o primeiro indica quantos governam para o
segundo indica como governam. Enquanto para os antigos a relevância da regra da
maioria se dá a partir de quantos governam, a relevância da regra da maioria dos
modernos se dá baseado na preocupação quanto ao exercício do poder daqueles
que governam, independente de ser um, poucos ou muitos. A regra da maioria para
os modernos não é associada a uma forma de governo como entendiam os antigos.
A regra da maioria dos modernos e dos antigos deve ser dissociada, pois para os
primeiros a regra estabelece as condições para o exercício do governo. Isto é, quem
está autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais procedimentos. Para os
segundos a maioria é por excelência, quem governa. Para os antigos a democracia
é o governo da maioria, isto é, do povo, literalmente, na sua maioria pobre. O povo é
quem decide diretamente sobre as questões coletivas, diferente do que encontramos
na democracia dos modernos, isto é, na democracia representativa. Quem governa
não é povo ou a maioria entendida como governo dos muitos, mas aquelas pessoas
eleitas por maioria quantitativa, isto é, pela soma de votos dos eleitores em condição
de exercerem politicamente o direito do voto, conforme as regras do jogo
democrático.
Examinada a diferença entre a regra da maioria na concepção moderna da
concepção antiga, resta saber quais os argumentos que justificam racionalmente a
regra da maioria. Para Bobbio são dois os argumentos que justificam racionalmente
a regra da maioria: o axiológico e o técnico. Ou seja, para uns a regra da maioria é
80
racional segundo o valor, para outros, segundo o objetivo. Os que justificam a regra
da maioria segundo o valor, o fazem, pois acreditam ser melhor que qualquer outra
para satisfação de alguns valores fundamentais, como por exemplo, a liberdade e a
igualdade. Os que justificam a regra da maioria, segundo o objetivo levam em
consideração o fato desta regra permitir chegar a uma decisão coletiva entre
pessoas que possuem opiniões distintas. O que justifica a regra, no primeiro caso, é
a dedução de valor da regra. No segundo caso, a regra é justificada por sua
utilidade. A regra cumpre uma função estritamente técnica.
Mesmo que em ambos os argumentos, a regra da maioria possua um sentido
positivo, deve-se destacar que os seus objetivos são distintos. Os que defendem a
regra da maioria através do apelo a valores como os da liberdade e da igualdade, o
fazem na intenção de ser um remédio contra formas autocráticas de governo, que
desrespeitam a liberdade dos indivíduos e tão pouco os reconhece como iguais. Os
que defendem a regra da maioria através do argumento técnico de utilidade, o fazem
na intenção de ser um remédio à unanimidade.
A regra da maioria é mais racional segundo o valor, se comparada ao
princípio autocrático, mas este, comparado à regra da maioria é mais racional
segundo o objetivo. Enquanto que a regra da maioria comparada à regra da
unanimidade é mais racional segundo o valor, a unanimidade comparada a regra da
maioria é mais racional segundo o objetivo. Assim, o princípio da autocracia e a
regra da unanimidade comparados a regra da maioria são mais racionais segundo o
objetivo, e a regra da maioria comparada aos princípios da autocracia e da
unanimidade é mais racional segundo o valor.
É importante considerar ainda, que o uso dos argumentos axiológicos, isto é,
com base em alguns valores, é característico dos escritores democráticos. A regra
da maioria, defendida por estes, tem uma conotação estritamente vinculada à
democracia como forma de governo. A regra da maioria é, nesse sentido, a
característica essencial da democracia. A defesa dos valores fundamentais da
liberdade e da igualdade do homem é associada diretamente a regra da maioria.
Esta regra é a que permite o maior número de indivíduos participarem das decisões
coletivas em condições igualitárias, mas não significa necessariamente que os
indivíduos através desta regra sejam mais livres e iguais. Numa assembleia
acionária de cotas, onde geralmente uns possuem maior parte que os outros, o voto
é proporcional a sua cota e, portanto, a maioria é formada com votos desiguais. E
81
tão pouco, onde a maioria é formada por um número muito restrito de pessoas, de
caráter autoritário, cuja maioria efetiva dos indivíduos não possuem poder para
decidir, nem escolher o destino de suas vidas. Desta forma, o princípio da igualdade
não pode ser justificado pela regra da maioria, já que este princípio é aplicado
também em sistemas autoritários politicamente injustos.
Mas o que afirmar da liberdade em relação à regra da maioria? Segundo
Bobbio, a liberdade entendida modernamente como autodeterminação do indivíduo
em relação aos outros, conduz a uma sociedade na qual é necessário limitar a
autodeterminação sob pena de autodestruição da sociedade No entanto, o limite
desta autoderminação deve assegurar o máximo de liberdade aos indivíduos, cuja
vontade individual e a vontade coletiva possam partilhar de uma acordo capaz de
ampliar a liberdade política. Nas palavras de Bobbio “ser livre” significa, “obedecer
às leis às quais se deu o próprio consenso” (BOBBIO, 2000c, p. 435). A expressão
deste acordo é a ordem social pelo máximo consenso.
Neste sentido, a regra da maioria é um valor na medida em que põe os
indivíduos em condições de serem livres e iguais, opondo-se ao sistema autoritário.
Contudo, a democracia não se caracteriza pela autodeterminação, pelo consenso do
maior número ou ainda pelo governo da maioria, é antes o governo mediante o
princípio da maioria. O que caracteriza o sistema político democrático é o sufrágio
universal. Diante disso, o valor da regra da maioria, não é aquele de oposição ao
sistema autoritário, mas o expediente técnico que permite a contagem de votos para
que assim se possam obter os resultados que dela se espera, independentes se são
poucos ou muitos, os votos a ser contabilizados.
A regra da maioria como expediente técnico é pura e simplesmente uma regra
para o cálculo dos votos. Sendo assim, como é possível saber, através da aplicação
da regra da maioria, que os indivíduos ao votarem, estivessem em condições de
ampla liberdade, isto é, diante de diversas alternativas possíveis de escolhas e de
garantias de direitos de liberdade, opinião, segurança, propaganda, voto secreto,
entre outras? Ou, que pelo contrário, não estivessem diante de nada disso, e sim,
diante de uma única alternativa, no qual o voto não é por convicção, mas por medo,
nem por amor, mas por força. Daí que, liberdade e regra da maioria não coincidem,
pois, o sentido da primeira é o valor, o sentido da segunda é o objetivo. Não se pode
atribuir à regra da maioria o que não lhe pertence, isto é, o atributo de maximizar a
liberdade ou consenso dos indivíduos. De acordo com Bobbio, infelizmente, a
82
maioria, não poucas vezes, é formada pelos conformistas, assim como, a
unanimidade é suspeita de votos não livres, seja pelo consenso tácito, seja pela
aclamação. A regra da unanimidade vai de encontro ao princípio da
autodeterminação dos indivíduos, pois impede o dissenso. A autodeterminação
somente pode ser concebida mediante o dissenso com a garantia daquelas
liberdades fundamentais já mencionadas.
Como esclarecemos, a regra da maioria possui duas faces: uma que se volta
contra a unanimidade e outra que se volta contra o poder monocrático. A regra da
maioria como expediente técnico, é o remédio melhor adequado contra a
unanimidade que, na maioria das vezes, é sinônimo da conformidade e a regra da
maioria no sentido axiológico, é o melhor remédio contra o poder monocrático, por
assegurar que o maior número possível de indivíduos possa expressar seu próprio
consenso ou dissenso através dos valores da liberdade e da igualdade. Vale
acrescentar que o consenso ou dissenso pressupõe a indissociabilidade entre
democracia e contrato social, trata-se do acordo de cada um com todos os demais
membros de um corpo coletivo sobre algumas regras fundamentais de convivência,
mesmo que seja sobre uma única regra, a da maioria.
4.3 O consenso e o dissenso
Na democracia a regra da maioria é fundamental. Esta regra coloca os
indivíduos em condições de exercerem os valores da liberdade e da igualdade do
homem. É com a expressão desses valores que se constroi um regime
verdadeiramente democrático, capaz de transformar o indivíduo num cidadão ativo a
partir das regras do jogo. São estas regras que permitem a formação do livre
consenso e do livre dissenso a partir da pluralidade das opiniões.
Para Bobbio, a ideia introduzida pelos pensadores modernos, de que na
democracia moderna, o indivíduo é protagonista de sua história, ou seja, não mais “a
parte está para o todo, mas o todo está para as partes” se tornou um obstáculo não-
previsto desta democracia, pois, os indivíduos se tornaram cada vez mais em
grupos, organizações, sindicatos, surgindo o pluralismo político. O que existe é uma
83
sociedade pluralista, no qual não são os indivíduos os protagonistas, mas uma
pluralidade de pequenas oligarquias que disputam os espaços do poder político.
As oligarquias foram historicamente condenadas, por assegurarem privilégios
de alguns às custas da grande maioria dos indivíduos. Diferente da conotação
negativa, atribuída as oligarquias do passado, as oligarquias ao longo dos tempos
adquiriram um sentido positivo, a medida que estas não pretendem ocupar apenas o
seu espaço no poder, isto é, não se preocupa apenas com a distribuição do poder,
mas vai além, as oligarquias na democracia funcionam como um remédio contra as
tendências monocráticas de governo, em que o poder não é apenas distribuído, mas
também controlado. É a partir do controle do poder que os indivíduos se tornam
livres para consensuar ou dissentir. Onde não há liberdade, não há consenso e tão
pouco dissenso.
Numa democracia o consenso e o dissenso são formados por ampla
liberdade. Podemos nos perguntar: o que é mais importante para a democracia, o
consenso ou o dissenso? A resposta é a de que ambas são importantes frente ao
objetivo que se quer alcançar. Certamente, quando se quer chegar a um consenso
unânime, o dissenso não possui importância alguma. Por outro lado, o dissenso é
importante quando se pretende atingir a maioria. Somente existe a maioria quando
existir uma minoria que dissente. Para Bobbio, “uma sociedade em que o dissenso
não seja admitido é uma sociedade morta ou destinada a morrer” (BOBBIO, 2000a,
p. 74). Segundo o autor, o consenso unânime só é possível onde não há liberdade
para dissentir, onde o consenso é fictício, forçosamente organizado, manipulado e
manobrado. Numa sociedade movida sempre mais por interesses diversos, um
consenso unânime “soa” contraditório ao princípio da liberdade.
Na democracia o consenso da maioria e o dissenso andam lado a lado e,
portanto, a pergunta que se deve fazer: o que fazer com a minoria que dissente, já
que num sistema fundado sobre o consenso é impossível não existir também o
dissenso? O dissenso deve ser “esmagado” e eliminado pela maioria, ou, deixá-lo
sobreviver?
A existência do consenso e do dissenso é o que faz com que um regime
democrático não seja apenas aparente ou fictício, mas real. A prova do consenso
real é o dissenso. Um consenso unânime é, neste sentido, um consenso fictício, em
que a falta do dissenso pode ocorrer, não pelo desejo dos indivíduos, mas por
circunstâncias diversas, como, por exemplo, a pura aceitação passiva do comando
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do mais forte ou na medida que o indivíduo é obrigado e até mesmo premiado por
este comportamento, quando não, punido pela falta dele. Isso ocorre em
democracias totalitárias em que o direito de oposição ou dissenso, senão negado é
manipulado e reeducado de modo que se torne pelo amor ou pela força consensual.
O consenso unânime nada prova, no que diz respeito a um consenso real e
não fictício, pois, não permite avaliar se este consenso se dá por aceitação ou
obediência. Segundo Bobbio, “a única forma de avaliar o consenso real, é avaliar o
seu contrário, que é o dissenso” (BOBBIO, 1995, p. 50). Mas da mesma forma que
se avalia o consenso unânime como fictício ou pouco provável em sociedades cada
vez mais complexas, a não ser em grupos muito pequenos ou numa situação de
forte tensão ideal, o dissenso se avalia do ponto de vista da proibição e da sua
permissão de acordo com a seguinte síntese: No caso das democracias liberais se
afirma que toda forma dissenso é admitida, exceto as expressamente proibidas e no
caso das democracias totalitárias se afirma que toda forma de dissenso é proibida,
exceto as expressamente permitidas.
Segundo Bobbio, a democracia existe de fato onde o consenso e o dissenso
são livres, isso implica para além da livre escolha, que da escolha entre um ou outro,
o indivíduo não seja discriminado, censurado, ameaçado ou violentado. Diferente do
que ocorre no consenso exclusivista e no dissenso exclusivista. Por consenso
exclusivista entende-se o que busca impedir toda forma de dissenso e por dissenso
exclusivista, o que busca impedir as possibilidades do consenso. O que ambos têm
em comum é o fato de fundar-se no princípio da unanimidade, o primeiro através do
impedimento ao dissenso e o segundo através do impedimento ao consenso.
O princípio da unanimidade e o princípio da maioria estão numa relação de
contraposição, o que o primeiro afirma, o segundo nega e vice-versa. Assim, se na
democracia a maioria é a regra fundamental, na autocracia a regra fundamental é a
unanimidade. No primeiro caso, é fundamental esta regra, pois assegura a formação
livre do consenso ou do dissenso. No segundo caso, é fundamental, pois pela
supressão do dissenso é que se forma o consenso unânime. Nas palavras de
Bobbio “fora do princípio da maioria não pode existir senão consenso unânime, que
enquanto unânime não pode ser senão imposto” (BOBBIO, 1995, p. 55).
A regra da maioria enquanto regra de procedimento não diz o que se deve
decidir, mas se limita em declarar como se deve decidir. A regra não estabelece o
que é bom ou mau, nem impõe ou contrapõe uma espécie de comportamento em
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relação a outro, mas se limita em prescrever que se aceite como bom um
comportamento buscado de um modo tal. Difícil imaginar que o “bom” não seja
senão aquele que corresponde ao interesse coletivo formado pela maioria, ao invés
da minoria. Porém, uma vez formada a maioria, nada impede que esta se torne uma
tirania, quando ao aproveitar-se do fato de ser maioria, muda as regras do jogo, e
fundamentalmente aquela que se constitui na principal regra, isto é, a da maioria,
transformando-a em unanimidade.
Em suma, uma democracia real só pode ser proclamada levando-se em conta
o livre consenso e o livre dissenso. Uma democracia em que não ocorre o livre
consenso e o livre dissenso é uma democracia fictícia, que se preocupa mais com os
fins do que com os meios. Uma democracia desta espécie nada mais é, que o
“germe” da tirania, que somente poder se combatida com o sufrágio universal.
4.4 O sufrágio universal
Por sufrágio universal entende-se a extensão do direito de voto a todos os
indivíduos aptos a exercerem este direito, sem distinção de etnia, sexo, crença ou
classe social, seja ele o voto obrigatório ou facultativo, secreto ou não-secreto, direto
ou indireto. O sufrágio universal que conhecemos hoje, é resultado de um processo
histórico crescente de ampliação dos direitos dos indivíduos. Principalmente, no
último século, esses direitos foram estendidos a todos os indivíduos aptos a
exercerem o direito de voto, sejam eles, homens ou mulheres. Segundo o que relega
a história, o direito de voto antes do século XIX, era restrito aos homens, mas nem
todos podiam exercer este direito, somente os que pertenciam a grupos
privilegiados. No século XX, surgiram vários movimentos feministas em todo mundo,
que passaram a reivindicar a igualdade de direitos, inclusive a do direito ao voto.
Nos Estados considerados democráticos, o reconhecimento do direito de voto
feminino teve início, em alguns países, logo no início do século XX, enquanto em
outros se arrastou por décadas até se consagrar constitucionalmente. O direito
exercido por alguns passou a ser um direito de todos, num sentido mais pleno, um
direito da maioria.
86
O regime democrático é resultado do processo de racionalização do poder,
tradicionalmente instituído por uma única pessoa ou grupos muito restritos. De
acordo com Bobbio, inicialmente, com os burqueses que reivindicam ao Estado
tradicional o direito à liberdade, em seguida com os proletários quando estes lutam
para assegurar o direito de igualdade e segurança. As revoluções americana e a
francesa representam o marco fundamental da relação de poder entre governantes e
governados, onde os direitos não são primazia de um ou de alguns poucos, mas dos
cidadãos em geral.
Os valores da liberdade, igualdade e segurança se tornaram princípios
orientadores da constitucionalização de normas positivas, para a garantia dos
direitos fundamentais do ser humano, chamados também de direitos humanos, que
foram historicamente subjugados e até mesmo negados pelo Estado soberano. O
Estado deixou de ser portador de direitos para se tornar portador de deveres para
com os indivíduos. Ao Estado cabe o dever de garantir as condições para realização
destes princípios, ao indivíduo o direito de estar assegurado das arbitrariedades dos
governantes e livres da ameaça dos outros indivíduos. Cabe destacar que a
democratização do Estado se deu inicialmente com a consolidação dos direitos civis
e políticos e posteriormente com a ampliação do conceito de direito, através, dos
direitos econômicos, sociais e culturais. Ou seja, quando se refere a Estado
democrático de direito, somente pode ser entendido, como sendo histórico
construído através de lutas individuais e coletivas. O direito é construção, pois não
se dá de uma vez por todas, e sim emerge das circunstâncias históricas. Bobbio
entende o direito como um processo histórico.
Do ponto de vista teórico, sempre defendi – e continuo a defender, fortalecido por novos argumentos – que os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas. (BOBBIO, 2004a, p. 25).
Esta concepção é chamada de histórico-crítica, no qual se entendem por
direitos humanos, para além do reconhecimento das liberdades fundamentais, a
exigência de condições sociais, econômicas e culturais. Nesta concepção liberdade
e igualdade são complementares e fundamentais na garantia de condições
históricas estruturais. Neste sentido, direitos humanos não está vinculado a uma
natureza humana, mas é entendido como construção histórica.
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A justificação do direito, enquanto processo histórico, é apenas um dos
modos de se justificar o direito, pois, existem ainda, o modo naturalista, o liberal e o
positivista. Para a concepção naturalista por direitos humanos entende-se aqueles
direitos inerentes à natureza humana (intransferíveis). Nesta acepção não é possível
a consensualização, apenas o reconhecimento e proteção destes direitos. A não
garantia destes direitos implica opor-se a própria natureza humana. Na concepção
liberal direitos humanos significam a garantia das liberdades fundamentais. A
medida do direito já não é a natureza, mas a liberdade. O indivíduo é agente da
liberdade. Através da liberdade os indivíduos determinam e se submetem a regras
de convivência. Na concepção positivista os direitos humanos são estritamente
aqueles inscritos em códigos e legislações. Para que possa ser considerado direito
humano é necessário a força vinculativa da norma. Fora desta possibilidade serve
apenas como orientação doutrinária e moral.
Indiferentemente dos modos de justificação do direito, o sufrágio universal
concedeu aos indivíduos a possibilidade de decidirem por si mesmos, o que melhor
condiz ao seu interesse de cidadão. O voto é uma forma de expressão da
democracia. Para Bobbio, a democracia não pode ser restringida ao direito do voto.
O voto é importante, mas não é o único modo de se assegurar que um regime seja
verdadeiramente democrático. O voto é um expediente de decisão numérica, que se
utiliza da regra da maioria, para saber quem está autorizado a tomar as decisões
coletivas e com quais procedimentos.
Nas democracias atuais o voto pode ser obrigatório ou facultativo. O voto
obrigatório vem acompanhado de sanção, caso haja o seu descumprimento. Os que
defendem a obrigação do voto, acreditam que a obrigatoriedade estimula a
participação dos cidadãos nos assuntos que respeitam à toda coletividade. Os que
defendem o voto facultativo postulam que a obrigatoriedade depõe contra o princípio
da liberdade política. O voto é a manifestação do direito, mas não é o direito. O
direito é a faculdade de fazer ou não fazer determinada ação, não é obrigação. O
sufrágio universal é um direito em potência, o voto é o exercício deste direito. Por
exemplo, quando declaro que tenho o direito ao casamento, não está me obrigando
a tal ato, não fixa uma sanção pelo seu não exercício e nem vincula o meu direito a
uma obrigação de terceiro. Eu tenho o “direito” de casar, mas ninguém pode obrigar-
me ao matrimônio. Se assim é, como pretender coagir o cidadão a votar? Mais
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democrático do que o voto obrigatório, é facultar à vontade do titular do direito o seu
exercício ou não.
O voto pode ser ainda secreto ou não-secreto. O voto secreto é o direito que
a pessoa tem de votar, sem que outras pessoas saibam em quem o eleitor votou, a
fim de evitar pressão, constrangimento ou coação externa. A importância do voto
secreto para o eleitor é a de possibilitar a formação livre do voto. Mas o voto secreto
não é exclusividade do eleitor. Nas democracias atuais onde os parlamentares ou
representantes do povo decidem pelos eleitores, a escolha de suas decisões são
realizadas, na sua grande maioria, por meio de voto secreto. Cabe neste contexto,
as seguintes perguntas: qual o sentido do voto secreto para os representantes dos
eleitores? As ações destes, não deveríam ser submetidas ao conhecimento e
controle popular? Onde o voto é secreto, como é possivel acompanhar o trabalho
dos representantes? O problema do voto secreto e não-secreto se dá em dois pólos:
do ponto de vista do eleitor e do ponto de vista do representante do eleitor.
Enquanto que para o primeito o voto secreto garante a formação livre e consciente
do voto, para o segundo a representação deve ocorrer através do voto aberto, para
que o representado saiba das ações do representante, a fim de que a
representatividade não seja mera aparência. Se o voto aberto é condição do correto
funcionamento do regime democrático, como podem ser classificadas as
democracias atuais: verdadeiras ou aparentes?
O sufrágio universal pode ocorrer, ainda de modo direto ou indireto. Há
modos diversos de significação do voto direito, de modo geral, o voto direito significa
para a democracia moderna a escolha de representantes que decidam pelas
questões coletivas. Diferente da concepção antiga, em que as questões relativas à
decisões coletivas eram feitas pelos próprios eleitores de modo direto, sem
intermediários. O voto indireto ocorre quando os eleitores elegem um colegiado
eleitoral para decidir pelos eleitores quem melhor represente seus interesses.
Assim, o voto indireto se dá por meio de mediações ou intermediações.
Por fim, cabe acrescentar que o sufrágio universal representa o ápice do
desenvolvimento democrático, no qual não se distingue o direito do voto por vias de
gênero, raça, credo, classe social, etc... Todos os indivíduos que atingiram
maioridade podem exercer o direito de votar e ser votado (este último, caso esteja
vinculado a um partido político). Mas de acordo com Bobbio o desenvolvimento da
democracia, hoje, é medido, não mais a partir de “quem” vota, mas “onde” se vota.
89
Ou seja, o critério de avaliação do desenvolvimento da democracia se dá pela
ampliação e ocupação dos espaços em que os indivíduos podem participar
livremente, com iguais direitos nas decisões que envolvem toda a coletividade.
Hoje, se se deseja apontar um indicador do desenvolvimento democrático, esse não pode mais ser o número e pessoas que tem o direito de votar, mas o número de locais, diferente dos locais políticos, nos quais se exerce o direito de voto; sintética mas eficazmente: para dar um juízo sobre o Estado da democratização num dado país, o critério não deve ser o de “quem” vota, mas o do “onde” se vota (e fique claro que aqui entendo o “votar” como o ato típico e mais comum do participar, mas não pretendo de forma alguma limitar a participação ao voto) (BOBBIO, 2000a, p. 68).
Bobbio, através deste apontamento, mostra que o desenvolvimento
democrático que teve sua expressão máxima no sufrágio universal, não pode ser
limitado a este único critério, isto é, o do número de pessoas que tem o direito do
voto, mas ampliar os locais em que o indivíduo possa participar dos assuntos que
lhe dizem respeito. Somente com a participação política dos eleitores, a democracia
se fortalece e se define como um regime do bom governo, que age em função do
bem comum e com isso, impede o surgimento de determinações arbitrárias
produzidas pelo poder despótico e concentrado.
4.5 O voto e o paradoxo da representação
Com a conquista do sufrágio universal, o voto passou a ser um direito de
“todos”. O voto se tornou um instrumento de participação do eleitor, do
desenvolvimento democrático e de ampliação das esferas da liberdade e igualdade
dos seres humanos. Nas sociedades tradicionais, que precederam o período
moderno, o voto era um direito de poucos. Com isso, não havia a participação dos
indivíduos sobre os assuntos que lhes diziam respeito nem diretamente, nem
indiretamente.
O direito do voto possibilitou que os indivíduos através da sua participação
pudessem deliberar sobre o que melhor convém ao interesse, seja individual ou
coletivo. O voto contribuiu para o desenvolvimento democrático na medida em que o
peso deste ou daquele voto deixou de ter “pesos” diferentes, isto é, o voto de um
indivíduo se tornou equivalente ao voto do outro indivíduo, independente da
90
condição social deste ou daquele. Bobbio já descrevia nas regras do jogo a
necessidade desta condição na democracia.
O voto também representa a ampliação das esferas da liberdade e da
igualdade dos indivíduos, na medida em que estes, e mais ninguém, podem
escolher os representantes que assegurem estes propósitos. Bobbio trata
especificamente deste tema ao contrastar a questão da representação e dos
interesses na Obra Teoria Geral da Política. O autor faz um exame da atualidade do
problema, do conceito de representação e de interesse, do mandato livre e
vinculado, a desforra da representação dos interesses e por fim, a relação entre
representação e partidos. Ele observa que, após a eleição, a representação pode
ser política ou de interesses e destaca a atualidade do problema a partir de três
razões que seguem: a) a interpretação econômica da democracia, influenciada pela
cultura política americana, em que ao lado do mercado econômico, existe o mercado
político que se dá na relação de troca entre eleitores e eleitos. São basicamente dois
os bens de troca: “o apoio, em forma de voto, por parte dos eleitores, e benefícios de
vários tipos, patrimoniais ou de status, por parte dos eleitos” (BOBBIO, 2000c p.
454). b) o surgimento dos conflitos decorrentes das sociedades industriais,
relacionadas ao mercado de trabalho, somente poderiam ser solucionados através
da troca política, dos mecanismos de representação política, para as contratações
de grandes organizações. O que está em jogo não é a legitimação do poder pelo
consenso, mas a capacidade de determinar o comportamento dos indivíduos por
estas organizações. c) o neocorporativismo, que interpreta as relações de poder
como relações de troca numa relação entre iguais, mas com interesses
contrastantes. Não há uma relação de domínio como aquelas que acompanharam
os Estados territoriais, em que o poder da autoridade imperial se manifesta na
capacidade de impor à sociedade sob o exercício da força. Para Bobbio, o contraste
decorrente da posição neocorporativista, da relação entre iguais, para com aquele
poder exercido pela força, funda a oposição entre lei e contrato. A lei representa o
poder vertical e o contrato o poder horizontal, de igual para igual. A primeira funda o
direito público, a segunda, o direito privado. A lei legitima o contrato e o contrato
somente é válido quando fundado na legitimidade da lei. A lei assegura a
representação política enquanto que o contrato a representação dos interesses. O
autor salienta que no neocorporativismo existe uma relação de troca política
baseada numa relação de interesses, mas diferente do que aquele do
91
corporativismo estatalista dos facistas representado pelo Estado das ordens. Do
ponto de vista da soberania ocorre uma transformação radical, pois o poder
soberano que para o primeiro estava no Estado, na democracia corporativista, está
na lei, acima das partes contratantes.
Após o exame da atualidade do problema, Bobbio trata do conceito de
representação e de interesse. Para o autor, o conceito de representação é ambíguo
e o conceito de interesse é genérico. A ambiguidade do conceito de representação
se dá, pois o termo tem significados distintos.
”Representar” significa tanto em sentido técnico-jurídico, “agir em nome e por conta de um outro”, quanto, na linguagem comum e na linguagem filosófica, “reproduzir” ou “espelhar” ou “refletir”, simbolicamente, metaforicamente, mentalmente, ou de inúmeros outros modos, uma realidade objetiva, independente do fato de que essa realidade só possa ser “representada”, ou possa também dar-se em si (BOBBIO, 2000c p. 457).
A distinção que Bobbio realiza aponta um problema geralmente ignorado por
aqueles que tratam do conceito de representação e de interesse. Quando se diz, por
exemplo, que o parlamento é constituído de representantes do povo, qual o sentido
que realmente se pretende expressar: o sentido de que seus membros agem em
nome e por conta dos eleitores ou no sentido de que estes membros refletem ou
espelham a vontade dos eleitores? Originariamente, o conceito de representação
estava vinculado ao primeiro sentido, mas o conceito de representação no sentido
de “espelhamento” se tornou cada vez mais presente. Deste modo, é comum a
expressão do conceito de representação em ambos os sentidos:
uma democracia é representativa no duplo sentido de possuir um órgão no qual as decisões coletivas são tomadas por representantes, e de espelhar através desses representantes os diferentes grupos de opinião ou de interesse que se formam na sociedade civil (BOBBIO, 2000c, p. 458).
Os conceitos de representação política e representação dos interesses postos
em contraposição adquirem relevância à medida que expressam, no primeiro
sentido, a diferença entre o mandato vinculado e mandato livre e no segundo sentido
a diferença entre os interesses organizados e, ou então, de todos os interesses,
inclusive daqueles não-organizados.
O conceito de representação como pode ser observado é ambíguo, visto que
assume distintos significados. O mesmo não se pode firmar do conceito de
interesse. Segundo Bobbio o conceito de interesse é genérico. O conceito de
92
interesse é de uso comum em diversas disciplinas do saber e geralmente sua
definição é imprecisa. Ficamos nos exemplos extraídos de alguns autores e citados
por Bobbio: ““o interesse é o grande monarca da terra”; “o princípio do movimento da
sociedade é dado pelo interesse”; “serve ao meu interesse”; ter interesse em...””
(BOBBIO, 2000c p. 460).
O que torna impreciso o conceito de interesse é a sua generalidade. A
definição do conceito de interesse requer a atribuição de adjetivos como, por
exemplo, privado ou público, particular ou geral, local ou nacional, individual ou
coletivo, imediato ou mediato. São os adjetivos que especificam a que interesse se
está referindo. Mas o que dizer da representação política: não é ela uma
representação de interesse num sentido genérico? Bobbio entende que a
representação política também é uma representação de interesses, mas está
subentendido que se refere a interesses gerais, assim como a representação de
interesses subentende-se que se refere aos interesses particulares ou parciais.
Outro aspecto da representação política e da representação dos interesses é
a questão do mandato livre e do mandato vinculado. O mandato livre é aquele,
exercido em nome e por conta do mandatário, o mandato vinculado é exercido no
interesse do mandante. Bobbio remete a seguinte questão: “quem age por conta de
um outro sem estar vinculado pela vontade do mandante pode ainda ser
propriamente chamado de representante?” (BOBBIO, 2000c, p. 461). Dito de outro
modo: quem representa os interesses gerais pode ainda ser propriamente chamado
de representante? Como é possível saber qual é o interesse geral dos eleitores?
O único modo de se conhecer o interesse geral dos eleitores é quando se
escolhe os representantes, em que pela contagem dos votos e pela aplicação da
regra da maioria, se obtém os resultados que significam a vontade geral dos
eleitores. Uma vez escolhidas as pessoas autorizadas a deliberar sobre os assuntos
coletivos a questão é saber: o que significa ser representante? Agir em nome e por
conta dos outros de modo a assegurar o interesse geral dos cidadãos ou agir de
modo a “espelhar” uma realidade objetiva, isto é, através da representação dos
interesses particulares? Cabe esclarecer que o interesse geral, não coincide no
interesse de todos, mas no interesse da maioria.
É importante expressar que a representação política, entendida como
representação dos interesses gerais, dá-se por meio do mandato livre e, portanto,
desvinculada dos interesses particulares. Deste modo, o mandante não possui poder
93
de controle das ações do mandatário, ou seja, está à mercê da moralidade ou das
boas intenções do representante, bem como da representatividade política deste
representante nas instituições em que se desenvolve o exercício do poder.
Por outro lado, a representação dos interesses pressupõe a visibilidade da
ação do mandatário, já que este deve prestar contas do seu mandato, pois possui
um mandato imperativo e é passível de revogação. O vínculo entre mandante e
mandatário se dá por meio da regra da unanimidade. Ocorre numa relação
contratual no qual é necessário um acordo comum sobre as condições do exercício
do mandato de ambas as partes: do mandante e do mandatário, diferente do que
acontece na representação dos interesses gerais. O mandatário não representa o
interesse deste ou daquele grupo, mas o interesse de uma inteira nação. Por isso, a
regra aplicada neste caso, não é a da unanimidade, mas a da maioria, visto que, a
inteira nação é formada por interesses parciais. Por meio desta regra é que se
resolve às divergências relacionadas aos interesses parciais, representado não
pelos indivíduos de forma direta, mas pelos grupos organizados.
A disputa entre a representação política e a representação dos interesses
está longe de chegar ao fim. Em meio a inúmeras críticas, nas últimas décadas, a
representação dos interesses não se deu por acabada. Pelo contrário resistiu às
pressões, a prova viva é a força vinculante e política dos partidos. Quem são os
partidos, senão os representantes de certos interesses parciais?
Segundo Bobbio, hoje os partidos vinculam os eleitores aos eleitos. Entre o
titular da soberania e quem exerce a soberania estão os partidos. Por conta deste
fenômeno, na relação entre partidos e eleitos, ocorre um mandato cada vez mais
imperativo. O “refúgio” dos representantes ao voto secreto é dificultado pelas
exigências disciplinadoras dos partidos que se posicionam contrários ao mandado
livre. Por outro lado, na relação entre partido e eleitores, o mandato livre “não é visto
com bons olhos” nem ao partido, nem ao eleitor, pois o poder de ambos depende da
força representativa do partido. Enquanto o partido necessita do eleitor ao seu lado,
o eleitor necessita do partido que bem o represente. Portanto, há uma relação
característica de mandato imperativo. A desforra da representação dos interesses é
uma situação objetiva, na qual estamos imersos. A representação política
caracterizada pela soberania dos indivíduos resistiu apenas formalmente, não de
fato.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
O conjunto de argumentos apresentados nesta pesquisa caracterizam e
esclarecem o problema da definição acerca do que é democracia. Discutimos este
problema a partir das seguintes indagações: A democracia é uma forma de governo
que estabelece quem governa (um, poucos, muitos), ou é ela uma forma de governo
que estabelece como se governa (de forma despótica e autocrática ou
democrática)? Estas indagações são respondidas a partir das seguintes obras do
autor: Igualdade e liberdade; Liberalismo e democracia; O Futuro da democracia; A
era dos direitos; Teoria geral da política; Qual socialismo? Discussão de uma
alternativa; Dicionário de política (co-autoria).
A dissertação teve como objetivo examinar os argumentos de Norberto
Bobbio acerca do que é a democracia. Para dar conta da finalidade proposta
estabelecemos quatro metas que consistiram em: distinguir a análise da democracia
do ponto de vista da ciência política, da análise estritamente filosófica-política. Esta
distinção mostrou que apesar de ambas terem como objeto de estudo a democracia,
seus objetivos são diferentes. A ciência política considera a democracia tal como ela
é, e a filosofia política considera a democracia, tal como deveria ser.
Na segunda meta evidenciamos as justificativas principais do Estado
democrático, em que enfatizamos a liberdade e a igualdade política dos indivíduos.
O exame destes temas confirma a hipótese de que a democracia para Bobbio se
constitui como num conjunto de valores primordiais à existência humana e que a
razão de um Estado democrático se dá pela efetivação dos valores da liberdade e
igualdade política, considerados tanto na perspectiva dos indivíduos, quanto da
sociedade. Consideramos ainda, outros aspectos que justificam o Estado
democrático, tais como: o individualismo, o pluralismo e a visibilidade do poder.
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Na terceira meta analisamos a distinção feita por Bobbio entre a democracia
antiga e a democracia moderna, com o objetivo de melhor explorar o conceito de
democracia do autor. A primeira trata do governo do povo, participação e decisão
direta, soberania popular e ausência de corpos intermediários. A segunda trata da
participação indireta, mas que, em alguns casos, quando necessário implementam-
se mecanismos de participação direta, como, por exemplo, os plebiscitos e
referendos.
A democracia moderna, além disso, se caracteriza como um governo de
representantes eleitos democraticamente através do voto e do sufrágio universal.
Entre a democracia antiga e moderna há diferenças essenciais, acerca da definição
do que é a democracia. Estas diferenças não são em absoluto incompatíveis. Para
Bobbio, há uma necessidade mútua de adaptação às exigências concretas da
política, de forma que, a preferência por uma, não exclui imediatamente a outra.
Na quarta meta analisamos as regras e os procedimentos democráticos: as
regras do jogo democrático, a regra da maioria, o consenso e o dissenso, o sufrágio
universal, o voto e o paradoxo da representação. Centralizamos a discussão acerca
das regras que, na visão de Bobbio, se configuram como instrumento de efetivação
da democracia representativa na organização do poder, do acesso a ele ou da sua
manutenção.
Com base nos argumentos de Bobbio, as metas estabelecidas confirmam a
hipótese inicial de que a democracia se define a partir de valores e regras
fundamentais, que estabelecem quem está autorizado a tomar as decisões coletivas
e com quais procedimentos. Esta hipótese assume a tese de que a democracia
somente pode ser definida como um conjunto valores e de regras indissociáveis que
dão legitimidade à política. Esta indissociabilidade entre os valores e as regras
adquire sentido quando se trata de indagar sobre como se exerce o poder, ou seja,
de forma despótica e autocrática ou democrática. Sem tal ligação proposta por
Bobbio, poder-se-ia perguntar: Qual seria o sentido das regras, onde não há valores
ou estes contrários a democracia?
Por isso, para ele as regras do jogo são necessárias, mas não suficientes.
São fundamentais se consideradas como um meio para atingir fins mais elevados,
tais como a liberdade e a igualdade política. Caso contrário, não passa de um
formalismo improdutivo e desnecessário. As seis regras postuladas por Bobbio,
somente são efetivas se forem respeitadas. Respeitar as regras é o mínimo para o
96
correto funcionamento democrático. Entretanto as regras não são absolutas. A
medida que algumas regras perdem o seu valor por ocasião das transformações da
sociedade, novas regras surgem e são implementadas. Enquanto é natural que
aconteçam transformações na democracia, para autocracia o natural é a
imutabilidade. Se para o correto funcionamento democrático, são necessárias
diversas regras, na autocracia basta uma única regra: a da obediência ao autocrata.
O exame da democracia em Bobbio aponta para uma teoria normativa da
democracia. Esta teoria estabelece princípios ou valores fundamentais, tais como, os
da liberdade e da igualdade política, considerados tanto na perspectiva dos
indivíduos quanto da sociedade, que orientam a formulação das regras e estas, por
sua vez, garantem os princípios jurídica e politicamente. Segundo esta teoria, antes
de se considerar o que fazer deve-se considerar como se deve fazer. Portanto, para
falar de democracia em Bobbio é necessário levar em consideração, os aspectos
procedimentalistas e valorativos. A democracia se faz por um conjunto de regras, no
entanto, estas regras devem assegurar valores, dos quais, a liberdade e igualdade
política são essenciais. Neste sentido, a democracia se contrapõe a autocracia, à
medida que oferece as condições de efetivação da liberdade e igualdade política dos
indivíduos considerados em sua singularidade. O mesmo não acontece em regimes
autocráticos. O que existe na autocracia é a restrição máxima das condições de
liberdade e igualdade dos indivíduos. Um regime coercitivo desta forma impede o
desenvolvimento dos indivíduos singulares e destes em sociedade.
Cabe considerar ainda que a democracia não se reduz aos aspectos
estritamente políticos, como por exemplo, de organização do poder, do acesso a ele,
ou da sua manutenção. Para Bobbio, a democracia deve permear a inteira
sociedade civil a começar pelas instituições sociais. Desta forma, o critério que
permite avaliar o desenvolvimento democrático não é o de quantos votam, mas onde
se vota. Este critério diz respeito aos espaços efetivos de participação dos indivíduos
direta ou indiretamente. A tarefa da democracia, nos dias de hoje, é a de estender a
democracia política à democracia social. Difícil imaginar a sobrevivência de um
Estado democrático junto a uma sociedade não-democrática.
O debate contemporâneo acerca da democracia é o de que maneira e sob
que condições é possível a evolução da democracia. Desde que a democracia foi
elevada a melhor forma de governo, os regimes políticos democráticos tem como
meta principal, o aprofundamento e a qualidade destes regimes.
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Por fim, as idéias expostas esclarecem o problema da dissertação, mas não
esgotam o assunto. As constantes transformações da democracia introduzem
sempre novos desafios e possibilidades de entender o que é a democracia e quais
os princípios que a orientam.
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REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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