PESQUISA EM FOCO: Educação e Filosofia V. 8 , ANO 8, ABRIL 2015 | ISSN: 19833946
A RELAÇÃO ENTRE HOMEM E NATUREZA EM AVATAR: UMA LEITURA
ROUSSEAUNIANA
Andrelino Ferreira dos Santos Filho 1 1
Kele Conceição Alves Vilaça Amaral 2 2
Resumo: Este artigo propõe uma reflexão sobre a obra cinematográficaAvatara partir de elementos do pensamento de Rousseau, condensados nos temas acerca das relações entre homemnatureza e entre aparênciaessência. Para tanto, consideramos os conceitos extraídos de obras comoOs Discursos,Do Contrato Social e Emílio, entre outras; que ganham vivacidade na análise do filme, sendo possível verificar o posicionamento singular do filósofo, que em meio ao apogeu iluminista denunciou a redução da vida ao domínio da hipocrisia, e a discrepância entre o parecer e o ser. Nessa perspectiva, intencionase discutir as mudanças dessas relações sob a exigência da pergunta: “Qual é a melhor forma de viver?”, expondo, ao fim, os ganhos da tentativa de propor uma interpretação rousseauniana de Avatar. Palavraschave: Natureza. Homem. Aparência. Essência. Summary: This article proposes a reflection on the cinematographic work of Avatar from elements of Rousseau's thought, condensed on issues about the relationship between man and nature and between appearanceessence. Therefore, we consider the extracted concepts of works as The Discourses, The Social Contract andEmile, among others; earning life in the analysis of the film, it is possible to check the singular position of the philosopher, who among the peak of Enlightenment denounced the reduction of life to the command of hypocrisy, and the discrepancy between what it seems to be and what it is. In this perspective, there is the intention to discuss the changes of these relations under the requirement of the question:" What is the best way to live?, exposing, at the end, the gains of the attempt to propose a Rousseau's interpretation of Avatar. Keywords: Nature. Man. Appearance. Essence.
Propor, hoje, uma reflexão ancorada em um filósofo do século XVIII parece
implicar, por mais fértil que sua filosofia seja, o risco da acusação de anacronismo,
mas se é verdade que o filosofar exige a apreensão da especificidade de um
contexto imediato, é verdade também que uma obra reconhecidamente clássica tem
sempre algo a dizer à posteridade.
Rousseau posicionouse de forma singular contra as aparências e colocou em
relevo o problema da relação entre homem e natureza, que ainda hoje merece nossa
11 Doutor em Estudos Literários Fale/UFMG; Doutorando em Filosofia Fafich/UFMG; Professor da PUC Minas e da UEMG. [email protected] 22 Graduanda em Pedagogia pela UEMG. [email protected]
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consideração. Durante as intensas transformações do século XVIII, enquanto a
Europa aplaudia o avanço da racionalidade libertadora das ciências – vislumbrando
com o vapor das máquinas de Watt o promissor futuro da Revolução Industrial – 3
Rousseau, muito além de empreender uma crítica às mudanças da sociedade,
opôsse contra o paradigma dominante que enaltecia o primado da razão sobre a
natureza, alertando aos otimistas das luzes quanto às moléstias do progresso. Nos
limites dessas considerações, empreendemos a análise da obra cinematográfica
Avatar (2009) a partir do binômio aparência/essência.
Em meio ao apogeu iluminista, a denúncia da redução da vida ao domínio da
hipocrisia tornouse, no requinte da forma de escrita reconhecidamente elogiosa em
face do concurso da Academia de Dijon, uma das mais importantes marcas da
filosofia de Rousseau, a saber, a discrepância entre o parecer e o ser. Mas qual é o
vínculo possível entre a distinção aparênciaessência e a relação entre
homemnatureza?
Nesse sentido, um episódio marcante na história europeia nos sugere as
possíveis nuances desse vínculo. No dia 1º de novembro de 1755, um devastador
abalo sísmico seguido de um maremoto atingiu a cidade de Lisboa, sendo que a
tragédia provocou, além de milhares de vítimas, profundas reflexões,
desencadeando um debate para além dos fatos . Diversos intelectuais escreveram 4 5
sobre o ocorrido, entre eles Voltaire, que redigiu o Poema sobre o desastre de
Lisboa, pelo qual foi severamente criticado por Rousseau, sobretudo pelo grau de
ridicularização sob o qual fora posto o otimismo dos escritos de Pope e Leibniz. Ele
responde ao poema de Voltaire na Carta sobre a Providência dizendo que os males
que lhes sobrevieram
3 James Watt aperfeiçoou a maquina a vapor que mecanizou a maior parte dos processos manufatureiros, sendo de fundamental importância, sobretudo para o crescimento da indústria têxtil no século XVIII e início do XIX. A máquina aprimorada por Watt representou para a primeira Revolução Industrial o equivalente ao computador para a Revolução da Informação: "seu gatilho"e principal símbolo.(DRUCKER,2000).
4A tragédia que deixou dezenas de milhares de mortos e feridos desencadeou discussões sobre várias questões, sobretudo religiosas, pelo fato de ter ocorrido às nove e trinta da manhã, quando, pelo feriado religioso de Todos os Santos, grande parte da população estava nas igrejas. O desmoronamento de grandes catedrais lotadas de fieis trouxe à tona os debates sobre as relações entre Deus, a natureza e os homens.
5 Voltaire escreveu o poema sobre o desastre de Lisboa no qual satiriza a ideia de Leibniz segundo o qual este seria o melhor dos mundos possíveis criado por uma divindade benfazeja, e o otimismo de Alexander Pope explícito sobretudo no Ensaio sobre o homem(1733),no qual afirma que todo mal é parcial e todo bem universal. Rousseau escreveu como resposta a Voltaire a Carta sobre a Providência(1755). Há ainda ensaios posteriores escritos por Kant e Goethe.
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[...] são um efeito necessário de tua natureza e da constituição deste universo. O Ser eterno e benfazejo que te governa teria querido protegervos deles. De todos os planos possíveis, escolheu o que reunia menores males e maiores bens, ou (para dizer a mesma coisa ainda mais cruamente, se necessário), se ele não fez melhor, é porque não podia fazer melhor. (ROUSSEAU, 2002, p.8).
Elucidando seu pensamento acerca da questão do mal, Rousseau
responsabilizou unicamente o homem pela corrupção da harmonia da criação e, em
justa defesa de si, alega que quando pintou a miserabilidade humana o seu objetivo
era desculpável e até mesmo louvável, pois mostrava aos homens como eles
próprios produziam suas desgraças e, consequentemente, como podiam evitálas,
conforme explicita:
Não vejo como se possa buscar a fonte do mal moral em outro lugar que não no homem livre, aperfeiçoado, portanto corrompido; [...] Sem deixar o assunto de Lisboa, convinde, por exemplo, que a natureza não reuniu ali vinte mil casas de seis a sete andares, e que se os habitantes dessa grande cidade tivessem sido distribuídos mais igualmente, e possuíssem menos coisas, o dano teria sido muito menor, e talvez nulo. Todos teriam fugido ao primeiro abalo, e sido vistos no dia seguinte a vinte léguas de lá, tão alegres como se nada houvesse acontecido; mas é preciso permanecer, obstinarse ao redor das habitações, exporse a novos tremores, porque o que se abandona vale mais do que o que se pode levar. Quantos infelizes pereceram nesse desastre por querer pegar, um suas roupas, outro seus papéis, outro seu dinheiro? Acaso não se sabe que a pessoa de cada homem tornouse a menor parte dele mesmo, e que quase não vale a pena salvála quando se perde todo o resto? (ROUSSEAU, 2002, p.9).
Diante desse panorama, fica claro que, para Rousseau, o homem não
reverbera uma suposta corrupção da natureza ao fazerse um ser cultural. Ao
contrário, a cultura, a grosso modo, é concebida pelo filósofo como o afastamento
que equivale, no processo humano de perda de si, uma espécie de déficit natural.
Desse modo, o ampliar da cultura direcionou a humanidade para uma forma de viver
cada vez mais artificial, degenerando o que fora feito naturalmente perfeito, como
afirma:
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Tudo está bem quando sai das mãos do autor das coisas, tudo degenera entre as mãos do homem. Ele força uma terra a alimentar as produções de outra, uma árvore a carregar os frutos de outra. Mistura seu cão, seu cavalo, seu escravo. Perturba tudo, desfigura tudo, ama a deformidade e os monstros. Não quer nada da maneira como a natureza o fez [...] (ROUSSEAU, 2004, p. 7).
Não é, pois, difícil notar que Rousseau buscava encontrar o que é
intrinsecamente humano, antes que a artificialidade dos costumes conduzisse a um
viver marcado pelo primado da aparência sobre a essência, cujo corolário seria a
constatação de que a cultura é a expressão da “aparência de todas as virtudes sem
que se possua nenhuma delas” (ROUSSEAU, 1987, p.139). No Discurso sobre a
origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens(1755), o filósofo,
assumindo cabalmente a célebre tese do “bom selvagem”, explicita as razões pelas
quais o afastamento da natureza equivale à subversão do estado primitivo pela
mediação de um suposto progresso que, na especificidade do primeiro discurso
(1749), fora tratado. Em tal conjuntura, ao escrever o discurso respondendo à
questão proposta pela Academia de Dijon, qual seja, O restabelecimento das
ciências e das artes terá contribuído para aprimorar os costumes? Rousseau
posicionouse de forma ousada contra a hipocrisia de uma vida cativa pela aparência
e pelos excessos por aqueles que fizeram dos vícios substitutos das virtudes e,
enganando a si mesmos, incorreram em um erro também de ordem moral.
Nesse sentido, diz Starobinski:
Cavase o vazio atrás das superfícies mentirosas. Aqui vão começar todas as nossas infelicidades. Pois essa fenda, que impede a “atitude exterior” de corresponder as “disposições do coração”, faz o mal penetrar no mundo. Os benefícios das luzes se encontram compensados, e quase anulados, pelos inumeráveis vícios que decorrem da mentira da aparência. Um ímpeto de eloquência descrevera a ascensão triunfal das artes e das ciências; um segundo lance de eloquência nos arrasta agora em sentido inverso, e nos mostra toda a extensão da “corrupção dos costumes”. O espírito humano triunfa, mas o homem se perdeu. O contraste é violento, pois o que está em jogo não é apenas a noção abstrata do ser e do parecer, mas o destino dos homens, que se divide entre a inocência renegada e a perdição doravante certa: o parecer e o mal são uma
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mesma coisa. [...] Enganarse é tornarse culpado enquanto se acredita fazer o bem. (1991, p.1516).
Tratase, assim, de ver em Rousseau, para além das leituras reducionistas e
exauridas na imediatidade da reflexão sobre a origem do poder e do pacto social que
engendram e ordenam a sociedade, a tensão entre o ser e o parecer como
denúncia/constatação da degenerescência do estado natural. Nesse sentido,
podemos dizer que ainda é possível encontrar no binômio aparência/essência a
força suficiente para que se depreendam dele elementos os quais permitam
aproximação de um objeto contemporâneo. Vale ressaltar que a noção de essência,
nesse caso, nem de longe pretende evocar a ideia de natureza humana, mas
simplesmente indicar algo camuflado pela cultura. Desse modo, não parece
arbitrário levar a cabo a intenção de analisar o filmeAvatarà luz de Rousseau, como
anunciado.
Para maior apreensão do paralelo proposto, seguese o breve enredo do filme
escrito e dirigido pelo norteamericano James Cameron. A ficção, que exibiu
diversas inovações em termos de tecnologia de filmagem e foi premiada com três
Oscars, vai além de uma mega produção hollywoodiana com sucesso de público,
segundo Baxter (2013), “Avatar é, antes de outras coisas, a história de uma jornada;
o personagem Jake Sully viaja da Terra para as estrelas e, em Pandora, ao lutar
para salvar os Na'vi, descobre sua plena humanidade”. Portanto, a despeito do apelo
popular Avatar aborda diversas reflexões éticas, possibilitando a discussão filosófica
referida.
A história se passa no ano de 2154 d.C, quando a cooperativa mineradora
Resources Development Administration (RDA) descobre, no solo de Pandora, uma
lua do planeta Polifemo, o valioso Unobtanium. Por ser um mineral supercondutor, o
Unobtanium seria capaz de solucionar os problemas energéticos da Terra, que já
havia esgotado seus recursos naturais.
Os habitantes locais, os Na'vi, tornamse um problema aos interesses da
mineradora, pois a árvorelar onde vive o clã Onomaticaya encontrase sobre a
maior jazida do precioso minério. A tentativa de retirálos do local pacificamente dura
pouco, como elucida a fala do personagem Parker Selfridge, administrador da
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estação de Pandora: “matar os nativos pega mal, mas tem algo que os acionistas
detestam mais do que publicidade negativa: um relatório trimestral de lucros ruim”.
Convencidos das dificuldades que enfrentariam para retirar os nativos do local com o
uso da força, a companhia recorre, então, a uma equipe de cientistas, que, liderados
pela Dra. Grace Augustine, desenvolve corpos fisicamente idênticos aos Na'vi,
controlados mentalmente por humanos, que chamam deAvatar. O protagonista Jake
Sully, exfuzileiro paraplégico, entra para a equipe e assume oAvatar que pertencia
a seu falecido irmão gêmeo, o que foi possível devido à similaridade genética
presente entre os univitelinos.
O desenrolar da trama se desenvolve a partir da primeira viagem de Jake à
Pandora, quando ele se perde do seu grupo ao fugir do ataque de uma fera. O
personagem é salvo por uma Na'vi, chamada Neytiri, que o leva aos líderes do clã,
sua mãe Mo'at e seu pai Eytukan, a fim de decidirem seu futuro. Em busca de
adquirir a confiança dos nativos, Jake Sully pede permissão para reabertura de uma
escola que havia sido criada em Pandora, como uma tentativa anterior de
aproximação, pela Dra. Grace. Os líderes do clã recusam veementemente tanto a
escola quanto o pedido seguinte de Sully, de tornarse aprendiz do seu povo. Mo'at
alega que seu clã já tentou ensinar a outros como ele, mas “é difícil encher uma taça
que já está cheia”. O protagonista, abdicando sua cultura (mesmo que a princípio por
motivos escusos), alega que “sua taça está vazia” e se identifica como um guerreiro
disposto a aprender. Dito isso, Eytukan comissiona sua filha Neytiri como tutora de
Jake, a fim de lhe ensinar o modo de vida dos Onomaticaya.Mo'at encerra o diálogo
com a frase que reflete a visão Na'vi sobre os humanos: “Aprenda bem, então
veremos se a sua insanidade pode ser curada”.
Fundamentados no pensamento rousseauniano, podemos classificar o
abandonar do estado de natureza como a primeira insanidade humana que,
agravada pelo progresso das ciências e das artes, escravizara os homens sob uma
uniformidade de costumes, enquanto os desvirtuava, os enfraquecia e os corrompia.
Esse processo trouxe à humanidade, além dos incontáveis prejuízos citados pelo
filósofo, a possibilidade – ou a necessidade – das relações comunitárias. O que não
significa uma vida harmoniosa; ao contrário, além de precisar conviver com as
divergências alheias, o distanciarse do que lhe era natural acarretou ao homem um
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estado de desequilíbrio consigo mesmo, de constante insatisfação e infelicidade. No
momento em que o homem deixa de satisfazerse através de suas faculdades inatas
– cujos desejos necessários à sua conservação poderiam ser naturalmente saciados
– ele passa a alimentar faculdades virtuais, tal como a imaginação. Os desejos
tornamse, então, ilimitados e, muitas vezes, inalcançáveis. A ambição em se ter o
inatingível produzira no homem uma condição miserável, na medida em que a
miséria não consiste na privação das coisas, mas na necessidade que sentimos
delas.
Foi assim que a natureza, que tudo faz do melhor modo, inicialmente o instituiu. Ela lhe dá de imediato apenas os desejos necessários à sua conservação e as faculdades suficientes para satisfazêlos[...]Só nesse estado primitivo o equilíbrio entre o poder e o desejo é reencontrado e o homem não é infeliz [...] quanto mais o homem tiver permanecido próximo à sua condição natural, mais a diferença entre as suas faculdades e os seus desejos será pequena e, consequentemente, menos distante estará de ser feliz.[...] O mundo real tem seus limites, o mundo imaginário é infinito. Já que não podemos ampliar o primeiro, reduzamos o segundo, pois é unicamente da diferença entre eles que nascem todos os sofrimentos que nos tornam realmente infelizes.(ROUSSEAU, 2004, p.75).
Embora latente, as faculdades virtuais mantinhamse adormecidas no âmago
do ser humano e foram instrumentos fundamentais tanto para a sua conservação
quanto para seu progresso, estando entre os fatores que possibilitaram as primeiras
relações comunitárias. A despeito, em primeiro momento, da ignorância acerca de
critérios valorativos, os homens – sob a condução de instintos como o amor de si
que assegurava a autopreservação e a piedade que moderava sua ação sobre os
outros– eram eminentemente bons. Quanto ao aspecto físico, Rousseau apresenta
a imagem dos homens selvagens como seres fortes e vigorosos que retiravam da
natureza o necessário à sua subsistência e gozavam de plena saúde. Para o
filósofo, a coletividade enfraqueceu os indivíduos não apenas lhes tolhendo o direito
que tinham sobre suas próprias forças, mas, sobretudo, tornandoas insuficientes
pela multiplicidade dos desejos advindos de sua corrupção. Além disso, o autor
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aponta que os avanços da medicina não foram capazes de produzir remédios
suficientes para todas as doenças geradas pela sociedade. Em função da
[..] extrema desigualdade na maneira de viver; o excesso de ociosidade de uns; o excesso de trabalho de outros; a facilidade de irritar e de satisfazer nossos apetites e nossa sensualidade; os alimentos muito rebuscados dos ricos, que os nutrem com sucos abrasadores e que determinam tantas indigestões; a má alimentação dos pobres que frequentemente lhes falta e cuja carência faz que sobrecarreguem, quando possível, avidamente seu estômago; as vigílias, os excessos de toda sorte; os transportes imoderados de todas as paixões; as fadigas e o esgotamento do espírito, as tristezas e os trabalhos semnúmero pelos quais se passa em todos os estados e pelos quais as almas são perpetuamente corroídas – são, todos, indícios funestos de que a maioria de nossos males é obra nossa e que teríamos evitado quase todos se tivéssemos conservado a maneira simples, uniforme e solitária de viver prescrita pela natureza. (ROUSSEAU, 1987b, p.4445).
Como exemplo de povos que permaneceram mais tempo próximo ao estado
de natureza e, portanto, saudáveis e felizes, Rousseau referese, em seu primeiro
discurso, à Grécia antiga,“onde as letras nascentes ainda não tinham levado a
corrupção aos corações de seus habitantes”, e aos persas, que “aprendiam a virtude
como entre nós se aprende a ciência” (ROUSSEAU, 1987b, p.142). Já no segundo
discurso, menciona os caraíbas da Venezuela, afirmando que, devido ao vigor físico,
eles viviam entre animais selvagens na mais profunda segurança e sem o menor
inconveniente (ROUSSEAU, 1987b, p.44). Nesse sentido, sugerimos a comparação
entre os nativos da fictícia Pandora a tais povos. Embora vivendo de forma coletiva,
mantinham características do bom selvagem, numa clara exibição de força e
habilidades físicas. Notase entre os Na'vi sentimentos que antecedem a qualquer
reflexão, como havia no homem selvagem. A cena que melhor traduz essa
semelhança trata da tristeza diante da morte de um animal provocada pela
insensatez humana figurada no personagem Jake. O sentimento que fez Neytiri
colocarse no lugar da vida agonizante evoca uma instância anterior à razão, como
expõe Rousseau:
Certo, pois a piedade representa um sentimento natural que, moderando em cada indivíduo a ação do amor de si mesmo,
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concorre para a conservação mútua de toda a espécie. Ela nos faz, sem reflexão, socorrer aqueles que vemos sofrer; ela, no estado de natureza, ocupa o lugar das leis, dos costumes e da virtude, com a vantagem de ninguém sentirse tentado a desobedecer à sua doce voz; ela impedirá qualquer selvagem robusto de tirar a uma criança fraca ou a um velho enfermo a subsistência adquirida com dificuldade, desde que ele mesmo possa encontrar a sua em outra parte[...] (1987b, p. 58)
Outra aproximação que parece possível diz respeito à vida coletiva. A
sociedade civil, conforme Rousseau afirma no Do Contrato Social(1987), foi
inaugurada com o surgimento da propriedade privada. Antes desse estágio, houve
um período de evolução que chamou de “a idade de ouro, a meio caminho entre a
brutalidade das etapas anteriores e a corrupção das sociedades civilizadas”
(ROUSSEAU,1987a, p.59), em que os homens viviam coletivamente. Podemos
considerar os nativos da ficção de Cameron, vivendo nessa “Idade de Ouro”. Os
Na'vi dormem, caçam e fazem juntos as refeições na árvorelar. A vida coletiva não
lhes desvirtuou os costumes nem lhes gerou discrepância entre o comportamento e
as disposições do coração, como o filósofo afirma existir no homem corrompido pela
sociedade:
[...] reina entre nossos costumes uma uniformidade desprezível e enganosa, e parece que todos os espíritos se fundiram num mesmo molde: incessantemente a polidez impõe, o decoro ordena; incessantemente seguemse os usos e nunca o próprio gênio. Não se ousa mais parecer tal como se é, sob tal coerção perpétua, os homens que formam o rebanho chamado sociedade, nas mesmas circunstâncias, farão todos as mesmas coisas desde que motivos mais poderosos não os desviem. (ROUSSEAU, 1987b, p.140).
Esse distanciamento entre o ser e parecer reflete a futilidade dos valores
enraizados na humanidade e é expresso no filme através do contraste entre a
relação dos homens e dos Na'vi com a natureza. No ano 2154, quando se passa a
trama, os recursos naturais da Terra estariam completamente esgotados conforme a
fala do personagem Jake Sully: “Veja o mundo de onde viemos: lá não há verde.
Eles mataram a própria mãe Natureza”. Em contrapartida, a relação dos nativos com
a natureza em Pandora, além de harmoniosa, é interligada. A personagem Dra.
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Grace Augustine alega haver entre os Na'vi e o ecossistema uma “comunicação
eletroquímica” semelhante à atividade sináptica que ocorre entre os neurônios do
cérebro humano. Tudo está interligado a Eywa, que é a deusa mãe para os Na'vi e a
responsável pela proteção do equilíbrio da vida. Eles veem o mundo como uma
grande teia de energia que flui através de todos os seres vivos.
Há, portanto, um estreito elo entre o contato dos nativos com a natureza e a
religiosidade em Pandora, uma correlação de vida e espiritualidade em que tudo e
todos se interligam à divindade. Segundo Rousseau, uma vez iniciada a sociedade,
a religião tornase não só útil, mas necessária por contribuir com a coesão social e a
moralidade, indispensáveis para a vida comunitária. No Do Contrato Social(1987), o
filósofo discorre sobre três tipos de religião: a do homem, exemplificada pelo
cristianismo do evangelho em que o culto espiritual contém bases para regras
morais; a do cidadão que é caracteristicamente limitada a um país, com padroeiros,
dogmas e deuses próprios; e a terceira que, como a religião dos Lhamas e o
cristianismo romano, estabelece ao homem duas legislações, dois chefes, duas
pátrias. (ROUSSEAU, 1987a, p.141). Inferimos que a religião Na'vi não se
encaixaria, perfeitamente, em nenhuma das citadas por Rousseau, mas
assemelhase à religião do homem, por devotar adoração a uma só divindade e
expressar uma espiritualidade interiorizada. A contribuição da religião para a
moralidade é claramente expressa no filme, vista tanto nas relações sociais quanto
na relação dos nativos com a natureza. A moralidade, sugere Rousseau, seria
aplicável a quantos mundos houvesse, conforme expõe na carta a Voltaire.
Sobre o bem do todo, preferível ao de sua parte, fazeis dizer ao homem: “Devo ser tão caro a meu mestre, eu, ser que pensa e sente, quanto os planetas que provavelmente não sentem nada”. Sem dúvida, esse universo material não deve ser mais caro a seu autor do que um único ser que pensa e sente. Mas o sistema desse universo que produz, conserva e perpetua todos os seres que pensam e sentem deve lhe ser mais caro do que um único desses seres; logo, ele pode, apesar de sua bondade, ou antes por sua própria bondade, sacrificar alguma coisa da ventura dos indivíduos à conservação do todo. Eu creio, eu espero valer mais aos olhos de Deus do que a terra de um planeta, mas se os planetas são habitados, como é provável, por que valeria eu a seus olhos mais do que todos os habitantes de Saturno? Mesmo que essas ideias sejam
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ridicularizadas, é certo que todas as analogias a favor desse povoamento, a conservação do universo parece ter, para o próprio Deus, uma moralidade que se multiplica pelo número de mundos habitados. (ROUSSEAU, 2002, p.1415).
Apesar de declararse cristão, Rousseau era contrário à ideia de fazer do
cristianismo uma religião nacional e introduzilo como parte constitutiva do sistema
de legislação, pois, conforme esclarece na primeira das Cartas escritas da
montanha(2006), fazêlo seria cometer duas faltas perniciosas, uma contra a
religião, outra contra o Estado. O cristianismo, segundo ele, é uma religião universal
em seu princípio, que não possui nada de exclusivo ou de próprio para pertencer a
uma região e não a outra. E se o cristianismo pode tornar os homens justos,
moderados e amigos da paz, seria vantajoso para a sociedade em geral, mas
enfraqueceria a força da engrenagem política. O filósofo argumenta que, quando
Cristo afirmou: “dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”,
estabelecia seu reino espiritual, separando o sistema teológico do político. Tal
distinção não se faz presente na crença dos Na'vi, ao contrário dos cristãos que
esperam por um paraíso após a morte, pois eles vivem em seu próprio Éden e
externam tanto o seu patriotismo quanto a sua espiritualidade ao lutarem para
defender seu território, que é simultaneamente sua morada física e seu céu – já que
tais coisas são para eles indistintas. A espiritualidade do povo Na'vi é, pois, mais um
traço do grau de integração na sua relação com a natureza.
Observase, portanto, que o distanciar entre homemnatureza é diretamente
relacionado à antítese aparênciaessência, em um processo contingente no qual a
ação moral tornase responsável por originar conflitos que perpassam as mais
diversas áreas e modificam até mesmo as relações entre o homem consigo mesmo,
com suas crenças e religiosidade.
Segundo Starobinski(1991), uma leitura desatenta pode sugerir que o olhar
rousseauniano sobre a corrupção da sociedade tenha sido o de um filósofo
naturalista observando os homens como um espectador – escandalizado com a
dissimulação dos sentimentos e a falta de compasso entre o discurso e a ação.
Porém, o que Rousseau reconhece não advém apenas de uma observação
descompromissada, por assim dizer, pois o tom acusativo que ecoa nos primeiros
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discursos reverbera uma espécie de dramaturgia íntima. Ou seja, sua visada
germinara a partir de seus próprios conflitos. Esse fato é relevante na medida em
que conduz à compreensão da aparente ambiguidade entre o Rousseau das
primeiras obras, notadamente pessimista, e aquele que acredita na possibilidade de
salvaguardar ou restaurar a transparência, evidenciando que mesmo
Sob a máscara que os outros impõe de fora à sua fisionomia, JeanJacques não deixou de ser JeanJacques. No momento em que está mais obsedado pela perseguição, replica contando a si mesmo a versão otimista do mito de origem: nada foi perdido, o tempo não alterou o essencial, só corroeu a superfície, o mal vem de fora mas permanece fora.[...]Então Rousseau invoca com confiança uma “natureza que nada destrói”, tornase o poeta da permanência desvelada. Descobre em si mesmo a proximidade da transparência original; e esse “homem da natureza” que ele buscara na profundeza das eras, agora reencontralhe os “traços originais” na profundeza do eu.(STAROBINSKI, 1991, p.29).
A aparente ambiguidade, longe de ser algo negativo, potencializa a reflexão
sobre o filme, sob a exigência da pergunta “O que podemos aprender?”. Embora
carregue uma denúncia clichê acerca da ganância humana, Avatar parece
reivindicar o reconhecimento da perda si plasmada na impossibilidade da
recuperação da ligação íntima e visceral entre homem e natureza. Mas tal
reconhecimento não é unívoco, pois traduz também a consciência do esforço acerca
de uma nova visada. Talvez não seja arbitrário concluir que o que está em jogo em
Avatar seja a pretensão de fomentar a reflexão sobre uma ética planetária. Nesse
sentido, o filme não se refere a uma experiência perdida – como o bom selvagem de
Rousseau – mas aponta a preocupação em termos de responsabilidade com o
futuro.
Pensar em que medida é possível minimizar os impactos da superficialidade
dos bens culturais sobre a natureza e sobre nós mesmos é, certamente, imperativo.
Não se trata de retorno, mas do questionamento da ideia de progresso, pois “o eu do
homem social não se reconhece mais em si mesmo, mas se busca no exterior, entre
as coisas; seus meios se tornam seu fim. O homem inteiro se torna coisa, ou
escravo das coisas [...]” (STAROBISNKI, 1991, p.3536). A própria relação entre
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homem e natureza foi reificada, ao mesmo tempo em que a cultura mais aliena do
que emancipa. Evidenciando que a cultura, modo próprio de ser do homem, pode
ser questionada – como o fizera Rousseau – a fim de fazer emergir o que está
velado sob o véu que mascara a realidade. A expansão e conservação da vida
carecem de ser pensadas a partir da totalidade na qual a relação excludente entre
aparência e essência desapareça – ou seja, pelo menos mitigada. A rigor, a
pergunta que salta aos olhos no filme é “Qual é a melhor forma de viver?”. Parece
que as respostas podem ser múltiplas e, por vezes, opacas, inacabadas,
insuficientes, contraditórias e até irrelevantes, o que não quer dizer que o problema
seja a impertinência da pergunta. Ao contrário, a diversidade das tentativas de
resposta fortalece ainda mais a consciência da complexidade da indagação. Nesse
sentido, Avatar, dentre as muitas possibilidades interpretativas, mostrase como –
pelo menos – um apontamento em relação à melhor forma de viver.
PESQUISA EM FOCO: Educação e Filosofia V. 8 , ANO 8, ABRIL 2015 | ISSN: 19833946
REFERÊNCIAS
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