CESAR LEANDRO RIBEIRO
A INTERIORIDADE NO PENSAMENTO DE SANTO AGOSTINHO
CURITIBA
2007
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CESAR LEANDRO RIBEIRO
A INTERIORIDADE NO PENSAMENTO DE SANTO AGOSTINHO
Dissertao apresentada Pontifcia Universidade catlica do Paran, como requisito para a concluso de curso de Ps-Graduao Stricto Sensu Mestrado em Filosofia
Orientador: Professor Dr. Jamil Ibrahim Iskandar.
CURITIBA
2007
2
DEDICATRIA
A Andressa, minha esposa, pela constante e
edificante presena em todos os momentos.
3
AGRADECIMENTO
Gratido
Ao Professor Jamil, pela confiana e orientaes.
Ao Professor Bortolo Valle, pelo testemunho de
vida acadmica.
Aos Professores Csar Candiotto e Mario
Sanches, pelas preciosas correes.
Aos colegas, companheiros de turma, Jean,
Gladys, Jamil, Luciano e Paulo, pelas crticas
construtivas
e incentivos.
4
Onde habitas, Senhor, na minha memria? Deste-me a
honra de habitar em minha memria, mas em que parte?
o que estou procurando... Passei s regies onde depositei
os sentimentos do esprito, e nem mesmo a te encontrei.
Entrei na sede da prpria alma e nem a estavas... E
enquanto todas essas coisas so mutveis, tu permanece
imutvel acima de todas elas. Mas por que procurar em que
parte habitas, como se na memria houvesse vrios
compartimentos? certo que nela habitas, pois recordo-me
de ti desde o dia em que te conheci. E a que te encontro
quando me lembro de ti.
Santo Agostinho
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RESUMO
Para Agostinho, o conhecimento da verdade possvel por um processo de interioridade, compreendido como um movimento da alma que a torna capaz de acessar as verdades eternas, ou os inteligveis, presentes em parte em si mesma e plenamente em Deus. Este movimento implica basicamente em duas possibilidades: primeiro, a de conhecer a verdade no ela toda, mas parte dela de forma sempre contnua; e segundo, a possibilidade de viver a verdade, ou seja, unir-se de tal forma a ela de modo que se possa atingir um estado de bem-aventurana, de sabedoria. No mbito do conhecimento, o acesso verdade somente ser possvel pelo processo que ele chama de iluminao. No mbito moral, o acesso verdade vai significar a transformao do ser humano a partir do resgate do divino presente em sua prpria alma; o que se dar pelo reconhecimento do ser humano como imagem da trindade divina e no empenho deste em se fazer merecedor da sabedoria e felicidade que deste fato decorre a partir da escalada dos degraus rumo verdade. A alma, desta forma, na ordem metafsica, o caminho da busca da verdade. Assim, entende-se que o ser humano pode identificar a existncia de uma verdade superior, imutvel, presente em si mesmo, mas que ao mesmo tempo o transcende. de seu interior que se torna possvel um conhecimento reto at mesmo das criaturas. Em sua alma, no intelecto, as verdades eternas, presentes como leis, garantem a veracidade ou no das coisas. Neste processo, a f o ponto central que torna possvel a graa de Deus, condio fundamental para que ocorra no somente o conhecimento possvel de Deus, mas para que acontea a conformao do ser humano ao divino.
Palavras-chave: Interioridade, inteligveis, verdade, iluminao, imagem trinitria
6
RESUMEN
Para Agustn, el conocimiento de la verdad es posible por medio de un proceso de interioridad, comprendido como un movimiento del alma que torna capaz de acceder las verdades eternas, o los inteligibles, presentes en parte en si misma y plenamiente en Dios. Este movimiento implica basicamente en dos posibilidades: primer, de conocer la verdad no ella toda, pero una parte de ella de modo siempre continuo; y segundo, la posibilidad de vivir la verdad, o sea, unirse de tal forma a ella de modo que sea posible alcanzar un estado de bienaventuranza, de sabidura. En el mbito del conocimiento, el acceso a la verdad solamente sera posible por el proceso que l llama de iluminacin. En el mbito de la moral, el acceso a la verdad va significar la transformacin del ser humano partiendo del rescate del divino presente en su prpria alma; lo que sera dado por el conocimiento del ser humano como imagem de la trinidad divina y en empeo de este en hacer merecedor de la sabidura y felicidad que de este fato transcurre partiendo de la escalada de los escalones rumbo a la verdad. La alma, de esta forma, en la ordene metafsica, es el camino de la busca de la verdad. Asi, entiendese que el ser humano puede identificar la existencia de uma verdad superior, inmutable, presente en si mismo, pero que al mismo tiempo lo transcende. Es de su interior que se torna posible un conocimiento recto hasta mismo de las creaturas. En su alma, en el intelecto, las verdades eternas, presentes como leyes, garantizan la veracidad o no de las cosas. En este proceso, la fe es este punto central que torna posible la gracia de Dios, condicin fundamental para que ocurra no solamente el conocimiento posible de Dios, pero para que ocurra la conformacin del ser humano al divino. Palabras-clave: Interioridad, inteligibles, verdad, iluminacin, imagem trinitaria.
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ABSTRACT
To Augustine, the knowledge of truth is possible through a process of interiority, comprehended as a movement of soul that makes it capable of accessing eternal or intelligible truths, which are present partly in itself and completely in God. This movement implies basically two possibilities. First, the possibility of knowing the truth not all of it, but part of it always continuously. Second, the possibility of living the truth, which means joining with it in such a way that one is able to achieve a state of beatitude, of wisdom. In the field of knowledge, the access of truth will only be possible through the process he himself calls illumination. In the moral field, the access of truth means transforming the human being by means of rescuing the divine which is present in their own soul. And this will happen by recognizing the human being as image of the divine Trinity as well as by their effort in deserving the wisdom and the happiness that comes out of this fact from going up the stairs that lead to the truth. The soul, by this means, in the metaphysical order, is the path for the search of truth. Therefore, it is believed that the human being is able to identify the existence of a superior truth, immutable, present in themselves, although it transcends themselves. By knowing the interior, it is possible to have a straight knowledge of even the creatures. In their souls, in the intellect, the eternal truths, present as laws, guarantee things to have veracity or not. In this process, faith is the central issue that makes possible the grace of God, fundamental condition for not only the possible knowledge of God to happen, but for the conformation of the human being to the divine to happen as well. Keywords: interiority; intelligible; truth; illumination; Trinity image.
8
SUMRIO
RESUMO............................................................................................................................ v
RESUMEN.......................................................................................................................... vi
RESUMO............................................................................................................................ vii
1 INTRODUO............................................................................................................... 1
2 A VIDA DE AGOSTINHO, UM PERCURSO DO EXTERIOR AO INTERIOR... 8
2.1 VISO GERAL SOBRE A VIDA E O CONTEXTO DE AGOSTINHO................... 10
2.2 INQUIETUDES DA ALMA......................................................................................... 15
2.2.1 MNICA, HORTNSIO E AS PAIXES................................................................. 18
2.2.2 DO MANIQUEISMO AO NEOPLATONISMO....................................................... 28
2.3 A CONVERSO DE AGOSTINHO, EXPERINCIA DE INTERIORIDADE.......... 39
3 A INTERIORIDADE NA FILOSOFIA AGOSTINIANA............................................ 58
3.1 O CONCEITO DE INTERIORIDADE.......................................................................... 59
3.2 A INTERIORIDADE NA FILOSOFIA PR-AGOSTINIANA E SUA
REFORMULAO EM AGOSTINHO.............................................................................. 64
3.2.1 PREDICADOS DA IDIA DE INTERIORIDADE NO ESTOICISMO
ROMANO SNECA......................................................................................................... 67
3.2.2 A HERANA DE PLOTINO PARA A IDIA DE INTERIORIDADE EM
AGOSTINHO....................................................................................................................... 71
3.3 REFUTAO DO CETICISMO E O INTERIOR COMO VIA
DO CONHECIMENTO...................................................................................................... 77
4 A RELAO DIVINO X HUMANO NA INTERIORIDADE AGOSTINIANA..... 86
4.1 AS VERDADES ETERNAS NA MENTE DE DEUS E NA MENTE HUMANA...... 87
4.2 ILUMINAO, INTELECTO E MEMRIA............................................................... 95
9
4.3 ILUMINAO E A DIMENSO CRIST DA F E DO AMOR............................ 104
4.4 GRAUS DE ILUMINAO....................................................................................... 110
4.5 O INTERIOR DO SER HUMANO COMO IMAGEM TRINITRIA...................... 114
5 CONSIDERAES FINAIS........................................................................................ 129
REFERNCIAS................................................................................................................ 135
1 INTRODUO
A vida de Agostinho foi marcada por um permanente peregrinar em busca da
verdade. Traou um itinerrio pessoal, no qual procurou distinguir caminhos para o
desenvolvimento do conhecimento, construindo um horizonte de compreenso sobre o ser
humano. Preferindo investigar em primeiro lugar a alma e a Deus1, definiu ao longo de sua
vida princpios e certezas em vista de atingir a sua meta principal, a sabedoria.
Toda a vida de Agostinho foi dedicada causa da verdade. Neste empreendimento,
soube unir razo, vontade, f e vida. A sua construo filosfica foi fruto da interao entre
o pensar, o sentir ou experimentar, e o agir. No se trata de um pensador caracterizado
unicamente pelo exerccio cognitivo, mas de algum que refletiu a partir da vida, dos
acontecimentos concretos, deixando-se interagir com as pessoas, situaes e ambientes
nestes envolvidos.
Em seu empenho intelectual e espiritual, Agostinho considerou a alma humana
como o lugar no qual os embates da vida so decididos. Entendeu-a como o mbito, ou o
caminho, no qual o ser humano encontra o seu verdadeiro ideal e sentido existencial.
2
Considerou-a a instncia capaz de proporcionar equilbrio entre as sensaes e as
ressonncias destas na vida humana e a inteligncia. Concebeu-a como a sede da verdade,
o espao de acesso ao transcendente.
Neste contexto, a investigao sobre a alma levou-o a estabelecer e aprofundar o
princpio da interioridade, compreendido como o movimento pelo qual a pessoa capaz de
encontrar, no seu ntimo, na alma, a verdade. Um processo difcil de ser empreendido, pois
que no implica somente em empenho racional, mas tambm existencial. Em outras
palavras, implica num processo no qual no suficiente somente a compreenso e a
aceitao racional, mas tambm a converso pessoal, integral, que envolve igualmente a
vontade, os sentimentos, a f e atitudes. Um processo que exige a unio entre a
epistemologia e a moral agostinianas.
A construo filosfica de Agostinho, portanto, no algo extrnseco aos seus
sentimentos e desejos e ao mesmo tempo caracterizada como um movimento, um
peregrinar em busca de verdades eternas. A satisfao, a paz e a felicidade foram sempre
termmetros ou critrios para a constatao da veracidade, credibilidade e competncia de
suas idias. Assim, a sua filosofia tambm o espelho de sua prpria vida, de seu itinerrio
pessoal. o retrato de sua prpria descoberta da interioridade.
Ao mesmo tempo, a interioridade implica, em Agostinho, num movimento que
estabelece uma certa oposio do interior com o exterior. Para ele, o encontro da verdade
1 AGOSTINHO, Solilquios, 1993, 1.1.
3
no se d no mbito dos sentidos, do mundo, da cincia, mas sim no interior do ser humano
no como um espao ou lugar fsicos mas no mbito do intelecto, pelo conhecimento
humano e pela graa. Para ele, o mundo exterior carrega o seu valor, mas somente a partir
do sentido dado pelo mundo interior.
Desta realidade nasce a primeira preocupao no estudo do pensamento agostiniano
e, consequentemente, o primeiro enfoque na abordagem da interioridade desta dissertao.
Trata-se da considerao da vida como uma peregrinao do exterior para o interior e da
unio entre a as moes interiores e o empenho cognitivo. No caso de Agostinho, a obra
Confisses retrata seu itinerrio pessoal e estabelece o conhecimento de si como
pressuposto para a busca de verdades slidas, imutveis, perenes, diferentes, portanto, de
tudo que exterior, passageiro, efmero, sensvel. Ao relatar a sua prpria vida, ele acaba
por apresentar suas concluses filosficas como uma sntese entre o pensar e o sentir, a
partir de suas inquietaes interiores.
Desta forma, o primeiro captulo est disposto justamente com o objetivo de
identificar os momentos mais significativos da vida de Agostinho e as reaes destas
experincias em sua alma. No existe como conhecer de fato o pensamento agostiniano sem
trilhar pelo mesmo caminho por ele experienciado. Sua filosofia foi construda a partir de
seus anseios e entend-los o primeiro passo para se compreender o sentido dos conceitos
e movimentos por ele mencionados em seus escritos.
Deve-se considerar, desta forma, que o seu pensamento, embora consolidado
filosoficamente em sua idade madura, foi sendo construdo gradativamente, por etapas
4
marcadas por momentos fortes de experincia interior, ou seja, momentos nos quais o
discernimento da alma exigiu um certo afastamento das coisas efmeras, passageiras. As
pessoas com quem conviveu, bem como as filosofias que encontrou no perodo que
precedeu a sua converso merecem destaques, mesmo porque foram a partir destes
acontecimentos que pde empreender um esforo de discernimento introduzindo em suas
escolhas e idias no s a inteligncia, mas sobretudo a vontade, ora direcionada como
concupiscncia, outra como o amor.
Neste empreendimento, um destaque especial tem o tema da converso agostiniana.
Para ele, tratou-se de um momento bastante significativo a ponto de proporcionar-lhe uma
mudana radical e definitiva de seus ideais e comportamentos pessoais. A sua converso foi
a culminncia de um processo de auto conhecimento e de descoberta do seu interior como o
substrato no qual Deus se faz presente. Foi tambm o ponto de encontro entre f e razo, e
de equilbrio entre inteligncia e vontade. Por isso, o final do primeiro captulo pretende
favorecer a releitura que o prprio Agostinho fez de sua converso e destacar a importncia
da vida interior como instncia da sabedoria e felicidade possvel.
Juntamente com a necessidade de se estudar a interioridade agostiniana,
considerando a sua trajetria pessoal em busca da verdade, mister considerar igualmente o
contexto filosfico no qual Agostinho esteve inserido e as pertinncias deste para a idia de
interioridade. Agostinho foi um homem de seu tempo, inserido em seu contexto, e deve ser
lido com este enfoque. A presente dissertao no pretende estabelecer paralelos entre o
pensamento agostiniano e pensadores outros, mas preocupa-se em concentrar-se no
pensamento mesmo do autor em questo. Neste sentido, o segundo captulo est organizado
5
com o interesse de oferecer a compreenso que Agostinho pde ter dos filsofos de seu
tempo. Importante destaque dado ao Neoplatonismo e Escritura Crist, pois foram estes
sistemas de pensamento que proporcionaram a Agostinho o terreno frtil para o
desdobramento de suas idias acerca de Deus e sobre a alma humana, e consequentemente
sobre os conceitos de criao, de mal, de pecado, de graa, de tempo, entre outros de
reconhecido destaque no universo filosfico em geral, tendo sempre a interioridade como
base.
Desta forma, a partir da sua experincia cotidiana, portanto, com seus
dilaceramentos interiores, Agostinho passou a construir princpios fundamentais como
meios para o conhecimento verdadeiro; e estabeleceu a vida interior como pressuposto para
o conhecimento de Deus. Deste ponto surge a segunda grande preocupao no estudo da
interioridade agostiniana. Trata-se do fato de o ser humano, alm de ir ao encontro de si
mesmo, empreender um processo de conhecimento em busca das verdades eternas at
chegar realidade da transcendncia. Ou seja, um processo no qual a alma, indo para
dentro de si mesma, encontra uma realidade maior que ela mesma, que a transcende.
Isso possvel, porque para Agostinho, a alma contm as impresses das verdades
eternas e, a partir destas, o ser humano capaz de chegar ao estado de bem-aventurana.
Por isso, o segundo e terceiro captulos esto estabelecidos com o objetivo de definir o que
Agostinho entende por alma e como se d o processo de interioridade no qual a alma, em si,
identifica verdades eternas que ao mesmo tempo em que a fundamentam a transcendem.
6
Entrei e, com os olhos da alma, acima destes meus olhos, e acima de minha prpria inteligncia, vi uma luz imutvel. No era uma luz vulgar e evidente a todos com os olhos da carne, ou uma luz mais forte do mesmo gnero. Era como se brilhasse muito mais clara e tudo abrangesse com sua grandeza. No era uma luz como esta, mas totalmente diferente das luzes desta terra.2
Desta realidade surgem perguntas inevitveis: Como esto impressas as verdades
eternas na alma humana? Trata-se do prprio Deus presente no ser humano? E isso no
seria uma forma de pantesmo ou imanentismo? E ainda, de modo geral: como se d a
relao divino x humano no processo do conhecimento dado no interior do ser humano?
Qual a relao e o limite entre o empenho humano e a graa? O terceiro captulo
igualmente procura esclarecimentos a estas perguntas e estabelece a doutrina da iluminao
e o princpio do ser humano como imagem do Deus trindade como fundamentos que
sustentam e do fluncia s dias agostinianas sobre a interioridade como caminho para a
verdade.
Para o estabelecimento dos momentos que marcaram a vida de Agostinho a ponto
de lhe proporcionar experincias marcantes que influenciaram significativamente a sua
filosofia, os comentadores Carlos Cremona e Peter Brow so os mais consultados, ao lado
do principal foco de estudo sobre a vida de Agostinho: Confisses. Sobre a influncia das
formas de pensamento no contexto e poca de Agostinho sobre as noes de interioridade
so consultados comentadores em geral. E referente aos temas culminantes desta
dissertao, sobre o movimento em si da alma em busca da verdade, desdobrados nos
estudos sobre a iluminao e o homem como imagem trinitria a relao divino versus
2 AGOSTINHO, Confisses, 1984, 7.10.16.
7
humano de modo geral no processo de interioridade o apoio maior est posto sobre
Charles Boyer, Philotheus Boehner e sobretudo Etienne Gilson, tendo como fonte primeira
a obra A Trindade.
De modo geral, embora no seja abordada a importncia da idia de interioridade
agostiniana para a atualidade, nesta introduo, pensa-se oportuno mencionar brevemente
que a vida interior seja um tema bastante oportuno para o estudo do conhecimento em
geral, bem como para as prticas morais. Neste sentido, reconhecer o horizonte de
compreenso da vida e filosofia de Agostinho identificando, ao mesmo tempo, o lugar e
importncia que a interioridade ocupa, os caminhos pelos quais foi sendo construda, bem
como sua definio mais ampla e referencial, torna-se um empenho oportuno para a linha
de pesquisa tanto da epistemologia quanto da moral, e da aproximao entre elas.
De modo geral, com Agostinho, a histria da filosofia recebeu elementos que
remetem o homem a pensar sobre si mesmo, enquanto autopercepo. Sua contribuio
intelectual, como um todo, bastante ampla, promovendo caminhos de reflexo sobre
problemas diversos relacionados ao homem, ao conhecimento e ao envolvimento com o
transcendente. Mas, no que diz respeito interioridade, no mbito de sua metafsica,
protagonizou a noo de sujeito e indivduo e as atitudes decorrentes desta realidade
comumente valorizadas na atualidade. Alm disso, resignificando o platonismo e
confrontando-o com o doutrina crist, sendo o grande responsvel pela introduo da idia
de interioridade nos estudos filosficos, proporcionou uma aproximao significativa entre
os estudos que consideram o mbito da f e os que partem unicamente da razo.
8
2 A VIDA DE AGOSTINHO, UM PERCURSO DO EXTERIOR AO INTERIOR
O estudo do pensamento de Agostinho, desde sua base, exige o conhecimento no
s de suas idias mas de sua vida, de suas moes interiores. E mais, exige, ainda, o
entrelaamento da compreenso de seu itinerrio pessoal com suas idias. A sua filosofia
foi construda em grande parte a partir dos seus dilaceramentos interiores, e conhec-los o
ponto de partida para se fazer justia com o pensamento agostiniano. Acredita-se que
quanto mais prximo da pessoa de Agostinho, maior a compreenso de suas concluses
filosficas.
O estudo da interioridade em Agostinho, neste sentido, deve-se partir do olhar sua
vida e da constatao dos elementos bsicos que o levaram, na prtica, a chegar
compreenso de que a verdade no est fora, mas dentro da pessoa. Trata-se do itinerrio
pessoal por ele empreendido desde sua juventude. o que se entende pelo longo caminhar
do exterior para o interior. Do mundo, das paixes e das coisas em si mesmas para a
sabedoria, a paz e o olhar divino da alma.
9
Neste movimento inicial3, do exterior para o interior, destaca-se a fase da
adolescncia e juventude de Agostinho como terreno frtil de experincias interiores. Neste
perodo, possvel identificar alguns elementos, pessoas e acontecimentos referenciais que
o desestabilizaram e o converteram, ou o encaminharam sua converso,4 de alguma
forma, tais como: a figura de sua me em oposio a de seu pai, provocando-lhe a
necessidade de discernimento e escolhas; as paixes da adolescncia e juventude; a leitura
de Ccero, com o apelo sabedoria; a sua relao no assumida oficialmente com sua
concubina; a adeso ao Maniquesmo, com o mundo das divises; os questionamentos sem
respostas e a aproximao do Ceticismo; a sua ambio pessoal, a procura do status; o
encantamento com as palavras do bispo Ambrsio; a leitura dos neoplatnicos; a
dilacerao interior e a converso ao cristianismo, com as idias de Paulo, apstolo. Tudo
isso no s aconteceu com Agostinho, mas tudo isso foi tambm o prprio Agostinho. Tudo
isso foi tambm o seu pensamento.
O seu itinerrio inicial em busca da verdade foi, portanto, um exerccio racional e ao
mesmo tempo o fruto de sua prxis, ou seja, do seu envolvimento nos acontecimentos da
vida cotidiana, com todas as implicaes de experincias que estas acarretaram. O
deslocamento do exterior para o interior nos anos que antecederam sua converso, e as
concluses filosficas advindas desta realidade o que interessa nos dois captulos
iniciais desta dissertao.
3 Diz-se inical porque mesmo aps sua converso este fato de abandonar o exterior e investigar a verdade dentro, na alma, tornou-se um princpio, atualizado permanentemente. 4 O termo converso, nesta dissertao, empregado em um duplo sentido. Primeiro, como mudana de direo, mudana de hbitos, comportamentos em geral. Segundo, num sentido mais teolgico, como
10
Por um lado, possvel identificar a progresso intelectual de Agostinho,
reconhecendo as suas relaes com Ccero, com o Maniquesmo, com o Ceticismo, com o
Neoplatonismo e a Escritura Crist. Por outro lado, importante notar as experincias de
vida que conduziram de alguma forma a Agostinho na interpretao das idias
comprovao ou no de caminhos seguros em busca da verdade. Estas experincias
basicamente envolveram a relao de Agostinho com Mnica, Fausto, sua concubina, com
as paixes, e com Ambrsio.
Desta forma, os dois primeiros captulos, em sntese, propem-se a identificar as
idias e acontecimentos que influenciaram Agostinho e que o conduziram descoberta do
interior. Esta identificao pressuposto para a compreenso da construo da idia de
interioridade, o que se expe no terceiro captulo, tornando evidente a necessidade do
permanecer no interior e do reconhecimento da verdade na alma e a partir da alma5.
2.1 Viso geral sobre a vida e o contexto de Agostinho
Em sua investigao intelectual, Agostinho deixou-se interpelar pelo contexto de
seu tempo, pela cultura que marcou sua poca. Desde jovem, viu-se inquieto diante dos
acontecimentos que o afetavam, das experincias que o marcavam. Buscando identificar-se
experincia mstica na qual o ser humano se v envolto no mistrio transcendente por meio da f. Ao mesmo tempo, tanto num sentido como no outro, trata-se de um processo que possui uma culminncia decisria. 5 Deslocar-se para o interior, num primeiro momento, permanecer nele, num segundo, e, finalmente, a partir dele encontrar a verdade que o transcende, nisso consiste o percurso da alma para chegar ao conhecimento da verdade, intimidade com ela. So trs momentos, no estanques, mas relacionveis, que compe um itinerrio que deve considerar desde os primeiros anos de vida do jovem Agostinho at a maturidade do sbio bispo de Hipona.
11
com as formas de pensamentos que o rodeavam, experimentou encontros e frustraes no
cotidiano da vida. Buscou respostas s perguntas acerca da vida e do mistrio que a
envolve. Por fim, construiu um sistema de conhecimento marcado pela resignificao do
pensamento neoplatnico, a partir da Escritura Crist.
A repercusso desta sua ao marcou significativamente a cultura de modo geral. A
sua prxis6 e seu empenho racional foram sempre referncias para estudiosos tanto no
mbito da Filosofia quanto da Teologia, e mais recentemente tambm no mbito da
Psicologia. A sua identificao do interior do ser humano como a instncia de equilbrio e
caminho para a verdade introduziu no Ocidente a noo de interioridade, abrindo caminho,
como j mencionado, para as posteriores noes de sujeito e subjetividade.
Foram setenta e sete anos de sua existncia vividos de forma to intensa que ecoam
ainda na atualidade de forma significativa. Conhecer a biografia de Agostinho condio
fundamental para a compreenso de qualquer dimenso de seu pensamento, mesmo porque
suas idias foram cultivadas muito mais em seu contexto vital do que em qualquer outra
dimenso. Desta forma, inicialmente, convm apreender a vida de Agostinho como um
todo, numa viso geral, com o objetivo de compreender a foco pelo qual viu o mundo,
escreveu suas obras.
Portanto, numa tentativa de resumir brevemente a vida de Agostinho, consenso
entre os historiadores as informaes que seguem. Ele nasceu em Tagaste, atual Arglia,
6 O termo prxis aqui entendido como o envolvimento do ser na ao.
12
em 354 d.C. Era africano pela regio de seu nascimento e romano pela cultura e lngua. Seu
pai, Patrcio, era pago. Sua me, Mnica, era crist empenhada. Teve pelo menos mais um
irmo, Navgio, e talvez duas irms. Sua famlia, embora modesta, desfrutava de um certo
prestgio social, no sentido de poder situar-se economicamente a tal ponto de garantir uma
boa educao, ao menos formal, ao jovem em questo. O contexto de sua poca era
marcado pela fragmentao poltica, cultural e lingstica, e a instabilidade social e
econmica, resultados do desmoronamento gradativo do Imprio Romano.
Sua formao acadmica deu-se em Tagaste, depois Madaura, e Cartago. Destacou-
se pelo estudo da literatura de sua poca, em lngua latina. Em 371 passou a viver com uma
mulher, a qual no se conhece o nome, e em 372 nasceu o seu filho, Adeodato. Em 373,
depois de ler Hortnsio, de Ccero, despertou para a filosofia e se tornou maniqueu.
Desenvolveu inicialmente o seu trabalho como professor em Tagaste e depois em Cartago,
onde abriu uma escola de retrica, chegando a ser nesta bastante renomado. Mas Agostinho
nunca se mostrou satisfeito com seu cotidiano. Em 383, foi para Roma em busca de
sucesso, mas ali ficou pouco tempo, sendo que em 384 dirigiu-se para Milo, tambm como
professor de retrica. Foi nesta poca que separou-se de sua concubina, para buscar um
outro relacionamento; descobriu a escritura crist, a partir da pregao do bispo Ambrsio,
e estudou os neoplatnicos, sobretudo a partir de Plotino.
Converteu-se ao cristianismo em 386. Nesta ocasio, renunciou a uma segunda
amante, noiva e escola e refugiou-se em Cassicaco, com sua me, seu filho e amigos.
Na Pscoa de 387 foi batizado por Ambrsio, junto com seu filho e seu amigo Alpio. Logo
aps, estando em stia, esperando a partida para a frica, sua me morreu e ele ficou em
13
Roma, partindo para Cartago, em 388. Nesta cidade, vendeu todos os seus bens e passou,
com alguns amigos, a viver uma forma de vida monstica, projetando seu programa de vida
comum: pobreza, orao e trabalho, e combatendo o Maniquesmo7. Seu filho, Adeodato,
morreu por volta do ano 390.
No ano de 391 foi ordenado sacerdote cristo e, cinco anos mais tarde, apresentado
para o episcopado. Ordenado bispo de Hipona, em 395, escreveu muitas obras, buscando
condensar o pensamento de seu tempo e solidificar a doutrina crist. Passou a ser
reconhecido como filsofo e ao mesmo tempo telogo. Desde a sua converso, Agostinho
dedicou-se inteiramente ao estudo da escritura crist, da teologia revelada, e redao de
suas idias. Escreveu mais de 400 sermes, aproximadamente 270 cartas, que se
assemelham a tratados doutrinrios, e 150 livros. As principais obras de Agostinho
diretamente pertinentes filosofia so Contra os Acadmicos, Sobre a Imortalidade da
Alma, Solilquios, Sobre a Quantidade da Alma, Sobre os Costumes, Sobre o Mestre,
Sobre a Msica, Do Livre Arbtrio, entre outras8. Em Agostinho, filosofia e teologia
caminham unidas e, portanto, as obras com relevncia teolgica so tambm importantes no
mbito filosfico, tais como Da Verdadeira Religio, Confisses, A Cidade de Deus, A
Trindade, entre outras. De suas obras, de modo geral, Confisses ganha grande destaque
pela qualidade no s filosfica e teolgica, mas tambm literria. Trata-se de um clssico
e, ao lado de A Trindade, como j mencionado, a base para o estudo da interioridade
agostiniana.
7 Sobre os assuntos aqui mencionados (Maniquesmo, a leitura de Ccero, o Neoplatonismo, a concubina, Mnica, e outros), nas pginas posteriores eles sero tratados com maiores detalhes e em relao ao tema da interioridade. 8 As ltimas trs obras citadas inserem-se no contexto da refutao agostiniana do maniquesmo.
14
Como defensor da f crist, governou a igreja de Hipona at morte, que se deu
durante o assdio da cidade pelos vndalos, a 28 de agosto de 430. Tinha setenta e cinco
anos de idade.
O contexto de Agostinho marca a passagem da antigidade para a cristandade.
Nascido aps o importante edito de Milo, no qual foi decretado a tolerncia religiosa aos
cristos, v-se inserido num imprio marcado pela fragmentao poltica e que ver nos
cristos um meio para a tentativa de fortalecimento da unidade interna. Mesmo com os
preparativos das invases brbaras9, provocando aos poucos uma ruptura da tradio antiga,
a identidade crist continuou sendo afirmada e fortalecida. Agostinho fez parte deste
cenrio. Ele um importante representante deste perodo de transio. Sua obra A Cidade
de Deus revela a idia de se transformar o mundo pago em sociedade do Reino10.
No mbito filosfico, a investigao humana de sua poca deixou de ser puramente
objetiva para acomodar-se, de alguma forma, ao homem que a realiza. O problema de
Agostinho foi eminentemente o homem. Olhou para si mesmo, buscou conhecer-se e
compreender-se na existncia. Desde jovem mostrou-se inquieto com o sentido dos
acontecimentos que vivenciava e ao mesmo tempo com a busca de um caminho para uma
vida mais elevada. Viveu procura de algo que saciasse sua sede de libertao interior.
Movido por esse desejo, no mediu esforos, nem conseqncias, buscou respostas nas
9 Desde a invaso dos godos no baixo Danbio (376), ao estabelecimento dos vndalos e dos visigodos na Frana, na Espanha, na frica (406-429) e penetrao dos lombardos na Itlia (568), at a queda do imprio do Ocidente, em 476.
15
vrias formas de pensar de sua poca, conheceu tambm muitas formas de insatisfaes.
Voltou-se para si mesmo, e a partir desta realidade construiu um vasto conhecimento
filosfico.
Introduziu, a partir de sua vida e pensamento, as idias de criao, de liberdade, de
verdade, sobre o mal, entre outras, e sobretudo a idia de interioridade, como caminho de
acesso verdade. Sua vida e seu pensamento so inseparveis. Como j mencionado, neste
mbito, a vida interior o ponto de encontro. A interioridade no pensamento de Agostinho,
como resultado de um longo percurso de busca da verdade, o resultado da sensibilidade
intelectual e espiritual de um homem decidido a encontrar uma justificativa existencial; a
encontrar, em sntese, a felicidade. Ele foi um homem capaz de profunda introspeo; capaz
de refletir profundamente os acontecimentos que o envolveram. Algum que no admitiu o
conformismo. Um homem de corao inquieto e olhar atento aos acontecimentos.
2.2 Inquietudes da alma
O prprio Agostinho narrou sua trajetria em busca da verdade revelando suas
inquietudes. O seu livro Confisses, no qual, segundo Hannah Arendt, d testemunho do
reino da interioridade11, est marcado pelas suas dilaceraes do corao. No se tratou
10 Por Reino, neste contexto, pretende-se a idia de um mundo construdo a partir dos desgnios de Deus, de seu projeto de amor justia e paz. Trata-se da pretenso de se construir uma sociedade que seja pautada nos ensinamento dos evangelhos. 11 ARENDT, O Conceito de Amor em Santo Agostinho, 1978. Aborda a interioridade considerando-a cheia de mistrios que se encontra a caminho da redeno.
16
de uma busca suave; mas, como j afirmado, de uma trajetria de quem refletiu a partir da
experincia; no somente a partir de idias e livros.
Quero recordar as minhas torpezas passadas, as corrupes de minha alma, no porque as ame, ao contrrio, para te amar, meu Deus (...) retorno ao passado, percorrendo os antigos caminhos dos meus graves erros. A recordao amarga, mas espero sentir tua doura (...) quero recompor minha unidade depois dos dilaceramentos interiores que sofri quando me perdi em tantas bagatelas, ao afastar-me de tua Unidade.12
O contexto que Agostinho encontrou, as pessoas com quem conviveu, as paixes
que experimentou, os livros que leu, as idias que refletiu, sobretudo o platonismo, num
primeiro momento, e a Escrituras Crist, em fase mais avanada, condicionaram de algum
modo o seu pensamento. Soube degustar de forma intensa e s vezes dramtica os
acontecimentos que o envolviam.
Um fato bsico para a compreenso e estudo do pensamento agostiniano: a sua
inquietao. De fato, deve-se considerar que, antes de qualquer coisa, Agostinho foi uma
pessoa de busca constante e inconformada. Foi algum continuamente instigado por
perguntas e desejo por respostas. Foi um homem em constante discernimento e por vezes
dividido interiormente. Um homem que no s buscava compreender, mas sentir, desejar,
envolver-se.
12 AGOSTINHO, Confisses, 1984, 2.1.1.
17
Neste sentido, o que Agostinho experimentava, sentia e compreendia precisava ser
comprovado, inspecionado. A angstia e a felicidade, o pensar e o sentir, a inteligncia e a
vontade precisavam harmonizar-se. A interao entre o platonismo e o cristianismo foi o
caminho que encontrou para resolver a questo da unio, em ltima instncia, entre f e
razo.
Com esprito inquieto, reconheceu-se muitas vezes modificado a partir de
experincias concretas. Soube conhecer-se igualmente um ser em contradio. Algum que
se via preso s paixes e ao mesmo tempo desejoso da sabedoria, da libertao dos
sentidos. Algum que queria algo e muitas vezes fazia o oposto. Gradativamente, foi
distinguindo, no sem duras penas, as coisas que so passageiras e que mereciam ser
rejeitadas. Aos poucos, o dilaceramento interior de Agostinho foi se traduzindo em
conhecimento e exteriorizado em suas obras filosficas/teolgicas.
Mas importante notar que mesmo sendo um ser em constante discernimento, em
nenhum momento pode-se afirmar que o jovem Agostinho tenha se afastado do mundo e
das pessoas. Sua filosofia, que ter a interioridade como base, no ser em nada parecida
com formas diversas de individualidade. Isso se constata seja no mbito existencial, quando
se v marcado pela relao com as pessoas e o mundo, seja no mbito racional, quando
concluir que a verdade se encontra na alma mas vai alm dela, a transcende.
Portanto, oportuna a constatao das etapas significativas da vida de Agostinho,
antes de sua converso, nas quais a inteligncia e a vontade foram suportes para o
entrelaamento da razo com as emoes, os sentimentos, a mstica, a satisfao ou no da
18
alma. Mesmo que seja o cristianismo a base do pensamento agostiniano, o percurso anterior
a este, o momento de confronto deste com a filosofia de seu tempo, contribuiu
sobremaneira para a construo de seu pensamento no perodo mais maduro dos anos de
episcopado. O que interessa, portanto, neste momento, a caminhada progressiva de
Agostinho em direo sabedoria, ao conhecimento, fecundidade intelectual, e ao
amadurecimento da f, partindo do mundo exterior para o interior.
2.2.1 Mnica, Hortnsio e as paixes
Desde a sua infncia e passando pelo tempo de adolescncia, Agostinho se deparou
com duas realidades opostas e que lhe exerceram forte influncia. De um lado sua me,
testemunhando a f crist, exortando Agostinho a segui-la em seus ensinamentos de
lealdade, sacrifcio e santidade; e de outro lado o seu pai, com um discurso de ambio,
exortando o jovem competio, aos prazeres e ao status social. Esta contradio, segundo
William Mallard13, desde cedo colocou o jovem Agostinho diante de mundos diferentes,
situao que exigira dele uma deciso, um discernimento, uma escolha interior. E esta
condio de ter que optar por mundos opostos vai acompanh-lo ainda durante muitos anos,
at sua converso ao cristianismo.
Sobre seu pai, Agostinho pouco menciona, e quando o faz relata-o como algum
distante, ambicioso, preocupado unicamente com o sucesso social do jovem. Agostinho
13 MALLARD, Language and Love: Introducing Augustines Religious Thought Through the Confessions Story, 1994, p. 64.
19
chega a relatar uma ocasio na qual o pai se deleita pelo fato de o filho haver atingido a
puberdade14. Apesar de ser durante muitos anos quem sustentar seus estudos, dele
Agostinho parece ter tirado poucas contribuies15.
J sua me, Mnica, essa sim exerceu grande influncia sobre a vida do jovem em
questo; no somente com suas palavras, mas sobretudo por sua conduta de vida. A
identidade crist de Agostinho, que vai ser a base de sua filosofia e de sua conduta
espiritual, foi, ao que tudo indica, semeada em seu ser desde sua infncia, por sua me,
ainda que ele mesmo no pudesse perceber, antes de sua converso.
Presente de forma at mesmo implacvel16 nos primeiros anos de vida do jovem,
Mnica foi quem lhes lanou os alicerces da vida espiritual. Agostinho dar, em poucas
palavras, o tom da presena de sua me em sua vida: Devo aos mritos de minha me tudo
o que sou e tudo o que vivo.17
Agostinho, ao escrever as Confisses, reconhecer Mnica como instrumento
divino para a sua converso. Mas no corao de minha me j havias comeado a edificar
o teu templo, a lanar os fundamentos de tua santa habitao.18 Ver nela no s o modelo
de piedade, de devoo e f, mas tambm um testemunho de prtica crist.
14 AGOSTINHO, Confisses, 1984, 2.3.6. 15 Idem. Ibidem. 2.3.5-6. 16 Idem. Ibidem. 5.15.15: Como acontece com todas as mes, queria conservar-me a seu lado, porm muito mais que o normal. 17 AGOSTINHO, De la Vida Feliz, 1963, 1.6. 18 AGOSTINHO, Confisses, 1984, 2.3.6.
20
Minha me era a serva de todos os teus servos. Todos os que a conheciam louvavam, honravam e amavam profundamente a ti, por nela sentirem a tua presena, comprovada pelos frutos de uma vida santa. Tinha sido esposa de um s marido, tinha cumprido seu dever para com os pais, tinha governado a casa com dedicao e dado o testemunho de boas obras... ela cuidou de todos, como se tivesse gerado a todos, servindo a todos ns, como se fosse filha de cada um.19
A contribuio de Mnica para o processo de interioridade agostiniano consiste no
seu inquestionvel testemunho de f e espiritualidade. De alguma forma, o seu testemunho
de f revelou ao jovem Agostinho que a fonte da sabedoria no parecia estar no s nos
livros e nas grandes escolas, mas era fruto da vida de orao, na atitude de abertura diante
do mistrio da vida. Com roupa de mulher, com f varonil, com segurana de adulta, com
caridade de me e com piedade crist.20
Anos depois, aps sua converso, ele foi capaz de identificar nos cristos uma forma
de sabedoria e felicidade que era oculta aos doutos e possvel aos simples21. Algo dado no
mbito da mstica, na vida de quem se faz humilde, simples; na vida de uma pessoa que
sabe saborear as coisas interiormente, em orao. Compreendeu que a arrogncia
intelectual mata o esprito e cega os olhos da alma para a sabedoria que vem de Deus. E
quanto a isso, Mnica, mesmo no sendo instruda nas letras, foi o seu maior exemplo de
atitude de sabedoria que no vem unicamente das cincias, mas da sensibilidade espiritual.
19 AGOSTINHO, Confisses, 1984, 9.9.22. 20 Idem. Ibidem. 9.4.8. 21 BBLIA, 1989, Lucas, 10, 21: Naquele momento, ele exultou de alegria sob a ao do Esprito Santo e disse: Eu te louvo, Pai, Senhor do cu e da terra, porque ocultaste essas coisas aos sbios e entendidos, e as revelaste aos pequeninos. Sim, Pai, porque assim foi do teu agrado.
21
O que descobriu nas escrituras crists a esse respeito o remeteu lembrana e valorizao
da me.
Ainda, Mnica constituiu-se em exemplo para a idia de que a sabedoria s
possvel numa pessoa quando h a rejeio de tudo que unicamente focado no mbito dos
sentidos sem um prvio direcionamento interior. Permanecendo em paz e suportando as
infidelidades do marido, Mnica ainda mantinha-se casta e distante dos prazeres e paixes
momentneas do mundo. Vendo-a, Agostinho, de alguma forma, conclua que a paz e a
sabedoria se davam a conhecer no mbito do mistrio, fruto de pessoas que exercitavam a
pacincia, a f e o recolhimento. Sua me mostrou-lhe, pelo exemplo, no mnimo, que tudo
que efmero, passageiro, as paixes, a aparncia, o mundo exterior, no conduz
felicidade. Mais tarde, Agostinho a reconheceu como instrumento divino, como graa.
De quem eram, seno de ti, aquelas palavras que me faziam soar aos ouvidos, atravs de minha me, tua serva fiel? Mas nenhuma tocou-me o corao para converter-se em prtica. Ela queria que eu evitasse a luxuria (tenho ainda dentro de mim a lembrana de suas solcitas recomendaes) e sobretudo que eu no cometesse adultrio com a esposa de quem quer que fosse. Envergonhava-me atender as suas solicitaes, porque me pareciam conselhos de mulher. No entanto, eram teus os conselhos, e eu no sabia; eu estava convencido de que tu te calavas, e que era ela quem falava; mas por meio dela eras tu que me falavas, e nela eu te desprezava.22
No entanto, nem sempre Mnica conseguiu estar prxima do jovem Agostinho.
Durante muitos anos as palavras dela pouco haveriam de produzir transformao em sua
22 AGOSTINHO, Confisses, 1984, 2.3.7.
22
vida. Em geral, a adolescncia de Agostinho foi dedicada aos estudos, em parte, e s
paixes, em outra. Deixou-se envolver pelos amores sensuais, via no teatro uma rede de
sedues, seguia seus companheiros nas mais diversas formas de excessos. O que mais
tarde compreendeu como fome interior, foi o que predominou em sua vida. Desdenhei
longe de Ti, meu Deus, e na minha adolescncia andei errante sem Teu apoio, tornando-me
para mim mesmo um antro de misria.23
Nesta fase, para Agostinho, as paixes misturavam seus sentimentos. A exploso de
sensualidade levava-no ao exterior. Ele mesmo viria a identificar-se como faminto e
sedento de realidades eternas. Em quantas iniqidades me corrompia! Eu te abandonei
para seguir uma curiosidade sacrlega que me precipitava nos abismos da infidelidade...24.
Ao formular a interioridade como caminho de busca da verdade, ser fundamental para
Agostinho estas experincias conturbadas de sua juventude. Saber interpret-las e
resignific-las interiormente para nome-las e rejeit-las. O efmero no o satisfazia, mas
nele mergulhava sempre mais, no fundo, em busca de felicidade, repouso para sua alma.
Experimentando as realidades passageiras, sentiu-se instigado a ir alm, a desvendar os
caminhos que, de fato, so incorruptveis. Fazendo a experincia das vaidades e avaliando-
as no lhe restaria outra alternativa, aps muitos anos, do que abandon-las plenamente.
Para Agostinho, o exterior, quando encerrado em si mesmo ofusca o interior. Mas,
para o jovem em questo, chegar at estas idias ainda levaria muitos anos. Rejeitar tudo o
que efmero seria ainda muito difcil; isso tudo no aconteceu sem um longo processo.
23 AGOSTINHO, Confisses, 1984, 2.10.18. 24 Idem. Ibidem. 3.3.5.
23
Fato que as paixes fizeram-se enraizadas no jovem Agostinho e o iriam acompanhar at
a sua idade adulta.
Desejando amar, procurava um objeto para esse amor, e detestava a segurana, as situaes isentas de risco. Tinha dentro de mim uma fome de alimento interior... Mas no sentia essa fome, porque no me apeteciam os alimentos incorruptveis, no por estar saciado, mas porque, quanto mais vazio, mais enfastiado eu me sentia... Era para mim mais doce amar e ser amado, se eu pudesse gozar do corpo da pessoa amada. Assim, eu manchava as fontes da amizade com a sordidez da concupiscncia e turbava a pureza delas com a espuma infernal das paixes.25
Aos seus dezessete anos de idade, Agostinho, portanto, ardia em paixes26. Foi
nesta poca que passou a viver maritalmente com uma mulher. Ele a amou de fato. No
entanto, a condio social inferior desta impedia a solidificao dos laos matrimoniais.
Passou com ela quatorze anos de sua vida, at 385. A ausncia de formalidades jurdicas
no impediu que o casal tivesse verdadeira finalidade de leito, a unio de corpos e almas.
Seu filho, Adeodato, foi conseqncia deste relacionamento. O nome deste significa dado
por Deus, e evidencia a autocrtica de Agostinho. Ele no o desejava. Aceitou-o, mas
considerou-o filho da culpa.27
A unio de corpos, o filho, isso tudo no satisfazia suficientemente o jovem
Agostinho. Paralelamente busca constante pela posse e pelo gozo, seu apetite existencial
25 AGOSTINHO, Confisses, 1984, 3.1.1. 26 Idem. 27 Idem. Ibidem. 9.6.14.
24
ainda no havia encontrado um foco preciso. Como na infncia, dividido entre o que o pai
lhe representava e o que sua me lhe ensinava, nesta fase o jovem se via dividido entre as
paixes, numa unio carnal, por um lado, e a responsabilidade de uma vida matrimonial,
pela qual um dia teria, supostamente, que decidir. Aos poucos vai se delineando em
Agostinho um movimento de discernimento em si mesmo, no homem interior, na instncia
interna de decises. Sob impulsos diversos, vai configurando-se a sua personalidade
dotada de tmpera inconfundvel28
Sua concubina, como comumente chamada, proporcionou-lhe uma experincia de
paixo e gozo ertico que o marcou para sempre. No entanto, mesmo em meio a esta fase
conturbada, o estudioso das letras, como o prprio Agostinho se reconhecia, no poderia
perder a formalidade. Ele vivia com o prazer do leito, mas sem renunciar a boa fama.29
Tinha que se manter elegante e Cortez.30 O status social ainda ocupava grande parte de suas
energias. O mundo exterior lhe era sedutor.
Numa ocasio, anos depois, ao ter que optar entre um maior reconhecimento social
a continuar com sua concubina, decidiu despedi-la. Recebeu, por negociao de sua prpria
me, uma noiva, essa sim de classe social adequada para a concretizao do matrimnio.
Isso lhe traria maior reputao. No entanto, embora ambicioso, Agostinho sentiu
amargamente a dor da separao31. Tratou-se de mais uma luta interior que teve que
enfrentar.
28 ESTAL, Santo Agostinho e sua concubina de juventude, 1999, p. 26. 29 AGOSTINHO, Solilquios, 1993, 1.11.19. 30 AGOSTINHO, Confisses, 1984, 3.1.1. 31 BROWN, Santo Agostinho, uma biografia, 2005, p. 77.
25
Quando foi de mim arrebatada a mulher com quem vivia, considerada impedimento ao meu casamento, meu corao, que lhe era afeioadssimo, ficou profundamente ferido e sangrou por muito tempo. Ela voltou para a frica fazendo a ti o voto de jamais pertencer a outro homem e deixando para mim o filho que me havia dado. Mas eu, infeliz, fui incapaz de imitar esta mulher! Eu no conseguia suportar a espera de dois anos para receber a esposa que tinha pedido. Na realidade eu no amava o matrimnio; eu era, sim, escravo do prazer (...) tratei de arranjar outra mulher (...) para alimentar a doena da minha alma (...) No entanto, no sicatrizara ainda a ferida aberta pela separao de minha companheira.32
Quatorze anos aps a sua unio carnal, esta separao, por um lado, ps Agostinho
diante de si mesmo, teve que conviver com a solido. E, ao mesmo tempo, permitiu-lhe
experimentar o quanto ele era dependente dos prazeres carnais, pois no conseguia manter-
se continente. De qualquer forma, a ausncia de sua companheira o desestabilizou e lhe
abriu o corao que ardia em paixo. Corao que, de alguma forma, precisava de cura.
Em sua juventude, no entanto, ainda quando convivia em concubinato, continuava
marcado pela insatisfao diante da instabilidade das coisas; desejava j alimentos mais
slidos. Ao mesmo tempo em que lhe aqueciam as paixes, despontava-se no jovem um
corao inquieto, em busca. Foi nesta etapa de sua juventude que se inicia, segundo ele
mesmo afirma, a sua converso. No ainda ao cristianismo, mas sabedoria. No a
converso propriamente dita, mas o encantamento inicial que culminou, anos depois, numa
entrega, integral, causa da verdade. Seria introduzido nesta fase de sua vida mais um
32 AGOSTINHO, Confisses, 1984, 6.15.25.
26
elemento para o seu discernimento interior. O amor s paixes, por um lado, e o amor
sabedoria, por outro. As duas vontades, o que mais tarde ele mesmo nomearia como
concupiscncia e amor. Movimentos da alma, processos interiores, um inferior e o outro
superior. O segundo, caminho para a verdade, haveria de vencer, mas somente quase uma
dcada depois.
Este incio de sua converso se deu enquanto estudava a aprendizagem planejada da
eloqncia, durante seu curso superior de Retrica e Artes Liberais. Contando j dezenove
anos, quase completando vinte, caiu em suas mos o livro Hotensius, de Ccero. Mais do
que a habilidade literria do autor, Agostinho encantou-se pelo contedo, que exortava ao
amor sabedoria, estabelecendo os princpios para uma verdadeira filosofia. Esta leitura
lanou novas luzes na mente do jovem estudante. Tornou-se desejoso da sabedoria. Tratou-
se de uma experincia marcante; a partir deste momento, nunca mais iria abandonar a
filosofia como caminho para a verdade.
Seguindo o programa normal do curso, chegou-me s mos o livro de tal Ccero, cuja linguagem mas no o corao quase unanimemente admirada. O livro uma exortao filosofia e chama-se Hortnsio, Devo dizer que ele mudou os meus sentimentos e o modo de me dirigir a Ti; ele transformou as minhas aspiraes e desejos. Repentinamente pareceram-me desprezveis todas as vs esperanas. Eu passei a aspirar com todas as foras imortalidade que vem da sabedoria. Comeava a levantar-me para voltar a Ti. Eu contava dezenove anos... Como eu ardia, meu Deus, em desejos de voar para ti, abandonando as coisas terrenas!33
33 AGOSTINHO, Confisses, 1984, 3.4.7.
27
Esta obra levou Agostinho a abandonar, em grande parte, s aspiraes dos bens
mundanos e o encaminhou busca da nica sabedoria. O desejo pelo sucesso na ascenso
pblica deixou-se de ser to encantador. Posteriormente, aps sua converso, o nico
defeito que disse ter encontrado nesta obra foi a ausncia do nome de Cristo. Em suas obras
Agostinho far referncia muitas vezes a Ccero. Desta leitura aprendeu a buscar a retido,
verdadeira filosofia e a partir do princpio de que todos desejam a felicidade.34 Em Sobre a
Vida Feliz, por exemplo, ele afirma, referindo-se a Hortnsio, que a pessoa que possui o
que deseja no feliz ao menos que deseje o que reto.35
No entanto, a partir desta fase Agostinho no buscava unicamente uma filosofia de
abstraes. Como afirma Estal, o que Agostinho buscava era concreto e vital. Ele vai ao
mesmo tempo com o corao e a mente em direo ao que busca36. Ele no deseja mais
buscar e colher ansiedades e insatisfaes. Sua busca da sabedoria vai se dar a partir do
empenho intelectual mas tambm pelo ressoar dos acontecimentos em seu interior. A
interioridade, aos poucos, vai se tornando a instncia de comprovao para a credibilidade
das idias.
A leitura de Hortnsio, portanto, o instiga a buscar alimentos mais slidos. No
entanto, nesta fase da vida de Agostinho que os maniqueus cruzam seu caminho, com
suas doutrinas e promessas de verdades. O jovem convertido filosofia, desejoso de
34 AGOSTINHO, A Trindade, 2005, 13.4.7. 35 AGOSTINHO, De la Vida Feliz, 1963, 4. 26-28. 36 ESTAL, Santo Agostinho e sua concubina de juventude, 1999, p. 25.
28
superar suas limitaes sensuais, v nas idias de Manes uma explicao para o mal que ele
mesmo praticava. Deixa-se seduzir. Torna-se ouvinte maniqueu.
2.2.2 Do Maniqueismo ao Neoplatonismo
A diviso da alma de Agostinho era uma realidade que sempre o acompanhava. Na
infncia, as figuras de Mnica e Patrcio lhe provocavam uma diviso interior; na
juventude, por um lado, as paixes o desestabilizavam e, por outro, o desejo de sabedoria o
instigava interiormente. No entanto, um elemento aumentaria ainda mais este
dilaceramento, o dualismo maniquesta. A assimilao desta doutrina iria levar o jovem ao
ponto de atingir praticamente o pice de sua fragmentao interior.
Aderindo ao Maniquesmo, Agostinho passou a participar de uma seita que cr em
um mundo governado por foras opostas - Luz e Trevas - e essa diviso engloba tambm a
alma. Sero nove anos de empenho e aprofundamento destas idias. Posteriormente, ao
abandonar o maniquesmo, todo seu esforo ser de reconciliar um mundo e uma alma
divididos.
Ca assim nas mos de homens desvairados pela presuno, extremamente carnais e loquazes... Repetiam: Verdade, verdade! E me falavam muito dela, mas no a possuam... Verdade, verdade! J ento, suspirava por ti do mais ntimo do meu ser, enquanto eles me faziam ouvir o teu nome tantas vezes e de vrias maneiras, mas apenas com os lbios e atravs de numerosos e pesados volumes.37
37 AGOSTINHO, Confisses, 1984, 3.6.10.
29
O Maniquesmo era uma seita persa que afirmava ser o universo dominado por dois
grandes princpios opostos, o bem e o mal, mantendo uma incessante luta entre si. Nela, o
jovem Agostinho adotou a convico filosfica comum na maior parte do mundo ocidental
de que tudo o que era real era corpreo38. Agostinho se achava convencido de que inclusive
Deus e a alma eram seres corpreos. Aprendeu tambm que o mal, para ser real, tinha que
ter um corpo39.
Da concepo dualista maniqueista, simbolizada pela luta entre o bem e o mal, a
alma e o corpo, Agostinho acreditou durante muitos anos que o homem tem uma inclinao
natural para o mal. Dali concluiu que todos nascem pecadores e somente um esforo
consciente pode levar superao dessa deficincia natural. Considerando o mal como o
afastamento de Deus, defendia a necessidade de uma intensa educao religiosa.
Do encontro com o maniquesmo Agostinho ir concluir que ter mais dvidas e
perguntas do que respostas. E, anos depois, aps superao efetuada das idias desta seita,
afirmar ter sido seduzido por ela justamente por estar em um perodo de fragmentaes e
conseqentemente desatento a sua unidade interior, voltado para a exterioridade:
38 AGOSTINHO, Confisses, 1984, 5.10.19. 39 Idem. Ibidem. 7.1.1. Os maniqueus, como os esticos, sustentavam que tudo o que existe corpreo.
30
Encontrei a mulher audaz e desprovida de prudncia que, na alegoria de Salomo, est sentada porta e diz: Comei vontade o po tomado s escondidas e bebei as doces guas roubadas. Ela me seduziu, porque me encontrou fora de mim, atento que eu estava a ruminar o que j havia devorado com os olhos da carne.40
Mas, quando mergulhado nesta seita e envolto em constantes dvidas, Agostinho
teve contato com dois grandes mestres. Ambos sero decisivos para ele. Um Fausto, o
maior nome do Maniquesmo, o outro Ambrsio, o bispo de Milo. O primeiro ir frustr-
lo, o segundo ir ensinar-lhe a ler a Escritura Crist sem foco fundamentalista. Sero
fundamentais para a passagem de Agostinho do Maniquesmo para o Ceticismo e da
refutao deste para o Cristianismo. Neste percurso, a interioridade o mbito no qual as
idias vo amadurecendo em Agostinho e ganhando fundamentao. o movimento do
exterior para o interior, primeira fase da interioridade agostiniana, que vai sendo
solidificada.
A maior personalidade do Maniquesmo, Fausto, portanto, foi esperado
ansiosamente por Agostinho como quem iria sanar-lhes as dvidas que trazia e que o
maniquesmo comum j no mais era capaz de responder. Todos os outros maniqueus,
com quem tivera ocasionalmente contato, no sabiam responder s objees que eu lhes
apresentava, e me prometiam que, chegada dele [Fausto], e num simples colquio, seriam
resolvidas41. Agostinho decepcionou-se com Fausto, embora de linguagem polida e
eloqente, educado e de postura nobre, o contedo no o satisfez. Meus ouvidos j
estavam saturados de semelhantes discursos; no me pareciam melhores porque feitos em
40 AGOSTINHO, Confisses, 1984, 3.6.11. 41 Idem. Ibidem. 5.6.10.
31
linguagem mais burilada, ou mais verdadeiros por serem eloqentes. Nem me parecia ele
mais sbio por ter aspecto simptico e falar elegante42. Agostinho descobriu que, ao
apresentar-lhe as dificuldades que o perturbavam, ele nada entendia das disciplinas liberais,
com exceo da gramtica, da qual conhecia o corriqueiro.43 Suas idias eram
demasiadamente estticas, sem progressividade. Careciam de fundamentos.
Apresentei-lhe meus problemas para exame e discusso, e ele modestamente no teve a coragem de assumir a responsabilidade de uma demonstrao. Reconhecia a prpria ignorncia e no se envergonhava de confess-la... Foi-me por isso mais simptico do que os outros. A modstia de um esprito sincero mais bela que a cincia que eu buscava.44
Agostinho soube reconhecer a sinceridade de Fausto, mas no encontrou algo
substancial em suas palavras. Aos poucos, o seu entusiasmo pelo Maniquesmo foi se
apagando. Ao mesmo tempo, quanto mais o Maniquesmo se alastrava pela frica45, tanto
mais aumentava o nmero de pessoas simples que contribuam para a superficialidade do
discurso maniqueu em detrimento da investigao em nvel mais aprofundado sobre as
hipteses da verdade. Com isso, surgiram muito grupos fundamentalistas maniqueus. Tudo
isso desiludiu ainda mais Agostinho.
Segundo Brown, o liame mais profundo da adeso de Agostinho ao maniquesmo
consistia na tentativa de salvar algo que acreditava ser imaculado dentro de si, ainda que
42 AGOSTINHO, Confisses, 1984, 5.6.10. 43 Idem. Ibidem. 5.6.11. 44 Idem. Ibidem. 5.7.12. 45 BROWN, Santo Agostinho, uma biografia, 2005, p. 64.
32
no tivesse plenamente consciente disso46. O Maniquesmo, aos poucos, foi ficando para
trs na vida de Agostinho, mas a busca e a necessidade de sabedoria continuou lhe
acompanhando. Existia algo mais.
Desiludido, portanto, com Fausto, um ano aps estar com ele e ter discutido, partiu,
em 384, para Roma, com o objetivo de buscar a sabedoria em fontes mais convincentes e
clssicas. Bem sucedido como professor, em Cartago, Agostinho, agora j com trinta anos,
v na cidade romana maiores condies para sua carreira. J nesta cidade, passa um ano
muito difcil, sofrendo por doenas e por ser ludibriado por seus alunos no que diz respeito
aos pagamentos das aulas. No entanto, no demora at conseguir uma posio de destaque
junto cpula do Imprio Romano. Foi nomeado professor de Retrica para a cidade de
Milo. Essa escolha foi facilitada pela sua influncia entre os maniqueus que, comumente,
ajudavam-se uns aos outros em seus interesses.
Para Agostinho, Milo significou novos interesses47. O incio de sua estadia nesta
cidade foi marcada por constantes entusiasmos. No entanto, no seria ali que passaria a
maior parte de seus anos. Logo, Milo ficaria para trs, mas no sem marcar sua vida.
Assim que cheguei a Milo, encontrei o bispo Ambrsio.48
46 BROWN, Santo Agostinho, uma biografia, 2005, p. 64. 47 Idem. Ibidem. p. 85: Uma sociedade brilhante se desenvolvera em torno da corte. De lugares remotos chegavam poetas a Milo, e as obras dos filsofos gregos eram lidas pelo clero da Igreja milanesa e pelos grandes senhores de terras... Tais homens costumavam estudar a filosofia ressurgida de Plato e escreviam sobre a mtrica clssica e a natureza do universo. At o catolicismo da cidade era eminentemente respeitvel: os sermes de Ambrsio eram doutos. 48 AGOSTINHO, Confisses, 1984, 5.13.23.
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O encontro com o bispo Ambrsio fundamental para a construo de sua idia de
interioridade. Ser por meio de suas palavras que Agostinho conseguir aproximar-se da
escritura crist e l-la de forma no fundamentalista, como uma vez j o havia feito49. Ser
o grande responsvel por sua converso. Alm de Ambrsio, ver ainda nesta cidade outros
grandes cristos que lhe ajudaro a preparar a mente para a oportunidade de unir o
conhecimento clssico de sua poca com a idia dos evangelhos.
No entanto, ao mesmo tempo em que conhece o bispo Ambrsio, Agostinho volta-
se novamente para a leitura de Ccero e l toma conhecimento das concepes cticas da
Nova Academia, que afirmavam que o homem deve duvidar de tudo por no possuir o
conhecimento preciso de coisa alguma. Novamente, Agostinho, j no mais jovem, estaria
dividido: agora entre a pregao de Ambrsio, com o ideal cristo, e as idias cticas, alm
do apego s paixes que ainda o acompanhavam.
Agostinho desejava a sabedoria, mas no queria cair no erro do passado maniqueu
em lanar-se em idias de forma imatura, empolgada e ingnua. De modo geral, a pregao
dos acadmicos agradava a Agostinho, sobretudo por afirmarem que o sbio deve negar que
o conhecimento deve ser conquistado com facilidade. No entanto, independente deste seu
novo estado de dvida em que permanecia, o que acontecia de fato era o abandono do
maniquesmo. Sentia-se atrado pelas palavras de Ambrsio, mas no conseguia ainda
49 AGOSTINHO, Confisses, 1984, 5.10.13: Assim que cheguei a Milo, encontrei o bispo Ambrsio...Esse homem de Deus acolheu-me e ficou feliz com a minha chegada... Comecei a estim-lo, em princpio no como mestre da verdade, pois no tinha esperana de encontr-la em tua Igreja, mas como homem bondoso para comigo... suas palavras me prendiam a ateno. Mas, o contedo no me preocupava, at o desprezava... perdidas as esperanas que se apresentasse ao homem um caminho para chagar a ti... junto com as palavras que me agradavam, chegaram-me tambm ao esprito os ensinamentos que eu desprezava... enquanto abria o corao s palavras eloqentes, entrava tambm, pouco a pouco, a verdade que ele pregava.
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aderir ao cristianismo. Como demonstra Boehner50 no passava, nesta poca, de um
maniqueu tbio e um (quase) cristo confuso.
Foi ento que comecei a empenhar todas as foras do esprito na busca de um argumento decisivo para demonstrar a falsidade dos maniqueus: se me fosse possvel conceber uma substncia espiritual, todos os obstculos teriam sido superados e afastados do meu esprito... duvidando de tudo, flutuando entre todas as doutrinas, resolvi abandonar os maniqueus. Parecia-me, nesse momento de dvida, que no devia permanecer nessa seita.51
E, ainda:
Alegrava-me ouvir Ambrsio quando, muitas vezes em seus sermes, recomendava ao povo a norma a ser escrupulosamente observada: a letra mata, mas o esprito comunica a vida (2Cor 3,6)... Nada ele dizia que eu no pudesse aceitar, embora ainda no estivesse certo de que as palavras dele eram verdadeiras. Mantinha o corao ao abrigo de qualquer adeso, hesitando diante do salto, e esse meu estado de perplexidade era morte ainda mais angustiante.52
Neste estado, o ceticismo lhe parecia a melhor deciso, embora o que Ambrosio
dizia lhe ardia o corao. A f catlica no me parecia vencida, mas para mim ainda no
se figurava vencedora53. Os acadmicos ensinavam que a maior virtude estava na
suspenso do juzo, e que o maior perigo consistia em absolutizar algo que era relativo, na
50 BOEHNER, e GILSON, Santo Agostinho, o Mestre do ocidente, in Histria da Filosofia Crist, 1988, p. 148. 51 AGOSTINHO, Confisses, 1984, 5.14.25. 52 Idem. Ibidem. 6.2.4. 53 AGOSTINHO, Confisses, 1984, 5.14.24.
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adeso imatura de qualquer opinio isolada. Interessava de fato para Agostinho no cair no
mesmo abismo dos maniqueus; mas l, de alguma forma, estava seu mundo, suas idias e
suas antigas seguranas.
Ele precisava agora instaurar um novo processo; precisava duvidar de tudo para
chegar a encontrar certezas de forma a terem sido primeiro fundamentadas. Ele precisava
duvidar primeiro para depois crer. Duvidar at de si mesmo para chegar certeza de sua
existncia. Eis um novo ponto de partida. O incio de um filosofar com critrios no mais
unicamente racionais, mas com implicaes existenciais. Ele no mais queria sair ferido em
qualquer batalha. O sentir lhe era importante. O seu interior, a satisfao da alma, aos
poucos, vai se solidificando como a instncia que conduz verdade.
Portanto, aps ter sido ouvinte da seita maniquesta durante nove anos, Agostinho
percebeu enfim, como j mencionado, incoerncias na forma de organizao das idias
herdadas de Mane. Mesmo Fausto, portanto, o grande nome do Maniquesmo no pde
satisfazer aos anseios de sua alma. As idias dos acadmicos pareceram-lhe mais sensatas.
Buscando a prudncia nos juzos e buscando a sabedoria, julgava ser mais coerente pr-se a
perseguir a sabedoria do que desejar ou imaginar possu-la. Assim, no ceticismo buscava
alvio para suas dvidas e angstia, e desta forma mantinha viva a esperana de encontrar
sentido para a vida, paz para a alma.
No entanto, paralelamente, dos contatos que Agostinho mantinha com o bispo
Ambrsio passou a ser influenciado em dois sentidos: primeiro, no conseguia refutar os
argumentos usados nos sermes e conversas do bispo, admitindo que era agradvel ouvi-
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los; e, segundo, aprendia a fazer leitura da escritura crist de forma a interpretar os textos
no no sentido literal e muito menos a ficar preocupado com a construo literria destes,
mas muito mais com seu contedo teolgico.
E um elemento a mais foi ainda acrescentado neste perodo. Juntamente com o
ceticismo e com os ensinamentos de Ambrsio, ele comea a ter contato tambm com os
livros dos neoplatnicos, os quais iriam exercer grande influncia sobre sua forma de
pensar. Ser com a leitura dos neoplatnicos, por exemplo, que Agostinho empreender a
busca da sabedoria considerando a alma o caminho para a verdade. E da unio desta forma
de pensar com o cristianismo resignificar a sua idia de interioridade.
Do cristianismo de Ambrsio e dos neoplatnicos Agostinho comeou, de modo
geral, a deduzir que Deus podia ser entendido como um princpio espiritual e no como
uma substncia corprea, difundida pelo universo, como entendiam os maniqueus. Esta
concepo do princpio espiritual vai ser a idia fundamental que vai colocar em
desmoronamento, pouco a pouco, tambm o Ceticismo. Ao mesmo tempo, passou a buscar
outras explicaes para os conflitos entre o bem e o mal que julgava sentir em seu esprito.
O dualismo maniqueu, se dele ainda restasse alguma coisa, tambm passou a ser
definitivamente superado.
Destes embates interiores, gradativamente seu horizonte de compreenso vai sendo
esclarecido. Paulatinamente, a partir do testemunho e palavras de Ambrsio, Agostinho
comeou a preferir a doutrina Catlica. No deixava de lado a leitura dos neoplatnicos,
mas o cristianismo parecia-lhe, a cada dia, mais prximo. Com o esprito ainda envolto no
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ceticismo, um novo motivo basilar passou a motiv-lo: era mais modesto e sincero
prescrever a f em algo que no podia ser demonstrado... do que zombar da f, prometendo
temerariamente uma cincia para afinal impor a crena numa grande quantidade de fbulas,
incapazes de demonstrao54 A leitura da escritura crist, sobretudo na sua dimenso
paulina, iria lev-lo lentamente ao encontro definitivo com o cristianismo.
Lancei-me avidamente venervel Escritura inspirada por Ti, especialmente a do apstolo Paulo... Comeando a leitura, descobri que tudo o que de verdadeiro tinha encontrado nos livros platnicos aqui dito com a garantia da Tua graa, para que no se ensoberbea quem consegue ver, como se no tivesse recebido, no s aquilo que v, mas at a prpria faculdade de ver.55
Por causa de Ambrsio, tambm da presena de Mnica, e somando a isso as
incoerncias das formas de pensamento de sua poca, Agostinho passar, portanto, a
preferir a f catlica. Unindo sua leitura crist com a neoplatnica, nas quais no via
nenhuma forma de oposio, mas complementao, Agostinho iniciar a consolidao de
seu sistema de pensamento no qual o conhecimento da verdade tornar-se- possvel num
processo de interioridade, tendo a alma humana como caminho.
Inicialmente, do neoplatonismo ele assimilou a concepo de que a verdade, como
conhecimento eterno, deveria ser buscada intelectualmente no mundo das idias. Os livros
de Plotino, traduzidos ao latim por Mrio Vitorino56, foram os mais primordiais para
54 AGOSTINHO, Confisses, 1984, 6.5.7. 55 Idem. Ibidem. 7.21.27. 56 AGOSTINHO, Confisses, 1984, 8.2.
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Agostinho. Eles passaram a oferecer para ele referenciais sobre Deus, o mal, a verdade, a
liberdade e a felicidade. Foram como "balsamo sobre chama" que provocavam um incrvel
incndio57. Os livros dos neoplatnicos, de modo geral, orientavam a busca de Agostinho e
a escritura crist mostrava-lhe o caminho para a felicidade. Instigado por esses escritos a
retornar a mim mesmo, entrei no ntimo do meu corao sobre tua guia, e o consegui,
porque Tu te fizeste meu auxlio.58
Ele chegou a estabelecer correspondncias entre os escritos do Evangelho Joanino
com as hipostases divinas da Enada de Plotino, referindo-se ao Verbo de Deus, rejeitando,
porm, o seu politesmo emanatista59. Um novo caminho de vida se abriu, portanto, diante
de Agostinho. Do antigo Ceticismo ficou para ele de positivo, alm do processo de
amadurecimento pessoal, unicamente a permanente desconfiana nos dados dos sentidos,
isto , no conhecimento sensorial, conhecimento que apresenta uma multido de seres
mutveis, flutuantes e transitrios. Esta convico lhe seria til, quando unida ao
Neoplatonismo e ao Cristianismo, para a descoberta da interioridade, a via da alma, como
acesso verdade.
57 AGOSTINHO, Contra os Acadmicos, 1952, 2.5. 58 AGOSTINHO, Confisses, 1984, 7.10.16. 59 Idem.
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2.3 A converso de Agostinho, experincia da interioridade
Em Agostinho a procura da verdade apresenta-se como um anseio contnuo e
ardente presente em sua mente. A sede do infinito, independente de como concretizada ao
longo de sua vida, foi sempre presente em sua personalidade prpria de um homem de
idias universais. Um homem sensvel aos apelos de seu prprio corao: O meu amor o
meu peso. Para qualquer parte que eu v, ele que me leva60. A busca da verdade
caracterizou-se, assim, para ele, como fator determinante, primeiro e necessrio para a sua
felicidade.
Agostinho passou a ver gradativamente a importncia de abrir-se constantemente ao
transcendente, num empreendimento de busca contnua. Um processo longo e por vezes
doloroso. Buscou sentido e alvio para a alma no mundo exterior, num primeiro momento,
mas encaminhou-se para o seu interior como a instncia da proximidade da verdade.
Aprendeu a sentir e identificar os movimentos da alma. Este exerccio lhe permitiu uma
viso mais cuidadosa sobre si mesmo, sobre a realidade e uma posterior seleo de idias e
objetos.
Aos poucos, passando pelo Maniqueismo, pelo Ceticismo e agora em contato com o
Cristianismo associado s idias do Neoplatonismo, Agostinho, em seu empenho racional,
60 AGOSTINHO, Confisses, 1984, 13.9.10.
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aprendeu a dar uma chance para a f, aprendeu a considerar a dimenso do mistrio em
sua vida.
A desiluso com as doutrinas diversas que pretendiam ser seguras com o tempo foi provocando em Agostinho um rendimento diante do mistrio. Era inevitvel o incmodo diante de uma verdade que no lhe cabia em sua compreenso. O desarmar-se de suas seguranas foi fruto de decepes diante de seus apegos e vaidades.. Tudo isso, associado a uma vida desregrada moralmente, fez de Agostinho um ser com um forte pesar da conscincia. O clamar pela justia e pela paz ardia em seu peito e com o tempo ele foi reconhecendo-se pequeno e miservel diante da Verdade.61
Agostinho, j adulto, passou a identificar cada vez mais a necessidade da vida
interior como eixo fundamental no qual comea a articular seu pensamento, organizar suas
idias, definir seus princpios, sentir sua vida, as reaes do cotidiano em sua alma. O
mundo exterior pareceu-lhe vazio, passageiro, mutvel. Ele ansiava por verdade eternas,
slidas, imutveis. Entendia o caminhar ao encontro da verdade como um caminhar ao
mesmo tempo para o encontro de si.
Neste processo, Agostinho sentiu a necessidade do recolhimento necessrio para
buscar o conhecimento de forma coerente. Afirmava a necessidade de conhecer-se a si
mesmo. E uma vez dentro de si, reconheceu as exigncias do seu ser e pde experimentar
em sua existncia algo at ento inexplorado: a aberturar para a verdade Absoluta e o
encontro com o mistrio, que ele chamou de Deus, como um ser pessoal e repleto de
significado. Portanto, segundo sua prpria experincia, pode-se afirmar que para que o
61 CREMONA, Agostinho de Hipona, 1990, p. 52.
41
homem se conhea, preciso que se afaste da exterioridade, que se recolha em si mesmo e,
separado das coisas, se mantenha nos braos de seu prprio ser.
No entanto, o processo de interioridade como caminho sabedoria ser por ele
compreendido, como consolidao de um princpio, somente a partir da experincia de sua
prpria converso. Entender que necessrio renunciar s paixes e ao apego ao sensvel.
Permanecer em si significa mais do que visitar a si mesmo. Significa colocar-se acima do
efmero e agarrar-se ao que imutvel. E isso no tarefa fcil. To difcil que, alm do
empenho humano, para ele, ser necessrio um auxlio especial divino, a graa de Deus.
Ter que viver pela f62.
Existe neste processo uma ntima relao entre razo e f. A razo identifica,
compreende e prepara o caminho, a f uma forma de abertura e entrega total do ser, como
condio para que a verdade revelada, que Deus, seja assimilada pela pessoa. Agostinho
admite que razo e f andem juntas, que so inseparveis; mas quando se fala de converso
e de graa, a f o nico caminho que garante, na alma, o acesso verdade.
Esta relao delicada. A converso de Agostinho foi, para o Ocidente de modo
geral, o grande campo de estudo para a definio da compatibilidade ou no entre a razo,
sem cair no racionalismo, e a f, sem cair no fidesmo. Em Confisses Agostinho aponta
detalhes fundamentais sobre sua converso e que so muito pertinentes para a compreenso
da idia de interioridade.
62 Implica no empenho humano, mas numa atitude de constante espera da possibilidade da ao divina, pela graa.
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Em primeiro lugar, Agostinho admite a necessidade de uma compreenso prvia
como fundamento para a f. Afirma: intelligo ut credam63, entendo para crer. Olhando para
o seu prprio exemplo, todos os anos anteriores sua converso foram, por ele mesmo
admitido, a preparao prvia que deu suporte f. Preparao racional que envolveu: a
adeso ao Maniquesmo, aprendendo a necessidade de se buscar caminhos mais
fundamentados que meream o envolvimento pessoal; a passagem pelo Ceticismo,
deixando-lhe, por concluso de sua reflexo, a desconfiana dos sentidos, a modstia
intelectual diante do mistrio da vida e a prudncia na construo do conhecimento; a
leitura dos neoplatnicos, quando adquire a convico do imaterial e da no realidade do
mal substancial; as palavras de Ambrsio e a leitura bblica de Paulo, que o levaram a
concluir que a Escritura Crist um livro teolgico e por essa compreenso deve ser
abordado, alm da descoberta do sentido da f, da graa e do Cristo Salvador.
Assim, sua preparao intelectual como preparao ao cristianismo foi intensificada
cada vez mais at sua converso. Esse seu itinerrio prprio tornar-se- para ele mesmo
referncia em seus escritos. Mesmo nos dias que antecederam sua adeso definitiva ao
cristianismo, ele fez questo de identificar o quanto j estava convencido de que a sua
adeso ao cristianismo era provvel e vivel. Chega at a apontar que mesmo a sua vontade
j estava direcionada para isso64.
63 AGOSTINHO, Sermons de S. Agustin: sur les pseaumes, 1739, 43.7. 64 AGOSTINHO, Confisses, 1984, 8.1.1: Encantava-me o verdadeiro caminho, que o prprio Salvador, mas eu ainda relutava em enfrentar-lhe as estreitas passagens.
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Essa prvia aceitao do Cristianismo, no mbito da inteligncia e, em parte,
tambm da vontade, foi sobretudo intensificada nos breves dilogos de Agostinho com
Ambrsio, e na admirao de cristos notrios por esbanjar qualidades, como o vasto
conhecimento, cultura refinada e uma vida de humildade. Simpliciano, por exemplo, um
clebre cristo, ancio e pai espiritual do bispo Ambrsio, foi uma das personalidades para
a qual os olhos de Agostinho se voltaram com admirao65. Num colquio com
Simpliciano, Agostinho fez questo de narrar-lhe suas inquietaes interiores e recebeu
como resposta uma narrao de um fato concreto, a converso de Vitorino, um homem
muito parecido com Agostinho, culto, propenso ao cristianismo, mas dividido ainda
interiormente.
Essa narrao muito impressionou Agostinho, pois tocou em um elemento central
que ele mesmo estava vivenciando, a necessidade de assumir integralmente a f crist.
Nesta narrativa, Simpliciano mostrou como Vitorino lhe tornava evidente em conversas que
j havia compreendido a proposta da Escrituras Crist e que de fato j se considerava
cristo. Ao passo que Simpliciano respondia: No te considerarei entre os cristos
enquanto no te vir na Igreja de Cristo. E Vitorino refutava: Mas, ento, as paredes da
igreja o que nos fazem cristos?66. Este dilogo se repetiu muitas vezes. Sempre a
mesma afirmao e sempre a mesma resposta. At que numa dada ocasio Vitorino
compreendeu o que Simpliciano estava a lhe dizer. Na verdade ele aceitava
intelectualmente as idias crists mas tinha vergonha de seus amigos de profisso, oradores
e freqentadores de religies pags. Queria uma adeso intelectual somente, manifestada
65 AGOSTINHO, Confisses, 1984, 8.1.1. 66 Idem. Ibidem. 8.2.3.
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em colquios escondidos, mas estava ainda longe de uma transformao integral. Somente
quando compreendeu o texto de Mateus, que fala da possibilidade de Cristo negar diante
dos anjos do cu a quem tenha se envergonhado dele na terra67, passou a perceber o que lhe
era exigido. Direcionou-se Igreja, preparou-se para o batismo e professou diante de todos
a sua f. Recebeu zombaria dos antigos amigos e aceitao de sua nova comunidade de f.
Vitorino, de alguma forma, aceitou as implicaes inerentes ao cristianismo.
Essa narrativa influenciou muito Agostinho. Ele a narrou em detalhes em seus
escritos. No escondeu a sua empolgao diante deste fato68. Logo que teu servo
Simplicano me contou esses fatos sobre Vitorino, senti imenso desejo de imit-lo69. Pde
perceber no a importncia de se trocar de idias por serem umas melhores do que as
outras, mas a importncia de se assumir uma postura de vida na qual a simplicidade e a
entrega ao mistrio sejam fonte de alegria, paz e sabedoria. Ele se viu, de alguma forma, em
Vitorino.
E Roma agora adorava essas divindades que um dia ela vencera. O velho Vitorino, que por tantos anos as defendera com eloqncia impressionante, no se acanhou de tornar-se servo do teu Cristo e criana na tua fonte, dobrando a cabea ao jugo da humildade e inclinando a fronte diante do oprbrio da cruz.70
67 BBLIA, 1989, Mateus, 10, 32-33: Todo aquele, portanto, que se declarar por mim diante dos homens, tambm eu me declararei por ele diante de meu Pai que est nos Cus. Aquele, porm, que me renegar diante dos homens, tambm o renegarei diante de meu Pai que est nos Cus. 68 AGOSTINHO, Confisses, 1984, 8.4.9: Vamos, Senhor, age, desperta-nos, convoca-nos, inflama-nos, arrebata-nos, enche-nos de fogo e doura! No so muitos os que voltam a ti. 69 Idem. Ibidem. 8.5.10. 70 Idem. Ibidem. 8.2.3.
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Diante deste e de outros exemplos, associados leitura atenta da Escritura Crist,
cada vez mais ciente dos benefcios que o Cristianismo traria para a sua paz interior to
desejada, ainda assim Agostinho relutava. Tambm eu queria fazer o mesmo, porm era
impedido, no por grilhes alheios, mas por minha prpria vontade frrea.71. Embora sua
inteligncia lhe apontasse o caminho e uma parte de sua vontade, o amor, lhe inspirasse e
atrasse, a outra dimenso de sua vontade, a concupiscncia, o impelia para o mundo das
sensaes