“A ÁFRICA VIVE EM NÓS”: a lei 10.639/03 sai do papel e vai ao pátio
escolar
José Uesele Oliveira Nascimento1
Manoel Ribeiro Andrade2
RESUMO: Este texto tem o propósito de refletir sobre o alcance da Lei 10.639/03 num
espaço educativo estadual da região centro-sul do Estado de Sergipe. Essa lei alterou alguns
dispositivos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB/1996), tornando o
Ensino de História da África e da Cultura Afro-brasileira obrigatórios nos currículos oficiais
da Educação Básica. Essa medida visa contemplar a formação de professores, a elaboração de
material didático implicando nos discursos pedagógicos antirracistas e na desconstrução da
tradição eurocêntrica. O texto apresenta uma breve contextualização da lei como fruto da luta
do movimento negro, ao mesmo tempo em que se propõe a analisar como a Escola Estadual
Lourival Fontes - EELF vem contribuindo para a efetivação da lei, tendo como referência os
trabalhos desenvolvidos pela instituição, no interstício de 2012-2014.
Palavras-chave: Educação antirracista. Escola Estadual Lourival Fontes. Lei 10.639/03.
INTRODUÇÃO
“Eu quero que toda pessoa branca neste auditório, que gostaria de ser tratada da
mesma maneira que a sociedade trata os cidadãos negros, se levante” (pausa)
“Vocês não entenderam. Se vocês, brancos, querem ser tratados do modo como os
negros são tratados, levantem-se.”(Mais uma pausa). Ninguém se levantou.
“Isso deixa claro que vocês sabem o que está acontecendo. Vocês não querem isso
para vocês. Quero saber por que, então, aceitam isso e permitem que aconteça com
os outros.”3
1 Licenciado em História (2008) e pós-graduado em Docência do Ensino Superior (2010) pela Faculdade José
Augusto Vieira. Atualmente leciona História e Cultura Sergipana na rede municipal e estadual de ensino. E-mail:
[email protected] 2 Licenciado em História (FJAV) e pós-graduado em História do Brasil (Faculdade Pio Décimo) e em Gestão de
Políticas Públicas com Foco em Gênero e Raça (UFS). Atualmente é historiógrafo da Prefeitura Municipal de
Lagarto e professor de História e Sociedade e Cultura da rede estadual de ensino. E-mail:
[email protected] 3 Fragmento extraído do diálogo registrado em um dos workshops de Jane Eliot, citado por Azoilda Loretto da
Trindade, no artigo Fragmentos de um discurso sobre afetividade contidos no vol.1 do Cadernos de Textos -
Saberes e Fazeres: modos de ver do projeto A cor da Cultura. (p.104).
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Este trabalho se propõe a estudar de que forma as origens étnicas vem sendo
contempladas pelo currículo escolar, em especial as matrizes africanas, por muito tempo
relegadas a um “espaço de silêncio” na história da educação brasileira, o qual passou a
ser contestado pelo movimento negro, quando começou a haver rupturas através de
medidas legais com a implantação da Lei 10.639/03. Sabe-se que toda legitimidade deve
ter uma dimensão prática, pois toda conquista é fruto da própria trajetória histórica.
Desse modo, buscar-se-á avaliar a aplicabilidade da Lei em uma realidade institucional,
nos detendo a região centro-sul sergipana, no contexto pós lei. Imbuídos do espírito
cientifico e valendo-se de subsídios teórico-metodológicos, tais como análise dos
programas e referenciais curriculares da rede estadual.
Com a Lei 10.639/03 insere-se a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura
Afro-brasileira nos currículos escolares. Nas linhas que seguem, nos deteremos apenas a
analisar como Escola Estadual Lourival Fontes - EELF vem trabalhado, através de seu
currículo, com as questões étnico-raciais no processo educativo, fazendo referência aos
conteúdos ministrados e perpassando pela prática de projetos no âmbito escolar. Para
além disso, buscou-se verificar sobre a existência de ferramentas colaborativas para
capacitação docente e identificar as medidas e ações governamentais de incentivo e
fomento desta temática tão urgente para a formação da consciência cidadã e superação
das assimetrias étnico-raciais.
OS PASSOS DE UMA AFIRMAÇÃO NEGADA
A urgência da Lei 10.639/03 é uma necessidade coletiva, emanada de um
processo de discussão histórica, que precisou ser revista, pois por muito tempo foi
predominante o discurso eurocêntrico de superioridade branca europeia em nossa nação,
o qual serviu para silenciar ou até mesmo sufocar com suas representações simbólicas a
“memória cultural negra”. Suas contribuições, evidentemente espalhadas pelo espaço
social brasileiro são marcas evidenciadas nos ritos, no corpo e na alma do nosso povo.
Mesmo sabendo que “a História oficial relegou aos negros um papel secundário,
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dificultando o caminho a sua inclusão social e criando um estado de desigualdade difícil
de ser alterado” (BRANDÃO, 2006:13).
Tem-se buscado por meio da legalidade, través da luta, acabar com ações
discriminatórias, muitas vezes veladas no cotidiano escolar onde as relações
interpessoais são permeadas por ideologias disfarçadas de preconceitos, presentes não
só nos atos discriminatórios, mas também nos próprios materiais didáticos, que por sua
vez reforçam em seus conteúdos, os preconceitos construídos socialmente.
Os livros didáticos e outras produções bibliográficas ignoram a
participação de africanos e afro-brasileiros na construção intelectual e
material do país. Este descuido tem o propósito de levar a uma sub-
representação de uma parte da população na história do Brasil, para
reproduzir o processo de dominação e opressão a que essa parcela da
sociedade tem sido submetida (FELIPE; TERUYA, 2008:19).
Além disso, evidencia-se a rejeição ao elemento negro nas dissimulações,
apelidos, xingamentos, ironias, piadinhas de mau gosto, uso de termos pejorativos que
chegam a ofender a índole dos cidadãos negros. Formas de tratamentos estas que
estereotipam e estigmatizam as camadas sociais negras.
Vivencia-se hoje rediscussões sobre a temática negra, ausente por muito tempo
no currículo escolar e sufocada pela tradição eurocêntrica; esta atravessou uma fronteira
de silêncios de um lado e contestações de outro, por mais de meio século. Somente com
o processo de democratização do ensino que inaugura o espaço de ação de inserção, até
bem pouco tempo esquecido, passou-se a reivindicar a adoção de um currículo escolar
mais amplo, menos tendencioso e excludente, reconhecendo e valorizando a diversidade
cultural e a pluralidade do povo brasileiro.
A partir do debate gerado pela Lei 10.639/03 os conteúdos passaram a ser
repensados, buscou-se selecionar materiais didáticos com abordagens antirracistas,
produzidos por intelectuais negros africanos e afro-brasileiros. Na proposta de trabalhar
linguagens múltiplas de significados humanizadores, o qual carece de cuidados na
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seleção de discursos e materiais pedagógicos adotados na escola, intentando minimizar
as distorções sociais e culturais legadas em discursos subjacentes.
Para alguns autores vivemos em uma realidade dialógica em que as imagens
exercem um poder reacionário sobre os nossos sentidos. Dessa maneira:
As imagens tornaram-se essenciais no estudo da história e na reflexão social
pelo poder que elas ganharam, no decorrer do século XX, de formar ou
deformar opiniões, de padronizar posições ideológicas e de construir ou
desconstruir estereótipos (FELIPE; TERUYA, 2008: 22).
Por isso, é importante a perícia consciente dos manuais didáticos, dos materiais
fílmicos, dos programas de rádio e TV, dos artigos de jornais, matérias na internet, etc.,
no intuito de evitar “distorções” históricas, reforçando assim preconceitos e
discriminações.
As iniciativas de fomento à cultura e história da África e afro-descendentes
começaram a existir no Brasil, principalmente após a observância da Lei 10.639/03,
mesmo que de forma lacunar, pois o caminho ainda é longo. Algumas pesquisas estão
sendo feitas através de órgãos como Secad/MEC (Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade do Ministério da Educação e Cultura) que elaborou um
material de esclarecimento com eixos temáticos ligados a pluralidade cultural e étnica
(dentro da proposta de Educação Inclusiva que contemplam o pensamento indígena e
negro)4.
Todavia, a acessibilidade a esse material ainda é muito restrita, carecendo de
uma política contínua de promoção da igualdade racial através da formação continuada
e melhor distribuição dos materiais produzidos. Outras iniciativas de apoio pedagógico
existem como o projeto A Cor da Cultura, feito em parceria com a Fundação Roberto
Marinho, esse material consiste de um Kit educativo (contendo CD, DVDs, livros
teóricos, cadernos de atividades e jogos educativos) que foram distribuídos para escolas
4 A Lei 11.645/08 reforça a Lei 10639/03 estabelecendo as diretrizes e bases da educação nacional, para
incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-
Brasileira e Indígena”.
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de educação básica, no intuito de acalourar os debates e aumentar a compreensão das
contribuições culturais da população negra ao longo da história.
Compactuando essas propostas, evidencia-se que o caminho vem sendo traçado,
sendo a busca pelo conhecimento uma condição natural no processo educativo,
almejando-se com essas iniciativas, elucidar as questões étnico-raciais existentes.
Trajetória da Lei 10.639/03 Enquanto Conquista do Movimento Negro.
A condição do negro no processo pós-abolicionista, deixados à própria sorte,
sem uma política de amparo e proteção social, provocou um destino de miséria. A
primeira abolição serviu apenas como lastro contra a “inércia ideológica” do
preconceito.
Na realidade, começou a partir daí uma luta incansável pela inserção social, e
por que não dizer pela aceitação de sua cor e condição, seja no trabalho, nas ruas ou nos
espaços escolares, este último serviu para eles como um veículo de ascensão social, a
fim de aplacar a dor da rejeição, como atesta as pesquisas sociológicas de Florestan
Fernandes (1978) e Clóvis Moura (2002). Este último, faz uma afirmação reveladora da
condição dos negros no principiar do século XX, em suas palavras “ a preocupação com
a educação é uma constante. O negro deve educar-se para subir socialmente.” Falava-se
até na adoção de estudantes negros nos estabelecimentos de ensino particulares e
oficiais nos graus secundário e superior, como pensionistas do Estado. 5
Essa luta atravessou o século XX, chegou ao XXI cansada, tomando novo fôlego
embrenhando-se em contundentes e necessárias reivindicações. Tendo como porta voz
os movimentos sociais negros, inserindo na pauta de reclames democráticos questões
como: estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura
negra no espaço brasileiro e o negro na formação da sociedade nacional brasileira.
Uma das primeiras manifestações explícita dos movimentos de luta negra
aconteceu em 1950, no Rio de Janeiro, quando essas lideranças se reuniram no I
5 Informações veiculadas pelos meios impressos circulantes, na primeira metade do século XX, por
militantes intelectuais negros como Abdias do Nascimento dirigente do jornal Quilombo.
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Congresso do Negro Brasileiro, promovido pelo TEN (Teatro Experimental do Negro)
quando se discutiu a urgência da criação de institutos de pesquisas para o resgate da
história negra e dos procedimentos de inserção dos mesmos na sociedade brasileira,
essas discussões demorariam a vingar, acabariam ficando amortecidas pelo tempo,
silenciadas pelos órgãos repressores da ditadura militar brasileira até o momento de
abertura quando foram retomadas pela constituinte de 1988.
Na década de 90, no século XX, têm-se novos eventos para definir a educação
antirracistas, como a Marcha Zumbi dos Palmares Contra o Racismo, Pela Cidadania e
a Vida, realizada estrategicamente em 20 de novembro de 1995, em Brasília, onde foi
entregue ao então presidente Fernando Henrique Cardoso o Programa de Superação do
Racismo e da Desigualdade Racial, no que se refere à educação voltada à inclusão
negra, contemplavam iniciativas como o cuidado com a elaboração do material didático
para que não veiculem conteúdos com ideologia preconceituosa de toda e qual quer
ordem. Nesse tocante vieram as primeiras conquistas quando muitos livros didáticos
foram retirados de circulação, quando estes reproduzissem estereótipos por apresentar
imagens que denotassem a condição subalterna ou de inferioridade. Dessa forma alguns
currículos escolares e planejamentos docentes, aos poucos tiveram que ser repensados,
principalmente quando as leis orgânicas de alguns estados da federação incluíram essas
conquistas, agora legais, devendo alcançar o âmbito da prática educacional legítima, já
que sancionar leis não garante o cumprimento e exercício da mesma, pois precisa-se de
suprimentos técnico-metodológicos para alcançar a finalidade da conscientização cidadã
para aplicação de tais medidas.
Outros avanços alcançam o século XXI, quando a educação assume um caráter
democrático, pelo crivo da “justiça e dívida social” quando é implementada a Lei nº
10.639, em 2003 pelo Governo Lula. Tal lei chega a ser um avanço normativo, mas
deveria assegurar as condições de ensino de forma estrutural, no sentido de ceder
material pedagógico específico, garantir a qualificação dos professores já em atividade e
mudar as matrizes curriculares nos cursos de formação docente no intuito de viabilizar
as bases instrumentais da legislação vigente para que ela não se torne letra morta. Pois,
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na trajetória histórica dessa conquista existiu muita luta de homens e mulheres
comprometidos com seus ideais para construção da verdadeira democracia racial.
No tocante, as questões legislativas no Brasil, tentou-se preservar a memória
coletiva negra e suas contribuições ao menos pela tutela burocrática, evidências essas
presentes em vários documentos educacionais ao longo da nossa história republicana, na
tentativa de conter conflitos ideológicos, quando se utilizava o discurso da
democratização escolar, como consta nessa passagem: “condenação a qualquer
tratamento desigual por motivo de convicção filosófica, política ou religiosa, bem como
a quaisquer preconceitos de classe ou de raça.”6
Infelizmente, as LDBs seguintes (a de 5.540/68 e a Lei 5.692/71) não
impulsionaram o debate sobre a questão da inserção racial no espaço escolar, ausência
justificada pelo momento histórico vivido. Somente após o processo de
redemocratização política pós-regime militar, as associações engajadas pela questão
negra (intelectuais, clubes culturais e jornais) respirando o centenário da abolição
(1988), as discussões são retomadas através de pesquisas que comprovam as
disparidades étnicas em relação às oportunidades sociais, e o grande prejuízo para a
população negra. Essa problemática desemboca na inscrição legal do racismo como
crime inafiançável.
A Lei nº 9.394/96, por sua vez, ainda não consegue responder a essas questões,
somente seus desdobramentos repensam as matrizes culturais negras com iniciativas
como os PCNs que tratam, além de outras temáticas, sobre a Pluralidade Cultural, bem
como a efetivação do dia 20 de novembro como “ Dia da Consciência Negra”, a ser
respeitado pelo calendário escolar, incluído reflexões e comemorações acerca do tema
(pauta legal da lei 10.639/03). Pois, omissões culturais podem provocar deformações na
construção de uma identidade nacional, por muito tempo permeada pela visão
eurocêntrica, e reclamada fortemente pelos elementos étnicos da nossa formação
nacional. Essa proposta deverá perpassar todo currículo escolar, desde a realização de
projetos interdisciplinares nas escolas, e principalmente realizações concretas na
6 Presente na LDB 4024/61, no Título I- Dos Fins da Educação, Art. 1º, alínea g – finalidade da educação
nacional inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana.
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formação docente nas universidades com iniciativas como a implantação de disciplinas
(História da África e Cultura Afro–Brasileira) nos cursos de licenciatura voltadas para o
social, bem como se pensar em cursos de pós-graduação que fomentem pesquisas na
área de estudos africanos e por conseguinte a elaboração e divulgação do material
didático produzido. Já avançamos muito, no entanto:
Podemos observar que até hoje existem, nos currículos dos cursos de
História das universidades brasileiras, poucas disciplinas específicas sobre a
África, assim como praticamente se ignora o tema nos estudos de História
Geral do Ensino Fundamental e Médio. Ao tornar obrigatória sua inclusão na
Educação Básica, estaremos frente a uma imensa dificuldade: que História
será essa apresentada, se a maioria dos professores em sala não teve contato
com ela? (LIMA, 2006: 43).
As bases teóricas-práticas no tocante aos estudos africanos, vem sendo
repensados desde a Lei 10.639/2003, que foi um “marco histórico” como luta negra na
educação nacional, a partir daí novas iniciativas legais vem sendo adotadas como a
aprovação pelo CNE das “Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das
Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana” (Resolução nº1, de 17 de junho de 2004), seguindo os princípios de alteridade
social, da responsabilidade de desenvolvimento de projetos a nível distrital (autonomia
legal dos Estados) que acompanharão as ações, sendo de responsabilidade do sistema de
ensino prover de toda estrutura necessária para a prática escolar. Coube aos
estabelecimentos de ensino o desenvolvimento de projetos de forma interdisciplinar,
ainda a lei garante o incentivo a produção científica, tudo isso como reflexos de
movimentos engajados pela luta de direitos educacionais garantidos na forma de ações
afirmativas, agora legais.
Um experiência escolar: a Lei 10.639/03 em verso e reverso.
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O Projeto “A África vive em nós” é uma ação interdisciplinar desenvolvida pela
Escola Estadual Lourival Fontes - EELF, situada na Av. Doutor Luiz Garcia, 147,
Centro, em Riachão do Dantas. Nascido em 2012, esta iniciativa tem ao longo de sua
trajetória incorporado problemáticas e discussões, atentando sempre para as demandas
locais e institucionais.
A escola por ser espaço de conhecimento é a ferramenta utilizada para fomentar
mudanças e exercer a cidadania. O projeto citado objetiva a promoção política e social
da temática negra e o comprometimento com a educação cidadã, além disso, visa o
cumprimento da lei 10.639/2003 e 11.645/2008. Nele, procura-se discutir conceitos e
refletir preconceitos socialmente implantados no cenário brasileiro. A proposta oferece
condições para que estudantes e professores, especialmente da área de humanas, possam
nos conteúdos de sala de aula abordar questões reflexivas relativas a esta “doença
social”, desmistificando alguns valores arraigados no cotidiano, com a finalidade de
minimizar os conflitos sociais, ético-raciais e de gênero.
Ao longo de sua trajetória, dentro do recorte aqui estabelecido, o projeto teve uma
evolução. Em 2012 iniciou-se um trabalho sistematizado de discussão da problemática
negra, fazendo intersecções com a infância. Trabalhou-se o respeito, o reconhecimento e
a valorização da cultura africana e afro-brasileira levando em consideração o tema
apresentado, dentro da sua diversidade. No ano seguinte, percebendo a necessidade e
urgência de um trabalho aprofundado com o tema gênero, faz-se a inclusão de mais uma
temática buscando conhecer a diversidade de gênero e suas relações multifacetadas com
a raça. Nesta edição de 2014, observa-se a pretensão de inserir mais um grupo étnico-
racial nas discussões, trabalhando com histórias e culturas dos povos indígenas, sob a
temática família.
Considerando a abrangência dos tentáculos do projeto, percebeu-se que ao longo
de sua trajetória ele priorizou a temática negra, mas também buscou dialogar com
categorias e outras problemáticas, aumentando assim sua abrangência e paralelismo
étnico-racial, através de diversificadas intervenções pedagógicas. A iniciativa possui
uma rede colaborativa de componentes curriculares voltados para a temática, a saber:
História, Artes, Língua Portuguesa, Sociedade e Cultura, Ensino Religioso e outros.
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Diante dos problemas da educação pública, o projeto supracitado sobrevive da
criatividade e dos poucos recursos que a escola disponibiliza. Todas as ações do
programa busca aproveitar as diversas habilidades e competências dos discentes na sua
dimensão arte, representação, musicalidade, dança e cultura.
As ações do projeto ocorrem durante o ano inteiro, entre o “13 de maio” e o “20
de novembro” - datas significativas e semanticamente distintas para o movimento negro
- na sala de aula e em atividades extraclasse, com alunos do Ensino Fundamental Maior
da EELF.
Pensando na observância do alcance do projeto na vivencia dos discentes,
resolvemos aplicar um questionário, dentro de um universo amostral de 30 estudantes,
nas séries iniciais e finais do Ensino Fundamental II da EELF, a fim de aferir sobre as
contribuições do mesmo para o desenvolvimento da consciência cidadã e das questões
relativas à temática negra, confrontando os dados colhidos nas séries iniciais com os da
séries finais do processo ensino-aprendizagem.
Este questionário foi subdividido em duas dimensões: uma objetiva e outra
subjetiva. A primeira visando averiguar o domínio de conhecimentos referentes ao
contexto histórico africano e afro-brasileiro, imprescindíveis para uma educação no e
para os direitos humanos e a segunda objetivando perceber a relevância do projeto na
aquisição destes conhecimentos.
Dentro do universo dos questionamentos objetivos perscrutou-se sobre as
representações da história de resistência negra, seus conceitos e fatos históricos,
evidenciando que a grande maioria dos estudantes analisados demonstraram domínio
em relação a temática abordada, sendo esta realidade mais expressiva nas séries finais,
com maior número de acerto.
É interessante notar que quando questionados a respeito da visão projetada sobre o
continente africano a maioria entrou em contradição escolhendo alternativas
estereotipadas e oriundas das construções midiáticas. Ao mesmo tempo em que
demonstraram posse de conhecimentos básicos sobre a temática negra no Brasil,
inclusive saberes relativos aos problemas étnico-raciais nacionais, reproduziram
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conceitos equivocados sobre a África. Situação típica do bombardeamento das redes de
informação que lhe atribui uma visão exótica, negativista e homogênea.
No campo da subjetividade questionou-se a respeito de situações de preconceitos
vistas ou vividas no âmbito social, sobre a vivência de projetos ligados a questão afro na
escola e com relação ao currículo de matriz africana e cultura afro-brasileira.
Neste primeiro aspecto a maioria dos entrevistados informaram ter evidenciado
situações de preconceito, mas aproximando as lentes percebemos que alguns associaram
o preconceito racial a outras formas de preconceito – relativos a gênero, estética e as
várias formas de bullying – talvez de forma consciente, relacionando-os ao racial, ou
inconscientemente, confundindo os conceitos.
A respeito da experiência dos discentes, voltadas para projetos ligados ao
currículo de matriz africana e cultura afro-brasileira, denotamos que nas séries iniciais
havia poucas menções a respeito do tema. Todavia nas séries finais percebemos que a
grande parte dos entrevistados referiram-se ao projeto destacando-o para um despertar
de habilidades e competências que oportuniza alunos com faculdades e gostos
diferenciados, atinando para a construção da identidade brasileira e da consciência
cidadã e para o reconhecimento, respeito e valorização da diversidade étnico-racial do
Brasil, partindo das problemáticas sociais locais para uma realidade mais ampla.
Quando perguntados sobre a importância do estudo voltado para a história e
cultura da África e afro-brasileira, nas series iniciais, as respostas/justificativas
oscilaram entre conhecimentos associados à História, a diversidade cultural e ao
desenvolvimento de habilidades artísticas. Nas séries finais, obtivemos um aporte
dialógico mais complexo tocando em pontos como tolerância religiosa, diversidade
étnico-cultural, alteridade e subalternidade, discriminação racial, relação passado-
presente e cultura afro-brasileira como componente relevante da identidade nacional.
Analisando esta experiência em verso e reverso concluímos que os objetivos
propostos pelo “África vive em nós” foram alcançados consideravelmente, denotando-
se uma distinção significativa entre os discentes que não experimentaram o processo
integralmente e os que estão vivenciando sua terceira edição. Nestes, percebemos que os
conceitos voltados para a temática em questão estiveram bem mais concretos que os
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presentes nos calouros, materializando abordagens que identificam traços de uma
educação voltada para os direitos humanos e para a efetivação da lei 10.639/03.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O intuito destas linhas não é solucionar as “marcas do passado”, mas puramente
refletir sobre essas relações dentro do cotidiano escolar para que não continuemos a
reproduzir nos espaços educativos uma visão unilateral da história, de conteúdos
discriminatórios fincados pela visão eurocêntrica que tanto vitima os discursos
pedagógicos de forma intencional ou inconsciente. Para tanto, ultrapassou-se as
fronteiras da teorização e da produção de discursos, afim de trazer a discussão para os
“círculos da prática”. A experiência da EELF contextualiza a efetivação da Lei
10639/03, uma realidade ainda em vias de construção. Apesar dos limites da educação
pública, evidenciamos que com o esforço de profissionais comprometidos e instruídos
foi possível desenvolver na comunidade escolar oportunidades de conhecer à
diversidade cultural e a vivenciar a pluralidade étnica, criando um espaço lúdico e
participativo dentro da escola para valoração dos bens culturais de nosso rico e
multifacetado patrimônio histórico afro-cultural-brasileiro, através de ações educativas
exitosas que contribuam significativamente para uma educação voltada para os direitos
humanos e para o enfrentamento das assimetrias étnico-raciais, socioculturais e
econômicas deste país.
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