UNIVERSIDADE METODISTA DE SO PAULO
FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS DA RELIGIO
TANIA APARECIDA DA SILVA CALONGA
A DUPLA FACE DE SALOMO
MEMRIAS DE UMA ESCOLA DE ESCRIBAS NO
SCULO X A.C.
SO BERNARDO DO CAMPO
2012
TANIA APARECIDA DA SILVA CALONGA
A DUPLA FACE DE SALOMO
MEMRIAS DE UMA ESCOLA DE ESCRIBAS NO
SCULO X A.C.
Tese apresentada em cumprimento
s exigncias do curso de Ps-
Graduao em Cincias da Religio
para obteno do grau de Doutor.
rea de concentrao: Literatura e
religio no mundo bblico.
Orientao: Prof. Dr. Trcio
Machado Siqueira.
SO BERNARDO DO CAMPO
2012
A tese de doutorado sob o ttulo A dupla face de Salomo Memrias de uma Escola
de Escribas no sculo X a.C, elaborada por Tania Aparecida da Silva Calonga foi
defendida e aprovada em 11 de Maio de 2012, perante a banca examinadora composta
por Prof. Dr. Tercio Machado Siqueira, Prof. Dr. Paulo Roberto Garcia, Prof. Dr. Edson
de Faria Francisco, Prof. Dr. Benedito Ferraro, Prof. Dr. Renatus Porath.
__________________________________________
Prof. Dr. Tercio Machado Siqueira
Orientador e Presidente da Banca Examinadora
___________________________________________
Prof. Dr. Leonildo Silveira Campos
Coordenador do Programa de Ps-Graduao
Programa: Ps-Graduao em Cincias da Religio
rea de Concentrao: Literatura e Religio no Mundo Bblico
Linha de Pesquisa: Estudos Histricos-Literrios do Mundo Bblico
Este texto foi escrito com o apoio do CNPQ
sob a forma de bolsa de estudos.
AGRADECIMENTOS
A Deus, fonte de toda sabedoria. Meu companheiro de todas as horas.
Inspirao nos momentos mais difceis e solitrios no decorrer dessa jornada.
Ao Ronaldo, esposo e amigo que me apoiou e incentivou em todos os sentidos.
Aos meus filhos Ana Clara e Renato que souberam compreender as minhas
ausncias.
A todos os amigos que estiveram ao meu lado me ajudando nos estudos ou com
palavras de conforto e de carinho. Em especial ao Clio Silva, Fernando Cndico e
Shirley Antoni .
Ao Prof. Dr. Trcio Machado Siqueira por seu apoio, compreenso e orientao
ao final dessa pesquisa.
Aos professores e funcionrios do curso de Ps-Graduao em Cincias da
Religio.
Ao apoio financeiro do CNPq, sob a forma de bolsa de estudos.
Dedicatria
In Memorian
Dedico essa tese ao meu orientador Milton Schwantes (26/04/1946
01/03/2012).
Agradeo ao mestre, orientador, amigo, pastor honrado, cristo comprometido,
militante nas causas sociais, idealista, motivador, eterno incentivador na difcil
caminhada em prol das transformaes sociais to urgentes, principalmente em nossa
Amrica Latina.
Este profeta da atualidade tinha uma alegria contagiante, um entusiasmo
marcante e uma maneira especial para ensinar as lies da vida e a vivncia do amor
com intensidade e plenitude.
Seu entusiasmo pela vida foi um exemplo. Mesmo com as limitaes que a
doena lhe causou, nunca deixou de reconhecer e agradecer a Deus pelo dom da vida.
Fez-nos e nos far sempre beber da fonte de gua fresca, que supri nossa sede de
conhecimentos, de mudanas e de comprometimento.
Sua luz no se apagou entre ns. Permanecer vivo, guiando-nos pelo caminho
do bem. No podemos mais ouvir sua voz, a voz dos humanos, mas ele sempre nos
falar com a voz da alma, pois, ser eterno em nossos coraes, em nossas lembranas e
em nossas memrias.
Obrigada pelas palavras de sabedoria no processo de orientao, nas aulas e at
mesmo nas nossas divertidas conversas.
A voc, minha eterna gratido.
Na Amrica Latina, a Bblia se manifesta como
memria inquietadora. Sua reserva de sentido est
sendo recriada pelos oprimidos, desde o reverso
da histria, como denncia conscientizadora da
opresso e anncio da libertao. A inquietude que
aflora atravs de tal reminiscncia no se esgota
em um novo sentido, mas, basicamente, se compe
de um novo sujeito histrico: os oprimidos em
processo de organizao.
Milton Schwantes
CALONGA, Tania Aparecida da Silva, A dupla face de Salomo Memrias de uma Escola de Escribas no sculo X a.C., Universidade Metodista de So Paulo -
Faculdade de Humanidades e Direito. Programa de Ps-Graduao em Cincias
da Religio. So Bernardo do Campo. 2012.
Sinopse
O memravel rei Salomo passou para a histria como um sbio por excelncia.
Ainda na atualidade, a maioria das pessoas relaciona o seu nome com a sabedoria. Mas
a partir do momento que passamos a ter conhecimento dos textos que se referem a
Salomo, de como foram construdos e quais as ideologias ali presentes (tanto as
favorveis quanto as contrrias), surgem muitos questionamentos, em especial, quando
se busca metodicamente dissociar a histria da memria. Ao que parece a historiografia
tradicional sobre Salomo, ainda encontra-se muito dependente da figura idealizada de
Salomo. Resultado de uma construo feita desde a sua poca, pelas mos de seus
escribas, como tambm em tempos posteriores, de acordo com os interesses de cada
poca. Conclu-se que a sabedoria de Salomo nada mais do que uma construo
ideolgica. A partir dessa perspectiva, surge o desafio de buscar outra memria de
Salomo, a fim de propor um caminho alternativo, que nos permita produzir uma nova
historiografia a respeito de Salomo. Uma historiografia que no se firma na memria
oficial, mas que siga na direo contrria, a partir das memrias dos que no se
deixaram influenciar pela ideologia do poder. Dessa forma, poderemos alcanar a
comprovao de nossa tese: a existncia de duas memrias conflitantes a respeito de
Salomo, dentro da Escola de Escribas da corte de Jerusalm no sculo X a.C.
Infelizmente, as fontes disponveis sobre esse assunto so realmente escassas, o que
temos so textos, isto , memrias sobre Salomo. Escolheu-se um texto crtico a
Salomo. Trata-se de 1Rs 1-2, texto que pertence a chamada Histria da Sucesso de
Davi, acreditando-se que a partir dele, consiga-se produzir uma historiografia diferente
da historiografia tradicional. Conclumos que dentro da Escola de Escribas Salomnica
existiam duas ideologias conflitantes. Os que eram a favor de Salomo, defendiam os
interesses urbanos. Aqueles que pertenciam escola anti-Salomnica e anti-Jerusalm,
representavam os interesses dos camponeses explorados e oprimidos pelo poder.
Palavras-chave: histria, memria, monarquia, sabedoria, campo, cidade.
CALONGA, Tania Aparecida da Silva, A dupla face de Salomo Memrias de uma Escola de Escribas no sculo X a.C., Universidade Metodista de So Paulo -
Faculdade de Humanidades e Direito. Programa de Ps-Graduao em Cincias
da Religio. So Bernardo do Campo. 2012.
ABSTRACT
The memorable king Solomon entered into history as a wise man for excellence.
Even nowadays most people link his name to wisdom. But, when we get knowledge of
texts that refer to Solomon, of how they were written and which ideologies they have
(the favourable and the opposite ones), then many questions are made, in special when
they search methodically to dissociate the history from memory. It seems the traditional
historiography about Solomon has been found much dependent of his idealized figure
yet. Result of a construction made as since his time by his scribess hands as in later
times, too, according to interests of each epoch. The conclusion is that Solomons
wisdom is not more than an ideological construction. Since this perspective, urge the
challenge in searching another memory of Solomon, with the aim of suggesting an
alternative way which may allow us to produce a new historiography about him. A
historiography that may not be based on the oficial memory, but that one which may
follow in the opposite way, from memories of those who were not influenced by the
ideology of power. And, finally, to verify our thesis about the existence of two opposite
memories about Solomon in the school of scribes in the court of Jerusalenm in 10th
century b. C. Unfortunately, available sources about this issue are scarce, for we only
have texts or memories about Solomon. We refer to 1Rs 1-2, that belongs to the so
called History of succession believing that, from that narrative, it is possible to construct
a historiography that might be different of that traditional one. We conclude that within
the Solomonic school of scribes there were two opposite ideologies: Those which were
favourable to Solomon and were used to defend the urban interests, and those that
belonged to anti-Solomonic school and anti-Jerusalem, which were used to represent the
interests of peasants who were explored and oppressed by the power.
Palavras-chave: history, memory, monarchy, wisdom, field, city
SUMRIO
Introduo 11
1. O peso do ouro que chegava a Salomo Contexto histrico-arqueolgico de Salomo no debate historiogrfico28 1.1. Introduo 29
1.2. A historiografia tradicional sobre Salomo 30 1.3. Do reinado de Salomo 32 1.3.1. O programa de construo de fortalezas 49
1.3.2. Reorganizao do exrcito 50
1.3.3. Estruturao tcnico-administrativa 51
1.3.4. Integrantes do gabinete na administrao de Salomo 56
1.3.5. Cargos que j haviam sido institudos sob Davi 59
1.3.6. Os novos cargos que foram acrescentados 65
1.4. Concluso 70
2. A sabedoria de Salomo foi maior que a de todos os filhos do Oriente A sabedoria salomnica como propaganda memorial 75 2.1. Introduo 76
2.2. O reino de Salomo histria e memria 76 2.2.1. A sabedoria de Salomo no contexto do Antigo Oriente 79 2.2.2. Poltica e propaganda de Salomo, o Sbio 89 2.2.3. Da escola de escribas 96
2.3. Concluso 109
3. Disse Adonias... Sou eu que vou reinar! Desafios memria de Salomo em 1Rs 1-2 112 3.1. Introduo 113
3.2. A fonte relato sobre a sucesso de Davi 115 3.3. O nascimento de Salomo 121
3.4. O texto de 1Rs 1-2 124
3.4.1. Delimitao 124 3.4.2. Contedos 126
3.4.2.1. Como Salomo ascendeu ao trono: anlise de 1Rs 1 126 3.4.2.2. Os partidos 135 3.4.2.2.1. O partido de Adonias 135 3.4.2.2.2. O partido de Salomo 139 3.4.2.3. Da eliminao dos adversrios: anlise de 1Rs 2 144
3.4.3. Memrias crticas e uma outra historiografia 149 3.5. Concluso 195
4. Concluso 199
5. Referncias bibliogrficas 207
11
INTRODUO
O memravel rei Salomo passou para a histria como um sbio por excelncia.
Ainda na atualidade, a maioria das pessoas relaciona o seu nome com a sabedoria. A
narrativa do julgamento de Salomo (1Rs 3, 16-28) parece ter incutido nas pessoas uma
memria salmonica de rei sbio e justo. Mas a partir do momento que passamos a ter
conhecimento dos textos que se referem a Salomo, de como foram construdos e quais
as ideologias ali presentes (tanto as favorveis quanto as contrrias), surgem muitos
questionamentos, em especial, quando se busca metodicamente dissociar a histria da
memria. E, por fim, no ser essa exatamente a tarefa do historiador? Afinal, como nos
lembra Nora, com o nascimento do cuidado historiogrfico, a histria que se coloca
no dever de perseguir nela o que no ela, se descobrindo vtima da memria e se
esforando para dela se livrar.1
Seu reinado parece ter sido marcado por uma corte luxuosa e alianas realizadas
com os reinos vizinhos. No entanto, pode-se afirmar que este governou com mos de
ferro. Imps grande jugo sobre o povo, cobrando pesados impostos e instituindo a
corvia. O resultado de tanta opresso foi a diviso do estado, logo depois da sua morte,
em dois reinos: o reino do norte Israel e o reino do sul Jud. A histria do reinado de
Salomo indica uma situao paradoxal, a riqueza do estado e a pobreza do povo,
levando a um ponto extremo de opresso. O que intriga que a situao de revolta
interna ficou latente at a morte de Salomo. Isso demonstra que durante o seu governo
no foi possvel, sequer, tentar uma insurreio, consequentemente, se conclui que
Salomo imps sua hegemonia at o final de seu reinado. evidente que Salomo
buscou mecanismos para se manter no poder, inibindo qualquer tipo de manifestao
interna contra seu poderio.
O que se pretende estudar na histria de Israel, o perodo do governo de
Salomo, no sculo X a.C., pesquisando a lgica social, poltica e econmica, com o
objetivo de investigar de que forma a sabedoria e o poder foram utilizados durante o seu
1 NORA, Pierre. Les lieux de mmoire. Paris: Gallimard, 1984, p.xii.
12
reinado para ativar a(s) memria(s) que agora se faz(em) presente(s) nos textos bblicos.
Buscaremos responder s seguintes questes: qual a relao existente entre a sabedoria
atribuda a Salomo e o poder desse monarca? Quais os meios utilizados por Salomo
para justificar seu poder? Qual a estratgia que Salomo utilizou para garantir a
centralizao do poder? So questes como essas que podem nos ajudar a desestabilizar
a memria coletiva de Israel sobre Salomo para encaminhar, por fim, histria.
Acreditamos que a historiografia tradicional sobre Salomo, ainda encontra-se
muito dependente da figura idealizada de Salomo. Partindo do pressuposto que a
sabedoria de Salomo nada mais do que uma construo ideolgica, muito bem
elaborada por seus escribas, a fim de justificar seu poder, nossa proposta para esse
estudo buscar uma historiografia que no se firme na memria oficial, mas que siga
na direo contrria, a partir das memrias dos que no se deixaram influenciar pela
ideologia do poder.
As fontes para nossa pesquisa so textos, isto , memrias, sobre Salomo.
Escolheu-se um texto crtico a Salomo. Trata-se de 1Rs 1-2, texto que pertence a
chamada Histria da Sucesso de Davi, acreditando-se que a partir dele, consiga-se
produzir uma historiografia diferente da historiografia tradicional. Nossa hiptese de
que o autor da Histria da Sucesso de Davi era um escriba na corte de Jerusalm,
durante o reinado de Salomo. Se nossa hiptese estiver correta, poderemos ao final
dessa pesquisa comprovar nossa tese: a existncia de duas memrias conflitantes a
respeito de Salomo, dentro da Escola de Escribas da corte de Jerusalm no sculo X
a.C.
Assim, poderemos concluir que a ideologia salomnica encontrou resistncia no
seio da escola de escribas, praticamente o corao do poder. Dessa escola que saiam
os administradores, conselheiros e escritores. Os responsveis pelo sucesso das medidas
polticas e econmicas adotadas pelo rei, bem como, os construtores ideolgicos da
imagem do rei ideal, designado por Iahweh para reinar e agraciado com a sabedoria
divina.
13
Nesse sentido, a presente pesquisa tem como finalidade abordar alguns aspectos
importantes a respeito do reinado de Salomo. Pelo fato da pesquisa estar relacionada
com a historiografia, acredita-se ser importante tecer algumas consideraes tericas
acerca do uso dos textos bblicos como documentao para uma pesquisa historiogrfica.
Alm disso, no se pode deixar de lado a profunda reviso pela qual a histria de Israel
tem passado na atualidade. Uma grande parte da produo historiogrfica a respeito do
antigo Israel teve a Bblia como a principal fonte de pesquisa. Atualmente, muitos
autores questionam o uso da Bblia como fonte histrica, alguns at se perguntam se
realmente possvel escrever a histria de Israel.2 Talvez, por isso, caminhamos cada vez
mais para o estudo da memria, ou seja, aquela histria que no est ocupada com o
passado em si, mas somente com o passado da forma que relembrado.3 Aqui, outra
agenda se impe: analisar os elementos mticos na tradio e descobrir sua agenda
oculta.4
Ao eleger a Bblia como um documento vlido para a historiografia de Israel
preciso considerar que, se por um lado, a pertinncia histrica do texto bblico pode
consistir na coerncia com um sistema geral de crenas (coerncia interna do relato);
por outro, pode consistir na correspondncia do relato aos fatos.5 Dessa forma, pode-se
entender que um texto pode no corresponder fielmente aos fatos narrados, mas que
fornece informaes significativas a partir da memria que flui da narrativa no que
se refere ao poder daqueles que o fabricaram. Portanto, possvel afirmar que o texto
bblico ainda pode nos auxiliar na descrio da sociedade e da cultura do povo que o
produziu.6 O grande problema saber: como identificar tais memrias e como se deve
abord-las para se escrever a histria?
Segundo Ranke, um dos fundadores da histria cientfica na Alemanha, o
trabalho do historiador consistia na apresentao dos fatos puros, sem interpretaes:
se algum estabelecer de maneira competente um fato histrico estabeleceu-o para
2 Assim, por exemplo, DAVIES, Philip. In Search of Ancient Israel, 2 edio. Sheffield: Sheffield
Academic Press, 1995. 3 DAVIES, Philip. Memories of Ancient Israel: An Introduction to Biblical History. Louisville:
Westminster John Knox Press, 2008. 4 ASSMANN, Jan. Moses the Egyptian: the Memory of Egypt in Western Monotheism. Cambridge:
Harvard University Press, 1997, p.10. 5 FOX, Robin Lane. Bblia , verdade e fico. So Paulo: Companhia das Letras, p. 15. 6 Veja YERUSHALMI, Yosef. Zakhor: histria judaica e memria judaica. Rio de Janeiro: Imago, 1992,
p.37.
14
todos os investigadores interessados. 7 Contudo, levando-se em considerao que
impossvel alcanar os fatos puros deve-se procurar verificar a exatido dos fatos.
Ele deve procurar focalizar todos os fatos conhecidos, ou que possam ser conhecidos, e
que tenham alguma importncia para o tema em que est empenhado e para a
interpretao a que se props escreve Carr. 8 Se se considerar tais afirmaes pode-se
concluir que o fato histrico depende da interpretao do historiador. Para Hobsbawm,
ao se tomar conscincia de que a histria pode muitas vezes ser usada de forma
maldosa, como por exemplo, para legitimar interesses polticos, imprescindvel
estabelecer a diferena entre fato e fico,9 o que pode facilmente nos remeter
diferena igualmente insistente da escola francesa entre histria e memria.10
Com relao identificao dos fatos histricos na Bblia, alm do uso da
arqueologia e da histria, possvel lanar mo da anlise dos diversos gneros
literrios contidos no Antigo Testamento, que podem ajudar o historiador a discernir
entre fato e fico, histria e memria. Para tanto, preciso ter conhecimento do
processo de formao do texto bblico e ter em mente que qualquer tipo de documento
poder refletir apenas uma viso parcial do fato. Segundo Carr, nenhum documento
pode nos dizer mais do que aquilo que o autor pensava [...] ou talvez apenas o que ele
queria que os outros pensassem que ele pensava, ou mesmo apenas o que ele prprio
pensava pensar.11 Da a necessidade de conhecer o lugar social preciso em que a obra
foi produzida.12
Alm disso, preciso considerar que a histria de Israel no pode ser entendida
tendo como base conceitos ocidentais, especialmente os que os gregos e romanos
deixaram como legado para a definio do termo historiografia. A utilizao de um
texto bblico como fonte para uma pesquisa historiogrfica implica em reconhecer que
no possvel recuperar o passado como ele realmente aconteceu, mas interpretar a
7 SCHAFF, Adam. Os fatos histricos e a sua seleo: histria e verdade. Paulo: Martins Fontes,
1978, p. 204. 8 CARR, Edward H. Que histria?, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, p. 27. 9 HOBSBAWM, Eric. Sobre histria. Ensaios. So Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 18. 10
Assim, sobretudo, LE GOFF, Jacques. Histria e memria. Campinas: Editora da Unicamp, 1990,
p.423-478. 11 CARR, Edward H. Que histria?, p. 27. 12
Confira SCHWANTES, Milton. A origem social dos textos. Estudos Bblicos, Petrpolis, Vozes, n.16, 1988, p.31-37.
15
ideologia dos grupos que escreveram a respeito de determinada poca. Nesse caso, se
buscar a memria de Salomo, sua construo ideolgica, seus usos e abusos. No se
pode buscar nos textos bblicos uma fonte direta e positivista para a pesquisa
historiogrfica, mas como construo da memria de uma poca, de um acontecimento
ou de um personagem.
Quando se estuda a construo da memria preciso levar em considerao a
pluralidade por parte das fontes de que se est investigando e os possveis fatores que
contriburam para a formao da identidade do indivduo ou grupo que reflete sua
memria. preciso reconhecer que a memria pode ter vrias faces, vrias verdades,
mostrando a seleo de fatos que convenham ao narrador. Portanto, prudente
selecionar os dados disponveis e procurar entrelaar os pontos em comum buscando
dar mais clareza ao texto. No cabe aqui, nem o intuito fazer uma explanao
minuciosa sobre o desenvolvimento do estudo a respeito da memria e sua relao com
o estudo da histria. Apenas apresentar-se- de forma bastante sucinta algumas
consideraes a respeito do estudo da memria que acreditamos nos ajudar no
desenvolvimento dessa pesquisa.
Para Halbwachs, a memria reconstruo de um acontecimento passado tendo
como ponto de partida um conjunto de lembranas que podem ser apenas do indivduo,
do grupo social ao qual ele pertence ou mesmo de outro grupo social. Mesmo admitindo
que possa haver uma memria individual, Halbwachs acredita que de qualquer maneira
ela sofreria algum tipo de interveno do coletivo. Portanto, para se ter maior segurana
para construir a memria preciso resgatar e analisar estas lembranas de maneira que
coincidam com a maioria das pessoas.13
A memria de cada pessoa est atrelada, pois, memria do grupo e a esta
ltima ligada tradio, isto , a memria coletiva de cada sociedade. Dessa forma, a
explicao tradicional de que a memria reflete o que aconteceu verdadeiramente e a
histria simplesmente reproduz a memria se apresenta de maneira muito simplista. Na
13 HALBWACHS, Maurice. A memria coletiva. So Paulo: Editora Vrtice, 1990, 280p.
16
verdade, o estudo acadmico da memria coletiva oferece uma importante ajuda
intelectual para o entendimento das representaes bblicas sobre o passado de Israel.14
Smith discute a questo dos escritos bblicos como produtos de seus prprios
autores em sua prpria poca; em outras palavras, como os trabalhos bblicos
constituem a memria coletiva de seus autores.15 Smith aplica as teses daqueles que ele
denomina de historiadores da memria nos escritos bblicos. A partir do pensamento
desses estudiosos, Smith elenca sete pontos que podem nortear o estudo da memria
cultural do antigo Israel:
1) A Bblia no s registra fato ou fico, histria ou literatura (geralmente
distines modernas de considervel valor e dificuldade). Em vez disso,
muitos textos bblicos poderiam ser caracterizados melhor como constituindo
o registro da memria cultural de Israel. 16 Neste tpico, apoiando-se nas
teses de Halbwachs e Nora, Smith considera que a principal finalidade de
grande parte dos textos bblicos o ensinamento. Os autores dos textos
bblicos estavam mais preocupados em recordar o passado para que os erros e
acertos servissem de instruo para as geraes presente e futura. Mas essa
constatao no descarta os elementos histricos contidos nesses relatos.
Smith afirma que houve uma significativa mudana de paradigma ao
considerar a Bblia em geral, no como o locus do registro histrico de Israel
(ou no), mas como o registro parcial das memrias culturais de Israel sobre
seu passado e que contm uma quantidade de informao acuradamente
histrica. 17 Podem ser citados alguns exemplos como os Salmos 78, 105,
106, xodo 12-13 e com certeza incluir a Histria Deuteronomista (Josu-
2Reis), que como vimos anteriormente foi elaborada com a inteno de
entender o presente buscando as repostas no passado de Israel/Jud.
14 SMITH, Mark S. O memorial de Deus Histria, memria e a experincia do divino no Antigo Israel.
So Paulo: Paulus, 2006, p.183. 15 SMITH, Mark S. O memorial de Deus, p.37. 16 SMITH, Mark S. O memorial de Deus, p.191. 17 SMITH, Mark S. O memorial de Deus, p.191.
17
2) Reconhecer o papel da memria de nossas prprias tradies religiosas que
tem influenciado, no somente o interesse inicial dos especialistas bblicos
em entrar no campo dos estudos bblicos, mas tambm nosso interesse e
nossos horizontes, bem como nossas perguntas e nossas respostas. 18
3) Analisar o papel do contexto social e do poder dos grupos ao moldarem
suas memrias coletivas. 19 A esse respeito, Smith afirma que muito se tem
escrito a respeito do poder social na produo dos textos, deixando de
analisar o papel dos grupos sociais e sua influncia na produo das
memrias culturais do Israel bblico. Com base nas teses de Halbwachs e
Aris, Smith afirma a importncia da famlia em moldar a memria e sobre
a implicao da monarquia emergente na submerso e imerso das memrias
coletivas.20 Ele faz uma comparao entre a memria dos santurios
familiares e os lugares altos dos cls, o sacerdcio de vrios santurios e o
sacerdcio nomeado em santurios reais. Enfatizando o impacto do
sacerdcio e da realeza de Jerusalm no pr e no ps-exlio ao gerarem
amplas narrativas sociais que submergem e co-optam as memrias coletivas
da famlia e da linhagem sacerdotal no-jerosolimita.21
4) Neste ponto, Smith trata da importncia de analisar o papel que os locais
fsicos reais tiveram ao moldar a memria cultural. 22 Pode-se citar o
exemplo de Davi, no livro 2Samuel, ele apresentado pela histria oficial
com uma figura ideal e sua memria com o passar do tempo foi se tornando
cada vez mais gloriosa. Exceo a histria de seu adultrio com Bateseba,
que pode ter sido escrita por aqueles que no aprovavam a memria ideal e
oficial de Davi. Smith conclui que a maior parte dos personagens bblicos,
so sacramentados em histrias oficiais no simplesmente de acordo com os
18 SMITH, Mark S., O memorial de Deus, p.192. 19 SMITH, Mark S., O memorial de Deus, p.193. 20 SMITH, Mark S., O memorial de Deus, p.193. 21 SMITH, Mark S., O memorial de Deus, p.193. 22 SMITH, Mark S., O memorial de Deus, p.194.
18
fatos histricos, mas de acordo com os locais onde suas reputaes foram
sacramentadas. 23
5) Smith no concorda, ao menos, no caso do antigo Israel, com a tese de Nora
quanto ao fato de o surgimento da escrita e das fontes escritas da histria
marcar uma transio que afasta a considerao da memria oral como forma
de prestgio cultural de recordao. 24 muito provvel que em Israel a
transmisso oral continuou como um expressivo elemento na memria social
de Israel por um perodo maior. Foi a partir do sculo VIII a.C. que a
memria cultural perdeu seu prestgio. Nessa poca, surge uma grande
quantidade de material escrito, Smith cita as chamadas fontes Javista e
Elosta; o contexto neo-Assrio alegado pelo Deuteronmio 12-26; as
redaes alegadas pela Histria Deuteronomista (Josu-2Reis) durante os
reinados de Ezequias e Josias; as primeiras obras profticas separadas no
sculo VIII a.C.; uma redao do sculo VII a.C. alegada a Isaas; e a
redao de Provrbios 25-29 pelos homens de Ezequias (Provrbios
25,1). 25
6) Nesse tpico, Smith discorre sobre a importncia da tragdia social na
produo da escrita sobre o passado.26 Essa prtica de recorrer s grandes
tragdias para orientar o futuro clara nas narrativas bblicas, como j se
constatou anteriormente. Os perodos de maior produo de escritos
histricos foram aqueles nos quais Israel passou por perdas irreparveis. O
sculo VII a.C. com a queda do reino do Norte (722), marco que levou ao
incio da Histria Deuteronomista, e, provavelmente, uma parte da narrativa
do Pentateuco. Posteriormente, a queda de Jerusalm e a destruio do
Templo em 586 a.C., foram os episdios que motivaram o surgimento de
escritos como os livros de Esdras-Neemias, Crnicas e Ester e uma posterior
redao da Histria Deuteronomista. Smith afirma que escrever sobre o
23 SMITH, Mark S. O memorial de Deus, p.194. 24 SMITH, Mark S. O memorial de Deus, p.196. 25 SMITH, Mark S. O memorial de Deus, p.197. 26 SMITH, Mark S. O memorial de Deus, p.197.
19
passado captar o movimento atravs das perdas do presente em direo ao
futuro. 27
7) Smith utiliza-se da tese de Hervieu-Lger sobre a destruio e a re-
estruturao da memria tradicional, a fim de aplic-la por analogia religio
israelita. Para isso, Smith faz uso das conexes defendidas por Hervieu-Lger:
a natureza conflitante da memria coletiva; os esforos em homogeneizar a
memria coletiva; e o papel da fraternidade eletiva. 28 Ele analisa da seguinte
forma: a religio tradicional a religio dos cls, com lugares altos e
santurios locais; essa tradio acaba por submergir com o surgimento do
Estado e dos santurios reais, isto , a ascenso da monarquia. Especialmente
durante o perodo do oitavo ao sexto sculo acontece um recuo dessa religio
tradicional devido perda de patrimnios locais, das linhagens e dos
santurios no-reais. Esta perda acarreta o aparecimento de novas formas de
fraternidade eletiva, que nesse caso caracterizado pelo movimento
proftico e talvez sacerdotais e deuteronmicos. 29 No caso da transmisso
oral da memria pode ocorrer que a tradio lembra apenas do que til e
esquece o que no se usa mais. Quanto transmisso da memria Smith
escreve que uma vez que a memria escrita transferida para um corpo de
textos tradicionais, a tradio no parece jogar fora o que ela esquece; ao invs
disso, ela tende a reescrever o que no lembrado.30
Nesta perspectiva, a meu ver, deve-se reconsiderar o mtodo histrico crtico
para uma avaliao adequada do valor e do sentido dos textos bblicos, fonte principal
para qualquer avaliao historiogrfica dos tempos memorveis de Salomo. Destaco,
primeiramente, que o mtodo histrico-crtico constitui-se de vrios mtodos de anlise
de um determinado texto. As etapas essenciais do mtodo so: traduo e crtica textual,
crtica literria, histria traditiva, histria redacional, histria da forma, histria
27 SMITH, Mark S., O memorial de Deus, p.198. 28 SMITH, Mark S. O memorial de Deus, p.198. 29 SMITH, Mark S. O memorial de Deus, p.198. 30 SMITH, Mark S. O memorial de Deus, p.199.
20
temtica, anlise de detalhes, contedo teolgico e inteno, conforme Mueller.31 Ser
tambm empregado o mtodo da historiografia comparada32, utilizando-se de material
extra bblico, referentes ao Egito e a Mesopotmia, para que de posse dessas
informaes, se possa, por analogia, compreender alguns aspectos da memria
historiogrfica de Israel nos tempos de Salomo.
Os primeiros onze captulos dos livros de Reis narram a histria do reinado de
Salomo filho do rei Davi e Bate-Seba. Os captulos 1-2 apresentam a narrativa de
como Salomo sucedeu seu pai e a forma como ele se estabeleceu definitivamente no
trono de Israel e Jud no sculo X a.C. Os captulos seguintes (3-10) trazem os grandes
feitos de Salomo, exaltando sua sabedoria, suas construes, suas riquezas e sua fama
internacional. Terminando com os pontos negativos de seu reinado relatados no captulo
11.
Assim, possvel constatar que nesse conjunto de captulos existem pelo menos
duas partes bem distintas. Enquanto os captulos 1-2 trazem crtica severa a Salomo
demonstrando que o autor possua verdadeira averso por esse monarca, os outros
captulos, com exceo do captulo 11, evidenciam que o autor ou autores procurou
enaltecer Salomo como o mais sbio dos reis que j existiram. Alm disso,
estilisticamente so bastante diferentes. Os dois primeiros captulos revelam histria
intrigante contada com riqueza de detalhes, revelando aos poucos a inteno e o papel
de cada personagem de uma histria repleta de interesses, jogos de poder e mentiras. O
que no ocorre nos demais captulos, os quais apresentam apenas as narrativas dos
feitos de Salomo. A partir de pequena anlise j possvel se perceber que essas duas
partes que compem 1Rs 1-11 no pertencem mesma fonte, ou para ressignificar a
terminologia, no pertencem a uma mesma memria.
31 MUELLER, Enio R. O Mtodo Histrico-Crtico: uma avaliao, In: FEE, Gordon / STUART,
Douglas, Entendes o que Ls? So Paulo: Vida Nova, 1984, p.256-260. 32
Confira BARROS, Jos DAssuno. Histria Comparada: Atualidade e Origens de um campo disciplinar, In: Histria Revista, Goinia: Revista da Faculdade de Histria do Programa de Ps-
Graduao de Histria da Universidade Federal de Goinia, 2007, v.12, n.2, p. 279-315. Para uma
abordagem comparada prpria ao mundo do Antigo Oriente e Israel, veja os passos metodolgicos de
MALAMAT, Abraham. Mari and the Bible. Leiden: Brill, 1998, p.1-10.
21
A histria dos reis de Israel e Jud foram narradas nos livros dos Reis (1-2Rs),
abrangendo um perodo aproximado de 400 anos (970 a 561 a.C.), iniciando com a
morte de Davi e terminando com o exlio na Babilnia. Os livros dos reis (1-2 Reis)
formam juntamente com os livros de Josu, Juzes e 1-2 Samuel o bloco que se chama
de Profetas Anteriores. Esses livros esto intimamente ligados entre si e apresentam, em
parte, a mesma teologia e estilo do Deuteronmio, formando com este um corpo
literrio homogneo.
medida que se aprofunda na leitura dos livros dos Reis possivel perceber as
semelhanas com o livro do Deuteronmio. Pode-se citar dois dos principais traos
peculiares entre os dois livros, o estilo literrio, como a utilizao de uma frmula fixa
para a apresentao dos reis e a fraseologia usada em determinados discursos e
reflexes.33 Tambm no sentido teolgico, 1-2 Reis apresentam afinidade com as ideias
centrais do Deuteronmio, como a adorao exclusiva a Iahweh, a importncia do
templo como nico santurio legtimo e o papel central da Tor.
Baseando-se nesses e em outros aspectos literrios alguns estudiosos, sendo que
o primeiro deles foi Noth, formularam a hiptese de que os livros de Josu, Juzes,
Samuel e Reis faziam parte de uma grande obra histrica. Como os autores dessa obra
inspiraram-se nos princpios teolgicos do Deuteronmio, convencionou-se cham-la de
Histria Deuteronomista. Seu contedo compreende desde a morte de Moiss at o
indulto concedido ao rei Jeconias em sua priso na Babilnia.
O processo de formao dos livros dos reis ainda est em discusso entre os
especialistas, mas mesmo assim pode-se afirmar que por enquanto existe coincidncia
fundamental entre as vrias teorias, o fato de que foi uma obra composta durante o
exlio com a finalidade de explicar teologicamente (e/ou memoravelmente?) a
expatriao, a destruio do templo e a queda de Jerusalm. O exlio na Babilnia
trouxe consigo inmeros questionamentos a respeito das promessas e alianas
estabelecidas entre Iahweh e Israel. Era preciso entender o que havia acontecido e
principalmente sobreviver ao desastre. Os exilados foram buscar as respostas no
33
Os elementos fraseolgicos foram destacados exemplarmente por WEINFELD, Moshe. Deuteronomy and the Deuteronomic School. Winona Lake: Eisenbrauns, 1992, p.320-359.
22
passado e a partir da reconstruram seus paradigmas. Pode-se entender os captulos 1Rs
3-11 nessa perspectiva.
Os autores deuteronomistas fizeram uso de diversas fontes para compor a sua
obra histrica: as fontes histricas como, por exemplo, os anais de Salomo (1Rs
11,41); os anais dos reis de Israel (1Rs 14,19); os anais dos reis de Jud 1Rs (14,29); as
listas de funcionrios e de cargos militares (2Sm 20,23-26; 1Rs 4); atas oficiais (1Rs 6
7; 9,15-25); as fontes histricas no oficiais como a histria da ascenso de Davi ao
trono (1Sm 16-2Sm 5), a histria da sucesso ao trono de Davi (2Sm 7-20; 1Rs 1-2), a
histria do cisma (1Rs 12-14), narrativas cujos primeiros autores foram pessoas que
viveram muito prximas desses acontecimentos; as fontes populares transmitidas ao
longo do tempo que incluem relatos e tradies; as fontes profticas como os trs ciclos
de Elias (1Rs 17-2Rs 1), de Eliseu (2Rs 2-8) e de Isaas (2Rs 18-20); algumas sees
dedicadas a Nat (2Sm 7); As de Silo (1Rs 11,14), entre outras.
Embora a principal finalidade da Histria Deuteronomista tenha sido de ordem
teolgica no se pode negar que se trata tambm de uma obra historiogrfica. Konings
escreve que:
histria como cincia, com documentos e verificaes metdicas algo que
surgiu com a Modernidade, com a imprensa, as descobertas, as grandes
universidades a partir do sculo XVII. Na Antiguidade, histria o que hoje
chamamos de crnica, relato, no necessariamente cientificamente
estabelecido. Mais que trazer fatos constatados e verificados importava a arte
de bem contar a histria, de modo que fosse facilmente gravada na memria e
conhecida por todos 34
Segundo Smith:
a histria da composio textual de todos estes assim chamados livros
histricos pode, na verdade, ter variado um pouco antes de sua amalgamao
maior na Histria Deuteronomista. Alm disso, a partir de uma anlise crtica
destes trabalhos, pode parecer que eles passaram, no de um estgio anterior de
34KONINGS, Johan. A historiografia de Israel nos Livros Histricos, em: Estudos Bblicos. Petrpolis: Editora Vozes, 2001, n.71, p.9.
23
tradio oral para uma posterior fase escrita, mas sim por vrios estgios, com
verses orais e escritas, com uma influenciando potencialmente a outra. Chegar
histria nos assim chamados trabalhos histricos no tarefa simples.
Certamente, seria errado entender estes trabalhos como histria, se
entendssemos por histria uma apresentao do passado sem uma reflexo
crtica da natureza e da qualidade das fontes usadas.35
dentro desta Histria Deuteronomista que encontramos as narrativas a cerca do
perodo salomnico. Segundo tal memria, Salomo foi o terceiro e o ltimo dos
monarcas que governaram os reinos unidos de Israel e Jud. O primeiro deles foi Saul.
Durante seu governo se deu a passagem do sistema tribal para o sistema estatal. Pode-se
considerar o perodo desse rei como intermedirio entre a sociedade tribal e a sociedade
monrquica. Alguns autores preferem classific-lo como o ltimo dos juzes. Sob seu
governo no ocorreram grandes mudanas, visto que sua principal preocupao estava
voltada para a defesa dos territrios tribais.
Ento, foi sob o reinado de Davi que a monarquia comeou a se consolidar. O
modelo adotado foi o das naes vizinhas, principalmente dos reinos das cidades-estado
de Cana. Davi conseguiu derrotar os inimigos e empreendeu campanhas para a
expanso do territrio de Israel. Resolvidos os problemas externos era o momento de
cuidar da organizao interna do Estado. Para isso, Davi tomou algumas medidas
importantes em direo consolidao do sistema monrquico. O rei era da tribo de
Jud e durante sete anos governou em Hebrom. Mas, como havia certa rivalidade entre
as tribos do norte e as do sul, Davi precisava de uma capital que estivesse mais
centralizada geograficamente e que tambm se constitusse num territrio neutro sem
influncias dos dois lados. Conquistou uma cidade jebusita chamada Jerusalm, que
posteriormente ficou tambm conhecida como a cidade de Davi.
O texto 2Sm 8,17-18 traz alguns nomes importantes na administrao de Davi,
dois deles eram jebuseus, o sacerdote Sadoc e o comandante militar Banaas, os quais
foram incorporados ao quadro administrativo. Provavelmente, Sadoc passou a ser um
35
SMITH, Mark S., O memorial de Deus Histria, memria e a experincia do divino no Antigo Israel, So Paulo, Paulus, 2006, p.33.
24
poderoso e importante aliado de Davi, sendo que nesse acordo entre eles, Davi ficaria
com o poder poltico e Sadoc com o poder religioso. Certamente, Davi aproveitou o
modelo monrquico j existente em Jerusalm e empregou pessoas influentes em sua
administrao.
Outra medida importante tomada por Davi foi sua iniciativa de transladar a Arca
da Aliana para Jerusalm, aps fixar a nova capital. Isto significou em primeiro lugar a
retomada das relaes entre a monarquia e o sacerdcio, que estavam estremecidas
desde os tempos de Saul. Em segundo lugar, a Arca dentro de Jerusalm passa a ser
vinculada ao rei, legitimando religiosamente a monarquia. No foi somente na questo
estrutural e administrativa que Davi deixou se influenciar pelos povos vizinhos, mas
tambm no que se refere instituio de uma dinastia davdica e a aplicao da
ideologia da filiao divina dos reis. Dessa forma o rei passa a ser o intermedirio entre
Deus e o povo, funo muito bem justificada por uma suposta aliana eterna entre Davi
e Iahweh, atravs da qual o poder estava garantido nas mos de seus descendentes. Essa
aliana passa a ser o centro da ideologia real, incutindo na mente do povo que a sua
dinastia fora escolhida por Deus.
Davi possua um aparato militar constitudo pelo exrcito de Israel, sob o
comando do general Joab e um grupo de mercenrios, os feleteus e os cereteus, cujo
comandante era Banaas; a respeito desses homens Dreher escreve que o grupo dos
trinta seria um squito composto por Davi, para sua proteo, para seu aconselhamento
e para representaes. Comporia uma guarda pessoal diferenciada da guarda real,
comandada por Benaia, um dos Trinta. 36 Esse grupo de mais ou menos trinta homens
teria se tornado uma instituio em Israel; alguns autores defendem a ideia de que teria
sido inspirada numa instituio egpcia da qual se tem notcia atravs de uma inscrio
tumular tebana, que faz meno a um bando dos trinta a acompanhar Ramss II,
compreendendo-o como um grupo de soldados de elite, participantes do squito real.37
A respeito da burocracia estatal h duas listas de funcionrios. Uma em 2Sm
8,16-18 Joab, filho de Srvia, comandava o exrcito. Josaf, filho de Ailud, era o 36 DREHER, Carlos A. A constituio dos exrcitos no Reino de Israel. So Paulo: Paulus, 2002, p.59. 37 DREHER, Carlos A. A constituio dos exrcitos no Reino de Israel, p.58.
25
arauto. Sadoc e Abiatar, filhos de Aquimelec, filho de Aquitob, eram sacerdotes; Saraas
era secretrio; Banaas, filho de Joiada, comandava os cereteus e os feleteus. E a outra
em 2Sm 20,23-26 Joab era o comandante supremo do exrcito; Banaa, filho de Joiada,
comandava os cereteus e os feleteus; Adoram controlava a corvia; Josaf, filho de
Ailud, era o arauto; Siva era secretrio; Sadoc e Abiatar eram sacerdotes. Alm desses,
tambm Ira, o jairita, era sacerdote de Davi. Pode-se perceber a criao de um novo
cargo o chefe da corvia assumido por Adoram. Isso significa que Davi recrutou
trabalhadores para servios gratuitos para o estado.
Salomo assumiu o trono de Israel e Jud quando seu pai ainda estava vivo. Foi
co-regente de Davi. Esse fato ocorreu devido formao de dois partidos na corte onde
lutavam pela sucesso do trono, visto que at ento no havia nenhuma legislao a
respeito. Um partido defendia o direito de Adonias, o filho mais velho de Davi; era
formado por Joab, general do exrcito e pelo sacerdote Abiatar. O outro favorvel a
Salomo era composto por Nat, Sadoc, Banaas e os soldados da guarda pessoal de
Davi.
O autor da Histria da Sucesso de Davi (1Rs 2, 1-46) narra com detalhes como
Salomo livrou-se de todos os seus inimigos. Derrotado os oponentes, Salomo pode
reinar absoluto sobre os reinos de Israel e Jud. A tradio no nos conta que Salomo
tenha empreendido alguma ao blica e certamente no interveio nenhuma guerra.
Procurou centralizar seus projetos de governo na poltica interna. Dedicou construes
tanto em Jerusalm, como em outras cidades do reino. Tambm as questes
administrativas e burocrticas sofreram mudanas significativas em direo
consolidao da monarquia. Com a diviso do territrio de Israel em doze distritos ele
criou uma eficiente estrutura para a arrecadao de impostos. Alm disso, desenvolveu
um extraordinrio sistema de trabalhos forados e obrigatrios.
Salomo procurou manter relaes amigveis com as naes vizinhas,
estabelecendo com elas acordos de paz e tratados comerciais. evidente que Salomo
pretendeu igualar-se aos monarcas do Antigo Oriente e deixou se influenciar pelo
modelo de Estado desses pases, principalmente do Egito. Essa complexa estrutura
administrativa, poltica e econmica que Salomo instituiu em Israel e Jud precisava de
26
uma base slida a fim de conseguir os recursos necessrios para sua manuteno,
desenvolvimento e principalmente a centralizao do poder. Salomo optou por
fundamentar seu governo na sabedoria, tanto que at hoje ele lembrado como um
sbio por excelncia.
A partir da tenso exposta acima entre as memrias bblicas e a escrita da
histria, nosso objetivo, no primeiro captulo obter uma viso geral do reinado de
Salomo em Israel e Jud no sculo X a.C. Para realizar tal estudo escolhemos nos
apoiar na historiografia de Donner. No incio do captulo faremos um breve comentrio
a respeito da obra Histria de Israel e dos povos vizinhos de Donner. Em seguida
buscaremos enfocar os principais aspectos do reinado de Salomo, tendo como base os
escritos de Donner, mas tambm levando em considerao a opinio de outros autores.
Optamos em seguir sequncia dos assuntos proposta por Donner. Finalizando,
buscaremos entender como todas as mudanas ocorridas durante o reinado de Salomo
atingiram a vida da populao rural. Seguimos aqui, portanto, uma narrao
historiogrfica tradicional com o intuito principal de avaliar o quo dependente tal
historiografia da memria bblica.
No segundo captulo, desejamos desfazer o novelo da memria bblica no intuito
de dela se livrar (Nora)38. Este captulo tem como principal objetivo estabelecer a
relao existente entre sabedoria e poder durante o reinado de Salomo em Jud e Israel
no sculo X a.C.. O rei Salomo passou para a histria como um sbio por excelncia.
Seu reinado foi marcado por grandes construes; muitos empreendimentos comerciais;
uma corte luxuosa e alianas realizadas com os reinos vizinhos. No entanto, poderemos
afirmar que estamos aqui diante de memrias fortemente financiadas pelo prprio
complexo palaciano. Localizar sociologicamente tais memrias elogiosas de Salomo
no interior da escola de escribas ser importante para responder algumas questes
relativas ao poder e sabedoria: qual a relao existente entre a sabedoria atribuda a
Salomo e o poder desse monarca? Quais os meios utilizados por Salomo para
justificar seu poder? Qual a estratgia que Salomo utilizou para garantir a centralizao
do poder?
38
NORA, Pierre. Les lieux de mmoire. Paris: Gallimard, 1984, p.xii.
27
No terceiro captulo, queremos compreender como se deu a ascenso de
Salomo ao trono de Israel e Jud e como ele se consolidou no poder. Acreditamos que
as narrativas que compem 1Rs 1-2 trazem os elementos necessrios para que possamos
responder a essas questes, considerando que a inteno do autor da Histria da
Sucesso de Davi no foi narrar a histria de Davi, ao contrrio, seu principal objetivo
foi apontar os jogos de interesse e as ideologias existentes na corte de Jerusalm, bem
como os expedientes utilizados por Salomo a fim de se consolidar no poder. No final
do captulo esperamos chegar concluso quanto autoria da Histria da Sucesso de
Davi. Como possvel ainda termos acesso a uma memria conflitiva em relao ao
governo salomnico? Qual teria sido seu lugar sociolgico preciso? A escola de escribas
e a sabedoria podem tambm ter criado memria contestatria s grandes organizaes?
Ao recobrar tal memria dissidente, caminharemos, por fim, para uma historiografia no
retificadora da memria facilmente elogiosa.
Eis o tempo de rever as duas faces de Salomo...
28
CAPTULO I
O PESO DO OURO QUE CHEGAVA PARA SALOMO
CONTEXTO HISTRICO-ARQUEOLGICO DE SALOMO NO DEBATE HISTORIOGRFICO
29
1.1. Introduo
Neste primeiro captulo, o principal objetivo obter uma viso geral do reinado
de Salomo em Israel e Jud no sculo X a.C. Para realizar tal estudo, escolheu-se
apoiar em diversas obras historiogrficas: Historia y Poder - Comentario sobre el Libro
de Reyes, de Adolfo Ham, Histria de Israel: dos primrdios at Bar Kochba e de
Theodor Herzl at nossos dias, de Antonius H. J. Gunneweg, Histria Poltica de Israel
desde as origens at Alexandre Magno, de Henri Cazelles, A Histria de Israel a partir
dos pobres, de Jorge Pixley, Nueva Historia de Israel De los Orgenes a Bar Kochba,
de J. Alberto Soggin, Para alm da Bblia - Histria antiga de Israel, de Mario Liverani,
Historia de Israel, de Martin Noth, Historia de Israel en la poca del Antiguo
Testamento, de Siegfried Herrmann, Histria de Israel, de John Bright e Histria de
Israel e dos povos vizinhos, de Herbert Donner. Optou-se por privilegiar a obra de
Herbert Donner, por ser representativo de uma ala historiogrfica mais usual - a de
reconstruir o real perodo de Salomo.
Com base nas consideraes que se fez na introduo desse trabalho a respeito
da historiografia com relao histria de Israel e levando-se em conta que o mtodo
escolhido foi o histrico-crtico, acredita-se que Donner seria um excelente referencial
terico, afinal sua proposta para uma anlise do texto bblico dispensa o pressuposto
teolgico de que Israel o povo escolhido e de que toda sua histria se deve s
manifestaes divinas. Como o prprio nome do livro aponta, a histria de Israel deve
estar inserida na histria dos povos vizinhos do Antigo Oriente Mdio. Na pesquisa de
Donner, os textos bblicos so analisados como qualquer outra fonte. Segundo o autor,
desde a explorao das culturas do Oriente Antigo vizinhas de Israel, estamos na
situao favorvel de possuir, alm das fontes de origem israelitas, tambm material
30
extra-israelita para a histria de Israel: material cujo volume aumenta ano a ano. Essa
circunstncia permite que se olhe para a histria de Israel a partir de dentro e de fora. 39
No incio do captulo, far-se- um breve comentrio a respeito da obra Histria
de Israel e dos povos vizinhos de Donner. Em seguida, se buscar enfocar os
principais aspectos do reinado de Salomo, tendo como base a obra de Donner, mas
tambm levando em considerao a opinio dos autores citados acima.
Optou-se em seguir a sequncia dos assuntos proposta por Donner. Assim ser
analisado as relaes internacionais, os tratados comerciais e as alianas feitas por
Salomo, uma delas selada pelo casamento do rei com uma princesa egpcia, bem como
sua poltica defensiva com relao aos possveis inimigos externos o que resultou na
perda de parte do territrio conquista por Davi, depois das rebelies de Hadad e Rezom,
destacando as consequncias posteriores a Salomo.
Quanto poltica interna sero tratados assuntos como as construes de
Salomo, incluindo a construo do templo e seu significado dentro de Israel. A reforma
poltica e administrativa imposta por ele: a diviso do territrio de Israel em doze
distritos e o sistema de arrecadao de impostos; a ampliao da corveia; a
reorganizao do exrcito e a ampliao do gabinete administrativo com a criao de
novos cargos.
Finalizando, buscar-se- entender como todas as mudanas ocorridas durante o
reinado de Salomo atingiu a vida da populao rural.
1.2. A historiografia tradicional sobre Salomo
39 DONNER, Herbert. Histria de Israel e dos povos vizinhos dos primrdios at a formao do
Estado, v.1. So Leopoldo: Sinodal, 1997, p. 260.
31
Donner inicia a obra apresentando os pressupostos do seu estudo. Entende que a
histria de Israel deve ser apresentada a partir das fontes, da o nome do seu primeiro
captulo. Faz ento algumas reflexes sobre o acervo de fontes e sobre a interpretao
do material. Lamenta o fato de o Antigo Testamento ser a fonte principal e, em alguns
casos, a nica fonte, mas afirma que o tratamento dado a ela o mesmo utilizado para
qualquer documento da antiguidade. Assim, trabalha com a interpretao histrico-
crtica das fontes. Segundo Donner, para a histria de Israel o Antigo Testamento no
entra em cogitao a no ser como coletnea de documentos histricos de carter
diferenciado e de valor muito diverso. 40
O autor classifica dois tipos de fontes: o material literrio e material
arqueolgico. Quanto ao material literrio, comemora o fato de, a cada ano, estar
aumentando o material extra-israelita, atravs da explorao de culturas de povos do
Oriente Antigo. Assim a histria de Israel olhada tambm a partir de fora. Donner
classifica esse material por regies: Egito, Mesopotmia, Sria e Palestina. Nesse
trabalho historiogrfico, os documentos contemporneos so preferidos a outros que se
refiram a acontecimentos e pessoas da histria a partir de uma distncia cronolgica
mais ou menos grande. Crtica textual, crtica literria, crtica da forma e do gnero,
histria das tradies, histria da redao e histria da interpretao so os mtodos e
procedimentos de pesquisa defendidos pelo autor, que afirma que s atravs deles as
fontes de fato comeam a ser visualizadas e se tornam utilizveis.
O livro ainda cita a dificuldade de se obter documentos histricos de um povo
que viveu como nmade: Israel um povo no-autctone. 41 Sob esse ponto de vista,
o autor entende que Israel revestiu as suas origens, a sua pr-histria e a sua histria
primitiva com o manto da saga e estas no podem ser consideradas como documentos
histricos primrios. Donner menciona autores que atravs de seus estudos tiveram uma
contribuio especial para a pesquisa como Hermann Gunkel e Hugo Gressmann;
depois vieram Martin Noth e Albrecht Alt, destacando a contribuio de Noth que
enriqueceu a pesquisa histrico-crtica com a abordagem histrico-traditiva. Donner
conclui que a consequncia disso foi uma rigorosa desmontagem do quadro tradicional
40 DONNER, Herbert. Histria de Israel, p. 18. 41 DONNER, Herbert. Histria de Israel, p. 25.
32
transmitido pelo Pentateuco, Josu e Juzes. Com relao crtica das formas, o autor
concorda com as crticas contrrias ao mtodo adotado por Alt e Noth, explicando que
somente o uso da metodologia da probabilidade interna na anlise das tradies do
Antigo Testamento no seria suficiente para a pesquisa das fontes literrias. O ideal a
combinao da probabilidade interna com a evidncia externa, que nada mais do
que levar em considerao os dados externos objetivos, como por exemplo, a
arqueologia.
Por fim, apresenta as fontes arqueolgicas. Depois de conceitu-las, menciona os
seus dois mtodos de trabalho: atravs das escavaes e da explorao arqueolgica de
superfcie. Diz que a arqueologia bblica surgiu no sculo XIX a partir do interesse pela
Bblia e que faz uso dos mtodos acima citados. Ele faz um alerta com relao
arqueologia bblica que, em sua opinio, os resultados da pesquisa arqueolgica nas
terras bblicas so muitas vezes usados erroneamente para confirmar as informaes da
Bblia. Donner conclui argumentando que a Bblia no precisa de confirmao. Ela
prpria fonte de conhecimento para a cincia histrica, como tambm o so os restos
materiais que a arqueologia traz tona e interpreta. Portanto as duas disciplinas
devem completar-se criticamente. 42
Quanto a Salomo, o autor escreve que o estudo de 1Rs 3-11 torna-se complexo
e extremamente delicado, visto que, esse conjunto literrio constitudo por textos que
foram produzidos em diferentes pocas, elaborados sob ticas diversas e com objetivos
distintos. Segundo Donner, dentro de 1Rs 3-11 esto misturadas vrias imagens de
Salomo, tornando impossvel sua distino: o Salomo histrico do sculo X a.C., o
Salomo deuteronomista e o Salomo ideal da histria da interpretao, chegando at os
tempos ps-exlicos.43 Em decorrncia disso, tem-se considerado como histricas
muitas informaes acrescentadas ao texto durante os sculos posteriores a Salomo.
1.3. Do Reinado de Salomo
42 DONNER, Herbert. Histria de Israel, p. 32. 43 DONNER, Herbert. Histria de Israel p. 250.
33
Os captulos que compem 1Rs 3-11 foram organizados ao redor de um assunto
central, a construo do templo, apresentando tradies a respeito do incio e do fim da
era salomnica. Os materiais utilizados para compor essa obra tm diversas origens,
como informaes registradas nos anais oficiais do reino, uma coletnea intitulada
Livro da Histria de Salomo citada em 1Rs 11,41, listas de funcionrios e de cargos
militares (2Sm 20,23-26; 1Rs 4), as fontes histricas no oficiais como a histria da
sucesso ao trono de Davi (2Sm 7-20; 1Rs 1-2), a histria do cisma (1Rs 12-14),
narrativas cujos primeiros autores foram pessoas que viveram muito prximas desses
acontecimentos, as fontes populares transmitidas ao longo do tempo que incluem relatos
e tradies, as interpretaes deuteronomistas. Dessa forma, seria um equvoco afirmar
que 1Rs 3-11 em sua composio final poderia ser resultado da descrio
deuteronomista de Salomo. 44 Quanto ao Livro da Histria de Salomo,
mencionado acima, Soggin escreve que preciso ter cautela quando se trata deste
material, pois o texto bblico no nos oferece extratos seguros, somente referncias
genricas. Mas, se admitirmos sua existncia, a lista dos funcionrios estatais em 1Rs
4,1-6, a lista dos distritos e dos governadores de cada um (1Rs 4,7-19), a pequena nota
sobre os trabalhos forados em 1Rs 5,27, as referncias aos empreendimentos
comerciais patrocinados por Salomo (1Rs 10,11ss. 22,28ss.), so textos que poderiam
ter sido retirados desse livro.45
Diante de tal complexidade, Donner afirma que a pesquisa cientfica em busca
do Salomo histrico se assemelha a um processo de reduo: preciso descartar
penosamente tudo aquilo com que a histria deuteronomista e a histria da interpretao
posterior retocaram a figura de Salomo. 46
O autor caracteriza o reinado de Salomo como um perodo de paz; por essa
razo, afirma que no houve um aumento do imprio de Davi durante o governo de
Salomo. Para Donner, o nome Shelomoh contm o elemento shalom, isto , tanto o
nome Shelomoh quanto o vocbulo shalom so derivados da mesma raiz verbal, que
possui acepes de manter a paz, viver em paz, deixar em paz etc., e conjetura que o
44 DONNER, Herbert. Histria de Israel, p. 251. 45 SOGGIN, J. Alberto. Nueva Historia de Israel. Bilbao: Editorial Descle de Brouwer S.A, 1997, p. 109-110. 46 DONNER, Herbert. Histria de Israel, p. 250.
34
nome pode ter sido adotado pelo rei, como um nome de trono no incio de governo.47
Como no havia ameaas externas ao territrio, Salomo no se preocupou com
operaes militares e acabou pagando um alto preo por no dar ateno devida
questo territorial. Seu interesse estava voltado para a consolidao da monarquia. Para
realizar tal objetivo era preciso aprimorar a poltica interna, as relaes exteriores e a
cultura. Salomo pretendia manter relaes amigveis com as naes vizinhas. Muitos
acordos polticos foram selados atravs de matrimnios. Esses casamentos fortaleciam
os laos polticos e asseguravam as boas relaes entre as naes amigas. Donner
escreve:
alguma coisa historicamente confivel, todavia, pode ser dita. Salomo
pretendia iniciar e cultivar relaes internacionais. Alcanou isso, no por
ltimo, por meio de seu harm i. atravs da aplicao daquele sadio
princpio poltico que, milnios mais tarde, os habsburgos austracos
tornaram famoso: Deixa outros travarem guerras tu, Israel feliz, casa!48
No Antigo Oriente Mdio a poligamia fazia parte da cultura da poca. Mas,
apesar disso, era um luxo que poucos podiam ter. Pode-se dizer que era um privilgio
real. No Egito, o harm era uma instituio. Desde os primrdios os faras possuam
muitas mulheres e uma grande parte do harm era constituda por mulheres estrangeiras,
dadas ao fara como garantia de acordos polticos. Mas, foi no Novo Imprio que o
harm se tornou o centro da poltica externa do fara. O rei passa a receber princesas
estrangeiras a fim de selar os acordos com outros pases. H notcias que Tutmsis III
recebeu trs concubinas srias acompanhadas de 30 escravas. Seu sucessor, Tutimsis
IV casou-se com uma das filhas do rei de Mitanni. O fara Amenfis III tambm casou-
se com Gilukipa, filha de Shutama II, rei de Mitanni. Esta trouxe consigo um squito de
317 mulheres, como confirma o escaravelho comemorativo que Amenfis mandou
fazer. Amenfis tambm possua em seu harm 40 mulheres originrias de Gaza. Era
casado com uma irm do rei dos cassitas. Da mesma forma, Ramss II contraiu
matrimnio com vrias princesas estrangeiras. A primeira delas, e a nica que se sabe o
nome egpcio que recebeu por ocasio do casamento, foi a princesa hitita Maat-Hor-
47 DONNER, Herbert. Histria de Israel, p. 251. 48 DONNER, Herbert. Histria de Israel, p. 252.
35
Neferu Re, filha de Hattusili III. O casamento se deu no 34 ano de reinado de Ramss
II, a fim de selar um acordo de paz concludo a mais de uma dcada. Maat-Hor-Neferu
Re foi recebida com muita festa e grande pompa, pois foi uma das sete mulheres que
durante o reinado de Ramss II recebeu o ttulo de grande esposa real. Depois dela o
fara se casou com mais duas princesas hititas.
Em Jud e Israel, os costumes no eram diferentes. De Saul h um texto que se
refere a uma de suas concubinas: Havia uma concubina de Saul chamada Resfa, filha
de Aas, e Abner a tomou. Isbaal disse a Abner: Por que te aproximaste da concubina
de meu pai? (2Sm 3,7). Outro texto se refere s mulheres de Saul, mas no informa a
respeito da quantidade de mulheres que o rei mantinha em seu harm: Nat disse a
Davi: Esse homem s tu! Assim diz Iahweh, Deus de Israel: Eu te ungi rei de Israel, eu
te salvei das mos de Saul, eu te dei a casa do teu senhor, eu coloquei nos teus braos as
mulheres do teu senhor, eu te dei a casa de Israel e Jud, e se isso no suficiente, eu te
darei qualquer coisa. (2Sm 12,7-8).
Quanto a Davi, seu harm parece ter sido maior que o de Saul, o prprio texto
acima diz que as mulheres de Saul passaram ao seu sucessor. Enquanto reinava em
Hebrom, Davi possua seis mulheres: Os filhos nascidos a Davi em Hebrom foram: o
seu primognito Amnon, de Aquinoam de Jezrael; o segundo, Quelead, de Abigail, que
fora mulher de Nabal de Carmel; o terceiro, Absalo, filho de Maaca, a filha de Tolmai,
rei de Gessur; o quarto, Adonias, filho de Hagit; o quinto, Safatias, filho de Abital; o
sexto, Jetraam, nascido de Egla, mulher de Davi. Esses nasceram em Hebrom (2Sm
3,2-5). Em Jerusalm o rei tomou mais esposas e concubinas: A sua chegada de
Hebron, tomou Davi ainda concubinas e mulheres em Jerusalm, e nasceram-lhe filhos
e filhas. (2Sm 5,13).
Com relao a Salomo, a tradio informa que seu harm era composto por
setecentas mulheres princesas e trezentas concubinas (1Rs 11,3), sendo que dentre
elas estavam muitas mulheres estrangeiras: alm da filha do fara, o rei Salomo amou
muitas mulheres estrangeiras: moabitas, amonitas, edomitas, sidnias e heteias (1Rs
11,1). Trata-se de um texto deuteronomista e o nmero de mulheres soa como um
36
exagero. Para Donner, um nmero redondo, sagrado e suspeito. 49 Tambm no se
pode afirmar a nacionalidade de suas mulheres estrangeiras. Sabe-se que a me de
Roboo era amonita (1Rs 14,21) e que Salomo casou-se com uma princesa egpcia. A
respeito desse casamento encontramos cinco menes em 1Rs 3-11. A primeira nos
informa do casamento propriamente dito, dizendo que Salomo tornou-se genro do
fara, rei do Egito (1Rs 3,1). A segunda, diz que Salomo construiu uma casa
semelhante sua para a filha do fara (1Rs 7,8). A terceira conta que o fara entregou a
Salomo a cidade de Gezer, aps te-la tomado dos cananeus, como dote pelo casamento
da filha. A quarta relata a mudana da princesa da Cidade de Davi para a casa que o rei
havia construdo para ela (1Rs 9,24) e a quinta refere-se s mulheres estrangeiras de
Salomo, entre as quais estava a princesa egpcia. Infelizmente, no se pode afirmar
com segurana quem foi o fara que fez aliana com Salomo. importante ressaltar
que esses acordos eram feitos entre os governantes e no entre os Estados. Aps a morte
de pelo menos um dos reis o relacionamento poltico j no era obrigatrio. O
casamento diplomtico de Salomo, provavelmente, garantiu uma poca de paz entre
Israel e Egito. No entanto, logo aps sua morte o fara Shoshenk I atacou Israel,
demonstrando que a aliana feita entre Salomo e o fara anterior j no estava em
vigor. Conforme Donner,
no 5 ano de governo de Roboo (922), o fara Shoshenk I empreendeu
uma campanha militar na Palestina [...] Shoshenk I mandou afixar uma
extensa lista das localidades conquistadas s vezes talvez apenas visitadas
numa das paredes externas meridionais do grande templo de Amom em
Tebas-Karnak, no chamado portal dos dinastas de Bubstis. Nessa lista
faltam completamente localidades do ncleo do territrio judata, as
montanhas e a regio de colinas. Isso corresponde a 1 Rs 14, 25-28, segundo
o qual Roboo ofereceu o tesouro do palcio e do templo de Jerusalm para
comprar a liberdade para si e sua zona de domnio. Shoshenk avanou at o
territrio do Reino de Israel, alcanou a Plancie de Meguido e de l, enviou
unidades de suas tropas para diversas direes do pas, tambm para a
Transjordnia. Em Meguido at deixou uma estela com seu nome conservada
fragmentriamente.50
49 DONNER, Herbert. Histria de Israel, p. 253. 50 DONNER, Herbert. Histria de Israel, p. 286-287.
37
Segundo Soggin, no fcil comprovar a veracidade do matrimnio de Salomo
devido ao estado atual das fontes e das investigaes. Mas, se realmente trata-se de um
fato histrico, pode ser considerado como um xito internacional de notvel
importncia, por duas razes: a primeira porque Salomo recebeu como dote a cidade
de Gezer e a segunda, porque os faras nunca davam suas filhas em casamento para os
soberanos estrangeiros. Outra concluso de Soggin de que o fato do fara ter
conquistado e destrudo Gezer demonstra que o Egito no estava passando por um
perodo de declnio, como afirmam alguns autores. Noth, por exemplo, afirma que se
tratava de uma filha do harm de um dos insignificantes faras da XXI dinastia
egpcia. 51 Para Soggin, o dote representa que o fara era favorvel ao casamento e que
tratava-se de um acordo entre iguais. 52 Na opinio de Bright, difcil imaginar que o
fara empreenderia uma campanha to rdua apenas para conquistar uma cidade para o
rei israelita. Ele argumenta que talvez o fara tivesse a inteno de restabelecer o
domnio egpcio sobre a Palestina, com esse intuito, tivesse lanado uma campanha
contra as cidades filistias, dentre as quais estava a cidade fronteiria de Gezer, mas,
tendose defrontado com tropas mais fortes do que imaginara, nos moldes do exrcito
de Salomo, considerou mais sbio (ou a isto foi impelido) a entregar a concesso
territorial e proclamar a paz. 53
Das relaes internacionais exercidas por Salomo merecem destaque seus
acordos com a costa fencia, especialmente com a cidade de Tiro. Donner afirma que
havia um legtimo tratado de comrcio entre Israel e a cidade-Estado de Tiro, cujo rei
chamava-se Hiro. Esse contrato estabelecia que Hiro fornecesse madeira e mo-de-
obra especializada para as construes de Salomo. Como pagamento, Salomo lhe
enviaria azeite e trigo (1Rs 5, 24-25). Donner considera o texto 1Rs 5,15-26 como
deuteronomista. Alm desse acordo, Hiro tambm participava das expedies da
marinha mercante de Salomo para Ofir e Trsis, disponibilizando navios e marinheiros
experientes (1Rs 9, 26-28; 10, 11; 22), que alm das viagens tambm auxiliaram
Salomo na construo de seus navios, chamados navios de Trsis, tinham esse nome
por causa da colnia fencia de Tartessos margem do Guadalquivir, no sul da Espanha.
51
NOTH, Martin, Historia de Israel. Barcelona: Ediciones Garriga, 1966, p. 204. 52 SOGGIN, J. Alberto. Nueva Historia de Israel, p. 124-125. 53 BRIGHT, John. Histria de Israel. 5. ed. So Paulo: Edies Paulinas, 1995, p. 278.
38
O porto de Eziom-Geber situava-se na extremidade setentrional do Golfo de
caba.54
Para Soggin, no possvel afirmar com certeza para onde se dirigiam tais
expedies, visto que a localidade de Ofir no pode ser identificada, afirmando que
juntamente com Tarsis, formassem parte de uma geografia puramente mtico-
simblica, sem relao alguma com a realidade. Tambm questiona o tempo de
durao dessas viagens, trs anos (1Rs 10, 22), tendo em vista que se considerarmos
que as tcnicas navais da poca somente permitiam a navegao de barcos de pequena
cabotagem, impossvel que esses se distanciassem muito da costa africana ou asitica
do Mar Vermelho. 55 Herrmann escreve que no se sabe se Ofir era o pas de origem
das numerosas riquezas ou era somente uma parada intermediria naquela via
comercial. Mas acredita que Salomo fundou uma cidade porturia e realizou viagens
martimas com o apoio do rei de Tiro. 56
Por motivos desconhecidos Salomo acabou por entregar 20 localidades na
regio de Kabul, (9, 10-14) na Baixa Galileia, razo pela qual Donner interpreta que a
relao entre Israel e Tiro era caracterizada como uma relao de dependncia. 57
Segundo Soggin, Hiro de Tiro deve ter concedido a Salomo credito ilimitado (1Rs
9,10-14), do qual Salomo provavelmente usou alm do que podia, chegando ao ponto
de no mais conseguir honrar com seus compromissos, sendo obrigado a ceder vinte
populaes situadas, possivelmente, na Galileia ocidental. Mesmo assim, Hiro no
ficou satisfeito com o pagamento, considerando ser insuficiente para saldar as dvidas
contradas por Salomo. Posteriormente, o autor de 2Cr 8,1-6 procurou inverter a
situao afirmando que Hiro havia entregue as cidades a Salomo. Para Soggin, a tese
de 1Rs mais verdadeira, pois se encaixa perfeitamente na questo da mxima
explorao dos recursos financeiros da nao.58
54 DONNER, Herbert. Histria de Israel, p. 253-254. 55 SOGGIN, J. Alberto. Nueva Historia de Israel, p. 121-122. 56 HERRMANN, Siegfried. Historia de Israel en la poca del Antiguo Testamento. Salamanca: Ediciones Sgueme, 1985, p. 229. 57 DONNER, Herbert. Histria de Israel, p. 253. 58 SOGGIN, J. Alberto. Nueva Historia de Israel, p. 122-123.
39
O casamento com a filha do fara o mais famoso dos matrimnios de Salomo
e o acordo comercial entre Salomo e Hiro de Tiro o mais conhecido. Mas as
relaes internacionais de Salomo no se limitaram apenas a esses dois tratados. As
ambies de Salomo eram bem maiores. O rei pretendia de uma vez por todas
consolidar o regime monrquico nos moldes existentes entre as naes vizinhas, a fim
de inserir Israel no cenrio de sua poca. Para garantir a paz e expandir o reino,
Salomo passa a usar, ao invs da guerra, a diplomacia e faz vrias alianas com os
pases vizinhos. Para conseguir realizar seus inmeros projetos Salomo no poupou
esforos, revelando um excelente estrategista comercial. O rei acabou comandando uma
das maiores e mais valiosas rotas de comrcio de sua poca. Bright escreve: o
verdadeiro gnio de Salomo, contudo, estava no setor da indstria e comrcio. Ele
era capaz de compreender a significao econmica de sua posio estratgica,
abarcando as maiores rotas de comrcio norte-sul do Egito e da Arbia at o norte da
Sria, e tambm de captar as possibilidades de sua aliana com Tiro.59
Outro aspecto das atividades comerciais de Salomo se refere ao comrcio de
carros de combate e cavalos, os quais ele importava da sia Menor e do Egito,
respectivamente, no podendo descartar a possibilidade de que realmente Salomo
tenha estabelecido um monoplio comercial desses produtos. Soggin cita que o
comrcio dos carros e cavalos implicava tambm alguns soberanos menores como os
hititas e os reis de Aram, comentado que a posio da Palestina como nao-ponte
entre a sia e a frica evidentemente favorecia estas operaes comerciais. 60 Noth
escreve que Salomo realizava um comrcio ativo, e seguramente muito proveitoso,
com os carros de combate e os cavalos, por mediao dos mercadores reais. Os carros e
cavalos procediam do Egito, mas, importavam-se tambm cavalos da Cilcia, os quais
eram vendidos aos reis dos hititas e aos reis de Aram. 61
Segundo Siqueira, Salomo foi o precursor na explorao das rotas comerciais,
servindo-se da posio estratgica ocupada por Israel, na regio que posteriormente
recebeu o nome de crescente frtil. Para ele, a visita da rainha de Sab, relacionada com
59 BRIGHT, John. Histria de Israel, p. 281. 60 SOGGIN, J. Alberto. Nueva Historia de Israel, p.122. 61
NOTH, Martin, Historia de Israel, p. 204.
40
a sabedoria de Salomo, trata-se, na verdade, de uma visita de negcios. A expresso
pedir por algo desejado (verso 13) refere-se troca de bens entre dois monarcas.
bom lembrar que durante as negociaes entre Salomo e Hiro (1Rs 5, 22-24), o rei
fencio usou a mesma expresso. Ele defende a tese de que Salomo controlava as
rotas comerciais e as regies em que as caravanas rabes percorriam em direo s
terras do Crescente Frtil, assim os rabes dependiam do intermdio de Salomo para
assegurar o transporte regular de seus produtos. Afirma ainda que:
As expresses ansei hatarim, homens de comrcio, mishar haroklim, o
trfico dos comerciantes (1Rs 10,15) e soharei hammelek, os comerciantes do
rei (1Rs 10,28). Embora a histria dos patriarcas fale de suas atividades
comerciais (conferir Gn 34, 10.21; 42,34), as evidncias de uma atividade
comercial mais formalizada est na narrativa do governo de Salomo. Os
termos tarim e roklim e a expresso soharei hammlek levam a crer que o rei
participava diretamente do comrcio numa escala internacional. 62
As reconstrues e fortificaes de importantes cidades como Hazor, Megido e
Gezer, executadas por Salomo, foi devido posio estratgica dessas cidades,
situadas ao longo da rota comercial. Essas trs cidades estavam situadas nos pontos
mais estratgicos da Via Maris: Gezer, ao p da Sefela, guardando a passagem para a
montanha de Jud; Meguido, como chave do acesso para a grande plancie de Jezrael; e
Hazor, ltima praa forte antes de abandonar o territrio da Palestina a caminho de
Damasco, conforme Echegaray. 63 Segundo Siqueira, a grande razo das naes
preferirem a Palestina e a Sria como ponte de ligao e passagem, para o Egito e
Mesopotmia, justificada pela denominao Crescente Frtil. A Palestina forma a
parte central da lua crescente deste solo produtivo. sua margem leste, fica o estril
deserto e, oeste est o Mar Mediterrneo. Assim, a limitao martima e a
impossibilidade de viajar pelo deserto, restou aos Egpcios e aos povos da Mesopotmia
a passagem via Palestina. Na verdade, este pequeno territrio constituiu-se, por alguns
milnios, na passagem mais vivel e econmica entre as maiores potncias comerciais
62 SIQUEIRA, Trcio Machado, O povo da terra no perodo monrquico, Tese (Doutorado em Cincias da Religio), UMESP - Universidade Metodista de So Paulo, So Paulo, 1997, p. 98. 63
ECHEGARAY, Joaqun Gonzlez, O crescente frtil e a Bblia, Petrpolis, Vozes, 1993, p.128.
41
da regio. 64 Salomo transformou essas rotas comerciais em uma importante fonte de
receitas para o Estado, cobrando impostos sobre as mercadorias em circulao. 65
Para Donner, os ganhos obtidos atravs de tais empreendimentos dificilmente
beneficiavam o povo. Os lucros alcanados faziam parte do tesouro real e eram
empregados na manuteno da corte e nas obras de construes. Na poca de Salomo
no se pode falar da existncia daquela proximidade e familiaridade que Davi tinha
com os homens de Jud e Israel. Toda riqueza se concentrava na corte de Jerusalm e
os grandes beneficirios eram aqueles que estavam ao redor do rei. 66
Quanto sabedoria de Salomo, Donner prefere ser bem cauteloso, pois
historicamente, nada muito confivel no que se refere a esse assunto. Ele entende como
lenda a visita da rainha de Sab (1Rs 10,1-3) e o julgamento salomnico (1Rs 3, 16-28).
Considera 1Rs 5, 9-14 como um texto no deuteronomista, mas admite a dificuldade em
datar o texto. Discorda de Von Rad quanto expresso iluminismo salomnico,
afirmando que o conceito iluminismo tem seu lugar na histria do pensamento do
Ocidente, denominando a a emancipao do esprito ocidental de suas origens. Fica
evidente que na poca de Salomo razo e emancipao significavam algo diferente do
que na Europa do sculo XVIII. 67 Soggin tambm critica tal expresso, argumentando
que apesar das escolas de escribas, abertas para a formao dos futuros funcionrios, nada
indica que esses eram possuam o ttulo de sbios. Pode-se considerar que a poca de
Salomo foi um perodo de abertura e que houve um desenvolvimento do conhecimento,
favorecido pelos contatos internacionais e pela riqueza em circulao no pas. Com
relao s tradies atribudas a Salomo, ainda preciso ter certa prudncia devido ao
silncio das fontes. 68 Segundo Noth, o que o captulo 5 diz referindo-se a Salomo, sem
dvida poderia ser aplicado perfeitamente a toda a sua poca, e possvel que a tradio
tardia procurasse centrar na pessoa do rei o que podia aplicar-se a todo o Israel na poca
64 SIQUEIRA, Trcio Machado, O povo da terra no perodo monrquico, p. 127-128. 65 Trcio Siqueira fez um importante estudo a respeito do comrcio internacional, analisando detalhadamente as principais rotas comerciais, destacando a duas mais importantes: o Caminho do Mar (Via Maris) e o Caminho Real, conferir SIQUEIRA, Trcio Machado, O povo da terra no perodo monrquico, p. 127-138. 66 DONNER, Herbert. Histria de Israel, p. 254. 67 DONNER, Herbert. Histria de Israel, p. 257. 68 SOGGIN, J. Alberto. Nueva Historia de Israel, p. 122-123.
42
de Salomo, em cuja corte e entre os funcionrios reais ia se formando uma classe mais
culta. Para ele os altos funcionrios deveriam estar aptos no somente para exercer os
trabalhos da administrao interna, como tambm desempenhar outras funes junto s
outras naes como exigia as relaes internacionais. Com o tempo, a cultura acaba
atraindo outras camadas da populao despertando novos anseios intelectuais. 69
Para Herrmann, se quisermos saber at que ponto Jerusalm tomou um rumo
prprio e o rei submergiu na atmosfera internacional daquela poca, basta prestar ateno
a certas notcias que nos do a entender sua participao na vida cultural de maneira geral,
a qual no estava vinculada apenas ao mbito religioso. O conceito de sabedoria abre-se a
um campo mais amplo de atividades intelectuais e grandes iniciativas dentro da corte
consolidada, que no esto somente relacionadas pessoa do rei. Afirma que em
Jerusalm se dedicaram confeco de listas ou catlogos enciclopdicos, que
abarcavam o mundo e seus objetos, como as listas conhecidas tanto na Mesopotmia,
como no Egito. Um exemplo egpcio da cincia enciclopdico-catalogal o onomstico
de Amenope, que data de 1100 a.C. Da o texto 1Rs 5,13, falou das plantas, desde o
cedro que cresce no Lbano at o hissopo que sobe pelas paredes: falou tambm dos
quadrpedes, das aves, dos rpteis e dos peixes. Assim, sua sabedoria comparada com
a sabedoria de outros povos, inclusive dos egpcios (1Rs 5,10). bem provvel que
Salomo tenha ordenado aos escribas coletarem sentenas de sabedoria prtica, de
princpios tico-morais, procurando registr-las por escrito, dessa forma, 1Rs 5,12
menciona os provrbios e os cnticos de Salomo. 70
Segundo Bright, difcil afirmar a respeito da fama internacional de Salomo
como autor de provrbios, levando-se em conta que no temos conhecimento das sbias
palavras atribudas a ele, mas considera que a tradio, da qual o livro dos Provrbios a
essncia, teve incio nessa poca. Ele escreve:
Apesar de Os Provrbios serem um livro ps-exlico, no h nenhuma razo
para considerar a sabedoria hebraica como um desenvolvimento ps-exlico, e
menos ainda para supor que representa uma aquisio tardia de supostas fontes
edomitas ou norte-arbicas. Uma literatura gnmica existira j no segundo
69 NOTH, Martin, Historia de Israel, p. 206. 70 HERRMANN, Siegfried. Historia de Israel en la poca del Antiguo Testamento, p. 239-240.
43
milnio, e muito antes em todo o mundo antigo, particularmente no Egito, mas
tambm em Cana (como os provrbios nas Cartas de Amarna, os textos de Ras
Shamra, etc., como o indicam os canaanismos do Livro dos Provrbios). Sabe-
se que parte de Os Provrbios (cf. cc. 22 a 24) baseia-se nas Mximas Egpcias
de Amenemope (que datam do final do segundo milnio). No h razo para se
duvidar que a sabedoria tenha florescido em Israel no sculo dcimo,
provavelmente atravs da mediao canaanita, e cultivada na corte de Salomo.
Para Pixley:
os primeiros documentos israelitas que se podem reconstruir provm desta
primeira poca monrquica. Tudo o que h de mais anti