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A cidade, o seu Estatuto e a sua gestão “democrática”

Marcelo Lopes de Souza* Advertência O texto a seguir não foi escrito para um público de pesquisadores especialistas em problemas urbanos ou profissionais de planejamento urbano. Seu caráter é meramente introdutório, e destina-se a um público amplo, com o objetivo de se disseminarem certas idéias e se estimular o debate junto à sociedade, dentro do espírito que preside o NuPeD. Detalhes, explicações e termos técnicos não imprescindíveis a um texto desse teor foram, por conseguinte, evitados.

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Em julho de 2001 foi, após uma longa tramitação no Congresso Nacional (mais de dez anos!), aprovada a Lei Federal de Desenvolvimento Urbano (Lei 10.257/2001), o chamado Estatuto da Cidade. O Estatuto representou um importante passo adiante em relação ao pequeno e vago capítulo sobre política urbana da Constituição Federal (composto pelos artigos 182 e 183). Ao regulamentar e complementar a Constituição, o Estatuto veio completar o respaldo jurídico, em nível nacional, para a aplicação, dentre outros instrumentos, do importante IPTU progressivo no tempo, bastante útil para ajudar a coibir a especulação imobiliária em larga escala.

* Marcelo Lopes de Souza é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Departamento de Geografia), onde coordena o Núcleo de Pesquisas sobre Desenvolvimento Sócio-Espacial (NuPeD). É autor, dentre outros livros, de Mudar a cidade: uma introdução crítica ao planejamento e à gestão urbanos (Bertrand Brasil, 2002; 3 ed. 2004).

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Uma das coisas positivas do Estatuto é a relevância que ele conferiu à participação popular no planejamento e na gestão urbanos. De uma forma ou de outra, ela é mencionada em sete artigos diferentes, três dos quais constituindo um capítulo especificamente devotado ao assunto, intitulado “Da gestão democrática da cidade” (Cap. IV). Além disso, o Art. 52, cujo Inciso I teve sua redação definitiva estabelecida pela Medida Provisória 2.220 de setembro de 2001, determina que o Prefeito incorre em improbidade administrativa se “impedir ou deixar de garantir a participação de comunidades, movimentos e entidades da sociedade civil” no planejamento municipal. É bem verdade que a redação daqueles sete artigos dá margem a que, a depender da correlação de forças local, a participação venha a ocorrer sob uma forma “opinativa”, meramente consultiva, e não deliberativa − uma participação fraca, portanto, ou mesmo uma pseudo-participação. Portanto, para um paladar um pouco mais ambicioso, aquilo que o Estatuto agasalha sob a simpática rubrica “gestão democrática da cidade” pode, a depender das circunstâncias e da constelação de poder que vier a prevalecer em cada município, não passar de um ralo “verniz” de participação, sem contar o fato óbvio de que o Estatuto (e qualquer lei, seja lá qual for) não elimina as fontes e expressões de assimetria estrutural de poder e as enormes disparidades de renda e patrimônio existentes em uma sociedade capitalista, especialmente se (semi)periférica, como a brasileira. Mas, em que pese esse problema de um certo amesquinhamento ou uma certa banalização do que se deva entender por “gestão democrática da cidade”, não se deve deixar de reconhecer e saudar o avanço que o Estatuto encarna, diante da rarefação de marcos jurídico-formais que funcionem como “ganchos” para pressões e conquistas populares. Mas, pergunte-se, agora: para que serve e a quem serve uma maior democratização do planejamento e da gestão da cidade? Velhos e conhecidos argumentos, contrários à participação direta da população na elaboração e na condução das políticas públicas e das normas e leis que regem a vida coletiva, insistem em que a

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participação 1) usurpa o direito inalienável de os “representantes eleitos” (prefeitos e vereadores, no caso dos municípios) exercerem seus mandatos sem interferência, 2) custa caro, 3) só é viável ao envolver grupos e populações muito pequenos e, além disso, 4) gera ineficiência administrativa. Sobre o primeiro argumento, é sintomático que, mesmo entre aqueles que não cogitam de questionar, no essencial, a legitimidade da “democracia representativa”, seus princípios e suas instituições (como a separação estrutural entre dirigentes e dirigidos e o “mandato livre” conferido, quase que como um cheque em branco, aos “representantes”), nota-se uma crescente abertura para com a introdução de, pelo menos, elementos de democracia direta, devido ao cada vez maior “déficit de credibilidade” do sistema representativo e dos políticos profissionais aos olhos da população − e isso não somente no Brasil. Quanto aos demais argumentos − custo alegadamente alto, pouca viabilidade e ineficiência como preço a pagar −, já há, hoje, uma farta e variada literatura especializada que traz evidências e comprovações empíricas de que os referidos problemas ou não existem, ou não precisam, necessariamente, existir, podendo muito bem ser evitados. A participação, para ser efetivada, exige algum tipo de investimento, sim (disponibilização de locais adequados, circulação de informações etc.), mas uma análise custo/benefício desassombrada mostra que ele não precisa ser por demais elevado, e que, além disso, os ganhos decorrentes da maior transparência e do maior controle popular das decisões sobre projetos, programas e gastos públicos (menor desperdício, menos corrupção...) mais que compensam, no médio e longo prazos, o seu custo. Com isso, vê-se logo, também, que o argumento da “ineficiência” é frágil: se bem implementada (o que pressupõe, para começo de conversa, que os participantes devem ser correta e honestamente informados e tecnicamente assessorados, para poderem decidir com pleno conheci mento de causa), a participação contribui, isso sim, para uma maior eficiência social e (argumento que sensibiliza até os conservadores) até administrativa. Por fim, quanto ao argumento da

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“ditadura dos grandes números”, não faltam exemplos de experiências bem-sucedidas de participação popular direta em municípios com centenas de milhares de habitantes, ou até com mais de um milhão de habitantes, como vem ocorrendo com Porto Alegre e seu internacionalmente conhecido e elogiado orçamento participativo. Ao contribuir para aumentar o controle público sobre os políticos profissionais, enfraquecer práticas clientelistas (troca de votos por favores) e elevar o nível de consciência da população, especialmente da população pobre, sobre os seus direitos, a participação popular parece só não interessar àquela minoria que, precisamente, ganha com a falta de transparência e com o monopólio decisório nas mãos das elites. No entanto, é forçoso reconhecer que, mesmo no campo dito progressista, a ênfase sobre a participação nem sempre foi tão grande quanto deveria ter sido − ao menos quando vamos além da retórica e observamos sob um ângulo, por assim dizer, “operacional”. Após a Constituição determinar, em seu Art. 182, que caberia aos municípios, por meio de seus planos diretores, estabelecer o conteúdo preciso e os balizamentos a propósito de fórmulas vagas (e problemáticas, por seu quinhão de ingenuidade com fundo ideológico) como “função social da propriedade” e “funções sociais da cidade”, os anos 90 testemunharam a feitura e a aprovação, em vários municípios governados por partidos de esquerda, de planos diretores menos ou mais comprometidos com uma busca de maior justiça social nas cidades. Curiosa e lamentavelmente, em não poucos casos a preocupação com o detalhamento de instrumentos urbanísticos e tributários foi muito maior que com uma ancoragem realmente sólida, ousada e consistente dos mecanismos de participação popular (a começar pelos conselhos de desenvolvimento urbano participativos, aos quais caberia, justamente, opinar e deliberar sobre os planos e suas atualizações e monitorar a sua implementação). Talvez surpreendentemente, também aqui Porto Alegre pode servir de exemplo. O plano diretor aprovado em fins de 1999 não tem muito mais que tinturas progressistas, e o “Conselho Municipal de

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Desenvolvimento Urbano Ambiental” ali mencionado caracteriza-se por reservar um grande número de assentos (17, de um total de 25 titulares) para representantes do próprio Estado e para entidades patronais (como o SINDUSCON), profissionais (IAB e outras), um sindicato de trabalhadores e uma ONG próxima à Prefeitura. Além disso, a julgar pela formulação de suas atribuições constante do plano diretor, o referido conselho tem um caráter mais propriamente consultivo que deliberativo. É significativa a diferença para com o Conselho do Orçamento Participativo (COP) da mesma cidade, o qual, além de ser fortemente deliberativo, tem a totalidade de seus conselheiros com direito a voto eleitos no âmbito de uma disputa em que, em princípio, as chances são iguais. Houve, sobretudo desde o final dos anos 80, avanços importantes em matéria de democratização do processo orçamentário em muitos municípios brasileiros (em cerca de uma centena e meia deles há processos de orçamento participativo em curso, o que é muito significativo, em que pese uma grande parte das experiências deixar muito a desejar quanto à sua consistência). Infelizmente, a democratização do planejamento urbano stricto sensu não chegou a avançar tanto. Será que é porque é mais difícil estimular cidadãos comuns a investirem seu tempo em discussões sobre planos e instrumentos que, muitas vezes, só trarão benefícios palpáveis no médio ou até no longo prazo, diferentemente de decisões sobre o orçamento municipal, cuja utilidade parece ser muito mais imediata? Em parte, seguramente que sim; mas isso não explica tudo, assim como a crise dos movimentos sociais na maioria das cidades brasileiras (a partir já da segunda metade dos anos 80) tampouco convence como explicação isolada. Faz-se necessário um esforço de disseminação pública, de modo simplificado, de informações sobre a natureza e a utilidade social de instrumentos como IPTU progressivo no tempo, “solo criado”, contribuição de melhoria, mecanismos de regularização fundiária e outros. Não que não haja nenhum esforço nesse sentido em andamento; particularmente no campo das ONGs constata-se, aqui e ali, bastante empenho. Mas falta ainda muito, muitíssimo por fazer, e é

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necessário que, de prefeituras às universidades, se intensifique e se amplie a contribuição para “desmistificar” e popularizar o planejamento e a gestão urbanos e as leis que os regulam. (Esse deveria ser, também, papel do Ministério das Cidades − o qual, entretanto, com poucos quadros e escassos recursos, inserido em um governo que, cada vez mais, se foi mostrando como econômica e politicamente conservador, não tem conseguido avançar muito.) Vive-se, hoje, uma situação, ao mesmo tempo, interessante e um tanto incômoda: agora existem, em nível nacional, marcos legais (Constituição, Estatuto da Cidade, Medida Provisória 2.220) e institucionais (Ministério das Cidades, Conselho Nacional das Cidades) potencialmente relevantes, mas o grau de organização da sociedade civil é, na maioria das cidades, baixo. Além desse baixo grau de organização e mobilização − e, na verdade, largamente por causa disso −, o qual contrasta com a situação dos movimentos no campo (sem-terra), o ideário da reforma urbana ainda é quase desconhecido. Mesmo entre universitários e até profissionais do urbano (arquitetos, geógrafos e outros), essa “prima” da reforma agrária que é a reforma urbana ainda é pouco conhecida, e não é raro ser ela (que é uma reforma sócio-espacial estrutural, de largo alcance, com o objetivo de se coibir a especulação imobiliária, reduzirem substancialmente as disparidades de infra-estrutura no interior do espaço urbano e democratizar a gestão e o planejamento) confundida com uma simples reforma urbanística (ou seja, com intervenções no espaço com o fito de embelezá-lo e/ou torná-lo mais “funcional”).

Não basta a existência de boas leis, e nem mesmo é suficiente a existência de um “fiscal da aplicação” das leis como o Ministério Público, parceiro importante. Para que o Estatuto da Cidade (e o mesmo vale para qualquer plano diretor) seja uma lei que “pegue”, é imprescindível que a população dele se “aproprie”, discutindo-o e exigindo o seu cumprimento − e, colaborando, eventualmente, também para o seu aprimoramento, ajudando a superar suas imperfeições e lacunas. Até porque, vale salientar, a melhor garantia − e a única verdadeiramente democrática − de que uma lei possa

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ser respeitada e cumprida é a possibilidade de todos os cidadãos terem, pelo menos, uma chance efetiva de participar de sua discussão e de sua elaboração (e não somente do monitoramento de sua aplicação).

Desgraçadamente, este último ponto é algo que, ao que parece, muitos profissionais do campo do Direito Urbano ainda têm grande dificuldade para aceitar, em que pese esse campo abarcar, no Brasil, uma das parcelas mais arejadas e menos conservadoras do Direito. Mas essa é, justamente, uma direção imprescindível de aprofundamento do debate: não devemos nos limitar a examinar as condições nas quais os “operadores do Direito” usuais (juízes, promotores etc.) poderiam melhor garantir o cumprimento de tal ou qual lei formal (o Estatuto, um plano diretor...); devemos, os cidadãos, exigir as condições para que todos nós , e não somente os juristas (e os profissionais de planejamento que costumam servir-lhes de referência e assessorar o aparelho de Estado), possamos, livremente e sem a tutela de intermediários, instituir as leis que regerão a produção do espaço de nossas cidades. Esse é um objetivo ambicioso, sem dúvida. Concretizá-lo exige muito mais que simples refor mas; exige uma outra sociedade, organizada econômica e politicamente de modo substancialmente diverso de uma sociedade capitalista. Construir essa sociedade diferente, para aqueles que admitem a necessidade e a possibilidade histórica de uma superação da ordem vigente, exige, porém, preparação e paciência. Exige, sobretudo, que os movimentos sociais se articulem, se fortaleçam e a sociedade se organize cada vez mais. Aproveitar a margem de manobra atualmente existente para certos avanços, inclusive para participar, diretamente, da elaboração e do aprimoramento das leis, em algum grau digno de nota, já é, de qualquer maneira, um começo. As melhores dentre as experiências de orçamento participativo estão a mostrar que é possível e desejável que esse aprofundamento democrático se estenda, também, ao campo do planejamento urbano stricto sensu , em várias escalas.

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