2
Da Repercussão Geral no Recurso Extraordinário
2.1
Considerações iniciais
O primeiro capítulo deste trabalho tratou da vagueza do direito e mais
precisamente sobre as discussões e os contornos teóricos a respeito da aplicação
da teoria da “textura aberta” da linguagem ao direito introduzida por H.L.A. Hart.
Neste capítulo, será abordado o mecanismo de controle de acesso à
jurisdição constitucional instituído pelo constituinte reformador pela emenda
constitucional n° 45 de 200482, com ênfase na problemática envolvendo a vagueza
em sua conceituação, e na projeção de uma incerteza para a admissibilidade do
apelo excepcional.
Em um sucinto panorama serão exibidos os antecedentes históricos
justificadores da criação do instituto da repercussão geral como mecanismo
limitador do acesso à jurisdição da suprema corte, sua inserção no mundo jurídico
e a existência de uma zona de penumbra em sua definição.
Nesse ponto, é certo que a repercussão geral proporciona uma vagueza em
sua definição capaz de criar uma indefinição em seus contornos de aplicabilidade,
situação jurídica que proporciona uma grande margem de discricionariedade83 ao
juiz84 85 ao realizar o julgamento sobre a existência ou não de repercussão geral na
questão constitucional debatida na lide.
82 A emenda constitucional n° 45 de 2004 foi intitulada pela opinião pública como ‘reforma do judiciário’ e pretendia, em um primeiro plano, acelerar a prestação jurisdicional comprovadamente morosa no Brasil e, em um segundo plano, moralizar a gestão dos gastos do Poder Judiciário mediante controle externo e modificações na publicidade dos atos. Para maiores informações ver Sadek (2004: 79/101). 83 Neste trabalho será utilizado o conceito de discricionariedade judicial utilizado por Hart conforme apresentado no capítulo anterior. 84 Hart ao descrever a problemática envolvendo os casos insólitos e a discricionariedade judicial atribui o poder de criação do direito para todas aquelas pessoas que exercem poder decisório de natureza jurisdicional (juízes), ocorre que, no caso da repercussão geral embora a admissibilidade do recurso extraordinário seja realizada tanto no tribunal de origem quanto na suprema instância, situação que ampliaria o rol dos legitimados para exercer o poder discricionário sobre o instituto, é certo que a interpretação desse requisito de admissibilidade recursal é de competência exclusiva do
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Tais considerações são relevantes para a definição do objeto de estudo,
permitindo uma coerente análise entre a teoria da textura aberta e a existência de
vagueza na repercussão geral, proporcionando uma indicação das bases
normativas e teóricas que instruirão as conclusões a serem tomadas no derradeiro
capítulo deste trabalho.
Em uma análise introdutória, é certo que a repercussão foi criada com o
intuito de diminuir o grande número de litígios que chegam ordinariamente ao
Supremo Tribunal Federal, cujo volume processual e variedade temática são
capazes de desviar a atenção dos ministros para temas de menor importância em
detrimento da concentração em temas relevantes nacionalmente.
Nesse sentido, a ampla acessibilidade86 da jurisdição constitucional
brasileira acabou por afastar o Supremo Tribunal Federal do cumprimento de sua
missão principal, obscurecendo a avaliação do Tribunal no seu aspecto decisivo
relativo à institucionalização e preservação do Estado Democrático de Direito e
dos Direitos Fundamentais87.
Assim, a repercussão geral foi criada como um verdadeiro “filtro
seletor”88, destinado a restringir o acesso ao Supremo Tribunal Federal somente
àqueles litígios que efetivamente possuam um tema relevante e que transcendam
os interesses subjetivos dos litigantes, descongestionando o órgão jurisdicional e
evitando o excessivo volume de processos e recursos em tramitação.
No entanto, da mesma forma que a repercussão geral funciona como
mecanismo limitador do acesso à jurisdição constitucional na via difusa, foi
Supremo Tribunal Federal nos termos do artigo 543-A, § 2° do Código de Processo Civil, assim, o exercício da discricionariedade judicial decorrente da vagueza no conceito de repercussão geral fica adstrita à competência dos ministros do excelso pretório. 85 No último capítulo será abordada uma forma de limitação dessa discricionariedade, segundo uma abordagem da eficácia normativa dos precedentes no Brasil. 86 Aqui se utilizou da expressão “ampla acessibilidade” por duas razões: Inicialmente para destacar o incremento das competências do Supremo Tribunal Federal com o advento da Carta de 1988, como por exemplo, com a criação do mandado de injunção e do habeas data, bem como com a emenda constitucional n. 3/93 que produziu uma remodelação ampliativa das atribuições da Corte, inserindo no sistema constitucional a arguição de descumprimento de preceito fundamental e a ação direta de constitucionalidade. Posteriormente, para destacar o princípio da inafastabilidade da jurisdição consagrado no artigo 5°, XXXV da Constituição Federal. 87 Assis (2007: 692). 88 Mancuso (2009: 187).
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instituída de modo a contemplar uma vagueza normativa, ou seja, uma
indeterminação em sua definição que não crie constrangimentos irresolúveis ao
processo de seleção dos temas considerados relevantes pelo Supremo Tribunal
Federal, tanto no aspecto qualitativo ou quantitativo89 da lide.
Assim, tal mecanismo de limitação de acesso à jurisdição constitucional ao
mesmo tempo em que serve para obstaculizar o acesso ao Supremo Tribunal
Federal de demandas irrelevantes sob o prisma do interesse público de modo a
diminuir a sua carga de trabalho, também deve favorecer a admissibilidade
daquelas demandas importantes, assim definidas nos limites do crivo do próprio
destinatário90 da norma, a quem caberá a função de “eleger” quais recursos
possuem repercussão ou não.
Nesse sentido, a vagueza existente no conceito de repercussão geral faz
com que ela possa ser incluída nos pressupostos teóricos delineados por Hart a
respeito da textura aberta do direito, sobretudo, quando à existência de uma
margem de livre apreciação para aplicação e conformação da norma.
Contudo, o procedimento de controle de acesso da jurisdição
constitucional criado pela emenda constitucional n. 45/04 não pode ser
devidamente compreendido sem que antes seja realizado um exame criterioso e
direcionado91 dos antecedentes que justificaram a sua criação, de modo a
proporcionar condições para o exame de sua natureza enquanto “filtro recursal”, e
para formação de um esboço teórico-normativo indispensável ao último capítulo,
em que será analisada a eficácia92 dos precedentes do Supremo Tribunal Federal
no julgamento da repercussão geral.
89 Como bem salientado por Eduardo Talamini, não só o aspecto quantitativo (o alcance numérico) deve ser considerado para a admissibilidade de um recurso extraordinário, deve-se levar em consideração também a profundidade da questão, uma vez que temas fundamentais para a ordem constitucional não necessariamente se reproduzem em uma quantidade significativa de litígios, mas, ainda assim, apresentam grande repercussão. Talamini (2007: 58). 90 No caso, utilizou-se a expressão “destinatário da norma” para designar tão somente o STF que é o órgão efetivamente incumbido de realizar a interpretação do dispositivo aos casos concretos e com exclusividade, muito embora, em um sentido latu, todos sejam destinatários da norma. 91 Direcionada para manter-se nos estritos limites deste trabalho e criteriosa para não comprometer a objetividade. 92 Conforme será analisado oportunamente, a investigação recairá tão somente sobre a eficácia da decisão no julgamento da admissibilidade da repercussão geral e não sobre o seu mérito, importando em uma observação sobre a eficácia desses precedentes sobre um ângulo normativo, persuasivo ou impositivo.
48
2.2
O recurso extraordinário e a asfixia do Supremo Tribunal Federal: os
antecedentes da repercussão geral
O recurso extraordinário foi introduzido no direito pátrio pelo decreto 848
de 11 de outubro de 189093, destinado à preservação e manutenção da integridade
da legislação federal, garantindo a uniformidade de sua aplicação em todo o
território nacional, uma vez que, com a derrubada do regime monárquico94, houve
a adoção da forma federativa na qual os Estados membros passaram a ser dotados
de autonomia, ensejando assim, a necessidade da criação de um órgão
jurisdicional superior especialmente destinado à harmonização do direito
nacional.
Em decorrência do regime federativo adotado, iniciado em 1891 e mantido
pela ordem constitucional vigente, a criação de uma corte com jurisdição em todo
o território nacional e de um recurso para ele destinado funciona como meio de
assegurar a unidade e o império do direito nacional quando houver alguma afronta
ou divergência quanto à interpretação ou aplicação da Lei Fundamental95 em
qualquer dos Tribunais da federação.
Assim, o recurso extraordinário surge como uma exigência do próprio
regime federativo, sendo inspirado no writ of error norte-americano consagrado
no Judiciary Act de 178996.
Rigorosamente destinado à resolução de questões de direito, o recurso
extraordinário nunca se prestou à reapreciação de provas97 produzidas no processo
93 O Decreto 848/90 foi editado pelo governo provisório instalado após a Proclamação da República em 1889 e tinha como finalidade organizar a justiça federal, no entanto, em seu cerne dispõe sobre matérias de diversas matizes, como remuneração de magistrados, organização do ministério público, regras de competência, direito civil, direito penal, normas processuais cíveis e criminais. No referido decreto não consta a denominação “recurso extraordinário” para o expediente recursal encaminhado para a apreciação da Suprema Corte, designação que somente surgiu com o primeiro regimento interno do Supremo Tribunal Federal de 26 de janeiro de 1891, e, consagrada posteriormente, no plano normativo-constitucional com a Carta de 1934. 94 A Constituição de 1824 estabelecia um Estado unitário, com o território dividido em Províncias nos termos do seu artigo 2° e com a proclamação da República instituiu-se um Estado Federal. 95 Calmon de Passos (1977: 43). 96 Bermudes (1972: 162), Pontes de Miranda (1970 : 83) e Marques (1963 : 322/323).
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ou mesmo à correção de quaisquer injustiças98 presentes na decisão recorrida.
Essencialmente, tal recurso tutela o interesse dos litigantes de forma indireta,
servindo como mecanismo de proteção do direito objetivo em âmbito federal e
vinculada à supremacia da Constituição.
“Esse tipo de recurso nunca teve a função de proporcionar ao litigante inconformado com o resultado do processo uma terceira instância revisora da injustiça acaso cometida nas instâncias ordinárias. A missão que lhe é atribuída é de uma carga política maior, é a de propiciar à Corte Suprema meio de exercer o seu encargo de guardião da Constituição, fazendo com que seus preceitos sejam corretamente interpretados e fielmente aplicados. É a autoridade e supremacia da Constituição que toca ao STF realizar por via dos julgamentos dos recursos extraordinários”99.
No recurso extraordinário há uma verdadeira inversão da lógica recursal,
em que o interesse privado de desconstituir a sucumbência firmada na decisão
judicial recorrida será tutelado somente de forma secundária caso coincida com o
interesse coletivo firmado pela Corte Constitucional no julgamento do recurso100.
No entanto, a despeito de suas características serem aparentemente
refratárias à sua banalização na prática forense, a configuração fornecida pelo
constituinte ao recurso extraordinário sempre proporcionou uma enorme
abrangência para o seu cabimento101, admitindo assim, em tese, o manejo do
97 Súmula 279 do Supremo Tribunal Federal: “Para simples reexame de prova não cabe recurso extraordinário” (sessão plenária de 01/10/1979. DJ de 8/10/1964, p. 3647; DJ de 9/10/1964, p. 3667; DJ de 12/10/1964, p. 3699.) 98 O Supremo Tribunal Federal já assentou seu posicionamento nesse sentido: “Recurso extraordinário: suas limitações em face de eventual injustiça da decisão recorrida. O recurso extraordinário é via processual estreitíssima, cujo potencial para desfazer eventuais injustiças na solução do caso concreto pelas instâncias ordinárias se restringe - aqui e alhures - às hipóteses infrequentes nas quais a correção do erro das decisões inferiores possa resultar do deslinde da questão puramente de direito, e de alçada constitucional, adequadamente trazida ao conhecimento do Supremo Tribunal: por isso, a decisão do RE não se compromete com a justiça ou não do acórdão recorrido.” (RE 254948, Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, julgado em 15/09/1999, DJ 31-08-2001 PP-00066 EMENT VOL-02041-05 PP-00944). 99 Theodoro Júnior (2007b : 6). 100 Em um estudo da década de 1940, Liebman já apontava que “a função específica desses tribunais supremos de dar prevalência à tutela de um interesse geral do Estado sobre os interesses dos litigantes”. Liebman (1941 : 605). 101 “[...] o modelo de Federação que foi adotado no Brasil difere daquele instituído nos Estados Unidos da América, uma vez que, no nosso país, as matérias reservadas aos Estados são muito mais restritas do que as matérias destinadas aos Estados norte-americanos. Como consequência, o número de matérias reservadas à União (ou seja, de direito federal, em seu sentido genérico, compreendendo tanto as matérias constitucionais quanto as matérias federais infraconstitucionais) é muito maior no Brasil do que nos Estados Unidos, o que acarreta, de maneira inexorável, um número sobejamente mais elevado de recursos extraordinários no nosso sistema (considerando que
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expediente recursal excepcional de modo corriqueiro, possibilitando a abertura da
instância extraordinária em toda e qualquer controvérsia que envolvesse matéria
constitucional.
Da inteligência do artigo 102, III da Constituição Federal de 1988102 é
possível extrair que o recurso extraordinário é cabível em face de toda decisão de
única ou última instância103 quando houver violação a qualquer dispositivo da
Constituição Federal104, cujo texto é, sabidamente, muito extenso105.
Ainda que com a Constituição de 1988 tenha se dado a consolidação no
plano normativo do princípio da inafastabilidade da jurisdição106, é certo que o
volume de processos e a demanda crescente nos órgãos judiciários, há muito
tempo tem causado uma letargia quase insuportável no Judiciário brasileiro.
ele é o remédio que, em um e noutro sistema, garante a unidade do direito federal).” In Coelho (2009: 18). 102 Nos termos do artigo 102, III da Constituição, compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe julgar, mediante recurso extraordinário as causas decididas em única ou última instância quando a decisão recorrida: a) contrariar dispositivo desta Constituição, b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal, c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição, d) julgar válida lei local contestada em face de lei federal. 103 Súmula nº 640 do Supremo Tribunal Federal: “É cabível recurso extraordinário contra decisão proferida por juiz de primeiro grau nas causas de alçada, ou por turma recursal de juizado especial cível e criminal” (sessão plenária de 24/09/2003. DJ de 9/10/2003, p. 2; DJ de 10/10/2003, p. 2; DJ de 13/10/2003). 104 O ministro Gilmar Mendes quando do julgamento do RE-395662 AGr/RS ao discorrer sobre o princípio da reserva legal, deixou assentado que “A Constituição Federal de 1988 estabelece ser admissível recurso extraordinário quando a decisão recorrida contrariar algum de seus dispositivos, declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal ou julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face do texto constitucional. Assim, ao contrário do que se verifica em outras ordens constitucionais, que limitam, muitas vezes, o recurso constitucional aos casos de afronta aos direitos fundamentais, optou o constituinte brasileiro por admitir o cabimento do recurso extraordinário contra qualquer decisão que, em única ou última instância, contrariar a Constituição. Portanto, a admissibilidade do recurso constitucional não está limitada, em tese, a determinados parâmetros constitucionais, como é o caso da Verfassungsbeschwerde na Alemanha (Lei Fundamental, art. 93, n. 04), destinada, basicamente, à defesa dos direitos fundamentais”. (RE 395662 AgR, Relator(a) p/ Acórdão Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, julgado em 16/03/2004, DJ 23-04-2004 PP-00036 EMENT VOL-02148-13 PP-02677). 105 Ovídio Baptista fez uma anotação interessante sobre a prática forense relacionada aos recursos excepcionais: “como todos sabem, com alguma habilidade profissional, leva-se ao Supremo Tribunal Federal qualquer litígio, desde aqueles conflitos entre vizinhos que litigam sobre a posse de um gato ou de um cachorro, até aqueles em que se pretenda indenização pela morte de um animal de estimação. A imprensa seguidamente dá-nos notícias desses jocosos incidentes forenses”. Silva (2004 : 263). 106 “Art. 5°. [...]XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;”.
51
Não é de hoje que se visualiza o abarrotamento processual no Supremo
Tribunal Federal107; de modo que há tempos já se buscam alternativas108 e
soluções para otimizar e descongestionar a suprema instância brasileira,
procurando limitar o excessivo número de processos e recursos em tramitação,
muitos dos quais repetitivos e protelatórios, com o objetivo de consolidar a
efetividade e celeridade da jurisdição.
Ademais, também é importante ressaltar que o congestionamento de
processos pendentes de julgamento no Supremo Tribunal Federal, além de ser
custoso para a sociedade com a insegurança pela indefinição de temas jurídicos
relevantes, acaba por importar em uma progressiva perda de qualidade das
decisões que são tomadas pelo Tribunal, já que o excessivo volume processual
gera uma pressão sobre os ministros que, muitas vezes, proferem decisões
insuficientemente fundamentadas ou pouco convincentes, fazendo com que o
órgão jurisdicional se desvie de seu propósito enquanto guardião da Constituição
e como legítimo responsável pela interpretação da Lei Fundamental e
uniformizadora da jurisdição constitucional109.
“Ninguém honesto e de bom senso pode afirmar que possa haver expectativa social, por mínima que possa ser, de que um ministro – por dotado que seja e reunindo todos os qualificativos para integrar um Tribunal culminante profira milhares de votos no espaço de um ano. Pode-se dizer que é uma situação inusitada, e, em realidade, anômala. Essa situação configura um quadro banalizador da função esperada dos Tribunais de cúpula”110.
107 Conforme noticiado por Pedro Lessa, o ministro Filadelfo Azevedo já apontava em 1915 uma “insuportável lentidão” no STF. Lessa (1915: 23). 108 Veja que já em 1956, foi constituída uma comissão especial com a finalidade de nortear uma futura reforma constitucional destinada a desafogar o Supremo e, posteriormente, em 1965, foi constituída nova comissão composta por ministros do Supremo e destinada a apontar os problemas e dar as soluções para a morosidade da justiça, para fins de instruir uma possível reforma do judiciário. In Coelho (2009: 19-26). 109 Patrícia Perrone, discorrendo sobre a necessidade das decisões proferidas pelas cortes constitucionais possuírem efeitos impositivos, assevera que “[...] a idéia de supremacia da Constituição e a necessidade de preservar a sua força normativa justificaram a atribuição de efeitos gerais e vinculantes às decisões sobre matéria constitucional nos ordenamentos do sistema romano. É o que ocorre, hoje, em maior ou menor amplitude, na Alemanha, com as decisões da Corte Constitucional Federal, na Itália, com os julgados da Corte Constituzionale, na Espanha, em seu Tribunal Constitucional. Por fim, o grande volume de casos levados a juízo, a necessidade de conferir uniformidade e credibilidade aos julgados e de limitar a discricionariedade dos magistrados passará também a ensejar o reconhecimento de efeitos impositivos à jurisprudência consolida em determinadas matérias, de modo a aprimorar a administração da justiça”. In Mello (2008: 51-52). 110 Arruda Alvim (2006 : 308).
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Inclusive como a questão do congestionamento do Supremo Tribunal
Federal é muito anterior à promulgação da Constituição Federal de 1988, muitas
das possíveis soluções já foram anteriormente debatidas, como, por exemplo,
aumentar o número de ministros que o compõem111, suprimir a violação à lei
federal como hipótese de cabimento do recurso extraordinário112, e, delegar para a
presidência dos Tribunais locais o exercício do juízo prévio de admissibilidade
dos recursos extraordinários113, soluções que ou não chegaram a ser
implementadas, ou restaram infrutíferas quanto a sua finalidade.
Inobstante a ineficácia de algumas medidas que estavam sendo tomadas
por órgãos externos à Corte Constitucional e da pouca utilidade prática das
propostas, o Supremo Tribunal Federal, ainda em 1963114, procurou adotar
111 O aumento do número de ministros do Supremo Tribunal Federal não chegou a ser implementado, no entanto, a sua implementação seria um mero paliativo, que, com o tempo, e pela sucessão da mesma prática pelo crescimento do volume de recursos implicaria na formação de uma assembleia de magistrados, acarretando a necessidade de criação de um órgão especial para fazer as vezes de plenário, não se coadunando com a natureza da Suprema Corte que é de fixar teses jurídicas, não podendo o tribunal ficar dividido em várias turmas a ensejar a divergência entre elas. In Alves (1982: 45). 112 Com a Constituição Federal de 1988, tal hipótese de cabimento de recurso extraordinário passou a ser da competência do Superior Tribunal de Justiça nos termos do artigo 105, III, contudo, com a emenda constitucional n. 45/04, passou a ser da competência do Supremo o recurso quando houver julgamento de validade de lei local contestada em face de lei federal nos termos do artigo 102, III, ‘b’. 113 O artigo 865 do Código de Processo Civil de 1939, tal qual o artigo 542 do atual Código de Processo Civil delegaram ao presidente ou ao vice-presidente dos Tribunais locais a competência para o exercício do juízo prévio de admissibilidade recursal, contudo, a ideia inicial que era de reduzir o número de recursos extraordinários que ascenderiam para a Suprema Instância restou frustrada, na medida em que, contra tal decisão que inadmitia o recurso extraordinário é cabível o recurso de agravo para o Supremo, logo, numericamente, ocorreu a substituição de um recurso por outro. In Coelho (2009: 21). 114 Pela emenda ao regimento interno do STF (RISTF) de 28/08/1963 que assim dispunha: “Art. lº. É criada, no Supremo Tribunal Federal, a Comissão da Jurisprudência, integrada por três ministros, designados pelo presidente. Art. 2º. Compete à comissão de Jurisprudência: I – Superintender a publicação e a divulgação da Jurisprudência do Tribunal, expedindo normas de serviço e sugerindo ao Presidente as que envolverem matéria de sua competência. II – Classificar as decisões sobre argüição de inconstitucionalidade, segundo as três hipóteses previstas no regimento, art. 87, §§ 1º, 2º, 3º, com precisa referência as normas legais ou atos a que se refiram. III – Relacionar e classificar as resoluções do Congresso ou do Senado, nos casos previstos na Constituição Federal, art. 8º, caput, 13 e 64. IV – Velar pela publicação e atualização da Súmula da Jurisprudência predominante do supremo Tribunal Federal, a que se referem os artigos seguintes. V – Providenciar, em colaboração com entidades públicas ou privadas, o estudo da possibilidade de utilizar, na classificação, catalogação e divulgação da jurisprudência do Tribunal, processos eletro-mecânicos ou eletrônicos, propondo ao presidente as medidas que julgar convenientes. VI – Superintender a preparação do expediente para remessa, ao Senado, de decisão, por maioria qualificada, que tiver concluído pela inconstitucionalidade de lei ou decreto (Const. Fed., art. 64). VII – Entender-se, por seu Presidente, com outras autoridades ou instituições, nas matérias de sua competência. Art. 3º. A pedido de seu Presidente, serão postos à disposição da comissão de
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restrições internas ao cabimento do recurso extraordinário visando coibir o acesso
à jurisdição constitucional por meio da edição de súmulas baseadas no
entendimento predominante do próprio Tribunal.
Tal jurisprudência defensiva115, adotada pelo Supremo Tribunal Federal na
década de sessenta e utilizada até os dias atuais, também tinha como objetivo
reduzir numericamente o quantitativo de recursos que ascendiam à Corte, mas
como não possuía efeitos vinculantes, servia tão somente como embaraço natural
Jurisprudência, pelo Presidente do Tribunal, os servidores que forem necessários ao bom andamento de seus serviços, um dos quais será o Secretário da Comissão. Art. 4º. Será publicada, como anexo do Regimento, com as atualizações que se fizerem necessárias, a Súmula da Jurisprudência Predominante do Supremo Tribunal, que poderá ser citada, abreviadamente, como Súmula do Supremo Tribunal, ou simplesmente súmula. Art. 5º. Serão inscritos na súmula enunciados correspondentes: I – às decisões do Tribunal, por maioria qualificada, que tenham concluído pela constitucionalidade ou inconstitucionalidade de lei ou ato do poder público (reg., art. 87, § 6º). II – à jurisprudência que o Tribunal tenha por predominante e firme, embora com votos vencidos. Art. 6º. A inscrição de enunciado na súmula será decida pelo plenário, por proposta da comissão de Jurisprudência, ou de qualquer dos Ministros, com o parecer da comissão. Parágrafo único. O enunciado será sucinto e mencionará as normas constitucionais, legais, regimentais ou de regulamento, a que se refira. Art. 7º. Qualquer dos Ministros, por iniciativa própria, ou atendendo a sugestão constante dos autos, poderá propor ao Tribunal a revisão do enunciado constante na súmula, quando surgir a oportunidade em processo ou incidente processual, observando-se, em matéria constitucional, o disposto no artigo 87, § 6º, do Regimento. Art. 8º. Sempre que o plenário decidir em contrário ao que constar da súmula: I- Será cancelado o respectivo enunciado, até que novo se firme a jurisprudência no mesmo ou em outro sentido.”. disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/biblioteca/PastaSTF/Curiosidades/1963.pdf> Acesso em: Nov. de 2012. 115 São exemplos de jurisprudência defensiva do Supremo Tribunal Federal – súmula 279: “para simples reexame de prova não cabe recurso extraordinário” (Sessão Plenária de 13/12/1963. Súmula da Jurisprudência Predominante do Supremo Tribunal Federal – Anexo ao Regimento Interno. Edição: Imprensa Nacional, 1964, p. 127); súmula 280: “por ofensa a direito local não cabe recurso extraordinário” (Sessão Plenária de 13/12/1963. Súmula da Jurisprudência Predominante do Supremo Tribunal Federal – Anexo ao Regimento Interno. Edição: Imprensa Nacional, 1964, p. 127); súmula 281: “É inadmissível o recurso extraordinário, quando couber na justiça de origem, recurso ordinário da decisão impugnada” (Sessão Plenária de 13/12/1963. Súmula da Jurisprudência Predominante do Supremo Tribunal Federal – Anexo ao Regimento Interno. Edição: Imprensa Nacional, 1964, p. 128); súmula 282: “é inadmissível o recurso extraordinário, quando não ventilada, na decisão recorrida, a questão federal suscitada”. (Sessão Plenária de 13/12/1963. Súmula da Jurisprudência Predominante do Supremo Tribunal Federal – Anexo ao Regimento Interno. Edição: Imprensa Nacional, 1964, p. 128); súmula 283: “É inadmissível o recurso extraordinário, quando a decisão recorrida assenta em mais de um fundamento suficiente e o recurso não abrange todos eles” (Sessão Plenária de 13/12/1963. Súmula da Jurisprudência Predominante do Supremo Tribunal Federal – Anexo ao Regimento Interno. Edição: Imprensa Nacional, 1964, p. 128); súmula 284: “É inadmissível o recurso extraordinário, quando a deficiência na sua fundamentação não permitir a exata compreensão da controvérsia” (Sessão Plenária de 13/12/1963. Súmula da Jurisprudência Predominante do Supremo Tribunal Federal – Anexo ao Regimento Interno. Edição: Imprensa Nacional, 1964, p. 129); súmula 356: “O ponto omisso da decisão, sobre o qual não foram opostos embargos declaratórios, não pode ser objeto de recurso extraordinário, por faltar o requisito do prequestionamento.” (Sessão Plenária de 13/12/1963. Súmula da Jurisprudência Predominante do Supremo Tribunal Federal – Anexo ao Regimento Interno. Edição: Imprensa Nacional, 1964, p. 154).
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à admissão do recurso extraordinário na origem, o que não impedia a interposição
do agravo de instrumento contra a sua inadmissão.
No caso, como o recurso extraordinário sempre foi interposto junto ao
Tribunal de origem, a quem caberia realizar a primeira análise da admissibilidade
recursal, na hipótese desse juízo ser negativo, sempre seria cabível a interposição
do recurso de agravo de instrumento nos termos do artigo 544 do código de
processo civil116, sendo, inclusive, vedado ao Tribunal a quo obstar o seu
encaminhamento ao Supremo Tribunal Federal117, ou seja, numericamente não se
diminuía o número de recursos distribuídos ao Supremo, apenas se alterava a
qualidade do provimento judicial recorrido.
Na vigência da Constituição anterior, a ampla acessibilidade recursal ao
Supremo Tribunal Federal continuou gerando um expressivo e crescente
movimento de recursos extraordinários e de agravos de instrumento perante à
Corte, conjuntura fática que levou à criação, no passado, da arguição de
relevância, como mecanismo destinado a limitar o acesso recursal ao Supremo
Tribunal Federal, restringindo as hipóteses de seu cabimento, já que os outros
mecanismos experimentados não surtiram o efeito esperado.
No caso, não há dúvida de que tanto a jurisprudência defensiva quanto as
modificações procedimentais no rito do recurso extraordinário impuseram
constrangimentos à admissibilidade do recurso extraordinário, diminuindo em
maior ou em menor grau o quantitativo dessas ações que ascendiam ao Supremo
Tribunal Federal; no entanto, tais institutos tratavam do problema de forma
mediata, segundo uma concepção de que a recorribilidade extraordinária seria
universal118, não impondo uma seletividade de temas relevantes a serem
apreciados pelo Supremo Tribunal Federal, situação somente verificada após o
advento da arguição de relevância.
116 “Art. 544. Não admitido o recurso extraordinário ou o recurso especial, caberá agravo nos próprios autos, no prazo de 10 (dez) dias”. 117 Súmula 727 do STF: “Não pode o magistrado deixar de encaminhar ao Supremo Tribunal Federal o agravo de instrumento interposto da decisão que não admite recurso extraordinário, ainda que referente a causa instaurada no âmbito dos juizados especiais”. (Sessão Plenária de 26/11/2003. DJ de 9/12/2003, p. 1; DJ de 10/12/2003, p. 2; DJ de 11/12/2003, p. 2). 118 Azem (2009: 32) e Coelho (2009: 16).
55
Nesse sentido, diante de todas as tentativas de desafogar o Supremo
Tribunal Federal que antecederam a instituição da repercussão geral, algumas
criadas pela própria Corte e outras por órgãos externos, certamente, a arguição de
relevância é o seu antecedente histórico mais específico e relevante, devendo ser
analisado individualmente por se tratar de um mecanismo que priorizava o acesso
adequado à jurisdição constitucional mediante seletividade, não tratando dos
recursos em controle difuso de constitucionalidade como um direito universal e
absoluto, mas como um mecanismo excepcional, assim como a repercussão geral
o faz atualmente.
2.2.1
Da arguição de relevância
A Constituição Federal de 1967, com a redação fornecida pela emenda
constitucional n. 01 de 1969, estabelecia em seu artigo 119, III, que competia para
o Supremo Tribunal Federal julgar mediante recurso extraordinário as causas
decididas em única ou última instância por outros tribunais, quando a decisão
recorrida contrariasse dispositivo constitucional ou negasse vigência de tratado ou
lei federal, quando declarasse a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal,
quando julgasse válida lei ou ato do governo local contestado em face da
Constituição ou de lei federal, ou ainda, quando desse à lei federal interpretação
divergente da que lhe tenha dado outro Tribunal ou o próprio Supremo Tribunal
Federal.
Assim, muito embora se trate de ordens constitucionais distintas, é certo
que as competências do Supremo Tribunal Federal, para julgamento dos recursos
extraordinários interpostos sob a égide da emenda constitucional n. 01/1969, se
assemelham com as suas competências atuais previstas no inciso III do artigo 102
da Constituição Federal de 1988119, no entanto, mais relevante do que a
119 “Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: [...] III - julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida: a) contrariar dispositivo desta Constituição; b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição. d) julgar válida lei local contestada em face de lei federal.”
56
proximidade existente entre o texto atual e o texto da constituição anteriormente
vigente para o presente trabalho, foi a inovação estabelecida pelo parágrafo único
do artigo 119120, que atribuiu competência legislativa121 ao Supremo Tribunal
Federal para restringir, via disposição regimental a admissibilidade de recursos
extraordinários.
Com a emenda constitucional n. 01/1969 foi criado o instituto da arguição
de relevância cujos propósitos e finalidades eram semelhantes ao instituto da
repercussão geral, sendo importante delinear os seus contornos, sua construção
normativa e a metodologia de trabalho adotada pelo Supremo Tribunal Federal no
período de sua vigência, proporcionando a construção de um paralelo com o atual
sistema de filtro recursal criado pela emenda constitucional n. 45/2005.
Inicialmente, o Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, na
redação vigente à época (12/11/1969), excluía a possibilidade de interposição de
recurso extraordinário nos litígios decorrentes de acidente de trabalho e das
relações de trabalho, nos mandados de segurança quando não houvesse apreciação
de mérito, nos processos criminais em que fosse culminado em abstrato a pena de
multa, prisão simples e detenção; e nas ações cujo benefício patrimonial não
excedesse 60 salários mínimos, conforme previsão taxativa do artigo 308 do
Regimento Interno da Corte122.
Na redação original, a relevância estava adstrita às hipóteses não previstas
na disposição restritiva regimental, assim, muito embora a própria Constituição
não se utilizasse da expressão “relevância”, consagrou-se que havia relevância nos
120 “Parágrafo único. As causas a que se refere o item III, alíneas a e d, deste artigo, serão indicadas pelo Supremo Tribunal Federal no regimento interno, que atenderá à sua natureza, espécie ou valor pecuniário.” 121 Conforme previsto no artigo 119 da Constituição Federal vigente à época, as hipóteses previstas nas alíneas “a” e “d” seriam aquelas indicadas pelo Supremo Tribunal Federal no seu regimento interno, ou seja, ao estabelecer quais eram as hipóteses de cabimento do recurso extraordinário o Supremo Tribunal Federal estaria regulamentado, genérica e abstratamente, e, portanto, com efeitos normativos, dispositivo constitucional, daí falar em competência legislativa. 122 É certo que a primeira alteração do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal para incluir as hipóteses em que haveria relevância da questão federal debatida no recurso a ser aviado ocorreu em 12/11/1969, sendo sucessivamente alterado em 04/09/1970 para incluir novas hipóteses e em 27/10/1980. Já em 09/12/1985 ocorreu a última alteração restritiva no regimento, com a edição da emenda regimental n.02 que alterou a sistemática regimental para o exame de admissibilidade recursal, passando a descrever as hipóteses taxativas em que o recurso seria cabível, ao revés das hipóteses em que o recurso não era admissível. Coelho (2009 : 30/31).
57
casos não vedados pelo regimento interno da Corte. Posteriormente, com a edição
da emenda constitucional n. 07/1977, que elevou a arguição de relevância ao
status de preceito constitucional, passou-se a exigir que o recurso extraordinário
veiculasse uma “questão federal relevante”123 na forma indicada pelo Supremo
Tribunal Federal em seu regimento interno.
Assim, após a edição da emenda constitucional n. 07/1977 e com a emenda
regimental n. 02/1985 houve uma significativa alteração do mecanismo de
reconhecimento da relevância da questão federal debatida, já que, antes da citada
emenda, o regimento interno arrolava as hipóteses de não cabimento do recurso,
no entanto, com a alteração do artigo 325 do Regimento Interno, o Supremo
Tribunal Federal passou a estabelecer as hipóteses taxativas de cabimento do
recurso extraordinário, ampliando o âmbito de incidência da relevância.
No caso, com a emenda n. 02/1985, o regimento interno passou a
disciplinar as hipóteses em que a relevância da questão federal era implícita
(artigo 325, I a X do RISTF), com uma última “hipótese aberta” em que o apelo
excepcional poderia ser admitido desde que demonstrada a relevância da questão
federal - “em todos os demais feitos, quando reconhecida a relevância da questão
federal” (artigo 325, XI do RISTF)124. Nesse sentido, nas hipóteses de relevância
implícita o recorrente estava dispensado de demonstrar a relevância da questão
federal, condição de admissibilidade somente exigida na “hipótese aberta”.
Tal “hipótese aberta” de apreciação de relevância da questão federal em
muito se assemelha com a atual repercussão geral, ainda mais quando se observa o
123 Com a emenda constitucional, n. 07/1977 o antigo parágrafo único do artigo 119 da Constituição Federal que na sua parte final dispunha “atenderá à sua natureza, espécie ou valor pecuniário”, foi substituído pelos §§ 1°, 2° e 3°, sendo incluído expressamente no parágrafo primeiro que o cabimento do recurso extraordinário seria indicado regimentalmente pelo STF, atendendo “a sua natureza, espécie, valor pecuniário e relevância da questão federal”. 124 Art. 325. Nas hipóteses das alíneas a e d do inciso III do artigo 119 da Constituição Federal, cabe recurso extraordinário: I – nos casos de ofensa à Constituição Federal, II- nos casos de divergência com a súmula do Supremo Tribunal Federal ou Estadual, III – nos processos por crime em que seja apenada pena de reclusão, IV – nas revisões criminais dos processos em que trata o inciso anterior, V – nas ações relativas à nacionalidade e aos direitos políticos, VI – nos mandados de segurança julgados originalmente por Tribunal Federal ou Estadual, em matéria de mérito, VII- nas ações populares, VIII – nas ações relativas ao exercício do mandato eletivo, federal, estadual ou municipal, bem como às garantias da magistratura, IX – nas ações relativas ao estado das pessoas, em matéria de mérito, X – nas ações rescisórias, quando julgadas procedentes em questão de direito material, XI – em todos os demais feitos, quando reconhecida a relevância da questão federal.
58
artigo 327, §1°125 e o artigo 328126 do regimento interno do Supremo Tribunal
Federal que, sucessivamente, dispunham sobre um conceito extremamente vago
para o que deveria ser entendido por “questão federal relevante”, e a necessidade
de apurar a sua ocorrência em preliminar recursal.
Diferentemente do tratamento que hoje é dado à repercussão geral, a forma
como foi operacionalizada a arguição de relevância, conjugando hipóteses de
relevância implícita ou presumida, com uma hipótese de cabimento ampla na qual
deveria ser demonstrada a importância da questão federal, fez com que a arguição
não atingisse um grau satisfatório mínimo de eficiência e operacionalidade,
situação bem diferente da atual configuração da repercussão geral.
A arguição de relevância, ao introduzir um elenco de situações nas quais
seria cabível a interposição do recurso extraordinário pela presunção de
relevância, acabou por estabelecer casos concretos e específicos que não
limitavam o trabalho criativo dos advogados a fim de criar mecanismos para
escapar do filtro recursal e dificultar a execução do juízo de admissibilidade
recursal.
Vale dizer, aquele rol que deveria limitar o cabimento do recurso acabou
sendo utilizado como modelo hermenêutico para ampliar as hipóteses de
cabimento em decorrência de sua vagueza.
Se atualmente a repercussão geral exige que todos os recorrentes, desde
logo, demonstrem que a causa versa sobre matéria relevante do ponto de vista
econômico, político, social ou jurídico e ainda que ultrapasse os interesses
subjetivos dos litigantes, isto é, exige em todos os recursos que o objeto jurídico
seja relevante e que exista transcendência127, naquela época, o modelo da arguição
de relevância não exigia a demonstração de reflexos na ordem jurídica de acordo
com valores morais, econômicos, políticos ou sociais da causa de todos os
recursos interpostos, já que algumas causas eram admitidas ainda que o objeto
125 “[...] pelos reflexos na ordem jurídica, e considerados os aspectos morais, econômicos, políticos ou sociais da causa, exigir a apreciação do recurso extraordinário pelo Tribunal”. 126 “A argüição de relevância da questão federal será feita em capítulo destacado na petição de recurso extraordinário [...]” 127 Tal ponto será melhor tratado no decorrer do presente trabalho.
59
jurídico não fosse relevante ou que não transcendesse128 o interesse dos
recorrentes.
Assim, tratando-se de uma causa que não versasse sobre matéria de
interesse público cujos reflexos na ordem jurídica, considerados os aspectos
morais, econômicos, políticos ou sociais da causa não exigissem a apreciação do
recurso extraordinário pelo Tribunal nos termos do artigo 327, §1° do RISTF,
bastava que o advogado inserisse ou adaptasse o recurso em qualquer das outras
dez hipóteses de cabimento previstas no artigo 325 do Regimento Interno,
valendo-se de sua criatividade.
As hipóteses de cabimento do recurso extraordinário em que a relevância
era tida por presumida, por uma vagueza terminológica, possibilitavam uma
atividade interpretativa para escapar do filtro recursal, já que a norma
contemplava conceitos vagos, como “ações relativas a direitos políticos” ou
“ações relativas ao estado de pessoas” ou mesmo “garantias da magistratura”.
Nesses casos, constatando a ausência de relevância da matéria debatida na
causa, bastava o recorrente realizar uma atividade interpretativa para enquadrar a
sua demanda em uma das hipóteses com vaguidade de relevância presumida e que
tivesse alguma compatibilidade com o mérito da causa, situação que ampliava, em
muito, o rol de admissão daqueles recursos carentes de interesse público129 e que,
sabidamente, deveriam ser inadmitidos.
Inclusive, a própria redação do regimento interno acabava por retirar a
necessidade de demonstração da relevância da questão federal debatida, eis que,
somente no inciso XI do artigo 325 do Regimento Interno do Supremo Tribunal
Federal, era exigida a efetiva demonstração de relevância (“demais feitos”), de
modo que, visualizada a ausência de interesse público pelo recorrente, poderia ele
128 Victor Nunes Leal sobre transcendência: “Sem dúvida, o conceito de importância está relacionado com a importância das questões para o público, em contraste com a sua importância para as partes interessadas.” Leal (1976: 39) apud Veloso (2006 : 10). 129 Victor Nunes Leal utilizava da expressão interesse público para delimitar a zona de relevância de um recurso extraordinário em que existisse alta relevância da questão federal debatida e que ultrapassasse o interesse exclusivo das partes litigantes. Vejamos: “Antes de tudo, a relevância, para este efeito, será apurada especialmente do ponto de vista do interesse público. Em princípio, qualquer problema de aplicação da lei é de interesse público. Mas, na prática, muitas questões têm repercussão limitada às partes, ou a pequeno número de casos, e há problemas legais cujas conseqüências são muito reduzidas, mesmo para as partes, servindo antes como pretexto para manobras protelatórias ou que visam subtrair o mérito do litígio ao direito aplicável”. Leal (1965: 12).
60
tentar enquadrar o litígio em outra hipótese de cabimento do recurso
extraordinário, em que haveria a presunção de relevância, sendo desnecessária a
sua demonstração.
Assim, o rol de cabimento do recurso extraordinário em que a presunção
de relevância que aparentemente deveria ser taxativa, propiciava, na verdade, a
admissão de recursos irrelevantes do ponto de vista do interesse público.
Além desse problema, a arguição pressupunha a existência de relevância
de questão federal, não contemplando as questões regionais ainda que tivessem
interesse nacional, o que prejudicava uma das funções essenciais do órgão
judiciário de cúpula que é zelar pela uniformidade e pela supremacia da
Constituição Federal.
É certo que muitas outras críticas130 foram veiculadas contra a arguição de
relevância ao longo do período de sua vigência, contudo, é oportuno delimitar
neste momento que tais problemas escapam do objeto de estudo, que se concentra
na vagueza no direito e mais precisamente na indeterminação presente no conceito
130 As principais críticas conduzidas à arguição de relevância que não foram expressamente abordadas no trabalho centravam-se na: 1. falta de clareza conceitual ou subjetivismo do instituto, como se dessume das lições de Seabra Fagundes, em que “o critério de vinculação do conhecimento do recurso extraordinário, à ocorrência, na causa, da questão federal de alta relevância, arma dos juízes de um ilimitado arbítrio na admissão dos recursos, desde que transfere para um plano estritamente subjetivo os pressupostos do respectivo cabimento. E por mais devotados ao estudo os componentes do Supremo Tribunal, é de recear que lhes caiba decidir pela aplicação de um critério tão dúctil pois a margem de erro, própria de todo juízo humano, é tanto maior quanto menos condicionado a normas rígidas esse juízo. A segurança dos direitos do indivíduo, quer em face do Estado, que modernamente cada dia com eles mais interfere, quer em face de pessoas privadas, ainda tem seu melhor instrumento no teor estrito das normas legais, no mínimo de arbítrio que se deixe ao administrador e ao juiz chamado a corrigir os erros ou demasias deste. E se o arbítrio do Poder Executivo é perigoso, porque facilmente trabalhável o administrador por influencias políticas, o do Poder Judiciário o é mais ainda, porque irremediável nas suas conseqüências. Os critérios de julgar estritamente subjetivos, são sempre de temer pelas desconcertantes variações de opinião a que se conduzem [...]”, in Seabra Fagundes (1966: 9). 2. apreciação do instituto em sessão administrativa e não pública, como observado por Evandro Gueiros Leite, in Leite (1987: 15). 3. ausência de motivação das decisões que julgavam a relevância da questão federal no recurso manejado, conforme bem abordado por Barbosa Moreira, para quem “[...] o Supremo Tribunal Federal há de guiar-se por algum critério. Na medida em que este critério, embora desprovido de rigidez, seja racional – e não puramente ‘voluntarístico’, ou ditado pelo ‘sentimento’ ou pela ‘intuição’ – pode ser explicado, e diríamos mais: reclama explicação. Até porque, elástico que seja o critério, para conservar-se digno deste nome, há de ser aplicado um mínimo de coerência e de homogeneidade. Se dois litigantes, em casos análogos, argúem a relevância da mesma questão federal é de se esperar em princípio, que recebam iguais respostas; e, na hipótese de as receberem desiguais, faz indispensável ao controle extraprocessual do funcionamento do mecanismo assecuratório que se conheçam os motivos da diferença de tratamento, que se identifiquem as peculiaridades em virtude das quais um viu acolhida e outro rejeitada a sua argüição”, in Barbosa Moreira (1979: 113/114).
61
de repercussão geral e nas suas consequências para a atuação do Supremo
Tribunal Federal.
Portanto, percebe-se com tais observações que o instituto da repercussão
geral guarda pequena semelhança estrutural e operacional com a arguição de
relevância, sobretudo quanto à existência de uma vagueza em seu conceito, no
entanto, cada um dos institutos possui feições próprias e diferenciadas, tratando-se
a repercussão geral de novo instituto constitucional.
A ausência de replicação da arguição de relevância na Constituição
Federal de 1988, também fez com que a arguição desaparecesse, contudo, sua
extirpação em nada contribuiu para solucionar a crise de assoberbamento de
trabalho vivenciada pelo Supremo Tribunal Federal, contexto no qual a
repercussão geral surge como uma nova possibilidade de solução para o problema.
2.2.2
A natureza jurídica da arguição de relevância e a sua vagueza
conceitual
Após a entrada em vigor da emenda regimental n. 02/1985131, a arguição
de relevância passou a estabelecer as hipóteses de cabimento do recurso
extraordinário, sendo compreendida como um requisito especial de
admissibilidade recursal.
Por não se tratar de um recurso propriamente dito, já que não almejava a
impugnação de uma decisão judicial, a arguição de relevância consistia em um
incidente preliminar à admissibilidade do recurso extraordinário interposto, no
qual o Supremo Tribunal avaliaria, em um juízo político, se o recurso estava
inserido em qualquer das hipóteses taxativas de admissão regimental (inciso I ao
X do artigo 325 do RISTF) ou no “tipo aberto” (inciso XI do artigo 325 do
RISTF)132.
131 Como até a entrada em vigor da citada emenda, o regimento interno do STF dispunha sobre as causas em que não se admitia a interposição de recurso, nesse período, a natureza jurídica da arguição de relevância era compreendida como sendo uma circunstância “excludente de inadmissibilidade do recurso extraordinário”. In Coelho (2009 : 40). 132 Sobre a inexistência de natureza recursal da arguição de relevância, assim decidiu o STF: “A ARGÜIÇÃO DE RELEVÂNCIA NÃO CONSTITUI MEIO DE IMPUGNAÇÃO DE DECISÃO JUDICIAL, NÃO PODENDO FAZER AS VEZES DE RECURSO EXTRAORDINÁRIO QUE SE DEIXOU DE INTERPOR. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO. (RE 90155 AgR,
62
Assim, como apresentado anteriormente, a norma regimental destacou
duas hipóteses de cabimento do recurso extraordinário, ou seja, aquelas em que a
relevância era presumida pelo elemento normativo e aquelas em que cabia ao
recorrente demonstrar os reflexos na ordem jurídica, considerando os aspectos
morais, econômicos, políticos ou sociais da causa.
Na primeira hipótese, em virtude de uma vagueza terminológica, era
possível aos operadores do direito escapar do filtro recursal por meio de uma
atividade interpretativa, interpretando os conceitos vagos, possibilitando a
admissão de recursos que não apresentavam qualquer relevância.
Em relação à segunda hipótese de cabimento do recurso extraordinário,
competia ao recorrente demonstrar a existência de uma “questão federal
relevante” debatida na causa, isto é, o problema consistia em delimitar esse
conceito jurídico vago.
Assim, já naquele período, discutia-se sobre a necessidade de adoção de
critérios que não obstaculizassem o Supremo Tribunal Federal de conhecer as
demandas efetivamente relevantes sobre o prisma do interesse público, com a
imposição de hipóteses taxativas de admissibilidade recursal, sob o pálio da
segurança jurídica, e que, ao final, pudessem enrijecer o instituto, tornando-o
insuscetível de acompanhar as alterações decorrentes da complexidade das
relações sociais.
Nesse sentido, Victor Nunes Leal133 sustentava a impossibilidade de se
fixar uma definição rigorosa para a “relevância”, já que esse conceito deveria ser
delimitado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, importando em uma
gradual redução de sua vagueza com a formação de precedentes, orientando os
jurisdicionados acerca daquilo que é relevante ou não do ponto do vista
institucional da Corte.
Relator(a): Min. XAVIER DE ALBUQUERQUE, Primeira Turma, julgado em 14/11/1978, DJ 11-12-1978 PP-01049 EMENT VOL-01119-02 PP-00732)”. 133 Leal (1965 : 63).
63
2.2.3
Confronto entre a arguição de relevância e a exigência de
repercussão geral da questão constitucional
Inobstante existam várias características em comum entre a arguição de
relevância e a repercussão geral da questão constitucional, já que ambas foram
instituídas para diminuir o número excessivo de recursos distribuídos ao Supremo
Tribunal Federal, criando mecanismos próprios de seleção e filtragem ao acesso à
jurisdição constitucional, efetivamente, o instituto da repercussão geral possui
contornos próprios, que o diferencia do sistema vigente na ordem constitucional
anterior.
No sistema da arguição de relevância, havia a atribuição de uma
competência legislativa ao Supremo Tribunal Federal para criar restrições à
admissibilidade dos recursos extraordinários, em que a corte delimitou em seu
regimento interno hipóteses de relevância presumida, conjugando-as com uma
hipótese em que cabia ao recorrente demonstrar os reflexos na ordem jurídica,
considerando os aspectos morais, econômicos, políticos ou sociais da causa134.
Ao contrário, no modelo da repercussão geral, todos os recursos
interpostos se sujeitam à demonstração de relevância da questão constitucional
debatida, independentemente da matéria. Deve-se acrescentar também que não
houve a concessão de competência legislativa para o Supremo Tribunal Federal
criar óbices regimentais à admissão de qualquer recurso.
No sistema anterior averiguava-se a relevância de questão federal, razão
pela qual questões regionais ou locais, ainda que de interesse nacional, não
preenchiam o requisito da “relevância da questão federal”, enquanto que no
sistema atual, poderão ser objeto de recurso desde que a questão manifestada seja
relevante sobre o prisma econômico, político, social ou jurídico.
Para a admissão da relevância era exigida a manifestação de quatro
ministros, enquanto que, para a repercussão geral exige-se o voto de dois terços
do Supremo Tribunal para recusar a existência de repercussão.
A arguição de relevância era instaurada em procedimento específico e
ocorrida em sessão secreta da qual não se exigia qualquer motivação. Do
134 Tal conjugação foi problemática, como demonstrado anteriormente.
64
contrário, a repercussão geral é processada como preliminar recursal, em sessão
pública e, ainda, exigindo-se a devida fundamentação em caso de recusa.
Assim, é certo que, embora existam características em comum nos dois
institutos analisados, as dessemelhanças estruturais também são evidentes, razão
pela qual, é possível concluir que a repercussão geral é um novo instituto
constitucional com feições próprias que não reproduz alguns dos equívocos da
arguição de relevância que fizeram com que o instituto fosse extinto no passado.
2.3
Repercussão Geral como instrumento de controle de acesso à
jurisdição extraordinária
A ocorrência de inúmeras críticas à arguição de relevância, sobretudo, a
possibilidade de seu julgamento ocorrer de forma secreta e imotivada, somada à
capacidade legislativa delegada ao Supremo Tribunal Federal para criar óbices
regimentais à admissão do recurso extraordinário, acabou por criar um
movimento, principalmente entre os advogados135, para a ampliação da
admissibilidade do recurso excepcional à Corte, o que importou na eliminação do
instituto.
Ademais, é certo que a Constituição Federal de 1988 provocou uma
significativa alteração na Estrutura do poder judiciário então existente, com a
extinção do Tribunal Federal de Recursos e a criação dos Tribunais Federais e do
Superior Tribunal de Justiça, inclusive, com a criação de uma nova modalidade
recursal extraordinária para ele dirigido – o recurso especial.
Criado o Superior Tribunal de Justiça e o recurso especial, seguiu-se uma
completa reestruturação do recurso extraordinário e das competências do Supremo
Tribunal Federal, as quais passaram a ser divididas entre este e o novo tribunal de
superposição criado, que passou a ser competente para conhecimento e
julgamento de questões infraconstitucionais. Nesse sentido, o Supremo Tribunal
Federal manteve-se estruturalmente como o Tribunal de superposição na estrutura
135 Ponderava Carlos Mário da Silva Veloso que existia um clamor entre a classe dos advogados pelo alargamento da admissibilidade do recurso extraordinário, principalmente, em decorrência do reduzido número de litígios que ascendiam à Corte, fazendo com que os Tribunais Estaduais se tornassem verdadeiras ‘Cortes Supremas Estaduais’ ou ‘Cortes de julgamento definitivo’ uma vez que as suas decisões raramente eram revistas pelo Supremo Tribunal Federal. Veloso(1988: 86).
65
judiciária brasileira, mantendo a tarefa de guardião do direito constitucional, mas
perdeu a função de interpretar e conferir unidade à jurisprudência relativa às leis
federais que passaram a ser exercidas por esse novo Tribunal136 137.
Assim, embora as alterações inseridas pelo novo texto constitucional
tenham proporcionado alguma redução no quantitativo de processos que
ascendiam ao Supremo Tribunal Federal com a divisão de competências
implementada com o Superior Tribunal de Justiça, é certo que, pouco a pouco,
desde o fim da arguição de relevância e dos óbices regimentais que eram
colocados à admissibilidade do apelo extremo, o Supremo Tribunal Federal
novamente restou congestionado138.
Dessa forma, a problemática envolvendo o excesso de recursos em
tramitação perante o Supremo Tribunal Federal e as consequências nefastas que a
lentidão da justiça causam para a democracia e a sociedade brasileira como um
todo, retornaram à pauta. No caso, dados relativos à distribuição de processos
demonstram a desproporção e o excessivo número de recursos extraordinários e
agravos de instrumento que correspondem quase sempre a mais de 90% do total
de feitos autuados na Corte139.
Um comparativo de referência fornecido pelo próprio Supremo Tribunal
Federal aponta o crescimento exponencial do número de processos distribuídos na
136 Nesse sentido prescreve o artigo 102 da Constituição Federal que compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe, julgar mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida: a) contrariar dispositivo desta Constituição; b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição; e, d) julgar válida lei local contestada em face de lei federal. 137 Já o artigo 105 da Constituição Federal assegura competência ao Superior Tribunal de Justiça para julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida: a) contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência; b) julgar válido ato de governo local contestado em face de lei federal; e, c) der a lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal. 138 José Rogério Cruz e Tucci ressalta que a democratização das relações constitucionais vivenciadas após a edição da Constituição Federal de 1988, sobretudo o incremento de direito e garantias, aliada à enorme abrangência de matérias dispostas na Lei Fundamental, propiciaram um incremento no quantitativo de litígios decorrente da disseminação da cidadania, “resultante da aguda conscientização da titularidade de direito de cidadão e de consumidor”, pretensões que, “há pelo menos duas décadas, não se pensava serem tuteláveis”. Tucci (2004 : 75). 139 Dados disponíveis e obtidos no sítio do STF na internet. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=estatistica&pagina=REAIProcessoDistribuido>. Acesso em: abril de 2012.
66
Corte, passando de 16.226 em 1990 para 116.216 em 2006140. Nessa mesma
estatística, o percentual de agravos de instrumento e de recursos extraordinários
em relação à totalidade da distribuição em 1990 correspondia ao equivalente a
81,8%, já em 2006, equivalia a 95,3% de toda a distribuição do Tribunal141.
Assim, o Constituinte atento a tais premissas e sensível à realidade
enfrentada pelo Supremo Tribunal Federal, editou a emenda constitucional n. 45
de 08 de dezembro de 2004, estabelecendo, dentre outras disposições, a
necessidade de demonstração de repercussão geral da questão constitucional
debatida na lide como condição de admissibilidade do recurso extraordinário
interposto:
“§ 3º No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros."
O objetivo da criação desse instituto é devolver ao Supremo Tribunal
Federal o seu verdadeiro papel institucional enquanto corte constitucional, por
140 No caso, a escolha do ano de 2006 não foi arbitrária, já que a preliminar de repercussão geral passou a ser exigido somente nos recursos extraordinários interpostos de acórdãos publicados a partir de 3 de maio de 2007, logo, optou-se por utilizar os dados relativos ao ano imediatamente anterior ao ano em que entrou em vigor a Emenda Regimental nº 21/07 ao Regimento Interno do STF, que estabeleceu as normas necessárias à execução das disposições legais e constitucionais sobre o novo instituto conforme questão de ordem no agravo de instrumento n. 664.567/RS: “A determinação expressa de aplicação da L. 11.418/06 (art. 4º) aos recursos interpostos a partir do primeiro dia de sua vigência não significa a sua plena eficácia. Tanto que ficou a cargo do Supremo Tribunal Federal a tarefa de estabelecer, em seu Regimento Interno, as normas necessárias à execução da mesma lei (art. 3º). 2. As alterações regimentais, imprescindíveis à execução da L. 11.418/06, somente entraram em vigor no dia 03.05.07 - data da publicação da Emenda Regimental nº 21, de 30.04.2007. 3. No artigo 327 do RISTF foi inserida norma específica tratando da necessidade da preliminar sobre a repercussão geral, ficando estabelecida a possibilidade de, no Supremo Tribunal, a Presidência ou o Relator sorteado negarem seguimento aos recursos que não apresentem aquela preliminar, que deve ser "formal e fundamentada". 4. Assim sendo, a exigência da demonstração formal e fundamentada, no recurso extraordinário, da repercussão geral das questões constitucionais discutidas só incide quando a intimação do acórdão recorrido tenha ocorrido a partir de 03 de maio de 2007, data da publicação da Emenda Regimental n. 21, de 30 de abril de 2007”. (AI 664567 QO, Relator(a): Min. MIN. SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, julgado em 18/06/2007, DJe-096 DIVULG 05-09-2007 PUBLIC 06-09-2007 DJ 06-09-2007 PP-00037 EMENT VOL-02288-04 PP-00777 RTJ VOL-00202-01 PP-00396 RDDP n. 55, 2007, p. 174 RMP n. 34, 2009, p. 259-279). 141 Conforme relatório de distribuição processual no STF, a proporção de recursos extraordinários e de agravos de instrumento em comparação com o volume total de processos distribuídos sempre foi expressiva (em percentual de participação de agravos e de RE na distribuição total/ por ano): 81,6/1990; 90,5/1991; 93,9/1992; 91,9/1993; 91,6/1994; 90,6/1995; 90,3/1996; 92,5/1997; 93/1998; 95,4/1999; 97,4/2000; 97,3/2001, 97,3/2002; 97,3/2003; 94,7/2004; 93,2/2005, 95,3/2006; 94,4/2007; 88,7/2008; 76,4/2009; 76,9/2010; 54,9/2011 e 25,8/até 29 de fevereiro de 2012. Dados disponíveis em : <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp? servico=estatistica&pagina=REAIProcessoDistribuido>.
67
meio da modificação do dispositivo constitucional que permitia o amplo acesso de
recursos ao Tribunal.
Assim, passou-se a exigir, em qualquer recurso extraordinário interposto, a
demonstração da repercussão geral da questão constitucional veiculada na causa.
Como demonstrado anteriormente, o mecanismo de controle da jurisdição
constitucional foi criado para conter o excessivo número de recursos submetidos
ao Supremo Tribunal Federal, que estava por desnaturar o caráter de
excepcionalidade da jurisdição prestada pelo Tribunal, transformando-o em uma
mera Corte de revisão.
“O que se pretende é evitar que o Supremo Tribunal Federal tenha de ocupar-se de questões de interesse visto como restrito à esfera jurídica das partes do processo, em ordem a poder reservar sua atenção e seu tempo para matérias de mais vasta dimensão, para grandes problemas cuja solução deva influir com maior intensidade na vida econômica, social, política do país"142.
Nesse sentido, a reforma do judiciário implementada com a edição da
emenda constitucional n. 45/2004, ao exigir a demonstração da repercussão geral
da questão constitucional no recurso extraordinário, teve como objetivo claro
devolver ao recurso a sua natureza de excepcionalidade.
Além disso, o instituto funciona como instrumento regulador143 ou de
controle de acesso do Tribunal Constitucional, reforçando assim, o seu caráter de
extraordinário.
O Supremo Tribunal Federal é órgão indispensável para o Estado de
Direito, sendo instituição garantidora do equilíbrio entre os poderes
constitucionais e indispensável para a consolidação da democracia.
Desse Tribunal deve ser exigido muito mais do que a aplicação do direito
constitucional, uma vez que a sua atuação envolve o julgamento do interesse
público e de questões relevantes para toda a sociedade, não estando limitada ao
conflito inter partes presente na lide.
Assim, para o cumprimento de sua missão como Corte Política, deve o
Supremo Tribunal Federal concentrar-se nas questões mais importantes, isto é, no
julgamento de questões constitucionais relevantes144.
142 Barbosa Moreira (2005: 240). 143 Azem (2009: 29). 144 Corroborando tal entendimento, Luiz Guilherme Marinoni prescreve de forma contundente que uma corte constitucional não deve estar obrigada a decidir qualquer questão que lhe for
68
Inclusive, como afirmado anteriormente, o excesso de processos perante o
Supremo acaba comprometendo a qualidade do trabalho, com a emissão de
decisões pouco, ou muitas vezes mal fundamentadas, sem capacidade de
convencimento. No caso, quantidade é antônimo de qualidade.
Nesse sentido, é melhor que o Supremo Tribunal Federal se debruce mais
tempo em poucas causas de grande relevância, amadurecendo o seu entendimento
acerca dessas demandas, do que ficar proferindo inúmeras decisões diariamente,
mas que não possuem qualquer relevância para o interesse público145.
Tão melhor que a análise dos processos submetidos ao Supremo Tribunal
Federal ocorra com mais vagar, resultando em pronunciamentos derivados de
reflexões mais aprofundadas, proporcionando uma prestação jurisdicional de
maior qualidade.
Nessas circunstâncias, a adoção de mecanismos de controle favorece a
concepção de acesso adequado à jurisdição constitucional, em contraponto ao
contestável e problemático acesso quase universal e ilimitado que pode ser
descrito como o maior responsável pela paralisia e letargia do Tribunal.
No passado, foi adotada a arguição de relevância como mecanismo de
controle, que não foi reproduzido na Constituição Federal de 1988 diante das
inúmeras celeumas que cercaram o instituto durante a sua vigência. Com a
promulgação da Constituição Federal de 1988, e, sem qualquer instrumento de
controle semelhante àquele utilizado no passado, o Supremo Tribunal Federal se
viu órfão de algum mecanismo apto a controlar a admissão de um fluxo razoável
apresentada, mas somente aquelas de maior relevo. Vejamos: “Como deve o Supremo Tribunal Federal desempenhar essa função? Examinando todas as questões que lhe são apresentadas ou apenas aquelas que lhe pareceram de maior impacto para a obtenção da unidade do Direito? O pensamento jurídico contemporâneo inclina-se firmemente nesse segundo sentido. A simples ‘intenção da justiça quanto à decisão do caso jurídico concreto – e, com ela, também o interesse das partes na causa’, por si só, não justifica a abertura de uma terceira (e, eventualmente, quarta) instância judiciária. O que o fundamenta, iniludivelmente, é o interesse na concreção da unidade do Direito: é a possibilidade que se adjudica à Corte Suprema de ‘clarifier ou orienter le droit’ em função ou a partir de determinada questão levada a seu conhecimento. Daí a oportunidade e o inteiro acerto de instituir-se a repercussão geral da questão constitucional afirmada no recurso extraordinário como requisito de admissibilidade deste ” Marinoni (2007: 17). 145 “As decisões do STF configuram o referencial máximo em relação ao entendimento havido como correto em relação ao direito constitucional. Tais decisões, em devendo ser exemplares, hão, igualmente, de carregar consigo alto poder de convicção, justamente porque são, em escala máxima, os precedentes a serem observados e considerados pelos demais Tribunais, ainda que não sejam sumuladas pelo STF. Isto demanda ponderação, tempo, discussões e meditação até mesmo durante o julgamento, circunstancias dificilmente concretizáveis diante de uma massa enorme de serviço que assola o Tribunal”. Arruda Alvin (2005: 84).
69
de processos sob o ponto de vista quantitativo e, ao mesmo tempo, que
proporcionasse à Corte condições de selecionar para julgamento somente aquelas
demandas realmente relevantes, cujos precedentes julgados poderão se irradiar
para inúmeras outras lides manifestando a transcendência146.
Assim, a repercussão geral surge para completar essa lacuna, funcionando
como instrumento de aperfeiçoamento da jurisdição constitucional, fomentando o
desenvolvimento da ordem jurídica e valorizando a jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal pela seletividade e excepcionalidade, “cujas decisões são dotadas
de uma especial autoridade natural”147.
Ressalta-se ainda que a valorização desse sistema seletivo, indiretamente,
também prestigia os órgãos jurisdicionais inferiores, sobretudo os Tribunais de
Justiça dos Estados e os Tribunais Regionais Federais que, de meras instâncias
intermediárias no organograma jurisdicional, passarão, habitualmente, a exercer o
derradeiro pronunciamento judicial em matéria constitucional sempre que não
houver o reconhecimento da repercussão geral da questão constitucional pelo
Supremo Tribunal Federal.
2.3.1
Sistemas de controle no direito estrangeiro
O acúmulo de trabalho nos tribunais constitucionais não é um problema
adstrito ao ordenamento jurídico brasileiro. Tal é decorrente do grande número de
casos de índole constitucional em debate nas instâncias inferiores e que,
eventualmente, ascendem à Corte Suprema pela via recursal, constituindo um
importante motivo para o retardamento da solução final (trânsito em julgado) das
demandas, problema que se reproduz em diversas outras democracias no mundo e
que desafia ações institucionais para resolvê-lo.
146 Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero, referem-se ao sistema de seleção de causas, afirmando, “em todos esses casos a mesma razão encontra-se presente,: velar pela unidade do Direito através do exame de casos significativos para a ótima realização dos fins do Estado Constitucional, sem sobrecarregar o Supremo Tribunal com o exame de casos sem relevância e transcendência, cujas soluções não importem, tudo somado, contribuição do Supremo Tribunal para a compatibilização vertical das decisões e/ou desenvolvimento do Direito Brasileiro”. Marinoni (2007: 20). 147 Jauernig, Othmar (2002: 362) apud Azem (2009: 31).
70
Circunscrito ao direito comparado, é certo que a adoção de “filtros
recursais” ou “mecanismos de filtragem” é um artifício bastante comum em
outros países, sendo clara a tendência das Cortes Constitucionais europeias em
criar artifícios para “fazer uma ‘filtragem’ dos recursos apresentados em número
crescente a cada ano” 148.
Da mesma forma, Lawrence Baum, revela a existência de sobrecarga e a
incapacidade dos juízes estadunidenses de lidar com o excesso de trabalho, que
culmina na atribuição de competência discricionária à Corte para examinar quais
casos possuem suficiente relevo e interesse público para merecerem a sua atenção,
ou simplesmente recusá-los149.
Assim, a adoção da repercussão geral pelo direito pátrio não se diferencia
do mesmo movimento que tem ocorrido em diversas outras nações150 que têm
procurado adotar sistemas de controle de acesso aos tribunais superiores como
mecanismo de preservação da jurisdição extraordinária.
Nesse contexto, é sempre salutar ponderar as soluções presentes no direito
estrangeiro, para buscar, cautelosamente151, soluções adequadas aos problemas da
justiça brasileira.
Nesse sentido, é importante ressaltar que a repercussão geral, assim como
a arguição de relevância adotada na ordem constitucional anterior, possuem
inspiração no writ of certiorari estadunidense, no qual o acesso à Suprema Corte
depende de um juízo de admissibilidade positivo e prévio, realizado segundo um
148 Favoreu (2004: 38). 149 Lawrence Baum assevera que “o aumento da atividade na Corte tem levado a queixas dos juízes de que estão sobrecarregados e incapazes de lidar efetivamente com o seu trabalho. Como resultado, os membros da Corte e observadores solidários têm procurado proporcionar a ela maior controle sobre sua massa de processos através da expansão de sua autoridade quanto à apreciação de casos ou não”. Baum (1987: 164) apud Azem (2009 : 39). 150 Analisar a experiência de todos os países que adotem filtros recursais não compõe o objeto deste trabalho, razão pela qual a abordagem ocorrerá superficialmente em relação ao direito norte-americano, do qual a repercussão geral buscou sua fonte principal; do direito argentino, por também ser um modelo de inspiração estadunidense, do qual se pode visualizar as adaptações para um outro padrão normativo-constitucional; e, finalmente, do direito alemão, em que se visualiza a sua notória importância e a adoção do mecanismo há bastante tempo. 151 Na esfera processual, os últimos decênios assistem à exploração intensa desse filão, para o que vem concorrendo a multiplicação de congressos internacionais, em que se expõem e se discutem relatórios de variadissímas fontes acerca dos mais atuais e relevantes temas. Uma coisa, porém, é a atenção crescente ao direito comparado, [...]. Outra, bem distinta, é o deslumbramento ingênuo que impele a imitação acrítica de modelos estrangeiros. Barbosa Moreira (2004 : 7/8).
71
padrão decisório discricionário152 proferido pela própria Corte, segundo seu
exclusivo critério.
Assim, em uma análise perfunctória da jurisdição norte-americana, é
evidente a ausência de direito das partes a revisão judicial pelo Tribunal
Constitucional, sendo este um recurso excepcional cuja admissibilidade será
determinada pela própria Corte, segundo um juízo político que, a seu critério,
delimitará quais serão os litígios submetidos ao seu discrímen ou não, segundo
decisão proferida no writ of certiorari153.
Quanto a sua eficiência, o writ of certiorari proporciona que a Corte limite
o quantitativo de processos a serem submetidos ao reexame pela jurisdição
extraordinária aos limites de sua capacidade de julgamento e, ao mesmo tempo,
escolha para julgamento somente aqueles processos mais relevantes sob o prisma
do interesse público e da transcendência.
Nesse sentido, conclui Araken de Assis que o writ of certiorari “permite
ao tribunal selecionar os casos de grande significação para a nação e, ao mesmo
tempo, limita o número de processos julgados pelo tribunal em cada ano
judiciário. Logrou substancial sucesso e persuadiu os mais exigentes da
excelência do mecanismo”154.
Tal experiência de criar um mecanismo para selecionar os recursos
destinados às cortes constitucionais também foi adotado na Argentina e na
Alemanha.
Na Alemanha, no âmbito da tutela jurisdicional dos Tribunais Superiores,
exige-se que o recurso a eles destinado apresentem uma importância fundamental
da causa155. Assim, somente são admitidos aqueles recursos que possuam uma
questão jurídica de significado fundamental ou que favoreça o aperfeiçoamento do
152 Arruda Alvin discorrendo sobre o poder discricionário (discretionary power), exercido pela Suprema Corte dos Estados Unidos da América, afirma que o certiorari estabelece um critério puramente político, para examinar quais casos, de suficiente relevo e interesse coletivo, merecerão sua atenção. Arruda Alvin (2005: 71). 153 Nesses casos, a Suprema Corte dos Estados Unidos da América utiliza-se da regra do rule of
four para decidir se o caso é suficientemente importante para ser analisado. Arruda Alvin (2005: 68). 154 Assis (2007: 696). 155 Em alemão – Grundsatliche Bedeutung der Rechtssache.
72
direito ou que assegure a unificação da jurisprudência, justificando a a
necessidade do julgamento pelo Tribunal revisor.
Diferentemente do que ocorre nos Estados Unidos, em que a Suprema
Corte realiza discricionariamente a seleção daqueles processos que quer julgar, no
direito alemão, o reconhecimento da importância fundamental da causa é
atribuição do Tribunal a quo156.
Na Argentina, à semelhança do modelo brasileiro, o exercício do controle
de constitucionalidade na via difusa pela Suprema Instância ocorre pelo recurso
extraordinário, também inspirado no writ of error consagrado pelo Judiciary Act
de 1789.
Diante de diversos problemas que flexibilizaram o cabimento do recurso
extraordinário157 e, diante do congestionamento vivenciado pela Corte, foi criado
um mecanismo excepcional que conferia à Corte Suprema daquele país a
competência discricionária para escolher os processos que apresentem uma
transcendência da questão discutida158.
Assim, no direito argentino, o recurso extraordinário somente será
admitido quando transcender ao interesse único das partes litigantes, apresentando
projeção econômica, social ou política, a ser analisada com exclusividade pela
Corte que poderá negar admissão ao recurso valendo-se, tão somente, de sua
análise discricionária quanto ao preenchimento desse requisito.
Analisando a experiência dessas democracias, é possível concluir que o
instituto da repercussão geral, enquanto mecanismo de limitação de acesso
recursal ao Supremo Tribunal Federal e de resgate na natureza excepcional da
jurisdição constitucional caminha no mesmo sentido dos modelos apresentados, 156 Nery Júnior (2004: 102-103). 157 Podem ser apontados como alguns dos problemas que deram causa ao congestionamento da Suprema Corte da Argentina a doctrina de la arbitrariedad que permitia o reexame de provas e a revisão de normas infraconstitucionais ou a gravedad institucional que permitia a admissão dos recursos extraordinários mesmo quando desprovidos de algum requisito de admissibilidade. Azem (2009: 45). 158 Assim prescreve o Codigo Procesal y Civil y Comercial de la Nación sobre a transcendência do recurso extraordinário: "Artículo 280.- LLAMAMIENTO DE AUTOS. RECHAZO DEL RECURSO EXTRAORDINARIO. MEMORIALES EN EL RECURSO ORDINARIO. Cuando la Corte Suprema conociere por recurso extraordinario, la recepción de la causa implicará el llamamiento de autos. La Corte, según su sana discreción, y con la sola invocación de esta norma, podrá rechazar el recurso extraordinario, por falta de agravio federal suficiente o cuando las cuestiones planteadas resultaren insustanciales o carentes de trascendencia. disponível em: < http://infoleg.mecon.gov.ar/infolegInternet/anexos/0-4999/175/texact.htm>
73
sendo evidentemente um instrumento hábil para diminuir o volume de trabalho
perante o tribunal e, ainda, apto a proporcionar as condições necessárias para que
a Suprema Corte se concentre nos casos, doravante, mais relevantes159 para o
interesse público, retomando a sua função primordial de Corte destinada à
interpretação e fixação de teses jurídicas e, não apenas, de última instância
recursal.
2.4
A transformação do perfil do recurso extraordinário – por uma
objetivação recursal
Como demonstrado, a utilização de mecanismos de controle de acesso
adequado à jurisdição constitucional proporciona o controle do fluxo razoável de
processos, oferecendo, simultaneamente, condições para as Cortes Superiores
diminuírem a sua demanda de trabalho a um quantitativo que não comprometa a
qualidade e celeridade dos seus julgamentos, e ainda, que forneça a faculdade para
o exercício de um juízo seletivo capaz de maximizar o seu trabalho somente
naquelas demandas efetivamente relevantes do ponto de vista do interesse público
e que transcendam o puro inconformismo subjetivista dos litigantes em geral.
Assim, a utilização de tais mecanismos é uma necessidade frente à
massificação dos conflitos e à crescente demanda por uma tutela jurisdicional
efetiva, conjuntura adversa igualmente visualizada em outras democracias pelo
mundo, que também optaram pela adoção de modelos jurídicos de controle de
acesso adequado à jurisdição constitucional como forma de proteger a efetividade
e a natureza excepcional de suas Cortes Supremas.
Ocorre que esse processo de controle de acesso à jurisdição constitucional
também deve exprimir uma significativa alteração do paradigma sobre o qual se
debruça o próprio recurso excepcional, devendo deixar de ser encarado sob o
enfoque puramente subjetivista de proteção de interesses individuais.
No Brasil, o escopo do recurso extraordinário, mesmo antes do advento da
emenda constitucional n. 45/04, nunca se confundiu com a possibilidade de tutela
159 Uma análise do critério de relevância para fins de admissibilidade do recurso extraordinário será realizada mais adiante no decorrer deste trabalho quando será abordado o problema da subjetividade.
74
de interesses subjetivos, em que o interesse privado de desconstituir a
sucumbência firmada na decisão judicial sempre ocorreu de forma secundária.
Contudo, com o advento da repercussão geral, criou-se um requisito
formal-normativo à admissão do próprio recurso, no qual se exige do recorrente a
demonstração, além da existência de violação ao texto constitucional na decisão
recorrida, que a causa versada ostente transcendência, ou seja, com a repercussão
geral, a recorribilidade somente será legitimada quando o litígio puder reverberar
na esfera jurídica de quem não compõe a lide diretamente.
Assim, a repercussão geral confere um caráter objetivo ao recurso
extraordinário, desvinculando os julgamentos do Supremo Tribunal Federal das
pretensões exclusivamente individuais, emprestando então, uma objetivação ao
controle incidental de normas no recurso160.
Nesse sentido, afirma Gilmar Mendes:
“O novo modelo previsto na lei n. 10.259/01 traduz, sem dúvida, um avanço na concepção vetusta que tem caracterizado o recurso extraordinário entre nós. Esse instrumento deixa de ter caráter marcadamente subjetivo ou de defesa de interesse das partes para assumir, de forma decisiva, a função de defesa da ordem constitucional objetiva. Trata-se de orientação que os modernos sistemas de Corte Constitucional vêm conferindo ao recurso de amparo e ao recurso constitucional"161 162
Com essa alteração de paradigma, o Supremo Tribunal Federal deixa de
julgar processos – conflitos de interesses entre litigantes, passando a julgar,
objetivamente, questões constitucionais que apresentem conteúdo relevante sobre
o prisma econômico, político, social ou jurídico.
A regulamentação conferida pela lei federal n. 11.418/06 ao §3º do artigo
102 da Constituição Federal é precisa ao exigir do recorrente que apresente de
160 Häberle (2003: 33). 161 Mendes (2005: 247). 162 No mesmo sentido do artigo acadêmico anteriormente citado, o ministro Gilmar Mendes proferiu a seguinte decisão monocrática, acrescentando uma analogia com a lei da repercussão geral: “[...] De forma análoga, essa é a orientação que a Lei nº 10.259/2001 buscou dar ao regime dos recursos extraordinários (porém de forma restrita, pois somente incidia naqueles recursos interpostos contra as decisões dos juizados especiais federais). Indubitavelmente, a Lei no 11.418, de 19 de dezembro de 2006, busca imprimir idêntico modelo aos recursos extraordinários convencionais, que se reproduzam em múltiplos feitos. Ora, a Lei nº 11.418/06 apenas estendeu o que era previsto de forma restritiva pela Lei nº 10.259/01. [...] (AI 685066 MC, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, julgado em 05/11/2007, publicado em DJe-145 DIVULG 20/11/2007 PUBLIC 21/11/2007 DJ 21/11/2007 PP-00070)”.
75
forma objetiva a relevância da questão constitucional, ou seja, do tema objeto de
divergência.
“Art. 543-A. O Supremo Tribunal Federal, em decisão irrecorrível, não conhecerá do recurso extraordinário, quando a questão constitucional nele versada não oferecer repercussão geral, nos termos deste artigo. §1 º Para efeito da repercussão geral, será considerada a existência, ou não, de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa. § 2 º O recorrente deverá demonstrar, em preliminar do recurso, para apreciação exclusiva do Supremo Tribunal Federal, a existência da repercussão geral."
A objetivação recursal existente na repercussão geral e a sua irradiação
para outras demandas fica clara quando se analisa o efeito vinculante decorrente
do julgamento da admissibilidade do recurso extraordinário.
Ao negar existência de repercussão geral no recurso paradigmático, o
Tribunal estará, objetivamente, negando admissibilidade a todos os outros
recursos que veiculem, ou possam veicular no futuro, matéria idêntica à versada
no precedente firmado no julgamento da repercussão geral, tal qual previsto no
artigo 543-A, §5º do Código de Processo Civil.
Nesses casos, em uma análise puramente subjetivista, tal qual ocorria
processualmente antes da existência da repercussão geral, todos os recursos
interpostos que preenchessem os demais requisitos de admissibilidade, ainda que
repetitivos ou mesmo protelatórios, seriam processados e admitidos pelo Supremo
Tribunal Federal, podendo inclusive ter o seu mérito provido ou não dependendo
de cada caso. Agora, com o instituto da repercussão geral, o julgamento de apenas
um recurso (de um tema constitucional, na verdade), de forma objetiva, tal decisão
se projetará para todos os demais recursos idênticos que, ou serão liminarmente
indeferidos163 quando já tiverem sido encaminhados ao Supremo Tribunal
Federal, ou serão automaticamente inadmitidos, quando sobrestados na origem164.
163 Aplicável na espécie o artigo 543-A, §5º do CPC que assim dispõe: “Negada a existência da repercussão geral, a decisão valerá para todos os recursos sobre matéria idêntica, que serão indeferidos liminarmente, salvo revisão da tese, tudo nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.” 164 No caso, incide disposição diversa, eis que, quando sobrestados, é aplicável o artigo 543-B, §2º do CPC que assim dispõe: “Negada a existência de repercussão geral, os recursos sobrestados considerar-se-ão automaticamente não admitidos.”
76
Ademais, é importante ressaltar que já há algum tempo o Supremo
Tribunal Federal tem destacado que a sua atuação deve sempre se pautar pela
objetivação do recurso extraordinário165 166, contudo, com a repercussão geral, o
Supremo Tribunal Federal passou a contar com um mecanismo legal
especialmente criado para afastar qualquer feição subjetiva do apelo extremo.
Assim, diante da objetivação do recurso extraordinário, questões
destituídas de relevância constitucional que envolvam estritamente o interesse
subjetivo dos litigantes em geral não deverão mais abarrotar o Supremo Tribunal
Federal como se fosse uma mera instância recursal revisora, permitindo que a
Corte concentre a sua atuação exclusivamente em questões relevantes capazes de
infirmar repercussão para toda a sociedade.
Dessa forma, a repercussão geral poderá provocar importantes alterações
na sistemática de admissibilidade dos recursos extraordinários, já que, se o
165 Como exemplo da mudança do paradigma subjetivista pode ser citado o acórdão proferido no julgamento do recurso extraordinário n. 475812, vejamos: “EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONTRIBUIÇÃO SOCIAL. ALTERAÇÃO. BASE DE CÁLCULO. LEI N. 9.718/98. VIOLAÇÃO DO ARTIGO 239 DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. O Supremo Tribunal Federal tem entendido, a respeito da tendência de não-estrita subjetivação ou de maior objetivação do recurso extraordinário, que ele deixa de ter caráter marcadamente subjetivo ou de defesa de interesse das partes, para assumir, de forma decisiva, a função de defesa da ordem constitucional objetiva. Precedentes. Agravo regimental a que se nega provimento. (RE 475812 AgR, Relator(a): Min. EROS GRAU, Segunda Turma, julgado em 13/06/2006, DJ 04-08-2006 PP-00073 EMENT VOL-02240-08 PP-01542)”. 166 No mesmo sentido pode ser citado o agravo de instrumento n. 375011/ RS, em que a ministra relatora dispensou a exigência de prequestionamento para dar provimento ao agravo cujo mérito estava em conformidade com uma decisão anterior da corte proferida em controle difuso de constitucionalidade (RE 251.238), vejamos a ementa do acórdão: “AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. SERVIDORES DO MUNICÍPIO DE PORTO ALEGRE. REAJUSTE DE VENCIMENTOS CONCEDIDO PELA LEI MUNICIPAL 7.428/94, ART. 7º, CUJA INCONSTITUCIONALIDADE FOI DECLARADA PELO PLENO DO STF NO RE 251.238. APLICAÇÃO DESTE PRECEDENTE AOS CASOS ANÁLAGOS SUBMETIDOS À TURMA OU AO PLENÁRIO (ART. 101 DO RISTF). 1. Decisão agravada que apontou a ausência de prequestionamento da matéria constitucional suscitada no recurso extraordinário, porquanto a Corte a quo tão-somente aplicou a orientação firmada pelo seu Órgão Especial na ação direta de inconstitucionalidade em que se impugnava o art. 7º da Lei 7.428/94 do Município de Porto Alegre - cujo acórdão não consta do traslado do presente agravo de instrumento -, sem fazer referência aos fundamentos utilizados para chegar à declaração de constitucionalidade da referida norma municipal. 2. Tal circunstância não constitui óbice ao conhecimento e provimento do recurso extraordinário, pois, para tanto, basta a simples declaração de constitucionalidade pelo Tribunal a quo da norma municipal em discussão, mesmo que desacompanhada do aresto que julgou o leading case. 3. O RE 251.238 foi provido para se julgar procedente ação direta de inconstitucionalidade da competência originária do Tribunal de Justiça estadual, processo que, como se sabe, tem caráter objetivo, abstrato e efeitos erga omnes. Esta decisão, por força do art. 101 do RISTF, deve ser imediatamente aplicada aos casos análogos submetidos à Turma ou ao Plenário. Nesse sentido, o RE 323.526, 1ª Turma, rel. Min. Sepúlveda Pertence. 4. Agravo regimental provido. (AI 375011 AgR, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Segunda Turma, julgado em 05/10/2004, DJ 28-10-2004 PP-00043 EMENT VOL-02170-02 PP-00362)”.
77
Supremo Tribunal Federal não estiver obrigado a julgar um número espantoso de
recursos sistematicamente, uma vez que disporá de um filtro para a contensão de
recursos desprovidos de relevância, poderá concentrar esforços nos casos
realmente importantes para a nação, fornecendo diretrizes para os demais
Tribunais, para a administração pública e para os próprios jurisdicionados, sobre a
correta interpretação das questões constitucionais.
2.5
A vagueza na repercussão geral – parâmetros de aplicabilidade
A repercussão geral foi incluída na Constituição Federal pela emenda
constitucional n. 45/04, conhecida como reforma do judiciário, inserindo o §3º ao
artigo 102 da Lei Fundamental.
“§ 3º No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros.”
Nesse sentido, a repercussão geral foi incorporada ao ordenamento
normativo-constitucional brasileiro como uma regra de eficácia limitada167,
sujeitando a sua produção de efeitos à edição de norma regulamentadora.
Posteriormente, foi editada a lei 11.418/06168 que, em suprimindo a lacuna
antes existente, regulamentou a repercussão geral fornecendo-lhe os seguintes
contornos:
“Art. 543-A. O Supremo Tribunal Federal, em decisão irrecorrível, não conhecerá do recurso extraordinário, quando a questão constitucional nele versada não oferecer repercussão geral, nos termos deste artigo. § 1º Para efeito da repercussão geral, será considerada a existência, ou não, de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa.
167 Efetivamente a repercussão geral, antes do advento da norma regulamentadora, possuía eficácia limitada, uma vez que não produzia com a sua simples entrada em vigor todos os efeitos essenciais, já que o legislador, por algum motivo, não estabeleceu uma normatividade suficiente, relegando tal mister para o legislador ordinário, in Silva (2000: 82-83). 168 A lei nº 11.418/06 acrescentou ao Código de Processo Civil os dispositivos regulamentares ao § 3º do art. 102 da Constituição Federal, bem como asseverou competência ao Supremo Tribunal Federal para estabelecer as normas indispensáveis à execução da norma criada conforme previsto no artigo 3º, fixando as regras de direito intertemporal nos seus artigos 4º e 5º, que foram posteriormente relativizadas conforme entendimento firmado na questão de ordem no agravo de instrumento n.664.567 transcrito anteriormente neste trabalho.
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§ 2º O recorrente deverá demonstrar, em preliminar do recurso, para apreciação exclusiva do Supremo Tribunal Federal, a existência da repercussão geral. § 3º Haverá repercussão geral sempre que o recurso impugnar decisão contrária a súmula ou jurisprudência dominante do Tribunal. § 4º Se a Turma decidir pela existência da repercussão geral por, no mínimo, 4 (quatro) votos, ficará dispensada a remessa do recurso ao Plenário. § 5º Negada a existência da repercussão geral, a decisão valerá para todos os recursos sobre matéria idêntica, que serão indeferidos liminarmente, salvo revisão da tese, tudo nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal. § 6º O Relator poderá admitir, na análise da repercussão geral, a manifestação de terceiros, subscrita por procurador habilitado, nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal. § 7º A Súmula da decisão sobre a repercussão geral constará de ata, que será publicada no Diário Oficial e valerá como acórdão.” Art. 543-B. Quando houver multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica controvérsia, a análise da repercussão geral será processada nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, observado o disposto neste artigo. § 1º Caberá ao Tribunal de origem selecionar um ou mais recursos representativos da controvérsia e encaminhá-los ao Supremo Tribunal Federal, sobrestando os demais até o pronunciamento definitivo da Corte. § 2º Negada a existência de repercussão geral, os recursos sobrestados considerar-se-ão automaticamente não admitidos. § 3 º Julgado o mérito do recurso extraordinário, os recursos sobrestados serão apreciados pelos Tribunais, Turmas de Uniformização ou Turmas Recursais, que poderão declará-los prejudicados ou retratar-se. § 4º Mantida a decisão e admitido o recurso, poderá o Supremo Tribunal Federal, nos termos do Regimento Interno, cassar ou reformar, liminarmente, o acórdão contrário à orientação firmada. § 5º O Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal disporá sobre as atribuições dos Ministros, das Turmas e de outros órgãos, na análise da repercussão geral.”
Da leitura do dispositivo legal é possível inferir que o conceito de
repercussão geral está associado à existência de relevância econômica, política,
jurídica ou social na questão constitucional debatida a ser apurada em preliminar
recursal conforme artigo 543-A, § 1º, do CPC.
Conjugada a existência de relevância da matéria, deve a causa manifestar
também transcendência, isto é, possuir capacidade de se projetar para além dos
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interesses subjetivos das partes litigantes. Daí a conclusão de que a repercussão
geral se manifesta sempre que esses dois requisitos estiverem presentes
concomitantemente169.
Contudo, a dificuldade em apurar se uma determinada demanda possui ou
não repercussão geral está, antes de tudo, em delimitar os próprios conceitos
abertos que a compõem (relevância e transcendência), uma vez que, apresentam
uma abertura semântica que se traduz em uma imprecisão.
Assim, para a definição de repercussão geral, o legislador se socorreu de
uma indicação genérica, utilizando-se de conceitos imprecisos e indeterminados170
para tornar o instituto jurídico maleável171 à complexidade das relações sociais,
deixando a tarefa de conformar o instituto ao aplicador da norma, ou seja, aos
ministros do Supremo Tribunal Federal172.
A repercussão geral, enquanto regra jurídica, é enunciada em uma
linguagem geral que é insuficiente para englobar toda a imensidão de
acontecimentos futuros e inesperados, isso porque o significado de formulações
gerais nunca pode ser completamente esclarecido ou definido já que os termos
empíricos das afirmações são dotados de uma textura aberta impedindo uma
observação conclusiva com respeito ao seu significado.
169 Marinoni propõe a seguinte fórmula: “repercussão geral = relevância + transcendência”. In Marinoni (2007: 33). 170 Cleide Kazmierski assevera que o legislador andou bem ao não fixar com mais precisão as balizas nas quais se insere a repercussão geral, já que a própria atuação do Supremo Tribunal Federal acabaria ficando limitada. Segundo a autora, a expressão ‘repercussão geral’ não deve ser vista como um conceito, mas, tão somente como uma noção por se tratar de uma “expressão em movimento, conectada a realidade e por ela oxigenada”. In Kazmierski (2006: 106). 171 Barbosa Moreira ensina que o legislador se utiliza de conceitos juridicamente indeterminados, ou porque seria impossível deixar de fazê-lo, ou porque não convém usar outra técnica. Nesse sentido, “nem sempre convém, e às vezes é impossível, que a lei delimite com traços de absoluta nitidez o campo de incidência de uma regra jurídica, isto é, que descreva em termos pormenorizados e exaustivos todas as situações fáticas a que há de ligar-se este ou aquele efeito no mundo jurídico”. Barbosa Moreira (1988 : 64). 172 Conforme enunciado no artigo 543-A,§ 2º do CPC – “para apreciação exclusiva do Supremo Tribunal Federal”, muito embora a admissibilidade dos recursos excepcionais aconteça em dois momentos, um perante o juízo a quo e outro perante o juízo ad quem, é certo que a preliminar de repercussão geral não pode ser utilizada pela presidência ou vice-presidência dos tribunais inferiores para negar seguimento ao recurso interposto, já que a sua apreciação é de competência exclusiva do Supremo Tribunal Federal. Contudo, uma vez reconhecida a ausência de repercussão geral da matéria debatida pelo Supremo Tribunal Federal no recurso paradigmático, ficam as presidências ou vice-presidências dos tribunais inferiores autorizadas a negar seguimento aos recursos que versarem sobre a mesma matéria assentada no recurso paradigma.
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Nesse ponto, a repercussão geral se aproxima de alguns dos conceitos
apresentados no primeiro capítulo deste trabalho, sobretudo, quanto à
problemática, envolvendo a vagueza e a aplicação da teoria da textura aberta no
direito, ou mesmo, quanto à relação entre a indeterminação jurídica e a existência
de juízos discricionários de atuação do julgador.
Assim, retomando algumas das considerações feitas no capítulo anterior
deste trabalho, é certo que, H.L.A. Hart apresenta os hard cases como sendo
aqueles litígios em que há uma insuficiente descrição dos termos gerais
classificatórios pela regra jurídica aplicável, em que até mesmo os cânones
interpretativos não são instrumentos adequados para eliminar a indeterminação e a
incerteza própria da linguagem comum, razão pela qual, nessas circunstâncias,
caberá ao magistrado solucionar o caso concreto, valendo-se de seu poder
discricionário.
No caso, a norma que instituiu a repercussão geral (lei 11.418/06),
descreveu insuficientemente os termos gerais classificatórios, condicionando a
admissibilidade dos recursos perante o Supremo Tribunal Federal à existência de
relevância e transcendência.
Dessa forma, a regra deixou em aberto um amplo espaço para a definição
desses conceitos a posteriori e, em concreto, delegando ao intérprete a tarefa de
demarcar a transcendência e de definir aquilo que deve ser compreendido como
relevante para fins econômicos, políticos, jurídicos ou sociais.
De fato, a repercussão geral é uma norma restritiva que nega a
possibilidade de conhecimento aos recursos extraordinários interpostos que não
manifestarem qualquer questão constitucional relevante e, simultaneamente, não
veicularem matéria que ultrapasse os interesses subjetivos dos litigantes.
Ademais, a estratégia legislativa pela indeterminação do conceito de
repercussão geral é coerente na medida em que, se o legislador tivesse utilizado
um conceito demarcado ou mesmo se tivesse regulamentado a repercussão geral
em um rol taxativo de forma fechada e acabada, poderia criar alguma facilidade
aos jurisdicionados para identificar as hipóteses de recorribilidade ao Supremo
Tribunal, contudo, tal opção legislativa seria prejudicial ao desenvolvimento do
instituto uma vez que criaria um empecilho para a sua renovação e modernização.
A rigidez não permitiria a adaptação da repercussão geral às alterações
sociais, podendo alijar o Supremo Tribunal Federal futuramente da participação
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em causas relevantes e que não haviam sido imaginadas pelo legislador de
antemão.
No caso, a opção por uma norma vaga estabelece a possibilidade de
adaptação do sistema de controle de acesso à jurisdição constitucional,
possibilitando que o instituto esteja sempre aberto a renovações e adaptações
decorrentes das transformações sociais, eliminando assim, eventuais
constrangimentos irresolúveis ao processo de seleção das causas considerados
relevantes pelo Supremo Tribunal Federal.
É certo que os termos gerais veiculados pela repercussão geral não
apresentam limites claros de sua extensão, como por exemplo, com as expressões
“ponto de vista econômico, político, social ou jurídico” ou “que ultrapassem os
interesses subjetivos da causa” em que esses enunciados, por serem dispostos em
linguagem geral, apresentam um nível de definição incompleto, não podendo ser
totalmente esclarecido ou definido já que os termos empíricos dessas expressões
são dotados de uma textura aberta que impede uma observação conclusiva com
respeito ao seu significado173.
Assim, na repercussão geral como em todas as regras “há um limite quanto
ao nível de definição na orientação que podem oferecer”174, subsistindo uma zona
nebulosa, ou uma zona cinzenta de aplicabilidade ou uma penumbra de dúvida em
que não é possível precisar com clareza se a regra é aplicável ou não.
Uma questão constitucional será claramente relevante do ponto de vista
econômico quando a causa veicular uma lide relacionada à correção da caderneta
de poupança decorrente da equivocada aplicação de um determinado plano
173 “Há ‘idéias’ que, em si mesmas, dificilmente, comportam uma definição. Mais ainda, se definidas forem, seguramente – agora no campo da operatividade do Direito – passam a deixar de ensejar, só por isso, o rendimento esperado de um determinado instituto jurídico. Com os valores, que são idéias indefiníveis” (aporias, e, portanto, inverbalizáveis), o que ocorre é que devem ser indicados por conceitos vagos; não são, nem devem ser propriamente conceituados, mas devem ser apenas referidos, pois é intensa a interação entre eles e a realidade paralela, a que se reportam. Não há como fazer que fiquem adequadamente cristalizados num texto de lei, ou que sejam verbalizados de forma plena na lei posta. É o que se passa com a ‘definição’ do que se já juridicamente relevante, realidade esta que, aprioristicamente, se tem por indefinível (ou, ao menos, utilmente definível), de uma só vez, em termos propriamente completos, o que equivaleria a uma série infindável de incisos, exageradamente casuísticos e minuciosos, e, por fim, o que é mais grave, inevitavelmente incompletos, e, portanto, indesejavelmente limitadores do próprio objeto definido”. In Arruda Alvin (1988: 75-76). 174 MacCormick (2010: 170).
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econômico, questão que, sabidamente, atingirá milhões de pessoas e pode levar
inclusive instituições financeiras a bancarrota175.
Da mesma forma, grandes questões tributárias, consumeristas176,
previdenciárias ou relacionadas a servidores públicos e serviços públicos177 serão
relevantes do ponto de vista econômico, já que possuem um nítido efeito
multiplicador podendo colocar o erário em grave risco de solvência178.
Uma ação em que um correntista da caderneta de poupança questione a
constitucionalidade de algumas cláusulas especificas de seu contrato bancário com
a instituição financeira, sabidamente, eventual recurso manifestado por qualquer
dos litigantes não terá repercussão geral em virtude na manifesta ausência de
relevância do ponto de vista econômico.
Nesse mesmo sentido, uma demanda tributária envolvendo a
constitucionalidade de um auto de infração específico ou a discussão sobre a data
do início de uma aposentadoria de um segurado do INSS, claramente, não
possuirão repercussão geral já que não possuem repercussão econômica.
175 Tal questão constitucional está sendo debatida nos leading cases RE 631263/SP e RE 632212/SP, cujo mérito consiste em apurar à luz do art. 5º, II e XXXVI, da Constituição Federal, se existe ou não direito a diferenças de correção monetária de depósitos em cadernetas de poupança, bloqueados pelo Banco Central do Brasil, por alegados expurgos inflacionários decorrentes dos planos econômicos denominados Collor e Collor 2. Atuais temas 284 e 285 em julgamento pelo plenário do STF. Disponível em <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudenciaRepercussao/listarProcesso.asp>. 176 No RE 578801/RS, a questão colocada em debate cinge-se a possibilidade de aplicação retroativa de legislação que disponha sobre planos de saúde, em que a ministra relatora Carmem Lúcia destacou a existência de repercussão geral em virtude do “universo de contratos de saúde é enorme, há relevância social e econômica no tema: a primeira, em face dos beneficiários de planos de saúde, que saberão, definitivamente, se lei nova sobre planos de saúde, pode, ou não, ser aplicada aos contratos anteriormente firmados; a segunda, em relação às administradoras de planos de saúde, pois as modificações legais geram alterações no custo de manutenção do sistema”. (RE 578801 RG, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, julgado em 16/10/2008, DJe-206 DIVULG 30-10-2008 PUBLIC 31-10-2008 EMENT VOL-02339-09 PP-01899). 177 Exatamente nesse sentido, foi admitida a existência de repercussão geral no recurso extraordinário n. 567.454/BA em que se discutia a possibilidade de cobrança de tarifa mensal de assinatura por empresas de telefonia fixa. No caso, houve a admissão do recurso conforme decisão do ministro Carlos Ayres Britto, no sentido de que em um dos pólos da relação jurídica estão incluídos “milhões e milhões de usuários-consumidores que se distribuem, geograficamente, por todo o território nacional. Sendo certo que os serviços públicos de telefonia atendem as necessidades básicas de comunicação pessoal, profissional e mercantil, revelando-se, além do mais, como essencial fator de segurança público-privado e integração nacional”. (RE 567454 RG, Relator(a): Min. AYRES BRITTO, julgado em 28/02/2008, DJe-055 DIVULG 27-03-2008 PUBLIC 28-03-2008 EMENT VOL-02312-11 PP-02032 ). 178 Neste momento estão sendo apresentados apenas alguns exemplos como forma de exemplificar a zona nebulosa, contudo, tais questões serão retomadas no próximo capítulo.
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Contudo, entre a clara existência de repercussão geral em uma
determinada ação (aplicabilidade da norma), e a sua clara inaplicabilidade
(ausência de repercussão geral), haverá inúmeras outras hipóteses inseridas na
penumbra de dúvida de aplicabilidade da regra, as quais deverão ser resolvidas
pelo Supremo Tribunal Federal, valendo-se de seu poder discricionário179 para
julgar o caso concreto nos termos da construção de H.L.A. Hart, atuando como
verdadeira autoridade normativa em tais circunstâncias.
179 Este ponto será retomado no próximo capítulo.