Cynthia Sarti Luiz Fernando diaS duarteorganizadores
Antropologia e tica: desafios para a regulamentao
2COMISSO DE PROJETO EDITORIAL
Coordenador
Antnio Motta (UFPE)
Cornelia Eckert (UFRGS);
Peter Fry (UFRJ) e
Igor Jos Ren Machado (UFSCAR)
Coordenador da coleo de e-books
Igor Jos de Ren Machado
Conselho Editorial
Alfredo Wagner B. de Almeida (UFAM)
Antonio Augusto Arantes (UNICAMP)
Bela Feldman-Bianco (UNICAMP)
Carmen Rial (UFSC)
Cristiana Bastos (ICS/Universidade de Lisboa)
Cynthia Sarti (UNIFESP)
Gilberto Velho (UFRJ) - in memoriam
Gilton Mendes (UFAM)
Joo Pacheco de Oliveira (Museu Nacional/UFRJ)
Julie Cavignac (UFRN)
Laura Graziela Gomes (UFF)
Llian Schwarcz (USP)
Luiz Fernando Dias Duarte (UFRJ)
Ruben Oliven (UFRGS)
Wilson Trajano (UNB)
ASSOCIAO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA
Diretoria
Presidente
Carmen Silvia Rial (UFSC)
Vice-Presidente
Ellen Fensterseifer Woortmann (UnB)
Secretrio Geral
Renato Monteiro Athias (UFPE)
Secretrio Adjunto
Manuel Ferreira Lima Filho (UFG)
Tesoureira Geral
Maria Amlia S. Dickie (UFSC)
Tesoureira Adjunta
Andrea de Souza Lobo (UNB)
Diretor
Antonio Carlos de Souza Lima (MN/UFRJ)
Diretora
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Diretora
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Diretor
Carlos Alberto Steil (UFRGS
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Diagramao e produo de e-book
Mauro Roberto Fernandes
RevisoAbner Santos
3Antropologia e tica: desafios para a regulamentao Cynthia SartiLuiz Fernando diaS duarte organizadores
5SumrioPrefcio .............................................................................. 6 Bela Feldman Bianco
Introduo ........................................................................ 9 Cynthia Sarti Luiz Fernando Dias Duarte
A vida social ativa da tica na Antropologia (e algumas notas do campo para o debate)...................... 31 Patrice Schuch
Desafios Antropologia: dilogos interculturais entre os outros de ontem, os protagonistas de hoje e os antroplogos situados ............................................ 86 Jane Felipe Beltro
O tico e o legal nos processos de apropriao profissional da experincia social ...................................... 106 Ceres Vctora
Etnografia entre ticas: tica e pesquisa com populaes indgenas ................................................ 131 Marina Cardoso
tica y antropologa de la violencia .................................... 172 Mariana Tello
Sobre os(as) autores(as) .................................................... 230
Anexos
1. Moo da ABA de 2011. ................................................. 234
2. Cdigo de tica da ABA. ................................................ 238
6Prefcio
Tenho o maior prazer de oferecer Antropologia e tica
comunidade antropolgica e ao pblico em geral. Em seu
conjunto, essa coletnea rene reflexes terico-metodo-
lgicas e manifestaes pblicas realizadas no mbito da
Associao Brasileira de Antropologia sob minha presidncia
(2011-2012), sobre os paradoxos existentes entre a especifi-
cidade da produo do conhecimento antropolgico e a regu-
lao da tica de pesquisa vigente no Brasil atravs da resolu-
o 196/96 do Conselho Nacional de Sade. Expe, assim, as
complexidades e os dilemas inerentes ao fazer antropolgico
numa conjuntura marcada, de um lado, pela expanso e re-
configurao da antropologia e, de outro, pelo reducionismo
tcnico-cientfico que rege as deliberaes sobre os projetos
de pesquisa de carter etnogrfico a partir de critrios bio-
mdicos da Comisso Nacional de tica de Pesquisa (CONEP)
do Ministrio da Sade. Contrapondo-se a essa situao in-
slita, essa publicao tem o mrito de trazer subsdios que
visam, em ltima anlise, contemplar as gestes da ABA para
que as pesquisas em antropologia, assim como nas demais
cincias sociais e humanas, sejam aferidas por critrios con-
dizentes s investigaes sobre seres humanos no mbito do
Ministrio de Cincia, Tecnologia e Inovao.
7A ABA, enquanto sociedade cientfica, tem historicamente
promovido discusses, reflexes propositivas e aes polti-
cas sobre temticas que esto na ordem do dia. Com esse
intuito, no binio 2011-2012, sob a chancela Desafios Antro-
polgicos no Sculo XXI, procuramos mapear e confrontar,
atravs de anlises crticas e propositivas, os dilemas, desa-
fios e perspectivas que ocorrem no contexto de processos de
expanso e transformao da antropologia no Brasil seja em
relao s transformaes e reconfiguraes da antropolo-
gia como disciplina acadmica per se; s relaes entre essas
transformaes e as polticas cientficas; seja ainda entre for-
mao de antroplogos e o mercado de trabalho, assim como
entre pesquisa antropolgica e ao poltica e nesse contexto
a poltica da antropologia, inclusive no que concerne cres-
cente relao entre a antropologia e as polticas pblicas, a
crescente relao entre a antropologia e polticas pblicas, e,
nesse mbito, o papel dos antroplogos a antroplogas na in-
termediao poltica no contexto brasileiro contemporneo.
Questes referentes tica na antropologia constituram
parte central de nossa plataforma de gesto. Tendo em vis-
ta a crescente demanda por antroplogos e antroplogas no
mercado de trabalho cada vez mais diversificado, o Comit
de tica decidiu revisar e atualizar o cdigo de tica da ABA.
Ao mesmo tempo, os organizadores desta coletnea, Luiz
Fernando Duarte e Cynthia Sarti, enquanto respectivamente
vice-presidente e tesoureira geral da ABA (2011-2012), assu-
8miram o desafio de levantar subsdios e atuar politicamente
em prol de mudanas na forma de avaliar a tica na pesquisa
antropolgica e, por extenso em outras cincias humanas.
Alm de levarem em conta as reflexes propositivas e inter-
venes que vem sendo realizadas no mbito da nossa as-
sociao pelo menos desde 2002 e organizarem discusses
sobre a temtica nas principais reunies antropolgicas do
pas, ambos tiveram atuao estratgica no mbito do CONEP
e da ANPOCS, bem como nos dilogos com colegas de ou-
tros campos das cincias humanas. Vale notar a importncia
da moo sobre tica na pesquisa, apresentada e aprovada
pelo conselho cientfico da ABA em outubro de 2011 e subs-
crita pela Associao Nacional de Ps-Graduao em Cincias
Sociais (ANPOCS) e Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS),
nas negociaes na esfera da CONEP. Ambos documentos in-
tegram essa publicao.
Essa coletnea retrata as reflexes crticas e intervenes
polticas realizadas durante o binio 2011-2012. Desde ento,
esto ocorrendo novos desdobramentos para os quais esse
conjunto de textos e documentos so de extrema valia.
Bela Feldman-Bianco
Presidente da ABA (2011-2012)
9Introduo Cynthia Sarti
Luiz Fernando Dias Duarte
Sob distintas formas, tanto no debate acadmico como em
intervenes sociais, a questo tica tem sido uma preocupa-
o constante da Associao Brasileira de Antropologia (ABA).
Durante a gesto 1986-1988 foi criado o Cdigo de tica da
associao e foi igualmente instituda uma Comisso de tica.
O respeito diversidade no exerccio intelectual, a responsa-
bilidade e o compromisso perante as populaes com as quais
trabalhamos e interagimos, por meio da pesquisa e das diver-
sas atividades profissionais envolvidas no ofcio de antroplo-
go, sempre pautaram a atuao da ABA e de seus associados.1
Dando continuidade a essa perspectiva, a gesto 2011-
2012 da ABA teve como um dos pontos centrais de sua plata-
forma discutir a atualizao de seu Cdigo de tica e a pecu-
liaridade da presente regulamentao da tica em pesquisa
no pas pela Resoluo 196, de 1996, sob a gide do Conselho
Nacional da Sade, rgo do Ministrio da Sade.
Essa discusso tornou-se premente no Brasil em face das
novas questes e dos desafios enfrentados pelos antroplogos
que intensificaram e diversificaram significativamente suas ati-
1 O atual Cdigo de tica da ABA encontra-se anexo.
10
vidades, em particular, a partir da Constituio de 1988. Esta
reconfigurou a questo dos direitos no pas ao sancionar o ca-
rter multicultural da identidade brasileira, modificando lugares
e possibilidades de agncia na luta por reconhecimento dentro
do quadro das marcadas hierarquias da sociedade brasileira.
Abriram-se novas frentes de atuao acadmicas e no-aca-
dmicas, em instituies pblicas e privadas, para um campo do
saber e uma atividade profissional cujos contornos se modificam
na medida das mudanas nos destinos de seus objetos de es-
tudo e de interveno, em relao aos quais os antroplogos se
situam fundamentalmente como interlocutores.
Nessa interlocuo constitutiva do trabalho antropolgico e
da produo do conhecimento nesse campo, as questes ti-
cas emergem necessariamente e so postas em movimento,
resultado de negociaes constantes entre os distintos agentes
sociais envolvidos, observadores e observados, fazendo de sua
regulamentao, por definio, um campo de tenses que, uma
vez configurado, clama por sair do lugar, em permanentes revi-
ses. De outro modo, corre-se o risco da burocratizao da ti-
ca como apontou Patrice Schuch em seu texto nesta coletnea.
Diz a autora:
trata-se de investir na ideia de que a tica diferencial-mente produzida em mltiplos domnios da prtica antro-polgica em sua vida social ativa - o que requer delicadeza na sua discusso e considerao, assim como compreenso da diversidade e situacionalidade dos espaos de sua realizao.
Se os antroplogos no Brasil, atravs de sua associao,
no se furtam responsabilidade de regulamentar seus pro-
11
cedimentos diante de seus interlocutores sociais, fazem-no
de acordo com seu modo prprio de produzir conhecimento.
Os dilemas ticos na pesquisa, que expressam as formas de
a sociedade lidar com danos eventuais impingidos pela cons-
truo do saber valendo-se do uso instrumental do outro
seus corpos, suas falas, suas ideias , tornam a regulamenta-
o tica da pesquisa, em qualquer campo do conhecimento,
objeto da reflexo antropolgica. Por isso, simplesmente
aceitar, de antemo, as regulamentaes, sem a anlise de
seus pressupostos e das prticas que ensejam, contraria
aquilo que define o fazer etnogrfico, como bem ressaltou
Claudia Fonseca (2010).
No demais reafirmar que a preocupao com a tica,
intrnseca pesquisa antropolgica, tributria da especifici-
dade, relativamente tradio cientfica ocidental, da relao
que se estabelece entre pesquisador e pesquisados. Nesta
no esto supostos distanciamento, iseno e objetividade, a
partir de uma concepo de neutralidade do conhecimento,
mas sim a interlocuo, a proximidade, o deixar-se afetar
e a participao do pesquisador em seu campo de pesquisa.
Diferentemente de outros campos do conhecimento, mesmo
nas cincias humanas, essa perspectiva subjaz a toda discus-
so sobre antropologia e tica.
Essa postura implica lidar com os complexos problemas
advindos do fato de que, em grande parte das situaes em-
pricas, o pesquisador se encontra numa posio desigual em
relao a seus interlocutores, no que se refere a poder e le-
12
gitimidade social, fato que pode demandar atitudes e posi-
cionamentos que transcendem o campo estrito da pesquisa
acadmica, envolvendo frequentemente o campo poltico ou
jurdico, o que vem ocorrendo com frequncia cada vez maior
na pesquisa antropolgica.
Por outro lado, a diversificao das questes enfrentadas
pela pesquisa antropolgica na atualidade leva igualmente,
tambm com frequncia cada vez maior, ao estudo de obje-
tos produtores de saber e investidos de poder na sociedade,
com os quais no temos afinidades ideolgicas, o que re-
coloca os termos da relao entre observador e observado.
So outros os dilemas ticos enfrentados pelo antroplogo
quando a pesquisa se desenvolve nesses contextos, como
mostra a experincia de pesquisa analisada por Patrice
Schuch nesta coletnea. A necessidade, intrnseca a nossos
procedimentos, de um olhar distanciado, e que permita, ao
mesmo tempo, a aproximao necessria para a atividade
investigativa, implica um enfrentamento distinto daquele
no qual habitualmente se move o antroplogo, identificado
com grupos que pesquisa, situados fora da arena hegem-
nica do poder.2
Desde fins dos anos 1990, os problemas ticos na pesquisa
2 Alm do artigo de Patrice Schuch nesta coletnea, ver as reflexes
de Guita Grin Debert (2004) na coletnea da ABA e os artigos de
Lcia Helena Alves Mller, Denise Jardim, Elizabeth Zambrano e
Patrice Schuch na coletnea organizada por Schuch, Vieira e Pe-
ters (2010).
13
antropolgica tm sido objeto de inmeros debates e publica-
es que giram em torno da necessidade de se pensar, e repen-
sar, os termos da relao entre o antroplogo e aqueles com
quem interagimos, seja na pesquisa ou em outras atividades
profissionais (Leite, 1998; Diniz 2002 e 2005; Sarti, 2003; Ma-
chado 2007; Schuch, Vieira e Peters, 2010; Fleischer e Schuch,
2010). Em 2004, a ABA publicou sua primeira coletnea sobre
Antropologia e tica (Vctora Org., 2004) produto de um inten-
so trabalho de discusso e interveno da associao, durante
a gesto 2001/2002 que culminou em um simpsio sobre o
tema na 23a Reunio Brasileira de Antropologia, realizada em
Gramado (RS), em junho de 2002. A abrangncia e a pertinncia
das questes colocadas fizeram dessa publicao, amplamente
citada, uma referncia para o debate atual no pas.3
O livro, organizado por Ceres Vctora, Ruben Oliven, Maria
Eunice Maciel e Ari Pedro Oro, tem entre seus principais eixos
de crtica e reflexo o fato de que, embora a discusso tica
seja intrnseca pesquisa etnogrfica, como j foi dito, o pro-
blema adquire contornos surpreendentes, embora no exclu-
sivos, no Brasil, pela exigncia de que essas pesquisas sejam
reguladas pela Resoluo no 196/96 e suas complementares,
aprovadas pelo Conselho Nacional de Sade (CNS), do Minist-
rio da Sade. O resultado so os inmeros constrangimentos
enfrentados atualmente por pesquisadores que fundamentam
3 Essa publicao ser comentada adiante, na reviso da reflexo
sobre Antropologia e tica no Brasil feita por Patrice Schuch nesta
coletnea.
14
seu trabalho de investigao na metodologia etnogrfica, em
face da regulamentao biocntrica da tica em pesquisa.
Essas resolues tomaram como referncia documentos
internacionais sobre o tema, como o Cdigo de Nuremberg, a
Declarao de Helsinki e as diretrizes propostas pelo Council
for International Organizations of Medical Sciences (CIOMS),
elaborados por associaes mdicas e dirigidos a pesquisas
biomdicas, comportamentais ou epidemiolgicas (Guerriero
e Dallari, 2008). So tributrias, portanto, das questes ticas
suscitadas pela pesquisa clnica e experimental. Tais resolu-
es foram implementadas pela Comisso Nacional de tica
em Pesquisa (CONEP), vinculada ao Ministrio da Sade, e pe-
los Comits de tica em Pesquisa (CEPs) a ela subordinados e
obrigatrios em todas as universidades e instituies de pes-
quisa para todas as reas do conhecimento.
Frente aos problemas advindos dessa forma de regula-
mentao marcada pelas exigncias da pesquisa biomdica,
publicao da ABA antes referida soma-se uma significativa
produo crtica, no prprio campo da sade, sobre a tica em
pesquisa com seres humanos conhecida contraposio
pesquisa em seres humanos (Oliveira, 2004). Esta foca-
liza os dilemas ticos nas pesquisas empricas nesse campo a
partir do que se denomina pesquisa qualitativa em sade, ou
seja, aquela que, dentro da rea da sade coletiva, se pau-
ta pela metodologia das cincias humanas e no pelos mto-
dos experimentais da biomedicina (Guerriero, 2006; Guerriero
e Dallari, 2008; Diniz e Guerriero, 2008; Guerriero, Schmidt e
15
Zicker, 2008). Essa perspectiva crtica, desenvolvida por pes-
quisadores das cincias humanas que trabalham no campo
da sade, particularmente relevante diante da constatao
de que, frequentemente, as radicais diferenas epistemolgi-
cas entre Antropologia e Biomedicina (Duarte, 1998a e 1998b;
Sarti, 2010) so reduzidas a diferenas de mtodos. Isto leva
ao problema j apontado por Canesqui (1994) e por Carrara
(1994), nas primeiras revises dos estudos antropolgicos na
rea da sade no Brasil do uso de ferramentas tericas e me-
todolgicas da Antropologia mal assimiladas, por no se con-
siderarem todas suas implicaes. As pesquisas qualitativas
em sade nem sempre levam em conta seu campo episte-
molgico de origem, confuso que se expressa na delimitao
compartimentada e segmentada, moda das cincias posi-
tivas dessa metodologia como prpria das cincias humanas,
sem que sejam apreendidas na anlise as diferenas na forma
de olhar, apreender, compreender e interpretar a realidade em
relao aos pressupostos de objetividade do conhecimento das
cincias biomdicas (Knauth, 2010). Opera-se uma espcie de
traduo do mtodo nos termos empiricistas dessas cincias.4
Se a evidncia do carter qualitativo do conhecimento an-
tropolgico dispensa a demarcao dessa especificidade do
4 Em resposta a esses desacertos, as implicaes do uso de ferra-
mentas tericas e metodolgicas da Antropologia no campo da
sade foram objeto de reflexo em manuais de pesquisa elabora-
dos por antroplogas que trabalham nesse campo (Vctora, Knau-
th e Hassen, 2000; Knauth, 2010).
16
mtodo no interior da disciplina, trata-se, nessa literatura cr-
tica que se desenvolve no interior do campo multidisciplinar da
sade, de uma definio contrastiva, que visa demarcar que h
uma incontornvel diferena metodolgica e epistemolgica
nas pesquisas na rea das cincias humanas e sociais em rela-
o aos mtodos experimentais da biologia, nos quais se baseia
a regulamentao tica da pesquisa no pas (Duarte 1998a e
1998 b; Sarti, 2003 e 2010). Assim, as reas do conhecimen-
to vinculadas aos mtodos qualitativos, como a psicologia e as
chamadas cincias sociais em sade, reivindicam o respeito
s suas especificidades no mbito da Resoluo 196, uma vez
que esta no leva em conta os dilemas ticos envolvidos nas
pesquisas que se desenvolvem por referncias epistemolgicas
alheias ao campo biomdico (Guerriero e Dallari, 2008).
Os desdobramentos dessa discusso, quando circunscrita
ao mbito da CONEP, diante das dificuldades de dilogo com
o Conselho Nacional de Sade, por longo tempo relutante em
dar ouvidos s questes levantadas pelos pesquisadores das
chamadas reas das cincias humanas e sociais, levaram a
ABA, em sua gesto de 2011-2012, a deslocar o foco da dis-
cusso predominante na crtica Resoluo 196. At ento,
esta focalizava a necessidade de se considerar, no interior
desta Resoluo, a especificidade da metodologia qualitativa,
terreno comum onde trafegam as cincias humanas e sociais,
por oposio s cincias biolgicas, e de se voltar a ateno
para outros mbitos possveis de regulamentao da tica em
pesquisa, fora do Ministrio da Sade.
17
Nessa perspectiva, foi elaborada pela ABA uma moo5, apro-
vada na Assembleia Geral do 35 Encontro Nacional da ANPOCS
(Associao Nacional de Ps-Graduao e Pesquisa em Cincias
Sociais) em outubro de 2011, e subscrita pela ANPOCS e pela SBS
(Sociedade Brasileira de Sociologia), na qual se afirma a im-
prescindibilidade do controle tico de quaisquer pesquisas cien-
tficas, com ou sem seres humanos, ao mesmo tempo em que
se reconhece o enorme avano representado pela existncia de
uma Resoluo de mbito nacional para a regulamentao das
pesquisas biomdicas que envolvem seres humanos, diante do
necessrio controle da pesquisa experimental em seres huma-
nos, caracterstica das cincias biolgicas e mdicas.
Manifestando-se, assim, a favor da manuteno da Reso-
luo n 196/96 do Conselho Nacional de Sade, a moo in-
siste na urgncia da delimitao de sua abrangncia, que deve
ser restrita s pesquisas no campo biomdico. Denunciamos,
assim, a situao anmala, injustificvel e insustentvel da
subordinao das pesquisas de cincias sociais e humanas
referida Resoluo. Prope-se, ao lado da reviso urgente
da Resoluo 196, a discusso da elaborao de outra Regula-
mentao, especfica para as cincias sociais e humanas, com
a participao de pesquisadores dessas reas, possivelmente
no mbito do Ministrio da Cincia e Tecnologia.
A moo foi encaminhada como reivindicao da ABA
consulta pblica com vistas reviso da Resoluo 196, que
ocorreu de 12 de setembro a 10 de novembro de 2011, por
5 Apresentada em Anexo.
18
meio do preenchimento de um formulrio individual para en-
caminhamento das propostas de reviso no stio eletrnico
do Conselho Nacional de Sade (CNS).6
Os efeitos dessa demanda surgiram quando a ABA foi con-
vidada a participar do Seminrio Temtico Pesquisas em Cin-
cias Sociais e Humanas: Reviso da Res. CNS 196/96, realizado
a partir das respostas consulta pblica, em Braslia, no dia
01/08/2012. Posteriormente, foi realizado na cidade de So
Paulo, de 20-22/09/2012, o I Encontro Extraordinrio dos
Comits de tica em Pesquisa do Sistema CEP-CONEP, cujo
subttulo sintomaticamente era: Reviso da Resoluo CNS
196/96: Atualizar para Fortalecer onde foi votado o novo tex-
to da Resoluo 196 que buscou incorporar as contribuies
da referida consulta pblica.7 Nesse encontro dos CEPs (ENCEP
2012) foi decidida a elaborao, dentro da Resoluo 196, de
uma Resoluo Complementar especfica para as pesquisas em
cincias humanas e sociais e a ABA, junto a outras entidades
e pesquisadores individuais, foi convidada a integrar o Grupo
de Trabalho da CONEP responsvel por elaborar a proposta de
redao de seu texto.
6 Para informaes sobre a consulta pblica da Resoluo 196/96
ver o stio eletrnico do CNS: http://conselho.saude.gov.br/web_
comissoes/conep/index.htmlvv. Acesso em 14/01/2013.
7 Ver o novo texto da Resoluo 196, a ser ainda submetido ao
CNS, ver: http://conselho.saude.gov.br/web_comissoes/conep/
aquivos/resolucoes/23_out_versao_final_196_ENCEP2012.pdf.
Acesso em 14/01/2013.
19
Assim, a proposta da ABA de retirar da CONEP a regula-
mentao da pesquisa antropolgica no encontrou, ainda,
ressonncia, pelo menos nesse mbito. Atualizar para for-
talecer uma insgnia que fala da disposio de afirmar a
Resoluo 196, inclusive para regulamentar as pesquisas na
rea das cincias humanas e sociais, apontando para a ne-
cessidade de que a proposta da ABA busque outras frentes
para levar adiante sua proposio.
Buscando dar continuidade problematizao dos termos
em que est colocada a regulamentao da tica em pesquisa
atualmente no Brasil, esta publicao visa levantar questes
que contribuam para aprofundar a anlise das implicaes
ticas do trabalho antropolgico e subsidiar a formulao de
propostas concretas que permitam regular procedimentos
ticos considerando os marcos da prtica etnogrfica.
A organizao da coletnea d sequncia a outro instru-
mento utilizado pela ABA para a divulgao de problemas en-
frentados por antroplogos e antroplogas, como parte do
processo de resistncia e oposio forma como a tica em
pesquisa antropolgica vem sendo examinada e julgada pelo
sistema CONEP/CEPs. Trata-se de um espao no stio ele-
trnico da associao, que se intitula CONSULTA: tica em
pesquisa antropolgica, por meio do qual se colhem infor-
maes sobre o modo e as condies de funcionamento dos
CEPs locais e do eventual trnsito de processos de autorizao
junto CONEP (como no caso da pesquisa com populaes
indgenas), que se referem tanto experincia de quem teve
20
que submeter seus projetos ao sistema CEP/CONEP, quanto
de quem participou de Comits locais.8
Em face da inadequao da atual regulamentao da tica
em pesquisa no pas, com relao pesquisa antropolgica e
diante das inmeras publicaes j existentes sobre o tema,
o atual debate que envolve a regulamentao da tica na an-
tropologia ser certamente beneficiado pela discusso a partir
de casos concretos e problemas enfrentados no atual sistema.
Com vistas a contribuir para enfrentar esses novos desafios, a
presente publicao tem, como principal objetivo, subsidiar a
discusso sobre o tema de forma a permitir levar adiante a rei-
vindicao postulada pela ABA na referida moo de 2011.
Os cinco artigos que compem este volume permitem
precisamente trazer luz discusso tica ao analisarem, sob
distintos prismas, problemas que emergiram em situaes
concretas vividas durante a pesquisa etnogrfica, revelando
questes cuja discusso no se pode eludir, quando se leva a
srio a proposta dialgica e compromissada da antropologia, e
que no esto adequadamente contempladas na atual regu-
lamentao da tica em pesquisa. Foram originalmente apre-
sentados nas atividades relativas tica nas quais a gesto da
ABA 2011-2012 esteve envolvida, a saber: a Mesa-Redonda
tica em pesquisas antropolgicas, na III Reunio Equatorial
de Antropologia/XII ABANNE, realizada na Universidade Federal
8 Consultar a esse respeito o stio eletrnico da ABA: www.abant.
org.br.
21
de Roraima, Boa Vista (RR), 14-17 de agosto de 2011; o Simpsio
Antropologia e tica, na IX Reunio de Antropologia do Mer-
cosul, na Universidade Federal do Paran, Curitiba (PR), 10-13
de julho de 2011; e o Simpsio tica e Antropologia: desafios
para a regulamentao, na 28 Reunio Brasileira de Antro-
pologia, na Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, na
cidade de So Paulo (SP), 02-05 de julho de 2012.
Reiteradamente, aparece nos artigos aqui apresentados o
que vem sendo apontado desde fins dos anos 1990, em toda
a bibliografia sobre o tema, (Braz , 1999; Sarti, 2003; Duar-
te 2004, Vctora et al., 2004, Heilborn, 2004; Goldim, 2004;
Guerriero e Dallari, 2008; Diniz e Guerriero 2008; Minayo,
2008; Knauth, 2010), em todo debate, qual mantra, como um
dos pontos mais problemticos da regulamentao da tica
em pesquisa no Brasil: a inadequao do Termo de Consen-
timento Livre e Esclarecido (TCLE). Este deve ser estabeleci-
do por escrito e previamente pesquisa emprica, para dar
conta do consentimento do pesquisado identificado com
a concepo ocidental de indivduo, que fundamenta a no-
o de direito em pauta nos termos de um modelo a ser
adotado diante de qualquer mtodo ou situao de pesquisa.
Destaca-se essa inadequao, em particular, quando se tra-
balha com populaes grafas ou iletradas ou em situaes
que envolvem transgresso a regras institudas ou prticas
consideradas criminosas. No entanto, a crtica estende-se
cada vez mais a toda e qualquer pesquisa etnogrfica (Fleis-
cher e Schuch, 2010), pelas dificuldades incontornveis de se
estabelecer o suposto consentimento como um ato nico,
ainda que no firmado por escrito, na pesquisa etnogrfica,
dada sua dinmica e os imponderveis implcitos em seu de-
senrolar.9 No se trata apenas da inoperncia para solucio-
nar questes ticas, mas das amarras que o consentimento
prvio pesquisa cria para o trabalho de campo etnogrfico.
Se o objetivo do antroplogo justamente chegar na l-gica implcita dos fatos, falar dos no ditos do local, aden-trar de certa forma no inconsciente das prticas culturais, como podemos imaginar que os informantes preveem todas as consequncias de seu consentimento informado? (Fonse-ca, 2010: 214)
Como sintetiza Marina Cardoso em seu texto nesta cole-
tnea,
(...) no caso da pesquisa etnogrfica, este consentimen-to no um documento formal (quase sempre incuo), mas produto das relaes que se estabelecem no campo (eventual-mente, para alm dele), e de acordo com uma lgica relacio-nal e propriamente tica, mas que aquela da comunidade em que nos inserimos, e que determina tambm que material coletamos e sob quais condies, exerccio bsico de qualquer etnografia para ser reconhecida como tal.
A partir de suas experincias de pesquisa sobre a violncia
durante a ditadura militar argentina nos anos 1970, Mariana
Tello mostra, em seu texto nesta coletnea, como o consen-
9 Ver o artigo de Patrice Schuch nesta coletnea para a discusso
sobre o TCLE.
23
timento informado foi, durante o trabalho de campo, um pro-
cesso de negociaes permanentes que dependeu de fatores
imprevistos que iam se revelando nas diferentes fases de ela-
borao do trabalho, no podendo estar definido de antemo.
Em seu texto aparece, assim como no de Ceres Vctora, a
questo do uso de imagens como instrumento de pesquisa
e meio de divulgao dos dados, outro ponto importante da
negociao tica: quais os limites ticos pelos quais se expe
a experincia do sofrimento, como apontou Boltanski (1993)?
Quais as implicaes de torn-la pblica? Como definir a au-
toria no registro da experincia pela imagem?10 No caso ana-
lisado por Mariana Tello, a autora evidencia como, diante de
uma represso, assim como de uma militncia, clandestina,
durante os anos 1970 na Argentina, a investigao sobre esse
perodo e seus acontecimentos traz uma aura de revelao,
de ruptura com silncios estrategicamente guardados11, le-
vantando a necessidade de acertos ticos em relao a cada
informao desvelada.
Lo que es necesario recalcar es que esa posibilidad de eleccin sobre como asumir una experiencia pblicamente y como parte del contrato tico, explicitado de antemano (), constituy un fuerte elemento de establecimiento de la con-fianza y, en trminos generales, un posibilitador de la inves-tigacin misma.
10 A questo da tica no uso da imagem foi abordada por Carlos Ca-
roso (2004), na coletnea anterior da ABA (Vctora et al., 2004).
11 Traduo nossa.
24
Ceres Vctora analisa a reao dos Charruas, grupo indge-
na que teve reconhecimento oficial da FUNAI (Fundao Na-
cional do ndio) em 2007, a um documentrio sobre sua vida, a
partir no apenas do que os prprios Charruas apontam como
inapropriado, mas tambm da anlise de uma ao movida
pelo Ministrio Pblico contra os produtores e a diretora do
filme e da deciso judicial sobre o processo. Mostrando os li-
mites ticos da soluo jurdica pela qual foi resolvida a ques-
to em pauta, a autora questiona a transformao inesperada
provocada pela interveno de profissionais da comunicao
sobre o grupo indgena, filmado, fotografado, visibilizado pelo
olhar do outro, imagens nas quais os Charruas alegam no
se reconhecer. A autora mostra, a partir de sua experincia
etnogrfica, o que Marina Cardoso chama de tica indgena,
que no foi considerada no processo judicial.
As regras estabelecidas pela 4 Conferncia Nacional de
Sade Indgena, em 2006, evidenciando as formas como as
populaes indgenas se apropriam dos instrumentos de ga-
rantias de direitos, estabelecidos pela Constituio de 1988,
mencionadas no artigo de Marina Cardoso, contribuem para
entender a atitude dos Charruas e suas demandas frente ao
uso de imagens suas que consideram inapropriadas. Trata-se
de uma gramtica que passam a dominar e das quais fazem
uso em sua relao com o mundo dos brancos.
A tica discutida nos textos apresentados a partir de uma
concepo dialgica da antropologia. Isso significa dizer que
no se trabalha sobre o outro, mas com o outro na pro-
25
duo do conhecimento e no estabelecimento do que ti-
co na pesquisa, quando esta pensada, em suas implicaes
profundas, como uma relao entre pesquisador e pesquisado.
Jane Beltro ressalta que os antroplogos foram treinados
(e continuam a ser) para compreender a diversidade, mas o
treinamento ainda se limita a explicar o outro e no a traba-
lhar em conjunto com o outro. Para ela, os estudos amaz-
nicos, em particular, mostram que a Etnologia no uma dis-
ciplina em si, mas a construo de uma sociedade em moldes
novos, abrigando os invisveis de ontem como protagonistas.
Seu texto, como o de Marina Cardoso, insere-se na busca, que
marca a antropologia brasileira contempornea, de colocar a
discusso tica como parte de uma elaborao conjunta de
reflexes feitas pelos antroplogos com os indgenas. Fala da
experincia de escrever com pessoas indgenas como escritas
interculturais, levadas adiante, segundo a autora, como de-
safios da incluso social. Marina Cardoso, a partir de seu campo
de pesquisa, trata do sentido prprio do que seria uma ti-
ca indgena, que se formula sob formas alheias quelas que
regulamentam nossos procedimentos ticos, mas que esto
necessariamente implicadas na tica do trabalho etnogrfico,
configurando o que a autora chama de paradoxos da tica.
Dentro da mesma perspectiva de pensar com as pessoas
envolvidas na pesquisa os termos ticos dessa relao, Ma-
riana Tello analisa sua experincia de pesquisa com as vti-
mas da ditadura militar argentina delicada interlocuo que
envolve lidar com um tipo de sofrimento fortemente silen-
26
ciado nas sociedades que justamente o provocaram (como
prprio de todo sofrimento social, na expresso de Arthur
Kleinman, Veena Das e Margareth Lock). Os parmetros ticos
frente a seus interlocutores envolvem uma escuta particular
diante dos dilemas ticos de tornar pblicas experincias de
sofrimento associadas violncia.
Diante de uma posio de alteridade mnima12, Mariana
Tello parte, sobretudo, da preocupao com o distanciamen-
to necessrio anlise do tema da violncia, dado seu carter
extremo e suas implicaes ticas e polticas, em qualquer cir-
cunstncia em que se aborde tema to eivado de conotaes
morais. Seu trabalho, realizado na e sobre a Argentina, remete
a questes ainda no enfrentadas pela antropologia brasileira,
como a da experincia das vtimas da ditadura brasileira (1964-
1985), afirmando o importante campo de interlocuo sobre as
experincias de violncia na Amrica do Sul que tem se aberto
nos ltimos tempos no mbito da antropologia no continente.
Sob olhares distintos, os textos falam da politizao da
antropologia, uns com mais, outros com menos restries,
a partir de experincias concretas de pesquisa. Para Patri-
ce Schuch, trata-se de admitir que a antropologia no tem,
necessariamente, que se identificar, mimetizar ou defender o
ponto de vista nativo; o que se necessita , exatamente, o es-
tabelecimento de uma relao com tal ponto de vista, aquilo
12 Ela mesma sofreu a experincia de represso poltica em sua fa-
mlia. Sua me foi assassinada pelas Foras Armadas e Policiais
em Tucumn, na Argentina, quando ela tinha 10 meses de idade,
conforme relata em seu texto.
27
que, para alguns, seria a sua prpria condio epistemolgica.
O texto de Patrice Schuch, que mapeia a discusso recente
sobre tica e antropologia no Brasil, sintetiza as preocupaes
que norteiam a atual reflexo sobre o tema e animam esta co-
letnea. A autora, contrapondo-se suposio de que exis-
ta alguma espcie de centro de enunciao tico-normativa
aos quais outros domnios seriam subordinados, ressalta a
importncia de se compreender em quais domnios e debates
a relao entre antropologia e tica est em jogo e como ela
configurada nos mltiplos mundos sociais nos quais opera.
Essas mltiplas possibilidades de negociao da tica nas
relaes entre os atores implicados no trabalho de investigao
antropolgica, tal como surgem nas diferentes situaes de pes-
quisa, em diferentes contextos, e as solues encontradas ou os
intrincados desencontros de perspectivas, so o objeto das refle-
xes aqui apresentadas, com base em experincias diversas de
pesquisa e pontos de vista no necessariamente coincidentes.
As formas que adquire a discusso tica, o contexto no qual
emerge, seus agentes e modos de agncia tornam-se proble-
mas permanentes de reflexo do antroplogo junto aos sujei-
tos envolvidos na pesquisa. Trata-se de manter a delicada ten-
so entre proximidade e distanciamento que marca o trabalho
antropolgico que, contra toda fixidez, faz da prpria definio
do que se configura, ou no, como tico algo em movimento,
deslocamentos nos quais se move e se pe em questo o pr-
prio antroplogo junto a seus interlocutores na pesquisa.
Dezembro 2012
28
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31
A vida social ativa da tica na
Antropologia (e algumas notas do
campo para o debate) Patrice Schuch
Introduo
O ttulo deste texto inspirado no artigo escrito por Lila
Abu-Lughod, publicado no Journal of Middle East Womens
Studies, em 2010, chamado: The Active Social Life of Mus-
lim Womens Rights: A Plea for Ethnography, Not Polemic,
with Cases from Egypt and Palestine. Nesse texto, Abu-Lu-
ghod (2010) argumenta em favor de um deslocamento do
debate muito polmico e, segundo ela, pouco produtivo
sobre a existncia ou no de direitos das mulheres muul-
manas para a premissa de que esta questo tem hoje uma
vida social ativa, que deve ser estudada etnograficamente.
Nessa etnografia, importam interrogaes como: quais tipos
de debates e de instituies os direitos das mulheres mu-
ulmanas partilham? Como eles so mediados? Que tipo de
trabalho essa noo e as prticas organizadas nesses termos
fazem em vrios lugares, para diversos tipos de mulheres?
32
Abu-Lughod (2010) opta por estudar alguns desses espaos
ONGs de mulheres palestinas e egpcias e comunidades rurais
onde mulheres e crianas vivem suas vidas na interseo com
instituies locais e mdias nacionais mostrando o quanto
a questo sobre os direitos das mulheres muulmanas est
diferencialmente colocada nesses mltiplos mbitos, o que
requer ateno para suas mediaes e transformaes.
Acredito que a perspectiva analtica sugerida por Abu-Lu-
ghod (2010) possa ser interessante para o debate da relao
entre tica e Antropologia. Isso porque a discusso sobre ti-
ca, tal como o domnio dos direitos humanos, preza-se muito
facilmente uma espcie de normatizao empobrecedora
que reduz a dimenso tica e os mbitos diferenciados de
prtica antropolgica ao carter de domnios ontolgicos e
estticos. Sabemos que o iderio tico, enquanto uma con-
dio de possibilidade para o trabalho antropolgico, sempre
esteve no horizonte epistemolgico disciplinar da Antropolo-
gia. No entanto, a prpria diversificao das prticas antro-
polgicas (Ribeiro, 2004), conjugada com as crescentes de-
mandas de regulamentao dos procedimentos de pesquisa
(Fleischer e Schuch, 2010) dinamizam esse debate, expan-
dindo-o em outras direes. Neste contexto de discusses,
talvez mais do que posies apressadas ou fceis generali-
zaes, importa compreender em quais domnios e debates
a relao entre tica e Antropologia est em jogo e como ela
configurada nos mltiplos mundos sociais nos quais ope-
33
ra, isto , compreender a sua vida social ativa, nos termos de
Abu-Lughod (2010).
Meu interesse neste artigo exatamente arguir nessa
direo e defender que qualquer discusso sobre tica em
pesquisa antropolgica tem que levar em conta a multipli-
cidade de domnios em que a tica existe na Antropologia,
isto , a complexidade de sua vida social ativa. Refiro-me
a esse termo em sentido semelhante quele empregado por
Abu-Lughod (2010). A autora usa o termo vida social para
sugerir que os direitos das mulheres muulmanas s podem
ser compreendidos a partir do seu jogo social, o que dife-
rente de dizer que podem ser achados na circulao social
desse conceito como em Appadurai (1986), para o caso da
circulao de mercadorias ou nos contextos sociais de sua
reproduo, transplante ou vernacularizao, como na su-
gesto de Engle Merry (2006) para o estudo acerca dos enun-
ciados de direitos humanos. Abu-Lughod (2010) refere-se a
vida social dos direitos das mulheres muulmanas como a
sua mediao diferencial atravs de vrias redes sociais e ins-
trumentos tcnicos, inspirando-se nas sugestes de Latour
(1999) em seus estudos sobre a cincia.
Destaco a importncia desse tipo de perspectiva analtica
porque ela rompe com a suposio de que exista alguma es-
pcie de centro de enunciao tico-normativa aos quais
outros domnios seriam subordinados, ao mesmo tempo em
que opta por uma definio performativa dos domnios em
34
questo. Em meu entender, tomado como um todo, e en-
tendido a partir de sua parcialidade, o argumento em torno
de uma vida social ativa da tica na Antropologia conduz no
apenas ao combate a formulaes sobre as possibilidades de
uma tica universal ou meta-disciplinar, mas tambm a re-
jeio da noo de que se trata de procurar a adaptao de
uma tica geral a situaes particulares. Sob meu ponto de
vista, no disso que se trata. Trata-se de investir na ideia de
que a tica diferencialmente produzida em mltiplos dom-
nios da prtica antropolgica em sua vida social ativa o
que requer delicadeza na sua discusso e considerao, as-
sim como compreenso da diversidade e situacionalidade dos
espaos de sua realizao.
luz dessa inspirao, meu objetivo examinar alguns
domnios em que a relao entre tica e Antropologia ganha
vida social ativa, atravs da anlise de certa bibliografia bra-
sileira relativamente recente sobre esse assunto. No Brasil,
h uma produo crescente de artigos, captulos de livros e
coletneas temticas sobre tica e pesquisa antropolgica1.
No entanto, tomarei como ponto de partida os debates pre-
sentes em dois livros sobre o assunto: Antropologia e tica. O
debate atual no Brasil, organizado por Ceres Vctora, Ruben
Oliven, Maria Eunice Maciel e Ari Oro, publicado em 2004, a
partir de uma srie de simpsios homnimos realizados pela
1 Veja-se, por exemplo, Machado (2007), Schuch, Vieira e Peters
(2010), Diniz, (2005) e Lagdon, Maluf e Tornquist (2008).
35
ABA em 2002 (Vctora et al, 2004); e o livro publicado em
2010, chamado tica e Regulamentao na Pesquisa Antro-
polgica, organizado por mim e por Soraya Fleischer, produto
de um seminrio de mbito nacional realizado na Universida-
de de Braslia, com o apoio do Departamento de Antropologia
(Fleischer e Schuch, 2010). Eu me concentrei nessas publi-
caes embora fazendo associaes com outras literatu-
ras porque em ambas h uma espcie de preocupao em
sistematizar certas discusses sobre o tema e reunir algu-
mas das principais problemticas em torno do assunto, sem
se circunscrever em algum mbito especializado da atuao
antropolgica. Atravs desse recorte, espero deixar evidente
que no meu interesse generalizar os argumentos aqui es-
boados para o que seria uma Antropologia brasileira, nem
totalizar o estado da arte atual das discusses sobre o as-
sunto. Atravs da singularidade das produes em questo,
procurarei explicitar alguns domnios de problematizao nos
quais a tica na Antropologia se configura. Nesses termos, os
textos analisados permitem pensar na relao entre certos
domnios de fatos e prticas e o que est sendo formulado
como um problema tico na Antropologia.
Expandindo os debates sobre tica e Antropologia para
alm de qualquer apressada enunciao normativa e incen-
tivando as reflexes sobre os diferentes mbitos de constru-
o da tica antropolgica, meu objetivo inicial neste texto
compreender, nos livros selecionados, as configuraes do
36
que percebi e classifiquei como trs domnios em que a tica
aparece como espao de problematizaes: 1) o pesquisar/
atuar: autorreflexo, responsabilidade e prtica poltica; 2)
Antropologia e multidisciplinaridade: cincia e sua insero
social; 3) a tica como campo de regulamentaes: quando
dizer no, no basta. Minha segunda tarefa nesse artigo resi-
de na explorao de uma situao ocorrida em meu prprio
campo de pesquisa, que acredito ensejar discusses sobre o
que acontece quando algum desses domnios parece estar
em contradio com outro. Em especial, a problematizao
dessa situao de campo coloca em evidncia o que implici-
tamente aparece tambm nos demais domnios estudados: o
debate sobre tica em Antropologia inescapvel s reflexes
sobre qual a tarefa ou vocao da prpria Antropologia.
Preocupaes ticas, Tradies Nacionais e a
Antropologia Brasileira
Didier Fassin publicou um artigo provocador, intitulado: The
end of ethnography as collateral damage of ethical regula-
tion?, em 2006, na revista American Ethnologist, no qual sa-
lienta a sua prpria experincia como pesquisador, ao estudar
polticas de interveno e instituies pblicas nos contextos
francs e sul africano (Fassin, 2006). O autor contrasta tais
espaos no que diz respeito aos esforos de regulamentao
dos procedimentos de pesquisa. Afirma que, na Frana, sur-
preendente o que chama de falta de preocupao com os as-
37
suntos da tica nas Cincias Sociais: apenas no ano de 2005
que a Escola de Altos Estudos em Cincias Sociais comeou a
se engajar nessa problemtica. At recentemente, conta ele, as
propostas de pesquisa no apresentavam nenhuma conside-
rao especfica sobre tica, a menos que o pesquisador can-
didatasse seu projeto de pesquisa ao financiamento de algu-
ma instituio mdica, tal como o Instituto Nacional de Sade
(INSERM) ou a Agncia Nacional de Pesquisa sobre Aids (ANRS).
Nesse caso, a questo tica era reduzida ao preenchimento de
alguns formulrios sobre a proteo dos sujeitos da pesquisa,
para os quais os cientistas sociais, afirma ele, sempre tinham
a mesma resposta: no se aplica. Essa situao teria come-
ado a modificar-se tanto pelas novas realidades da Unio Eu-
ropeia, quanto pela presso dos prprios pases chamados do
terceiro mundo sobre o assunto.
J a sua experincia na frica do Sul contrasta fortemente
com o contexto francs: a partir da dcada de 2000, perce-
be-se um incremento substantivo no conjunto de regula-
es ticas, regras e constrangimentos severos delimitando o
campo das possibilidades de pesquisa, atrasos na implemen-
tao de programas produzidos pela demora das avaliaes
nos Comits de tica e obstculos crescentes colocados
medida da progresso da pesquisa, mesmo aps a permisso
para sua realizao ter sido dada. Fassin (2006) estranha as
duas experincias: na Frana, onde diz se surpreender com o
fato de qualquer pesquisador poder ser muito crtico em rela-
38
o aos procedimentos mdicos, sem, no entanto, jamais ter
apresentado suas prprias formulaes de pesquisa para ne-
nhum Comit de tica, e na frica do Sul, onde, no obstante
a forma precria de tratamento dos pacientes, a exposio
dos corpos e a negligncia da dor, a presena antropolgica
que parecia causar problemas ticos.
Esses dois extremos so representativos, segundo ele, de
culturas nacionais distintas no que diz respeito tica nas Ci-
ncias Sociais: enquanto os cientistas sociais franceses pa-
recem se colocar acima ou do pouca ateno aos domnios
ticos oficiais exteriores s suas disciplinas, considerando a
tica autodefinida, no-escrita e no-certificada como
um atributo incorporado figura do antroplogo ou soci-
logo, na frica do Sul a preocupao com a soberania nacio-
nal teria sido um grande incentivo para a preocupao com a
regulamentao tica (Fassin, 2006). Para o autor, tais fatos
tambm so relevantes para mostrar que no apenas as in-
tervenes provenientes da biomedicina importam na defi-
nio das presses para regulamentao tica, mas tambm
nacionalismos e a geopoltica mundial.
As sugestes de Fassin (2006) fazem sentido e so inte-
ressantes porque associam as problematizaes sobre tica
no apenas aos procedimentos regulamentadores biomdi-
cos que podem funcionar, s vezes, como bodes expia-
trios da prpria discusso sobre o assunto mas tambm
levantam questes sobre a prpria relao entre tica e os
39
estilos antropolgicos e configuraes socioculturais das
quais emergem. Gostaria de seguir essa direo, detendo-
-me nos seus efeitos para a configurao do debate acerca da
tica na Antropologia brasileira e sua vida social ativa. Como
sabemos, a relao entre estilos antropolgicos e contextos
culturais nos quais emergem j foi trabalhada eficientemente
por Cardoso de Oliveira (1998) e Peirano (1992), entre outros.
No caso brasileiro, Peirano (1992) mostrou que incorporamos
a Antropologia como uma Cincia Social numa figurao que
une conhecimento e comprometimento poltico, estudando
temas e grupos prprios da sociedade brasileira e, de certa
forma, praticando uma Antropologia endgena. Esta reali-
dade est em transformao, a partir dos processos de inter-
nacionalizao da pesquisa antropolgica brasileira realizada
com flego a partir do ano 2000.
No entanto, em que pese tais mudanas recentes, a leitura
dos artigos dos livros selecionados como base para minha in-
vestigao mostra que um dos pontos mais recorrentes dos de-
bates , justamente, qual a tarefa, funo ou vocao de uma
Antropologia que nos termos de Roberto Cardoso de Oliveira
(2004), no artigo de abertura do livro Antropologia e tica: o de-
bate atual no Brasil (Vctora et al, 2004) vai alm da constru-
o de conhecimentos e se v enleada em demandas da ao.
Qual de ns (pergunta o autor) especialmente os etnlogos,
no se viu um dia pressionado a agir simultaneamente ao seu
esforo de conhecer? (Cardoso de Oliveira, R., 2004:22).
40
A Vida Social Ativa da tica Antropolgica:
trs espaos de problematizao
O pesquisar/atuar: autorreflexo, responsabilidade
e prtica poltica
exatamente em torno da complexidade do pesquisar/
atuar dilema bem representativo de nosso estilo disciplinar
que marca-se uma forte vertente em que a tica antropol-
gica ganha vida social ativa nos textos selecionados. Destaco
que a tica aparece, nessa configurao de interrogaes em
torno do binmio pesquisar/atuar, como associada defini-
o de modos de relacionamento do antroplogo com grupos
em interlocuo no caso de Roberto Cardoso de Oliveira,
na situao de contato intertnico e na reflexo sobre o
que constitui a tarefa antropolgica e suas responsabilidades.
No artigo em questo, Cardoso de Oliveira (2004) conta sua
experincia de ter sido contratado pela FUNAI, no ano de 1975,
para estudar a situao dos Tkna diante do Movimento da
Cruz e diz com clareza:
Meu problema tico de ento era de como manter minha independncia de pesquisador em relao agncia indigenis-ta que me contratara, ainda que jamais tenha recebido dela qualquer recomendao para intervir em seu nome na situa-o intertnica (Cardoso de oliveira, 2004:22).
Nessa experincia, o autor explica que no houve nenhum
conflito evidente entre os grupos estudados e, portanto, no
41
teve que interceder por nenhuma das partes. No entanto,
utiliza tal situao para evidenciar onde reside o que chama
de mal estar tico na Antropologia prtica, aquela envol-
vida com as dimenses morais da ao, mas no prescinde
da autorreflexo, a qual, por sinal, estaria crescentemente
marcando a realidade dos antroplogos brasileiros2. Tal mal
estar tico residiria na condio antropolgica brasileira de
mediar culturas e pessoas de carne e osso em confronto e
2 Nota-se, no texto de Roberto Cardoso de Oliveira (2004), uma
preocupao em distinguir uma Antropologia aplicada de uma
Antropologia da ao: enquanto a primeira se caracterizaria
pela vinculao com o colonialismo e praticismo inaceitvel, a
ltima estaria relacionada aos sentidos que Sol Tax deu ao ter-
mo em 1952, para evocar o carter da atuao antropolgica na
prtica social. No entanto, o autor prefere o termo Antropologia
prtica, pois segundo ele a Antropologia da ao tambm te-
ria um dficit reflexivo importante, inaceitvel para a Antropologia
contempornea. Evidencia-se uma espcie de tenso em torno
dos limites e responsabilidades do antroplogo, em suas diversas
modalidades de atuao na vida pblica, o que se evidencia nos
prprios debates em torno da nominao das atividades antropo-
lgicas. Pode-se dizer que tais debates se renovaram na dcada
de 2000, a partir da elaborao de laudos periciais antropolgi-
cos. O ttulo do texto de Eliane Cantarino ODwyer (2005), publi-
cado na parte tica e Interveno de um livro sobre a produo
de laudos antropolgicos, intitulado: Laudos Antropolgicos:
pesquisa aplicada ou exerccio profissional da disciplina? muito
representativo dessa tenso. A autora defende a posio de que
os laudos antropolgicos no so pesquisa aplicada, uma vez que
no prescindem de dois aspectos fundamentais: a reflexo terica
e o trabalho de campo antropolgico.
42
na sua complexa tarefa de traduzir sistemas culturais, den-
tro da sociedade nacional3. Como uma sugesto de supera-
o de tal mal estar tico, Cardoso de Oliveira (2004) evoca
a capacidade crtica e reflexiva da Antropologia, a abertura
tica discursiva e, para o que me interessa aqui destacar,
um abandono do que chama de um relativismo absentesta,
responsvel por uma neutralidade equvoca. Somente a par-
tir desse abandono a conciliao entre tica e Antropologia
poderia ser realizada4.
Na interseo do debate pesquisar/atuar colocam-se
tambm as dimenses ticas no trabalho de formulao de
laudos antropolgicos, o necessrio dilogo com o campo ju-
rdico e as tenses desse dilogo. Ilka Boaventura Leite, no
3 Joo Pacheco de Oliveira (2004), discutindo as possibilidades de
uma Antropologia participativa tambm refere a existncia de
um mal estar na Antropologia brasileira, ao qual o autor atribui
uma espcie de cultural lag dado pelo fato de que as represen-
taes hegemnicas da disciplina esto em desacordo com sua
prtica cotidiana, onde se problematiza, entre outros fatores, a
externalidade do olhar antropolgico, a participao dos nativos
na formulao do problema de pesquisa e a apropriao do traba-
lho antropolgico com possibilidades de luta poltica.
4 Nesse sentido, tal posio poderia ser aproximada de Otvio Ve-
lho (1995), para quem o relativismo, j em 1995, era tomado como
uma espcie de arrombador de portas abertas. Ver tambm Ve-
lho (2008), texto em que o autor incita ao desenvolvimento de
outras formas de justificao do trabalho antropolgico brasileiro,
para alm da posio de antroplogos como mentores da demo-
cracia.
43
seu artigo presente no livro de 2004, salienta que um dos
principais dilemas vivenciados nesse tipo de trabalho a ex-
ternalidade da demanda pelo laudo e a atuao antropolgica
em situaes que, de antemo, se apresentam como confli-
tuosas5. O que parece estar em jogo aqui so questes que
relacionam a tica com autorreflexes sobre os domnios da
autoridade e posicionalidade do antroplogo, num contexto
onde as suas responsabilidades sociais so imensas, na me-
dida em que o seu trabalho pode ter muitos desdobramentos
polticos e sociais para a vida das comunidades em questo.
Isso requer, diz a autora, uma reflexo sobre esse lugar de
responsabilidade social do antroplogo:
no momento em que depositei o laudo sobre a comu-nidade do Casca no Ministrio Pblico, na verdade o traba-lho estava apenas comeando. o procurador me disse: agora voc vai comear a ser chamada para responder pelo que est escrito no laudo. Compreendi que s ento o processo estava comeando porque novas questes seriam colocadas, todas as pessoas identificadas seriam chamadas a depor e a coisa tomaria o rumo de embate decisrio. estando a, o antrop-logo parte envolvida porque escreveu o documento. hoje, o tema de pesquisa e o campo no so mais aleatrios (Leite, 2004:72).
5 Outra grande dificuldade nesse tipo de trabalho , para Lei-
te (2004), uma expectativa errnea que confunde o trabalho do
antroplogo com o do prprio juiz um juiz sobre a verdade do
grupo pesquisado e demandante de direitos e no o colaborador
na traduo de tal verdade dos grupos demandantes e suas con-
cepes de direito.
44
Como se v, tanto na posio de Cardoso de Oliveira
(2004) quanto na de Leite (2004), a questo da produo de
um conhecimento com responsabilidade, j que constitu-
do em associao com problemticas centrais na forma de
existncia de diferentes grupos sociais e tnicos, parece ser
o prprio sentido da tica nesse espao ativo de sua vida so-
cial. H aqui uma espcie de relao da atividade profissional
do antroplogo com a sua condio de cidado, numa esfera
onde se conciliam os interesses do Estado e diferentes gru-
pos sociais e tnicos, seja para a construo da nao (como
tais textos mostraram) ou mesmo sua exploso, como su-
gere Otvio Velho num artigo de 2008, que retomado por
mim, num artigo-comentrio presente no livro: tica e Regu-
lamentao da Pesquisa Antropolgica (Fleischer e Schuch,
2010). Em meu comentrio, saliento o quanto a proposta de
Otvio Velho clama para o redirecionamento de uma Antro-
pologia que no se defina como mentora da democracia
cujo foco seria a valorizao e a tolerncia diversidade
cultural mas que se faa a partir de interlocues negocia-
das e prtica poltica, o que exige uma participao pblica
antropolgica para alm, inclusive, dos limites de nossa cor-
porao, como a chama Otvio Velho (2008). As implicaes
ticas desse chamado ainda esto para ser problematizadas,
mas, sem dvida, sugerem a renovao das relaes entre a
Antropologia e outros saberes.
45
Antropologia e multidisciplinaridade:
cincia e sua insero social
exatamente essa expanso da prtica antropolgica que
marca outro conjunto de questes em que possvel com-
preender uma vida social ativa da tica na Antropologia, que
so as interrogaes acerca da multidisciplinaridade. Nesse
domnio, a tica aparece relacionada uma tenso produti-
va entre um conjunto de comportamentos e procedimentos
dirigidos definio sobre o que pesquisa antropolgica e
suas particularidades, e s concepes em torno da cincia
e sua insero social. Isto , o debate aqui se dirige para as
interrogaes sobre como praticar uma Antropologia a par-
tir de certos procedimentos de pesquisa especficos e/ou seu
englobamento por demandas mais amplas de engajamento e
responsabilidade social, as quais podem colocar em suspenso
ticas particularistas ou mesmo a dimenso da autonomia da
cincia.
Debates do campo de uma Antropologia da sade, as te-
matizaes sobre a produo de laudos antropolgicos e
acerca de pesquisas sobre polticas diversas de interveno
social e as relaes do antroplogo com mediadores diver-
sos lderes comunitrios, assistentes sociais, enfermeiros,
mdicos, professores, etc. so, nesse caso, preponderantes
nas discusses. H uma percepo, bem explcita nos escritos
de Maria Luiza Heilborn (2004) no livro Antropologia tica:
o debate atual no Brasil, de que a interdisciplinaridade veio a
46
redefinir a tradio de pesquisas antropolgicas no pas e os
estudos em equipe passaram a ser cada vez mais frequen-
tes. Para Heilborn (2004), antroploga com vasta experincia
nos estudos sobre sade, gnero e sexualidade, as condies
dessa passagem teriam que ser pensadas tambm relativa-
mente questo tica: como conciliar uma tica pessoal,
disciplinar e multidisciplinar? Nota-se que o enfrentamento
dessa questo pode reformular outras dimenses do trabalho
antropolgico, como as dimenses da autoria e autoridade,
tambm levantadas no texto de Leite (2004) sobre a prtica
de laudos antropolgicos em que se tem que lidar com equi-
pes mais amplas de profissionais e engajamentos ativos dos
prprios pesquisados.
Os relatos de Vctora (2004), Knauth (2004) e Scott (2004),
todos pesquisadores que contam suas experincias de pesquisas
multidisciplinares no campo da sade, seguem a mesma preo-
cupao em relacionar a tica a um conjunto de procedimentos
vlidos de pesquisa, em colaborao com outros saberes. Vcto-
ra (2004), a partir de sua experincia de pesquisa sobre sade e
sexualidade em grupos populares, tematiza os perigos de usos
de materiais produzidos em contextos disciplinares especficos
por outras disciplinas (como, por exemplo, o uso etnogrfico
de pronturios mdicos sem o consentimento do paciente) e,
tambm, aborda as altas expectativas dos outros profissionais
para a resoluo de problemas imediatos a partir da indicao
de caminhos objetivos para a ao. De modo semelhante, as ex-
47
pectativas em torno de uma urgncia na ao, as quais colo-
cam em discusso as diferentes temporalidades de produo do
trabalho antropolgico, aparecem como uma preocupao no
texto escrito pelo etnlogo Silvio Coelho dos Santos (2004) que,
ao falar da crescente insero de antroplogos em ONGs, rgos
estatais, projetos de educao e assistncia sade, lembra os
desafios de tal disposio6:
Se, por um lado, temos profcuas experincias com a aproximao com advogados, por exemplo, de outro estamos recebendo demandas que no temos condies de responder satisfatoriamente, especialmente porque essas demandas pre-tendem exigir respostas prontas e acabadas. (Santos, 2004:99).
Mais uma vez, assim como no dilema pesquisar/atuar que
abordei anteriormente, a problemtica de como responder
satisfatoriamente demandas sociais diversas aparece con-
figurada como uma questo tica. O que se coloca em ques-
to, nesse caso, so exatamente os procedimentos para sua
efetivao, o que, por vezes, implica considerar certo des-
6 A questo do tempo e a sua importante problematizao num
contexto em que as nossas etnografias esto feitas em perodos
temporais bem circunscritos e progressivamente menores no
apenas na prtica de pesquisas feitas por demandas externas, de
assessorias e consultorias, mas tambm na pesquisa acadmica
dos cursos de mestrado e doutorado um tema premente de
maiores produes, uma vez que tal diminuio pode acarretar
configuraes importantes na formao de conhecimento em An-
tropologia e, consequentemente, nas dimenses ticas do trabalho
antropolgico. Sobre isso, sugiro ver Schuch, Vieira e Peters (2010).
48
compasso entre as formas de pesquisa antropolgica e outras
formas disciplinares.
J na proposta de Scott (2004), que escreve um texto
contando suas vivncias no trabalho de promoo da sade
em comunidades perifricas de Recife, v-se uma subordi-
nao dessas problemticas acerca das particularidades da
Antropologia ao que ele chama de objetivo tico maior, co-
mum tanto aos antroplogos quanto a outros profissionais e
agentes envolvidos com as polticas de interveno, que seria
a prpria promoo da sade. Nesse caso, a tica ganha uma
vida social ativa no apenas na sua associao com proce-
dimentos disciplinares de pesquisa em contextos de prticas
inter/multidisciplinares, mas na configurao do prprio ob-
jetivo da pesquisa. Para Scott (2004), a sensibilidade poltica
necessria nesses tipos de empreendimentos de colaborao
estaria justamente na efetivao de linguagens e prticas de
comunicao entre os envolvidos que possibilitem a valori-
zao dos mltiplos caminhos de buscar a sade, sem tentar
isolar uma voz privilegiando-a como mais ou menos correta
em relao s demais: Eticamente, este papel cabe ao cien-
tista tanto quanto a qualquer outro agente social (Scott,
2004:151).
A perspectiva sobre tica trazida pela prtica de Scott
(2004) assemelha-se quela trazida por Fonseca (2010a), a
qual recupera uma pesquisa da etngrafa da cincia Sheila
Jasanoff (2005). Esta autora, ao realizar uma anlise antro-
49
polgica comparativa dos comits nacionais de biotica na
Inglaterra, Alemanha e Estados Unidos, mostrou como, na
prtica, a tica era entendida em tais domnios de ao. Seus
resultados mostraram o quanto havia um reconhecimen-
to crescente da tica como um frum de comunicao e de
deliberao democrtica, em oposio ao entendimento da
tica como um ramo disciplinar, particularizado, dos espe-
cialistas na anlise da moral. Noto que tal construo sobre
tica abre a participao de atores diversos inclusive lei-
gos nas discusses acerca de princpios e procedimentos de
pesquisa e traz para o centro do debate a dimenso poltica,
muito mais do que tcnica, envolvida na produo de conhe-
cimento cientfico. Nesse sentido, a dimenso da prpria au-
tonomia da cincia coloca-se na berlinda.
A tica como campo de regulamentaes:
quando dizer no, no basta
No entanto, vale evidenciar que progressiva construo
da tica como um domnio poltico por excelncia, se asso-
cia o movimento de incremento de procedimentos e arte-
fatos tcnicos para sua regulamentao e controle, ou seja,
a considerao da tica como tpico de regulamentao.
Parece haver, portanto, dois movimentos correlatos: de um
lado, a crescente considerao da tica como um domnio
poltico por excelncia; de outro lado, uma espcie de seu
encapsulamento prtico em artefatos tcnico-burocrticos
50
prprios de rgos para sua regulamentao e controle, no
raro forjados como um domnio de tcnico-especialistas.
Como expem as antroplogas Marie-Andre Jacob e Anne-
lise Riles (2007), em um texto de introduo a um dossi da
Revista PoLAR sobre o assunto, publicado em 2007 e provo-
cativamente chamado The New Bureaucracies of Virtue: an
introduction (Jacob e Riles, 2007), um dos mais evidentes
produtos da tica moderna que esse domnio tem que ser
constantemente explicitado e burocraticamente evidencia-
do. Todo esse trabalho apresentado como um bem auto-
evidente, sempre carregado do sentido de tornar as coisas
melhores (Jacob e Riles, 2007). A primeira questo suscitada
nessa configurao , sem dvida: melhores para quem; ao
que se acompanha da interrogao sobre como, afinal de
contas, produzir esse melhor e tambm de que forma esse
bem autoevidente chega a ser burocratizado e instituciona-
lizado nas rotinas das prticas disciplinares. Da o clamor por
etnografias dos Comits de tica, dessas burocracias da
virtude, como as autoras os chamam (Jacob e Riles, 2007)7.
Conscientes de tal cenrio e dos mltiplos planos em que
7 No Brasil, ainda temos poucas etnografias dos Comits de tica,
mas destaco a dissertao de mestrado de Harayama (2011), a
qual manifesta um visvel entusiasmo pelas polticas de regula-
mentao, embora tambm sofra de uma espcie de lacuna et-
nogrfica advinda de uma preocupao com o sigilo dos dados,
perigo j apontado em Fonseca (2010b) na realizao de etnogra-
fias de instituies modernas.
51
a tica aparece na pesquisa antropolgica em sua vida so-
cial ativa, como eu prefiro chamar antroplogos que fazem
pesquisa no Brasil tm visto com suspeita o incremento dos
procedimentos de regulamentao tica. Sobretudo, por
conta de uma crtica ao modo como tais regulamentaes
foram introduzidas no Brasil, no to diferente do cenrio in-
ternacional, isto , com forte influncia disciplinar biomdica
(Diniz, 2005). Como fica evidente na leitura dos artigos dos
dois livros analisados aqui, na sua construo como polti-
ca de regulamentao, a tica na Antropologia um campo
aberto de debates, no obstante a consensual rejeio da ge-
neralizao do modelo biomdico, motivada por justificativas
diversas nesse caso nem to consensuais entre os arti-
gos estudados. Tais justificativas diferenciariam as pesquisas
antropolgicas dos estudos biomdicos segundo fatores: as
diferentes formas contextuais e situacionais de produo da
verdade (Kant de Lima, 2004); as particularidades das pes-
quisas in situ e pesquisas ex situ (Ramos, 2004); as dificul-
dades de conciliao entre uma tica universal, fundada na
representao da pessoa livre, igual e autnoma (intrnseca
ideologia individualista ocidental) e outras de construo da
pessoa, possveis de serem encontradas atravs das investi-
gaes antropolgicas (Duarte, 2004); e a diferena proposta
por Luis Roberto Cardoso de Oliveira (2004), que especifica as
pesquisas com seres humanos, nas quais o chamado objeto
de pesquisa um interlocutor ativo, e as pesquisas em seres
52
humanos, que envolvem situaes em que os seres humanos
so objetos de interveno semelhana de cobaias.
Somam-se a isso os relatos de confrontos concretos de
pesquisadores com os Comits de tica em Pesquisa, como
aqueles apresentados por Porto (2010), Vieira (2010), Ferreira
(2010) e Lima (2010), presentes num dos livros aqui anali-
sados: tica e Regulamentao da Pesquisa Antropolgica
(Fleischer e Schuch, 2010), mas que foram constatados por
outros pesquisadores brasileiros, principalmente concentra-
dos no campo da sade (Luna, 2007 e Nascimento, 2010, en-
tre outros). Tais experincias revelam as dificuldades de com-
preenso das tcnicas de pesquisa da Antropologia, como a
observao participante, a precedncia da metodologia qua-
litativa, as complexidades de aplicao de um consentimento
livre e esclarecido em pesquisas em que o trabalho de campo
uma modalidade de interao social que no est dada a
priori sobretudo em populaes de tradio oral (Ferreira,
2010 e Heilborn, 2004). No caso relatado por Porto (2010),
que apresentou seu projeto de pesquisa a um Comit de tica
da Faculdade das Cincias da Sade da UnB e teve seu projeto
recusado, em funo de inmeros fatores, uma das objees
foi, inusitadamente, o ttulo do projeto: Qualidade de vida,
qualidade da sade e qualidade de ateno sade: as bases
da pirmide social no corao do Brasil. Segundo o CEP, as
mulheres negras grupo de seu interesse no estavam na
base da pirmide social e o Distrito Federal local de seu es-
53
tudo no era o corao do pas, mas sim So Paulo, estado
mais rico da federao (!).
Por conta desses fatores e, no obstante o reconheci-
mento de alguns textos presentes nas coletneas analisadas
de que pesquisas antropolgicas no podem menosprezar o
alto poder simblico envolvido nas suas produes (Caroso,
2004) e da sugesto de que seus efeitos no sejam inclumes
para as populaes alvo das pesquisas (Fonseca, 2010a), so
claros os argumentos de que existem profundas diferenas
entre os modos de produo de pesquisa nas reas sociais e
biomdicas. Este fato expe a extrema dificuldade em nor-
matizar procedimentos a partir de uma nica tradio disci-
plinar. Como em meu prprio comentrio, presente no livro
tica e Regulamentao da Pesquisa Antropolgica (Fleischer
e Schuch, 2010), as orientaes biomdicas, ao focarem na
noo de risco e vulnerabilidade dos sujeitos pesquisados,
ainda produzem estruturalmente dois tipos de agncia: a de
um pesquisador ativo e todo poderoso e a de um pesquisa-
do passivo e vulnervel, que necessita ser protegido (Schuch,
2010a).
Noto que essa agncia dos pesquisados sendo configurada
a partir da noo de vulnerabilidade to ou mais parado-
xal num contexto onde a prpria percepo da politizao do
campo de trabalho antropolgico (Velho, 2008) associa-se
politizao dos grupos por ns pesquisados, tornando difcil
a sua estrutural subordinao posio de objeto de pes-
54
quisa. As autoetnografias descritas por Ramos (2007) so
realidades inescapveis de reflexo. O quadro de crescen-
te expanso do ensino superior brasileiro, que vem trazen-
do perfis renovados de estudantes de Antropologia, tambm
apresenta um cenrio de grande complexidade no que se
refere produo de conhecimentos (por exemplo, Freitas e
Harder, 2011). Cabem perguntas aqui sobre a prpria agncia
de regulamentaes ticas que trabalham estruturalmente
com uma noo de vulnerabilidade e os possveis efeitos
dessa estruturao das relaes de pesquisa entre pesquisa-
dor-pesquisado nos estudos antropolgicos.
Nesse contexto, o desconforto frente ao quadro de he-
gemonia disciplinar biomdica vem produzindo uma srie
de outras inquietaes, num domnio em que cada vez mais
chegamos concluso de que, simplesmente dizer no, no
basta. A julgar pela produo antropolgica sobre o assun-
to em que aqui estou me detendo, pode-se dizer que h um
esforo duplo. De um lado, o investimento na participao
de antroplogos e cientistas sociais em Comits de tica em
Pesquisa e a tentativa de adaptao das orientaes legais
existentes s especificidades prprias das Cincias Sociais
(Diniz, 2010; Fleischer, 2010; Heilborn, 2004; Vctora, 2004),
assim como uma luta para ampliao dos termos legais para
abarcar especificidades da pesquisa nas humanidades. De
outro lado, h o esforo para uma recusa reflexiva, como
incitou Duarte (2004), que se prope a combater orientaes
55
meta-disciplinares, simultaneamente a debater seriamente
as principais tenses em torno do assunto.
Do ponto de vista de pesquisadores que se engajam pratica-
mente nas atividades relacionadas aos Comits de tica, visvel
uma espcie de aposta de que tais artefatos ticos-polticos
possam ser usados como oportunidades para ensejar novos re-
lacionamentos em pesquisa, aproximando-se da noo de uma
tica incorporada, no exterior aos procedimentos de pesqui-
sa, defendida na introduo da coletnea americana organizada
por Meskell e Pels (2005). A partir desse ponto de vista, Fleischer
(2010) salienta a importncia da nossa prpria autotraduo e
autorrepresentao para pblicos mais amplos, em consonn-
cia ao j escrito por Scott (2004) sobre pesquisas multidiscipli-
nares. Esse trabalho se torna mais importante se considerarmos
as observaes de Dora Porto (2010) que, refletindo sobre a re-
ferida solicitao de modificao do ttulo de seu projeto de pes-
quisa pelo Comit de tica de sua universidade, tambm sugere
um extremo desconhecimento, por parte dos membros desse
comit, dos termos e modos de pesquisa em Cincias Sociais.
A autora sugere que essa situao pode no ter sido causada
apenas pela postura de tal comit, mas por uma dificuldade dos
antroplogos em comunicar claramente as formas de pesquisa
especficas dessa rea disciplinar.
Pode-se dizer que a criao de Comits de tica em Pes-
quisa dedicados avaliao de estudos da rea de pesquisa
social, em clara oposio pesquisa biomdica, faz parte
56
desses esforos em direo a uma apropriao de procedi-
mentos de regulamentao ticos condizentes com as par-
ticularidades das pesquisas em Cincias Humanas. Como
exemplo, temos a criao do Comit de tica em Pesquisa do
Instituto de Cincias Sociais da Universidade de Braslia (CEP/
IH), mencionado por Diniz (2010). A autora nos informa que
o CEP/IH foi o primeiro Comit de tica no Brasil especiali-
zado em pesquisas das Cincias Sociais e Humanas, tendo
sido oficializado pelo sistema CEP/Conep em 2008, aps ter
funcionado por dois anos como um comit independente,
semelhana da experincia argentina (Diniz, 2010).
A partir do texto de Diniz (2010) possvel verificar os
imensos esforos para viabilizar procedimentos ticos con-
dizentes com as particularidades das pesquisas na rea. No
obstante, tambm possvel verificar que a noo de risco,
prpria da racionalidade biomdica associada s polticas
de regulamentao tica, ainda marca significativamente o
campo de interveno sobre tica, mesmo em tal comit es-
pecializado em pesquisa social. Isso porque definio de
pesquisa social, como aquela que utiliza tcnicas qualitati-
vas de investigao e/ou adota a perspectiva analtica das Ci-
ncias Sociais e Humanas (Diniz, 2010:184), se adiciona, para
afirmar a particularidade das pesquisas dessa rea, a tese
do risco mnimo em que estas, pela definio adotada no
CEP/IH, envolveriam riscos semelhantes aos existentes nas
relaes sociais cotidianas. Em que pese tal interpelao, a
57
tese do risco mnimo das pesquisas sociais se contrape
s especificidades das pesquisas da rea biomdica e nesse
sentido que tal noo empregada pelo CEP/IH para proble-
matizar o uso do Consentimento Livre e Esclarecido nas pes-
quisas sociais:
a tese do risco mnimo exige, portanto, uma reconfigu-rao do modelo contratual do tCLe para ser sensvel s par-ticularidades da pesquisa social (Gordon, 2003). no apenas porque a participao no estudo no acarreta danos vida, mas tambm porque o encontro de pesquisa parte de outros fundamentos morais, que recusam a lgica contratual,
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