Argus-a ISSN 1853 9904 Artes y Humanidades / Arts & Humanities Vol. IX Ed. Nº 36 Vinicius Gonçalves dos Santos y Edgar Cézar Nolasco dos Santos Junio 2020
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Henshin: A metamorfose pela perspectiva crítica biográfica
Vinícius Gonçalves dos Santos Edgar Cézar Nolasco dos Santos
UFMS Brasil
1. Introdução
O fato é que cada escritor cria seus precursores. Seu trabalho modifica nossa concepção do passado, assim como há de modificar o futuro. Nessa correlação, nada importa a identidade ou a pluralidade dos homens. (Borges, 2000, p. 130)
A metamorfose narra a história do caixeiro viajante que certa manhã acorda
metamorfoseado em um inseto monstruoso. A história “repulsiva” (Kafka, 1997, p. 89) de
Gregor Samsa, como afirma Modesto Carone, gera inúmeros trabalhos e pesquisas, todos
buscando “extrair da obra o maior volume possível de significado” (Carone, 2009, p. 9).
Carone separa as interpretações em dois grupos, o primeiro utilizaria a alegoria pelo fator
biográfico e um outro grupo que abarcaria diversas alegorias. Há ainda um terceiro campo
que seria A metamorfose como “símbolo veiculado pela tradição” (Carone, 2009, p. 9).
Em 2013, 101 anos após a primeira publicação da novela kafkiana, a editora L&PM
lançou no Brasil sua versão em quadrinhos de A metamorfose. A partir daqui nos referimos à
versão em mangá de A metamorfose por Henshin, nome original da obra em japonês, para que
se diferencie adaptação de original. Henshin adapta a novela kafkiana para o gênero mangá.
A obra faz parte da coleção Manga de Dokuha que em uma tradução livre significaria
“Aprendendo em mangá” (Boide, 2013. p. 5). Este selo adapta e reimagina obras clássicas da
literatura universal para o gênero mangá, o objetivo é apresentar as grandes obras aos mais
jovens utilizando de um gênero muito consumido pelos mesmos.
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Jorge Luis Borges rompeu com a tradição ao criar os precursores de Kafka. O
escritor crítico argentino quebrou com lógica temporal ao colocar Kafka como precursor
de escritos aristotélicos, assim, nossa leitura de Henshin, no corpo deste trabalho, é
hibridizada pela proposição borgiana, elencando Henshin como um possível precursor de
Kafka, assim como pelas proposições da critica biográfica de Eneida Maria de Souza e da
literatura comparada de Tania Carvalhal.
Retomando o que Carone fala sobre as interpretações alegóricas de A metamorfose,
buscamos identificar o campo em que Henshin se encaixaria. O mangá ao se propor uma
releitura, apresenta em si uma, ou mais, leituras presentes na obra. Para tal, utilizamos da
literatura comparada para buscarmos notar pela diferença, a leitura dos realizadores da
adaptação. Henshin faz uma leitura biográfica de A metamorfose, dada esta abertura, nós
enquanto pesquisadores, utilizamos do caráter compósito da crítica biográfica para
aproximar as leituras biográficas do mangá com a vida e a obra do autor, também
utilizando das noções de diferença, proposta por Tania Carvalhal dentro da literatura
comparada.
Henshin se encaixa no primeiro grupo descrito por Carone, alegorias biográficas,
entretanto, o mangá passeia pelo segundo grupo, que abarcaria diversas alegorias, ao
apresentar outras obras do autor. Tânia Carvalhal (2006) ao falar sobre a literatura
comparada, critica a mesma como arte metódica que busca estabelecer uma relação de
filiação entre as obras comparadas, uma vez que
tal definição privilegia o estudo de semelhanças (analogias e parentescos, na perspectiva até aqui rastreada), sem se ocupar com as eventuais diferenças. Isso não só limita a natureza da investigação como também cerceia o seu alcance. Ao aproximar elementos parecidos ou idênticos e só lidando com eles, o comparativista perde de vista a determinação da peculiaridade de cada autor ou texto e os procedimentos criativos que caracterizam a interação entre eles. Enfim, deixa de lado o que interessa. (Carvalhal, 2006, p. 32)
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Assim, a autora ressalta a importância e o maior valor em se trabalhar a diferença
do que as semelhanças dentro das obras. Desta maneira, nos propomos a ler as diferenças
entre o mangá e o original. Usamos da intertextualidade para analisa-las através de suas
diferenças, assim, embarcamos em uma leitura outra de um texto clássico.
Partindo dos pressupostos de Borges sobre os precursores de Kafka (2000),
entendemos que Henshin influenciaria a leitura de A metamorfose, pois, após a leitura do
mangá, tendo em vista as inserções da bios de Franz Kafka dentro da narrativa familiar, não
há (re)leitura da obra original que não passe pelo elemento biográfico. Vemos em Henshin
um exemplo teórico-ficcional da crítica biográfica, ainda que o mangá não cite a teoria. A
crítica biográfica, por meio de pontes/laços metafóricos, estabelece relação entre a vida e a
obra do autor. Assim, Henshin apresenta sua leitura sobre A metamorfose inserindo,
conscientemente, fatos biográficos.
Eneida Maria de Souza conceitua que
A crítica biográfica, por sua natureza compósita, englobando a relação complexa entre obra e autores, possibilita a interpretação da literatura além de seus limites intrínsecos e exclusivos, por meio da construção de pontes metafóricas entre o fato e a ficção [...] A crítica biográfica, ao escolher tanto a produção ficcional quanto a documental do autor-correspondência, depoimentos, ensaios, crítica - desloca o lugar exclusivo da literatura como corpus de análise e expande o feixe de relações culturais (Souza, 2002, p. 111)
Desta forma, notamos em Henshin a influência tanto de produções ficcionais, a obra
original que inspira a adaptação e outros textos do autor, quanto as documentais, a carta
que o autor dedica ao pai. A autoria de Henshin, assim como a de todas as obras do selo
Mangá de Dokuha, é realizada de maneira colaborativa. Há um editor responsável, Kasuke
Maruo, mas a autoria é reservada ao autor da obra original. O selo preza que a história
adaptada tenha seus “[...] próprios termos, e não como simples espelho do original” (Boide,
2013, p. 6). Henshin brinca com a autoria ao estabelecer Franz Kafka como autor do mangá,
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realizando uma empreitada borgiana, no que concerne à autoria. Tânia Carvalhal, relata
sobre o caso de Pierre Menard, autor de Quixote
E nessa confrontação, aparentemente absurda, tudo começa a ganhar sentido: os textos são na aparência iguais, mas a face invisível deles, a que se revela pelo deslocamento temporal efetuado (o texto de Cervantes reaparece idêntico três séculos depois), modifica integralmente o significado. A re-produção de Menard logra outros sentidos interpretativos, graças ao novo contexto em que ela é relançada. O deslocamento no tempo e no espaço resulta, portanto, benéfico. Ao copiar o Dom Quixote, Menard o reconstrói. Sob a pena de um autor deste século, as idéias de Cervantes surgem com nova roupagem; ganham interpretações renovadoras, que somente um leitor do século XX lhes poderia dar. Cobre as palavras, agora, uma capa de ambiguidades, de duplos sentidos, que as enriquecem. (Carvalhal, 2006, p. 68)
Henshin (re)significa A metamorfose realizando leituras que se fazem possíveis dados
os fatores temporais da publicação. De maneira a realizar uma estranha autoria ao colocar
Franz Kafka como autor de Henshin. A autoria volta ao autor de origem após passar pela
mão de vários autores/leitores, mas como um Menard as avessas, a história “original”
muda, mas ainda há uma áurea kafkiana forte o suficiente para que a autoria atribuída se
sustente. Em Pierre Menard, autor de Quixote e Dom Quixote temos trechos iguais que se
diferem na face invisível da literatura, em Henshin e A metamorfose temos trechos diferentes que
se aproximam na face invisível da literatura.
A leitura abordada no mangá para A metamorfose é pertencente ao primeiro grupo de
significações que Carone classifica: o biográfico. Assim, “em A metamorfose, por exemplo,
passagens da biografia do autor, Franz Kafka, são incorporadas à história do personagem
Gregor Samsa” (Boide, 2013, p. 6). A leitura biográfica de A metamorfose não é algo recente,
ela é recorrente, como todas as obras do autor. Entretanto, a mesma é inesgotável, uma vez
que é abordada sempre de diferentes perspectivas, nossa abordagem acontece pelo viés
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literário, dando as devidas autonomias literárias, portanto, as relações realizadas no corpo
deste trabalho cunham-se no campo metafórico, trabalhando vida e obra como espectros
literários.
Kafka abre seu arquivo pessoal ao deixar explícito que não escrevia sobre sua
família, mas que aquilo seria um engodo, um nó na garganta, deste modo, a literatura lhe
dava a voz do habeas corpus. Em uma conversa com Gustav Janouch, amigo pessoal e leitor
de Kafka, o mesmo demonstra um “desejo doentio de descobertas” (Janouch, 1983, p. 37)
para desvendar os fatos biográficos presentes em A metamorfose.
Janouch indaga à Kafka
- O herói dessa novela chama-se Samsa – disse. – Dir-se-ia um criptônimo de Kafka. São dois nomes de cinco letras, o S de Samsa está colocado como o K de Kafka, o A... Kafka interrompeu-me: - Não é um criptônimo. Samsa não é pira e simplesmente Kafka. A metamorfose não é uma confissão, embora seja, num certo sentido, uma indiscrição. - Não sei. - Pensa que seja discreto e distinto falar dos percevejos de sua própria família? (Janouch, 1983, p. 37)
Conforme vemos no diálogo acima, Janouch aborda Kafka pela perspectiva
biográfica, abordando-o diretamente sobre a leitura. Kafka busca distanciar a leitura de A
metamorfose pura e simplesmente pela perspectiva biográfica, de um modo que a vida
justificaria a obra, embora ressalte que ali há um nó na garganta. Kafka classifica a relação
de sua vida e obra como uma indiscrição, assim, o mesmo questiona Janouch sobre se seria
discreto e distinto falar sobre os percevejos de sua família, neste ponto aparece a figura da
metamorfose: o inseto. Podemos ler neste diálogo o ponto em que Kafka deixaria escapar,
propositalmente ou não, a bios presente em A metamorfose, uma vez que o mesmo fala sobre
os percevejos existentes na família, uma vez que o autor tinha problemas com sua família,
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mais especificamente com Hermann Kafka, seu pai. Tratar sobre a bios de Kafka é um
caminhar sobre os ovos, afinal, corremos o risco de afirmar a obra como um simples
criptônimo.
2. Sumário como demarcador da diferença
Utilizamos do sumário como principal demarcador da diferença entre ambas as
narrativas. A novela kafkiana é dividida em três partes. A mesma não possui um sumário
propriamente dito, mas utilizamos do termo sumário para falar sobre a divisão em capítulos
da obra. Em Henshin, temos explicitamente um sumário dividindo a narrativa.
Na obra de origem, como dito anteriormente, temos a divisão da narrativa em três
partes. A primeira se concentra na descoberta da metamorfose, tanto pela personagem
principal quanto por sua família. A segunda parte discorre os acontecimentos pós
descoberta, assim, a família convive com o Gregor Samsa monstro, o capitulo se encerra
com o confronto do pai com o filho, culminando no filho sendo atingido pela maçã. Por
fim, no terceiro capítulo temos a conclusão da história de Gregor Samsa, o capítulo trata da
morte da personagem e as consequências da mesma.
Em Henshin, temos uma organização díspar com a original, a história se organiza em
cinco partes: Prólogo, Lembranças, Estranho pesadelo, Inseto e Epílogo. O mangá utiliza de dois
capítulos para trazer flashbacks para a história de Gregor Samsa, elemento que não há na
narrativa original, a mesma narra somente os acontecimentos pós metamorfose. Desta
forma, o sumário demarca a diferença ao reorganizar o conteúdo da obra, conforme ver
abaixo.
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2.1 Parte I / Epilogo
Figura 1 – Kafka, 2013, p. S/p
Fonte: Autor
Henshin inicia no mesmo momento que A metamorfose. Assim, ambos iniciam com a
icônica frase de A metamorfose “Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos
intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso” (Kafka,
1997, P. 7). No mangá, este momento é posto como prólogo da história. A obra traz a frase
em alemão, “Als Gregor Samsa eines morgens aus unruhigen traumen erwachte, fand er
sich in seinem bett zu einem ungeheueren ungeziefer verwandelt...” (Kafka, 2013, s/p), e
em português, “Certa manhã, ao despertar de sonho intranquilos Gregor Samsa encontrou-
se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso” (Kafka, 2013, s/p). A frase tem
uma tradução diferente do texto de Modesto Carone, mas nada muito distante.
Posta como prólogo da obra, a frase se posiciona no centro da página, ocupando-a
quase por completo. Ela ser colocada em evidência ressalta a importância cultural da
mesma, tanto que Henshin traz as duas versões da frase, seu idioma de origem e sua
tradução.
Em A metamorfose, Gregor Samsa é sempre narrado na terceira pessoa, desta
maneira, temos acesso restrito ao mundo da personagem, o mesmo só acontece através dos
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olhos do narrador. Modesto Carone o define como um narrador “[...] desprovido de
qualquer marca pessoal [...] Em outros termos, esse narrador se comporta como uma
câmera cinematográfica sobre a cabeça do protagonista” (Carone, 2011, p. 214). Isto posto,
vemos um narrador distante da personagem, portanto, não há marcas de afetividade, de
modo a parecer que o narrador narre sem “conhecimento prévio” (Carone, 2011, p. 215)
Em Henshin, assim como o a adaptação cinematográfica alemã de A metamorfose
(1975) de Jan Nemec, adentramos o mundo kafkiano através dos olhos da personagem, em
primeira pessoa, mas diferente do filme, a narrativa se mantem em terceira pessoa até o
final da obra, a personagem só volta à primeira pessoa em um breve momento da narrativa,
quando olha para uma janela e a visão fica turva, ou em outro momento quando ele olha o
quadro pendurado na janela, com exceção a esses momentos a narrativa do mangá
permanece igual à obra original, em terceira pessoa.
Assim, conforme posto acima, a narração de ambos, obra original e mangá,
possuem semelhanças e diferenças. Henshin opta por colocar o leitor na pele de Gregor
Samsa. Mas no restante da adaptação a narração de ambos permanecem semelhantes.
Outro fator relevante de diferença na narração de ambas é o gênero, os textos kafkianos
são de difícil definição de gêneros, mas estabeleço aqui a definição de A metamorfose como
novela, conforme Modesto Carone nomeia. Henshin segue o gênero mangá, porém ela não
segue o gênero à risca, o que temos é um mangá ocidentalizado, uma vez que o mesmo não
segue a ordem de leitura oriental, da direita para a esquerda e do final do livro para o
começo, o que segue fiel ao gênero são os traços e as onomatopeias grafadas na obra.
Por fim, o prólogo de Henshin finaliza no momento em que a personagem abre a
porta de seu quarto. Momento equivalente à metade da primeira parte de A metamorfose. A
partir daí a narrativa de Henshin se distância da origem, embarcando na bios de Franz Kafka,
como vemos a seguir.
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2.2 Bios de Franz Kafka / Lembranças
Figura 2 – Kafka, 2013, p. 16-17
Fonte: Autor
Antes de entrar no capítulo Lembranças, retomo a bios de Kafka trabalhado no
capítulo anterior. Na novela não há menção de local e tempo em que a narrativa acontece.
Mas em Henshin temos local e ano estabelecidos, estes iniciam os aspectos explícitos da bios
do autor dentro do mangá.
Como visto acima, o local em que acontece a narrativa é Praga, cidade em que
Franz Kafka nasceu, viveu e escreveu. Os traços do mangá buscam reproduzir no cenário
kafkiano a arquitetura de Praga, incluindo o Castelo de Praga no ultimo quadrinho. O ano é
1912, o mesmo em que A metamorfose é escrita, sendo publicada três anos após.
Em Lembranças, temos um distanciamento por completo da obra de Franz Kafka.
Este capítulo aborda o antes da metamorfose, estes enxertos são realizados com a bios do
autor, assim, temos neste ponto, seguindo as leituras de Gustav Janouch, Samsa como um
criptônimo de Kafka. O capítulo inicia apresentando a loja do pai da personagem, Sr.
Samsa. A loja do pai de Samsa é um aspecto biográfico, pois o pai do autor, Hermann
Kafka, também possuía uma loja de tecidos, tal qual a personagem. Como podemos ver na
imagem abaixo.
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Figura 3 – Loja Hermann Kafka
Fonte: Google Imagens
Kafka viveu a queda do império austro-húngaro. Isso resvala no quadrinho que
aborda o preconceito que os judeus sofreram em uma pré-segunda guerra mundial. A loja
do pai de Samsa é apedrejada por tchecos. O quadrinho explica que devido a união dos
alemães, classe dominante, aos judeus de classe média, gerou-se um desagrado do povo
tcheco que passou a perseguir os judeus. Em A metamorfose a ascendência da família Samsa
não é abordada, não há menção dos mesmos serem judeus, mas no quadrinho a família é
judia, esse elemento também é retirado da bios do autor, pois a família Kafka também era
judia.
2. 2. 1. Milena Jesenská
Em A metamorfose, há um item no quarto de Gregor Samsa de muita estima para ele:
o quadro com a figura de uma “dama toda vestida de peles” (Kafka, 1997, p. 52). O
quadro, feito por Gregor Samsa, é o item que dá personalidade ao quarto. Podemos ler este
objeto como uma representação do último resquício de humanidade da personagem, o item
era algo que rememorava sua antiga vida. Quando a mãe e a irmã ameaçam tirá-lo do
quarto, Gregor Samsa luta por ele.
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A estima pelo objeto é uma semelhança entre ambas as obras. O ponto em que as
obras se distanciam é sobre o conteúdo do quadro e como a pintura chegou até Gregor.
Em A metamorfose é uma mulher que não é identificada pelo narrador, como dito acima, a
única informação que temos é sobre uma mulher vestindo peles. E o quadro foi feito pelo
próprio Gregor Samsa, o que dá ao quadro um valor afetivo ainda maior, pois é algo
fabricado pela personagem, algo que possui sua personalidade, afinal, ele quem o molda. O
item é de tamanha estima que o narrador diz “Ele estava sentado em cima da sua imagem e
não ia entrega-la. Preferia antes saltar no rosto de Grete” (Kafka, 2011, p. 265). Assim,
Gregor luta com unhas e dentes pelo item, afinal, já haviam lhe privado de “tudo que lhe
era caro; [...]” (Kafka, 2011, p. 264).
No mangá, a mulher que orna o quadro é uma personagem do passado de Gregor
Samsa, a personagem é inspirada em Milena Jesenská. A personagem tem o mesmo nome
da mulher em que foi inspirada. A mesma foi o amor impossível de Gregor Samsa, de
maneira semelhante Milena Jesenská foi o grande amor impossível da vida de Franz Kafka
(Lemaire, 2013, p. 8). Em Henshin, ela é descrita como “Namorada de Gregor. Uma mulher
independente, que administra uma hospedaria em Viena. Era colega de escola de Gregor”
(Kafka, 2013, p. 10).
Figura 4 – Kafka, 2013, p. 79
Fonte: Autor
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2. 3. Intertextualidade e Bios / Estranho pesadelo
Temos em Henshin um capítulo dedicado ao sonho intranquilo de Gregor Samsa,
momento que antecede a metamorfose do mesmo. Este é outro capítulo inédito, este
somente é mencionado na obra de Franz Kafka. Para este sonho intranquilo temos duas
interpretações, a primeira diz respeito a uma leitura intertextual das obras Carta ao pai, O
foguista e O veredicto. A segunda diz respeito à uma leitura pela ordem da bios que é retomado
por meio da carta citada anteriormente. Desta maneira, o capítulo se torna um hibrido de
ambas.
Interpretamos que a adaptação utiliza do sonho intranquilo de Gregor Samsa para
incluir em A metamorfose uma releitura de um trecho da obra póstuma Carta ao pai, vestindo
uma roupagem de O foguista com a conclusão semelhante à de O veredicto. Conforme
podemos ver abaixo:
Figura 5 – Kafka, 2013, p. 109
Fonte: Autor
A obra denuncia sua releitura de O foguista ao colocar como abertura do capítulo a
imagem da estátua da liberdade empunhando uma espada no lugar de uma tocha. Esta
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releitura da Estátua da Liberdade é realizada por Karl Rossmann, personagem principal da
obra, que ao chegar na américa do norte lê a estatua desta maneira. Henshin desloca Gregor
Samsa / Franz Kafka do protagonismo, como a obra se propõe a relacionar vida e obra, o
esperado seria que mantivesse os protagonistas nos papéis de protagonismo. Em O foguista,
a personagem principal não é o foguista, entretanto, Henshin apresenta sua leitura do conto
ao colocar tanto Gregor Samsa quanto Franz Kafka no papel do foguista, deixando de lado
Karl Rossmann. Neste sentido, o que une esses três personagens é o baixo poder
hierarquico cada qual dentro de sua narrativa, o foguista perante o patrão, Gregor Samsa
perante o Sr. Samsa e Franz Kafka perante Hermann Kafka, e até mesmo do filho perante o
pai, em O veredicto.
Conforme Modesto Carone, “Kafka começou a redigir as 56 páginas de O Foguista à
mão em setembro de 1912, ano-chave da sua produção madura, no qual também foram
concebidos e terminados O Veredicto e A Metamorfose” (1994, s/p), assim, as três narrativas
acontecem no mesmo período em que a narrativa do mangá, o que se torna um elo em
comum das mesmas, o tradutor continua “É sabido que o escritor pretendia reunir as três
narrativas num “livro de novelas” intitulado Filhos, mas desistiu do plano e elas acabaram
sendo editadas em separado [...]” (1994, s/p). De certo modo, Henshin realiza o projeto que
Franz Kafka havia pensado perante as três narrativas, A metamorfose, O foguista e O veredicto.
Entretanto, Henshin toma a liberdade e insere uma quarta narrativa para o livro Filhos: a
Carta ao pai, elemento documental/ficcional da bios de Franz Kafka.
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Figura 6 – Kafka, 2013, p. 110 Figura 7 – Kafka, 2013, p. 111
Fonte: Autor Fonte: Autor Em Carta ao pai, Franz Kafka escreve sobre sua relação com seu pai, com a
finalidade de melhorar o relacionamento entre ambos, porém a carta nunca é entregue, sua
mãe, conforme Max Brod afirma:
Apesar de ser um volume de mais de cem páginas, a carta estava destinada, na verdade (segundo me disse o próprio Franz Kafka), a ser entregue ao pai por intermédio da mãe. Durante algum tempo Franz foi da opinião de que essa carta poderia melhorar as relações dolorosamente frias que tinha com o pai, embora, na realidade, se viesse a passar ao contrário. A mãe, afinal, acabou por não entregar a carta, devolvendo-a a Franz com palavras, como é natural, apaziguadoras. Nunca mais se voltaria a abordar este assunto. (Brod, 1954, p. 13)
A figura materna, Júlia Kafka, intermedia a relação entre ambos, funcionando como
a figura apaziguadora, a mesma opta por não entregar a carta ao pai. Relação semelhante ao
que se encontra em A metamorfose, com a mãe protegendo o filho, na medida do possível. A
carta faz parte das publicações póstumas do autor. Na carta, Kafka descreve uma das
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situações em que os métodos pedagógicos de Hermann Kafka são aplicados ao mesmo.
Em uma das situações de conflito entre os dois, o remetente escreve:
Uma noite eu choramingava sem parar pedindo água, com certeza não de sede, mas provavelmente em parte para aborrecer, em parte para me distrair. Depois que algumas ameaças severas não tinham adiantado, você me tirou da cama, me levou para a pawlatsche e me deixou ali sozinho, por um momento, de camisola de dormir, diante da porta fechada. Não quero dizer que isso n~~ao estava certo, talvez então não fosse realmente possível conseguir o sossego noturno de outra maneira; mas quero caracterizar com isso seus recursos educativos e os efeitos que eles tiveram sobre mim. Sem dúvida, a partir daquele momento eu me tornei obediente, mas fiquei internamente lesado. (Kafka, 1997, p. 12-13)
Partindo da leitura da carta, o navio torna-se, em nossa articulação, uma metáfora
para a casa da família Kafka, conforme vemos no quadrinho acima (Figuras 6 e 7), o
foguista pede ao chefe um copo de agua, retomando a carta, enquanto o chefe, retomando
a figura de Hermann Kafka, recusa o pedido do mesmo ao afirmar que logo chegariam em
terra, em ambas as narrativas as autoridades negam o pedido. O empregado reclama seus
direitos desafiando a autoridade do chefe e, assim como na Carta ao pai, a personagem
sofrerá um corretivo aplicado pela figura de autoridade, que o julgará e dará seu veredicto,
como podemos ver nas imagens abaixo (Figuras 8 e 9).
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Figura 8 – Kafka, 2013, p. 112 Figura 9 – Kafka, 2013, p. 113 Fonte: Autor Fonte: Autor
Adentramos, então, em O veredicto, o mesmo apresenta um conflito entre pai e filho
culminando em um ato que dá o nome ao conto, conforme vemos acima, o pai, travestido
na figura do chefe, aplica uma correção ao funcionário, travestido na figura do
filho/Gregor Samsa, que é atira-lo para fora do barco, como dito acima, o barco
representaria a casa e assim como Hermann Kafka coloca o filho para fora de casa, a
personagem é atirada para fora do barco. Além deste ato de veredito, a conclusão deste
capítulo, em Henshin, conforme a imagem abaixo (Figura 10), se encerra assim como O
veredicto.
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Figura 10 – Kafka, 2013, p. 114
Fonte: Autor
O veredicto encerra com a personagem filho atirando-se de uma ponte, após a
sentença do pai “[...] Por isso agora: eu o condeno à morte por afogamento” (Kafka, 2011,
p. 42), e declarando o amor que sente por sua família “– Queridos pais, eu sempre os amei
– e se deixou cair.” (Kafka, 2011, p. 42). No final de Estranho pesadelo, temos a personagem
atirada ao mar. No mar temos a declaração “Pai... Mãe... Grete... Eu juro... Que nunca me
esqueci do amor que sinto por vocês...” (Kafka, 2013, p. 114) dizeres semelhantes ao que
encontramos na obra anteriormente citada.
Walter Benjamin (1994) escreve que “[...] o mundo dos funcionários e o mundo dos
pais são idênticos para Kafka. Essa semelhança não os honra. Ela é feita de estupidez,
degradação e imundice” (pag. 139). Desta maneira, as três obras se conectam na relação
paterna estabelecidas em todas. Este capítulo encerra as inserções, explicitas e propositais,
biográficas em A metamorfose. Este capítulo aborda a intertextualidade documental e
ficcional do autor, criando um hibrido de ambas. Com o fim do sonho intranquilo, a
narrativa continua de onde havia parado no primeiro capítulo, retomando o caminho do
calvário de Gregor Samsa.
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2. 4. Parte I, II, III / Inseto
A narrativa do mangá retoma neste capítulo final a primeira parte da novela
kafkiana, juntamente com a segunda e a terceira parte, até o momento da morte de Gregor.
Após abordar dois flashbacks, a história retorna com semelhanças maiores à obra original.
Em A metamorfose, Gregor Samsa já desperta metamorfoseado por completo no
inseto monstruoso, ao menos seu corpo, a transformação acontece em uma história não
contada. Assim, o leitor não tem acesso ao Gregor Samsa anterior a metamorfose. Em
Henshin, a metamorfose acontece de forma gradativa até que não reste nada de humano, a
desumanização de Gregor acontece por etapas até que ele morra.
Dentro do mangá, primeiramente só temos acesso ao corpo humano de Gregor
Samsa, é mostrado um vislumbre de seu corpo, no momento do despertar, mas são apenas
vislumbres que podem ser lidos como ilusões ou mesmo um sonho, afinal, não temos a
cortante frase do narrador, do texto original “Não era um sonho.” (Kafka, 1997, p. 7).
Como podemos ver nas imagens abaixo (Figuras 11, 12 e 13), a transformação
acontece gradativamente. Primeiro, somente a parte inferior de seu corpo torna-se
animalesca, o momento em que esse quadrinho acontece é na revelação do mesmo perante
a família, momento equivalente à parte I de A metamorfose. Após, o próximo estágio de
transformação, transforma Gregor quase por completo, restando apenas ¼ de seu rosto,
momento equivalente à parte II da história. Por fim, a terceira imagem (Figura 13) a
metamorfose acontece por completo, momento equivalente à parte III da obra. Como já
dito anteriormente, Henshin apresenta sua leitura da obra em meio a sua narrativa, deste
modo, em A metamorfose, o impacto acontece no primeiro parágrafo, a partir dali a
desumanização escalona até a morte, Henshin lê a desumanização de maneira gradativa ao
retratar este processo no corpo de Gregor Samsa.
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Fig. 11 – Kafka, 2013, p. 118
Fonte: Autor
Fig. 12 – Kafka, 2013, p. 163
Fonte: Autor
Fig. 13 – Kafka, 2013, p. 177
Fonte: Autor Ainda que desumanizado por sua família, em A metamorfose, Gregor não morre com
nenhum sentimento ruim com relação a sua família, o narrador diz “Recordava-se da
família com emoção e amor.” (Kafka, 1997, p. 78). Porém, Henshin faz uma troca da
afetividade de Gregor no momento da morte, trocando a família, citada no original, por
Milena Jesenská, interesse amoroso de Gregor no mangá. Esta troca é significativa, temos
no mangá um não perdão de Gregor para com sua família, deste modo, Henshin denuncia o
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seu não perdão com a família de Gregor Samsa, fazendo que suas últimas atenções sejam
dadas à mulher que amou e não em sua família, que o mesmo amava em seu texto de
origem.
Em A metamorfose, a morte da protagonista é emblemática, solitária e em meio
aos pós. Ele morre desumanizado, morre feito inseto. No mangá, antes e depois da morte,
acontece um retorno metafórico a forma humana de Gregor Samsa, o que revela também a
leitura dos mesmos, interpretamos que Henshin lê a metamorfose como uma mudança
somente externa, uma vez que metaforicamente apresentam a figura humana de Gregor
Samsa em momentos pontuais, como podemos ver nas imagens abaixo.
Como dito acima, o mangá devolve à Gregor a humanidade em um último
momento, o monstro torna-se homem mais uma vez para que morra como monstro
novamente. A divergência de ambas é poética, a adaptação leva Gregor à morte através da
severa degradação de seu corpo, advinda da maçã encravada em suas costas. Em A
metamorfose, a personagem principal quebra uma das pernas após se assustar com uma rude
batida de porta causada por sua irmã.
Desta maneira, a hostilidade do pai e da irmã, fazem com que a participação da
família na morte de Gregor Samsa seja mais direta em A metamorfose do que em Henshin. A
violência da porta se fechando atrás de Gregor juntamente com a maçã e o abandono da
família causam, de maneira física, a morte de do mesmo. Na adaptação, a morte tem um
peso maior sobre a figura paterna do que com a família, uma vez que a batida da porta
realizada pela irmã é omitida da narrativa. Algo em comum em ambas as narrativas é a
maçã permanecer apodrecendo nas costas de Gregor Samsa, fazendo com que o filho se
degrade assim como a maçã.
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Figura 14 – Kafka, 2013, p. 187 Figura 15 - Kafka, 2013, p. 175
Fonte: Autor Fonte: Autor
Em A metamorfose, há uma personagem que o mangá omite: a faxineira. A mesma é
descrita como “[...] imensa, ossuda, de cabelo branco esvoaçando em volta da cabeça [...]”
(Kafka, 1997, p. 62). Neste ponto da obra kafkiana, lemos a bios se manifestando na novela,
Franz Kafka teve questões com relação ao mundo dos empregados em sua infância.
Durante a infância, o mesmo conviveu com empregadas, pois sua mãe trabalhava na loja de
seu pai, ele relata para Milena Jesenská “Vivi então por muito tempo sozinho e lutei com
amas, velhas babás, cozinheiras mal-humoradas e tristes governantas, pois meus pais
ficavam constantemente na loja” (Kafka apud Lemaire, 2006, p. 22). Em uma outra
afirmação o mesmo diz “A escola para mim, em si, já era objeto de terror e a cozinheira
ainda queria torná-la um objeto de pavor” (Kafka apud Lemaire, 2006, p. 24). Lemos o
ressoar destas conflituosas relações em A metamorfose, a faxineira destrata Gregor Samsa,
ainda que com possíveis boas intenções, chamando-o de “velho bicho sujo” (Kafka, 1997,
p. 65) e cutucando o mesmo com uma vassoura. Então, ao omitir a faxineira da narrativa,
Henshin explicita o foco em manter a narrativa familiar.
A personagem, acima citada, encontra o corpo morto de Gregor Samsa, corpo que
ela cutucava frequentemente com a vassoura. Ela trata com desdém a morte da
protagonista e avisa com alegria o fato fúnebre para a família.
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Quando a faxineira chegou de manhã cedo [...] ela não desconfiava, a princípio, nada de especial na sua curta e costumeira visita a Gregor. Pensou que ele estava deitado ali premeditadamente imóvel e que fazia o papel de ofendido, pois lhe creditava todo o entendimento possível. Por estar casualmente segurando na mão a comprida vassoura, tentou, da porta, fazer cócegas com ela em Gregor. Quando isso também não deu resultado, ficou irritada e espetou Gregor um pouco e só depois que o havia empurrado do lugar sem achar resistência é que prestou mais atenção. [...] Venham só ver uma coisa, ele empacotou; está lá empacotado de uma vez! (Kafka, 1997, p. 78-79)
Em Henshin, devido ao fato de ter omitido a faxineira, a família é quem encontra o
corpo de Gregor Samsa. Conforme vemos na imagem abaixo (Figura 16) o corpo da
personagem repousa sobre o pano que cobria seu corpo, muito menor que o tamanho que
ele tinha, o aspecto monstruoso é substituído por um corpo mais sensível e vulnerável, e
ressalta o tamanho da família perante Gregor Samsa. A ausência da empregada torna o
momento mais familiar.
Figura 16 - Kafka, 2013, p. 192
Fonte: Autor
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2. 5. Parte III / Epílogo
Após a morte de Gregor Samsa, Henshin desenvolve um epílogo, na obra original
não é posto dessa forma, após a morte da protagonista a família sai para passear de bonde.
Em Henshin, há uma outra intertextualidade que acontece na narrativa, mas antes voltemos
ao capítulo Inseto, neste acontece um flashback no momento anterior a morte da
personagem, no flashback Gregor se lembra de um diálogo que teve com Milena Jesenská,
no diálogo ela conta sobre um conto taoísta de nome Sonho da borboleta
...hein Gregor... Já ouviu falar do “sonho da borboleta”? É uma anedota por Chuang Tzu um grande filósofo chinês... um belo dia, ele sonha que virou uma borboleta. Mas não percebe que era um sonho... e sai voando como borboleta... Aí, ...de repente ele desperta e se vê sendo o que ele sempre foi... ou imaginava que era. Entende o que isso quer dizer? Que na verdade... ele nunca saberia dizer se era verdadeiramente um homem que um dia sonhou ser uma borboleta... ou se era uma borboleta a sonhar que era um homem... [...] E que isso ninguém jamais saberá... (Kafka, 2013, p. 188-190)
Milena Jesenská volta a aparecer no epílogo caminhando em um campo florido
com borboletas, ela continua o monologo iniciado no capítulo anterior, ela continua
...Mas sabe, Gregor? Fiquei pensando... mesmo se este momento que estou vivendo agora... fizesse parte apenas do sonho de alguém... nada mudaria o fato de eu ser eu mesma... não importa se as alegrias e as tristezas que vivi... e todo este mundo que experimentei forem todos fragmentos do sonho de outra pessoa... pois para mim... ...tudo continua sendo precioso como sempre... (Kafka, 2013, p. 195-197)
Henshin compara, ainda que indiretamente, as duas narrativas, tanto Gregor Samsa
quanto o Chuang Tzu acordam metamorfoseados em um inseto, a diferença entre ambos é
que Gregor Samsa sempre pensou ser um humano, enquanto Chuang Tzu nunca soube o
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que era. O original apenas termina com o passeio da família, comemorando e imaginando
como será promissor o futuro sem o filho e irmão.
O mangá encerra com uma fala de Franz Kafka, o mangá não referencia de onde
foi retirada a mesma, assim, não conseguimos autenticar a veracidade, nela o autor diz “Há
quem afirme que “A metamorfose” seja uma obra que esconde um milagre dentro da
narração de um fato corriqueiro... mas isso é um equívoco. O cotidiano, os fatos comuns e
corriqueiros – Esse é o grande milagre. E eu apenas o registrei em palavras. Franz Kafka”
(Kafka, 2013, p. 198), podemos ler que para o autor, o mais milagroso em A metamorfose
seria justamente os fatos corriqueiros, assim, retomo a leitura de Gunter Anders sobre a
obra kafkiana “O espantoso, em Kafka, é que o espantoso não espanta ninguém” (Anders,
1969, p. 19). Este não espantar estaria ligado a “[...] trivialidade do grotesco [...]” (Anders,
1969, p. 19).
3. Considerações finais
Neste exercício comparativo tratamos das relações que o mangá faz com o
documental e o ficcional de Franz Kafka. Pela perspectiva da crítica biográfica lemos as
pontes metafóricas que o mangá estabelece em seu corpo. Começamos pela leitura
comparativa do sumário como o demarcador da diferença entre Henshin e A metamorfose,
uma vez que a separação da história possuí função estética e significativa.
As leituras de ordem biográfica sempre estiveram muito conectadas à A metamorfose,
Modesto Carone fala sobre o “acidente de ordem biográfica.” (Carone, 2011, p. S/p)
presente na mesma, este acidente seria um dos fatores de poder extraordinário dentro da
narrativa.
Os aspectos biográficos, introduzidos no mangá, foram propositalmente inseridos.
Conforme Alexandre Boide, a proposta da coleção Manga de Dokuha não era de fazer da
adaptação um espelho. Ele afirma que “Como toda adaptação que se preze, os mangás da
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coleção são obras com identidade própria – ainda que derivadas -, e portanto devem ser
lidas e compreendidas de acordo com seus próprios termos, e não como simples espelhos
do original” (Boide, 2013. p. 6).
A coleção Manga de Dokuha tinha um grande desafio ao adaptar esta obra para os
quadrinhos. Em 2010, Peter Kuper publicou sua versão de A metamorfose em quadrinhos,
esta conforme Edgar Nolasco “traduz para seu gênero o realismo cruel que se encontra na
narrativa literária de Kafka” (Nolasco, 2014, p. 124), a partir desta afirmação notamos que
A metamorfose de Kuper traduziu o texto kafkiano para a linguagem dos quadrinhos, neste
sentido, altera o mínimo possível a obra original, apenas adapta para uma outra linguagem.
Henshin faz o caminho contrário de Kuper ao adaptar e apresentar uma leitura de
ordem biográfica da obra kafkiana. Assim, lemos o mangá como um exercício teórico-
ficcional da crítica biográfica ao lermos estas inserções como elementos biográficos
metafóricos, de maneira que o mangá (re)lê A metamorfose sem tornar-se um criptônimo da
mesma.
© Vinícius Gonçalves dos Santos y Edgar Cézar Nolasco dos Santos
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Referências
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Sérgio Paulo Rouanet. – 7. Ed. – São Paulo: Brasiliense, 1994. Boide, Alexander. Clássicos adaptados em mangá. In: KAFKA, Franz. A metamorfose.
Tradução do japonês de Drik Sada; [adaptação e ilustrações Equipe East Press] – 1. Ed. – Porto Alegre, RS: L&PM, 2013.
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1954. Carone, Modesto. “A metamorfose” In: Kafka, F. Essencial Franz Kafka. Seleção, introdução
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1983 Kafka, Franz. A metamorfose. Tradução do japonês de Drik Sada; [adaptação e ilustrações
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Letras, 1997. ---. Carta ao pai. Trad. Modesto Carone. Companhia das Letras, 1997. ---. Contemplação e O foguista. Trad. Modesto Carone. 2. Ed. – São Paulo, SP: Brasiliense,
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Kuper, Peter. A metamorfose: Franz Kafka. Adaptação de Peter Kuper. Tradução de Cris Siqueira. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2004.
Lemaire. George. Kafka. Trad. Júlia da Rosa Simões. L&PM Editores, 2013. Nolasco, Edgar & Júnior., Arnaldo. Das pinturas rupestres de Lascaux: uma viagem pelo universo
dos quadrinhos / Arnaldo Pinheiro Mont’Alvão Júnior, Edgar Cézar Nolasco (orgs.). João Pessoa: Marca de Fantasia, 2014.
Souza. Eneida Maria. Crítica Cult. Belo Horizonte: Ed. UMFG, 2002. ---. Janelas indiscretas: Ensaios de crítica biográfica. Belo Horizonte: Ed. UMFG, 2011.