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9 N P er er er er ercursos poéticos da voz cursos poéticos da voz cursos poéticos da voz cursos poéticos da voz cursos poéticos da voz J osé Batista Dal Farra Martins (Zebba Dal Farra) José Batista Dal Farra Martins (Zebba Dal Farra) é músico, encenador e professor do Departamento de Artes Cênicas da ECA-USP. 1 Utilizo a distinção proposta por Matteo Bonfitto, de “caráter puramente pragmático”, considerando-se “sentido” “o efeito de um processo de conexão entre as dimensões interior e exterior do ator, desenca- deado a partir de suas ações” (Bonfitto, 2005, p. 26). O significado exato de poética é o estudo de uma obra a ser feita. O verbo “poein”, do qual a pa- lavra deriva, significa exatamente fazer ou fa- bricar. (...) A poética da música – é justamente sobre isso que vou falar a vocês; isto é, falarei sobre o fazer no campo da música (Igor Stravinsky: Poética Musical em 6 Lições). I. A voz e suas poéticas I. A voz e suas poéticas I. A voz e suas poéticas I. A voz e suas poéticas I. A voz e suas poéticas a gama das especificidades da pesquisa te- atral, a voz do ator ocupa um lugar espe- cial e de grande interesse, por sua potên- cia criativa, em conexão com outros elementos, associados ao desempenho do ator e à encenação. A despeito de sua invisibili- dade, a voz se concretiza como som, palavra, ruído e silêncio, nos movimentos de pulso e tom, nos contrastes das intensidades, na sinuo- sidade dos cromatismos, na dança prosódica das inflexões, na diversidade de timbres engendra- dos pelas ressonâncias: em sua música. O senti- do 1 da voz do ator estampa-se nesta música, por meio de vetores internos que a impulsionam e nela imprimem, de forma fugaz, imagens e con- ceitos, paixões e pensamentos, desejos e refle- xões. É na realidade física da onda sonora que a voz se coloreia, se amplifica e percorre o ar no sentido de seu destino: o outro. A voz emana do corpo e toca, se embrenha, provoca, age so- bre o corpo do outro e o transforma. A voz é experiência que se realiza entre os corpos. A este respeito, no percurso de conceituação da per- formance, o medievalista Paul Zumthor evoca uma lembrança parisiense: “a canção que can- tava o ambulante de minha adolescência impli- cava, por seus ritmos (os da melodia, da lingua- gem e dos gestos), as pulsações do corpo desse cantor, mas também do meu e de todos nós em volta. Implicava o batimento dessas vias concre- tas, em um momento dado; e durante alguns minutos esse batimento era comum, porque a canção o dirigia, submetia-o à sua ordem, a seu próprio ritmo. A canção tirava dessa tensão, portanto, uma formidável energia que, sem dú- vida nem o pobre diabo do cantor nem eu, se- guramente, aos doze anos, tínhamos consciên-

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JJJJJ osé Batista Dal Farra Martins(Zebba Dal Farra)

José Batista Dal Farra Martins (Zebba Dal Farra) é músico, encenador e professor do Departamento deArtes Cênicas da ECA-USP.

1 Utilizo a distinção proposta por Matteo Bonfitto, de “caráter puramente pragmático”, considerando-se“sentido” “o efeito de um processo de conexão entre as dimensões interior e exterior do ator, desenca-deado a partir de suas ações” (Bonfitto, 2005, p. 26).

O significado exato de poética é o estudo de umaobra a ser feita. O verbo “poein”, do qual a pa-lavra deriva, significa exatamente fazer ou fa-bricar. (...) A poética da música – é justamentesobre isso que vou falar a vocês; isto é, falareisobre o fazer no campo da música (IgorStravinsky: Poética Musical em 6 Lições).

I . A voz e suas poéticasI. A voz e suas poéticasI. A voz e suas poéticasI. A voz e suas poéticasI. A voz e suas poéticas

a gama das especificidades da pesquisa te-atral, a voz do ator ocupa um lugar espe-cial e de grande interesse, por sua potên-cia criativa, em conexão com outroselementos, associados ao desempenho do

ator e à encenação. A despeito de sua invisibili-dade, a voz se concretiza como som, palavra,ruído e silêncio, nos movimentos de pulso etom, nos contrastes das intensidades, na sinuo-sidade dos cromatismos, na dança prosódica dasinflexões, na diversidade de timbres engendra-dos pelas ressonâncias: em sua música. O senti-do1 da voz do ator estampa-se nesta música, por

meio de vetores internos que a impulsionam enela imprimem, de forma fugaz, imagens e con-ceitos, paixões e pensamentos, desejos e refle-xões. É na realidade física da onda sonora que avoz se coloreia, se amplifica e percorre o ar nosentido de seu destino: o outro. A voz emanado corpo e toca, se embrenha, provoca, age so-bre o corpo do outro e o transforma. A voz éexperiência que se realiza entre os corpos. A esterespeito, no percurso de conceituação da per-formance, o medievalista Paul Zumthor evocauma lembrança parisiense: “a canção que can-tava o ambulante de minha adolescência impli-cava, por seus ritmos (os da melodia, da lingua-gem e dos gestos), as pulsações do corpo dessecantor, mas também do meu e de todos nós emvolta. Implicava o batimento dessas vias concre-tas, em um momento dado; e durante algunsminutos esse batimento era comum, porque acanção o dirigia, submetia-o à sua ordem, a seupróprio ritmo. A canção tirava dessa tensão,portanto, uma formidável energia que, sem dú-vida nem o pobre diabo do cantor nem eu, se-guramente, aos doze anos, tínhamos consciên-

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cia: a energia propriamente poética” (Zumthor,2000, p. 46). Eis alguns ingredientes para aconstrução de fazeres no campo da voz para oator, processos denominados Poéticas da Voz.O enfoque poético da voz supera o caráter uti-litário da voz cotidiana, pela valorização de suamúsica como produtora de sentido. Desta pro-posta decorre que a voz, seja som, palavra, ruí-do ou silêncio, canto ou fala, se apresenta comodicção musical, pois que se compõe de pulsos etons: de ritmo. A trama do tecido dos signifi-cantes, enredada pelo ritmo da voz poética doator, captura o ouvinte e amplia as possibilida-des de diálogos com o sentido e o significadoda mensagem.

A estrutura pedagógica da voz poética nãoé linear, mas se constitui em um sistema tridi-mensional, em que todos os elementos intera-gem, são interdependentes. Embora seja possí-vel focalizar cada um dos seus potenciais parapercebê-lo, estudá-lo e aperfeiçoá-lo, por meiode teorias e técnicas específicas, há um princí-pio de interferência que se induz do campointerdisciplinar da voz para o campo teatral.No campo da voz, fatores físicos e psicofísicosdevem ser considerados agentes de som e senti-do que atuam em sinergia, situação em que aação coletiva coordenada é potencializada pelasações dos fatores. O princípio sinergético irrigatambém o campo teatral, onde a cooperaçãode diversas linguagens engendra a encenação.Não se trata, portanto, de adição linear de par-tes independentes, mas de integração orgânicade partes interdependentes. Como a voz é umdos componentes da encenação teatral e seu de-sempenho é fortemente sensível aos fatores en-volvidos no processo criativo, o treinamentovocal não deve perder de vista sua perspectivapoética. As poéticas da voz determinam e defi-nem técnicas associadas, como conjuntos depráticas de aprendizagem, destinadas a superardesafios específicos que se colocam. Um cons-trutor de casas deve saber edifica-las, mas certa-mente atentará para as especificidades relativas,por exemplo, aos materiais utilizados. Se de ma-deira, deverá dominar a arte dos encaixes e da

fixação por pregos e parafusos. Se de concreto,a dosagem de cimento, pedra e areia, o projetode armação e a confecção das formas. Do poetaconstrutor espera-se, por exemplo, a definiçãodo desenho e caimento dos telhados e a dispo-sição interna dos ambientes. A voz é vibraçãodo corpo, posta em movimento pelo desejo.O corpo do ator, como instrumento produtorda voz, centraliza os atributos técnicos e poéti-cos, tratando-se seu trabalho de buscar o pontode equilíbrio da mistura, pois o foco excessiva-mente técnico em potenciais específicos da vozconduz freqüentemente à preocupação com aprópria voz. Grotowski aborda este aspecto,quando afirma que “o ator preocupado com aprópria voz concentra toda a atenção no instru-mento vocal: enquanto trabalha, observa-se, es-cuta-se, freqüentemente duvida de si mesmo,mas também se não experimenta dúvidas, co-mete um ato de violência contra si. Com o sim-ples ato de observar, interfere constantementeno funcionamento do instrumento vocal”(Grotowski, 2007, p.142). Num acordo com oar, alça-se a voz como pipa e depois se deixa quevoe, empinando-se volta e meia, para impul-sioná-la em sua navegação. A voz poética – som,ruído, silêncio e palavra – atrela-se organica-mente ao corpo do ator, seu instrumento, colo-cando-se no espaço-tempo cênico como um doselementos da encenação. O entendimento davoz como um sistema imerso sinergeticamenteno sistema teatral implica em que o seu enfoquepoético será indutivo, sem que se perca, passo apasso, o confronto das partes com o todo.

Deseja-se, portanto, a coesão orgânicaentre técnica e poética, para o que se revela im-portante a enunciação de alguns requisitos,princípios que definirão um território pedagó-gico das poéticas da voz do ator.

2. Afinação2. Afinação2. Afinação2. Afinação2. Afinação

O primeiro ato de um processo de treinamentopoético da voz é de importância cardinal, poisdele depende a instauração de uma atmosfera

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2 José Celso Martinez Correa, ator e diretor do Teatro Oficina, cunhou a expressão “estado de música”em oposição ao “estado de prosa”, centrado na voz cotidiana e utilitária.

3 A nomenclatura baseia-se na abordagem de Marilena Chauí para a consciência, em que o eu, a pessoa eo cidadão, associados, respectivamente, às dimensões psicológica, ética e política, são articulados pelosujeito do conhecimento, sua dimensão epistemológica (Chauí, 2003, p. 130-1). A prática de afinaçãocorrespondente, difundida pelo bailarino, coreógrafo e professor Klauss Vianna, e me apresentada porum de seus assistentes, José Maria de Carvalho, nos trabalhos que desenvolvemos, entre 1987 e 1990,traz marcas dos círculos de atenção (Stanislavski, 2002, p. 104-28).

teatral, sagrada em sua essência, em oposição aosritmos profanos da dimensão cotidiana: é mo-vimento de fundação de um mundo (Eliade,s/d, p. 36). Esta ação inicial determina a quali-dade do processo e depende do fomento a umaespecífica concentração, atrelada às relações en-tre os indivíduos participantes, atentando-separa a temperatura do processo, mais importan-te que o próprio processo, segundo Barba (Feral,2003, p. 54). Contém, portanto, os atributosde aquecimento e preparação, terminologia di-fundida no vocabulário teatral, mas que não tra-duz plenamente os requisitos do ato. Além deaquecer e preparar, se trata de afinar o instru-mento corporal da voz do ator, ação individualque se faz coletiva na afinação com o outro, per-curso que se cumpre a cada encontro. A afina-ção da orquestra, em que cada instrumento im-prime sua assinatura sonora, a partir do dó dereferência dado pelo oboé, abre uma espécie defenda no tempo, instante que pressente o apa-gar das luzes e o início do concerto, cuja evo-lução pressupõe a sustentação da afinação.Afinar é acordar, entrar em acordo consigo ecom o outro, ação exploratória que exige do atoras habilidades do navegador que atraca o seubarco e aborda o território, tateia o espaço comtodas as suas antenas em plena atividade, poisque à sua frente apresenta-se o desconhecido.Afinar é também refinar, apurar, lapidar, açõesextremamente desejáveis como estímulos ao tra-balho do ator no teatro, frequentemente apoia-do na repetição. A afinação pode ser pensadacomo convergência de dois estados complemen-tares: estado de escuta e estado de música.2

A escuta cultiva a qualidade da observa-ção, convocando-se os sentidos – visão, audi-ção, olfato, paladar e tato, no sentido de si, dooutro e do espaço. Por um lado, coloca-se comocondição necessária para o desenvolvimento depráticas corporais e vocais, que promovam oequilíbrio tônico e impulsionem sua expansão.Por outro lado, expõe o ator no espaço, em suasdimensões do eu, no contato com seu íntimoreduto, da pessoa, na relação com o outro, e docidadão, nas conexões com o espaço: vetoresque migram do campo privado ao campo pú-blico.3 A voz do outro me toca assim como aminha voz toca o outro. A compreensão destatroca de toques se faz com o cultivo e a constru-ção de uma escuta, fruto de desejo e de escolha.

O estado de música busca a integraçãodas pulsações corporais e vocais, pelos ritmosdas palavras e dos cantos, harmonizando-se osmovimentos da voz e do corpo. A musa Melpô-mene, aquela que cantadança, é sua remota ins-piração. Palavras-cantadas, evocadas pelo rap-sodo, as nove musas, nascidas da união de Zeuscom a deusa Mnemosine, “antes que o alfabetoentorpecesse a Memória” (Torrano, 1992), numtempo em que não havia a língua escrita, con-servam os atributos ancestrais do poder e damemória. A voz porta as marcas da história dosujeito, frutos de sua memória pessoal e cultu-ral, impregnadas de desejo, poder que o impul-siona para o desconhecido. Por meio do ritmo,o estado de música catalisa estas polaridades,para acionar a centelha da presença plena docorpo da voz do ator. Música cantada, coletiva,ponto de explosão do rito teatro, o estado de

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4 Ação corporal e vocal significam movimentos dotados de sentido, cujos vetores apontam para o outro.É na relação com o outro que se estabelece a conversa de pulsos, pausas e tons, que engendra os ritmosdas ações.

5 Uma fisiologia do silêncio ensina que quem o provoca é a ação muscular sobre duas cartilagens, im-pondo-se o afastamento das pregas vocais e a respiração silenciosa.

música configura-se como estado poético decriação teatral, em que “não sou eu que canto acanção, é a canção que me canta”, motivaçãoformulada pelo encenador romeno AndreïSerban (Banu, 1995, p.55), que encontra econa canção “Timoneiro”, de Paulinho da Viola eHermínio Bello de Carvalho: “não sou eu quemme navega, quem me navega é o mar, é elequem me carrega, como nem fosse levar.”A música passeia pela pele, chega ao coração, àcabeça e toma todo o corpo (Martins, 2005,p. 53).

Experiências coletivas, vetores de interfe-rência, de interação, de provocação, apontadospara o outro, estado de escuta e estado de músi-ca correspondem ao receptivo e ao criativo, po-laridades que se alternam e se completam, fre-qüentemente em luta, no processo poético davoz. Enquanto o estado de escuta seleciona efocaliza, o estado de música integra e funde.A afinação, sua síntese, projeta o ator no espaçoe no coletivo de trabalho, assemelhando-se à or-ganicidade arquitetônica, quando se pressupõeque a edificação se enraize no solo como mãosque penetram na terra. Se os pés do ator são suasraízes, seu corpo e sua voz em movimento são oinstrumento de abordagem e conquista: vetoresque se lançam no sentido do outro. A afinaçãoé, simultaneamente, atividade exploratória epreparatória do corpo e da voz: ponto de supe-ração entre o receptivo e o criativo.

3. Silêncio, pulso, tom:3. Silêncio, pulso, tom:3. Silêncio, pulso, tom:3. Silêncio, pulso, tom:3. Silêncio, pulso, tom:clarclarclarclarclaros-escuros-escuros-escuros-escuros-escuros da vozos da vozos da vozos da vozos da voz

É sempre bom lembrar que um copo vazio estácheio de ar (Gilberto Gil, Copo Vazio).

É do silêncio que emerge o som. O ar que entrasilenciosamente pela inspiração é potência davoz: o vazio está cheio de ar, o ar está cheio devoz. Todo silêncio é promessa de voz, que secumpre quando, no fluxo expiratório, a ação daspregas vocais imprime um sinal de movimentono ar. A onda sonora, colorida e amplificadanas caixas de ressonância, não é matéria, masvibra e se desloca através da matéria, produzidacomo som e sentido pelo instrumento corporaldo ator.

Há som no silêncio. Da condição de exis-tência de uma escuta humana viva decorre que,mesmo com todo o ruído de fundo anulado,por meio de um isolamento absoluto do exte-rior, restará ao ouvinte o som de seu pulso gra-ve e ritmado, da pulsação de seu sangue, do ru-mor de seus órgãos em movimento, sobre opano de fundo branco do sistema nervoso.Conclui-se que as poéticas da voz contêm poé-ticas do silêncio. O silêncio é a matriz que pos-sibilita o deixar-se tocar, invadir, penetrar pelavoz do outro. O silêncio é um ruído do fundodas vozes e das palavras, dos gestos em ação.4

O silêncio se coloca como pausa de reverbera-ção e escuta, e, ao mesmo tempo, impulso quemovimenta o corpo e a voz.5

Inversamente, há silêncio no som. Quan-do alguém diz ou canta palavra ou som, há si-lêncio tramado nos seus interstícios. A vozcomo palavra nasce da fricção entre silêncio,som e ruído. As consoantes são pontos de des-continuidade no contínuo sonoro das vogais.A analogia com o esquema estrutural do esque-leto humano sugere a associação das vogais a os-sos e das consoantes a articulações, condicio-nando-se o movimento corporal à atuaçãocoordenada entre estes dois elementos: ossos

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desarticulados empilham-se ou se enrijecem.Nesta perspectiva, o movimento da voz poéticadepende da precisa articulação das vogais pelasconsoantes, buscando-se o equilíbrio entre cla-reza e fluxo vocal, para os quais contribuemvetores internos, ligados ao conceito e à ima-gem da palavra. Se a voz como palavra é luz, osilêncio é sua sombra. Na voz há silêncio, comosombras, que percorrem seus subterrâneos, fer-tilizam a luz das palavras, impulsionam o movi-mento das imagens. Como em uma pintura, ocolorido da voz é função não só do cromatismoe das nuances da entonação, mas dos contrastesentre claro e escuro, som e silêncio, criativo ereceptivo. A sombra da palavra subjaz na vozpoética ininterruptamente, na alternância cícli-ca entre impulso, ação e sustentação, vetorescom componentes internos e externos. A com-provação de que há silêncio no som é acústica.Tome-se, por exemplo, o pulso do coraçãocomo referência a um andamento de marcha:cada batida, um passo. É evidente o silêncio quese faz entre cada pulso, e que estamos no domí-nio do ritmo corporal. Se subdividirmos a pul-sação de forma crescente, marcando com as pal-mas das mãos, há um estreitamento crescentedas durações das pausas, pela multiplicação dospulsos. Existe uma região-limite, situada entre13 a 20 pulsos por segundo, abaixo da qual seconserva a percepção do conjunto de pulsoscomo andamento. Aumentando-se progressiva-mente a pulsação, para além deste patamar, ospontos silenciosos fundem-se na percepção doritmo como som, isto é, como alturas, comotom. Os sons graves guardam esta relação maisíntima com a gravidade, já que se encontram

próximos da zona de passagem e, portanto, dofenômeno rítmico como jogo explícito entre osom e o silêncio. Conseqüentemente, a conti-nuidade do som é aparente, pois que ele sem-pre contém pulsos de silêncio em seu interior.6

Percebemos o som como pulso até a região-li-mite, zona de definição dúbia, a partir da qualo distinguimos como tom. Esta visão físicaintegradora, que compreende pulso, silêncio etom como faces de um mesmo fenômeno, su-gere um fértil caminho para a construção dojogo entre imobilidade, movimento, pausa evoz, cujo eixo baseia-se no ritmo. Combinan-do-se a estes quatro fatores, seja como som, ruí-do ou palavra, encontram-se quatro possibili-dades, associados à coincidência entre pausa eimobilidade, pausa e movimento, voz e imobi-lidade, voz e movimento. Há ainda o conjuntodos muitos arranjos em que não há coincidên-cia entre pares de fatores, mas divergência entreeles. No campo da voz poética, as associaçõescom as fases do ciclo respiratório incrementamos diálogos com o gesto: a inspiração é o im-pulso da ação expiratória, fluxo que se sustentae se renova na pausa de retomada do ciclo.Projeta-se, assim, uma estrutura cênica básica,malha que permitirá a ação coordenada entrecorpo e voz, incluindo-se, no percurso, outrosrecursos da voz. Atributos do silêncio na voz eno movimento, pausa e imobilidade colocam-se em suspensão, como nos pontos de energiapotencial máxima de um pêndulo, estimu-lando-se o fluxo contínuo do corpo da voz doator, pelo impulsionar constante e recíproco.7

O copo do silêncio está cheio de ar, potência devoz como desejo, conceito, imagem e música.

6 Para uma descrição complementar, e enriquecida pelo CD de Hélio Ziskind, que acompanha o livro,consultar a abordagem de Wisnik, 1989, p. 15-28.

7 Analogia proposta por Patrícia Noronha, em suas aulas de Corpo e Movimento, no Departamento deArtes Cênicas.

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4. Sujeitos da voz4. Sujeitos da voz4. Sujeitos da voz4. Sujeitos da voz4. Sujeitos da voz

Ser significa comunicar-se pelo diálogo(Bahktin).

O corpo é o instrumento da voz, cuja matéria éo ar: a inspiração é impulso do ar que se faz vozna ação expiratória. Voz é um sinal impresso noar. O ar, como objeto de percepção e domínio,é elemento central no enfoque de Myrian Mu-niz, pedagoga em tempo integral, mestra de umteatro peripatético, voador, como ela dizia.Durante vinte anos, de 1984 até sua morte, em2004, convivi estreitamente com ela, comoaprendiz de teatro, em uma relação que trans-bordava os limites do trabalho teatral conven-cional, espalhando-se criativamente em nossasvidas. Corpo, voz e palavra são elementos fun-dadores em seu teatro, concebidos como uni-dade indissociável e alçados ao desempenho pelaimprovisação, um jogo com o acaso, sempre naperspectiva da relação com o outro, lapidadacotidianamente, no processo da criação teatral.Para Myrian, o campo de jogo tem que ser pre-parado e cultivado pelos atores, como semea-dores que prenunciam a sova sagrada do pão.Os altares multiplicavam-se na sua casa, em cadacanto um mistério, a foto do filho atrás dopneu, as gamelas, a mesa e o banco de madeira,os quadros de Flávio Império, a Dorina queparecia um sofá, livros, luzes de uma ribaltacaseira, a multiplicação dos pequenos ambien-tes: tudo em volta dela era espaço de conheci-mento teatral. Na primeira vez em que dirigium trabalho de voz com um grupo de seus alu-nos, ela se sentou face a face comigo e disse,bem devagar, com sua voz grave e pausada: vocêvai olhar para o ser, e logo você vai perceber doque ele precisa.

Uma das propostas pedagógicas deMyrian Muniz é o princípio que incita o culti-

vo do olhar atento, escuta que se expõe na rela-ção viva com o ser, acessada pela intuição e peloimproviso. O ser é continente e superação doator, em diálogo com o sujeito, o eu, a pessoa,o cidadão, sua memória e sua história: o campopedagógico do teatro e, em particular, da vozpoética, tem lugar neste espaço interpolar deinterseção e passagem, campo de experiência e,portanto, sujeito a desafios e riscos. A voz doator torna-se poética em relação sinérgica coma voz do indivíduo, com seus medos e desejos,sem que se neguem, portanto, as tensões destarelação. Um corolário deste lema é que a expan-são das possibilidades vocais do ator amplia,como conseqüência, as possibilidades do ser, aomesmo tempo em que toda descoberta e todomovimento cênico implica em transformaçãotambém de quem vê, ouve, recebe e comparti-lha do evento teatral.

Neste espaço de travessia do ser, a voz po-ética do ator reverbera sons, silêncios e palavras,em percursos cujos pólos são o íntimo e o pú-blico, que podem ser associados às manifesta-ções lírica e épica. Se o sujeito do épico é onarrador, o sujeito do lírico será o cantor. Parao cantor que não narra, a sonoridade é plena,completa e soberana. A voz deste cantor soacomo “alguém cantando longe daqui”, mas“vem do coração”: tão perto e tão profunda, porisso distante. O que não se pode mais dizer, épreciso cantá-lo, afirma Heiner Muller.8 É “avoz de alguém nessa imensidão, (...) a voz deum certo alguém, que canta como que pra nin-guém.”9 A voz deste cantor é pulsação intran-sitiva e se faz renovadamente presente pelo atode cantar. Ao narrador que não canta correspon-de a voz completamente utilitária. Pela dosagemde cantor e narrador, obtêm-se muitas combi-nações ou fundem-se muitas ligas: narradoresque cantam, cantores que narram, rapsodos ecantadores, artistas performáticos no territóriodo ator.

8 Ce dont on ne peut plus parler, il faut le chanter. Citado por Banu, 1995, p. 7.9 Caetano Veloso: Alguém cantando.

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Exemplo de sujeito cantor que narra, osamba de breque10 gera interessantes possibili-dades poéticas da voz, especialmente se em co-nexão com o enfoque brechtiano de alternânciaentre envolvimento e distanciamento da açãonarrativa. No desenvolvimento deste seu proje-to, Brecht propõe ao ator que cante contra a can-ção, formulação que sugere a relação entre onarrador e o cantor como luta, travada pelo ator,no campo de tensão entre estes dois sujeitos.O samba de breque – em que há pelo menosdois sujeitos: um se coloca dentro da cena, en-quanto o outro comenta o enredo, passo a pas-so – exemplifica uma estrutura atraente para ofomento de uma pedagogia da voz poética for-jada no universo brechtiano.

5. A Canção Popular Brasi leira como5. A Canção Popular Brasi leira como5. A Canção Popular Brasi leira como5. A Canção Popular Brasi leira como5. A Canção Popular Brasi leira comocampo poético da vozcampo poético da vozcampo poético da vozcampo poético da vozcampo poético da voz

A concepção do trabalho poético da voz comoexperiência protagonizada pelo ser implica, porum lado, no apuramento da auto-percepção eno re-conhecimento da própria voz – um co-nhecer que se nutre e se transforma continua-mente. Por outro lado, implica em enfrentar aslimitações impostas pela voz utilitária, corres-pondente à fala cotidiana, que Bakhtin classifi-ca como gênero discursivo primário. Os secun-dários “aparecem em circunstâncias de umacomunicação cultural mais complexa e relativa-mente evoluída, principalmente escrita: artísti-ca, científica, sociopolítica.” Aos gêneros secun-dários pertencem, portanto, os percursospoéticos da voz, que, “durante o processo de suaformação, (...) absorvem e transmutam os gê-

neros primários. (...) Os gêneros primários, aose tornarem componentes dos gêneros secundá-rios, transformam-se dentro destes e adquiremuma característica particular: perdem sua rela-ção imediata com a realidade existente e com arealidade dos enunciados alheios.”11 Assim,mesmo nas pesquisas teatrais inspiradas no co-tidiano, a voz será sempre poética, pelo proces-so de redimensionamento de seus componen-tes primários, nos níveis do som e do sentido.

Historicamente, inúmeras tradições tea-trais propiciaram a formulação de poéticas davoz para o ator, freqüentemente associadas a es-colas e grupos, constituídos em torno de auto-res e sua época. A dicção shakespeareana, cons-truída do ritmo dos pentâmetros iâmbicos –transposição poética do dizer cotidiano, e amusicalidade dos alexandrinos racinianos, mol-dada na difícil acústica do Hôtel de Bourgogne,são exemplos contundentes de poéticas da vozque se propagaram pela tradição. Desvinculadasdos seus contextos originais, tornam-se técni-cas, muitas vezes redundantes na busca de pre-encher os requisitos pedagógicos da voz poética.

No Brasil, as tradições mais potentes, doponto de vista da vocalidade poética, vinculam-se à cultura popular, nas imbricações da dança,da música e do teatro. Neste universo, a Can-ção Popular Brasileira apresenta o maior poderde difusão, pois que as canções circulam obs-tinadamente em nossa memória coletiva: noBrasil, tudo tem vozes cantando um fundo mu-sical. Hábeis compositores passeiam por umadiversidade de temas, iluminam cenas do dia-a-dia, estampam a alma feminina e masculina,passam em revista fatos da vida brasileira, es-timulam comportamentos e críticas, insinuan-

10 Tipo de samba com breques repentinos, nos quais o cantor, dizendo ou cantando, comenta a ação.Exemplos de mestres do gênero são Moreira da Silva, Jorge Veiga, Wilson Batista, Geraldo Pereira eMiguel Gustavo. Em São Paulo, há um tipo de samba semelhante, difundido pelo cantor GermanoMathias, chamado sincopado, em que o comentário, em geral cantado, prescinde do breque.

11 In BAHKTIN, M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997. Citado por Märtz,2002, p. 91.

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do-se os corpos pelos pulsos e tons, pelos rit-mos e melodias. A canção brasileira, plena debeleza das vozes que sintetizam e amaciam a falacotidiana, constitui um fascinante portal deacesso ao campo poético da voz, na lavra de ter-ra fértil para a prospecção e a descoberta.

6. O Dossiê V6. O Dossiê V6. O Dossiê V6. O Dossiê V6. O Dossiê Vozozozozoz

Para o campo de pesquisa da voz convergemfontes de conhecimentos de diversas áreas, taiscomo Teatro, Música, Dança, Fonoaudiologiae Lingüística, que se interpenetram e cujo fococentral se elege de acordo com os requisitos e aspropostas da investigação. No âmbito da peda-gogia da voz poética do ator, em que o eixo gra-vitacional é o teatro, distinguem-se dois tiposde relação. Ao primeiro pertencem atores, en-cenadores e outros profissionais da cena, que sedeparam com as complexas questões da voz noteatro e, por paixão, necessidade ou oportuni-dade, impelem-se para um aprofundamentonesta área. Compõem o segundo tipo cantores,fonoaudiólogos e outros profissionais da voz,que, por paixão, necessidade ou oportunidade,elegem o teatro como espaço de pesquisa e apli-cação de seus conhecimentos. Embora o teatrose situe na confluência destes profissionais, opercurso de cada um impacta profundamenteno lugar de onde se fala e, portanto, no proces-so pedagógico associado. A pluralidade de ori-gens e de caminhos para a formação do profes-sor de voz mostra não só a extensão das questõesenvolvidas, como amplifica a qualidade dosenfoques. O Dossiê Voz que se apresenta nessaSala Preta visa a captar esta diversidade de abor-dagens das questões da voz e da pedagogia davoz para o ator, partindo-se das contribuições

de representantes de cinco instituições paulis-tas de ensino e pesquisa: Universidade deCampinas (Unicamp), Escola de Arte Dramá-tica (EAD), Pontifícia Universidade Católicade São Paulo (PUC-SP), Universidade Esta-dual Paulista (Unesp) e Universidade de SãoPaulo (USP).

Sara Lopes revela a potência da CançãoPopular Brasileira como modo de abordagem eestímulo para uma vocalidade poética que leveo ator a “manipular a plasticidade de seu mate-rial vocal na riqueza sonora de seu idioma.” Isa-bel Setti parte de um diálogo com uma tradi-ção pedagógica da voz para o ator, representadapela professora Mylene Pacheco, para umaviagem investigativa em busca de uma voz “fru-to da totalidade do ser em escuta. Do estadopleno de atenção. Dos nervos expostos, dispo-níveis para reagir aos estímulos em tempo pre-sente.” Luiz Augusto de Paula Souza (Tuto),apoiando-se nos conceitos molar e molecular, deGilles Deleuze e Felix Guattari, constrói duaspossibilidades de abordagem para o trinômiovoz, corpo e linguagem. Suely Máster aprimoraos procedimentos da análise vocal, no sentidode uma avaliação objetiva da qualidade vocal,destinada a embasar o treinamento vocal doator: propõe que se coloque ciência no feitiço.Fechando o conjunto de seis artigos que com-põem o Dossiê Voz, Fábio Cintra aborda a for-mação do ator, sob a ótica da voz e da musicali-dade, em que preconiza o canto coral comoestratégia para a musicalização no teatro.

Desejamos que o Dossiê Voz contribuapara o debate sobre a Voz no Teatro, estimuleos diálogos entre os pesquisadores da área, cola-bore para a definição e a clareza dos diversos ter-ritórios possíveis e sirva como referência aosprocessos pedagógicos associados.

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PPPPPercursos poéticos da voz

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