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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019 1 www.compos.org.br www.compos.org.br/anais_encontros.php WELCOME TO RIO: imaginários e interfaces entre cidade global e economia criativa 1 WELCOME TO RIO: imaginaries and interfaces between global city and creative economy Ana Teresa Gotardo 2 Ricardo Ferreira Freitas 3 Jorgiana Melo de Aguiar Brennand 4 Resumo: Nosso objetivo neste artigo é discutir os imaginários sobre cidade global e economia criativa e suas relações a partir dos conceitos de autores como Sassen (2015), Howkins (2013) e Figueiredo (2015), por meio da análise de dois episódios do documentário seriado de televisão Welcome to Rio, exibido pela BBC em 2014, que narram histórias de empreendedores que residem em favelas cariocas. Os produtos audiovisuais mostram outros valores da “marca Rio” e alguns efeitos das cidades globais, corroborando as ideias de Sassen (2005) de que a exigência de profissionais qualificados e empresas lucrativas aumentam a desigualdade socioeconômica e incrementam os indicadores de informalidade nessas cidades. Eles também apresentam pontos de vistas na contramão dos atributos associados à marca institucional, apesar de também fazerem parte do escopo do que pode ser compreendido como economia criativa. Palavras-Chave: Cidade Mercadoria. Cidade Global. Economia Criativa. Abstract: Our objective in this article is to discuss the imaginaries about global city and creative economy and its relations from the concepts of authors like Sassen (2015), Howkins (2013) and Figueiredo (2015). For that, we analyze two episodes of the documentary television series Welcome to Rio, broadcasted by the BBC in 2014, which tell stories of entrepreneurs living in slums in Rio. These audiovisual products show other values of the “brand Rio” and some effects of global cities, corroborating Sassen's (2005) ideas that the demand of skilled professionals and profitable companies increase socioeconomic inequality and increase informality indicators in these cities. They also have points of view against the attributes associated with the institutional brand, although they are also part of the scope of what can be understood as a creative economy. Keywords: Merchandise City. Global City. Creative Economy. 1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Estudos de Comunicação Organizacional do XXVII Encontro Anual da Compós, do XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019. 2 Doutoranda em Comunicação Social pela UERJ, Mestre em Comunicação pela UERJ, Relações Públicas na UFF. E-mail: [email protected]. 3 Professor Titular do PPGCOM/UERJ. Doutor em Sociologia pela Université René Descartes - Paris V/Sorbonne. E-mail: [email protected]. 4 Doutoranda em Comunicação Social na UERJ, Mestre em Administração pelo Ibmec/RJ, graduada em Jornalismo pela Universidade Federal do Ceará (UFC). E-mail: [email protected].

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WELCOME TO RIO: imaginários e interfaces entre cidade global e economia criativa1

WELCOME TO RIO: imaginaries and interfaces between global city and creative economy

Ana Teresa Gotardo2 Ricardo Ferreira Freitas 3

Jorgiana Melo de Aguiar Brennand4 Resumo: Nosso objetivo neste artigo é discutir os imaginários sobre cidade global e economia

criativa e suas relações a partir dos conceitos de autores como Sassen (2015), Howkins (2013) e Figueiredo (2015), por meio da análise de dois episódios do documentário seriado de televisão Welcome to Rio, exibido pela BBC em 2014, que narram histórias de empreendedores que residem em favelas cariocas. Os produtos audiovisuais mostram outros valores da “marca Rio” e alguns efeitos das cidades globais, corroborando as ideias de Sassen (2005) de que a exigência de profissionais qualificados e empresas lucrativas aumentam a desigualdade socioeconômica e incrementam os indicadores de informalidade nessas cidades. Eles também apresentam pontos de vistas na contramão dos atributos associados à marca institucional, apesar de também fazerem parte do escopo do que pode ser compreendido como economia criativa.

Palavras-Chave: Cidade Mercadoria. Cidade Global. Economia Criativa. Abstract: Our objective in this article is to discuss the imaginaries about global city and creative

economy and its relations from the concepts of authors like Sassen (2015), Howkins (2013) and Figueiredo (2015). For that, we analyze two episodes of the documentary television series Welcome to Rio, broadcasted by the BBC in 2014, which tell stories of entrepreneurs living in slums in Rio. These audiovisual products show other values of the “brand Rio” and some effects of global cities, corroborating Sassen's (2005) ideas that the demand of skilled professionals and profitable companies increase socioeconomic inequality and increase informality indicators in these cities. They also have points of view against the attributes associated with the institutional brand, although they are also part of the scope of what can be understood as a creative economy.

Keywords: Merchandise City. Global City. Creative Economy.

1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Estudos de Comunicação Organizacional do XXVII Encontro Anual da Compós, do XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019. 2 Doutoranda em Comunicação Social pela UERJ, Mestre em Comunicação pela UERJ, Relações Públicas na UFF. E-mail: [email protected]. 3 Professor Titular do PPGCOM/UERJ. Doutor em Sociologia pela Université René Descartes - Paris V/Sorbonne. E-mail: [email protected]. 4 Doutoranda em Comunicação Social na UERJ, Mestre em Administração pelo Ibmec/RJ, graduada em Jornalismo pela Universidade Federal do Ceará (UFC). E-mail: [email protected].

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1. Introdução A partir do início do século XXI, muito se fala, em diversos campos de estudos, sobre

“cidades globais”. A origem da alcunha é geralmente atribuída a Saskia Sassen (2005),

conhecida por suas análises a respeito dos fenômenos da globalização e da migração urbana.

Para a socióloga, o incremento do número de profissionais qualificados e de empresas

lucrativas aumentam a desigualdade socioeconômica, haja vista o crescimento da

informalidade em uma série de atividades econômicas que encontram demanda nessas cidades.

Neste artigo, interessa-nos essa proposição para entendermos os imaginários de

economia criativa relacionados à metrópole do Rio de Janeiro e sua ascensão ao status de

cidade global, argumento muito utilizado pelos poderes públicos para justificar os megaeventos

que sediou, como a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016. Entendemos que

as cidades globais são tratadas por seus administradores como organizações, impondo-as à

lógica mercantilista do sistema empresarial vigente na sociedade neoliberal contemporânea. A

cidade-mercadoria, versão da cidade global, investe em poderosas estratégias de marketing e

de relações públicas na construção de sua marca, fortalecendo, muitas vezes, conceitos

mercadológicos que tentam higienizar a imagem da cidade, afastando-a de sua cultura popular.

No entanto, a cultura das ruas é viva e dinâmica e, apesar de dependerem do dinheiro para

sobreviver, os citadinos nem sempre reforçam os atributos higienistas da marca idealizada por

profissionais da comunicação baseada nas demandas mercadológicas do Estado. As diversas

indústrias culturais contemporâneas escancaram esses paradoxos.

A partir de pesquisa sobre documentários internacionais de TV, antes, durante e depois

desses megaeventos, selecionamos dois episódios do documentário seriado Welcome to Rio

que se debruçam sobre histórias de pessoas implicadas no processo de economia criativa. Esses

episódios abordam outros valores da marca RIO, propondo pontos de vistas na contramão dos

atributos associados à marca institucional / “oficial”, apesar de também fazerem parte do

escopo do que pode ser compreendido como economia criativa.

As narrativas apontam argumentos de comunicação organizacional com perspectivas

pouco analisadas na literatura da área. Ao nos remetermos aos atributos principais das marcas

corporativas contemporâneas, percebemos que o ideal de transparência é um valor essencial à

reputação. Nos episódios selecionados, observamos que a noção de transparência também é

ressaltada, porém com outra estética em relação à expectativa de competência das corporações

do mercado tradicional. Eles falam de outras transparências. Han (2017) lembra que a

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sociedade da transparência, na qual coloca-se em circulação uma quantidade expressiva de

informações e de imagens, não gera qualidade de verdade. [...]As coisas tornam-se transparentes quando depõem sua singularidade e se expressam unicamente no preço. O

dinheiro, que iguala tudo com tudo, desfaz qualquer incomensuralidade, qualquer singularidade das coisas. Portanto, a sociedade da transparência é um abismo infernal (Hölle) do igual (HAN, 2017, p. 10).

Na visão de Han (2017), a coerção da transparência carece do respeito pela alteridade

que não pode ser totalmente eliminada. Nos episódios analisados, vislumbramos outras

alteridades e, portanto, outras transparências bem distantes daquelas que se enquadram sem

“qualquer resistência ao curso raso do capital, da comunicação e da informação” (idem, p. 10).

Os personagens presentes neste estudo têm suas verdades próprias que apontam para um futuro

que não é exatamente positivado a partir de um presente otimizado. Para elas, o futuro é

literalmente o presente, pois sua sobrevivência depende daquilo que é conseguido hoje.

O conceito de transparência no meio corporativo formal implica uniformização, noção

bem distante do cotidiano dessas pessoas que dependem da criatividade e do improviso para

poderem continuar a viver e ter o direito básico de sonhar com algum futuro menos cruel

consigo mesmas e com suas famílias. Elas se valem da informalidade e recorrem a linguagens

ambivalentes para darem sentido de legitimidade a suas vidas e a suas escolhas, visto que o

leque de oportunidades que a sociedade transparente e formal lhes possibilita é hiper-reduzido.

Como já apontava Simmel (1987) no início do século XX, o dinheiro pode ser entendido como

meio e processo de comunicação, tanto do ponto de vista da opressão/submissão como do ponto

de vista da troca democrática baseada no bem de todos. O dinheiro é perverso e alentador, mas

é ele que possibilita a troca entre coisas e pessoas. Daí, a importância da cidade na nossa

pesquisa, visto que ela é o lugar próprio desse estágio cultural no qual a troca é essencial e,

muitas vezes, a única forma de sobrevivência em nome da objetividade que as metrópoles

passaram a impor ao longo dos séculos. Nesse contexto, o dinheiro induz a três efeitos culturais:

discriminatório, visto que existe uma correlação entre intelectualidade e economia monetária;

espacial, devido às modificações na noção de distância que o dinheiro oferece; e de ritmo, com

as contradições entre regularidade e diversidade de tempos (BRUNO; GUINCHARD, 2009).

Esses três efeitos são analisados neste texto à luz de reflexões teóricas sobre consumo,

cidade e comunicação, tendo como estudo de caso dois episódios do documentário seriado

Welcome to Rio, precedido de uma discussão sobre as interfaces entre a cidade global e a

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economia criativa. Pretendemos com esta pesquisa possibilitar novos elementos de reflexão

acadêmica à comunicação organizacional, além de sugerir a inclusão das cidades globais e de

seus habitantes nas pesquisas de Relações Públicas. É também nosso objetivo apresentar pontos

de vista alternativos aos tradicionalmente consagrados nos manuais de comunicação

organizacional sobre economia criativa e mostrar o quão paradoxais podem ser as noções de

reputação e transparência para os habitantes de uma mesma metrópole.

2. A cidade global O conceito de “cidade global”, segundo Carvalho (2000), foi reapropriado pelo senso

comum, deixando de ser uma condição para se tornar instrumento discursivo de referência para

uma prática, compondo um “projeto necessário à superação dos problemas urbanos”

(CARVALHO, 2000, p. 70). Neste sentido, faz-se necessário esclarecer o conceito aqui

utilizado, buscando articulá-lo com sua reapropriação no projeto de construção da marca-

cidade-global, ou cidade-mercadoria.

Saskia Sassen tornou-se referência ao propor um novo paradigma teórico no qual as

metrópoles devem ser “compreendidas exclusivamente em decorrência do processo de

globalização da economia e na condição de cidades globais” (CARVALHO, 2000, p. 72-73),

em detrimento de estudos que abordem a ecologia das formas urbanas, a distribuição da

população e os centros educacionais ou tendo foco nas pessoas, grupos sociais, estilos de vida

e problemas urbanos, tendo em vista que a globalização da economia e a emergência de uma

cultura global alteraram profundamente a realidade social e as cidades. Carvalho critica a visão

de Sassen, ressaltando que ela nega o movimento histórico específico das metrópoles

analisadas, privilegiando verticalidades em detrimento de horizontalidades.

Esse privilégio parece ser condizente com as reapropriações do termo “cidade global”,

considerando, tal como salientam Sánchez e Broudehoux (2013), a instrumentalização dos

megaeventos pelas elites políticas e econômicas para reconstruir a imagem da cidade, gerando

segregação, desigualdade, exclusão social. Embora a proposta de Sassen pareça privilegiar a

verticalidade, a autora a vê como um espaço para “a formação de um novo tipo de política

transnacional” (SASSEN, 2005, p. 39), um terreno para a política e o engajamento, uma

abertura de “possibilidades para uma geografia da política que liga os espaços subnacionais

através das fronteiras” (idem).

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A cidade global surge num contexto de ascensão das tecnologias da informação e de

mobilidade e liquidez do capital associadas a elas (SASSEN, 2005). Além disso, privatizações,

desregulamentações, abertura das economias nacionais a empresas estrangeiras e entrada dos

atores das economias nacionais nos mercados globais geram condições para o reescalonamento

dos territórios estratégicos que articulam esse novo sistema, em um processo de separação e

enfraquecimento do nacional como unidade espacial e emergência de novas dinâmicas e

processos que territorializam em novas escalas – regionais, nacionais ou globais. “Eu localizo

o surgimento de cidades globais neste contexto e contra esta gama de instanciações de escalas

estratégicas e unidades espaciais. No caso das cidades globais, as dinâmicas e processos que

são territorializados são globais” (SASSEN, 2005, p. 27). Carvalho (2000) relata que a origem

do conceito “cidade global” está relacionada ao problema da crise, nos anos de 1970, da

centralidade econômica das metrópoles que perderam o controle das atividades industriais, já

que as empresas passaram a ter maior flexibilidade para escolher lugares de menor custo para

a produção. A autora destaca, ainda, que “em substituição às atividades industriais, [as

metrópoles] passavam a sediar empresas de prestação de serviços altamente especializados,

ligados em sua maioria ao setor financeiro e da informação e de origem sempre transnacional”

(CARVALHO, 2000, p.71).

Para Sassen (2005), nas cidades globais, as operações de uma organização tornam-se

mais complexas e estratégicas, exigindo a terceirização de serviços especializados que podem

ser executados em outras cidades e países e faz com que certo tipo de ambiente urbano funcione

como um centro de informações, com serviços altamente especializados e em rede. Isso acaba

por fortalecer as transações e redes transfronteiriças (o que poderia ser o começo da formação

de sistemas urbanos transnacionais) e permite que a empresa fique mais livre para determinar

sua localização, contribuindo para as fortunas econômicas dessas cidades se tornarem cada vez

mais desconectadas de suas economias nacionais. Outro agravante é que serviços altamente

especializados exigem profissionais cada vez mais qualificados, resultando no aumento da

desigualdade socioeconômica e incremento da informalidade em uma série de atividades

econômicas que encontram demanda nas cidades globais. A proposta de Sassen considera toda

infraestrutura de atividades, empresas e empregos necessários para administrar a economia

corporativa avançada, inclusive dos processos de trabalho envolvidos, da infraestrutura

necessária de instalações, trabalhos não especializados e domínios políticos, culturais, sociais

e criminais. “Recapturar a geografia de lugares envolvidos na globalização nos permite

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recapturar pessoas, trabalhadores, comunidades e, mais especificamente, as diversas culturas

de trabalho, além da cultura corporativa, envolvidas no trabalho da globalização” (SASSEN,

2005, p.32), o que ressalta também a possibilidade de uma visão horizontal de análise.

A grande cidade de hoje emergiu como um local estratégico para toda uma gama de

novos tipos de operações – política, econômica, cultural, subjetiva. E considerando, tal como

Sánchez e Broudehoux (2013, p. 132), que a globalização tem influência “não apenas na esfera

econômica, mas também na produção do espaço, especialmente na legitimação de políticas

urbanas e novos paradigmas de ação” e que “a produção da Cidade Olímpica é resultado de um

intenso processo de construção de imagem que mobiliza múltiplos agentes e complexas

estratégias territoriais” (p. 133); e que existem intervenções urbanas mediadas pelo conceito

de cidade global, cuja expressão efetiva é o que se tem chamado de planejamento estratégico5

(CARVALHO, 2000; SÁNCHEZ; BROUDEHOUX, 2013); buscamos as relações possíveis

entre a cidade global (na reapropriação do conceito) e a (re)construção do Rio de Janeiro para

abrigar os megaeventos esportivos, bem como as interfaces com a economia criativa, no

sentido de compreender os imaginários, nos produtos audiovisuais em análise, sobre as formas

de vida dentro dessa “cidade global” almejada.

Sassen (2008) destaca que a economia global se caracteriza não por uma economia sem

fronteiras, mas como diversos circuitos globais que podem atuar em diversos níveis (mundial

e/ou regional), sendo que cada circuito é formado por grupos distintos de países e cidades,

possibilitando a emergência de novas geografias intercidades que funcionam como

infraestrutura para várias formas de globalização. Nesse sentido, segundo a autora, a primeira

etapa seria identificar de quais circuitos globais a cidade faz parte. Isso mostra, ainda segundo

Sassen, que “as diferenças e características especiais das cidades são importantes, e que a

concorrência entre as cidades é menor do que parece, ou seja, certa divisão global, ou regional,

de funções, estaria desempenhando um papel mais importante do que parece” (SASSEN,

2008). Com isso, a autora afirma que a história econômica do lugar influencia o tipo de

economia de conhecimento desta cidade, contrariando a ideia de que a globalização é

homogeneizante. Como exemplo, destacamos a história de investimento da cidade do Rio de

Janeiro em abrigar megaeventos (FREITAS, 2011) e como ela poderia, agora, impactar no

5 Carvalho (2000) destaca que o conceito de “planejamento estratégico” se propõe um novo paradigma na forma de abordar as cidades, diferente do paradigma da “cidade global”, uma discussão teórica no campo do Urbanismo. Ao uni-los neste texto, pretendemos entendê-los como “nós” de uma mesma “rede complexa” de construção da marca-cidade, uma cidade que se propõe global por meio dos megaeventos e planejamento estratégico.

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desejo de inclusão da cidade no circuito internacional da economia turística, uma das grandes

impulsionadas pela realização de eventos na cidade.

E se, tal como expõe Carvalho (2000, p.76), o conceito de planejamento estratégico

propõe a identificação de uma crise na centralidade econômica da cidade; a necessidade de torná-la competitiva aos

investimentos estrangeiros; uma ação que venda a imagem da cidade para o mundo, a partir da descoberta de algo que possa se constituir em sua marca de identidade; a “parceria” entre os recursos públicos e o capital privado; a busca de um consenso entre todos os atores urbanos, a fim de que o projeto possa ser realmente efetivado

E, segundo Sassen (2008), a cidade global é uma plataforma para produzir as capacidades

globais de comercializar, financiar, prestar serviços e investir em nível global, então pode-se

inferir, em uma perspectiva mercadológica e economicista, que o caminho “natural” seria

transformar o Rio de Janeiro em cidade global para atrair divisas. Este é um ponto da “visão”

que compõe a justificativa do Dossiê de Candidatura do Rio de Janeiro a sede dos Jogos

Olímpicos e Paraolímpicos de 2016 (COMITÊ DE CANDIDATURA RIO 2016, 2009, vol.1),

uma das “vantagens da candidatura”, “principal legado Olímpico” (termos usados no Dossiê).

Outro documento que pode ser citado como exemplo desta estratégia é o Plano Aquarela 2020

(INSTITUTO BRASILEIRO DE TURISMO, 2009). Os documentos oficiais constroem os

megaeventos como grandes oportunidades não somente para a promoção internacional do Rio

de Janeiro e do Brasil, mas também para “regeneração” social, urbana e crescimento

econômico. Destaca-se que a criação do “momento do Rio” foi composto por diversos fatores: O primeiro foi a adoção, na década de 1990, de um modo de governança neoliberal, muitas vezes chamado de

planejamento estratégico. Em muitas cidades brasileiras, essa abordagem gerencial neoliberal foi percebida como a única opção viável para enfrentar as novas condições impostas pela globalização e para participar da competição inter-urbana “mítica” por um capital financeiro global cada vez mais móvel (Vainer, 2009). As estratégias de planejamento se concentraram em melhorar a imagem da cidade, reembalar seus ativos e comercializar suas vantagens competitivas, a fim de atrair investidores estrangeiros, moradores que pagam impostos, turistas ricos e profissionais da chamada classe criativa. (SÁNCHEZ; BROUDEHOUX, 2013, p. 134)

Do ponto de vista do planejamento estratégico, mercadológico e econômico, talvez seja

possível considerar, ainda que em um espaço curto de tempo, que os planos de incluir o Rio de

Janeiro em um circuito de cidade global tenham sido bem-sucedidos. No entanto, os

megaeventos são não apenas catalizadores do desenvolvimento urbano, mas ferramentas

poderosas para a reconfiguração das cidades em uma perspectiva neoliberal, já que contribuem

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fortemente para a privatização, para a implantação de políticas econômicas voltadas para o

mercado e para a comoditização do espaço urbano, podendo, inclusive, atuar com autoritarismo

e excepcionalidade, reconfigurando estruturas de poder locais e nacionais – afinal, os

megaeventos criam condições excepcionais para a realização de grandes modificações urbanas

de forma rápida e com adesão / apoio da opinião pública (SÁNCHEZ; BROUDEHOUX,

2013).

3. A criatividade como insumo para o desenvolvimento das cidades A criatividade existe desde sempre e pode ser definida de diversas formas. Uma delas diz

respeito à capacidade de gerar algo novo: Significa a produção por parte de uma ou mais pessoas, de ideias e invenções que são pessoais, originais e

significativas. Ela é um talento, uma aptidão. Ela ocorrerá toda vez que uma pessoa disser, realizar ou fizer algo novo, seja no sentido ‘algo a partir do nada’ ou no sentido de dar um novo caráter a algo já existente. A criatividade ocorre independentemente de esse processo levar ou não a algum lugar; ela está presente tanto no pensamento quanto na ação (HOWKINS, 2013, p. 13).

Ela também não é inédita na economia e tampouco uma atividade econômica, a não ser

que produza uma ideia com implicações econômicas ou um produto comerciável. Talvez por

isso a criatividade e sua capacidade transformadora ocupem atualmente o centro das discussões

sobre as cidades: o foco em sua utilização como recurso para potencializar o desenvolvimento

socioeconômico das cidades. Língua, gastronomia, lazer e moda podem e devem ser utilizados

como elementos diferenciadores dos lugares e também como insumos para o desenvolvimento

das cidades (LANDRY, 2008). Afinal, “uma cidade é formada por pessoas; quão mais criativas

elas forem e quão mais interconectada estiver essa criatividade, mais criativa será a cidade”

(REIS, 2012, p. 12) e maior será a probabilidade dela criar valor e trazer riqueza.

O arquiteto britânico Charles Landry foi pioneiro ao empregar o termo “Cidade

Criativa” em seus trabalhos. Já em 1995, ele percebia a criatividade como algo multidisciplinar,

transversal às atividades econômicas e estrutural às políticas de desenvolvimento. Para ele, a

criatividade abrange todos os setores presentes em uma cidade, percebida como um ser vivo,

cuja viabilidade urbana reside justamente na capacidade de adaptação e de resposta às

mudanças circunstanciais. E isso exige a combinação dos insumos presentes nas dimensões

econômica, cultural, social e ambiental (REIS, 2012). Segundo Landry (2008), a cultura é o

principal elemento diferenciador do processo criativo entre os lugares.

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A diversidade cultural não deve mais ser encarada apenas como um bem a ser valorizado.

Na percepção do extinto Ministério da Cultura (MinC), a exemplo de Landry (2008), a cultura

é um ativo fundamental para o desenvolvimento e deve ser entendida como recurso social,

produtora de solidariedades entre indivíduos, comunidades, povos e países e também como um

ativo econômico, capaz de construir alternativas e soluções para novas formas de produção de

riqueza (MinC, 2011).

De forma sintética e apropriando-nos de Landry (2008), percebemos as cidades criativas

como lugares que estimulem e incorporem a cultura da criatividade, valorize os recursos

culturais, correlacione-os com o potencial de desenvolvimento econômico e políticas públicas

transdisciplinares, com uma participação cidadã e criação de políticas que estimulem as

pessoas a pensarem, planejarem e agirem com imaginação para resolver os problemas urbanos

considerados, muitas vezes, prolixos e intratáveis (REIS, 2012).

Uma área que contempla esse olhar é a Economia Criativa que, apesar de não ser um

conceito recente, é considerada um dos conjuntos mais dinâmicos de atividades produtivas do

mundo. Ainda não há um consenso sobre a sua definição que se popularizou nos anos 2000,

mas a maioria dos países concordaria em afirmar que a Economia Criativa inclui a criatividade

e seus setores, abarcando a imaginação criativa em todas as suas formas. Apesar disso, países

como Austrália e Grã-Bretanha restringem os setores criativos às artes e aos segmentos

culturais (HOWKINS, 2013).

As discussões sobre Economia Criativa devem muito à Austrália e à Grã-Bretanha. Em

1994, o governo australiano, por meio do projeto Creative Nation, foi o precursor na defesa do

trabalho criativo como elemento central para o desenvolvimento econômico daquele país. Mas,

foi o esforço do Reino Unido que, ao identificar, em 1997, os setores mais competitivos da

economia global, permitiu que o conceito de indústrias criativas se propagasse pelo mundo

(FIGUEIREDO, 2015).

Economia Criativa e Indústrias Criativas não são sinônimos, mas estão relacionadas.

Indústrias criativas dizem respeito àquelas que têm origem na criatividade, habilidade e talento

individual, com potencial de geração de emprego e renda por meio de geração e exploração de

propriedade intelectual. Segundo Howkins (2013), um dos pioneiros no estudo dessa área, as

indústrias criativas ocupam o coração da economia criativa. Baseado no conceito de indústria

criativa proposto pelo Reino Unido, o autor apresentou uma lista de 15 setores que, segundo

ele, estão no cerne da economia criativa: propaganda, arquitetura, arte, artesanato, design,

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moda, filme, música, artes performáticas, editoração, pesquisa e desenvolvimento, software,

brinquedos e jogos, TV e rádio e jogos de computador. O autor selecionou esses setores

criativos, pois é possível atrelar os produtos, conteúdos e serviços criativos à propriedade

intelectual, permitindo uma certa segurança aos criadores de tais inovações, facilitando

também as transações comerciais em torno do material criativo gerado, já que uma das maiores

dificuldades da economia criativa é mensurar o valor de um bem ou serviço, por ser mais

simbólico.

No Brasil, há um outro olhar para a Economia Criativa, cujos debates remontam às

décadas de 1970 e 1980, “quando o economista Celso Furtado aprofundou em seus estudos a

relação entre cultura, criatividade, economia e desenvolvimento, levando essas reflexões ao

campo das políticas públicas durante a sua gestão no Ministério da Cultura”6 (FIGUEIREDO,

2015, p. 28).

Mas a consolidação da Economia Criativa como campo de pesquisa e de políticas

públicas no país ocorreu somente em 2011, quando foi criada a Secretaria de Economia

Criativa7 pelo MinC, que apresentou uma conceito diferente por entender que a terminologia

adotada é inadequada para o Brasil. Para o MinC, a tradução de “Creative Industries” para

“indústrias criativas” mostrou-se ineficaz para o país, pois se tende a achar que o termo

“indústria” refere-se às atividades fabris de larga escala e massificadas, e não a “setores”. O

primeiro passo foi definir os setores criativos para, em seguida, conceituar Economia Criativa

de forma a contemplar as especificidades do país. De acordo com o MinC, os setores criativos

compreendem atividades produtivas que têm como processo principal um ato criativo gerador

de um produto, bem ou serviço, cuja dimensão simbólica é determinante do seu valor,

resultando em produção de riqueza cultural, econômica e social (MinC, 2011, p.22). Esses

setores estão agrupados em cinco campos criativos: patrimônio (material, imaterial, arquivos e

museus); expressões culturais (artesanato, culturas populares, culturas indígenas, culturas afro-

brasileiras e artes visuais); artes de espetáculo (dança, música, circo e teatro); Audiovisual/do

6 Celso Furtado foi ministro da Cultura entre 1986 e 1988 durante o governo de José Sarney (1985-1990) e um dos principais entusiastas da identidade cultural brasileira. Disponível em: <http://www.academia.org.br/academicos/celso-furtado/biografia>. Acesso: 10 jan. 2019. 7 A Secretaria de Economia Criativa foi extinta em março de 2015. Fonte: http://www.cultura.gov.br/noticias-destaques/-/asset_publisher/OiKX3xlR9iTn/content/nota-de-esclarecimento-sobre-secretaria-de-economia-criativa/10883. Acesso: 10 jan. 2016.

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Livro, da Leitura e da Literatura (cinema e vídeo e publicações e mídias impressas) e criações

funcionais (moda, design e arquitetura).

A partir do conceito de setores criativos, o MinC definiu Economia Criativa partindo das dinâmicas culturais, sociais e econômicas construídas a partir do ciclo de criação,

produção, distribuição/circulação/difusão e consumo/fruição de bens e serviços oriundos dos setores criativos, caracterizados pela prevalência de sua dimensão simbólica. (MinC, 2011, p. 23).

A proposta do MinC vai ao encontro das percepções de outros autores brasileiros como

Figueiredo (2015), cuja definição é uma das mais utilizadas no país. Segundo o autor, ela deve

ser compreendida pela capacidade de mobilização produtiva do saber, da cultura, do

conhecimento e da criatividade das pessoas para a produção de um bem/serviço, cujo principal

atributo de valor é simbólico e intangível, pois tem origem cultural e cognitiva, e não material.

Embora o uso da criatividade como insumo para o desenvolvimento não seja prática

recente, foi impulsionado pela globalização, que ampliou a noção de espaço, afetou a

mobilidade dos profissionais, turistas e consumidores entre cidades e países, deixou mais

maleáveis as fronteiras espaciais entre o local e o global, acelerou as transações comerciais,

fragmentou as cadeias produtivas com acesso a mercados antes inviáveis e essa aproximação

do mercado global acabou favorecendo a produção, distribuição e consumo de bens e serviços

criativos (REIS, 2012). Mas, para isso acontecer, segundo a autora, deve-se ter em mente a

necessidade de circulação de informações diversificadas, a capacidade para transformá-las em

conhecimento, o acesso e o domínio às tecnologias digitais, o entendimento das leis do mercado

global e a certeza da dificuldade para transpor a concentração do controle dos canais de

distribuição.

A globalização ainda provoca uma falsa sensação de reordenamento das disparidades.

Na prática, não foi o que aconteceu. A emergência por uma cultura global alterou a realidade

social e trouxe impactos para muitas cidades. Algumas tornaram-se globais e se transformaram

em plataformas de produção das capacidades globais de comercialização, financiamento,

prestação de serviços e investimentos em nível global (SASSEN, 2008). Para atender às novas

exigências, as cidades – metrópoles em sua maioria – trocaram as atividades industriais pelas

empresas transnacionais de prestação de serviços altamente especializados, ligados em sua

maioria ao setor financeiro e da informação (CARVALHO, 2000). Tais serviços exigiram um

aumento no número de profissionais qualificados trazendo um efeito colateral: o aumento da

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informalidade em uma série de atividades. Em muitas dessas cidades, a desqualificação

profissional ainda é um obstáculo.

Para Fontes (apud PONTES, 2017), a informalidade vai muito além da ausência da

carteira assinada: ela esteve tradicionalmente associada ao que se chama de precariedade do

trabalho, um processo que relembra a crise da década de 1990. “Foi quando o país entrou numa

recessão profunda, tomou medidas que aprofundaram a crise com a ideia do ajuste fiscal, doa

a quem doer e, em geral, dói nos mais pobres, nos mais fragilizados no mercado de trabalho. É

bem parecido com o que está acontecendo” (FONTES apud PONTES, 2017, p.1). E a

informalidade continua crescendo no país. De cada 10 brasileiros que estavam trabalhando no

terceiro semestre de 2018, cerca de quatro atuavam na informalidade, segundo dados do

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Entre junho e setembro, havia 92,6

milhões de pessoas ocupadas. Desse total, 43% ou 39,7 milhões de pessoas não tinham carteira

assinada (FERNANDES; QUIRINO, 2018).

Com o aumento da informalidade e do desemprego, a partir de 2015, questiona-se se a

economia criativa é realmente eficaz para estimular o desenvolvimento do país em períodos de

crise. Os levantamentos da FIRJAN revelaram, no entanto, que a economia criativa obteve

resultados positivos nas crises anteriores. O cenário era diferente e o nível de incerteza, menor.

Até 2015, falava-se pouco em reforma trabalhista e a informalidade não era tão elevada como

agora. Só para se ter uma ideia, mais de 70% dos empregos gerados no primeiro semestre de

2018 não oferecem férias, 13º salário, FGTS ou licença-maternidade. Dos 9,4 milhões de

desempregados conseguiram um emprego neste período, 74% ficaram na informalidade.

4. Welcome to Rio e a Economia Criativa na Cidade Global No contexto da produção de uma cidade global (e da cidade-mercadoria, da marca-

cidade), a qual passa pela economia criativa, encontramos a série documental Welcome to Rio.

Transmitida pela BBC na última quinzena de junho e primeira semana de julho de 2014

(durante a Copa do Mundo no país), é composta por três episódios intitulados Peace, War e

Ingenuity e tinha por objetivo explorar “as favelas do Rio e a campanha militar do governo

para arrancar os traficantes de drogas do controle” e revelar “a verdade sobre a vida dentro das

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famosas favelas do Rio, por meio das vidas das pessoas que moram lá”8. Neste artigo, traremos

dois episódios para análise: Peace e Ingenuity.

Diversos personagens trazidos pela série são abordados a partir de um ponto de vista que,

embora não seja único, propõe um eixo para uma construção de sentidos: a capacidade de

mobilização produtiva da criatividade para a produção, distribuição e consumo de um bem ou

serviço cujo atributo de valor principal é simbólico, definição básica da Economia Criativa. E,

como os episódios têm por objetivo “revelar a verdade sobre a vida das favelas”, mostram

também a desigualdade socioeconômica e o aumento da informalidade. Observa-se, no entanto,

que a produção de sentidos atua muito mais no sentido de naturalizar ideais neoliberais,

conforme abordaremos a seguir.

O primeiro episódio, Peace, é filmado na favela do Cantagalo, Zona Sul do Rio de Janeiro

– “uma das primeiras favelas a serem pacificadas”9. Segundo a sinopse, o filme acompanha

dois homens: o primeiro, Rocky, é um carregador (de objetos, principalmente, mas também de

pessoas com dificuldades de locomoção) que também recolhe objetos usados (tanto produtos

inteiros como partes) para venda em um brechó que mantém na entrada da favela. O segundo,

Acme, é um grafiteiro (artista premiado internacionalmente com muitos trabalhos nas ruas do

Rio de Janeiro, no entanto, isso não parece estar claro no episódio). Há ainda um terceiro

personagem não identificado na sinopse: Subtenente Gripp, um policial do BOPE que atua na

implantação de UPPs. Os dois moradores da favela, Rocky e Acme, podem ser abordados

segundo a perspectiva da Economia Criativa: eles mobilizam criatividade para a produção de

bens e serviços com valor simbólico e intangível.

Rocky é o primeiro exemplo. No episódio, uma imagem feita com um drone mostra o

personagem colocando uma geladeira nas costas, pronto para subir a escadaria da favela. Ao

subir e ampliar o quadro, a ideia de uma escada infinita acompanhada por uma música que

desperta empatia pelo personagem e pelo seu trabalho pesado, pela dificuldade que é vencida

em cada curva. Rocky é uma figura conhecida na favela, recebe as compras dos moradores e

as leva para as casas de seus respectivos donos – trabalho que não é feito pelas transportadoras

8 Descrição extraída do site da série: <http://www.bbc.co.uk/programmes/b045h9nn>. Acesso em 02 fev. 2019. As traduções aqui contidas são de responsabilidade dos autores. 9 Fonte: < https://www.bbc.co.uk/programmes/b045h914>. Acesso em 03 fev. 2019. Segundo o site do Governo do Estado do Rio de Janeiro, a Unidade de Polícia Pacificadora do Cantagalo / Pavão-Pavãozinho foi instalada em 23 de dezembro de 2009, tendo sido a quinta unidade no município do Rio de Janeiro (Fonte: < http://www.upprj.com/index.php/historico>. Acesso em 03 fev. 2019).

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“tradicionais”, pois elas não sobem o morro (as empresas, inclusive os Correios, muitas vezes

não entregam as mercadorias porque as favelas são consideradas áreas de risco). Um trabalho

que traz um grande valor simbólico por facilitar, com a garantia da entrega, o acesso ao

consumo para uma parte da população, dentro de um contexto muito específico da cidade do

Rio de Janeiro e das reconstruções dos imaginários das favelas para o consumo da cidade-

mercadoria: moradores das favelas também consomem, portanto, estão inseridos na lógica

capitalista do bem-estar.

As relações na favela são exemplificadas também pelo brechó de Rocky: “Pode parecer

arriscado deixar todos os seus bens em uma pilha na rua, mas ninguém sonharia em tocar as

coisas de Rocky. É uma das alegrias de viver em uma pequena comunidade. Todos cuidam dos

negócios de todos”. Em uma representação da “cidade partida”, ele desce o morro para

garimpar o lixo no “asfalto” e buscar material para venda. “Está a apenas algumas centenas de

metros de distância, mas poderia ser um outro planeta. [...] Para nós, mesmo o lixo deles é um

tesouro”. O contraste é evidenciado pelas imagens dos prédios, das ruas asfaltadas, da praia,

de lojas e cafés, joias, marcas caras, pessoas tranquilas tomando sol e banho de mar enquanto

anda com seu carrinho de mão atrás de lixo para vender e, com o dinheiro, comprar comida

para a família. Apesar da dificuldade, ele dá o pouco dinheiro que tem para o neto se divertir

na praia. Mesmo que tenha a importância de seu trabalho reconhecida pela comunidade, a

polícia ordena que ele tire seu brechó da calçada, forçando-o a buscar uma forma alternativa

de venda para diminuir seu prejuízo. Viúvo, pai de três filhos, avô de dois netos, é um homem

forte que apresenta grande inclinação para o cuidado com o outro, que também é explorada no

documentário por meio de seu trabalho, trazendo um grande valor afetivo para as atividades e

para o personagem em si.

Rocky, ao ressignificar o que é descartado pela população do “asfalto”, impacta em

“outros setores e processos da economia e as conexões que se estabelecem entre eles,

desencadeando e incorporando-se a profundas mudanças sociais, organizacionais, políticas,

educacionais e econômicas” (REIS, 2012, p. 43), reforçando uma das funções da Economia

Criativa. O negócio criado por ele tem potencial para promover uma série de mudanças, mas a

ação da polícia evidencia que ainda há pouca disposição para reconhecer o efeito multiplicador

de iniciativas como essa na organização e na dinâmica econômica de diversos setores.

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No que diz respeito a Acme, sua arte, o grafite, possui relação estreita com o espaço em

que vive. As histórias narradas no episódio dão significado ao trabalho do artista, sua história

de vida, seu engajamento político e social e sua relação com a favela: As emoções se movem junto com histórias de significação e, por meio disso, se associam e moldam

relacionamentos com objetos, como imagens e gêneros, um texto e/ou as instituições que cercam o texto, de maneira sistemática. Elas também delineiam e dão sentido aos objetos, incluindo corpos, comunidades, práticas sociais e regimes políticos, através de processos discursivos. Desta forma, elas também inspiram percepções de sujeitos documentais. (SMAILL, 2010, p.6)

Seu trabalho é apresentado como a paixão que o ajudou a não entrar para o tráfico. Ele

é, no documentário, um artista crítico ao sistema, tanto mobilizando os vizinhos contra as

demolições promovidas pelo estado quanto participando de manifestações ou até mesmo

usando seu trabalho nas ruas como forma de contestação política, fazendo emergir a relação

afetiva dos moradores com a favela, colocada no episódio também como alteridade a ser

consumida e como possibilidade de construção empática para quem assiste ao documentário.

As ruas do Cantagalo aparecem como “galerias” do trabalho de Acme, uma construção da

possibilidade de consumo do trabalho do artista por meio da experiência turística nas ruas das

favelas. E, embora essas “galerias” sejam a céu aberto e não gerem renda diretamente para o

artista, elas contribuem para a movimentação do consumo nas e das favelas – uma questão

abordada no episódio, que denuncia neste movimento turístico o aumento da desigualdade e

das dificuldades para os moradores: “E o turismo na favela significa dólares turísticos. Mas

esse afluxo de turistas e agentes imobiliários está aumentando o custo de vida para o resto de

nós”.

No segundo episódio aqui em análise, terceiro da série, a questão é mais claramente

explorada: o título, Ingenuity, significa “someone's ability to think of clever new ways of doing

something. Intelligence”10. Em português, poderia também ser traduzido como

“engenhosidade”. A sinopse destaca “a desenvoltura de alguns dos moradores mais pobres do

Rio. Vivendo em seu juízo, os moradores da favela são adeptos de explorar quaisquer

oportunidades que surjam em seu caminho”11 – e, nessa “desenvoltura”, a capacidade de

mobilização produtiva da criatividade que alia os saberes e as formas de vida dos personagens,

mas que também naturaliza a desigualdade e romantiza a informalidade na narrativa

10 Fonte: < https://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/ingles/ingenuity?q=INGENUITY>. Acesso em 03 fev. 2019. 11 Fonte: < https://www.bbc.co.uk/programmes/b046s0lj>. Acesso em 03 fev. 2019.

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documental, “uma nova geração de empreendedores que só pode ser feita no Brasil”, de acordo

com a narração.

Quatro personagens são apresentados no episódio, dentre eles as duas únicas mulheres

de toda a série. É interessante observar esse recorte de gênero, considerando que a taxa de

desocupação entre mulheres é maior que entre homens – e a discrepância aumenta quando se

trata de mulheres negras , “celebrar” uma suposta engenhosidade é também uma forma de

reiterar o preconceito e o machismo no mercado de trabalho, à medida que constrói para as

mulheres uma alternativa por meio do trabalho informal como “realização de sonhos”, além

deslocar a função do estado na erradicação da pobreza, a qual passa a ser tão somente função

do indivíduo, em uma perspectiva neoliberal de um ideal meritocrático.

Rose é uma ex-catadora do aterro sanitário de Gramacho, fechado oficialmente em 3 de

junho de 2012. Segundo a narração, “quando eles ouviram os primeiros rumores de que o aterro

iria fechar, eles decidiram iniciar seu próprio negócio, um centro de reciclagem em seu próprio

quintal”. Ela então diz: “no momento então que falou ‘o aterro vai fechar’, foi aonde eu passei

a pensar, pensei em sobreviver, eu ter da onde tirar pra mim, pra sustentar meus filhos, minha

família”. Marcos, marido de Rose, sai em busca de lixo, e diz que não vê aquilo como lixo,

mas como dinheiro. A narração destaca, que eles não reciclam apenas os materiais

“tradicionais”: reciclam também comida, tanto para dar como alimento às galinhas e porcos

quanto para alimentar a família e doar para outras pessoas.

No caso de Rose, é inegável o papel da criatividade no negócio criado por ela:

“entendemos que a valorização da cultura local em prol de uma especificidade criativa

possibilita a atração de investimentos que buscam o ‘diferente’, o ‘particular’, permitindo,

assim, que os lugares se insiram de formas diferenciadas no processo de globalização”

(FIGUEIREDO, 2015, p. 34). A exemplo do brechó do Rocky, é necessária uma visão

sistêmica para entender os desdobramentos do centro de reciclagem em outros setores.

A construção da empatia no documentário passa ainda pelo ideal meritocrático e silencia

os problemas decorrentes do trabalho informal ao destacar apenas o lucro que ele gera como

grande benefício. O esforço e os problemas de Rose para iniciar e gerenciar um negócio são

tratados com naturalidade, inclusive pela própria personagem. A narrativa celebra os

“empreendedores da favela”. Enquanto imagens de pessoas trabalhando nas ruas, no trânsito,

no lixão, pessoas contando muitas notas de dinheiro, são exibidas, a narração diz: “Há

empreendedores da favela em todos os lugares que você olha no Rio. Vendendo biquínis na

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praia, cortando cabelo nas favelas ou saciando sede nos engarrafamentos. É outra das nossas

liberdades de favela. Além da regulamentação do governo, os empresários das favelas não

precisam preencher nenhum formulário nem obter permissão. Eles podem simplesmente

continuar lucrando. Rose e Marcos são empreendedores favelados de muito sucesso. Eles estão

dando as ordens agora. Bem, Rose, está, pelo menos...” E, apesar disso, o reconhecimento de

que ela se submete a uma lógica machista de negócios e tem que atribuir a parte mais

importante das negociações ao marido, que não tem a mesma desenvoltura.

A segunda personagem feminina é “Thamy Delicia é uma estrela em ascensão na cena

do funk da favela. No entanto, suas letras explícitas e suas danças provocantes significam que

ela precisa ajustar sua conduta se quiser sair da favela e conquistar o respeito da mãe

evangélica”. A “engenhosidade” de Thamy se dá em sua “habilidade” de se adequar ao que

seria esperado, em termos mercadológicos e de imagem, para que ela faça sucesso fora das

favelas – e, nessa ideia, o ideal de que o sucesso é atingido apenas quando se está no

mainstream, mesmo que isso signifique “abrir mão” de certas características que compõem o

imaginário do funk nas favelas – e, talvez, de parte de sua identidade de funkeira (que ela

reconhece como tal, conforme destaca em uma de suas falas com a mãe). As novas identidades

“docilizam” o corpo de Thamy e sua música – assim como sua mãe, que busca claramente

estabelecer um controle sobre a personagem.

Foucault (1999) destaca a descoberta do corpo como objeto e alvo de poder durante a

época clássica, que gerou grande atenção dedicada ao corpo. Segundo o autor, “é dócil um

corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e

aperfeiçoado” (FOUCAULT, 1999, p.172). Qualquer sociedade impõe limites, proibições ou

obrigações ao corpo, estabelecendo poder sobre ele, mas o poder disciplinar que se estabelece

sobre o corpo fabrica corpos submissos, “dóceis”, sendo a domesticidade “uma relação de

dominação constante, global, maciça, não analítica, ilimitada e estabelecida sob a forma da

vontade singular do patrão, seu ‘capricho’” (idem).

Thamy vê seu corpo como “capital”, como instrumento e veículo de ascensão em seu

trabalho e como estilo de vida, tal como Valesca Popozuda e outras funkeiras (CAETANO,

2015). Sua mãe, no entanto, tenta domesticá-lo, discipliná-lo, submetê-lo ao seu controle. O

episódio o transforma em ativo intangível da marca-cidade, disponibilizando-o para consumo

mediado pela tela. O corpo de Thamy é um corpo em disputa. Sua docilização passa, ainda,

pela adequação ao mercado: “você tem que ser duro nos negócios. Você tem que ver o caminho

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que o vento está soprando e agir de acordo. Ela tem trabalho a fazer se quiser chegar ao

mainstream. Ela gravou uma música com letra mais leve e hoje está filmando o clipe”. O triunfo

da personagem ao final do episódio “corrobora” a ideia do “mérito” pelo seu esforço, sua

“coragem vista como virtude” para “perseguir seu sonho”, nos termos da narração, no processo

de se enquadrar no que era esperado pelo mainstream.

Os outros dois personagens do episódio trabalham na praia: Jorge, um caça-tesouros que

garimpa a areia da praia em busca de joias para vender; e Assis, um vendedor de abacaxi que

deixou a família em João Pessoa, Paraíba, para aproveitar o “momento do Rio de Janeiro” e

trabalhar. A fé do carioca também faz parte de sua engenhosidade, numa construção empática

que poderia envolver a ideia de uma ingenuidade: “fé que amanhã será um dia lindo, que vamos

vender mais petiscos para os turistas, que o mar vai desistir de seu tesouro se pedirmos com

jeitinho a ele”.

Jorge fala sobre sua fé em São Jorge e em seu garimpo no mar. Ele brinca com os achados

sem valor, mas diz que é um trabalho que o deixa feliz e que em um bom dia pode conseguir

uma joia no valor de R$2000 a R$3000. O amor pelo trabalho também passa pelo cuidado aos

banhistas: Jorge avisa as pessoas sobre as condições do mar e seus perigos, demonstrando um

cuidado com o outro que, segundo ele, vem da história de quem ama a família e perdeu um

filho, o que também constrói uma empatia com o personagem. O personagem também triunfa

no final: sua “fé” é recompensada com um cordão de ouro.

Ao som de The Wind of Change, de Simon Stewart, a narração destaca: “Há ganhadores

e perdedores nas preparações da nossa Copa do Mundo e Olimpíadas. Para cada emprego

perdido no lixão, haverá mais dólares de turistas para perseguir as praias. E as pessoas estão

vindo para o Rio de todo o Brasil determinados a lucrar”. Na música e na fala, a esperança do

ganho financeiro, ainda que seja na informalidade, e a fé na mudança. Assis é então apresentado

como um super-herói: “é um pássaro? É um avião? Não, é o vendedor de abacaxi”. Fantasiado

como abacaxi, Assis esbanja criatividade em seus improvisos e simpatia durante suas vendas.

Ele naturaliza seu sacrifício de deixar a família para trabalhar: “todo grande empresário acaba

por levar uma vida solitária também, isolada, pelo fato da dedicação ao trabalho”, diz. E,

segundo a narração, “de vendedor de abacaxi a vendedores ambulantes de chapéu, a praia é o

nosso local de trabalho”. A cidade, em seu paraíso idílico, é transformada também em meio de

subsistência, em uma nova glamourização da informalidade como oportunidade, e em espaço

de troca monetária entre trabalhadores brasileiros e turistas, tendo nos megaeventos a

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construção de imaginários de oportunidades. Assis, no entanto, destaca que o inverno e a chuva

dificultam seu trabalho e a solidão durante a comemoração de seu aniversário terminam com a

decisão do personagem de voltar para João Pessoa. Imagens de Assis feliz com seus filhos e a

promessa de volta ao Rio são exibidas.

As narrativas se desdobram, nesse sentido, para mostrar um suposto “espírito

empreendedor” que se desenvolve para além das leis e políticas públicas, ou, se pensarmos de

forma crítica, por meio de uma romantização do trabalho precário em prol de um ideal

meritocrático e talvez até da construção da não-necessidade da presença do estado. Os

imaginários sobre a economia criativa e a cidade global fazem parte dessa “romantização” na

construção da cidade como organização e como mercadoria.

5. Considerações Finais Os documentários internacionais de televisão atuam na produção de alteridades e

localidades que, de uma forma ampla, servem a uma lógica de consumo neoliberal – embora

muitas vezes tragam discursos dissonantes em relação aos almejados para a “cidade ideal”. De

todo modo, em consonância com os megaeventos, são ferramentas que constroem sentidos

sobre a reconfiguração das cidades em um projeto que desloca os sentidos sobre a “coisa

pública”, contribuindo à implantação de políticas econômicas voltadas para a privatização, para

o mercado e para a comoditização do espaço público – em outras palavras, podem contribuir

para a construção de uma opinião favorável e de adesão pública às excepcionalidades, ao senso

de urgência e às modificações urbanas, pois, mesmo quando se vê deslocamentos nas narrativas

da marca-cidade, as críticas ao projeto são muitas vezes incipientes ou ainda podem operar na

naturalização da pobreza e de seu consumo, assim como em estereótipos de gênero, conforme

buscamos demonstrar neste trabalho.

Todos os personagens retratados nos dois episódios analisados neste artigo evidenciam

ainda que os imaginários da cidade global, construídos também sob a perspectiva do

crescimento econômico a partir da economia criativa, reiteram a lógica mercantilista à qual a

cidade vem sendo submetida a partir também de estratégias de marketing e relações públicas

na construção de uma marca. E, apesar de alguns deslocamentos das narrativas em relação à

marca “oficial”, há construções outras que servem à mesma lógica mercantilista, produzindo a

cidade e os megaeventos como oportunidades de troca monetária e trazendo com isso os efeitos

discriminatório, espacial e de ritmo (BRUNO; GUINCHARD, 2009).

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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019

20 www.compos.org.br

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Apesar de parecer uma perspectiva desanimadora, Sassen (2005) reitera que há, nesse

contexto, a possibilidade de surgimento de uma geografia política paralela, para novas

operações culturais e subjetivas, abrindo espaço para novas reinvindicações, especialmente

para a constituição de direitos sobre o lugar – ou, no limite, de novas formas de cidadania. E,

afinal, nesses “nós” que compõem a complexa rede de construção da marca-cidade-global

também estão em seus moradores e nas lutas pelo direito à cidade e, quem sabe, nossas vozes

locais possam hoje ser ouvidas para que esses projetos neoliberais passem a ser contestados na

busca pelo direito à cidade.

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XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019

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