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Weffort - A Formação Do Pensamento Político Brasileiro

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FORMAÇÃO DOPENSAMENTO POLÍTICO

BRASILEIRO

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FRANCISCO C . WEFFORT

FORMAÇÃO DOPENSAMENTO POLÍTICO

BRASILEIRO

IDÉIAS E PERSONAGENS

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© Francisco C. Weffort, 2011

Versão Impressa

Diretor editorial adjuntoFernando PaixãoCoordenadora editorialGabriela DiasEditores assistentesLeandro Sarmatz e Baby Siqueira AbrãoPreparação de textoSérgio AlcidesRevisãoIvany Picasso Batista (coord.), Ana Luiza Couto e Luicy Caetano de OliveiraÍndice remissivoVerba EditorialProjeto gráfico e capaPaula AstizEdição de arteAntonio PaulosAssistenteClaudemir CamargoEditoração eletrônicaPaula Astiz Design e Divina Rocha CortePesquisa iconográficaSilvio Kligin (coord.) e Angelita CardosoMapaMaps World

Versão ePUB 2.0.1

Tecnologia de Educação e Formação de EducadoresAna Teresa RalstonGerência de Pesquisa e DesenvolvimentoRoberta CampaniniCoordenação geralAntonia Brandao Teixeira e Rachel ZaroniCoordenação do projetoEduardo Araujo RibeiroEstagiáriaOlivia Do Rego Monteiro FerraguttiRevisãoCecília Brandão Teixeira

Ao comprar um livro, você remunera e reconhece o trabalho do autor e de muitos outrosprofissionais envolvidos na produção e comercialização das obras: editores, revisores,diagramadores, ilustradores, gráficos, divulgadores, distribuidores, livreiros, entre outros.Ajude-nos a combater a cópia ilegal! Ela gera desemprego, prejudica a difusão da cultura eencarece os livros que você compra.

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.

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W421f | Weffort, Francisco C. (Francisco Weffort). Formação do pensamento político brasileiro: idéias epersonagens/Francisco C. Weffort - São Paulo: Ática, 2011.Inclui bibliografia: 1. Ciência política - Brasil - História. 2. Ciência política - Brasil - Filosofia. 3. Brasil -Política e governo. 4. Intelectuais - Brasil. 5. Brasil - Civilização. 6. Cultura -Brasil. I. Título.06-0325. | CDD 320.981 | CDU 32(81)1ª Edição - Arquivo criado em 21/07/2011e-ISBN 9788508149193

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AGRADECIMENTO

O autor agradece o apoio institucional do Conselho Nacional de DesenvolvimentoCientífico e Tecnológico (CNPq), da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo àPesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) e das Leis de Incentivo à CulturaFederal (n.º 8313, 23/12/1991) e do Estado do Rio de Janeiro (n.º 1954/RJ,26/1/1992).

Agradece também o patrocínio da Bradesco Seguros e do Instituto 21 Embratel, emetapas sucessivas da pesquisa que deu origem a Formação do pensamento políticobrasileiro.

Francisco C. Weffort

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SUMÁRIO

Prefácio

Parte I - As duas faces do OcidenteCapítulo 1 - As escritas de Deus e as profanasCapítulo 2 - Tempos dos descobrimentosCapítulo 3 - Conquistadores e índios

Parte II - Brasil ColôniaCapítulo 4 - Século XVI - Jesuítas e colonos: tempos de Manuel da NóbregaCapítulo 5 - Século XVII - Antônio Vieira: a palavra e o fogoCapítulo 6 - Século XVIII - Verney e Pombal: Ilustração e despotismo

Parte III - Brasil ImpérioCapítulo 7 - Primeiro Reinado - José Bonifácio e Bernardo de Vasconcelos:

liberalismo e conservadorismoCapítulo 8 - Segundo Reinado - José de Alencar: indianismo e conservadorismoCapítulo 9 - Segundo Reinado - Joaquim Nabuco: a escravidão e a "obra daescravidão"

Parte IV - Primeira RepúblicaCapítulo 10 - Euclides da Cunha: A República e o sertãoCapítulo 11 - Oliveira Viana: Transição da Primeira à Segunda República

Parte V - Segunda RepúblicaCapítulo 12 - Gilberto Freyre: o povo mestiçoCapítulo 13 - Desenvolvimento e democracia: Helio Jaguaribe e os primeiros anos

do ISEB

Posfácio - História das idéias e do pensamento político

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Bibliografia

Roteiro de imagens

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PREFÁCIO

O leitor encontrará, neste livro, intelectuais e protagonistas históricos quecontribuíram para formar o pensamento brasileiro, como Antônio Vieira, JoséBonifácio, Joaquim Nabuco, Euclides da Cunha, Oliveira Viana e Gilberto Freyre,entre outros. Encontrará também, em meados do século XX, os jovens fundadores doInstituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), entre os quais Helio Jaguaribe eRoland Corbisier, e, ao lado deles, os jovens economistas Celso Furtado e RobertoCampos.

Junto dos intelectuais estarão, conforme as épocas, homens de ação como D.Henrique, o Marquês de Pombal, D. João VI, D. Pedro II e Getúlio Vargas, cujosnomes são emblemas de períodos inteiros da história luso-brasileira. Essesintelectuais e protagonistas, ao lado de outros cujas ações e obras serão suscitadaspela descrição histórica, expressam o pensamento brasileiro, formado desde onascimento do país até meados do século XX, quando o Brasil começou a adquirir operfil urbano e industrial que conhecemos hoje.

Sigo aqui um método similar ao de um livro que organizei, com a participação decolegas da USP, como introdução ao pensamento político europeu, destinado aestudantes de história, economia, ciências sociais e direito.1 Espero que o livro que oleitor tem agora em mãos e que é de elaboração pessoal possa servir como umaintrodução ao pensamento político brasileiro. Em ambos, a convicção central é deque as idéias se revelam não apenas nas palavras, mas também nas ações, com asquais têm uma relação de parentesco, em alguns casos de direta continuidade.Assim, elas serão mais bem compreendidas se as estudarmos na história da qualsurgiram.

Não obstante as semelhanças, não se pode passar por alto de algumasparticularidades da história das idéias brasileiras quando comparada com a européia.A primeira dessas particularidades é que nossas elites pensaram o Brasil durantemuito tempo como um "país sem povo". Essa é uma expressão do século XIX, masseu significado social e político está comprometido com uma história que vem desdeas mais remotas origens do Estado português. Como observou Raymundo Faoro, atese da origem popular do poder não vingou no pensamento português, "não obstanteseu auspicioso aparecimento na Revolução de Avis".2

Na colônia, os jesuítas reconheceram negros e índios como parte da humanidade,ponto de partida essencial do pensamento brasileiro. Mas, imersos no espírito

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medieval da Contra-Reforma, não podiam reconhecê-los como povo. Quanto aospovoadores brancos, não tiveram número ou implantação suficientes, dispersos naimensidão do território, para permitir ao pensamento da época reconhecê-los comouma sociedade articulada. Depois de quase um século desde a proclamação daIndependência, boa parte dos intelectuais e das elites não reconhecia como povo asgentes que tinha diante dos olhos. Entendia que havia que criá-lo como preliminarpara a criação da Nação.

A segunda peculiaridade da história das idéias no Brasil diz respeito à emergênciatardia do Estado, como realidade e como objeto de pensamento. Enquanto a reflexãosobre o Estado moderno começou na Europa do Renascimento, em Portugalcomeçou no século XVIII, na Ilustração pombalina. No Brasil, só começou no séculoXIX, com D. João VI, e na Independência, com José Bonifácio.

A terceira diferença do pensamento político brasileiro vem de sua herança de umaconcepção medieval da totalidade da vida social, com sua característica mistura deaspectos sociais, culturais, econômicos e políticos. O pensamento políticoconfigurou aqui um estilo próprio que o tornou durante muito tempo indistinguíveldo pensamento social. Só na Segunda República teremos um pensamento político emsentido específico.

É que apenas na Segunda República, a partir dos anos 1920 e 1930, teremosresolvidas as velhas dúvidas sobre a existência do povo e da sociedade. Terminava agrande época da formação do Brasil: três séculos de colônia, um século de Império,quase meio século de República agrária. Começavam tempos de mudança do Estadonacional, criado no Império e consolidado na velha Republica oligárquica.Começavam também tempos de modernização, industrialização, urbanização,expansão da educação, criação de novas universidades. É preciso lembrar que atéentão as atividades universitárias no país eram restritas às grandes escolasprofissionais, de Direito, Medicina e Engenharia, em geral formadas no Império.

Para o entendimento da transformação do Brasil rural em país urbano e industrialforam decisivas as primeiras obras de Oliveira Viana, Caio Prado Jr., GilbertoFreyre e Sérgio Buarque de Holanda. Esses autores não foram - nem pretenderam ser- cientistas políticos. Foram sociólogos, eventualmente antropólogos, e se dedicarama uma abordagem histórica e cultural da sociedade, da mestiçagem, do povo e dasclasses sociais. Foram, sobretudo, ensaístas.

Alguns deles, com forte influência das idéias e sugestões de Joaquim Nabuco eEuclides da Cunha, comprometeram-se com o estudo da formação histórica e socialbrasileira, dando continuidade aos velhos temas que vinham da colônia e do Império- temas para cuja superação contribuíram. Em sutil dialética de continuidade esuperação, substituíram os historiadores, romancistas e poetas no lugar de

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preeminência intelectual que haviam ocupado no Império e na República agrária.Acertaram contas com antigas dúvidas sobre o passado brasileiro, tornando-se, porisso, pioneiros das ciências sociais. E assim estabeleceram as bases para oreconhecimento ulterior de uma dimensão política do pensamento social.

Embora não esgotem a rica bibliografia do ensaísmo brasileiro, os primeiroslivros desses autores foram formadores de nossa intelectualidade durante o séculoXX. Há que mencionar, em especial, Casa grande & senzala (Gilberto Freyre),Raízes do Brasil (Sérgio Buarque de Holanda) e Formação do Brasil contemporâneo- colônia (Caio Prado Jr.). E a essa pequena lista, consagrada em conhecidaavaliação crítica de Antonio Candido, há que acrescentar Populações meridionais doBrasil (Oliveira Viana), resgatada do esquecimento por estudos mais recentes.3Grande parte do pensamento social e político da segunda metade do século XX, acomeçar pelos pensadores reunidos em torno do Instituto Superior de EstudosBrasileiros (ISEB), é devedor da influência desses autores e, em particular, dessasobras.

Este livro nasceu, portanto, da convicção de que narrar a história das idéias de umpaís exige contar, mesmo que em traços largos, a história de sua formação política esocial. Acredito que faz uma substancial diferença reconhecer, por exemplo, que oponto de partida do pensamento brasileiro se acha no século XV, com o Infante D.Henrique, e não no XVI, com Maquiavel, ou no XVII, com John Locke. A menção àépoca do Infante evoca sinais do frágil Renascimento português e, sobretudo,ressonâncias de um medievalismo que ainda permanecem na cultura brasileira. Nãopor acaso, a primeira tradução portuguesa de O príncipe, de Maquiavel, é do séculoXVIII, a era de Pombal. Como sabemos, as influências modernizantes européiassempre chegaram a Portugal com atraso. E no Brasil, pelo menos até aIndependência, essas influências chegaram com atraso ainda maior.

Se as circunstâncias históricas permitiram que se formasse, entre nós, umpensamento original, isso não significa que este se coloque fora dos paradigmasocidentais. Nascemos da última Idade Média européia, a mesma que abriu o mundoaos tempos modernos, dando origem a uma radical ambigüidade da culturabrasileira, que nunca pôde renegar os estilos da tradição nem evitar inteiramente asvicissitudes e os contenciosos da modernidade. A partir de fins do século XVIIIherdamos tinturas liberais de uma cultura erudita francesa. No século XIX imitamosos ingleses na organização política do Império. Na passagem para o século XXimitamos os americanos na República. Mas tudo isso sempre se misturou a umiberismo cultural, mais antigo e mais profundo, ao qual voltamos sempre. Issoocorreu, por exemplo, na segunda República, a de Vargas, já no século XX.

Começando antes dos descobrimentos, nossa história esteve sempre acompanhada

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de projetos, diagnósticos, às vezes meros devaneios que, por algum motivo,assumiram significação geral. Não há como esquecer que algo foi pensado sobre oBrasil antes mesmo que este existisse. Aqui, como em outros países ibero-americanos, "o ideal precedeu o material; o signo, as coisas; o traçado geométrico doplano, as nossas cidades e a vontade política de explorar, o sistema produtivo".4

Não é preciso, porém, recorrer a nenhum excesso de "construtivismo" parareconhecer, na história, idéias e projetos sobre o país. Se o Brasil foi sempre um paísconduzido por idéias, também é verdade que estas estiveram sob a influência dascircunstâncias sobre as quais deveriam atuar. Mais do que uma sucessão deargumentos conduzidos por sua própria lógica, as idéias que nos conduziram até aquialimentaram-se da experiência, como aliás é próprio do espírito ibérico. Nessesentido, estudar a história das idéias em nosso país é, quase obrigatoriamente, ummodo de estudar o desenvolvimento de sua sociedade e da cultura.

Partindo de uma descrição da cultura dos descobrimentos, este livro termina comuma apresentação do nacionalismo e do desenvolvimentismo dos governos deGetúlio Vargas e de Juscelino Kubitschek. E aqui convém lembrar que, na históriadas idéias, como em outras histórias, é sempre mais fácil decidir quando começamdo que quando acabam. Em que momento do entardecer levanta vôo a célebre corujade Minerva de que falava Hegel? Em que momento se encerra uma grande época dahistória? As épocas mais próximas de nós são sempre de limites incertos, passíveisde muita dúvida. Podemos concordar, por exemplo, que as idéias modernaseuropéias começam com Maquiavel, iniciando um longo processo de secularizaçãodo Estado e da sociedade. Mas quando terminam? Com Marx e sua crítica docapitalismo ou com os críticos de Marx e o neoliberalismo? O ponto de partida temalgo de obrigatório; o de chegada, um tanto de arbitrário. A mesma dúvida pode tersentido aqui. Se acreditamos saber quando começa a formação do pensamento sociale político brasileiro, mais duvidoso é decidir quando essa formação se completa.

Em todo caso, acompanharei as idéias que considero mais relevantes na formaçãodo Brasil. Quero dizer a formação rural do Brasil, que vem do século XVI e secompleta – e se exaure – em meados do século XX. Interessa, portanto, a este livro, ahistória que foi vivida e pensada por personagens e intelectuais como José Bonifácioe Joaquim Nabuco. Os personagens deste livro escreveram e atuaram fora dos murosuniversitários ou, no caso dos religiosos, fora dos muros das ordens a quepertenciam, como Manuel da Nóbrega e Antônio Vieira. Nesse sentido, tais nomes,que soam tão antigos, têm algo em comum com outros mais recentes, como os deOliveira Viana, Caio Prado Jr. e Helio Jaguaribe. Para o período que me interessaaqui, eles atuaram como intelectuais, de preferência, fora das instituições nas quais

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se formaram. Cabe lembrar, a propósito, que nessa época economistas e sociólogosainda eram formados nas escolas de Direito ou, eventualmente, de Engenharia.

Não podemos, portanto, tratar neste livro das idéias que vêm dos anos 1950 emdiante, e que nos chegaram, em geral, das obras de professores e pesquisadoresuniversitários. Servem de exemplos os nomes de Florestan Fernandes, FernandoHenrique Cardoso, Wanderley Guilherme dos Santos, Bolívar Lamounier e FabioWanderley Reis. Raymundo Faoro, que de profissão era procurador de Estado, é umaexceção nessa regra geral, tendo construído obra importante de historiador e ensaístapolítico.

Vale acentuar que, restringindo meu estudo até meados dos anos 1950, limito-metambém às obras de juventude de Gilberto Freyre, Caio Prado Jr., Sérgio Buarque deHolanda e Helio Jaguaribe. Não está no meu campo de observação, portanto, a partemais madura de sua vasta produção intelectual pós-1950 e sua enorme influênciauniversitária. Esse estudo exigiria uma análise da formação e desenvolvimento dasuniversidades, sobretudo da pós-graduação, que vai além de minhas possibilidadesneste livro.5

Para a escolha dos autores que apresento aqui, tomei em consideração aprecedência e a influência na formulação de idéias relevantes para a formação dopovo e do Estado. Quanto aos protagonistas, interessou-me a influência prática queexerceram sobre esses temas em sua época. Vieira e Nabuco, por exemplo, foramintelectuais e homens de ação. Gilberto Freyre e Sérgio Buarque adequam-se melhorà descrição da figura típica do intelectual. D. Henrique, Pombal e Getúlio Vargaspertencem mais à categoria do homem de ação do que à do intelectual. Portanto, écomo homens de ação que me interessam aqui, mais do que por seus eventuaisescritos. De um modo ou de outro, tanto pelas idéias como pelas ações, são figurasemblemáticas da história e da cultura.

O ponto de partida mais distante deste livro foram os cursos básicos de Históriadas Idéias e de Instituições Políticas Brasileiras, da velha cátedra de Política daUniversidade de São Paulo (USP), onde me formei e trabalhei como professor, sob adireção de Lourival Gomes Machado e Paula Beiguelman.6 O primeiro desses cursosera dedicado à história das idéias européias; o segundo, a uma plêiade de pensadoresbrasileiros dos anos de 1920 a 1950. Também na universidade conheci aContribuição à história das idéias no Brasil, de João Cruz Costa, e a Formação daliteratura brasileira, de Antonio Candido, que me chamaram a atenção por suassugestões para compreender a história e a cultura política. A essas obras juntou-se,mais recentemente, a influência de alguns ensaios e pesquisas de Raymundo Faoro,Wanderley Guilherme, José Murilo de Carvalho e Bolívar Lamounier. AntônioPaim, Alfredo Bosi, Luiz Jorge Werneck Vianna e Gildo Marçal Brandão são outros

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dentre os nomes que gostaria de mencionar aqui, porque minha dívida para com elesé maior do que dão a perceber as notas de rodapé.

Comecei o projeto para este livro na Universidade de Notre Dame (Indiana), ondeestive, com apoio do CNPq, durante o primeiro semestre de 2003. No segundosemestre de 2003 e durante o ano de 2004 continuei a pesquisa no Instituto deEstudos Políticos e Sociais (IEPES), com o inestimável apoio do acesso ao RealGabinete Português de Leitura. Contei ainda, para as primeiras partes do trabalho,com o apoio da Fundação Bradesco (lei estadual 1954/92) e, para as partes seguintes,do Instituto 21, da Embratel (lei federal 8313/91). Também me beneficiei dasconversas semanais com meus alunos do Programa de Política Comparada, doIFCS/UFRJ, onde me encontro, com o apoio da FAPERJ. A todos eles, fica aqui meuagradecimento. Um muito obrigado que devo também aos professores Wanderley deSouza, Pedricto Rocha Filho, Francisco Carlos Teixeira da Silva, Neyde Theml eConceição de Góes.

Quero agradecer a Helio Jaguaribe, com quem tive o privilégio de conversar quasetodo dia, no IEPES, sobre diferentes momentos da realização deste trabalho. HelenaSevero, minha mulher, leu partes do texto e me fez valiosas sugestões. GildoBrandão, José Álvaro Moisés, Jorio Dauster e Everardo Moreira Lima me ajudaramcom a leitura paciente e minuciosa de alguns capítulos. Minha filha, Helena FreireWeffort, e minha secretária, Regina Cortes Lima, digitaram as notas de minhasleituras com enorme eficiência, sendo que Helena, ao final, me ajudou a corrigir asnotas de rodapé. Como sempre acontece, o privilégio do apoio de tantos amigos nãome desculpa pelos eventuais erros que, onde existirem, são apenas meus.

Francisco C. Weffort, Rio de Janeiro, fevereiro de 2006.

1. WEFFORT, Francisco C. Os clássicos da política. São Paulo: Ática, 1989. 2 v.2. FAORO, Raymundo. Existe um pensamento político brasileiro?. São Paulo: Ática, 1994. p. 27 e 48.3. Além de Antonio Candido, em introdução a H OLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo:

Companhia das Letras, 2004, é oportuno mencionar aqui coletânea organizada por SANTIAGO, Silviano.Intérpretes do Brasil. Rio de Janeiro: Aguilar, 2000. Silviano Santiago juntou em sua coletânea 11 livrosque publicou na íntegra, dos quais fazem parte as quatro obras que menciono acima.

4. São palavras do ensaísta uruguaio Angel Rama (1926-1983), citado por VIANA, Luis Jorge Werneck.Americanistas e iberistas: a polêmica de Oliveira Viana com Tavares Bastos. In: B ASTOS, Elide Rugai;MORAES, João Quartim de (Org.). O pensamento de Oliveira Viana. Campinas: Editora da Unicamp, 1993.p. 352. Cf. RAMA, Angel. La ciudad letrada. Montevideo: Comission pro Fundacion Internacional AngelRama, 1984.

5. Uma boa descrição da institucionalização universitária das ciências sociais no Brasil depois de 1950 podeser encontrada em TRINDADE, Helgio. Social Sciences in Brazil in perspective foundation, consolidation and

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diversification. Paris: Social Science in Latin America (1930-2003). Sage Publications, Maison des Sciencesde l'homme, 2005.

6. Na época, Paula Beiguelman, assistente de Lourival Gomes Machado (os outros assistentes eram OliveirosS. Ferreira e Célia Quirino), realizava pesquisas sobre o Império, de grande influência sobre seus alunos.Entre essas pesquisas cabe mencionar sua tese de doutorado sobre Joaquim Nabuco. Ver da autoraFormação política do Brasil. São Paulo: Pioneira, 1967, e Joaquim Nabuco. São Paulo: Perspectiva, 1999.

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PARTE I

AS DUAS FACESDO OCIDENTE

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O grau zero da colonização: desembarque de Cabral em Porto Seguro.

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CAPÍTULO 1

AS ESCRITAS DE DEUS E AS PROFANAS

A conquista do Novo Mundo (é) origem de um conhecimento terrível, o que nasce de estarmospresentes no próprio momento da nossa criação.

CARLOS FUENTES

O Brasil é um país de origem católica. Um país novo, nascido no rastro dos grandesdescobrimentos dos séculos XV e XVI, e dependente nos primeiros séculos dasiniciativas colonizadoras de Portugal que abriram caminho para a época moderna,como os demais países ibéricos da América, dependentes da Espanha. Foi, portanto,formado pelas vicissitudes históricas da última Idade Média e do curtoRenascimento vivido pelos países ibéricos, bem como pela Contra-Reforma e pelalonga decadência dos séculos seguintes. Tendo aberto ao mundo a primeira face damodernidade, Portugal e Espanha apareceram, durante séculos, como fortalezas datradição. A cultura brasileira traz até hoje os sinais dessas origens, como fruto deuma história dividida entre a sedução do passado e o anseio pelo novo.

Em épocas mais recentes, preferimos simplificar a imagem desse passado, emobediência a um vezo econômico que se tornou traço dominante em nossa vidaintelectual, corrente principal de um estilo de pensamento. Nossa memória, mesmo ado passado mais distante, acabou por se submeter à mesma lógica unidimensional dointeresse econômico que, em geral, aplicamos às situações do presente.1 Colocandona sombra as paixões da cultura e da política, ficamos com uma parte da história,desprezando aspectos essenciais. Este capítulo e o seguinte deste livro buscam trazeralguma luz para essas verdades esquecidas.

As escritas de DeusNum belo livro sobre a formação cultural dos Estados Unidos, o historiador DanielBoorstin diz que os norte-americanos sempre andaram pela história com aconsciência de que estavam no caminho certo. Os "peregrinos" teriam a certeza deque implantavam na América um novo espaço para a liberdade humana. Comonestas palavras do sacerdote puritano Francis Higginson: "O nosso maior conforto

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(...) é que temos aqui a verdadeira Religião e os santos Mandamentos de Deus TodoPoderoso, e se Deus está conosco, quem pode estar contra nós?". Nesse sentido, dizBoorstin, a Nova Inglaterra puritana "foi um nobre experimento em teologiaaplicada".2

É evidente que o historiador norte-americano registrava nessas palavras aconvicção interior de uma cultura, numa determinada época. Deixemos à parte aavaliação que nós, membros de outra cultura, poderíamos fazer sobre tal convicção.Importa assinalar que Boorstin registrava os ecos de uma visão do valor da fé para asalvação, no espírito da Reforma protestante, até hoje dominante na cultura norte-americana. Mas essas frases por ele recolhidas me surpreenderam quando as li, e,creio, surpreendem a qualquer leitor ibero-americano.3 Elas nos sugerem, quanto àsorigens dos Estados Unidos, uma compreensão muito diversa daquela a queestaríamos obrigados em relação a nós mesmos.

Se eu tivesse que buscar, numa só frase, uma imagem da história e da culturabrasileiras, acompanharia o dito popular registrado por Oliveira Martins sobre acultura lusa: "Deus escreve direito por linhas tortas".4 Nas palavras do historiadorportuguês, o traço característico da cultura lusa – e, posso acrescentar, da brasileira– estaria em reconhecer que as ações dos homens obedecem a "leis idealmentesublimes", embora eventualmente "maculadas de defeitos e vícios". O exemplomaior seria o de Luís de Camões (1525-1580), que "sente e exprime a grandezahistórica do império das Índias, que na própria opinião particular do poeta são umaBabilônia, um poço de ignomínias".5

Esse traço cultural, mais do que ligado apenas à cultura lusa, talvez sejacaracterístico da cultura ibérica em geral. Também da Espanha se pode dizer quenela reside o sentimento de uma grandeza das ações históricas que convive com o dafragilidade dos homens e com a precariedade das circunstâncias em que estes devematuar. Quem se lembra da grandeza do império português das Índias e de seu "poçode ignomínias" não poderia também se lembrar da grandeza histórica e dasignomínias da Nova Espanha de Hernán Cortés (1485-1547) ou do Peru de FranciscoPizarro (1475?-1541)? Diferente da tradição norte-americana, que desde a origem seacredita no caminho certo, a tradição ibérica é capaz de reconhecer-se como umacomplexa mescla do bem e do mal, do certo e do errado. Pode-se dizer que é típicodo sentimento ibérico o ser avesso à ortodoxia, mais propenso a condutas depermeabilidade e adaptabilidade às circunstâncias, como se a firmeza moral ibéricadispensasse a necessidade de uma certeza subjetiva quanto aos caminhos do mundo.

Daí que o misticismo ibérico foi sempre, como diz Oliveira Martins, ummisticismo terra a terra, de pessoas ignorantes da filosofia e da teoria, quedescobriam seu próprio caminho para Deus. Suas ocorrências poderiam ser vistas

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como casos extremos de exaltação da personalidade, talvez o mais alto valor de umacultura que preza as pessoas mais do que as normas. Alguns ibéricos expressam compeculiar altivez essa disponibilidade diante das circunstâncias da vida. "Caminante,no hay camino, se hace camino al andar", disse o poeta Antonio Machado (1875-1939) em verso consagrado na Espanha pela canção popular. O desempenho dosibéricos como aventureiros e como descobridores do mundo, em empreitadas quehaveriam de consolidar um estilo cultural, deixou profundas raízes nas vicissitudesque acompanharam por séculos a história da América ibérica.6

Não há como desligar as diferenças culturais entre ibéricos e anglo-saxões dasdiferenças religiosas que os caracterizaram na crise da última Idade Média e, depois,nos grandes movimentos da Reforma e da Contra-Reforma. No princípio dascolônias da Nova Inglaterra estava a idéia da predestinação e da solidão do homemdiante de Deus. No princípio das colônias ibero-americanas estava a crença, maisantiga, no Filho de Deus que se fez homem. Uma crença cristã, como a dosprotestantes e dos puritanos, mas com a diferença de que era entendida porespanhóis e portugueses como uma intimidade de Deus com a matéria e com omundo. A cultura cristã da última Idade Média seguia os ensinamentos de Tomás deAquino (1225-1274), para quem "Deus não é o Ato puro de pensamento, mas o Atopuro de existir que criou do nada o mundo cristão dos indivíduos realmenteexistentes".7 Diferente de Santo Agostinho (354-430), de influência platônica, SantoTomás buscou a união de Deus e do mundo, estabelecendo, a partir do século XIII,uma tradição cultural que se tornou parte essencial das heranças culturais ibero-americanas, por intermédio do ativismo dos missionários.

Convém advertir, desde logo, que este livro busca recolher, na história, imagensda cultura. Não se trata de colocar em questão - menos ainda, de julgar - asconvicções religiosas de quem quer que seja. Mais ainda porque, como ficou ditoantes, a história não pode ser descrita e menos ainda explicada como uma sódimensão. Assim como as da economia, as opções religiosas, por importantes quesejam, não o são o bastante para explicar a história ou a cultura de uma época.Menos ainda num momento em que o mundo se abriu para os tempos modernos, e noqual se juntaram aos motivos religiosos as mudanças de mentalidade, além deambições de riqueza e poder, numa surpreendente mistura que alcançou forçasuficiente para explodir os limites medievais e abrir as portas do Novo Mundo. Adimensão da vida religiosa é um bom ponto de partida para a compreensão dessaabertura do mundo não porque se a considere a única possível, mas por se oferecercomo a rota mais segura para a compreensão das idéias daqueles tempos. Como emtodos os séculos medievais, também na última Idade Média a elaboração dopensamento era uma missão dos clérigos.

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Opções da modernidadeDe um modo surpreendente para quem estava habituado a pensar os anglo-saxõescomo modernos e os ibéricos como atrasados, o historiador norte-americano RichardMorse disse, em seu O espelho de Próspero, que as colônias anglo-saxônicas e asibéricas foram, em seu tempo, duas "opções" de entrada do mundo para amodernidade. Formadas num longo período que se estende do século XII ao XVII,essas duas tradições, a ibérica e a anglo-saxônica, teriam surgido "de uma matrizmoral, intelectual e espiritual comum".8

Interessante observar que Morse acompanha as diferenças entre católicos eprotestantes estabelecidas por Max Weber, mas se recusa a entender que taisdiferenças possam ter significado um divórcio entre essas duas culturas.9 Essasdiferenças, ele as entende como momentos essenciais, constitutivos, da épocamoderna e da civilização ocidental.

Segundo Max Weber, no mundo católico os atos humanos seriam julgados num"tribunal da consciência" em que o confessor é o juiz do "foro íntimo". Um"tribunal" que dependeria não apenas do reconhecimento da existência de Deus porparte do fiel, mas também da Igreja, uma instituição terrena, com sua hierarquia. Nomundo puritano, desapareceu o "tribunal" e com ele o julgamento exterior daconsciência, o que conduziu a mudanças radicais na imagem do indivíduo. Enquantoo católico falaria com Deus no âmbito da Igreja, o protestante se acharia só, semintermediários, diante da divindade.

Aí estaria o sentido fundamental do individualismo dos anglo-saxões, emparticular dos calvinistas. Na angústia da solidão diante de Deus estaria a raiz de umpoderoso impulso psicológico de homens que, na incerteza quanto à própriasalvação, buscariam na ação sobre o mundo sinais de encontrar-se entre os eleitos.Aí estaria também o fundamento de uma ética que valorizaria o trabalho e quedeixaria para trás a concepção tomista de que uma pessoa só deveria ter a riquezaque lhe assegurasse viver bem. Segundo Weber, essa ética do trabalho se acharia nasorigens do capitalismo.

A investida ibéricaEssa divergência entre protestantes e católicos no modo de conceber as relações comDeus não seria, porém, o bastante para significar um divórcio entre ibéricos e anglo-saxões como iniciadores do mundo moderno.10 A propósito, se tivéssemos quepesquisar a ordem de entrada de ibéricos e anglo-saxões na época moderna,concluiríamos que aqueles tomaram a dianteira. Tiveram assim que enfrentar antes

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dos anglo-saxões alguns dos temas relativos à diversidade do mundo, entre os quaiso tema fundamental da existência de uma nova humanidade. Um tema para o qual sepreparavam desde os séculos da Reconquista, quando enfrentaram os mouros, e querecriaram na época dos descobrimentos, em face da nova realidade dos negros e dosíndios.

Assim como Espanha e Portugal saíram para o Novo Mundo na dianteira daHolanda e da Inglaterra, também as colônias ibéricas começaram antes das inglesas.A história brasileira e a dos países hispano-americanos começaram no início doséculo XVI, dez ou vinte anos antes do protesto luterano. A história norte-americananasceu dos peregrinos das colônias da Nova Inglaterra, fruto das turbulênciasreligiosas de um século depois que Lutero (1483-1546) pregou sua mensagem naporta da Igreja de Wittenberg. Tendo nascido antes da Reforma, tomaria algumtempo até que chegassem aos países ibero-americanos os ideais da Contra-Reforma– no caso do Brasil, principalmente por intermédio da ação dos jesuítas. E estes, quese formaram como ordem pouco antes do Concílio de Trento, devotavam obediênciaàs determinações conciliares, entre as quais a que considerava como uma heresialuterana a tese que negava que os índios fossem seres humanos.

Segundo Morse, a vitalidade do tomismo na "escolástica tardia" nos países dapenínsula Ibérica dos séculos XV e XVI não responderia, portanto, a uma situação deatraso, mas de relativa modernidade da península Ibérica. Responderia acircunstâncias peculiares, entre as quais a guerra (e a convivência) com os mourosnas guerras da Reconquista, que tomaram sete séculos, criando também aspossibilidades de uma antecipação ibérica na formação dos Estados nacionais. Foiassim que Portugal e Espanha, mais do que outros povos da Europa, anteciparam-senão apenas na formação dos Estados nacionais, mas também na reflexão sobre anecessidade de adaptar os requisitos da vida cristã à missão de "incorporar" povosnão-cristãos à civilização européia.

A Summa contra gentiles, de Santo Tomás, que cumpriu a função de guia àconversão dos mouros, expunha amplamente o caso de sociedades "pagãs" ordenadaspela filosofia natural, segundo uma visão para a qual os seres humanos podiam serconsiderados dentro de uma perspectiva ao mesmo tempo cristã e "natural". Se aIgreja, para Santo Tomás, era um "corpo místico", o Estado era a mais perfeita dasassociações humanas, um "corpo político e moral". Pagãos e infiéis também eramcapazes de associações políticas.11

Experimentalismo, navegação e comércioComo já assinalamos, nem tudo é religião nas origens dos países ibero-americanos.

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Fundamentais como tenham sido, as convicções religiosas não tiveram influênciaexclusiva na abertura dos novos tempos e na formação das novas individualidadeshistóricas nacionais da América ibérica. A esse respeito, são necessárias duasobservações, das quais a primeira é uma distinção necessária entre religião e cultura.

Se os países da península Ibérica mereceram ser considerados "países católicos"em razão de sua proximidade ao papado e ao clero do século XIII em diante,mereceram-no mais ainda por razões culturais. Não obstante os momentos deobscurantismo, que não são poucos, especialmente nos períodos de franca atividadeda Inquisição, Espanha e Portugal nunca foram exclusivamente católicos, do pontode vista religioso. Tradicionalmente, a Ibéria era uma região de cristãos, mouros ejudeus.12 Mas, nela, a presença católica se expandiu, extravasando o campo de açãoda Igreja, atingindo segmentos não-católicos e até mesmo atividades de caráter não-religioso da sociedade. Se Portugal e Espanha são considerados, ainda hoje, comopaíses católicos, é porque a religião católica, não tendo sido a única em sua longahistória, foi forte o bastante para deixar marcas indeléveis em ambas as culturas.

A propósito, impõe-se uma segunda observação, que diz respeito a uma mudançade mentalidade que ocorreu ao longo do tempo tanto por razões teológicas quantopor razões práticas. Uma disposição cultural que, como tudo o que concernia aopensamento na Idade Média, foi formulada inicialmente por religiosos. Trata-se deum experimentalismo que tinha origem no pensamento de Roger Bacon (ca. 1220-1292), cuja tradição foi recebida e transmitida por Nicolau de Cusa (1401-1464).Bacon foi um monge franciscano inglês do século XIII, para quem a experiênciaseria a fonte mais sólida da certeza: "A verdade é filha do tempo, e não daautoridade".13 É certo que Bacon distinguia ainda como fontes do saber a autoridadee a razão; e, mais ainda, incluía no seu conceito de experiência a experiênciamística. O que, porém, diante de uma tradição só apoiada na autoridade, não retiravaa novidade do seu experimentalismo, nem o impedia de considerar as matemáticas"a porta e a chave para as ciências".

Embora estivesse no século XIII ainda à margem do pensamento medieval, essavalorização da experiência deveria configurar-se, nos séculos seguintes, como umatendência a uma mudança de mentalidade também devida a razões de ordem prática,derivadas das mudanças sociais e econômicas em curso na última Idade Média. Já apartir do século XII, assistia-se em geral na Europa a um ressurgimento das cidadese do comércio. Os ibéricos, fechada a saída ao Oriente pelo monopólio das cidadesitalianas sobre o Mediterrâneo, estavam obrigados a procurar outros caminhos.Desde meados do século XIII buscaram comércio com o norte da Europa – Flandres,Normandia, Inglaterra, Bretanha e até Noruega – por meio da navegação decabotagem.14

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Em Portugal, a partir do século XIV, o experimentalismo vinculou-se à arte denavegar, convivendo com a tradição e com os ensinamentos dos clássicos, numaespécie de "duplo pensamento" que caracterizou boa parte dos séculos dasnavegações. Na segunda metade do século XVI, o navegador Duarte Pacheco Pereiraconsagrou esse experimentalismo português no Esmeraldo de situ orbis, em palavrascélebres: "A experiência, que é madre das cousas, nos desengana e de toda dúvidanos tira".15

Sabe-se que esse experimentalismo ibérico não foi forte o bastante paraestabelecer, como na Inglaterra, as premissas de um desenvolvimento científicomais amplo. Mas houve exceções, e não foram irrelevantes na Geografia, naAstronomia, na Matemática e nas demais ciências ligadas à navegação. É assim quese pode reconhecer no século XV e nas primeiras décadas do XVI um Renascimentoportuguês nos campos da ciência e da técnica, sem o qual os própriosdescobrimentos não seriam possíveis. Essa mudança de mentalidade misturou-se, naaventura dos descobrimentos, com a religiosidade e até mesmo com o misticismo, etransmitiu-se aos conquistadores dos séculos seguintes.

De mistura com isso tudo, não há como ignorar, no alvorecer ibérico dos temposmodernos, uma cobiça por riqueza e poder, que há muito se reconhecia nas açõesguerreiras da nobreza medieval que se espraiaram na península durante aReconquista, assim como em toda a Europa das cruzadas. Esses motivos levaram aocomércio, no sentido que tomou essa atividade desde o século XIII, e que sedistinguia disso que, depois, se chamaria de capitalismo comercial. Nas cruzadas, naReconquista e nos descobrimentos, essas ambições de riqueza e poder misturavam-se a uma antiga noção medieval de honra que incluía o botim e o saque comodireitos legítimos do vencedor, tanto quanto a escravização do vencido na batalha. Ocapitalismo comercial, de início limitado a algumas das cidades italianas, viriadepois, como uma das conseqüências das aventuras ibéricas, a partir da Holanda doséculo XVII.

O Brasil nasceu dessa mistura histórica e cultural, a mesma que inspirou as lutasde séculos contra os mouros. O ano de 1492, do descobrimento da América, foitambém o da retomada, com a ajuda portuguesa, de Granada, último baluarte dosmouros na península. O ano de 1498 foi o da viagem de Vasco da Gama (1460?-1524) para as Índias, seguindo trilha aberta por Bartolomeu Dias (1450?-1500) em1487 ao cruzar o cabo das Tormentas, ou da Boa Esperança, como queria o rei ecomo ficou na memória histórica.

Décadas depois, já em pleno século XVI, começava a decadência, emborapermanecessem alguns dos impulsos culturais da expansão. Passado o breve clarãohumanista português e espanhol, permanecia a mesma mistura de misticismo e de

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espírito aventureiro medieval, de pragmatismo e de centralização de poder, agora nasubmissão às regras do Concílio de Trento (1545-1463), que, no caso do Brasil e dePortugal, foram impulsionadas pela influência dos jesuítas, duradoura de doisséculos.

Mais do que na literatura e nas artes, a opera magna do Renascimento portuguêsfoi a de superar os limites do Mediterrâneo, conquistar o Atlântico e o Índico. Suagrande obra estava no mar e nas conquistas de além-mar. Confrontados com asgrandes obras artísticas e culturais do Renascimento, os descobrimentos deportugueses e espanhóis ocupam a posição singularíssima e grandiosa de haveraberto as portas do mundo tal como o conhecemos hoje. Mas a grandeza ibérica dosséculos XV e XVI vinha acompanhada das distorções e dos excessos que haveriamde perdê-la.

Os germes da decadênciaQuaisquer que tenham sido as complexas combinações impostas pela marcha dotempo, os aspectos religiosos, econômicos e políticos estavam presentes comodimensões da explosiva e contraditória mistura de motivos que levou Portugal eEspanha a uma fase de ressonância universal na época dos descobrimentos. Foi umamistura de cobiça, espírito guerreiro e misticismo, à qual juntaram-se ainda osvícios e os paroxismos que se associavam aos longos processos de centralização dopoder.

Na passagem do século XV para o XVI, são muitos os exemplos, a começar pelo"poço de ignomínias" que se revelou na tentativa, afinal frustrada, de Portugal nasÍndias. Quanto à Espanha, já em inícios do século XVI, as mesmas ignomínias serevelariam nas violências dos conquistadores no Caribe, na Nova Espanha, e, depois,no Peru. É a primeira forma de expressão do problema, que acompanhará a históriados países ibero-americanos, do reconhecimento das populações conquistadas noNovo Mundo.

Também na passagem do século XV para o XVI, as conveniências das famíliasreais da Ibéria – conveniências religiosas, econômicas e políticas – obrigaram osjudeus a sair da Espanha e a adotar à força, em Portugal, o catolicismo.Paradoxalmente, num dos momentos brilhantes de abertura da Idade Moderna,quando Colombo (1451-1506) negociava, com a Corte espanhola, os planos deviagem para a América, havia autos-de-fé queimando seres humanos em ruas epraças de Espanha. Quanto a Portugal, quase no mesmo momento, a Coroa aplicavacontra os judeus a fórmula absurda do "crê ou morre" que os cristãos semprecriticaram nos mouros.

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Foi assim que surgiu em Portugal a figura do "cristão-novo", como efeito de umatécnica de poder, por meio da qual a Coroa portuguesa visava manter os judeus esuas riquezas no país, ao mesmo tempo que lhes negava o direito de praticar suareligião. Conciliava seus interesses de poder e dinheiro enquanto tentava apaziguar oanti-semitismo da plebe nas ruas de Lisboa, tanto quanto os interesses e o anti-semitismo dos reis da Espanha.

Embora de graves conseqüências para a cultura (e a economia) de Portugal, amanobra não impediu a participação de capitalistas judeus nas incursões lusas aomar. Os judeus estarão presentes na criação do Brasil, como financiadores deviagens, técnicos ou povoadores (degredados), do mesmo modo que, em épocaanterior, e sem que deles se exigisse uma falsa escolha religiosa, já haviam estadocom D. Henrique em suas empreitadas navegadoras. Não serviu, porém, a farsa dacriação dos "cristãos-novos" para impedir as perseguições, pois os judeus, depois deobrigados a renegar sua religião em público, foram acusados de praticá-la àsescondidas. Numa trágica manhã de abril de 1506, foram chacinados mais dequinhentos judeus, nas praças e vielas de Lisboa.

Foi essa uma das razões para que, em Portugal, a figura do empresário, sobre aqual podiam sempre pesar suspeitas de heresia, como "cristão-novo", acabasseenfraquecida e subordinada à Coroa, que detinha o controle dos descobrimentos.Além da intolerância religiosa, havia a ganância aventureira de riquezas e poder porparte da nobreza, e uma mentalidade medieval incapaz de entender a iniciativa quevisa ao lucro. Desse modo, as atividades capitalistas e artesanais tendiam a sermonopolizadas por grupos relativamente fechados – além dos "cristãos-novos", osestrangeiros, sobretudo ingleses, franceses e holandeses – que legal ou ilegalmentefaziam em Lisboa ou em Sevilha boa parte do comércio externo peninsular.16

Foram colocados sob suspeição os indivíduos e as atividades que em Portugalpoderiam constituir o germe de uma burguesia comercial. Boa parte dessesindivíduos, especialmente os judeus, transferiu-se para a Holanda, onde havialiberdade para que pudessem atuar. Nos séculos XVII e XVIII, já então em plenadecadência, a Coroa portuguesa buscou atraí-los, primeiro por meio de iniciativas dopadre Antônio Vieira (1608-1697) e depois do Marquês de Pombal (1699-1782).Embora Portugal e Espanha tenham descoberto e inaugurado o Novo Mundo,estavam condenados a permanecer à margem dos reais benefícios de suasconquistas, condenados a ser países menores, pouco mais do que entrepostos da novaetapa comercial do desenvolvimento capitalista europeu. Os efeitos dos vícios deorigem permaneceriam por muito tempo como um entrave cultural para odesenvolvimento dos países ibero-americanos.

Os momentos de glória dos séculos XV e XVI deveriam fechar-se, no caso de

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Portugal, na "apagada e vil tristeza" de uma prolongada decadência que se inicioubem antes do desaparecimento de D. Sebastião em Alcácer-Quibir, em 1578. Oslusíadas, publicados em 1572, e que ainda hoje nos comovem, são uma obra tardiado Renascimento português, que pôde ser lida, já em seu tempo, como o epitáfio deum século e meio de glórias. A Espanha viveria ainda seu siglo de oro, que, aliás, foitambém um século de decadência, não obstante o excepcional brilho de sua literaturae de sua pintura. De Dom Quixote, publicado em 1605, diz o mexicano CarlosFuentes que "é o livro exemplar da decadência espanhola. (...) A era épica daEspanha terminara. (...) O sonho da utopia havia fracassado no Novo Mundo. Ailusão da monarquia universal havia se dissipado. (...) depois de El Cid e Isabel aCatólica, depois de Colombo e Cortés, de Santa Tereza e Loyola, de Lepanto e aArmada, a festa havia terminado".17

A entrada dos ibéricos na época moderna foi ainda mais complexa porque asorientações da Contra-Reforma que vieram a prevalecer foram também formas deresistência e de adaptação da Igreja aos tempos da Reforma. Embora inspiradosnuma ética medieval, os jesuítas atuaram também, em alguns casos, como o doBrasil, como agentes paradoxais de nossa primeira modernidade, na defesa dosíndios, na educação e em algumas das propostas econômicas de Antônio Vieira.

Em todo caso, a entrada no mundo dos países nascidos das aventuras ibéricas queabriram a época moderna deu-se a contrapelo daquilo que se veio a consagrar comoa modernidade. Admitidas as distinções necessárias entre portugueses e espanhóis, aentrada dos países ibéricos nos tempos modernos não teve nem o rigor ortodoxo dosprimeiros norte-americanos nem, depois deles, a clareza e a distinção que pedia amodernidade cartesiana dos franceses. Dir-se-ia que os ibero-americanos entraramno mundo por caminhos tortos?

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As Américas surgiram "de uma matriz moral, intelectual e espiritual comum".

Temas formadores da culturaAssim como na América anglo-saxônica, algo dessas peculiaridades de origempermanece até hoje na América ibérica. Vinculadas à crença – religiosa e, porextensão, cultural – da humanização de um Deus que permanece conosco noscaminhos do mundo, essas raízes geraram idéias e convicções que acompanham ahistória dos países ibero-americanos. Raízes religiosas poderosas, às quais, porém,sempre faltaram a segurança intrínseca e a rigidez de princípios das ortodoxias.Enquanto as colônias da Nova Inglaterra andaram por trilhas de umfundamentalismo até hoje perceptível na moderna sociedade norte-americana, ascolônias ibéricas, que passaram por influências de momentos diversos e às vezescontraditórios, perderam, na diversidade e nos conflitos de origem, a possibilidadede um fundamentalismo, desde o início contestado.

Os ibéricos chegaram ao Novo Mundo com uma mistura de visões religiosas eprofanas, divididos entre o deslumbramento com as novas gentes e as novas terras ea preparação da conquista. Desde o primeiro momento, era um olhar dividido entre aconquista do mundo para Deus e a das terras e das gentes para o poder e para oenriquecimento rápido dos aventureiros e conquistadores. Destruíram populações,mas fizeram também alianças com chefes indígenas, ao mesmo tempo que, em meioàs oscilações das decisões dos reis e das bulas do Vaticano, abriram espaços,maiores ou menores, de uma "incorporação social" que, em sentido lato,permanecerão, ao longo dos séculos vindouros, como base dos temas formadores dacultura ibero-americana. Não é surpreendente, portanto, que estivessem desde oinício preocupados em compreender, bem ou mal, as sociedades que encontravam.18

Já que com esse olhar, religioso e profano, dividido e distante, não podiamreconhecer como tais os povos que encontravam pelo caminho, preocuparam-setambém em criar povos. O Brasil é um exemplo dessa visão, desde os primeirostempos da colônia, quando Antônio Vieira afirmou que neste país "cada família éuma república".

Essa visão crítica que conotava a inexistência de um povo (ou de uma sociedade)reapareceria em formas diversas no correr dos tempos.19 Em fins do século XIX, ofrancês Louis Couty definiu sua célebre frase sobre o Brasil como "um país sempovo" nos seguintes termos: nos 12 milhões de habitantes do Brasil de 1884, "emparte alguma se encontrarão, nem as massas fortemente organizadas dos livresprodutores agrícolas ou industriais, que, nos povos civilizados, são a base da ordeme da riqueza, nem tampouco as massas dos eleitores conscientes, sabendo votar e

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pensar, capazes de imporem aos governos uma direção definida". Algo da mesmaimagem se estende pelas primeiras décadas do século XX. Guerreiro Ramos registraalgo de parecido em Sílvio Romero, em 1907, bem como em Alberto Torres, que, em1914, afirmava que no Brasil "a sociedade não chegou a constituir-se". Algo dessamesma idéia permaneceu na teoria da "sociedade insolidária", de Oliveira Viana, quecaberia ao Estado organizar ou, mesmo, criar.20

A conotação religiosa desses temas foi tão evidente na conquista e na colonizaçãoquanto o fora, em Portugal, no século dos descobrimentos. Mas, além das escritas deDeus, decididas pelas bulas dos papas, os temas originais, especialmente em tornodo índio, dependerão sempre de alvarás e decisões dos reis, oscilando entre aspressões do Vaticano e dos jesuítas e os interesses profanos dos conquistadores.

"Dilatar a fé e o império" – o projeto colonial, embora sempre suscetível deconflitos internos, era o mesmo para os jesuítas e os bandeirantes que se engajaramno grande debate sobre a questão indígena que, no Brasil, estendeu-se por doisséculos. Os dois grupos de combatentes dos primeiros séculos tinham algo emcomum no ideal da conquista. Como os povoadores, embora de modo diverso, osjesuítas "eram colonizadores; a obra que haviam empreendido tinha carátertemporal, e, nessa qualidade, somente com os meios temporais se poderiarealizar".21

Esse olhar primordial, um olhar de fora, dividido entre o religioso e o profano,permaneceu nos países ibero-americanos como apanágio de uma obra que sepretendia civilizadora, mas que, em alguns países, ainda não se completou. Em 1936dizia Sérgio Buarque de Holanda: "somos ainda hoje uns desterrados em nossaprópria terra".22 E contudo, naquele momento, o historiador e ensaísta participava,como veremos, de um movimento de idéias que contribuiria para o enraizamentodesses "desterrados".

Ambigüidades culturaisQuase tão antiga quanto o debate português sobre a questão dos judeus, a questãoindígena alinha-se entre os temas formadores da cultura do país. Tomou depois seulugar, em termos de relevância, o tema do negro que atravessa o período colonial ese estende por todo o século XIX. De certo modo, como veremos, continua até osdias que correm. Foi em torno do judeu, do índio e do negro que surgiram, nosprimeiros séculos, os conflitos maiores do país em formação. Para além das questõesda Coroa quanto ao domínio do território, foi em torno das soluções encontradaspela história quanto à incorporação desses grupos humanos que surgiram alguns dostraços culturais duradouros da cultura brasileira. É, pois, a esse passado que

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devemos recorrer para compreender a característica ambigüidade da culturabrasileira em torno da questão racial. Uma ambigüidade que se transferiu tambémpara as relações sociais, tanto em sua real capacidade de abrangência e tolerânciaquanto em sua peculiar habilidade para mascarar conflitos e preconceitos.

Essa ambigüidade cultural, com sua especial dialética de conflito e integração,tem precedentes ainda mais antigos na península Ibérica. Segundo Gilberto Freyre,as populações cristãs da Ibéria que viveram sob domínio muçulmano – osmoçárabes, que sofreram forte influência cultural árabe – "se constituíram no fundoe no nervo da nacionalidade portuguesa".23 O sangue e as tradições árabes estiveram,assim, presentes na formação nacional portuguesa, por meio de uma miscigenaçãoracial e cultural remanescente de séculos de conflitos e relações de integração.

Quando os portugueses começaram a colonizar o Brasil, os velhos conflitos daReconquista achavam-se já diluídos e muitos descendentes dos mourosencontravam-se amplamente integrados à nação portuguesa. É assim que, ao longoda história brasileira, a presença dos árabes, que vem desde a colônia, jamaisalcançou um caráter conflituoso. Quanto aos árabes de imigração moderna, posteriorà Independência, foram absorvidos por uma cultura brasileira de certo modopreparada por essa antiga miscigenação. Encontraram uma cultura brasileira dotadade uma permeabilidade devida às soluções (ou meias-soluções) criadas em torno dosconflitos de um passado mais distante.

Aos temas dos índios, judeus e negros, acrescenta-se, na passagem do século XIXpara o XX, o dos pobres. Refiro-me à tomada de consciência de uma realidade porparte das elites, pois a pobreza como tal existe desde as origens do país. Emergindoem fins do século XIX, esse tema, que mais modernamente se designa como"desigualdade social", tornou-se obrigatório neste país de extremas desigualdades. É,ao lado da questão da democracia, o mais importante de nossos temas atuais. O quesignifica que, para enfrentá-los, deveremos percorrer a longa história da formaçãocultural do país. Os temas dessa história não se confundem com os temas sociais,mas criaram, ao longo do tempo, os espaços e os repertórios culturais nos quais estespoderão vir a ser tratados.

1. Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Helio Jaguaribe e, mais recentemente, Raymundo Faoro sãoevidentes exceções a essa regra.

2. BOORSTIN, Daniel. The Americans: The Colonial Experience. New York: Vintage Books, Random House,1958. p. 5.

3. Evidentemente, a referência aos "americanos" em Boorstin é cultural, não geográfica. Assim também nesteensaio, no qual as referências a "americanos", "angloamericanos" e "norte-americanos" são intercambiáveis.Para os povos habitualmente chamados "latino-americanos", prefiro usar a expressão "ibero-americano", o

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que evidentemente inclui todos os americanos de origem lusa e espanhola. E, portanto, também o México,geograficamente norte-americano, assim como as populações "hispânicas" residindo nos Estados Unidos. Aexpressão "latinoamericano" seria demasiado abrangente para os fins deste trabalho, por incluir povosamericanos de origem francesa que, contudo, não são aqui estudados.

4. MARTINS, Oliveira. História de Portugal. Lisboa: Guimarães, 1991. p. 9.5. Ibidem, p. 9.6. Veremos mais adiante outras descrições da cultura ibérica, entre as quais a de Miguel de Unamuno. El

sentimiento trágico de la vida, e a de Sergio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil.7. GILSON, Étienne. La philosophie au Moyen Âge. Paris: Payot, 1952. p. 540. Há tradução brasileira: A

filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 2001.8. MORSE, Richard M. O espelho de Próspero: cultura e idéias nas Américas, São Paulo: Companhia das

Letras, 1988. p. 22 e seguintes. Esse livro, escrito originalmente em inglês, com o título de Prospero'sMirror. A Study in New World Dialectics, passou despercebido nos Estados Unidos, onde não chegou a serpublicado, mas tem tido no Brasil fecunda aplicação. Entre outros, cabe mencionar o ensaio de VIANNA,Luiz Jorge Werneck. Americanistas e iberistas: a polêmica de Oliveira Viana com Tavares Bastos. In:BASTOS, Élide Rugai; MORAES, João Quartim de (Org.). O pensamento de Oliveira Viana. Campinas:Editora da Unicamp, 1993.

9. WEBER, Max. The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism. 8. ed. London: Unwin University Books,1967.

10. MORSE, op. cit. p.45.11. Ibidem, p. 42.12. Não obstante uma história de séculos de lutas, a Ibéria teve também seus momentos de convivência

religiosa. Cruz Costa anota a respeito que em Toledo, num mesmo templo, a mesquita de Santa Maria aBranca, celebravamse os três cultos: o cristão, o mourisco e o mosaico. COSTA, João Cruz. Contribuição àhistória das idéias no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956. p. 29.

13. SARAIVA, António José. História da cultura em Portugal. Lisboa: Jornal do Foro, 1962. v. II, p. 372.14. Ibidem, p. 391.15. MARQUES, Oliveira. History of Portugal (v. I: From Lusitania to Empire). New York/London: Columbia

University Press, 1972. p. 284. Original em português: História de Portugal (v. I: Das origens às revoluçõesliberais). Lisboa: Palas, 1975. Ver também: C OUTO, Jorge. A construção do Brasil. Lisboa: Cosmos, 1997.p. 151.

16. SARAIVA, op. cit., p. 11.17. FUENTES, Carlos. El espejo enterrado. México: Fondo de Cultura Económica, 1992. p. 202.18. A expressão "incorporação social" é usada por Richard Morse em sentido amplo, denotando, como é

adequado àqueles tempos, o reconhecimento, fundado em razões religiosas, de uma nova humanidade,além do mundo europeu. É claro que essa expressão tende a adquirir, com o tempo, um sentidoespecificamente social, de reconhecimento de um povo, e, depois, político, de incorporação desse povo aoEstado.

19. Um ano antes da Independência, em 1821, saía pela Imprensa da Universidade de Coimbra a Memória deJoão Severiano Maciel da Costa, futuro Marquês de Queluz, "sobre a necessidade de abolir a introdução dosescravos africanos no Brasil": "No Brasil, por efeito do maldito sistema de trabalho por escravos, apopulação é composta de maneira que não há uma classe que constitua verdadeiramente o que se chamapovo". Essa observação, assinala Wilson Martins, seria repetida "por Louis Couty sessenta anos depois, coma mesma verdade, mas sucesso consideravelmente maior entre os leitores brasileiros". Cf. MARTINS, Wilson.História da inteligência brasileira. São Paulo: T. A. Queiroz, 1992. v. 2, p. 105.

20. Como veremos mais adiante, Guerreiro Ramos confirma esse diagnóstico sobre a perspectiva nacional-desenvolvimentista dos anos 1950: "Não éramos uma nação, pois a nação não se configura historicamentesem a sua substancia que é o seu povo". RAMOS, Guerreiro. O problema nacional do Brasil. Rio de Janeiro:Saga, 1960. p. 21-22.

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21. A frase é de João Lucio de Azevedo, que é confirmado pelo Pe. Serafim Leite: "Os jesuítas, pelascondições particulares da América, não puderam ser o que eram na Ásia, apenas missionários: foramtambém colonizadores". Apud CARVALHO, Laerte Ramos de. As reformas pombalinas da instrução pública.São Paulo: Edusp/Saraiva, 1978. p. 105.

22. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Cf. SANTIAGO, Silviano (Org.). Intérpretes do Brasil. v. 3.Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002. p. 945.

23. FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. Edição crítica coordenada por Guillermo Giucci, EnriqueRodríguez Larreta e Edson Nery da Fonseca. Madri / Barcelona / Havana / Lisboa / Paris / México / BuenosAires / São Paulo / Lima / Guatemala / San José: ALLCA XX, 2002. p. 231.

[<<3]

Auto-de-fé em Lisboa: misticismo e violência nas raízes da modernidade.

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CAPÍTULO 2

TEMPOS DOS DESCOBRIMENTOS

O nosso objetivo é mais particular: definir historicamente a fisionomia cultural da Naçãoportuguesa, todas as marcas e rugas que lhe ficam a definir o caráter.

ANTÓNIO JOSÉ SARAIVA

O conhecimento das diversas soluções teóricas para a velha questão da gênese dasmudanças sociais não diminui as dificuldades da pesquisa das situações históricasreais. O político e filósofo marxista Antonio Gramsci afirmou, certa vez, que osistema de livre-câmbio, ou de mercado, foi um programa político antes de ser umarealidade econômica, o que surpreendeu alguns marxistas habituados a pensarsegundo uma teoria da determinação do econômico sobre o político. Max Weber, porsua vez, resolveu a questão das origens do capitalismo pela perspectiva que lheofereciam a história da religião e a da ética. Mas ele tendia a considerar um mistérioa questão de saber por que o homem medieval, apegado às regras tradicionais davida, decidiu abrir os olhos para o novo e o diverso. Outros pontos de vista seriampossíveis. Como dizia Weber, a busca da verdade deixa sempre à sua volta umamargem de sombra.

O fato de que acreditamos saber explicar como as sociedades modernasfuncionam não significa que possamos explicar como nasceram. É do mesmo gêneroa questão de compreender a relação entre os descobrimentos e as sociedades a quederam origem. É que as sociedades medievais que geraram os descobrimentos e asconquistas tinham a capacidade de reunir num todo orgânico as dimensõeseconômicas, políticas, jurídicas e religiosas que as sociedades que se desenvolveramna época moderna levaram séculos para diferenciar. Como, portanto, pretenderestabelecer na explicação da gênese dos descobrimentos uma relação dedeterminação entre dimensões da vida social que apareciam indiferenciadas nahistória? É certo que na última Idade Média surgiram germes dos fenômenos que,depois, a história passou a considerar como capitalistas e, nesse sentido, modernos.Limitavam-se, porém, a algumas ilhas de renovação que conviviam, em contradiçãoe mistura, com o mundo de tradição que as rodeava.

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Fé, ouro e poderO Brasil, como outros países ibero-americanos, tem origens mais antigas eprofundas do que o capitalismo ao qual se incorporou. O fato de os descobrimentosterem aberto as portas do mundo para o capitalismo comercial não significa quetenham nascido dele. Assim como os descobrimentos, os países a que deram origemnasceram de uma época em que, na Europa, os motivos típicos da tradição medievalainda moviam com muita força a ação dos homens. A tradição das cruzadas, ascampanhas da Reconquista, a busca de novas regiões para o domínio, o saque e acobiça de riquezas – eis o complexo de motivos que movia os homens nos séculosXV e XVI, até inícios do XVII, época dos descobrimentos e das conquistas.

Como bem assinalam Arno e Maria José Wehling, o Novo Mundo "resultou deuma gestação multissecular, na qual tem início a história do Brasil". A última IdadeMédia, dizem, foi parteira de um mundo diferente, "do qual o 'Novo Mundo' eraapenas uma das expressões". Não por acaso foram os historiadores obrigados "arecuar o reconhecimento dos inícios da modernidade para o século XIV". Esseséculo, que em Portugal foi o de D. Dinis e de D. João de Avis, teve presentes emdiversos lugares da Europa os elementos fundamentais – econômicos, sociais,políticos e intelectuais – da transição para os tempos modernos: o progresso docomércio medieval, das vilas e cidades, embora de pequeno peso na economiaagrária da época, e a centralização monárquica.1 Foi também o século de umaacentuada crítica filosófica e teológica ao cristianismo medieval e de uma notávelpenetração da filosofia na vida cultural, com a influência de Mestre Eckhart (1260-1327?), Guilherme de Ockham (1285-1349?) e Duns Scot (1266?-1308).2

Os descobrimentos são um fenômeno da Ibéria na mesma época em que ocapitalismo comercial nascia nas cidades italianas e em Flandres, ao norte daEuropa. São fenômenos da mesma época – não, porém, do mesmo lugar. Embora aúltima Idade Média tenha sido, em quase toda a Europa, uma época de crise e degrandes inovações, estas conviveram, em muitas partes, com as antigas tradições. E,mais do que em qualquer parte, em Portugal e Espanha, que permaneceram comofortalezas da tradição e do catolicismo. Mas no início do século XVII, mesmo naHolanda e na Inglaterra – que se preparavam para ingressar na época moderna –, umespírito tradicional ainda ecoava em meio aos conflitos entre protestantes ecatólicos.

É o caso de Sir Walter Raleigh (1554?-1618), um inglês que era não apenasprotestante, mas também calvinista. Sir Walter era, como alguns conquistadoresibéricos dos séculos XV e XVI, soldado, poeta, cortesão e aventureiro. Esteve naFrança, lutando ao lado dos huguenotes, e ao norte do Brasil, nas Guianas, buscando

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caminho para o rio Orinoco. Mas nenhum conquistador ibérico teria algo de muitodiferente das palavras com as quais ele buscou interpretar o sentido da vida: "to seeknew worlds, for golde, for prayse, for glory" – procurar novos mundos em busca deouro, louvor e glória.3 Eram motivos de antiga tradição que atravessaram o tempo ese estabeleceram como pressupostos da época moderna e que foram desde cedocriticados quando entraram em cena os descobrimentos e as conquistas espanholas eportuguesas. No auto de Nuevo mundo, Lope de Vega põe na boca do diabo estaspalavras: "No los lleva cristandad/sino el oro y la codicia".4

A cobiça de riquezas, a expansão do poder, o alargamento da fé – essa tríade demotivos e de "marcas e rugas" que impulsionaram os descobrimentos – vêm dosséculos XIV e XV, misturados com um Renascimento ibérico que o tempo haveriade revelar demasiado frágil.5 Eram anteriores, portanto, à Reforma e à Contra-Reforma, as quais por sua vez haverão de acrescentar-lhes novas rugas e algumascicatrizes. É certo, como vimos, que o capitalismo comercial se achava em seusinícios, nas cidades flamengas e em algumas cidades italianas, como Gênova,Florença e Veneza.6 Mas não se pode passar por alto a significação desse fato:embora tenham dado contribuição aos descobrimentos, em especial comnavegadores como Colombo e Caboto, não foi por decisão e empenho dessas cidadesque os europeus descobriram a América, o Brasil e o caminho para as Índias. Nemtiveram a Inglaterra, a Holanda e a França maior êxito em suas tentativas, nosséculos seguintes, de se apossar das conquistas ibéricas na América.

"O tom da vida medieval"D. Henrique o Navegador (1394-1460), o mais notável líder dos descobrimentosportugueses, foi um guerreiro e um místico e, além disso, o homem mais rico dePortugal de sua época. Foi um homem do Renascimento num Portugal que seformou, como país, em lutas de vários séculos contra os mouros, o que haveria delhe conferir, como à Espanha, uma particular ligação com o catolicismo e a Igreja. OInfante evidenciava um conjunto de qualidades que teriam sido, em seu tempo,freqüentes entre os nobres. Freqüentes também entre os homens do povo, ao menosno além-mar, onde, como diz Saraiva, os "cavaleirinhos da Índia" igualavam-se aossenhores perante os negros e os orientais. É também o caso do Brasil dos primeirostempos, onde os portugueses, iguais entre si pela origem nacional, apareciam comosuperiores aos povos conquistados.7

Temos que nos preparar para extravagantes associações de valores e motivoshumanos se quisermos entender a ação de homens como D. Henrique e a de outros

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navegadores e descobridores de seu tempo. Como os demais povos da última IdadeMédia, portugueses e espanhóis diferiam dos povos modernos nisso que JohanHuizinga denominou o "tom da vida" em estudo sobre a vida medieval na Borgonhados séculos XIV e XV. Com essa expressão, o historiador holandês referia-se àintensidade das formas e dos sentimentos que dão conteúdo e expressão às relaçõeshumanas. Considerava que o tom da vida era de cores e de intensidade muito maisfortes naquela época do que nos tempos atuais. Com efeito, diante de textos ehistórias da última Idade Média, o leitor moderno se percebe dotado de uma friezana expressão dos sentimentos desconhecida na mentalidade medieval. Do mesmomodo, surpreende-se com o espírito de "desenfreada extravagância" que animavatanto os povos quanto os príncipes daquela época.

Huizinga fala, para a última Idade Média, de um espírito de "violenta paixão" que"se sobrepõe vez por outra à própria conveniência e ao cálculo". Um espírito que,quando se liga, como nos príncipes, ao sentimento do poder, opera com enormeveemência, identificando-se ao que Jacob Burckhardt chamou de "pathos dadominação". Segundo Huizinga, na vida medieval a política se projetava no espíritodo povo encarnada em figuras individuais simples e fixas. "As idéias políticas (...)eram as da canção popular e as do livro de cavalaria". Os príncipes "buscamrepetidamente nos negócios do Estado o conselho dos ascetas visionários e dospredicadores exaltados". E a alta política oferecia evidências de "um vivo elementode exaltação religiosa".8

Embora centrando seu estudo na Borgonha, as referências mais gerais de Huizingavalem, com certeza, para a Espanha e Portugal da mesma época. Na política, mais doque em qualquer outra atividade humana, poder-se-iam reconhecer traços desemelhança mesmo com os ibero-americanos contemporâneos. Descontada aintensidade maior dos tempos medievais e atenuadas as cores, as descrições deHuizinga poderiam servir também para outros aspectos da vida ibero-americana, oque pode significar que algo ficou, em suas culturas, dessas origens tão distantes.Não obstante, algo dessas heranças nos escapa. Ao menos aos ibero-americanos depaíses mais industrializados e urbanizados, é de supor que os homens da IdadeMédia surpreendam por sua capacidade de combinar qualidades que, hoje, teríamosdificuldade de reconhecer juntas. Voltemos, pois, ao caso de D. Henrique.

O Infante cultivava a matemática e a astronomia, era homem de hábitos ativos,caçador, tinha o gosto das coisas militares. Mas era também possuído de ummisticismo que o obrigou a usar cilícios quase toda a vida e a jejuar com muitafreqüência. "Quase a metade do ano passava com jejuns", afirma Gomes Eanes deAzurara (1410-1474?), um cronista da época. Era também um homem religioso dequem diz ainda Azurara que seu coração "nunca soube o que era medo senão de

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pecar".9 Sua divisa era "Talant de Bien Faire" – vontade de bem fazer. Surpreende-nos, assim, no mesmo personagem, a convivência de um forte misticismo com umacapacidade de ação e um pragmatismo que lhe permitiu juntar recursos,conhecimentos e iniciativas para descobrir novos mundos.

Por extravagante que isso possa nos parecer, nada tinha de excepcional na Europadaqueles tempos esse traço típico do Infante, em quem uma intensa devoçãoreligiosa convivia com uma enorme capacidade para a conquista, a guerra e odomínio. Que seria do Renascimento italiano não fosse o papel político e militar doslíderes da Igreja? Que seria do Humanismo não fosse a Igreja, onde nasceu defiguras como Erasmo (1469-1536) e Thomas Morus (1477-1535)?

Mudanças: a Igreja e as cidadesHá muito de errôneo nas histórias que retratam a última Idade Média, do século XIIao XVI, com as características que acompanharam a longa decadência da Idade dasTrevas, do século VII a inícios do XI. Ainda persistem alguns dos mitos que osilustrados do XVII e do XVIII construíram sobre a Idade Média como umaescuridão, ignorando as diferenças desse longo período histórico. Embora tenhamperdido força, com um maior conhecimento do passado e depois de todas asviolências do mundo moderno, persiste em muitos a idéia da Idade Média como aépoca de uma sociedade fixa e imutável. Essa idéia sobrevive no pensamentomoderno como um paradigma da Idade Média que se contrapõe ao do capitalismo,tipicamente uma sociedade de mudanças.

Numa transfiguração de resíduos desses mitos, a sociologia, em inícios do séculoXX, distinguiu paradigmaticamente entre "comunidade" e "sociedade", como fezFerdinand Tonnies, contemporâneo de Max Weber e Émile Durkheim. 10 Talvez porisso, o leitor, colocado diante dos textos sobre a última Idade Média, surpreenda-seprecisamente com a mudança. Surpreende-se, para começar, com as mudanças quese dão no interior da Igreja. Uma instituição que se suporia a mais estável etradicional de um mundo de instituições supostamente fixas e imutáveis, a Igreja foinos séculos XII e XIII um cenário de renovação de idéias. Criou novos estímulosmorais e uma nova visão do mundo, sem a qual o século dos descobrimentos setornaria incompreensível.

Como assinala Helio Jaguaribe, "os séculos XI e XII viram a emergência de umanova modalidade de vida monástica, combinando funções religiosas com militares,sob a forma de ordens militares (...). A primeira dessas ordens foi a dos CavaleirosHospitaleiros, fundada em Jerusalém em 1050, com o objetivo inicial de ajudar ohospital dos cruzados, mas que no século XII se transformou numa ordem militar.

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Da mesma forma, os Templários, fundados por Hughes de Payns em 1119, faziam otríplice voto de pobreza, castidade e obediência, com o propósito de defenderJerusalém e ajudar os peregrinos que viajavam à Terra Santa".11

Ao mesmo tempo que surgiam ordens religiosas e militares, mudava opensamento da Igreja. Tomás de Aquino, no século XIII, renovou o cristianismo,distanciando-se do neoplatonismo de influência agostiniana, que idealizava Deuscomo uma idéia fora do mundo. Os platonistas, de acordo com as Confissões, nasquais Agostinho descreveu seu percurso para o cristianismo, "viam a verdadeirarealidade como espiritual ou inteligível, não física, e ofereciam uma visão de Deus –como incorpóreo, imutável, razão infinita – em acordo com o Deus do Velho e doNovo Testamento".12 Tomás de Aquino, buscando também unir a razão e a fé,ofereceu, séculos depois de Agostinho, uma visão diferente no curso de suainterpretação de Aristóteles. Tomás recuperou a vinculação de Deus com o homeme, portanto, com a matéria, que alguns comentadores consideram o mais desafiadorde todos os dogmas.13

Pode-se admitir que as idéias de Tomás de Aquino tenham levado algum tempopara chegar aos príncipes e, mais ainda, às pessoas comuns. Foi assim que setornaram, nos séculos XIV, XV e XVI, mais poderosas do que foram no século XIII,quando surgiram. Ensinando as pessoas a reconhecer a presença de Deus nas coisasdo mundo, o tomismo convergiu com os grandes movimentos de renovação religiosaque se sucederam a partir de sua própria época e que surgiram quase ao mesmotempo que entravam em curso outras mudanças da vida medieval.

As ordens mendicantes que surgiram no século XIII expressavam uma atmosferade mudanças, entre as quais se incluíam as novas condições urbanas surgidas com odesenvolvimento das cidades.14 Com o objetivo de imitar a renúncia radical deCristo à propriedade, a grande novidade das ordens mendicantes, especialmente ados franciscanos, foi levar os religiosos a sair dos mosteiros, buscando nas ruas e nasestradas, como os filósofos nos livros, novos caminhos da expressão humana. AOrdem dos Dominicanos, criada em 1215, e que teve entre seus principais nomes osde Tomás de Aquino e Alberto Magno, tinha como preocupação principal dar a seusfrades o melhor treinamento intelectual e, com esse objetivo, manteve estreitocontato com a Universidade de Paris e outros centros acadêmicos na Itália, naEspanha e na Inglaterra.15 Embora de maior presença nas ruas, os franciscanostiveram, no plano do pensamento, Roger Bacon, cuja valorização da experiência,embora à margem do pensamento medieval de seu tempo, persistiria pelos séculosseguintes.

Era, pois, uma época de renovação e de controvérsias. Também no século XIIestão as preliminares da Inquisição, na França, onde "os progressos (das) heresias

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dos Albigenses e outras seitas se haviam atalhado, organizando-se juntas deeclesiásticos que inquiriam quem eram os aliciadores, e os denunciavam à justiça.Chamavam-se, pois, inquisidores". Em 1204, foram reconhecidos por Inocêncio IV,e depois, ainda no século XIII, a Inquisição seria confirmada pelo papa Gregório IX,quando "exortou os bispos franceses" a designar inquisidores dominicanos em áreas"contaminadas pela heresia".16

Misticismo ibéricoA qualidade peculiar do misticismo ibérico oferece uma resposta para a questão decomo entender esses príncipes, navegadores e conquistadores, que foram, porexcelência, homens práticos e, muitos deles, místicos até o paroxismo. Convergindocom os novos sentimentos e idéias do tempo, o misticismo ibérico "obrigou Deus adescer dentro da alma, em vez de ser a alma que, fugindo ao mundo e negando-o, seconsumiu na labareda de um Deus ideal...". Assim como Santo Tomás e SãoFrancisco, os místicos em geral expressavam uma busca da "humanização de Deus".O homem dessa época passou a distinguir-se "das coisas no belo privilégio que Deuslhe dá de determinar livremente o seu destino".17 Em sua forma ibérica maisextrema, essa "humanização de Deus" conduziu a uma "divinização do homem" quese expressou nas figuras místicas e violentas de conquistadores como Hernán Cortése Vasco da Gama, e que traria consigo sinais de uma degenerescência que empanariao brilho e a grandeza de suas obras.

Diferente do misticismo germânico, diz Oliveira Martins, o ibérico "não émetafísico, é moral". Os místicos da Ibéria "nascem do solo, individual eespontaneamente". Trágicos ou ingênuos davam sinais de uma candura natural e deuma capacidade para explosões violentas. Era um misticismo rústico, ignorante daspelejas filosóficas, propenso ao empirismo, que se combinou, e às vezes seconfundiu, com o gênio aventureiro dos navegantes e dos conquistadores. Estesestavam, por sua vez, impregnados dos ideais da cavalaria, disseminados por umavasta literatura que apresentava o nobre cavaleiro como campeão da cristandade, deque dão exemplo o Cantar de mio Cid, na Espanha, a Chanson de Roland, do séculoXI, as histórias do rei Artur e dos Doze Cavaleiros da Távola Redonda, o Perceval,de Chrétien de Troyes, do século XIII, e o Libre de l'Orde de Cavalleria, do místicocatalão Raimundo Lúlio (1232?-1316?).18

É certo que na Ibéria os ideais do cavaleiro foram cristalizados como tipoliterário, mas o foram também na história real dos descobrimentos, em figuras comoD. Henrique e Vasco da Gama, Colombo e Cortés, Fernão de Magalhães (1480?-1521) e Bartolomeu Dias. Qual o significado do gesto de Cortés no México, quando

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ateou fogo às naus, senão o de um cavaleiro disposto a levar adiante suas conquistasmesmo diante das incertezas do mundo? Diz Oliveira Martins que, quando osmarinheiros se revoltaram contra Vasco da Gama "na travessia do oceano Índico,entre Mombaça e Calicute", o grande navegador "convocou a conselho os pilotos daesquadra a bordo da sua nau, (...) tomou os instrumentos e papéis, arrojou-os ao mar,e, apontando a Índia encoberta, disse-lhes: 'O rumo é este, o piloto é Deus!'". Eis umexemplo disso que se chama de "divinização do homem", numa imagem típica da fée da vontade que definiu, nos descobrimentos, o gênio peninsular.

O holandês Johan Huizinga disse que os príncipes buscavam em seusempreendimentos "um vivo elemento de exaltação religiosa". O português OliveiraMartins diz, no mesmo sentido, que "a lenha com que o incêndio místico sealimentou na Idade Média (ibérica) foi a guerra contra os sarracenos, foi a literaturacavalheiresca e sagrada".19 Uma guerra prolongada de séculos, na qual "omisticismo começa por nos aparecer como uma transformação de cavalaria –caballeria a lo divino – em Santa Teresa, na biografia de Santo Inácio, e em SãoJoão da Cruz". Na projeção dos séculos vindouros, esse misticismo, misturado com aguerra e a cobiça, se encontrará também nas raízes da grande decadência, em figurascomo as de Filipe II (1527-1598), de Espanha, e de D. João III (1502-1557), dePortugal, "temerários monarcas que reduziram seus reinos a cinzas, em holocausto àquimérica pureza da fé". Como entender de outro modo a figura trágica de D.Sebastião (1554-1578), o jovem rei enfermo que desapareceu na batalha de Alcácer-Quibir, dando prosseguimento à longa noite, que já se iniciara, da decadênciaportuguesa?

Alargamento do mundoTendo aprendido com o suíço Jacob Burckhardt que o Renascimento foi, na Itália,uma ruptura de tradições e costumes da Idade Média, somos por vezes levados aesquecer que, na Europa em geral, o Renascimento foi um processo que durouséculos.20 Michelet pensava que esse período se estendia, grosso modo, de 1400 até1600, marcado pela descoberta do mundo e a descoberta do homem. E Burckhardtvia no Renascimento italiano, em contraste com a Idade Média, a redescoberta dohomem e do mundo empreendida por indivíduos em harmonia com sua realidadecircundante. Foi um ressurgimento do individualismo, que tornou o homem oconstrutor de seu mundo, e transformou o Estado e a própria vida numa obra dearte.21

Mas, como bem lembra Saraiva, na Europa não houve um Renascimento, masvários, conforme os países e as épocas. E, talvez, com uma amplitude maior no

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tempo do que a pretendida por Michelet. "O Renascimento", diz Saraiva, "é oresultado de um processo histórico iniciado no seio do mundo feudal, (...) uma criseatravés da qual se transita de um tipo de civilização para outro".22 Entre inícios doséculo XV e meados do século XVII são vários os Renascimentos, "que atingem ounão a maturidade, mais ou menos frustrados, mais ou menos precursores". E têmtodos "uma característica comum: correspondem à crise do mundo feudal, através daqual se gera o mundo capitalista".23 É nesse sentido que se pode reconhecer umRenascimento nos países da península Ibérica, em alguns aspectos anterior ao dediversos países europeus.

Assim, já na última Idade Média, assistia-se, como dizíamos, a um movimento detransformação das idéias e de mudança dos sentimentos religiosos que tinha paralelocom o que ocorria também nas ciências. Mergulhada no misticismo, a última IdadeMédia foi também uma época em que as aberturas culturais, técnicas e econômicasse somaram à renovação religiosa. Antes de Galileu Galilei (1564-1642) houvera ofranciscano Roger Bacon, no século XIII, preconizando o conhecimento baseado naexperiência. Antes que se iniciasse o Renascimento, os portugueses já eram donos deuma antiga experiência no mar, dirigindo-se ao norte da Europa. Já no século XII, ascruzadas tinham trazido um sensível alargamento do mundo conhecido.

Os Wehling constatam que "iniciada no século XI ou XII, a expansão comercialteve seu apogeu, conforme a região, no século XIII. Foi a época em que sedesenvolveram o artesanato, organizado em corporações de ofícios, e o comércio dealguns produtos agrícolas europeus (cereais, por exemplo) ou importados do Oriente(as especiarias). Também datam desse período a primeira expansão monetária desdea queda do Império Romano e a multiplicação das rotas comerciais, que ligaram apenínsula Ibérica ao Norte da Europa e à Itália e esta à Alemanha e à Inglaterra, comramificações para a Europa oriental, do mar Báltico ao Mediterrâneo. Foi omomento áureo das ligas de cidades comerciais, como a Hanseática, a Lombarda e aSuábica, bem como das feiras e das bolsas de mercadorias".24

Segundo Jaguaribe, o comércio marítimo era cada vez mais usado, devido aodesenvolvimento da tecnologia náutica e à segurança crescente do Mediterrâneo,com a redução dos ataques dos árabes e dos piratas, tornando a navegação oceânicauma possibilidade prática. Alguns comerciantes mais importantes fixavam-se numacidade determinada, credenciando representantes em outras cidades e usando agentesou companhias especializadas para transportar suas mercadorias.

A extensão da rede de representantes comerciais italianos no século XIII pode serilustrada pelo caso dos irmãos Niccolò e Matteo Polo. A viagem de Marco Polo(1254-1324), filho de Niccolò, foi iniciada no ano de 1271, com o objetivo de visitaros agentes comerciais da família na distante cidade de Sudak, na costa sul-oriental

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da Criméia.Nesse quadro em que se enfatizam os precedentes medievais dos descobrimentos,

vale frisar que nem mesmo a revolução religiosa de Lutero foi, em inícios do XVI,uma absoluta novidade. Seus precedentes estão no século XII, nos albigenses, nosvaldenses, nos franciscanos heterodoxos, nos joaquimitas, em John Wycliffe (1330-1384) e Jan Hus (1370-1415) – correntes religiosas que pretendiam regressar aoEvangelho dispensando o magistério clerical. Buscavam tornar a religião umarelação individual e direta entre o crente e Deus, e pretendiam dispensar ossacramentos, que são a principal razão de ser do clero. Antes de Lutero, os valdensese Wycliffe divulgavam o Novo Testamento traduzido em língua vulgar.25

Já se disse, com razão, que, para os padrões europeus, Portugal começou a cairmuito cedo: quando a Europa ingressa no capitalismo, em meados do século XVII,Portugal está em plena decadência. Mas há que reconhecer que, para os mesmospadrões europeus, Portugal também começou a subir muito cedo. Portugal deve àúltima Idade Média tanto o que terá de inovador como um dos países que descobremos caminhos para a África, para o Oriente e para o Novo Mundo, quanto o que teráde regressivo quando começou a decadência, a partir de meados do século XVI.

A nação e o marAntes mesmo da Espanha, Portugal começou a se formar como nação a partir doséculo XIII, com Afonso III (1210-1279), da dinastia de Borgonha. Desenvolveu seuprocesso de formação nacional ao longo de um século, que inclui o reinado de D.Dinis (1261-1325), morto depois de ter definido os limites territoriais do país.Embora sem haver se constituído como Estado, no sentido moderno da palavra,Portugal antecipou-se aos demais reinos e feudos da Europa quando se colocou "sobo domínio do mesmo rei, com toda a sua população de cristãos, moçárabes emuçulmanos". A conquista do sul pelos guerreiros do norte foi fundamental noprocesso de centralização monárquica. Lisboa, na região sul, que pertencia mais aorei e às ordens religiosas, tornou-se a pedra de toque da formação nacional, a capitaldo país e o mais importante porto da Europa da época.26

Portugal, como Castela, nasceu como uma nação de guerreiros, traço comum dospaíses da península. "Os oito séculos de constituição (da Ibéria) são ao mesmotempo oito séculos de guerra".27 Ao longo da duradoura ocupação árabe não se pode,porém, esquecer uma convivência entre cristãos e mouros que haveria de deixar"marca profunda na emergente cultura ibérica", quer entre os moçárabes, cristãosque viviam sob o domínio islâmico, quer, em nível cultural mais elevado, nacontribuição que a Ibéria haveria de oferecer ao pensamento europeu da época. "A

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Espanha muçulmana, com sua civilização bem mais avançada e sofisticada do que ado Ocidente cristão, pelo menos até o século XIII, transmitiu aos europeus a maiorparte do que eles vieram a conhecer da cultura grega antes de entrar em contato comos estudiosos bizantinos, no século XV".28

Ao longo dos séculos, os vários reinos que emergiram na Ibéria dos quatro centrosfocais da Reconquista – o reino das Astúrias e os Condados de Aragão, Barcelona ePamplona – "ficaram reduzidos a dois, a Espanha de Castela e Portugal". Castelahavia se tornado um reino independente em 1035, e terminou por absorver os outrosreinos peninsulares, com a exceção de Portugal. Em vez da incorporação dos lusosdesejada por Castela, a revolução de Avis – um fruto da crise do século XIV, comoas demais revoluções européias da época – acentuou ainda mais o caráter nacional ecentralizador da Coroa portuguesa. A sucessão de D. Fernando I (1345-1383),disputada pelo rei João I de Castela (1358-1390) – inaceitável pelo povo e pelanobreza por ser castelhano – , encontrou pela frente a resistência de D. João (1357-1433), Mestre da Ordem de Avis, que foi aclamado rei pelas Cortes de Coimbra. Orei de Castela invadiu Portugal, mas foi derrotado em Aljubarrota, em 1385, pelosportugueses comandados por Nuno Álvares Pereira (1360-1431), preservando-seassim a independência do país.29

D. João I iniciou a dinastia de Avis mantendo o apoio dos feudais, sob a chefia deNuno Álvares, e reforçou seu poder promovendo pessoas "inferiores". Reforçou-oainda mais porque alguns de seus filhos foram feitos duques, uma posição até entãoinexistente na nobreza de Portugal, e dois deles tornaram-se mestres de ordensreligiosas militares (as ordens de Santiago e de Avis). D. Henrique, em 1420, setornaria Mestre da Ordem de Cristo, uma ordem religiosa e militar que era, ademais,rica herdeira dos bens dos Templários. Como D. Henrique dedicou toda a sua vidaaos descobrimentos, pode-se supor que os recursos amealhados pelos templáriospara o resgate de Jerusalém passaram a ser destinados a suas empreitadasnavegadoras.30 Desse modo, a Coroa portuguesa, que firmara suas bases de apoio noporto de Lisboa e se consolidara na revolução de Avis, se achava destinada àsaventuras no mar e no além-mar, bem como à construção de um império que nosséculos XV e XVI se estenderia por três continentes.

D. Manuel I (1469-1521), em fins do século XV, foi "aclamado como o monarcamais rico de toda a Cristandade", e acrescentou a seus títulos "uma nova e orgulhosainvocação: 'senhor da conquista, navegação e comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia eÍndia'".31 Pode haver, porém, alguma dúvida entre os historiadores quanto a saberquem era mais rico, se o rei de Portugal ou o de Espanha. Segundo Oliveira Martins,os reis de Espanha, "Fernando e Isabel, ainda antes de os seus súditos lhesdescobrirem a América, (eram) já os monarcas mais ricos e poderosos da Europa".

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Parece não haver dúvida, porém, quanto a um ponto essencial: os reis da Ibéria"eram os patriarcas da sociedade religiosa. Todas as forças da nação, morais, sociais,materiais, estavam em suas mãos".32

Nesse ponto essencial, o que se diz de Fernando (1452-1516) e Isabel (1451-1504)vale também para D. Manuel e D. João III. São esses os reis que oferecem a imagemdo poder e da glória dos países ibéricos em sua fase de apogeu. A propósito, adescrição de Oliveira Martins é irretocável: "de pé, austera e esquálida, a figura dofrade ocupando o trono ao lado do guerreiro bronco e audaz, mas humilde na fé". AIbéria impregnada do catolicismo e do misticismo herdados das cruzadas e dasguerras da Reconquista daria origem a Estados de guerreiros que seriam tambémEstados de sacerdotes.

Expansão marítimaEntre as muitas "extravagâncias" que deve enfrentar quem se dedique a ler sobre aúltima Idade Média e a época dos descobrimentos, registre-se mais esta: como pôdeum país agrícola tão pequeno como Portugal construir um poder marítimo tão vasto?Oliveira Marques estima que a construção do império luso foi obra de cerca dequarenta mil pessoas. "Do Brasil às Molucas, menos de quarenta mil Portuguesesforam o bastante para garantir o controle econômico, proteger os portos, dominar asfortalezas; intimidar e punir os rebeldes contra a sua supremacia e colonizar quatroarquipélagos e uma longa faixa costeira num novo continente".33

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Aventura no "mar tenebroso": o autor de Relação do naufrágioda nau Conceição, Manoel Rangel, sobreviveu à tragédia.

Lembremos que, ainda no século XV e em meados do XVI, estamos diante de ummundo medieval de vastos impérios ligados ao papado, mas de reinos ou estadospequenos, nascidos da fragmentação feudal, alguns dos quais eram apenas cidades.Florença, Veneza e Gênova, então repúblicas mercantis e já emancipadas dofeudalismo, anteciparam-se a Portugal no século XIV em tentativas semelhantes no

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Mediterrâneo, embora de menor escala. De qualquer modo, o que se diz doexpansionismo de Portugal do século XIV ao XV e inícios do XVI vale para quasetoda a Europa. Reinos pequenos e grandes participavam de aventuras expansionistas,"algo anárquicas quanto à organização e aos objetivos, muitas vezes distantes damãe pátria". É nesse sentido que se pode falar de expansão, "como dão evidência oscatalães, os franceses e os italianos na Grécia e no Oriente Médio, bem como pelasúltimas cruzadas e pelo movimento das cruzadas em geral". Portugal não foi o únicoreino navegador da Europa, mas seus feitos só se equiparam aos de Castela, tendotido, com certeza, mais êxito que todos os demais.

Nessas épocas férteis em expedições aventureiras, as razões econômicas epolíticas sempre existiram, mas são em geral insuficientes para uma profundacompreensão das empresas medievais. Temia-se o "mar Tenebroso", mas algunsreinos, como Portugal, viviam fascinados com as histórias e as lendas sobre o reinodo Preste João, sobre a Índia desconhecida. As expedições aventureiras e temeráriasexigiam, como tudo o mais na Idade Média, uma cobertura de convicções religiosas:"No caso da expansão do século XV, essa cobertura foi feita de uma dupla textura: aluta contra o infiel e a salvação das almas".34 Havia muitas razões para tal, e de umpassado distante: no século XII, o ideal das cruzadas havia seduzido a penínsulaIbérica e, gradualmente, as mentes de seus reis e guerreiros. Não por acaso, adecisão dos reis de Espanha de apoiar Colombo em sua viagem de 1492 veio noentusiasmo da vitória sobre os mouros em Granada. O último episódio daReconquista serviria para datar o primeiro episódio do Novo Mundo.

O ideal das cruzadas dirigiu os esforços portugueses por muito tempo. SegundoOliveira Marques, "um plano para conquistar a África muçulmana com o objetivofinal, embora distante, de resgatar Jerusalém, estava nas mentes dos líderesportugueses, incluindo os reis João I, Duarte e Afonso V, Infante D. Henrique, evários outros. O ideal das cruzadas foi depois associado ao de alcançar a Ásia pelomar, e fundiu-se na vasta empresa de descobrir o mundo para Cristo. Os cristãosnunca aceitaram a idéia de uma perda permanente da Terra Santa, que já estivera sobo 'ecumênico' Império Romano. A reconquista do Norte da África, em seguida à dapenínsula Ibérica, parecia um objetivo natural."35 Assim sendo, "a luta comumcontra os almorávidas em inícios do século XIII e a empreitada conduzida porAfonso IV e pelas armas portuguesas no Salado, em 1340, tinham todas asaparências de uma cruzada, embora com uma cor e um sabor ibéricos". E, como sesabe, nos inícios do século XV, os portugueses pensavam em conquistar Granada,em poder dos mouros, decidindo-se, porém, a atacar Ceuta e Tânger. Registre-se apropósito dessa permanência dos ideais das cruzadas que a idéia de chegar aJerusalém permaneceu com os portugueses até meados do século XV. Ainda em

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1457, D. Afonso V preparava uma grande cruzada que nunca aconteceu.36

As razões e os motivos morais, religiosos, econômicos e políticos misturavam-seno caminho dos descobrimentos. Realizada por D. Henrique, a tomada de Ceuta, noMarrocos, em 1415, abriu a Portugal novos horizontes, maior proximidade dasespeciarias do Oriente, a pimenta e a canela, notícias sobre as terras do ouro noTimbuctu e do marfim na Guiné. Esse resultado econômico fora atingido por meiode objetivos criados numa atmosfera de idéias na qual misturavam-se também ossonhos dos franciscanos, que imaginavam algum dia trazer de volta para acristandade a China de Confúcio.

Os geógrafos medievais mencionavam a existência de ilhas no Atlântico, aperdida Atlântida, as Hespérides, as ilhas dos Bem-aventurados, a Ilha das Aves deSão Brandão, as Afortunadas. Já em fins do século XIII os genoveses haviamalcançado a costa da África Ocidental, mas desapareceram no mar.37 Persistiam,porém, os esforços dirigidos àquelas ilhas imaginárias que pairaram durante séculosnos sonhos e nos pesadelos europeus, até que as Canárias, que estavam relativamenteperto do continente, surgiram "da lenda para a luz", para se tornar objeto depermanente contenda entre os reinos de Castela e Portugal. Em 1344, o papaClemente VI as concedeu a um príncipe castelhano, sob protestos de Portugalperante a Santa Sé.

Numa época em que Veneza, mais próxima das portas do Levante, era o empórioda Europa, o cabo Bojador, na costa ocidental da África, era visto como o termo domundo medieval. Ir além do Bojador, como queria D. Henrique, de 1421 a 1433,significava, entre outras coisas, superar o controle das cidades italianas sobre oMediterrâneo. Mas a navegação oceânica exigia dos marinheiros a revisão completade sua ciência, então limitada à cabotagem, uma navegação com os olhos nos sinaisdas costas do continente, como era adequado a um mar interior como oMediterrâneo.38

"Revolução da experiência"Foi nesse contexto que ocorreram os efeitos da "revolução da experiência", mutaçãocultural resultante de décadas de prática dos marinheiros portugueses. É tambémdiante desse quadro que se deve admitir que, se a escola de Sagres não existiu comoinstituição desse nome, existiu como esforço criador. O Infante trouxe a seu lado acompanhia cosmopolita de físicos e de cosmógrafos – a maior parte deles judeus,entre os quais o célebre Jaime de Maiorca e Jaime Ribes, ou Jafuda Cresques, filhodo cartógrafo Abraão Cres. Os judeus estavam entre os mais distintos homens deciência medievais, em geral médicos, quase sempre também astrônomos. Com eles

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se formou, com apoio na experiência portuguesa no mar, uma nova ciência náutica euma nova espécie de técnicos. Os pilotos portugueses tornaram-se, nos séculos XV eXVI, os mestres europeus na arte de navegar para o alto-mar, restabelecendo umsaber que se perdera desde os fenícios.

Em 1441, surgiu a caravela, contribuição puramente portuguesa, que resultava daadaptação e do aperfeiçoamento de um tipo de embarcação que os pescadores dacosta portuguesa utilizavam desde tempos mouriscos. Embora, em seus inícios, aciência da navegação tenha se desenvolvido na Ibéria a partir de herança romana egrega preservada por árabes, judeus e cristãos, ela também se beneficiou dosconhecimentos técnicos que se introduziram ou se generalizaram na Europamedieval. Como diz Saraiva, a caravela e o astrolábio se inscrevem entre taisdescobrimentos técnicos, que começaram com "o moinho de água e de vento, aferradura, um novo sistema de atrelagem, a charrua, o leme vertical fixo, a bússola".O quadrante e o sextante passaram a ser amplamente usados já desde 1480.Acrescenta Saraiva: "no século XV já se utiliza a pólvora na artilharia; a fiação compedal e roda substitui antiqüíssima roca e fuso; produzem-se novas qualidades detecidos, melhora-se consideravelmente a produção do vidro e da faiança; realizam-seprogressos na técnica mineira e na fundição de ferro; fabricam-se relógios, nãoapenas de pesos, mas de mola de aço, portáteis; descobre-se a tipografia, isto é, aimpressão com caracteres metálicos móveis. Estas invenções (...) são estimuladaspor necessidades crescentes da agricultura intensiva e comercializada, da indústriatêxtil, do transporte terrestre e marítimo, da cultura cada vez mais divulgada, etc."39

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D. Henrique: guerreiro, místico e estudioso da ciência.

A "revolução da experiência" dos portugueses adquiriu um sentido mais amplo,

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juntando-se ao desenvolvimento da técnica para mudar a ciência da navegação e a dageografia. Quando Gil Eanes venceu o cabo Bojador, em 1434, rompendo a barreirado Atlântico Sul, foi como se tivesse decretado "a morte da geografia medieval",fazendo triunfar a experiência sobre a lenda.40 Gil Eanes era de Lagos, no Algarve,que no tempo do Infante não era apenas um porto para viagens longas, mas tambémum centro em volta do qual se reuniam os estudiosos da nova ciência náutica:genoveses, venezianos, castelhanos, bascos, catalães, ingleses, franceses, alemães,escandinavos, árabes e judeus. Além da matemática, da astronomia e da geometria,estudavam-se os roteiros de viagem que se encontravam nos livros de marinharia,incluindo métodos de navegação, registrando minuciosamente os sinais da costa.41

Embora as empreitadas portuguesas no mar tenham sido apoiadas pelo papado, ébem provável que o apoio que recebiam de fora tivesse muito a dever a suas novasatitudes diante do mundo. O papa confirmou os direitos do Infante em todas as terrasque viessem a descobrir-se desde o cabo Bojador até a Índia. D. Afonso V (1432-1481) investiu, em 1454, a Ordem de Cristo de jurisdição espiritual sobre as terrasda Guiné, da Núbia e da Etiópia. Tendo contribuído para o Renascimento nasciências náuticas, na navegação, na astronomia, nas ciências naturais, nasmatemáticas e na geografia, Portugal contribuiu também para uma renovação dasmentalidades na Europa. O Esmeraldo de situ orbis, de Duarte Pacheco Pereira(1460?-1533), escrito entre 1505 e 1508, é a primeira obra portuguesa dotada de umaatitude científica visando a uma concepção nova da náutica. Dizia Pacheco Pereira:"a experiência nos faz viver sem engano das abusões e fábulas que alguns dosantigos cosmógrafos escreveram acerca da descrição da terra e do mar. Disseramque toda a terra que jaz debaixo do círculo da equinocial era inabitável pela grandequentura do sol. E isto achámos falso pelo contrário". Não era apenas obra decronista, mas também de navegador, escrita com base na experiência acumuladadurante mais de trinta anos de viagens, uma das quais ao norte do Brasil, antes dePedro Álvares Cabral (1467?-1526?).42

Foi depois de muito tempo e trabalho que passou a valer, contra as herançasmedievais e clássicas, o saber "de experiências feito", tão louvado por cronistas epoetas portugueses. Em suas primeiras entradas no mar, os portugueses trabalhavamcom equipamento medieval e com uma perspectiva geral baseada na tradição e naautoridade dos antigos. Segundo Oliveira Marques, eles entendiam inicialmente quenão podiam questionar o que os clássicos e seus comentadores tinham escrito pelosséculos: "se a observação real parecia provar o contrário, então a própria observaçãoseria falsa". Continuaram a aceitar "os velhos mestres com os velhos erros, muitotempo depois que, do mais humilde marinheiro ao mais nobre vice-rei, tinhamrealmente observado e tocado uma realidade diferente. Por muito tempo, o ensino

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oficial e a experiência prática aparentemente coexistiram sem fricção, emboracontradizendo-se entre si". A mudança veio depois de muito tempo dessa estranhaconvivência entre o que se aprendia na cultura herdada, dos livros e das cartasgeográficas, e as experiências reais.43

Esse experimentalismo português se desenvolveu em paralelo a uma influênciahumanista que, na passagem do século XV para o XVI, faria da vida cultural"partícipe do movimento geral do Renascimento".44 Desenvolveu-se em separado,sem poder chegar a uma síntese. A experiência, além de empírica, era pessoal, e seconverteu "na única instância válida para a comprovação do legado científico ecultural transmitido pelos antigos". Embora projetando-se "no domínio mais vastoda relação do homem com a Natureza e o Cosmos" e envolvendo uma "rotundaafirmação da individualidade", uma mudança na concepção da pessoa, que confluíacom o sentido de um "humanismo global", de uma "centralidade do homem", essaconcepção da experiência era demolidora para a sabedoria consagrada. Separou-se,assim, tanto da tradição medieval quanto da corrente humanista que derivava darevalorização dos clássicos da Antigüidade. No confronto com as tradições, amedieval e a antiga, o experimentalismo português da época foi reduzido "àcondição menor de expressão cultural subalterna".

Dentro desses limites, porém, o experimentalismo português foi, como bem dizOliveira Marques, definitivamente uma revolução subversiva. Minou "as bases(tradicionais) do pensamento e da ação", tanto na técnica quanto na experiência domundo. Foi vista "como herética, absurda e imoral", combatida energicamente, "tevesuas vítimas e seus holocaustos".45

A comparação entre os roteiros de espanhóis e portugueses buscando novoscaminhos no mundo é muito sugestiva da vitalidade germinal desseexperimentalismo português. Os primeiros buscaram o caminho das Índiasnavegando de este a oeste, a partir da convicção, digamos imaginária, se não teórica,de Colombo sobre a forma redonda da terra. Os portugueses fizeram empiricamenteseu roteiro para as Índias, no sentido norte-sul. Conquistaram pedaço a pedaço,trecho a trecho, a costa da África, até que pudessem finalmente contornar o cabo daBoa Esperança.

Humanismo e descobrimentosO humanismo português começou depois do da Espanha, mas antes do de muitospaíses europeus. Como o da Espanha, tinha afinidades com a Itália, o papado e atradição latina, e cresceu com a riqueza propiciada pelos descobrimentos. Nos finsdo século XV e inícios do século XVI, a competição feudal e a proteção real criaram

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um ambiente favorável para a cultura, numa atmosfera de certo modo já preparadapelos reinados de D. João I e D. Duarte. Mas "formas medievais tardias, emborapermeáveis a influências humanísticas, floresceram em Portugal sob Afonso V, JoãoII, Manuel I, e mesmo João III, uma contrapartida à grande expansão marítima e suaresultante riqueza".46 Embora se atribua ao período de D. João III um ponto alto dainfluência humanista, tendências à modernização da cultura portuguesa vêm de hámais tempo e não se limitam ao campo das concepções artísticas e ético-filosóficas.É de fins do reinado de D. Manuel I, por exemplo, a centralização do sistema depesos e medidas e a publicação das Ordenações manuelinas (1512), incluindo areforma dos princípios de centralização de Estado típicos do Renascimento.47

Nesse período, que vem das últimas décadas do século XV a meados do séculoXVI, aumentou a intensidade de contatos internacionais, peregrinações à Itália,Pádua (onde está Santo Antônio de Lisboa), a universidades de prestígio, comoBolonha, Siena e Florença, visitas de professores italianos às universidadesportuguesas. Eram peregrinações e visitas portadoras de influências humanistas: "asrealizações culturais e as novas correntes de pensamento que surgiam na Itália eramrapidamente conhecidas e introduzidas em Portugal".48 Um grande número deportugueses ligados às atividades comerciais vivia permanentemente no exterior.Além de Bruges e da Antuérpia, para onde migraram muitos judeus portugueses,havia portugueses também em Castela, e mais ainda em Sevilha, Londres, Bristol,Southampton, França, Gênova, Florença, Veneza.49

Muitos estrangeiros visitavam Lisboa e a riqueza portuguesa permitia aos jovensestudar fora e, além disso, importar professores. Muitos portugueses estudaram emParis, Louvain, Salamanca e Oxford em meados e fins do século XV. Em Salamanca,na primeira metade do século XVI, cerca de oitocentos estudantes assistiam a aulasde Direito e Cânones. "Mas foi na França, Paris, mais do que em qualquer outrolugar, que foi preparado o que há de mais influente no humanismo português".50

Quaisquer que tenham sido as fragilidades desse humanismo, há de ser por algumarazão que humanistas como Erasmo, em 1527, e o pedagogo espanhol Juan LuisVives (1492-1540), em 1531, dedicassem obras a D. João III. O rei teria cogitadoconvidar Erasmo para dar aulas em Coimbra.51

A História, como disciplina de estudos, floresceu nas primeiras décadas do séculoXVI, estimulada pelas navegações e os descobrimentos e pelo interesse dosmonarcas em fazer o registro de seus feitos. Gomes Eanes de Azurara narrou asnavegações de D. Henrique; outros cronistas e historiadores, como João de Barros(1496-1570), Damião de Góes (1502-1574), Fernão Lopes de Castanheda (1500-1559) e André de Resende (1498-1573) narraram os eventos contemporâneos ousobre estes misturam a narrativa e a imaginação, como Fernão Mendes Pinto, em

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Peregrinação.52 Depois de 1520, sob influência italiana, Bernardim Ribeiro (1480?-1545?) e Sá de Miranda (1487-1558) fizeram uma crítica humanista àssobrevivências culturais.

Sob D. João III, desde os anos 20 até os anos 40 do século XVI, "o eixo da culturaportuguesa deslocou-se decisivamente para o campo do humanismo". Ou seja, paraum humanismo erasmista que, por exemplo, influenciou a obra de João de Barros,Ropicapnefma (1532).53 O escritor, amigo do rei e feitor da Casa da Índia,analogicamente transplantou para o campo ético-filosófico o sentido dacomercialização: "todas as qualidades de homens (...), quer sejam eclesiásticas, querseculares, com quantas dignidades, estados e ofícios houver entre eles, nenhum vivesem comprar e vender". A obra de Gil Vicente (1465?- 1537), criador do teatro daúltima fase medieval, seria reunida em 1562, numa Compilaçam de todalas obras deGil Vicente.54 Entre 1530 e 1540, mais de 20 colégios foram fundados em Portugal.Foram depois criados colégios reais.

A cultura acompanhava a mudança na sociedade. O censo realizado em 1527-1532, sob D. João III, permitiu estimar que houvesse em Portugal entre um mínimode um milhão e um máximo de um milhão e meio de pessoas. O crescimento dascidades manifestava o espírito da Renascença: ruas mais largas, praças maiores,casas mais ricas. Os escravos não iam além de 10%, concentrados em Lisboa. Osjudeus eram poucos e, quando em cidades, organizavam-se em comunas designadaspelo rei; trabalhavam em geral em profissões urbanas, submetidos a pesadosimpostos. Na Lisboa dos séculos XIV e XV, havia as judiarias, quarteirõesseparados por portões, cercas e muros.

Os mouros, na maioria camponeses e artesãos, em parte migraram, em parteforam assimilados, e, quando nas cidades, viviam nas mourarias. A agriculturadedicava-se ao trigo, à oliva, aos vinhedos, ao arroz, introduzindo-se depois o milho,vindo da América, em fins dos 1400 ou inícios dos 1500. Depois de D. Manuel I,abriu-se, com D. João III, a importação de grãos, estimulando o comércio. Adquiriuimportância, sob controle da Coroa, a indústria naval, tendo em vista o caráterinovador dos portugueses, famosos pela qualidade dos barcos.

Os dois países católicos, Portugal e Espanha, dentre os mais tradicionais daEuropa, escreveram, nas primeiras décadas do século XVI, um capítulo fundamentalda história moderna. Os grandes navegadores ibéricos tomaram, como sabemos,rumos diversos, Colombo para o Ocidente, e Vasco da Gama margeou a África paraatingir o Oriente. Contudo, num dia do ano de 1521, Fernão de Magalhães, umnavegador português que fora ao mar a mando da Espanha, transpôs a América peloextremo sul. Em certo ponto da viagem, os portugueses, já navegando pelo Pacífico,viram com espanto tremular numa nau a bandeira castelhana. Partidos da península

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Ibérica, espanhóis e portugueses, por vias diversas, iam encontrar-se de novo sobre aoutra face do mundo.55

Inquisição à portuguesaCiosos de sua autoridade, os dois impérios ibéricos não podiam curvar-se àautoridade do papado. "Não é que os reis protestem: ao contrário. A fé católica é aalma da sua alma, o entusiasmo religioso é a mola íntima do organismo nacional.Ainda como os reis-sacerdotes são verdadeiramente soberanos, porque nesta feiçãomais do que em nenhuma outra traduzem fielmente o querer do seu povo. São atémais católicos do que esse papado italiano semipagão; acusam-no de tibieza, e, naimpossibilidade de o convencer, reclamam, como reis, a autoridade espiritual,criando com o povo, contra Roma, a Inquisição".56

Embora os tribunais do Santo Ofício estivessem em decadência em fins do séculoXV, Fernando e Isabel, de Espanha, obtiveram do papa, em 1478, autorização parauma Inquisição contra mouros e judeus. Ressurgia assim o Tribunal do Santo Ofício,muito antes da rebelião luterana, embora depois venha a incluir os seguidores deLutero entre os possíveis acusados. Em 1515, alguns anos antes da eclosão domovimento da Reforma, D. Manuel I pediu a instauração da Inquisição em Portugal,visando, como os reis de Espanha, aos mouros e aos judeus. Na insistência do reiportuguês havia o evidente propósito, visto com desconfiança pelo papado, de imitara Espanha, conseguindo mais um instrumento para o aumento do próprio poder.Diante da recusa, a Coroa portuguesa renovou o pedido em 1525, por intermédio deD. João III, insistindo, e nisso seguindo de novo o exemplo espanhol, na instauraçãode um tribunal que pudesse confiscar os bens dos acusados, realizar processossigilosos, negando aos acusados informação sobre a identidade dos denunciantes.

A Inquisição foi concedida a D. João III em 1536, embora com diversas restriçõesde ação, que a faziam mais fraca do que a de Espanha, que já funcionava há décadas.Mesmo com tais restrições, em 1539, D. Henrique, irmão de D. João III, passou aInquisidor-Geral. Suspensas pelo papa as suas atividades em 1544, as restriçõesimpostas por Roma caíram, finalmente, em 1547, e a partir de então a Inquisiçãoportuguesa passou a se assemelhar à espanhola. Não faltavam, para a insistênciaportuguesa, motivos reais ou supostos – em todo caso sempre aumentados emanipulados em consonância com o catolicismo predominante no país.

Depois do terremoto de 1531, os "cristãos-novos" tornaram-se alvo de váriasacusações, entre as quais a "de esconder gêneros alimentícios com fins especulativosdurante a grande fome provocada por um surto de peste ocorrido em 1530, pela secade janeiro de 1531 e pelo terremoto do mesmo ano". A sucessão de tragédias foi

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considerada como "um castigo divino pelas ofensas dos judaizantes". E, em respostaao clima de medo, histeria e suspeita, no mesmo ano de 1531, alguns "cristãos-novos", tidos como hereges, foram queimados na praça de Olivença, após umjulgamento sumário.

"Quem presidiu aquele auto-de-fé – o primeiro realizado em Portugal – foi freiHenrique de Coimbra, o mesmo que, 31 anos antes, acompanhara Pedro ÁlvaresCabral na viagem ao Brasil e rezara a primeira missa na Bahia".57 ObservaVarnhagen, porém, que nunca houve uma Inquisição especial para o Brasil. AInquisição, que aqui permaneceu sempre sujeita à de Lisboa, só chegaria depois de jábastante adiantada a colonização, em especial desde o século XVIII, "em que asriquezas começaram a seduzir os cobiçosos fiscais do chamado Santo Oficio".58

Ensaios de colonizaçãoO descobrimento do Brasil é parte de uma série de êxitos portugueses que começamcom a conquista de Ceuta (1415) e a ocupação da Madeira (1419-20). Assim comoexpandiram seu domínio e seu conhecimento náutico no curso dessas conquistas, osportugueses iniciaram também as experiências por meio das quais o reino e asociedade lusos se transformariam, acrescentando a sua condição de poder marítimoa de poder colonizador. Na Madeira buscaram, como os castelhanos, a resinavermelha usada na indústria têxtil, dando início a um projeto de colonização quedepois se aplicará na América portuguesa. Doada pelo rei D. Duarte (1443-1438) aD. Henrique, este ali criou três capitanias, perpétuas e hereditárias, inspirando-se nasexperiências das repúblicas italianas nos povoamentos mediterrâneos orientais deapós as cruzadas, e também dos catalães e dos franceses na mesma área. Essesistema começou a dar resultados em meados do século XV e, já em 1451, Funchal eMachico foram reconhecidas como vilas.

Àquela altura do século XV, a Madeira começou a exportar açúcar e a importarescravos, provando que, como se dizia, escravos e açúcar eram mais lucrativos doque ouro. Diante da Europa daquele momento, a Madeira apareceu, como depoisaparecerá o Novo Mundo, como um éden que produzia tudo quanto era necessário aohomem. Da ilha disse Luigi da Cadamosto (1432-1488), um cronista venezianopertencente à corte de D. Henrique: "Toda ela é jardim, e tudo ali se dá!". Quase asmesmas palavras, em todo caso as mesmas idéias, que muitos cronistas usariam paradescrever o Brasil, recém-descoberto. Uma versão dos mitos edênicos, tão bemdescritos por Sérgio Buarque de Holanda em Visão do paraíso, que se misturaramaos sentimentos dos primeiros navegadores e conquistadores.59

Portugal crescia no mar e no além-mar, e, em conseqüência, mudava como país.

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Iniciada a carreira como poder colonizador, já por volta de 1450, em Portugal, aeconomia e a população começaram a crescer de novo, uma "tendência (que)caracterizou todo o século XVI".60 Embora tal crescimento pudesse ser entendidocomo uma condição favorável a que aumentasse a escala dos descobrimentos, estescaíram de ritmo depois da morte de D. Henrique, em 1460. A empresa ultramarinaportuguesa já havia, porém, definido seu perfil, inicialmente financiada pela grandeinstituição feudal que foi a Ordem de Cristo, e depois pelo próprio rei. "Só o rei seencontrava em condições de financiar as expedições marítimas, inicialmentearriscadas e de resultados incertos". É o rei, portanto, "que nos dois países dapenínsula Ibérica assume os encargos da exploração econômica do ultramar".61

Na ausência de uma burguesia comercial, que já existia na Holanda e nas cidadesitalianas, a expansão portuguesa tornava-se um empreendimento da Coroa, à qual "sejuntavam interesses e iniciativas privadas".62 O que significa que, inexistindo napenínsula contradição entre a expansão comercial e a terra, na qual os nobresinvestiam, o problema maior da expansão passava a ser o custo do Império que,porém, não podia ser sustentado pelas empreitadas marítimas. Em sua época demaior êxito, Portugal esboçava as condições que haveriam de torná-lo um entrepostodo capitalismo europeu que se iniciava.

No século XV, Portugal era também um país de mudanças sociais e econômicas,embora limitadas ao enquadramento medieval. Durante seu reinado, D. Afonso V"concentrou a propriedade da terra em poucas famílias, e surgiram novos titulados(...) com um crescimento similar nas rendas da terra e nos privilégios. Terras etítulos, porém, haviam sido distribuídos a não mais de quinze grandes famílias, dasquais a maior era dos Bragança".63 Além dos novos titulados, havia os "vassalos dorei", dois mil vassalos obrigados a cavalo e lanças. O estrato mais baixo era o dosfidalgos, mais numerosos, menos ricos e mais estáveis. Numa sociedade que, emfins do século XV, via fragmentar-se a tradicional divisão tripartite de clero,nobreza, e povo, ainda havia os cidadãos ("gente limpa"), a burguesia, os legistas, osartesãos e os escravos. Como era próprio a um Estado de sacerdotes e guerreiros, agrande maioria de arcebispos e bispos pertencia à nobreza.

A introdução de uma grande variedade de mercadorias exóticas e caras, antesdesconhecidas ou escassas em Portugal, trouxe um novo e decisivo elemento aocomércio medieval português. "Produtos como ouro, açúcar, especiarias, escravos,madeira, marfim e tinturas começaram a invadir o país em quantidades cada vezmaiores, de meados do século XV em diante. Tais mercadorias não apenas setornaram mais importantes para atender às demandas e necessidades do mercado,mas também superaram todas as formas de exportação em valor econômico". Amudança enorme no comércio de longa distância converteu Portugal num

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intermediário entre a Europa e a África (ou as ilhas Atlânticas) e, depois, numintermediário entre a Ásia e a América Latina.64 Tem origem nessas circunstânciasum caráter "parasitário" da economia portuguesa que persistiu durante muito tempo.

Depois da descoberta da América em 1492, que reavivou em Lisboa o entusiasmojá um tanto adormecido pelas viagens, Colombo visitou Portugal. Ao recebê-lo, D.João II (1455-1495) lhe disse que as terras que ele descobrira eram portuguesas,segundo um tratado de 1479-80, pois estavam abaixo das Ilhas Canárias. Eram asvelhas pendências entre Portugal e Castela, que haveriam de levar em 1494 aoTratado de Tordesilhas, que durou até 1750, estabelecendo um meridiano a oeste deCabo Verde como linha divisória do que deveria caber aos dois países nas novasterras conquistadas. Em 1497, Vasco da Gama partiu para as Índias. Em 1500,Cabral descobriu o Brasil. Ou melhor, realizou o "achamento oficial do Brasil",como dizem os historiadores portugueses.

1. WEHLING, Arno; WEHLING, Maria José C. M. Formação do Brasil colonial. 3. ed. Rio de Janeiro: NovaFronteira, 1999. p. 20-21.

2. LUSCOMBE, David. Medieval Thought. New York / Oxford: Oxford University Press, 1997. p. 136.3. Apud BRADING, D. A. The First America: The Spanish Monarchy, Creole Patriots, and the Liberal State,

1492-1867. Cambridge: Cambridge University Press, 1993.4. Apud Oliveira Martins, que acrescenta: "A necessária expansão de uma vida mal contida nos limites

nacionais da Europa, o fervor da propagação da fé e o movimento instintivo da cobiça são causas comunsdas descobertas e conquistas espanholas e portuguesas". MARTINS, Oliveira. História da civilização ibérica.Lisboa: Europa-América, 1984. p. 183.

5. A mistura desses motivos – a cobiça e a expansão do poder e da fé – que impulsionaram os descobrimentose as conquistas, com vistas ao caso do Brasil, está bem descrita em WEHLING; WEHLING, op. cit., p. 19 eseguintes.

6. Segundo Saraiva, desde o século XIV, Gênova, Florença e Veneza são repúblicas mercantis que seemanciparam do feudalismo. As cidades flamengas encontram-se também numa posição excepcional graçasao comércio de têxteis, uma das principais fontes do capitalismo europeu. SARAIVA, op. cit., p. 9.

7. Diz Saraiva, a propósito das Décadas, de João de Barros (1496-1570): "Estudando o travejamentoideológico das Décadas, não vamos definir a ideologia de um indivíduo, mas a de uma estrutura social cujabase são os 'Cavaleirinhos da Índia' que têm na guerra, na ocupação militar e na escravatura o seu modo devida, e cujo vértice é o rei que dorme por cima do armazém da pimenta e que das suas janelas vê partir asarmadas carregadas de guerreiros e regressar repletas de fardos". Ibidem, p. 278. João de Barros não tevetanta sorte no Brasil, pois naufragaram os navios que enviara para tomar posse da capitania que lhe foradoada por D. João III, em 1535, na Amazônia. Nova tentativa, em 1556, também fracassou. As Décadas,publicadas em 1552, foram escritas por sugestão de D. Manuel.

8. HUIZINGA, Johan. El otoño de la Edad Media. Estudios sobre las formas de la vida y del espíritu durantelos siglos XlV y XV en Francia y los Países Bajos. Madrid: Revista de Occidente, 1952. p. 20, 22 e 26.

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9. AZURARA, Gomes Eanes de. Crônica do descobrimento e conquista da Guiné. Lisboa: Europa-América,1989. p. 46. Ver também SANCEAU, Elaine. D. Henrique o Navegador. Porto: Livraria Civilização, 1942. p.31.

10. O livro clássico de Tönnies, Comunidade e sociedade, foi publicado em 1922, e analisava a transição daera préindustrial à era industrial. A "comunidade" se caracterizaria pelas relações pessoais de sangue, afeto,respeito e medo. A "sociedade" seria caracterizada por vínculos racionais fundados sobre o contrato e ointeresse, uma sociedade economicamente eficaz, mas psicologicamente deprimente.

11. JAGUARIBE, Helio. Um estudo crítico da história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. v. I, p. 412.12. LUSCOMBE, op. cit., p. 1013. CHESTERTON, G. K. São Tomás de Aquino. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003 p. 211 e seguintes.14. JAGUARIBE, op. cit., v. I, p. 411-412. A ressurgência das cidades começou no fim do século X,

especialmente na Provença, no Languedoc, na Catalunha, na Itália setentrional e em Flandres, espalhando-se por outras regiões da Europa. Esse processo continuou até a época da Peste Negra (1348-1350), quematou mais de um terço da população européia – cerca de 25 milhões de pessoas. No século XV, as cidadesvoltaram gradualmente a se expandir.

15. Ibidem, p. 415.16. BUENO, Eduardo. Capitães do Brasil. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999. p. 238. Cf. também JAGUARIBE, op.

cit. p. 415, e VARNHAGEN,João Adolfo de. História geral do Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Laemmert, 1907,tomo I, p. 163. Acrescenta Bueno que, em fins do século XV, a Inquisição arrefecia na Europa, quando foiremodelada e se estabeleceu na Espanha em 1478.

17. MARTINS, História da civilização ibérica, cit., p. 161.18. JAGUARIBE, op. cit., p. 410.19. MARTINS, História da civilização ibérica, cit., p. 161. O parêntese para acentuar a palavra "ibérica" é meu.

O texto de Oliveira Martins diz "Idade Média espanhola", adotando para os dois países da península adesignação, mais antiga, de Espanha.

20. Segundo JAGUARIBE, op. cit., o termo "Renascimento" foi empregado pela primeira vez num romance deBalzac, de 1829, mas o conceito, como o entendemos hoje, foi apresentado por Jules Michelet (1798-1874)na segunda série da sua História da França (1855-1867), e desenvolvido plenamente por Jacob Burckhardt(1818-1897) no seu extraordinário livro A cultura do Renascimento na Itália, de 1860.

21. Ibidem, p. 431.22. SARAIVA, op. cit., p. 17.23. Ibidem, p. 161.24. WEHLING, op. cit., p. 22.25. SARAIVA, op. cit., p. 19.26. MARQUES, op. cit., p. 118.27. MARTINS, História da civilização ibérica, cit., p. 156.28. JAGUARIBE, op. cit., p. 403-404.29. Ibidem, p. 406.30. Irmão do rei Afonso V de Portugal, e Geral da Ordem de Cristo, D. Henrique "redirecionou o impulso e os

fundos da Ordem, desviando-os dos projetos de novas cruzadas para um grandioso programa dedescobrimentos marítimos". JAGUARIBE, op. cit., p. 439.

31. MARQUES, op. cit., p. 214.32. MARTINS, História da civilização ibérica, cit., p. 171.33. MARQUES, op. cit., p. 264.34. Ibidem, p. 140.35. Ibidem, p. 161.36. Ibidem, p. 140-141.

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37. Ibidem, p. 145.38. SANCEAU, op. cit., p. 169-170.39. SARAIVA, op. cit., p. 20.40. SANCEAU, op. cit., p. 178.41. SARAIVA, op. cit., p. 20.42. PEREIRA, Pacheco; CASTRO, João de. A revolução da experiência. Selecção, prefácio e notas de João de

Castro Osório. Lisboa: Edições SNI, 1947. p. 85. Nos excertos de João de Castro (1500-1548), discípulo domatemático Pedro Nunes (1502-1578), recolho o seguinte diálogo entre "discípulo" e "mestre": "Pois quempode arrancar do mundo esta opinião dos antigos?". Responde o "mestre": "A muita experiência dosmodernos, e principalmente a muita navegação de Portugal (...) e dos outros Espanhóis" que, como osportugueses, "navegaram a redondeza do mundo" (p. 167).

43. MARQUES, op. cit., p. 204.44. MENDES, António Rosa. A vida cultural. In: M ATTOSO, José (Org.). História de Portugal. Lisboa: Estampa,

1993. v. 3: No alvorecer da modernidade (1480-1620). Coordenação de Joaquim Romero Magalhães. p.375 e seguintes.

45. MARQUES, op. cit., p. 204.46. Ibidem, p. 198.47. Ibidem, p. 174.48.Ibidem, p. 191.49. Ibidem, ver p. 173 e seguintes.50. Ibidem, p. 191.51. MENDES, op. cit., p. 383.52. Publicação recente de Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, em dois volumes, pela editora Nova

Fronteira (Rio de Janeiro, 2005), adota versão do texto para português atual de Maria Alberta Meneres.53. De origem grega, o estranho título dessa obra de Barros significaria "mercadoria espiritual".54. MENDES, op. cit., p. 381-382.55. MARTINS, História da civilização ibérica, cit., p. 182.56. Ibidem, p. 149-151.57. BUENO, op. cit., p. 239.58. VARNHAGEN, op. cit., p. 163.59. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do paraíso. 5. ed. São Paulo: Brasiliense, 1992.60. MARQUES, op. cit., p. 165.61. SARAIVA, op. cit., p. 26.62. MARQUES, op. cit., p. 265.63. Ibidem, p. 178: "Em 1481, quando D. Afonso V morre, cresce o número de titulados, de apenas dois

duques e seis condes que antes existiam a quatro duques, três marqueses, vinte e cinco condes, umvisconde e um barão". Os Bragança passaram a ter doze títulos, dos quais dois duques, três marqueses esete condes.

64. Ibidem, p. 170-171.

[<<6]

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O novo mundo e sua velha população: Dança Tapuia, pintura do século XVII.

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CAPÍTULO 3

CONQUISTADORES E ÍNDIOS

Ultra equinoxialem non peccavi. A frase tem origem na Europa, o continente digno: mesquinhas pornatureza, pensava ela, seriam as outras partes do mundo. (...) Os negócios coloniais têm direito – é

ainda moral européia de hoje – de ser louches, o direito de serem tortos.A.P., Cartas do Brasil, de MANUEL DA NÓBREGA1

Uma corrente do pensamento brasileiro da Segunda República, reafirmando umatendência centralista do Império, conduziu a uma imprecisão histórica, talvez algumexagero, quando estabeleceu entre alguns estudiosos a idéia de que o Brasil nasceudo Estado. Na verdade, seria difícil qualificar como Estado, no sentido moderno dotermo, a Coroa portuguesa, carregada de ressonâncias medievais, que iniciou aconquista e a colonização do Brasil. E que, em meados do século XVI, pouco depoisde iniciada a colonização, entraria em decadência, culminando, entre 1580 e 1640,na submissão aos Felipes de Espanha. No início do século XVII, a soberania daCoroa portuguesa achava-se enfraquecida sobre seu território na Europa e, maisainda, sobre seu território na América, onde, de resto, a soberania da Coroaespanhola nunca fincou raízes.

O Estado português – no sentido moderno – é um fenômeno de meados do séculoXVIII, da ilustração e do absolutismo, dos tempos de Pombal. Nessa época já haviano Brasil uma economia do açúcar em São Vicente, Pernambuco e Bahia, e achava-se em andamento a exploração de metais preciosos em Minas Gerais, Goiás e MatoGrosso. Eram riquezas brasileiras que sustentavam Portugal nesse tempo. Mais certodo que dizer que o Brasil nasceu do Estado seria dizer que o Brasil nasceu com oEstado.

Embora vinculados a pressupostos feudais e enfrentando dificuldades nas Índias,D. Manuel (1495-1521) e D. João III (1521-1557) tomaram iniciativas nas terras deSanta Cruz, sem as quais não haveria a conquista, nem a colonização se processaria.Nesse sentido, é certo que o Brasil construiu-se em resposta às iniciativas da Coroaportuguesa. Mas quando esta perdeu força, a colônia cresceu por seu própriodinamismo, terminando por revelar-se fundamental na consolidação do Estadoportuguês.

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A fé, o ouro e o poder: os mesmos motivos que levaram os portugueses aosdescobrimentos empurraram-nos para a conquista do novo território, no qualescreveram, em que pese a obscuridade dos primeiros tempos, uma históriagrandiosa, de dimensões só comparáveis à Reconquista e aos descobrimentos. Emconfronto com os antigos feitos ibéricos, mudou o cenário, que, em vez das terraspeninsulares e dos mares e oceanos, passariam a ser as florestas do território imenso.Mudaram também os atores, substituídas as figuras do cruzado e do navegador pornovos personagens. Mas nasceria da conquista um novo país, marcado em seus doisprimeiros séculos por cicatrizes e combates, tropelias, dores e suores quecaracterizariam a colônia brasileira.

Como a conquista do território acabou por se confundir com a primeira etapa dacolônia, esta se confundiu com a formação da nova sociedade, conferindo à históriabrasileira esse traço forte de continuidade que é uma de suas marcas mais peculiares.De algum modo imbricados entre si, esses processos – conquista, colonização eformação da sociedade – continuam até hoje. Mudaram, evidentemente, as condiçõeshistóricas, sociais e econômicas, mas algo desses processos de origem continuam emandamento no Brasil. Seu imenso território se acha, na maior parte, sob controleadministrativo de um Estado moderno, mas nem por isso inteiramente povoado. Emcertas partes do país, a obra da conquista continua.

Conquistas: a espanhola e a portuguesaDiferenças de circunstância e de ritmo entre as duas conquistas ibéricas suscitarampersistentes equívocos de interpretação sobre as primeiras décadas da colonização daAmérica. Alguns historiadores espanhóis sugerem que a conquista castelhana teriasido obra de particulares, e a portuguesa obra do Estado, acentuando diferenças entreos conquistadores dos dois países ibéricos que, na verdade, eram muito semelhantes.Frutos da mesma época, eram eles todos renascentistas e medievais, vassalos do reie da Igreja, agressivos, violentos e, com freqüência, místicos fervorosos.

As primeiras e fundamentais diferenças entre as conquistas ibéricas estão ligadasmenos às possíveis diferenças entre esses personagens peninsulares do que àssurpreendentes realidades que acharam pelo caminho. A Espanha encontrou sinais deouro desde seus primeiros contatos com a América, suscitando, desde a segundaviagem de Colombo (1496), uma corrida de aventureiros e exploradores que a Coroaespanhola, mais preocupada com a política européia, tinha dificuldades paracontrolar. Os portugueses, por sua vez, a partir da viagem de Vasco da Gama, em1498, estavam mais interessados nas Índias, onde se expandiam em violências nocaminho dos metais preciosos, com a mesma fúria dos espanhóis na América.

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Sem ouro à vista, a América portuguesa foi objeto de uma conquista mais lenta.Embora não se possa afirmar que tenham ficado esquecidas, a conquista e aexpansão portuguesa da América têm algo da lentidão e do empirismo dosdescobrimentos lusos. Os portugueses avançaram, pedaço a pedaço, às costas daÁfrica, ao passo que a Espanha buscou o caminho das Índias na direção este-oeste.As mesmas diferenças de perspectiva e de ritmo entre os ibéricos se observam naAmérica recém-descoberta. A expansão espanhola iniciou-se logo após 1496, com aocupação de São Domingos, Jamaica, Cuba, Porto Rico e Nicarágua. Continuou, nasprimeiras décadas do século seguinte, na conquista do México e do Peru, numaseqüência rápida, violenta e trágica de episódios denunciados desde o primeiromomento pelo padre Bartolomeu de las Casas (1474-1566), com ecos até hojepresentes na memória dos países hispano-americanos.

Diz o escritor mexicano Carlos Fuentes, num belo livro sobre a cultura hispano-americana: "É com uma dor magnífica que se funda a relação da Ibéria com o NovoMundo: um parto que se dá com o conhecimento de tudo aquilo que teve de morrerpara que nós nascêssemos: o esplendor das antigas culturas indígenas". Para oescritor mexicano, a conquista espanhola teria sido um dos "diversos traumas" que"marcam a relação entre a Espanha e a América espanhola".2 A magníficainterpretação de Fuentes sobre a conquista do México sugere um pathos de tragédiaque não encontramos na memória da conquista portuguesa do Brasil. Dá-se o mesmona interpretação de Octavio Paz, que veremos mais adiante.

Os brasileiros dificilmente chegariam tão longe em suas avaliações do passado.Têm, por certo, alguma consciência de sua dívida com os índios. Pode-se afirmarque participam do sentimento de serem testemunhas de suas próprias origens, comosugere Fuentes para descrever um traço característico das culturas ibero-americanas.Mas estão distantes de compartilhar o sentimento de que teriam surgido, como osmexicanos, à custa da destruição de um grande império indígena.

É certo que algo desse contraste de interpretação entre brasileiros e mexicanos sedeve a diferenças culturais mais antigas dos ibéricos da península. Diz o espanholMiguel de Unamuno que os dois "hermanos" da península eram ambos desconfiadosda razão, mas que diferiam entre si porque os portugueses seriam propensos a uma"pedanteria sentimental". Os castelhanos teriam um "sentimiento trágico de la vida",que seria "a expressão de uma luta entre o que o mundo é, segundo nos mostram arazão e a ciência, e o que queremos que seja, segundo nos diz a fé de nossa religião".Daí também, diz Unamuno, que Quixote tenha sido um desesperado, como Pizarro ecomo Loyola. "É do desespero e só dele que nasce a esperança heróica, a esperançaabsurda, a esperança louca. 'Spero quia absurdum'".3

Qualquer que seja o valor dessa interpretação para a cultura hispânica, Unamuno

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tem razão ao diferenciar espanhóis e lusos. Comparados aos espanhóis, osportugueses foram sempre mais sentimentais e mais realistas. Em vez da "esperançaabsurda", a que nasce do desespero, foram sempre mais propensos a apoiá-la naexperiência. Em todo caso, que peso poderiam ter tido tais imagens da culturapretérita da Ibéria nos fatos da conquista do Novo Mundo? Que peso poderia ter tidonos fatos da conquista essa alegada "pedanteria sentimental" portuguesa?

Quaisquer que sejam as respostas para essas perguntas, seria difícil para umintelectual brasileiro compartilhar, na descrição da conquista portuguesa, as belas etrágicas imagens dos intelectuais mexicanos sobre a conquista espanhola. É difícilpara um intelectual brasileiro dizer de Pedro Álvares Cabral o que o grande poeta eensaísta Octavio Paz disse de Hernán Cortés: que o conquistador do México seconverteu num mito "obscuro e negativo", "uma chaga aberta" do imagináriomexicano. Segundo Paz, Cortés tornou-se um "emblema da conquista", que se deu aperceber através de imagens "de uma penetração violenta e de uma usurpação astutae bárbara".4 Algo semelhante se poderia dizer do "poço de ignomínias" dosportugueses nas Índias; não, porém, da conquista portuguesa na América. Embora aesta não tenham faltado a violência e a brutalidade costumeiras naqueles tempos,seria difícil encontrar alguém disposto a qualificar Cabral, Tomé de Souza (1503-1579) ou Mem de Sá (1500-1572) como "chagas abertas" do imaginário brasileiro.

Em todo caso, cabe mencionar outras diferenças entre Espanha e Portugal quantoaos fatos da conquista. Se o Caribe e a América Central foram conquistados empoucos anos, e o México e o Peru em algumas décadas, a terra de Santa Cruz seriaconquistada num longo processo de lutas e tropelias que haveria de arrastar-se pormais de século e meio. Em 1497-1498, obcecados pela visão do ouro queacreditavam próximo, os conquistadores espanhóis devastaram as populaçõesindígenas de São Domingo, Cuba e outras ilhas do Caribe. As vitórias de Cortés naNova Espanha (México), em 1519-1520, foram das mais rápidas e violentas de todaa colonização ibero-americana. Foram ainda mais violentas as conquistas deFrancisco Pizarro, que, tendo começado sua aventura em 1525, retomou-a dez anosdepois, para ver consolidado o domínio espanhol no Peru, em 1541, ano de suamorte. Do Peru ficou memória ainda mais terrível do que a do México: não apenasos excessos de violência contra os índios, mas também entre os partidários deFrancisco Pizarro e Diego de Almagro (1475-1538).

O descobrimento e a conquista do Brasil teve algo de uma discrição, de umacalculada obscuridade, que atendia às conveniências da Coroa portuguesa e tornoudifícil, aos cronistas e historiadores, definir em pessoas os emblemas da conquistalusa na América. Diferente de Colombo, Cortés e Pizarro, o descobridor oficial doBrasil, Pedro Álvares Cabral, não acrescentou nenhum significado pessoal

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apreciável à grandeza do descobrimento de um território que já havia sidodescoberto por outros. E mesmo estes, entre os quais o português Duarte PachecoPereira, ficaram nas sombras por muito tempo. Mesmo a Carta de Pero Vaz deCaminha (1437-1500), o "escrivão da armada" de Cabral, ficou mais de século nosarquivos. Quanto à conquista do território, teve a participação, entre outros, demuitos capitães-donatários, alguns capitães-governadores, dezenas de bandeirantes.

Em vez de personagens que se erguessem às alturas dos mitos, os nomes dosmuitos conquistadores do Brasil valem, sobretudo, como exemplos de tipos sociais epolíticos. A figura do conquistador da terra de Santa Cruz desdobrou-se em figurasdiversas, que se confundiram na imagem genérica do povoador. Foi um fidalgo ouum membro da pequena nobreza, embora possa ter sido, e o foi com freqüência, umdegredado, ou um judeu ("cristão-novo"), às vezes também gente comum do povo.Mais tarde foi também um mameluco, mistura de português e índio, da qual saíramvários bandeirantes, no mais das vezes um aventureiro ou um guerreiro.

Havia também o jesuíta, representante da Contra-Reforma e crítico daescravização dos índios, mas que foi também um conquistador – de almas ou, comoforam às vezes acusados, de terras. Os índios, evidentemente, entraram naempreitada a contragosto, como força de trabalho, mas também como combatentes,aliados ou adversários dos portugueses. Os negros, que muitos chamavam na épocade "negros da Guiné", estiveram também desde o começo e, como os índios,acabariam por se firmar como condição da existência e da individualidade culturaldo novo país.

Primeiras impressões dos conquistadoresAlém da conhecida circunstância de que os espanhóis encontraram sinais de ourologo após a chegada ao Novo Mundo, ao passo que os portugueses levaram quasedois séculos para descobrir as minas, há uma outra diferença importante amencionar. Os espanhóis tiveram que se enfrentar com os astecas e os incas,impérios indígenas que destruíram em guerras que, em alguns episódios, tomaramdimensões de genocídio. No caso do Brasil, em vez de impérios, os portuguesesencontraram inúmeros grupos indígenas espalhados pela costa, assim como pelasterras interiores que ousaram atingir.

As primeiras impressões do paraíso que os europeus haviam sonhado em algumrecanto de suas mentes medievais podiam ser também sinais dos infernos que sevislumbravam na viagem cheia de riscos, de que está repleta a literatura dosnaufrágios, tão comuns naqueles tempos. No caso da terra de Santa Cruz, osprimeiros aventureiros – especialmente portugueses e franceses – concentraram-se

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na costa atlântica, onde se dedicavam à extração do pau-brasil, já refeitos dos sustosda viagem, mas advertidos sobre os perigos de se afastar das pequenas e precáriaspovoações da praia. Um historiador disse que as florestas que as circundavamtinham para os portugueses algo de parecido com o mar-oceano: eram umaassustadora mas fascinante promessa de riquezas, exacerbadas nas mentes européiasimpregnadas de mitos.

Vale lembrar, a propósito, algumas anotações célebres de Hernán Cortés antes datomada de Tenochtitlán, hoje Cidade do México. Foram escritas cerca de vinte anosdepois da chegada de Colombo a Santo Domingo e do desembarque de PedroÁlvares Cabral nas costas da Bahia. Em carta dirigida ao imperador Carlos V, Cortésse derramava em palavras de admiração sobre a cidade e suas "coisas estranhas emaravilhosas". "É uma cidade tão grande quanto Sevilha e Córdoba". Admirava-seCortés "do senhorio e serviço deste Mutezuma (ou Montezuma), senhor dela, e dosritos e costumes que tem esta gente". Admirava-se também de que fora recebidopelo imperador dos astecas acompanhado de "duzentos senhores, todos descalços evestidos" com roupas "de aparência muito rica".5 As primeiras impressões doconquistador sugerem algo sobre a importância das populações indígenas, de ummodo que se desconhece entre os conquistadores portugueses.6

Assim como Pizarro diante dos incas, Cortés viu nos astecas um império. Era umpovo organizado hierarquicamente entre nobres e gente comum, apoiado numsistema de dominação sobre povos vizinhos. Diferentes dos índios brasileiros, osastecas se achavam entre as poucas culturas indígenas da América com escritaprópria. Eram também dotados de uma enorme capacidade de violência, praticandosacrifícios humanos em cerimônias rituais que podiam atingir centenas, em algunscasos milhares de vítimas, e que ocorriam em especial em situações de guerra,algumas das quais provocadas com a finalidade, precisamente, de propiciarsacrifícios. Ressentidos contra a dominação dos astecas, que freqüentemente osescolhiam como vítimas para tais cerimônias, alguns dentre os povos vizinhosaliaram-se aos espanhóis para derrubá-los.7

Os astecas eram, além disso, uma cultura impregnada de mitos que explicavam aformação da humanidade por meio de ciclos de nascimento e morte. Esses mitoslhes permitiram interpretar a chegada dos espanhóis como algo de inevitável. Cortésrelata que Montezuma (1466-1520?) lhe disse que "nem eu nem todos os que nestaterra habitamos somos naturais dela, mas estrangeiros"; e que os que tinham idoembora voltariam, "deveriam vir subjugar esta terra e a nós como seus vassalos". Eisaqui talvez a parte mais significativa das estranhas palavras do imperador asteca: "esegundo a parte que vós dizeis (...) desse grande senhor ou rei que para aqui vosenviou, acreditamos e temos por certo (que) ele seja o nosso senhor natural (...); e,

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portanto, estejais certo de que o obedeceremos e o teremos por senhor. (...) Aquiloque o senhor mandar segundo vossa vontade (...) será obedecido e feito".

Evidentemente, o encontro entre Cortés e Montezuma não ficou apenas naspalavras. A guerra do lado espanhol se iniciara já no caminho para Tenochtitlán.Antes de chegar à capital do império asteca, Cortés passou pela província deTascaltecal (hoje Tiascala), onde relata que havia uma cidade "muito maior e maisforte que Granada". Aí deu combate ao que suspeitava ser uma conspiração dosíndios: "Em duas horas matamos mais de três mil índios".8 A guerra continuariadepois da chegada de Cortés a Tenochtitlán, e alcançaria as proporções de umverdadeiro genocídio.

Como entender que algumas centenas de espanhóis tenham sido capazes dederrotar milhares e milhares de índios? A explicação de um fato tão surpreendentetem a ver com técnicas e estratégias militares, mas, sobretudo, com a cultura. Alémda circunstância de que os espanhóis se serviam de armas de fogo e cavalos, que osíndios não conheciam, agregue-se um elemento cultural decisivo: os astecasacreditavam que os espanhóis, mais do que figuras admiráveis e poderosas, seriamdeuses que chegavam para o início de um novo ciclo da humanidade. Suas crençaspreparavam-nos para a derrota e a submissão. Anunciavam seu próprio fim.

Fascínio e medoO exemplo do México sugere uma pergunta sobre o Brasil. Se os espanhóis foramtão rápidos na conquista, por que os portugueses foram tão lentos? Talvez a respostaa essa pergunta se torne mais clara se revisarmos outras impressões européias sobreo Novo Mundo.

Na Carta de Pero Vaz de Caminha, que passou à história como uma espécie de"certidão de nascimento do Brasil", quase tudo o que diz o "escrivão da armada" éprenúncio do que haveria de vir. O anúncio de Caminha ao rei de Portugal de quenão vira nem ouro nem prata no novo território era sem dúvida uma triste notícia,mas não desanimou o escrivão quanto às convicções cristãs que também inspiravamos objetivos da viagem de Cabral, como de praxe nas viagens daquele tempo.Embora não ofereça o escrivão traços do misticismo fervoroso de Cortés ouColombo, menciona ao rei sua convicção no "acrescentamento da nossa fé". Osíndios, agrega, parecem-lhe "de tal inocência que, se nós entendêssemos a sua fala eeles a nossa, seriam logo cristãos, visto que não têm nem entendem crença alguma".E depois de elogiar as bondades naturais da terra, suas matas, suas águas, diz:"contudo, o melhor fruto que dela se pode tirar parece-me que será salvar esta gente.E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar".

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Nesse primeiro relato da conquista portuguesa há sinais de convivência e futuraamizade, assim como das violências que deveriam vir entre portugueses e índios.Por exemplo, na missa à qual todos compareceram: "Ali estiveram conosco (...)perto de cinqüenta ou sessenta deles (índios), assentados todos de joelho assim comonós". Caminha menciona também a troca de presentes e bugigangas, e deixa escaparfrases que denotam um olhar cobiçoso em face das belezas das índias. Uma dessas"era tão bem feita e tão redonda, e sua vergonha tão graciosa que a muitas mulheresde nossa terra, vendo-lhe tais feições envergonhara, por não terem as suas como ela".

O escrivão nada omite, nem mesmo a possibilidade da violência. Esta não seconcretizou na chegada, mas estava implícita na idéia de levarem alguns índios àforça quando as naus voltassem a Portugal. E se confirmou no temor dos degredados,obrigados a ficar em terra quando Cabral decidiu prosseguir viagem. Os infelizes"começaram a chorar, e foram animados pelos naturais do país que mostravam terpiedade deles".9

No alvorecer do século XVI, as realidades encontradas por portugueses,espanhóis, italianos e europeus em geral podiam ser diferentes, mas suas maneirasde ver eram muito semelhantes. Assim como eram semelhantes entre si, os europeuspareciam tentados no primeiro instante de sua aproximação a ver como semelhantestambém os índios. Parecia tamanha a dificuldade que sentiam em aceitarpacificamente as diferenças entre seres humanos que preferiam, num primeiromomento, iludir-se quanto às semelhanças. Algo desse sentimento, manifesto navisão inicial e superficial dos costumes religiosos dos índios "brasis", vinha dasÍndias, onde os portugueses acreditaram encontrar na semelhança de alguns rituaisdas gentes conquistadas um povo de religião cristã. Também foi assim no Brasil, atémesmo entre os jesuítas, que se apoiaram em distantes semelhanças de crenças paraestimular práticas de sincretismo como forma de aproximação com os índios.

Havia fascinação e medo nesse primeiro encontro da cultura européia com asculturas nativas. Os lusos, embora fascinados com a beleza das terras, das árvores,das águas e, sobretudo, das índias, temiam, por certo, os riscos da conquista que já seanunciavam. É assim que, relendo hoje a "Carta do Achamento do Brasil", cabeperguntar como seria a descrição do primeiro encontro se houvesse um "escrivão" dolado dos índios.

Assim como os portugueses, alguns deles ainda hoje orgulhosos de uma libido quelhes deu fama, admiraram a beleza morena das índias, é bem possível quetivéssemos, nas notas do imaginário "escrivão" indígena, sinais de um fascínio pelacarne branca de futuras cerimônias antropofágicas. Nesse ponto, a diferença entre osíndios "brasis" e os astecas estaria na quantidade de sacrifícios, lá muito maior e em

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cenários mais impressionantes. Como no México dos astecas, também nas terras deSanta Cruz nem sempre era fácil distinguir entre a antropofagia ritual e ocanibalismo.

Américo Vespúcio (1454-1512) também se entusiasmou com os índios: "sefossem vestidos, seriam brancos como nós". A cor da pele pareceu ao florentino umsinal de igualdade, mas ele menciona diferenças que deixam pressentir o temor quesentia. "Eles são mui leves para caminhar e nadar, tanto os homens como asmulheres (...) e nisso eles têm grande vantagem sobre nós, cristãos". São diferençasque sugerem a possibilidade da violência: "Eles estão acostumados à guerra, quefazem a povos que não são de sua língua, mui cruelmente, sem garantir a vida aninguém, exceto quando querem reservar (o prisioneiro) para maior sofrimento".10

Jean de Lery observa que os índios que conheceu não demoraram a perder o medodos arcabuzes. E que eles "diziam, aliás com razão, que atiravam mais depressa seisflechas do que nós um tiro de arcabuz"; por mais que se resguardassem com"cabeções, saias de malha e outras armaduras", os índios "nos transpassariam ocorpo com as suas flechas tão bem como nós o faríamos com um tiro de arcabuz".11

Observações como estas, associando as "bondades" dos índios às semelhançascom os cristãos e as diferenças à possibilidade da violência, logo se tornariamcomuns entre os europeus. Não é difícil perceber em meio a tais observações umailusão arrogante quanto à capacidade européia de persuasão e de domínio. Naprimeira aproximação dos europeus com as culturas indígenas havia algo do fascínioque construiu as utopias européias do "bom selvagem", muitas delas vindas dainfluência dos textos de Vespúcio, de larga divulgação na Europa. E que, em meio àcrendice européia, tão ironizada por Rabelais, beneficiavam-se de uma "visão doparaíso" exemplificada em mitos de herança antiga que percorriam a Idade Média efaziam parte da memória cultural dos navegadores e dos primeiros conquistadores.12

Cristóvão Colombo, Almirante do Mar-Oceano, já em 1498, antes de Cortés,Caminha e Vespúcio, relatava em carta ao rei de Espanha sua viagem às Antilhas.Dando mais um exemplo de como a cor da pele dos índios impressionara a todos,dizia que eles eram "de boa figura e não negros, senão mais brancos que os outrosque eu vi nas Índias". Desde o início da conquista a idealização do índio americanopareceria ter algo a ver com uma repulsa dos brancos pela pele escura que haviamvisto nas Índias e, mais ainda, pela pele do negro importado da África, que ascidades e portos de Portugal e Espanha conheciam desde o século XV. Colombocoincide também com Caminha ao ver os índios "de lindos gestos e formososcorpos, com os cabelos cortados como se usa em Castela". O calvinista Jean de Lery,que esteve em 1557 com Villegagnon, na Guanabara, e cujas anotações estão longede idealizar os índios, observa que "quanto à sua cor natural, apesar da região quente

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em que habitam, não são negros; são apenas morenos como os espanhóis e osprovençais".13

É certo, porém, que o Almirante também estava de olho no ouro, e tambémtemeroso da violência: "Quando viram que (eu) não atendia ao seu pedido (para queeu descesse à terra) vieram à nave em numerosas canoas e muitos traziam peças deouro ao pescoço e algumas pérolas atadas aos braços. (...) Procurei com empenhosaber onde as achavam; disseram-me que ali e na parte norte daquela terra". Umavez mais, porém, a advertência sobre os riscos: os índios aconselharam Colombo anão ir a essa parte norte porque ali "se comiam homens".

Colombo, diferente de Caminha, não aconselhava nessa carta ao rei aevangelização, mas pode-se perceber nas entrelinhas que ele era de umareligiosidade mais intensa do que a do português. Acreditava navegar "com a ajudada Santíssima Trindade" e agradecia a Deus quando encontrava terra. É evidente quede convicções religiosas tão profundas algo haveria de sobrar para a salvação daspobres almas indígenas. Caminha tinha o bom senso português de reconhecer quechegara a um lugar muito bonito, mas não ia ao extremo de dizer que chegara aoparaíso. Colombo, um genovês talvez seduzido pelos entusiasmos do misticismoespanhol, estava certo de que chegara ao paraíso. Dizia haver encontrado um rio eum lago "tão grande que se pode chamar um mar", porque "desta maneira se chama oda Galiléia e o Morto". Mais adiante afirmava: "eu tenho bem firme em minha almaque ali no lugar que mencionei, na Terra da Graça, se acha o Paraíso Terrestre".

Índios: os amigos e os inimigosA última das injustiças que a história reservou aos índios no Brasil é ter deixado nosbrasileiros a ilusão de que esses seus antepassados foram fáceis de enganar,corromper e dominar. Essa ilusão quanto à capacidade européia de persuasão edomínio se manifesta desde os primeiros encontros. Pero Vaz de Caminha estavaconvencido de que os índios não tinham nenhuma crença, e o padre Manuel daNóbrega chegou a afirmar que os índios "em cousa nenhuma crêm e estão papelbranco para neles escrever à vontade".14 Uma convicção que, bem cedo, levou ogrande jesuíta a decepções. Algo dessa visão negativa dos índios ficou na memóriabrasileira, misturada com a imagem do "bom selvagem", com a qual tem, no fim dascontas, alguns pontos de contato. É a visão do índio ingênuo, passivo, facilmentemoldável. Ainda hoje são poucos os brasileiros que se dispõem a reconhecer que osíndios não foram apenas vítimas, mas também protagonistas da colonização, naguerra como na miscigenação racial e cultural.

Uma das razões que explicam que a conquista portuguesa na América tenha

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tomado tanto tempo é de ordem militar. É que, diferentes dos astecas e dos incas, osíndios "brasis" não tinham cidades. Viviam em tabas, ou seja, em pequenas aldeias,formadas por choças, cabanas construídas com troncos e galhos de árvores, cobertoscom folhas, palhas e ramos de palmeiras e que abrigavam algumas dezenas depessoas. Não tinham uma hierarquia social, e suas formas de liderança eram muitorudimentares. Viviam dispersos em pequenas tribos, muitas das quais mantinhamcontato entre si, entrando freqüentemente em disputas guerreiras, mas nenhumadelas com a possibilidade de criar um império. Alguns grupos do interior, aindamais primitivos do que os da costa, viviam em buracos e cavernas nos morros,circulando nômades pelos sertões.

Vivendo dispersos num vasto território, os índios obrigavam os portugueses,quando as circunstâncias os levavam à guerra, a combates na selva, que os nativosconheciam como a palma da mão. Américo Vespúcio já havia pressentido essapossibilidade nos seus comentários sobre a leveza dos índios, "no caminhar e nadar(...) que nisso levam vantagem sobre nós".

Quando a circunstância se apresentava, eles impunham, tanto a portuguesesquanto a franceses, uma guerra com armas leves, diferente das táticas de combate àsquais os europeus estavam habituados. Quando guerreavam eram de uma ferocidadeque Lery descreve com admiração: "esses americanos são tão ferozes e encarniçadosem suas guerras que, enquanto podem mover braços e pernas, combatem sem recuarnem voltar as costas".15 De um modo ou de outro, o certo é que no Brasil – aocontrário das grandes batalhas que deram vitórias relativamente rápidas aosespanhóis do México e do Peru – os portugueses foram obrigados a muitasescaramuças e combates, na qual tiveram que submeter, um a um, ao longo de quasedois séculos, os diversos grupos hostis ou rebelados.16 Também nesse sentido aconquista lusa da América tem algo de similar à Reconquista na Ibéria. Foi umaprolongada sucessão de combates entre povos de culturas diferentes que envolveu,em suas tréguas e intermitências, um processo complexo de miscigenação eadaptações culturais.

Não se sabe ao certo qual o tamanho da população indígena do Brasil no séculoXVI. Alguns historiadores estimam que os portugueses encontraram aqui umapopulação de cerca de um milhão a cinco milhões de índios.17 O que se sabe comcerteza é que muitos grupos que habitavam a costa tinham uma língua comum, otupi-guarani. Com a contribuição dos jesuítas, o tupi-guarani veio a ser a "línguageral", um idioma de comunicação entre portugueses e índios, que, até o séculoXVIII, era ainda amplamente usado em alguns lugares – em São Paulo, por exemplo.Não obstante, mesmo os índios que podiam falar um idioma comum pertenciam atribos diversas, que falavam idiomas diferentes, a maior parte espalhada pela costa,

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desde o atual estado do Rio Grande do Norte até o litoral sul do atual estado de SãoPaulo, nos lugares onde se encontram hoje Cananéia e São Vicente. Em sua primeiratentativa de controle da costa, os portugueses os encontraram também ao norte,desde o litoral do Maranhão até a boca do Amazonas e, ao sul, até a entrada do rio daPrata.

Como no México, onde Cortés fez alianças com alguns grupos indígenas paracombater os astecas, também no Brasil os europeus aprenderam cedo a distinguirentre índios "amigos" e "inimigos". Um aprendizado que foi igualmente dos índiosem relação aos europeus, entre os quais também distinguiam entre "amigos" e"inimigos". De modo geral, para os portugueses, os tupis eram amigos e os tapuiasinimigos, ao passo que para os franceses ocorria o contrário.18 Eram, porém,classificações genéricas que não esgotam a diversidade enorme dos grupos entãoexistentes. Algumas dessas tribos eram recém-chegadas à costa, vindas de regiões dointerior, num movimento migratório que resultou na expulsão de outros grupos. Dequalquer modo, seja como "amigos" ou "inimigos", estariam todos destinados atomar parte na história que começava.

A distribuição dos lugares onde os portugueses se localizaram no litoral brasileirodo século XVI foi em grande parte uma expressão da distribuição geográfica deíndios "amigos" e "inimigos". O historiador Jorge Couto afirma que, numa primeirafase, entre aqueles que permitiram o estabelecimento de núcleos lusos em seuterritório contaram-se os tupiniquins de São Vicente, de Ilhéus, de Porto Seguro, doEspírito Santo e de Piratininga, os potiguares de Itamaracá, os tupinambás da Bahia.Contrariamente, os caetés de Pernambuco e os tamoios da Guanabara opuseram-se,desde o início, à penetração portuguesa.19

Segundo Wehling, onde havia restos da dominação tapuia – sul da Bahia, EspíritoSanto, interior do Rio de Janeiro, sul de São Vicente – o domínio português foicontido, ou estabelecido precariamente, "à custa de muito sangue". O mesmoocorreu no Espírito Santo, com os goitacazes, e em Pernambuco, onde os cácereshostilizavam os potiguares ao norte e os tupinambás ao sul. Daí para o sul, até SãoVicente, dominavam os tupiniquins, que, na Bahia, entraram várias vezes em guerracom os tupinambás. Os portugueses não puderam ocupar regiões onde os francesesse aliavam a potiguares, caetés, tupinambás, tamoios.20 Os "naturais" eram muitos.Segundo uma idéia sinistra de Tomé de Souza, primeiro governador-geral do Brasil,eram tantos "que ainda que os cortassem em açougue nunca faltariam".21

A fixação no território

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Se tudo foi lento na conquista da América portuguesa, à Coroa não faltou, porém,agilidade para reagir às circunstâncias. É significativo que, já em inícios de 1501,pouco depois da viagem de Cabral, D. Manuel tenha tomado decisões "para integrarfuncionalmente os domínios do Novo Mundo no contexto do Império", propiciandoviagens ao Brasil, entre a quais a de Gonçalo Coelho e a de Gaspar Lemos, de queparticipou Américo Vespúcio. 22 Das viagens portuguesas dos primeiros anos dacolônia pode-se dizer o que se disse daquelas de descobrimento: "não se fizeram aoacaso", "foram precedidas de cuidada e prolongada preparação".23 Pode-seconsiderar que até mesmo a viagem de Cabral se inscreve nessa categoria. Visandoconsolidar a posse dos novos territórios, os planos da Coroa portuguesa levaram àfixação territorial no século XVI, ainda que limitada à "fixação litorânea", e noséculo XVII, à "expansão territorial".24

A viagem de Gonçalo Coelho era o começo de uma política de criação de feitoriase de pequenas povoações, quase sempre à beira do mar, "arranhando as terras aolongo do mar como caranguejos", na expressão sempre lembrada de frei Vicente doSalvador. Um historiador português registra a existência de portos e feitorias emPernambuco (1502), Cabo Frio (1504), Porto Seguro (1503), São Vicente (1508) eBahia (1509). Outros historiadores consideram que esses nomes ainda não seriamnaqueles anos realidades definidas, mas sinais de pontos para ocupação futura. OsWehling dizem que a expedição de Gaspar Lemos, logo depois da viagem de Cabral,aportou "no atual Rio Grande do Norte (...), navegou para o sul, dando nomescristãos aos principais acidentes geográficos encontrados, de acordo com ocalendário: cabos de São Roque e Santo Agostinho, rio São Francisco, baía de Todosos Santos, angra dos Reis, São Vicente. Foi ela também que descobriu o Rio deJaneiro, em 1° de janeiro de 1502. Provavelmente navegou ainda mais para o sul, atéo rio da Prata".25 Parece não haver dúvidas, porém, de que em 1504 teve início oprimeiro projeto de exploração da terra, em contrato concedido ao judeu Fernão deNoronha, que durou até 1512.

Anote-se, en passant, que eventuais negócios da Coroa com judeus não impediama fúria do anti-semitismo nessa esquina da história, encontrando-se ainda recém-definida a condição dos "cristãos-novos". No mesmo ano desse contrato entre aCoroa e Fernão de Noronha, um ataque anti-semita nas ruas de Lisboa resultou namorte de centenas de judeus. A ambigüidade da Coroa diante dos judeus persistiráno século seguinte, não obstante as propostas em sentido contrário de AntonioVieira. A posição da Coroa, resolvendo a ambigüidade criada por D. Manuel, só seresolverá no século XVIII, com Pombal, que decretará a igualdade de "cristãos-novos" e "cristãos velhos" e a liberdade dos índios.

É certo, porém, que Portugal, assim como iniciou cedo a conquista, cedo se deu

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conta da necessidade da colonização. Ainda pendentes das riquezas das Índias, osportugueses estavam obrigados a preservar as novas terras no Atlântico Sul comobase de apoio para as naus que continuavam na busca dos caminhos do Oriente.Além disso, havia que fazer frente à constante ameaça de espanhóis e francesesvisando tomar posse das terras que os lusos acreditavam ser suas. Como diz umhistoriador, "a crescente presença de franceses no Novo Mundo português e apenetração de castelhanos nos territórios austrais configuravam uma real ameaçapara o domínio português do Brasil".26

Quanto aos franceses, basta mencionar que o rei Francisco I (1494-1547), daFrança, exigia ironicamente "que lhe mostrassem a cláusula do testamento de Adãoque o excluía da partilha do Mundo", fazendo-a exclusividade de portugueses eespanhóis.27 Instalados na Guanabara em 1505 e logo depois expulsos, os francesesbuscaram outras paragens, aportando em Pernambuco em 1531. Voltaram depois àGuanabara, em 1555, com Villegagnon, e fizeram ainda nova tentativa no Maranhão.Os ingleses ameaçavam ao norte, de olho na Amazônia. E os holandeses, já em finsdo século XVI, atacavam na Bahia e em Pernambuco, que conquistarão na primeirametade do século seguinte. Desde os inícios do século XVI a política de ocupação doterritório espanhol haveria de estimular reações do lado português, que via sobameaça seus próprios territórios. Em 1513, Vasco Núñez de Balboa (1475-1519)cruzou o istmo do Panamá por terra. Logo depois, em 1516, o português João Diasde Sólis, navegando sob bandeira de Castela, chegou ao Prata. Nesses mesmos anos,a Espanha acelerava a conquista, ocupando regiões do Caribe e depois o México e oPeru. A fundação de Buenos Aires é de 1536; a de Assunção, de 1537; Santiago doChile e Lima foram fundadas em 1541; a descoberta da prata em Potosi é de 1545-46; criou-se o arcebispado em Lima em 1547; fundou-se Guairá em 1557, na regiãode Sete Quedas. A consolidação gradual dos espanhóis no rio da Prata, com afundação de Assunção e Buenos Aires, prolongou a ameaça ao domínio português naregião até o século XVIII.28

Desde os primeiros anos do século XVI a Coroa portuguesa pôde perceber que acolonização se fazia obrigatória. O nome Brasil, em substituição a Santa Cruz, foiadotado em 1516, quando D. Manuel resolveu criar o sistema de "capitanias de mar eterra", o primeiro do gênero com o qual haveria de persistir no processo decolonização. (A mudança de nome provocou, em meados do século, protestos deJoão de Barros e Pero de Magalhães de Gândavo, que viam "obra do demônio" nasubstituição do símbolo da paixão e da redenção cristãs por um "pau que tingepanos".29) O rei enviou Cristóvão Jacques à Guanabara para "patrulhar a costa efixar um núcleo de colonos", de onde se transferiu para Pernambuco, aliestabelecendo uma feitoria e, como era obrigatório, uma aliança com os índios, no

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caso os tabajaras. Como também era obrigatório, dedicou-se ainda à procura dosmetais preciosos, para o que recebeu, em 1521, apoio do rei para subir o rio Paranáem busca da prata nos Andes.30

D. João III, cujo reinado (1521-1557) coincide com o de Carlos V na Espanha(1516-1559), enviou em 1531 ao Brasil o capitão Martim Afonso de Souza (1500-1571). De origem nobre, amigo de infância do rei e primo do seu principal assessor,o capitão foi nomeado "governador da Terra do Brasil" com grandes objetivos eamplos poderes: "efetuar um aprofundado reconhecimento do litoral, do Amazonasao Prata"; "proceder ao assentamento de padrões em locais estratégicos da 'Costa doOuro e da Prata', apresar todos os navios franceses encontrados na 'Costa do Pau-Brasil'; procurar metais preciosos; efetuar experiências agronômicas e fundarpovoações litorâneas".31 Tinha poderes "sobre todos os peões, índios ou escravos,(...) incluindo a aplicação de pena de morte e talhamento de membro". No caso deprocessos que envolvessem "pessoas de mor qualidade", limitar-se-ia a mandarprender os presumíveis culpados e a remetê-los para o reino. E tinha ainda poderespara "criar e prover tabeliães e oficiais de justiça, (...) nomear os oficiais necessáriosà 'governança da terra' (...) e distribuir terras em regime de sesmaria".

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Mapa do século XVI mostra as capitanias hereditárias.

Em sua curta permanência de dois anos na colônia, o jovem governador fundouSão Vicente e depois Santo André, esta como ponta de lança para o interior. Fezmais: distribuiu cerca de cem sesmarias a personagens "entre os quais se contava umsignificativo número de nobres". Das experiências agronômicas realizadas, concluiupela cana-de-açúcar em São Vicente, Bahia e Pernambuco, a exemplo do que já sehavia feito na Madeira e em São Tomé. Além da cana-de-açúcar, começou a criaçãode gado vacum, eqüino e ovino.32

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Um feudalismo colonial?Assim como as sesmarias concedidas por Martim Afonso beneficiaram figuras dapequena nobreza, também as capitanias, concedidas pelo monarca a partir do iníciodo ano de 1530, tinham como beneficiários figuras pertencentes à nobreza deserviço, a maioria delas associada aos empreendimentos governamentais na Ásia.33

Numa seqüência de ações e iniciativas em diversos momentos do século XVI, apersistência da Coroa na política de colonização por meio do sistema das capitaniasse torna evidente na listagem das datas de doação – 1530: São Vicente; 1534: PortoSeguro, Rio Grande do Norte, Maranhão, Jurucuará, Ceará, Itamaracá, Santo Amaro,Pernambuco, Bahia; 1535: Ilhéus; 1557: Paraguassu; 1567: Rio de Janeiro; 1590:Sergipe.34 Em duas capitanias, São Vicente e Pernambuco, com "maior afluxo deinvestimentos conseguidos por seus donatários e o maior número de colonos (...) acolonização se consolidou desde os primeiros anos".35 Em outras cinco houve umacolonização apenas precária, entre as quais Itamaracá, Bahia e Porto Seguro.

As capitanias eram concessões do poder público, buscando repetir sistema jáutilizado na colonização da Madeira, em Porto Santo e nos Açores. Nas ilhas, comono Brasil, os donatários eram "homens do fim da Idade Média, ainda saturados dastradições aristocráticas".36 Segundo Oliveira Martins, "para a constituição políticadas colónias não havia nas idéias do tempo noções diversas das que no séculoanterior se tinham aplicado às ilhas atlânticas: isto é, o enfeudamento dosterritórios". Ao fim da Idade Média, "a descoberta parecia atribuir um direitoanálogo ao direito da conquista nos tempos medievais".37 Segundo o historiadorVitorino Magalhães Godinho, as ilhas do Atlântico serviram "de verdadeiroslaboratórios insulares" da colonização no Brasil.38

Sabe-se, porém, que o modelo era conhecido, de quase dois séculos antes, dasilhas do Atlântico, também no Alentejo e no Algarve, depois de essas regiões teremsido tomadas aos mouros.39 O mesmo método foi também experimentado em CaboVerde e São Tomé. No caso do Brasil, porém, dado o alto grau de risco daempreitada, as concessões das capitanias envolviam "uma solução muito mais amplade delegação de competências régias do que até então se havia verificado. Nem oInfante D. Henrique nem os seus herdeiros e sucessores, sendo membros da famíliareal, beneficiaram, na qualidade de Grandes-Donatários dos arquipélagos daMadeira, dos Açores e de Cabo Verde, dos privilégios dispensados aos capitães-governadores do Brasil".40

Como observa Oliveira Marques, não obstante as modificações havidas ainda noperíodo colonial, a distribuição de terras em capitanias sobreviveria até o presente"como base para os modernos estados litorâneos do Brasil". Embora tenha mudado

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mais de uma vez nos séculos XVI e XVII, sob a pressão de interesses ecircunstâncias da Coroa, dos donatários, dos ataques dos corsários e das relações,amistosas ou inamistosas, com os índios, o regime das capitanias permitiu ampliar econsolidar a presença portuguesa no Brasil. Na primeira metade do século XVI estase estendeu de Itamaracá, no nordeste, a São Vicente, no sudeste, embora comimportantes espaços desocupados, especialmente na Guanabara.

Colônia, índios e negrosAssinala um historiador português que já na primeira metade do século XVI ascapitanias criaram, considerada a presença dos índios, negros e europeus, o cenáriono qual se esboçavam "os lineamentos da futura Nação".41 Em todo caso, o certo éque europeus, índios e negros, bem como a construção das vilas e cidades, aevangelização e a educação, eram temas que, além dos metais preciosos, apareciampor todos os ângulos de interesse da Coroa, da administração colonial e dos próprioscolonos. Quanto aos índios, deve dizer algo das preocupações da Coroa o fato de queJoão III tenha enviado mensagem a Diogo Álvares, o Caramuru, para queassegurasse junto aos indígenas uma boa recepção ao primeiro Governador-Geral,Thomé de Souza.42

A mudança da administração colonial com a chegada, em 1549, de Tomé deSouza, introduzindo o sistema do governo-geral, foi uma resposta da Coroa adesordens, crimes, lutas a mão armada, dos capitães-donatários ou de seus lugares-tenentes, "que no ultramar reproduziram, com uma cor nova, os fastos da históriafeudal européia". D. João III fora levado a pôr, ao lado dos capitães, um governadorou vice-rei, "do mesmo modo que também na Europa os monarcas tinhamrepresentado semelhante papel perante os seus barões". Aumentava assim acentralização do poder na colônia, que só no século XVIII alcançaria vitória sobre oparticularismo feudal, pois só então "as idéias de soberania absoluta vingaram".43

A comitiva de Tomé de Souza, que entre suas funções incluía a inspeção dascapitanias e o combate aos corsários, trazia muitos sinais de uma intenção duradourade colonização: "elevado número de artífices (pedreiros, canteiros, carpinteiros,calafates, marceneiros, tanoeiros, serradores, ferreiros, fundidores, etc.), cerca de600 colonos e homens de armas (...) e 400 degredados".44 Tomé de Souza eraincumbido ainda de dar apoio ao trabalho de evangelização a se iniciar: devia proibirque as aldeias de índios fossem "salteadas", evitar abusos contra os índios, fomentara conversão dos nativos ao catolicismo, impedir a escravização dos conversos,favorecer os aliados (tupiniquins) e punir os que resistiam à colonização(tupinambás), criar feiras para trocas com os índios. Vinham também com o

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governador criadores pecuaristas, entre os quais Garcia d'Ávila, que já no séculoXVI desempenhou importante papel na penetração territorial, recebendo críticas deNóbrega, semelhante às que os jesuítas fariam aos bandeirantes.45 Também faziaparte da comitiva do governador um grupo de seis jesuítas, sob a chefia de Manuelda Nóbrega – que acompanhou, desde o início, a implantação da sede da colônia.

Tomé de Souza começou seu governo criando uma nova estrutura administrativa emudando o lugar em que se achava a cidade de Salvador, que devia servir-lhe desede. Agora com maior preocupação defensiva, a nova cidade adquiria também"algumas inovações de cariz renascentista", por meio da "natureza geométrica desuas ruas e a criação de uma praça central em torno da qual se construíram osedifícios principais de planta retangular": edifícios para os órgãos oficiais, capela,cadeia, casernas, armazéns, ferrarias e habitações para os colonos.46

Nos primeiros tempos da colônia os índios eram necessários para quase tudo e porisso constituíam parte importante das preocupações da administração. Formavam amaior parcela da população colonial e deles dependia o trabalho da terra e a buscados metais preciosos. Além disso, tanto participavam das entradas quanto podiam secolocar como obstáculos a elas. Desde os primeiros contatos, em São Vicente e naBahia, os portugueses se valeram dos dois métodos possíveis para tratar os nativos:conviver com eles ou combatê-los. Mas mesmo em meio a muita violência nãoforam raros os gestos de boa amizade, com a ajuda de João Ramalho e DiogoÁlvares. O irmão de Martim Afonso, Pero Lopes, levou consigo a Lisboa "quatroreis da terra do Brasil", que o rei de Portugal mandou "fossem bem tratados evestidos de seda", e houve casos em que índios foram agraciados com títulos denobreza. Esses gestos não impediam, porém, os "descimentos" de índios: desdeMartim Afonso houve nos núcleos de São Vicente e Piratininga expedições aointerior para apresar índios, numa prática que se repetiu ao longo dos séculos XVI eXVII.47 Por outro lado, quando Martim Afonso mandou uma "bandeira" em buscados rumos do império inca, seus homens foram trucidados pelos carijós.48

Tentativas semelhantes foram feitas por Tomé de Souza. Como poucos anos antesda instalação do governo-geral houvesse notícias da descoberta, pelos espanhóis, dasminas de Potosi, o governador enviou expedições ao interior, nas áreas de PortoSeguro, Bahia e Sergipe, em busca de jazidas de ouro e prata.49 Além disso, a buscados metais preciosos, o desbravamento de terras, a construção de fortificações e asacrescidas exigências de fornecimento de mantimentos de subsistência, a cultura dacana-de-açúcar etc. tornavam a utilização da mão-de-obra indígena ainda maisimprescindível. Tomé de Souza pôde contar com um apoio que faltou a MartimAfonso, o dos jesuítas, que, como já se disse, foram evangelizadores e, em muitoscasos, críticos dos colonizadores, mas também, em muitos outros, seus parceiros.

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Como a colonização dependia dos índios, eles se tornaram escravos dela.Inicialmente, portugueses e franceses obtinham escravos por meio do resgate doschamados "índios de corda", capturados nos confrontos entre grupos rivais e quetradicionalmente se destinavam ao sacrifício em terreiro. Como a escravatura emlarga escala para fins produtivos, embora praticada em comunidades indígenas sul-americanas, fosse desconhecida entre tupi-guaranis,50 recorria-se ao "salto", queconsistia na armação de navios que percorriam a orla marítima para assaltar aldeiase capturar nativos, posteriormente vendidos como escravos. Os índios comfreqüência reagiram a essas investidas destruindo fazendas e engenhos, atacandonavios e povoações e produzindo surtos de resistência armada que afetaram ageneralidade das capitanias. Esse quadro permaneceu praticamente o mesmo até ofim do século XVI.

Além da escravidão dos indígenas, também a dos negros foi uma constante desdeo início da colonização. Logo depois da instalação do governo-geral, Tomé de Souzaestimulou a importação de africanos para trabalhar na capitania da Bahia, mantendoa utilização dos índios nas roças de mantimentos.51 Em 1557 chegou à Bahia umacaravela oriunda de São Tomé, carregada de escravos. Em 1559 cada senhor deengenho foi autorizado a importar, mediante certidão passada pelo governador, até120 escravos do Congo. Calcula-se que, por volta de 1570, alguns milhares de negrosse encontrassem já integrados em atividades produtivas no Brasil.52 Segundoestimativas de um historiador francês, teriam desembarcado na colônia, nos últimostrês decênios do século XVI, cerca de cinqüenta mil negros.53 Na Bahia, tornou-seregular a importação de escravos negros, gerando o aparecimento de negociantesespecializados no tráfico.

Cidades, vilas e sertõesQuando Mem de Sá chegou ao Brasil para assumir o governo-geral, em 1558,informou ao soberano de Portugal ter encontrado "toda a terra em guerra, sem oshomens ousarem fazer suas fazendas senão ao redor da cidade".54 As poucaspovoações e um número ainda menor de cidades eram pequenas ilhas num mar deflorestas dominadas pelos índios. Os jesuítas participavam de ações conjuntas com aadministração colonial, especialmente quando os interesses desta coincidissem comos da evangelização tridentina. No início do governo de Mem de Sá a maiorpreocupação era expulsar os franceses, sediados na Guanabara desde 1553. Mem deSá derrotou-os em 1560, juntando portugueses e índios da Bahia e de Ilhéus, PortoSeguro, Espírito Santo e São Vicente, o que quase conduziu a uma ruptura nasrelações entre Portugal e França. Não era, portanto, sem razão o temor do novo

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governador ao chegar a uma terra "toda em guerra".Embora com a colonização aumentasse no século XVI o número das vilas e

cidades, a agricultura, que era o principal da colônia, realizava-se, em geral, nasfazendas próximas dos pequenos agrupamentos urbanos da época. Em fins do séculoXVI existiam no Brasil apenas três cidades: Salvador (fundada em 1549), Rio deJaneiro (1565) e Filipéia (1584), hoje João Pessoa, na Paraíba. As principais vilaseram Conceição (Itamaracá), Olinda (Pernambuco), Espírito Santo, São Vicente eSão Paulo de Piratininga. A vida rural predominava, poucas centenas de metrosseparavam as fazendas mais próximas dos núcleos urbanos, que, como resultado doimpulso da Coroa para garantir a posse do território, surgiam de atos políticos maisdo que da vontade social. Tanto quanto as vilas, para melhor defesa, as cidadesdeveriam ficar cercadas por muros, como ocorria na Idade Média.55

A colônia foi assim se construindo pedaço a pedaço, mas algumas cidades doséculo XVI se constituíram em pontos estratégicos de um projeto colonial maisamplo. Em 1553 já se exportava, de São Vicente, algodão e açúcar, além de pau-brasil. A cidade do Rio de Janeiro tornou-se escala das frotas que voltavam para aEspanha, além de ponto de apoio para a defesa de Piratininga e São Vicente. Ali setrocava prata peruana por produtos locais, e mantinham contatos os comerciantesespanhóis que faziam do Rio de Janeiro seu principal ponto de intercâmbio.

Além da rota para Buenos Aires, Assunção e Peru, o Rio de Janeiro se prestavatambém a servir como eixo do comércio com Angola. O comércio que cresceu nosanos seguintes também em Pernambuco e na Bahia "era partilhado pelos povoadorese pela Coroa", que "controlava o monopólio do pau-brasil, do tráfico de escravos,das especiarias, junto com um quinto de todos os metais e pedras preciosas", efornecia "instrumentos, materiais, e suprimentos regulares", apoiando oestabelecimento dos engenhos de açúcar".56 Como diz Oliveira Marques, ao retirardos povoadores as principais e mais fáceis fontes de lucro, a Coroa na prática oscompelia a desenvolver a agricultura, caminho para a indústria do açúcar,considerado o melhor ponto de partida para uma ocupação lucrativa da terra.57

No primeiro século da vida colonial reproduzia-se, embora de modo "imperfeito",a sociedade de ordens típica da Idade Média. Dizem os historiadores que amobilidade social era mais intensa na colônia do que no reino. Dizem também que aestratificação social mostrava-se mais diferenciada em Pernambuco e na Bahia,possibilitada pelas facilidades de acesso à terra e pela obtenção de escravos,africanos ou indígenas. Mas os grandes proprietários constituíam uma nobreza defato.58

Não são poucos os nomes da nobreza entre os que receberam as sesmarias,instituição da tradição jurídica portuguesa sobre a qual se assentaria o regime da

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propriedade da terra na colônia.59 Mas houve também, por meio da propriedade daterra, a mobilidade ascendente de muitos judeus e degredados, uma vez que seentendia que o Brasil seria terra adequada para "couto e homizio garantido a todos oscriminosos que aí quisessem ir morar, com a exceção única dos réus de heresia,traição, sodomia e moeda falsa".60 Mobilidade que pode ter alcançado tambémalguns eleitos entre a gente comum do povo, trazida às centenas pelos donatários,em diversas oportunidades, nos séculos XVI e XVII.

1. A frase em latim ("Não existe pecado abaixo do Equador") é atribuída ao escritor e poeta holandês Casparvan Baerle (Gaspar Barléus) (1584-1648). Barléus escreveu uma biografia de Maurício de Nassau.

2. FUENTES, op. cit., p. 16.3. UNAMUNO, Miguel de. Del sentimiento tragico de la vida. Madrid: Akal Editor, 1983. p. 343, 348 e 350.4. Convém lembrar que Octavio Paz, preocupado em tratar a ferida, recomenda restituir o conquistador "com

toda a sua grandeza e todos os seus defeitos à História", para que se converta em personagem histórico, istoé, humano. É claro que o argumento de Paz diz respeito à identidade cultural nacional do México. Eleentende que, depois da crítica ao mito, "poderemos os mexicanos ver-nos com um olhar claro, generoso esereno". PAZ, Octavio. Hernán Cortés: Exorcismo y Liberación. CEDECH, Santiago, 1985.

5. CORTÉS, Hernán. Segunda Carta. In: O fim de Montezuma; relatos da conquista do México. Porto Alegre:L&PM, 1997. p. 34 e seguintes.

6. Tenochtitlán (ou Temixtitlán) foi fundada em 1385. Tinha cerca de duzentos mil habitantes na passagem doséculo XV para o XVI. Segundo os historiadores, era na época maior que qualquer cidade européia. NoPeru, a cidade dos incas estava no mesmo local onde está hoje Cuzco, a bela cidade colonial espanhola doaltiplano. Francisco Pizarro a destruiu para substituí-la por Lima, na costa, "la ciudad de los reyes".

7. Ver: KANDELL, Jonathan. La capital, the biography of Mexico City. New York: Random House, 1988.8. Cf. CORTÉS, op. cit., p. 21 e seguintes.9. Cf. COUTO, op. cit., p. 95.10. VESPÚCIO, Américo. Relato da primeira viagem, 1497. Carta a Piero Soderini, gonfaloneiro da República

de Florença. (Publicado na Internet.)11. LERY, Jean de. Viagem à terra do Brasil. São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1980. p. 187.12. Ver HOLANDA, op. cit.13. LERY, op. cit., p. 112.14. NÓBREGA, Manuel da. Cartas do Brasil. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1988. p. 125.15. LERY, op. cit., p. 189.16. Uma boa descrição das guerras indígenas pode ser encontrada em COUTO, op. cit., p. 98 e seguintes.17. Ibidem, p. 62.18. WEHLING, op. cit., p. 85-7. Gabriel Soares de Sousa, autor do Tratado descritivo do Brasil (1587), senhor

de engenho e cronista da época, via nos tupiniquins amigos dos portugueses, considerava os goitacazescomo bárbaros, cruéis e traiçoeiros, e os aimorés "tão selvagens que, dos outros bárbaros, são havidos pormais bárbaros".

19. COUTO, op. cit., p. 262.20. Ibidem, p. 214.21. AZEVEDO, João Lucio de. Os jesuítas no Grão-Pará. Del sentimiento tragico de la vida. Madrid: Akal

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Editor, 1983. Lisboa: Tavares Cardoso & Irmão, 1900, reedição da Secult, Governo do Pará, 1999. p. 129.22. Cf. COUTO, op. cit., p. 186-195, e WEHLING, op. cit., p. 44-45.23. Cf. ibidem, p. 147.24. WEHLING, op. cit., p. 44-5. Segundo os Wehling, a "fixação territorial", no século XVI, é seguida da

"expansão territorial", no século XVII, esta, sobretudo, como resultado das investidas dos bandeirantes, queviviam da caça e apresamento de índios e da busca dos caminhos dos metais preciosos, que os levou aatravessar mais de uma vez a incerta linha das Tordesilhas.

25. Ibidem, p. 44-45.26. COUTO, op. cit., p. 200.27. Ibidem, p. 209.28. WEHLING, op. cit., p.73.29. GÂNDAVO, Pero de Magalhães. História da Província Santa Cruz. Capítulo 1, De como se descobrio esta

província, e a razam por que se deve chamar Santa Cruz e não Brasil. Lisboa: Assírio e Alvim, 2004. p. 44.30. COUTO, op. cit., p. 195, 201, 210 e 217.31. Ibidem, p. 210-211.32. Ibidem, p. 216-217.33. Ver W EHLING, op. cit., p. 66 e seguintes. Ver também MARTINS, Oliveira. O Brasil e as colónias

portuguesas. Lisboa: Guimarães & Cia, 1979. p. 21.34. Ibidem. As datas acima referem-se ao ano da doação da mencionada capitania. Viriam outras capitanias no

século XVII: 1615: Grão-Pará, Cabo Frio; 1620: São Pedro d'El Rei, Cuman; 1633: Camutá; 1637: Cabo doNorte; 1665: Marajó; 1674: Paraíba do Sul.

35. WEHLING, op. cit., p. 73.36. MARTINS, O Brasil e as colónias portuguesas, cit., p. 15.37. Ibidem, p. 15-16.38. COUTO, op. cit., p. 284.39. BUENO, op. cit., p. 10-11.40. COUTO, op. cit., p. 222.41. MARTINS, O Brasil e as colónias portuguesas, cit., p. 25.42. Diogo Álvares, denominado o Caramuru, era um náufrago de navio que se aproximara da Bahia em 1510,

tendo sido poupado pelos índios. De João Ramalho, o outro português dos primeiros anos da colônia,consta que já vivia entre os índios havia vinte anos quando Martin Afonso chegou a São Vicente.

43. MARTINS, O Brasil e as colónias portuguesas, cit., p. 21-2.44. COUTO, op. cit., p. 232.45. WEHLING, op. cit., p. 77.46. COUTO, op. cit., p. 240.47. Ibidem, p. 214.48. Ibidem, p. 214.49. Ibidem, p. 241.50. Ibidem, p. 263.51. Ibidem, p. 306.52. Ibidem, p. 304.53. Ibidem, p. 305.54. WEHLING, op. cit., p. 80-81.55. Ibidem, p. 80-81.56. MARQUES, op. cit., p. 253-254.57. Ibidem.

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58. COUTO, op. cit., p. 97. Refere-se esse autor ao fenômeno da aristocratização dos proprietários da terra, daqual falarão Oliveira Viana, Gilberto Freyre e Caio Prado Jr., nas primeiras décadas do século XX.

59. WEHLING, op. cit., p. 80.60. MARTINS, O Brasil e as colónias portuguesas, cit., p. 18-21.

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PARTE II

BRASIL COLÔNIA

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Vila de São Paulo: estratégica para a conquista bandeirante e para a evangelização jesuítica.

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CAPÍTULO 4

SÉCULO XVIJESUÍTAS E COLONOS: TEMPOS DE MANUEL DA NÓBREGA

Nesta terra, todos ou a maior parte dos homens têm a consciência pesada por causa dos escravosque possuem contra a razão.

MANUEL DA NÓBREGA

A colonização do Brasil começou quando o Império de Portugal nas Índias sedesmantelava sob os ataques dos ingleses e dos holandeses, e na metrópole seiniciava um período de marasmo de quase dois séculos.1 Iniciada em circunstânciasdifíceis, a colonização cresceu no período da União Ibérica (1580-1640), nãoobstante a submissão da Coroa portuguesa à Coroa espanhola e a intensidade dosataques dos corsários ao território português da América. Apesar da decadênciametropolitana, aumentaram as entradas e bandeiras rumo ao interior, ultrapassandoos incertos limites do meridiano das Tordesilhas. Quando, em 1640, Portugalrecuperou a independência, seus nacionais já haviam penetrado no rio Amazonas ealcançado o território do atual estado do Rio Grande do Sul. A colonização seimplantara no litoral e a ocupação territorial se expandia em direção ao interior e aolitoral norte.2

Os jesuítas foram protagonistas desses séculos da decadência metropolitana lusa eda conquista colonial da América marcando a história brasileira em torno de umaquestão central: o uso do trabalho dos índios.3 Presentes e atuantes no territóriorecém-conquistado, suas memórias e crônicas dão testemunho dos primeiros temposda formação da nova sociedade. Como já se disse, a história da Companhia de Jesusno Brasil se confunde com grande parte da história da colônia, pretendendo haverdeixado testemunhos "essenciais à ética brasileira". Diz um membro da Companhiaque seus companheiros se bateram por "três ideais que são o fundamento mesmo danacionalidade, que nos desejaram e ajudaram a fundar, no que puderam: boaimigração européia, liberdade dos naturais, identidade moral de todos".4

De suas figuras representativas, encontram-se, entre as de maior expressão, opadre Manuel da Nóbrega, no século XVI, e o padre Antônio Vieira, no século XVII.Na história dos jesuítas, Manuel da Nóbrega é, por todos os títulos, a figura do

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pioneiro. Um dos seus feitos, logo ao chegar com Tomé de Souza, foi a construçãodo "primeiro templo da Companhia de Jesus no continente americano".5 Diz o padreSerafim Leite: "Enquanto os Portugueses edificavam as outras obras da nova capitaldo Brasil, ergueu Nóbrega a Igreja de Nossa Senhora da Ajuda, construindo-a osjesuítas por suas mãos, indo ao mato buscar a madeira e fazendo as taipas, e nãotardaram as cerimônias públicas. A 20 de junho já se celebra o Corpo de Deus.Festas de igreja e de arraial, procissão solene, salvas de artilharia, ruas enramadas edanças e invenções à maneira de Portugal". Um mês depois, outra festa, a do AnjoCustódio: missa solene celebrada por Nóbrega, canto coral e procissão "com grandemúsica a que respondiam as trombetas".6

Até sua expulsão, no século XVIII, os jesuítas foram aliados diretos do poder reale a maior influência cultural do reino e de sua colônia americana. A partir dosurgimento da Companhia eles se anteciparam às mudanças que deveriam conferirao Portugal pós-União Ibérica as feições de um reino teocrático. Desde D. João IIIaté D. José I, atuaram, sobretudo, na evangelização e no plano educacional, sempre"na linha de uma empresa renovada de sobrevivência medieval".7 Foram, porém,mais que missionários da Contra-Reforma; eram "colonos, caçadores de escravos,lavradores, artífices, mestres, historiadores, geógrafos, negociantes, estadistas egenerais. Criaram as reduções e as fazendas. (...) Erguiam templos e edificavampovoações".8 Como já se observou, foram evangelizadores e colonizadores.

Os "companheiros de Jesus"É ressaltada a relevância dos jesuítas no Brasil, quando comparado com o México eo Peru. Eles chegaram ao Brasil dez anos depois de formada a Companhia de Jesus eapenas após três anos depois do início do Concílio de Trento (que durou de 1545 até1563). Outros países ibero-americanos receberam, muito antes disso, a presença deoutras ordens católicas, como os franciscanos e os dominicanos. No México, osjesuítas chegaram em 1572, cinqüenta anos após os franciscanos. No Peru, chegaramem 1568, alguns anos depois da morte do grande dominicano Bartolomeu de lasCasas, em 1566. Quanto ao Brasil, as atividades da Companhia se desenvolveramnum longo e acidentado período, recortado por freqüentes conflitos com ospovoadores e os bandeirantes. No século XVII, foram expulsos de São Vicente e doMaranhão, mas encontraram novas oportunidades no norte, no Amazonas. Voltarãoainda uma vez ao Maranhão, entrando, no século XVIII, numa fase de declínio quese concluiu com a sua expulsão do país.

Como as demais ordens religiosas, os jesuítas buscaram realizar atividades na

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colônia seguindo as orientações do Concílio de Trento e a obra de Tomás de Aquino.Seguiam, em especial, as digressões do filósofo sobre a "unidade do corpo", base desua concepção sobre a sociedade. Para Tomás de Aquino, o corpo é uma "ordem" queintegra a pluralidade dos seus membros e a diversidade das suas funções; é umaintegração harmônica de membros e funções e, como tal, um instrumento para oprincípio superior que o rege, a alma. Como os missionários em geral, os jesuítasvisavam, na parte temporal de sua prédica, à "subordinação de todos os estamentossociais ao 'bem comum' do reino".9

Talvez porque formada na mesma época em que ocorreu o Concílio de Trento,tornou-se mais nítida na Companhia de Jesus do que em outras ordens religiosas, aorientação tridentina quanto à pregação católica "como intervenção efetiva na vidaprática dos fiéis", entendendo-se como tal o dever de cada missionário de "pregar averdade revelada a toda criatura". Além disso, a Companhia restabeleceu, nosséculos XVI e XVII, um estilo de comportamento próximo das ordens religiosasmilitares da Idade Média, um estilo militar de conduta que os historiadores atribuemao exemplo e à influência pessoal do seu fundador, Inácio de Loyola (1491-1556).Seja por seu estilo, seja por suas convicções tridentinas, o fato é que a Companhia deJesus alcançou extraordinário êxito em seus objetivos: fechou as portas aoprotestantismo na península Ibérica, batalhou com sucesso em França e pôde enfimbloqueá-lo na Alemanha.10

A Companhia de Jesus nasceu em 1538 de um compromisso de Loyola e algunsestudantes da Sorbonne, tomado em 1534, na Capela de Montmartre, de servir aCristo sob as ordens do papa. Reconhecida a ordem pelo papa, em 1540, seufundador foi designado superior-geral em 1541. Loyola, que, como outros nobres deseu tempo, era soldado, participou, como oficial de Carlos V, de guerras e combates,sofrendo ferimentos físicos que o aleijaram para sempre. A dor e as frustraçõespessoais resultantes dessa experiência levaram o vaidoso jovem oficial a mudar devida, dedicando-se de modo militante à propagação da fé. Segundo seu própriodepoimento, revelou-se nele um acentuado misticismo. Mais de uma vez relatou aamigos suas visões de Cristo e da Virgem.

O fundador da Companhia de Jesus fora, na juventude, um apaixonado leitor dosromances de cavalaria, que pouco tempo depois Cervantes (1547-1616) tomariacomo motivo de ironia no célebre Dom Quixote de la Mancha. Loyola nasceu naépoca do Renascimento, mas sua figura e suas obras lembravam os cavaleiros daIdade Média, como os demais membros do pequeno grupo de estudantes aos quais seassociara. Eram os "companheiros de Jesus", como gostavam de ser chamados, entreos quais Simão Rodrigues e Francisco Xavier (1506-1552): o primeiro, denacionalidade portuguesa, tornou-se o superior-geral da companhia em Portugal ao

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tempo que Manuel da Nóbrega estava no Brasil; o segundo partiu, já em 1541, para aevangelização do Oriente, incluídos o Japão, a Índia e a China.11 Assumindo osdeveres da Contra-Reforma, os "companheiros de Jesus" passaram a ter diante de si,além dos desafios criados por Lutero, as velhas civilizações não-cristãs do Oriente eos novos mundos abertos pelos descobrimentos.

Nóbrega e as decepções com os cristãosA chegada de Manuel da Nóbrega assinala o início da evangelização das gentes donovo território português na América, que ainda dependia eclesiasticamente dobispado do Funchal, na Madeira. "Ao princípio, os padres sustentavam-se de esmolase benemerências dos homens do governo, mas ainda não era decorrido um ano e já sedava, pelo almoxarifado régio, o subsídio mensal de um cruzado (400 réis) a cadaum dos seis primeiros da companhia".12 Em 1551, poucos anos depois da chegada deNóbrega, o território tornou-se dependência eclesiástica da diocese de Salvador,recém-criada. Era também o começo da institucionalização da Igreja e dosproblemas que os missionários haveriam de enfrentar.

Recém-chegado, Nóbrega registrava na primeira carta aos seus superiores emLisboa: "Achamos a terra de paz e quarenta ou cinqüenta moradores na povoaçãoque antes era. Receberam-nos com alegria. (...) Eu prego ao governador e à sua gentena nova cidade que se começa, e o padre Navarro à gente da terra". Seus bonsdesejos de recém-chegado não o impediram, porém, de registrar, já nessa primeiracarta, as dificuldades que viriam: "Espero em Nosso Senhor fazer-se fruto, posto quea gente da terra vive toda em pecado mortal". Dos índios, dizia: "não há nenhum quedeixe de ter muitas negras, das quais estão cheios de filhos".13 Embora fale de"negras", queria dizer "índias". Era usual na época designar os índios como os"negros da terra"; os negros africanos eram os "negros da Guiné", que as cartas deNóbrega mencionam poucas vezes. Em suas Cartas, o jovem jesuíta concentra suasobservações nos índios. Quanto aos "negros da Guiné", menciona-os de quando emquando, para pedir ao rei que envie alguns para o serviço do colégio e da companhia.

Manuel da Nóbrega era de família ligada a D. João III, e entrou na recém-fundadaCompanhia de Jesus em 1544, com 21 anos de idade. Seu pai, amigo do rei, foidesembargador, e um de seus tios foi chanceler-mor do reino. Com dificuldades defala, Nóbrega era chamado "O Gago" em Coimbra, onde se formou em Cânones, em1541. Diz um comentador que, como era freqüente "naqueles primitivos e douradostempos", o jovem jesuíta "exercitava-se em muitos exercícios de humildade emortificação".14 Embora algumas de suas Cartas ofereçam evidências de uma saúdefrágil, não deixam nenhuma dúvida quanto ao ânimo forte do sacerdote, bem como

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do conquistador de almas e do administrador das aldeias, igrejas e colégios queajudou a criar.

Além de membro de família ligada ao rei, Manuel da Nóbrega foi amigo dosgovernadores-gerais, em especial de Tomé de Souza e Mem de Sá,15 e usou do seuprestígio pessoal junto à Coroa em diversos momentos de sua atividade comoSuperior dos jesuítas no Brasil para defender os indígenas dos ataques dospovoadores. Logo depois de sua chegada, com Tomé de Souza, orientou para toda acolônia – ou seja, para toda a costa do território, que era a colônia conhecida do seutempo – as atividades do pequeno grupo de padres que chefiava. Era o ponto departida para um trabalho de evangelização que haveria de se fortalecer em especialna região de São Vicente, ao sul, e na região da cana-de-açúcar, na Bahia ePernambuco.

Nesse primeiro momento de seu esforço de evangelização Nóbrega buscou dirigir-se tanto aos índios como aos povoadores em geral. Eram, porém, muitos osproblemas: a escravização dos índios, a antropofagia e a poligamia dos índios, osmaus exemplos de povoadores e clérigos seculares, os desentendimentos com ospovoadores e os bandeirantes. Alguns anos depois da chegada de Tomé de Souza, onavio no qual viajava D. Pero Fernandes Sardinha, primeiro bispo do Brasil,naufragou nas costas da Bahia; o religioso e outros náufragos foram comidos pelostupinambás em cerimônia antropofágica.

Os índios são homensNo século XVI, Bahia, São Paulo, São Vicente e Rio de Janeiro serão os cenáriosprincipais da atividade de Manuel da Nóbrega. Diz o padre Serafim Leite que foi naBahia, no "remanso do Rio Vermelho (...) " que Nóbrega escreveu o Diálogo sobre aconversão do gentio, cujo "pensamento fundamental" é que "os gentios são capazesde se converter em direito porque são homens". O Diálogo que Serafim Leiteconsidera "a primeira obra propriamente literária do Brasil" foi escrito anos depoisda chegada de Tomé de Souza. É um texto doutrinário e genérico, que teria queomitir muitas experiências e frustrações que as Cartas revelaram em detalhe. Assimcomo os desafios e perigos dos navegadores estavam no mar, os desafios e perigosdos jesuítas estavam no sertão. E o sertão, no século XVI, começava nas vizinhançasdas poucas e pequenas cidades e vilas em que erguiam suas capelas e igrejas.

Nóbrega tinha objetivos definidos que, contudo, nem sempre atingiu comodesejava. Seu primeiro objetivo – de si bastante ambicioso, pretendendo a presençados jesuítas em toda a costa – foi atingido. O segundo, que era falar a todos nacolônia, levou a freqüentes frustrações com os povoadores e, finalmente, ao

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afastamento daqueles que ele chamava de cristãos, entre os quais, evidentemente,achavam-se também os clérigos.

Já em 1549 o jesuíta dizia ao Padre Mestre Simão Rodrigues de Azevedo: " (...)vejo a gente dócil. Somente temo o mau exemplo que o nosso cristianismo lhe dá,porque há homens que há sete e dez anos que se não confessam e parece-me quepõem a felicidade em ter muitas mulheres. Dos sacerdotes ouço cousas feias".16 Em1551, acrescentava: "Os clérigos desta terra têm mais ofício de demônios que declérigos; porque, além de seu mau exemplo e costumes, querem contrariar a doutrinade Cristo, e dizem publicamente aos homens que lhes é lícito estar em pecado comsuas negras, pois que são suas escravas, e que podem ter os salteados, pois que sãocães, e outras cousas semelhantes, por escusar seus pecados e abominações, demaneira que nenhum demônio temo agora que nos persiga, senão estes. Querem-nosmal, porque lhes somos contrários a seus maus costumes. (...) Se não fora pelo favorque temos do Governador e principais da terra, e porque Deus não o quer permitir,nos tiveram já tiradas as vidas".17

Não tornava mais fácil a missão dos jesuítas a proximidade em que muitas vezesse encontravam com os povoadores. A vila São Paulo é exemplo dos muitos desafiosque deveriam enfrentar. Por estar no planalto de Piratininga, distante do mar, a vilaera considerada "boca do sertão", tendo por isso ficado à margem dodesenvolvimento agrícola que se iniciava na Bahia e em Pernambuco. Como SantoAndré, fundada quase ao mesmo tempo, São Paulo era uma vila "da Borda doCampo", nascidas ambas para defender a capitania de São Vicente, abrir caminhopara o sertão e para as minas de metais preciosos de que já se tinha notícia no rumooeste, para os lados do Peru. Nasciam também ambas da mesma preocupação com adefesa dos caminhos do mar que levavam ao rio da Prata. Eram posições estratégicaspara as conquistas lusas.

Se a vila nascia para a defesa militar e para a conquista do interior, acrescentava-se a esses objetivos a conquista dos índios para a fé. Nessa vila de São Paulo, que setornaria cabeça-de-ponte das bandeiras, os jesuítas fundaram um colégio, como ohaviam feito na Bahia. Assim como as cidades eram pequenas e poucas, as bandeirasque delas partiam para apresar, mas também para evangelizar índios, tinham, comojá se disse, algo de "uma vila em movimento". Variavam "de apenas quinze ou vintehomens até a concentração de centenas de membros, acompanhados de um ou doisfrades, no papel de capelães".18 Segundo Capistrano de Abreu, o capelão era figuraobrigatória na bandeira. É ele quem cita este pedido de Domingos Jorge Velho emnovembro de 1692: "Meu Capelão saiu para fora estando eu para sair para aCampanha (...) Mandei-o buscar; não quis vir; (...) Sem ele morreram-me trêshomens brancos sem confissão, cousa que mais tenho sentido nesta vida; peço-lhe

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pelo amor de Deus me mande um clérigo em falta de um frade, pois se não podeandar na campanha e sendo com tanto risco de vida sem capelão".19

Do mesmo modo que nas vilas nascidas de um propósito militar surgiam oscolégios dos jesuítas, também nas bandeiras iam os sacerdotes, dando exemplo deuma mescla de funções ligando a fé e o império. Mas mesmo nos primeiros temposda colônia essa mistura de funções não podia esconder as desavenças que setornariam mais graves no correr dos anos.

Nóbrega e Las CasasAs diferenças de perspectiva e de interesses entre os missionários e os colonos erambasicamente as mesmas em toda a América ibérica. No espírito da aliança entre aIgreja e as monarquias da península, era convicção geral dos missionários que osindígenas não poderiam ser convertidos a menos que submetidos ao domínio dasCoroas ibéricas. Era também essa a convicção de Nóbrega, como, depois dele, a deAntônio Vieira. "Nóbrega reconhece, indiretamente, um problema que analisará cadavez mais explicitamente durante os últimos dois anos da década (anos 1550). Osindígenas não podem ser convertidos a menos que sejam submetidos à normaportuguesa; mas o ato de submissão coloca-os em contato com os povoadores quequerem afastá-los do controle dos jesuítas e que vivem, eles próprios, fora daigreja".20

Era o mesmo quadro dos demais países ibéricos, embora com algumas diferençasde tempo. Nas colônias hispânicas, sinais de conflitos entre os missionários e os"conquistadores" encontram-se, já em 1511, num sermão do dominicano Antonio deMontesinos.21 E nas primeiras décadas do século XVI o dominicano Bartolomeu delas Casas atacava de modo explícito, nas colônias de Espanha, aquilo que emNóbrega era ainda, algumas décadas depois, apenas um pressentimento.

Esse é mais um exemplo de como se distinguem o espírito espanhol e o luso nahistória. Assim como faltou no Brasil do século XVI um Las Casas para a defesa dosíndios, faltou também aos povoadores quem os defendesse com o ardor e o brilho deJuan Ginés de Sepúlveda (1490-1573), um padre espanhol que polemizou contraErasmo e defendeu, em polêmica com Las Casas, a idéia de guerra justa aos índios.A polêmica hispânica antecede a polêmica brasileira no tempo e ganha em clarezade propósitos.

Como no Caribe e na Nova Espanha, também no Brasil os "conquistadores"queriam os índios como escravos, ao passo que os missionários os queriam comocristãos. Las Casas, que dedicou sua vida a esse combate, chegou até mesmo a negar

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que nas colônias se tratasse de uma conquista, como admitia tivesse sido napenínsula, na África e no Oriente. "Em todas as Índias", dizia, referindo-se àscolônias ibero-americanas, "não há de haver conquistas contra mouros da África outurcos ou hereges que têm nossas terras, perseguem os cristãos e trabalham paradestruir a nossa santa fé". Por isso, nas Índias – as Ocidentais, ou seja, a América –há de haver "pregação do Evangelho de Cristo, dilatação da religião cristã econversão das almas, para o que não é mister a conquista pelas armas, mas apersuasão pelas palavras doces e divinas, e exemplos e obras de santa vida". Aqui aação dos espanhóis "não há de chamar-se conquista, mas predicação da fé econversão e salvação de infiéis já preparados para receber Jesus Cristo por CriadorUniversal e Sua Majestade por católico e rei bem-aventurado".22

No início de sua experiência missionária, Manuel da Nóbrega começava aperceber aquilo que em Las Casas possuía, desde logo, a força de uma certeza. Emcarta de 1550, dirigida de Porto Seguro ao padre Simão Rodrigues, dizia que osíndios "não têm feito resistência nem matado aos que queriam fazê-los cristãos e sedeixam arrastar para a fé". Nessa empreitada, o risco maior vinha dos cristãos "queaqui vêm não com o exemplo ou com a palavra ao conhecimento de Deus". Oscristãos chamam aos índios "cães e fazem-lhes todo o mal. E toda intenção quetrazem é de os enganar, de os roubar, e por isso permitem que vivam como gentiossem a ciência da lei e têm praticado muitos desacatos e assassínios".23

Em outra carta, do mesmo ano da chegada, Nóbrega falava dos "saltos", ações depirataria realizadas por barcos que navegavam na costa para apresar índios. Nos"saltos", dizia o jesuíta, os índios eram atraídos com sinais de comércio e deamizade, e assim os piratas os enganavam, "enchem os navios deles e fogem comeles". E concluía: " (...) de maravilha se acha cá escravo que não fosse tomado desalto". E isso era sempre obra de cristãos: "De maravilha se achará cá na terra, ondeos cristãos não fossem causa de guerra e dissensão".24 "Nesta terra", dizia, "todos oua maior parte dos homens têm a consciência pesada por causa dos escravos quepossuem contra a razão".25

Segundo Nóbrega, os colonizadores não apenas desencaminhavam índios quepoderiam tornar-se cristãos, mas alguns deles passavam até mesmo a viver comoíndios. Em particular os cristãos de São Vicente, diz um seu comentador.Convencido de que muitos dos males da colônia vinham dos colonizadores, Nóbregavai afastar-se cada vez mais deles: "Quanto mais longe estivermos dos velhoscristãos que aqui vivem, maior fruto se fará". Em momentos de muita decepção comos cristãos e de dificuldades com os índios, o jesuíta manifestou desejos de pedirlicença para sair da colônia, para o Paraguai, o Peru ou a Índia.

Em todo caso, a aproximação dos jesuítas com a Coroa rendeu alguns resultados.

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Manuel da Nóbrega lutou por uma legislação de proteção aos índios, e nos fins doséculo XVI muitas de suas demandas haviam se convertido em lei.26 Segundo Boxer,a administração colonial "apoiou os jesuítas em seus esforços para proteger osnativos, e por volta de 1600 deu o controle efetivo das aldeias à Companhia de Jesus,que, por seu lado, contratava com os colonizadores, sob certas salvaguardas, otrabalho dos índios das 'missões'".27 Não obstante suas vitórias na legislação,Nóbrega não escondia as dificuldades que cresceram com o tempo: os colonizadores"querem ver a terra administrada e dominada e querem o trabalho dos indígenas,mas querem que isso aconteça sem que plantem um único pé de mandioca".

Ao final de muitas decepções, o jesuíta decidiu-se a negar a confissão (e aabsolvição) aos povoadores, porque, segundo dizia, muitos deles têm escravos e,casados ou não, vivem em concubinato com as índias, assim como seus escravos. E,o que é pior, com a proteção de padres seculares que "dão a absolvição a quem vivedessa maneira". "Só os homens e mulheres pobres que não podem ter escravos sãoconfessados por nós".28

Numa de suas cartas ao rei, Manuel da Nóbrega criticava "o costume da terra, queé terem muitas mulheres" e considerava conveniente "mandar Sua Alteza algumasmulheres que lá têm pouco remédio de casamento a estas partes". É que "nesta terrahá um grande pecado que é terem os homens quase todos suas negras por mancebas,e outras livres que pedem aos negros por mulheres (...). E estas deixam-nas quandolhes apraz, o que é grande escândalo para a nova Igreja que o Senhor quer fundar". "(...) todos se me escusam que não têm mulheres com que casem". Na mesma carta,garantia ao rei que todas as mulheres que vierem "casarão mui bem, porque é terramuito grossa e larga, e uma planta que se faz dura dez anos aquela novidade, porque,assim como vão apanhando as raízes, plantam logo ramos, e logo arrebentam. Demaneira que logo as mulheres terão remédio de vida, e estes homens remediariamsuas almas, e facilmente se povoaria a terra".29

Experiência e sincretismoComo de hábito entre os grandes religiosos do seu tempo, Nóbrega era também umhomem de ação, não apenas um doutrinador. Um místico, mas também um homemprático e, como outros jesuítas, aberto a uma certa margem de reconhecimento dasculturas dos povos que pretendia evangelizar. Assim, por exemplo, depois quereconheceu o gosto dos índios pelo canto, organizou grupos de canto de meninos.

Do mesmo modo, a sua preocupação com a aprendizagem dos idiomas, como a deJosé de Anchieta (1534-1597) e, depois deles, a de Vieira, levou-o a estimular a

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redação de catecismos em língua indígena. Em certos procedimentos do ritualcatólico, aceitou não apenas o idioma, mas também usos e comportamentos dosíndios, confirmando uma tendência dos jesuítas pela adoção do sincretismo naevangelização. Em carta ao padre Simão, fazia perguntas diversas, além daquelasrelativas à guerra e à escravidão. Perguntava se os índios podem confessar porintérprete; se podem estar junto com os cristãos na missa; se podem os padres cantarcantigas do Senhor em língua dos índios e tanger seus instrumentos; se os índiospodem ser batizados nus.30

Nesse mesmo espírito de abertura aos ensinamentos da experiência, Nóbrega nãodeixou de reconhecer resistências dos índios à evangelização. Depois de algumtempo chamou-lhe a atenção que os nativos eram inconstantes: "concordam comtudo e logo mudam de idéia".31 Estavam dispostos a aceitar as influências religiosaspróximas de suas próprias tradições, o que não significava que aderissemverdadeiramente a elas. A convicção sobre a inconstância dos índios parece ter sidogeral entre os colonizadores. Depois de Nóbrega, esta parece ter sido também aconvicção de Gândavo, para quem os índios seriam "mui inconstantes e mutáveis;crêem de ligeiro tudo aquilo que lhes persuadem, por dificultoso e impossível queseja, e com qualquer discussão facilmente o tornam logo a negar".32

Daí, segundo um historiador, a possibilidade de um sincretismo que envolvia uma"falácia da conversão".33 Como ocorreu depois com os negros, esse sincretismoparecia envolver, da parte dos jesuítas, um ardil visando seduzir os índios para ocatolicismo. Mas envolvia também uma armadilha que levou os jesuítas a grandesfrustrações. Símbolos e formas da religião católica se sobrepunham ou semisturavam a símbolos e formas das religiões dos nativos, que, assim, protegiam epreservavam suas crenças.

O certo é que não foram alheias à evangelização inaciana doses notáveis depragmatismo. Como Pero Vaz de Caminha, eles logo perceberam que não estavamdiante do "paraíso terrestre". Não era deles, embora possa ter sido de Las Casas, aconvicção de Michel de Montaigne (1533-1592), num capítulo célebre dos Ensaios:"A essa gente chamamos selvagens, como denominamos selvagens os frutos que anatureza produz sem intervenção do homem. No entanto aos outros, àqueles quealteramos por processos de cultura e cujo desenvolvimento natural modificamos, éque deveríamos aplicar o epíteto. ( ... ) Esses povos não me parecem, pois, merecer oqualificativo de selvagens somente por não terem sido senão muito poucomodificados pela ingerência do espírito humano e não haverem quase nada perdidode sua simplicidade primitiva".34 Na verdade, os jesuítas se distanciaram muitodessas imagens humanistas do "bom selvagem", supostamente portadores devirtudes já desconhecidas pelos civilizados.

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Em 1554, José de Anchieta, consagrado pela história como o Apóstolo do Brasil,via os índios de tal forma bárbaros "que parecem aproximar-se mais à natureza dasferas que às dos homens". Em 1563, era ainda maior a desilusão do Apóstolo: " (...)para este gênero de gente não há melhor pregação do que espada e vara de ferro".35

Manuel da Nóbrega, em momentos diversos de suas Cartas, bem como no Diálogosobre a conversão do gentio, mostra sinais da mesma frustração.

Sob pressão das experiências com os índios, nem sempre positivas, Nóbregaevoluiu para uma espécie de "pedagogia do medo", que, segundo interpretação de umpesquisador, anteciparia algo das teorias de Thomas Hobbes (1588-1679).36 Comobom português, ele seguia esse pragmatismo conhecido dos navegantes desde oséculo XIV, que rompia, na prática, ilusões medievais sobre o mundo, embora aindaconvivendo com alguns dos seus sonhos e fantasmas. A experiência, "madre dascousas", parecia também inspirar o jesuíta, que dizia em carta de 1557: "porexperiência vemos que por amor é mui dificultosa a sua conversão, mas, como égente servil, por medo fazem tudo".37

A propósito dessa "pedagogia do medo", que cresce na cabeça do provincial, éreveladora a narrativa sobre o seu comportamento em face de um mestiço que lhe foientregue para julgar. Um comentador da Companhia conta que, diante do acusado,Nóbrega "lhe encareceu o seu crime e agravo (...) e lhe disse: 'Irmão, um tal pecadosó se pode satisfazer sendo enterrado vivo: confessai-vos, comungai e tende santapaciência, que amanhã a tais horas vos hei de mandar abrir a sepultura; há-se-vos decantar o ofício de finados, dizer missa dos defuntos e heis de ser enterrado vivo'". Onarrador prossegue: "Pasmavam os portugueses e índios de cousa tão nova. Acabadoo ofício, o triste foi estendido na cova e si lhe foi lançando alguma terra. Nestepasso, o irmão Pedro Corrêa pediu com muitas lágrimas ao padre tivesse compaixãodaquele miserável, e o padre, que só queria meter horror no culpado e aviso aosmais, se dobrou, mostrando nisso grandes dificuldades".38 São diversos os casoscomo esse narrados nas Cartas, reafirmando a força persuasiva do medo e o carátereducativo da punição.

Seria exagerado, contudo dizer que tais transtornos desviassem o jesuíta de seusobjetivos, sempre ligados à "dilatação da Fé" e, portanto, à conquista espiritual dosíndios. O desencanto de Nóbrega em face dos "bons selvagens" é tão evidente quantoseu empenho em defendê-los, numa obra de evangelização a que dedicou a maiorparte da sua vida. Em todo caso, e embora lutando para persuadir as consciências,Nóbrega não se recusava à guerra se necessário fosse. Se em mais de um momentobuscou a paz com os índios inimigos – como em sua aproximação com os tamoios,inimigos dos portugueses, em São Vicente, em 1563 –, também participou dealgumas das guerras de Mem de Sá.39

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Os relatos de Nóbrega sobre as guerras dos índios não deixam dúvidas quanto aoseu realismo. "(Os índios) fazem guerra, uma tribo à outra, a dez, quinze e vinteléguas, de modo que estão todos entre si divididos. Si acontece aprisionarem umcontrário na guerra, conservam-no por algum tempo, dão-lhe por mulheres suasfilhas, para que o sirvam e guardem, depois do que moram por ali perto, e si delesficam filhos, os comem, ainda que sejam seus sobrinhos e irmãos, declarando àsvezes as próprias mães que só os pais, e não a mãe, têm parte neles. É esta a coisamais abominável que existe entre eles. Se matam a um na guerra, o partem empedaços, e depois de moqueados os comem, com a mesma solenidade; e tudo istofazem com um ódio cordial que têm um ao outro, e nestas duas cousas, isto é, teremmuitas mulheres e matarem os inimigos, consiste toda a sua honra. São estes os seusdesejos, é esta a sua felicidade, (...) que tudo herdaram do primeiro e segundohomem, e aprenderam daquele qui homicida erat ab initio".40

As conseqüências dessa visão realista e pragmática transparecem no relato de umcomentador da Companhia sobre ações militares de que Nóbrega participou, emcompanhia de Mem de Sá. "Chegaram a certo posto em que o principal de duzentasaldeias se tinha guarnecido. (...) Todas estas dificuldades se venceram. Foramentrados os inimigos, em que se fez brava matança. Estas vitórias fizeram muirespeitado a Mem de Sá de todo o sertão do Brasil e causaram veneração à pessoa dopadre Nóbrega; pois viam com seus olhos não ser vã a confiança, com que aosnossos prometera sairiam vencedores nesta guerra em que a honra e serviço de Deuseram tão interessados".41

Sacerdote e políticoNóbrega foi, como Vieira, sacerdote e político. Numa terra "toda em guerra", estaacabava por ser uma atividade de todos. E o jesuíta que participou, com Tomé deSouza, da fundação de Salvador, deu vários exemplos de suas qualidades políticas,como a sua insistência junto à Coroa em favor da criação da cidade do Rio deJaneiro. A cidade foi criada em 1565 por Estácio de Sá (1520-1567), depois de umaguerra em que se mesclaram razões de estratégia militar e de ordem religiosa. Comapoio dos jesuítas, formou-se uma aliança entre portugueses e temiminós, moradoresdo Espírito Santo e de São Vicente, e tupiniquins, de Piratininga, que conseguiramderrotar os tamoios e os franceses na Guanabara.

Assim como já se fizera na Bahia com Tomé de Souza, em São Sebastião do Riode Janeiro Estácio de Sá instituiu na cidade a câmara, concedeu sesmarias a cerca decinqüenta povoadores e terreno para um colégio da Companhia de Jesus. Poucosanos depois, os índios maracajás receberam sesmarias como compensação por sua

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participação, tendo sido o principal deles agraciado com a Ordem de Cristo e umapensão anual.42 Depois da fundação da cidade, os combates prosseguiram, parasubjugar os tamoios e expulsar os franceses do cabo Frio, levando ao fim do projetoda França Antártica e à definitiva expulsão dos franceses do sudeste do Brasil.43

Manuel da Nóbrega via a criação do Rio de Janeiro como uma forma de defendero litoral contra novas investidas dos franceses. Mas a via também como um meio dedefesa do litoral sul, base de apoio para as pretensões portuguesas de predomínio nasviagens para a boca do rio da Prata. Como os missionários portugueses em geral,Nóbrega foi também um colonizador. Trabalhou pelas duas pontas do lemafundamental da conquista e da colonização: "dilatar a fé e o império".

1. SARAIVA, op. cit., p. 69.2. WEHLING, op. cit., p. 99.3. COHEN, Thomas. The Fire of Tongues Antônio Vieira and the Missionary Church in Brazil and Portugal.

Stanford: Stanford UP, 1998. p. 48.4. Comentário assinado por A. P. na Apresentação das Cartas do Brasil, cit., p. 8.5. COUTO, op. cit., p. 240-416. LEITE, Padre Serafim. Suma histórica da Companhia de Jesus no Brasil (Assistência de Portugal), 1549-

1760. Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar, 1965. p. 3.7. MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira, cit., v. 2, p. 14.8. AZEVEDO, op. cit., p. 12.9. HANSEN, João Adolfo. "Padre Antônio Vieira". In: M OTA, Lourenço Dantas (Org.). Introdução ao Brasil.

Um banquete no trópico. São Paulo: Senac, 1999. p. 29.10. AZEVEDO, op. cit., p. 11.11. Os outros eram Fabro, Bobadilla, Lainez e Salmerón.12. LEITE, op. cit., p. 5 .13. NÓBREGA, op. cit., p. 33.14. FRANCO, Padre Antônio. Vida do padre Manuel da Nóbrega. Introdução a N ÓBREGA, op. cit., p. 21 e

seguintes.15. São o primeiro e o terceiro governadores-gerais. Na expedição que trouxe à colônia o segundo, Duarte da

Costa, em 1553, veio também José de Anchieta.16. NÓBREGA, op. cit., p. 75.17. Ibidem, p. 37.18. BOXER, C. R. A idade de ouro do Brasil (dores de crescimento de uma sociedade colonial). São Paulo:

Companhia Editora Nacional, 1969. p. 55.19. ABREU, J. Capistrano. Capítulos de história colonial. Belo Horizonte: Itatiaia/Edusp, 1988. p. 143.20. COHEN, op. cit., p. 33-34.21. BUENO, Eduardo. Genocídio de ontem e de hoje. Apresentação de Frei Bartolomeu de las Casas. O

paraíso perdido. Porto Alegre: L&PM, 1991. p. 14-15.22. LAS CASAS, Bartolomeu. Memorial de remédios; Excertos. (Disponível em:

<www.staff.unimainzde/lustig/texte/antologia/lascasas>. Acesso em: nov. 2005.)

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23. NÓBREGA, op. cit., p. 107.24. Ibidem, p. 81.25. Ibidem, p. 109.26. COHEN, op. cit., p. 40.27. BOXER, C. R. A Great Luso-Brazilian Figure: Padre Antônio Vieira, S.J., 1608-1697. London: Canning

House, 1957. p. 40.28. NÓBREGA, op. cit., p. 40.29. Ibidem, p. 78-79.30. Ibidem, p. 141.31. Ibidem, p. 231.32. GÂNDAVO, op. cit., capítulo X, p. 97-8.33. MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira, cit., v. 2, p. 29.34. "As leis da natureza, não ainda pervertidas pela imisção dos nossos, regem-nos até agora e mantiveram-se

tão puras que lamento, por vezes, não as tenha o nosso mundo conhecido antes, quando havia homenscapazes de apreciá-las". MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. Brasília/São Paulo: Universidade deBrasília/Hucitec, 1987. v. 1, p. 259.

35. MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira, cit., v. 2, p. 39 e 41.36. EISENBERG, José. As missões jesuíticas e o pensamento político moderno. Belo Horizonte: UFMG, 2000.37. NÓBREGA, op. cit., p. 159.38. FRANCO, loc. cit., p. 39.39. Sobre a cooperação entre Nóbrega e Mem de Sá, ver também LEITE, op. cit., p. 21 e seguintes.40. NÓBREGA, op. cit., p. 90. A frase em latim refere-se ao homem "que era homicida desde o começo".41. NÓBREGA, op. cit., p. 43; os grifos são meus.42. COUTO, op. cit., p. 257 e 261.43. Ibidem.

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Vieira, estrategista da Coroa e defensor dos índios.

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CAPÍTULO 5

SÉCULO XVIIANTÔNIO VIEIRA: A PALAVRA E O FOGO

As obras de Deus todas são boas; os instrumentos de que se serve podem ser bons e maus.

Entre Cristão e Cristão não há diferença de nobreza, nem diferença de cor.PADRE ANTÔNIO VIEIRA

O tempo que separou Manuel da Nóbrega e Antônio Vieira não afrouxou os vínculosque ligavam os jesuítas à Coroa nem a determinação com que se dedicavam àevangelização. Ao contrário, as circunstâncias da longa decadência em Portugal edas lutas religiosas na Europa empurraram os jesuítas mais a fundo para asincertezas e contradições da colonização que se iniciava. Destinado como os de suaordem a intervir nos acontecimentos do mundo, o padre Vieira haveria dedesempenhar papéis só comparáveis aos grandes da época, seja na Europa dosdesacertos entre Portugal e Espanha ao fim da União Ibérica, seja no Brasil, sob apressão crescente das incursões holandesas e dos compromissos e confrontos com ospovoadores e os bandeirantes. Empenhado com igual força e talento na conquista dasalmas para Cristo e nas questões do seu tempo, Vieira foi considerado "o homemmais notável no mundo luso-brasileiro no século XVII".1

Se Nóbrega foi amigo de D. João III, da dinastia de Avis, Vieira foi amigo pessoalde D. João IV (1640-1656), o primeiro rei dos Braganças, chamado o Restauradorporque restabeleceu a independência de Portugal, sucedendo aos Filipes da UniãoIbérica. Os dois jesuítas desempenharam papéis políticos e religiosos, como erapróprio dos tempos em que viveram, em especial em se tratando dos jesuítas. Doângulo político, pode-se dizer que Nóbrega foi um tático e Vieira, um estrategista –diferença que se traduz nos textos que nos deixaram.

"O último grande pregador da Idade Média"Os sermões de Vieira destacam-se pela amplitude de visão, mais metropolitana,envolvida com as questões européias da época, ao passo que os textos de Nóbrega,

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sobretudo as Cartas, têm algo da objetividade dos primeiros cronistas da colônia. Osrelatos de Vieira, de notável sabor literário, sobre suas experiências na colôniapodem ser encontrados em suas cartas mais do que nos sermões. Embora maisamplas e variadas do que as de Nóbrega, as experiências de Vieira, na colônia e naEuropa, obrigaram o pregador a compromissos, confrontos e ambigüidades em quasetudo semelhantes às de Nóbrega, um século antes.

A obra de Vieira é das mais expressivas da Europa do Absolutismo, das lutasreligiosas entre protestantes e católicos bem como da aliança entre as Coroasibéricas e a Igreja. D. João IV considerava Vieira o "primeiro homem do mundo" e otinha como amigo mais do que como conselheiro, a quem nunca deixou de ouvir nosmais importantes assuntos de Estado. Depois de D. João IV, a proximidade dojesuíta com a Coroa continuará no conturbado reinado de D. Afonso VI (1643-1683),um período de regentes mais que do próprio rei, tido como incapaz. Ao longo dosdois reinados, Vieira tentou conferir um conteúdo místico aos projetos de grandezada Coroa portuguesa recém-saída de uma condição de submissão à Coroa espanhola.

Na atmosfera de um Portugal já em plena decadência, a Companhia de Jesus,envolvendo-se nos sentimentos da época, passou a semear a convicção de que asprofecias sobre a volta de D. Sebastião diziam respeito aos reis que o sucederam.Eram os sonhos e mitos do sebastianismo tanto a expressão das aspirações deindependência de Portugal diante da Espanha quanto a expressão mental de um paísdébil que, desesperadamente, tratava de arranjar forças para sair da decadência emque se achava. Considerado um dos homens mais cultos do seu tempo, AntônioVieira participou desses sonhos e mitos, para os quais buscou um lugar na grandiosaestrutura do seu pensamento. Além de seus magníficos sermões, deixou diversostextos, mais controversos que todos, expressando sua confiança nas previsões deGonçalo Anes, o Bandarra (1500-1556), um trovador analfabeto, cujas profeciassobre a história de Portugal foram durante muito tempo usadas pelos sebastianistas.2

Segundo alguns cronistas, Vieira foi "o último grande pregador da Idade Média".Alguns historiadores o vêem como orador só comparável, no século XVII, a Jacques-Benigne Bossuet (1627-1704). Foi, em todo caso, um notável pregador, tanto naBahia quanto em Lisboa e Roma, tendo sido reconhecido em sua época como ummestre do idioma e mais tarde homenageado por outro mestre, Fernando Pessoa,como o "Imperador da língua portuguesa". Em seus famosos sermões, ocupou-se dequase todos os temas importantes do seu tempo, na colônia e na Europa, projetandopara a história as imagens, quase sempre controversas, de combatente da Contra-Reforma, protetor dos índios, crítico dos colonos e dos bandeirantes, protetor dos"judeus públicos" e dos "cristãos-novos".

Antônio Vieira nasceu em Lisboa, de uma família burguesa que se tornou fidalga

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por decisão do rei, grato aos feitos do pregador ilustre. Diferente nesse aspecto deNóbrega, um filho de aristocratas ligados à Corte, Vieira era, segundo HernaniCidade, filho de uma família de "burguesia modesta e mesclada de sangueafricano".3 O avô e o pai eram criados da casa dos condes de Unhão, da qual o pai deVieira foi expulso por haver se enamorado de uma serviçal mulata. Segundo JoãoLúcio de Azevedo, a bisavó de Vieira teria vindo da África para Portugal comoescrava. A informação sobre as origens de Vieira é confirmada por Boxer quandocomenta a proibição do Império luso quanto ao ingresso de mulatos aos quadros daIgreja ou do Estado. Diz o historiador inglês que tal proibição foi muitas vezesignorada na prática, "como no caso do Padre Antônio Vieira, cuja humilde avómulata não foi impedimento para a sua entrada na Companhia de Jesus".4

Vieira veio para o Brasil ainda criança, com oito anos de idade. Entrou naCompanhia de Jesus aos 15 anos e aos 18 já dava aulas de retórica no colégio deOlinda. Em 1633, dois anos antes de se ordenar sacerdote, pregou um sermão que setornou famoso, diante da Irmandade do Rosário, aos negros de um engenho da Bahia.Em inícios de 1640, pregou na catedral da Bahia o celebérrimo "Sermão contra osholandeses". Em 1641 foi para a Europa, onde se desdobrou em diversas atividadesdiretamente ligadas à Coroa, como político e como diplomata. Voltou ao Brasil,mais especificamente ao Maranhão, em 1655, mantendo, porém, vínculos com aEuropa, à qual voltou em mais de uma ocasião. Em 1661 foi submetido à Inquisição,com motivo de suas aproximações com os judeus e de suas teorias do QuintoImpério.

Nos limites da heresiaNo começo de sua carreira, Vieira já era o sacerdote e o político que veio a ser emtoda a sua vida. Mantendo sempre a ambição, própria da época, em especial entre osjesuítas, de casar a reflexão sobre o mundo com a interpretação dos Evangelhos, seussermões são dominados por uma linguagem carregada de metáforas e hipérboles,quase ausentes nas singelas Cartas de Nóbrega, escritas um século antes.5 Emboramuitos historiadores e críticos tenham considerado Vieira um maneirista,representante do "discurso engenhoso", não parecia ser essa a pretensão do pregador.No "Sermão da sexagésima", que considerava o seu "primus inter pares", o pregadorenfatizou a necessidade de um estilo claro e simples, repudiando as complicações dogongorismo que atribuía aos dominicanos.6 Seus sermões, combinando comfreqüência a reflexão teológica e a política, são assinalados por uma ambigüidadeque vai além de uma questão de estilo literário.

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O grande jesuíta quase sempre nos surpreende em seus sermões, que serviriamtanto à denúncia dos males e das injustiças do mundo quanto ao consolo das almas.No mencionado sermão de 1633, quando era apenas um jovem pregador, Vieiradirigiu-se à Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos de um engenho daBahia em termos que até hoje assombram o leitor. Ele comparou os escravos aCristo e assemelhou o engenho ao inferno: "e que coisa há na confusão deste mundode semelhante ao inferno, que qualquer destes vossos engenhos, e tanto mais, quantode maior fábrica? Por isso foi tão bem recebida aquela breve e discreta definição dequem chamou a um engenho de açúcar doce inferno". O pregador, então com 25anos, ia ainda mais longe, distinguindo uma estrutura de dominação e de exploraçãoentre escravos e senhores: "Eles mandam, e vós servis; eles dormem, e vós velais;eles descansam, e vós trabalhais; eles gozam o fruto de vossos trabalhos, e o que vóscolheis deles é um trabalho sobre outro. Não há trabalhos mais doces que o dasvossas oficinas; mas toda essa doçura para quem é? (...) Fabricais o mel, mas nãopara vós.7

[<<10]

O engenho, no sermão de Vieira: "doce inferno".

Na metáfora demoradamente construída desse sermão do Rosário, Vieiraencontra, porém, na brutalidade da situação, um significado que a justifica. No"Sermão de São Roque", posterior ao do Rosário, ele dizia que "as obras de Deustodas são boas; os instrumentos de que se serve podem ser bons e maus".8 Umareflexão que se alinha com essa, no sermão do Rosário, em que ele diz que nosofrimento dos escravos estaria o caminho para a salvação, sempre que os negrosvenham a conhecer a religião: "Mas se entre todo esse ruído, as vozes que se

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ouvirem, forem as do Rosário, orando e meditando os mistérios dolorosos, todo esseinferno se converterá em paraíso; (...) e os homens, posto que pretos, em anjos". Épreciso ter presente que Vieira dirige-se aos negros escravos do engenho: "Quandoservis aos vossos senhores, não os sirvais como quem serve a homens, senão comoquem serve a Deus, porque então não servis como cativos senão como livres, nemobedeceis como escravos, senão como filhos. (...) Assim como agora, imitando SãoJoão, sois companheiros de Cristo nos mistérios dolorosos de sua Cruz, assim osereis nos dias gloriosos de sua Ressurreição e Ascensão".9

Nessa visão do mundo, em que as obras de Deus se realizam por meio deinstrumentos bons e ruins, encontravam justificativa tanto o sofrimento dos escravosquanto a dominação dos senhores, pois estes serviram de instrumento para que osnegros, vindo da África para a América, passassem a conhecer a religião.10 TambémNóbrega, em meio às suas decepções com os colonizadores cristãos, entendia que osíndios deveriam estar perto, ou mesmo dentro, das vilas e cidades, para que aevangelização pudesse chegar até eles. O raciocínio que Nóbrega aplicava aosíndios, Vieira estendia também aos negros. O pregador considerava a vinda destespara o Brasil não como um "desterro", mas como um "milagre", porque encontrando-se aqui, sob domínio português, suas almas poderiam ser salvas.

Em meio às ambigüidades, são, porém, notáveis a grandeza e a coragem de Vieira,que, em seus discursos, preferiu, quase sempre, como disse Boxer, referir-se aoVelho Testamento, ao Deus das batalhas. Ainda na Bahia, em 1640, pouco antes deviajar para Portugal, e como os holandeses continuavam em suas investidas nonordeste do Brasil, Vieira pronunciou o seu notável "Sermão pelo bom sucesso dasarmas de Portugal contra as de Holanda". Diante da emergência, a retórica do jovempregador, agora com 32 anos, tomou um tom incendiário, aproximando-seperigosamente dos limites da heresia, numa interpelação que, à maneira de Moisés,dirigia ao próprio Deus: "Senhor meu, que é isto? (...) Prouvera a Vossa DivinaMajestade que nunca saíramos de Portugal, nem fiáramos nossas vidas às ondas eaos ventos, nem conhecêramos, ou puséramos os pés em terras estranhas! Ganhá-laspara as não lograr, desgraça foi e não ventura: possuí-las para as perder, castigo foide vossa ira. (...) se determináveis dar estas mesmas terras aos piratas de Holanda,por que lhas não destes enquanto eram agrestes e incultas, senão agora? (...) Entregaiaos holandeses o Brasil, entregai-lhe as Índias, entregai-lhes as Espanhas (que nãosão menos perigosas as conseqüências do Brasil perdido), entregai-lhes quantotemos, e possuímos (como já lhes entregastes tanta parte); pode em suas mãos omundo; e a nós, aos portugueses e espanhóis, deixai-nos, repudiai-nos, desfazei-nos,acabai-nos. Mas só digo e lembro a Vossa Majestade, Senhor, que estes mesmos queagora desfavoreceis e lançais de vós, pode ser que os queirais algum dia, e que os

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não tenhais.(...) Abrasai, destruí, consumi-nos a todos; mas pode ser que algum diaqueirais espanhóis e portugueses, e que não acheis. Holanda vos dará os ApostólicosConquistadores. Holanda vos dará os Pregadores Evangélicos, que semeiam nasterras dos bárbaros a doutrina Católica".11

Que limites estabeleceria para si próprio o jovem sacerdote que ousava interpelara Deus? Em todo caso, pode-se perceber, desde logo, que sua fúria de 1640 contra osprotestantes holandeses é muito mais nítida no seu conteúdo político do que aindignação do sermão do Rosário de 1633, carregado de compaixão, em face dosofrimento dos escravos, aos quais, porém, aconselha a submissão aos senhorescomo forma de submissão a Deus. Veremos mais adiante, e talvez de um modo maisdramático, algo dessa mesma ambigüidade entre a força da compaixão e as razões dapolítica, quando o pregador, na fase final de sua vida, será chamado a expressar-sesobre o quilombo dos Palmares.

Tendo sido sempre sensível ao sofrimento de negros e índios, o grande pregadorfoi ainda mais sensível às razões da Contra-Reforma contra os infiéis e às razões daCoroa portuguesa, preocupada em salvar a sua colônia americana, o que lhe restavade rentável no Império decadente. Quando terminava a União Ibérica, persistindo napenínsula Ibérica os conflitos entre portugueses e espanhóis, Vieira entendeu, jáagora em Lisboa, em sermão do Ano-Novo em 1642, que deveria apelar a quecessassem as lutas fratricidas entre os dois países católicos. A paz era necessáriapara que ambos – em especial Portugal – pudessem enfrentar os desafios de umaépoca difícil.

Nessa oportunidade, o pregador, tomado de fúria patriótica, usa de palavras queapelam diretamente ao derramamento de sangue. Havia que pacificar a Ibéria, dizele. E havia que pacificá-la porque assim os portugueses poderiam voltar a "banharsuas espadas no sangue dos heréticos na Europa, e no sangue dos muçulmanos naÁfrica, no sangue dos pagãos na Ásia e na América". Mais uma vez o pregador uneas razões do Estado às da Igreja. Haveria que conquistar e subjugar "todas as regiõesda terra sob um único império, de modo a que todas possam, sob a direção de umaCoroa, colocar-se gloriosamente aos pés do sucessor de São Pedro".12

"Semelhanças proféticas"O século que consolidou Portugal e Espanha como fortalezas da resistência católicacontra a Reforma foi também o das revoluções inglesas, em especial a primeira, a de1640, de Cromwell, de enorme significação para a história do protestantismo.Embora se encontrasse em processo a separação do Estado e da religião, asecularização da política que Maquiavel antecipara no Príncipe teria que esperar o

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século XVIII para se tornar um princípio amplamente admitido no discurso políticoeuropeu. Vieira acreditava, como muitos protestantes ou católicos da Europa doséculo XVII, "que os livros proféticos do Velho Testamento poderiam seramplamente interpretados em termos do presente e do futuro imediato".13 Só numaépoca em que a referência aos Evangelhos era ainda obrigatória na política sepoderia compreender que as dissidências religiosas inglesas tenham conduzido àexperiência de "teologia aplicada" dos peregrinos nas colônias da Nova Inglaterra,de que fala Boorstin.14

Antônio Vieira foi um dos personagens mais brilhantes dessa época, na variantecatólica, ibérica e tridentina. Para ele, como diz João Adolfo Hansen, deveria ser"absolutamente estranha (...) a idéia iluminista de que não há nenhum fundamentoabsoluto para a história". Deveria ser-lhe inteiramente estranha a idéia da históriacomo um processo apenas humano "que dispensa Deus como causa e finalidade".15

Por outro lado, ele não concebia a doutrina dissociada das coisas práticas, pois estastambém teriam a presença de Deus.16 Desse modo, era-lhe essencial "demonstrarsemelhanças proféticas entre o sentido da vida de homens e acontecimentos daBíblia e o sentido da vida de homens e eventos do presente".

Essas "semelhanças proféticas" eram entendidas "como presença providencial deDeus orientando uns e outros no passado e no presente". Para Vieira, "o papa e ospregadores evangélicos" eram instrumentos imediatos da "conversão do mundo".Pelas mesmas razões, em seu pensamento, as razões da evangelização e as do Estadonão se separavam. O batismo dos escravos e a salvação das almas cativas não sedissociavam dos projetos de conquista de Portugal. Essa convicção se via, por todaparte, reforçada pelas circunstâncias da época.

Em Portugal, na época da Restauração, os poderes espiritual e temporal, quenunca estiveram distantes um do outro, fundiram-se, visando defender a "políticacatólica" da Coroa lusa aliada ao papa. Na missão em favor da fé cató lica, o rei eraentendido como o instrumento "zelosíssimo" e remoto que protege os pregadorescom a "assistência da segurança". Foi nessas circunstâncias que Vieira reconheceuem Portugal a elevada missão da salvação do gentio, na qual o papel do Novo Mundose tornava essencial. E assim construiu uma teoria que sacralizou a dinastia dosBragança, querendo ver nela um instrumento de Deus. Portugal seria, assim, a naçãoeleita para estabelecer o Império de Deus na Terra.

Apoiado no pensamento do jesuíta espanhol Francisco Suárez (1548-1617), quesustentava a supremacia da Igreja perante o Estado, Vieira pretendeu, como observaHansen, "promover a integração harmoniosa dos indivíduos, estamentos e ordens doimpério português, desde os príncipes da Casa real e cortesãos aristocratas até osmais humildes escravos e índios bravos do mato, visando a sua redenção coletiva

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como um 'corpo místico' unificado". Ele seguia a teoria do "pacto de submissão", umcontrato "no qual a comunidade, como uma única vontade unificada ou 'corpomístico', abriu mão de todo poder, alienando-o na pessoa simbólica do rei edeclarando-se súdita (= submetida)". Acrescenta o mesmo autor: "Diferentemente domundo protestante, em que o rei é sagrado porque reina por 'direito divino', comoenviado direto de Deus para impor a ordem aos homens naturalmente inclinados àanarquia, em Portugal a figura do rei é sagrada porque representa a soberaniapopular alienada nela". É a versão católica, isto é, ibérica, do Estado absoluto,instrumento da vontade divina e aliado do papa contra os protestantes.

De acordo com a visão de Vieira, Portugal teria obrigações com o gentio e com oNovo Mundo. Era esse o "destino apostólico da nação portuguesa (...), fundamento ebase do reino de Portugal". O país teria tais obrigações como reino e monarquia, e"não só de caridade mas de justiça". "Tem esta obrigação Portugal enquanto reino,porque este foi o fim particular para que Cristo o fundou e instituiu". Esse "foi ointento e contrato com que os sumos pontífices lhe concederam o direito dasconquistas, como consta de tantas bulas apostólicas". Porque acreditava que o reiportuguês daria continuidade a D. Sebastião, Vieira propunha a Portugal caminhosque deveriam levá-lo ao Quinto Império. Daí a necessidade de catequizar os índios elibertar o Brasil dos "hereges calvinistas". Daí também a conveniência de preparar avinda de D. João IV para o Brasil, ficando um regente em Portugal. Daí igualmente aconveniência de abrandar a Inquisição contra os judeus, devendo isentar de confiscoos que viessem a investir na Companhia do Brasil que propôs fosse criada, "mesmose o investidor fosse culpado de heresia, judaísmo ou apostasia". Nas semelhançasproféticas de Vieira, casavam-se, portanto, os interesses da fé e os interessesimperiais de Portugal.

O "Sermão da Epifania", de 1662, dito na Capela Real, em Lisboa, no Dia de Reis,oferece o argumento básico do pregador quanto ao significado do Novo Mundocomo o do novo nascimento da cristandade. Vieira voltava a Lisboa depois dederrotado no Maranhão pelos interesses dos povoadores e buscava persuadir a Cortedos objetivos de sua política. O pregador falava no Dia de Reis: "o mistério própriodeste dia é a conversão da gentilidade à fé. Até hoje a Igreja tem celebrado onascimento de Cristo; hoje ela celebra o nascimento da cristandade". Lembrando osEvangelhos a propósito da visita dos reis magos, diz Vieira que eles representariamÁsia, África e Europa, mas que estaria faltando junto deles o rei que representaria aAmérica. Para Vieira, os portugueses teriam completado com o descobrimento avisita dos magos a Cristo. Daí que a história de Portugal teria duas épocas, antes edepois dos descobrimentos. É isso que expressa "o destino apostólico único da naçãoportuguesa".17 Duas epifanias, dois chamamentos, "uma na época de Herodes, outra

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dos portugueses".

Pernambuco e os judeusEm que pese sua preocupação em seguir a palavra divina, Vieira não se impedia defazer, por sua conta e risco, cálculos políticos. No caso das invasões dos holandeses,e não obstante a fúria com que os atacou no sermão de 1641, o pregador adotou em1648 um critério dos mais controvertidos de sua longa carreira de estrategista.Quando a luta lhe parecia de resultados incertos, ele se dirigiu a D. João IV, numtexto em que chegou a propor a compra de Pernambuco aos holandeses e,eventualmente, a entrega de Pernambuco à Holanda. Pensava que isso seria um meiopara aliviar as pressões da Espanha sobre Portugal que depois, mais preparado,buscaria reaver aquela região, certamente pelas armas.

Como sabemos, nenhuma dessas sinuosas e arriscadas medidas veio a se revelarnecessária. O poder português na colônia foi salvo pelos pernambucanos brancos,índios, negros e mestiços que, em 1654, derrotaram os holandeses. Os líderes queassim expressavam a incipiente formação da nacionalidade brasileira foram o negroHenrique Dias (?-1662), o índio Felipe Camarão (1601-1648) e o português JoãoFernandes Vieira (1610?-1681). Nenhum deles tinha nada de parecido com um rei,embora João Fernandes, que era "filho ilegítimo de uma prostituta mulata", tenhaalcançado altas funções na vida, chegando a senhor de engenho e governador deAngola e da Paraíba.18 Mas a quem queira lembrar-se das semelhanças proféticas deVieira, não será demais anotar que os líderes pernambucanos eram três, e de etniasdiferentes, como os magos.

Qualquer que seja, porém, o julgamento que se possa fazer (ou se tenha feito, naépoca) sobre esses cálculos políticos de Vieira, não se lhe pode negar a coragem e aaudácia com que se movia nos meandros do cenário europeu. É claro que ele seapoiava no seu excepcional prestígio perante D. João IV, permitindo-se publicarlivremente "certas convicções pessoais que feriam em cheio a opinião dominante noreino". Assim, "já em 1643, podia manifestar seu audacioso ponto de vista favorávelà gente da nação em escrito intitulado Proposta feita a el-rei D. João IV, em que lherepresentava o miserável estado do reino e a necessidade de admitir os judeusmercadores que andavam por diversas partes da Europa. Argumentando contraaquela opinião com os exemplos da Itália e da Santa Sé, que não embaraçavam apresença de tais mercadores em suas terras, salientava as vantagens para a economiaportuguesa da admissão de tais mercadores".19 Nessa ocasião, e acompanhando oexemplo dos países do norte, Vieira propunha a criação de duas companhias decomércio.

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Nessas palavras ao rei, Vieira combinava, com extrema habilidade, as referênciasbíblicas às circunstâncias da conjuntura. "Vença Vossa Majestade a infidelidade comas suas próprias armas, degolando a idolatria com a espada do judaísmo, assim comoos mesmos judeus, quando Deus os governava, conquistaram a Terra da Promissãocom os tesouros dos egípcios". Embora de maneira sibilina, instava a D. João IV quese inspirasse em exemplos de um passado glorioso. Ainda que soubesse que D.Manuel havia obrigado os judeus à conversão, Vieira considerou que o Venturoso osigualou aos cristãos-velhos, admitiu-os no seu reino e lhes prometeu favores. D.João II "favoreceu muito aos homens de nação e se serviu deles em postos de grandeconfiança". Foram os dois reis "mais felizes de Portugal, e seus anos os maisprósperos e gloriosos", "dilataram a fé e enriqueceram o reino". Não obstante, algunshistoriadores considerem que houve excesso de otimismo de Vieira quanto a umaresposta positiva dos judeus, que não se interessaram tanto pela sua proposta comose esperava, o certo é que foi com dinheiro judeu que se organizou a Companhia deComércio para o Brasil.20

Se o tema dos judeus não foi dominante entre os assuntos de que tratou Vieira emseus sermões, esteve presente em diferentes momentos da carreira do pregador. No"Sermão de São Roque", de 1644, ele apresentou a necessidade de uma abertura dePortugal aos judeus, em termos que os incorporam ao seu discurso em favor dacristandade. Ele pretendia a criação, que muitos temiam, de "duas companhiasmercantis, Oriental uma, e outra Ocidental, cujas frotas poderosamente armadastragam seguras contra Holanda as drogas da Índia e do Brasil". O objetivo eraexplicitamente político, ou seja, que Portugal "tenha todos os anos os cabedaisnecessários para sustentar a guerra interior de Castela".

A criação das Companhias, aprovada e admirada na Europa, era, porém, temidaem Portugal, onde "alguns de seus comerciantes" apareciam como "mal reputados nafé". Assim, "a mistura do dinheiro menos cristão com o católico, faz suspeitoso todoo mesmo remédio, e por isso perigoso". Diante desses temores, Vieira, como sempreem seus sermões, recorria ao texto bíblico: "Não houve no mundo dinheiro maissacrílego que aqueles trinta dinheiros por que Judas vendeu a Cristo. E que se fezdeste dinheiro? Duas coisas notáveis. A primeira foi que daquele dinheiro secomprou um campo para sepultura dos peregrinos. A segunda foi que mandou Cristoa el-rei D. Afonso Henriques que destes trinta dinheiros e mais das suas cinco chagasse formassem as armas de Portugal". O princípio em que se baseia é claro: "as obrasde Deus todas são boas; os instrumentos de que se serve podem ser bons e maus".21

As almas e os índios

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Se o XVII foi na Europa o século das lutas religiosas, no Brasil foi, sobretudo, o daslutas entre jesuítas e bandeirantes. Na terra selvagem, em meio à floresta povoada deíndios, os bandeirantes eram, em geral, uns sujeitos extremamente rudes, em quasetudo diferentes dos jesuítas, pessoas letradas e, por vezes, de origem nobre oufidalga. Assim como Bartolomeu de Las Casas diante dos conquistadores espanhóisno século XVI e Manuel da Nóbrega diante dos primeiros povoadores do Brasil,Antônio Vieira, no século XVII, tinha opinião desfavorável dos povoadores e dosbandeirantes.

Sempre próximo da Coroa, ele via nos bandeirantes parceiros incômodos que, nomais das vezes, tornavam-se inimigos. Produtos de uma mestiçagem iniciada com odescobrimento, muitos bandeirantes e povoadores se achavam em parte assimiladosao estilo de vida dos índios. No caso de São Paulo, mal falavam o idioma português,o que não seria muito diferente no Maranhão e no Pará, para onde a companhiaenviou Vieira na segunda metade do século XVII. Embora desejando, comoNóbrega, evitar conflitos sobre a distribuição do trabalho indígena, o pregador nãotinha dúvidas quanto às prioridades da evangelização.

No "Sermão das Tentações", que pronunciou em sua chegada, em 1655, aoMaranhão, Vieira lembrou as tentações do demônio a que Cristo resistiu para dizeraos colonos que a escravização dos índios era uma tentação a que estes não haviamresistido, e por isso perdiam suas almas. Lembrando a passagem bíblica na qualCristo lavou os pés dos apóstolos, afirmou que Deus queria que o povo e a nobrezado Maranhão libertassem os índios escravos. É que, ao lavar os pés dos apóstolos,Jesus queria dizer que os cristãos deveriam servir à humanidade. "Pois Deus ter seencarnado era tornar-se homem ele próprio; pois ele lavar os pés dos homens era elepróprio tornar-se um servo." "Sabeis, cristãos, sabeis nobreza e povo do Maranhão,qual é o jejum que quer Deus de vós. (...) Todos estais em pecado mortal: todosviveis e morreis em estado de condenação, e todos vós ides direito ao inferno."22

Vieira lembrava aos colonos o inferno porque queria salvar suas almas para o céu,tanto as dos povoadores quanto as dos índios. As almas a salvar seriam, para ele, "asverdadeiras minas do Maranhão". No plano prático da repartição do trabalhoindígena, ele queria conciliar com os colonos. Queria chegar a uma forma por meioda qual "todos os índios deste Estado servirão aos portugueses; ou como próprios einteiramente cativos, que são os de corda, os de guerra justa e os que livre evoluntariamente quiserem servir, ou como meios cativos que são todos os dasantigas e novas aldeias". Quanto a essa proposta, o pregador perguntava aos colonos:"Pode haver coisa mais moderada? (...) Quem se não contentar e não satisfazer disto,uma das duas: ou não é cristão ou não tem entendimento".23

A chegada de Vieira ao Maranhão deu-se no momento em que se anunciava lei de

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D. João IV que libertava os índios escravizados em toda a colônia e buscavaestabelecer limites para as tropelias em torno da questão indígena.24 A nova leideterminava que a escravização de índios só ocorreria em quatro circunstâncias: aCoroa ordenava a escravização; os índios recusavam a pregação cristã (a lei proibiaa conversão forçada); os índios eram cativos de outras tribos e ameaçados de morteritual; ou eram capturados pelos portugueses em guerra justa. Essa nova leiprovocou grande oposição, não obstante significasse, de fato, que muitos índiospermaneceriam escravos, e ainda outros pudessem vir a ser escravizados.

Vieira percebeu claramente as implicações da lei, como se pode perceber de suaspalavras, buscando alguma forma de conciliação com os colonos. Estes, porém, nãoqueriam saber de nenhuma restrição e, como sabiam da amizade entre Vieira e o rei,acusaram o pregador de haver sido o inspirador da lei que contrariava seusinteresses. Embora Vieira negasse a acusação, isso não impediu que os colonosameaçassem tomar o colégio dos jesuítas, assim que a lei foi publicada.25

A alegação dos colonos era que, sendo pobres, não podiam comprar os negros daÁfrica, e dependiam dos indígenas para tocar suas lavouras. Colocavam-se assim osmoradores do Maranhão e do Grão-Pará abaixo do Estado do Brasil, em especial aBahia e Pernambuco, onde era geral o trabalho escravo de negros africanos. JoãoLúcio de Azevedo resume os argumentos dos povoadores: "alegavam eles que aposse dos índios, da qual pretendiam esbulhá-los, era legítima, achando-seautorizada por uma junta (...) . Erro lastimável seria comparar a situação destascapitanias à do Estado do Brasil, onde entravam em quantidade negros africanos. Porcá o único socorro era o dos índios, e os povoadores, vivendo espalhados pelas ilhase margens dos rios, a grandes distâncias, não podiam dispensar o serviço dessagente, como remeiros. Tampouco para o trabalho das roças onde fabricavam oaçúcar, o tabaco, e tantos outros gêneros que faziam a riqueza da república. E nãoeram os índios exclusivamente servos: como soldados ajudavam a defender oterritório; não existia nenhuma lei divina ou humana que vedasse a posse deescravos, sendo feitos com justiça; e, por outro lado, benefício era para estes, oentrarem de qualquer forma no grêmio da igreja cristã".26

Além do argumento econômico, os colonos se apoiavam em argumentos políticose mesmo religiosos, alegações sempre possíveis na situação de ambigüidadenormativa sobre o tema, em particular do lado da administração colonial e da Coroa.De um ponto de vista doutrinário, argumentavam que a submissão dos índios eralegítima, pois era próprio do inferior subordinar-se ao superior, uma alegação entãomuito freqüente, baseada no clássico argumento aristotélico. João Lúcio de Azevedoanota que as queixas dos colonos do Maranhão, além de se referir ao regime dosíndios, mencionavam os missionários em geral e os procedimentos do próprio

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Vieira. Pela primeira vez apresentavam "a argüição de cobiça, o labéuconstantemente lançado sobre as missões".27

Diante das ambigüidades da Coroa e das resistências dos colonos, Vieirarecuperou diretrizes da Igreja do século XVI, a qual em 1537 estabelecia, por meioda bula Sublimis Deos: "os referidos índios e todos os demais povos que daqui pordiante venham ao conhecimento dos cristãos, embora se encontrem fora da fé deCristo, são dotados de liberdade e não devem ser privados dela, nem do domínio desuas causas, e ainda mais, que podem usar, possuir e gozar livremente destaliberdade e deste domínio, nem devem ser reduzidos à escravidão; e que é írrito,nulo e de nenhum valor tudo quanto se fizer em qualquer tempo de outra forma".28

Essa determinação foi reforçada, em 1550, pelo Concílio de Trento, quandoidentificou à heresia luterana a tese de que eram legítimas a conquista e aescravização dos selvagens americanos porque estes não conheciam a verdadeirareligião revelada. Além desses antigos decretos, Vieira recuperou disposiçõesanteriores de Nóbrega, Anchieta e Cardim.29 Não obstante as intenções iniciais deconciliação, no ambiente já carregado de suspeitas, os jesuítas terminaram por sechocar frontalmente com os interesses coloniais. Em 1661, a população de São Luísse amotinou contra eles e, no mesmo ano, Vieira foi expulso de Belém.

As tentativas de Vieira, buscando conciliação com os povoadores, conduziram-noa uma proposta para a utilização de escravos negros. É o que relata João FranciscoLisboa: "numa representação dirigida à câmara do Pará em 12 de fevereiro de 1661,disse também o padre Antônio Vieira que os negros de Angola eram muitopreferíveis aos índios, por serem estes menos capazes para o trabalho, de menosresistência contra as doenças, e como muito próximos de suas terras, mais no casode fugirem facilmente, ou de se deixarem morrer de saudades delas". Além dessa,Lisboa menciona uma segunda proposta de Vieira, em 1669, em favor da escravidãode africanos. E João Lúcio de Azevedo assinala que, em 1678, tendo regressado deRoma, e mandado ouvir pelo regente, Vieira voltou à proposta de introdução deescravos de Angola por conta da coroa. Além disso, incluía os seguintes itens:proibição absoluta dos resgates, desenvolvimento das missões e entrega das aldeiasaos religiosos da Companhia.30

No ano de 1662, já em Lisboa, Vieira discorreu no "Sermão da Epifania" sobre asexperiências dos jesuítas no Maranhão, nas quais fora derrotado. O pregadormanifestou a intenção de celebrar, a propósito do nascimento de Cristo, onascimento da nova cristandade no Novo Mundo: "finalmente, nasceu Cristo naconquista do Maranhão, que foi a última de todas as nossas". Mas lamentou a seguir:"o que, porém, excede todo o espanto, e não se pode ouvir sem horror e assombro, éque os perseguidores de Cristo e seus pregadores neste caso não sejam os infiéis e

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gentios, senão os cristãos. Se os gentios indômitos, se os tapuias bárbaros e ferosdaquelas brenhas se armaram medonhamente contra os que lhes vão pregar a fé. Noevangelho temos a Cristo hoje perseguido, e hoje adorado: mas de quem adorado, ede quem perseguido? Adorado dos gentios, e perseguido dos cristãos".31

Jesuítas e bandeirantes: a conciliação difícilNas circunstâncias do século XVII, é mais fácil compreender as tentativas dosjesuítas de conciliação com os colonos do que o freqüente fracasso dessas tentativas.Uma dessas tentativas de conciliação, entre muitas, foi feita em fins do século XVIIpelo jesuíta toscano Giovanni Antonio Andreoni, que foi secretário particular deVieira e chegou a reitor do Colégio de Salvador. Andreoni tornou-se mais conhecidocomo Antonil, o nome com que assinou seu livro Cultura e opulência do Brasil(1711), que depois de impresso foi apreendido por ordem real como contrário aosinteresses da metrópole. Ele oferece, nesse livro, uma ampla descrição sociológica eeconômica da colônia, na perspectiva de um realismo e de um pragmatismo que oconduziram a divergências com os pontos de vista de Vieira. Algumas das frases deseu famoso livro tornaram-se célebres. Por exemplo: a colônia brasileira é "infernodos negros, purgatório dos brancos, e paraíso dos mulatos". Uma frase que, segundoBoxer, era freqüente entre os portugueses do século XVII. O que sugere umapercepção da consolidação da colônia por parte dos contemporâneos.32

Também é verdade, contudo, que, seja como inferno, purgatório ou paraíso, oselementos que compunham a colônia vinham sedimentando desde o século XVI: osconflitos em torno da questão indígena, a importação de negros da África, aprodução do açúcar em São Vicente, Bahia e Pernambuco e as entradas e bandeirassertão adentro em busca de ouro e de índios. Tudo isso vinha se desenvolvendodesde o século XVI como parte de um cenário colonial que, sobrevivendo aosataques dos corsários e à decadência lusa, só iria mudar em meados do século XVIII,quando o marquês de Pombal redefiniu a linha das Tordesilhas e expulsou osjesuítas.

Na época da chegada de Vieira ao Maranhão já se havia feito geral na colônia osistema de aldeamentos criado por Nóbrega. Como diz Boxer, "no início do séculoXVII, (a administração colonial) tinha dado controle efetivo de suas aldeias àCompanhia" e buscava auxiliar os jesuítas "em seu esforço em proteger os nativos".Os jesuítas, em troca, firmavam com os povoadores "contrato de trabalho de seusíndios, segundo algumas garantias".33 Mas permaneciam os conflitos, os quais, adespeito dos esforços conciliadores, pareciam inerentes ao sistema.

Nesse sentido é expressiva a "síntese do edifício social" do Maranhão oferecida

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por Azevedo: "Em baixo, a plebe de índios e negros africanos, os primeirosdesaparecendo gradualmente ao contacto da civilização, os últimos indo fundir-secom os elementos europeu e indígena, para formarem a raça nova (...) . Acima deles,os colonos reinícolas e filhos da terra, com igual pendor para a ociosidade e asmesmas pretensões de ascendência heróica e nobre (...) ; cobiçam debalde os postoselevados do governo, que o ciúme da metrópole reserva aos seus enviados. Estes, nopasso mais alto da escala, são os próceres e verdadeiros senhores da colônia".34

Na época de Vieira, os jesuítas, além de sacerdotes, já se haviam tornado tambémcolonizadores. Daí "a argüição de cobiça, o labéu constantemente lançado sobre asmissões". Com grande influência em Lisboa e na administração colonial, aCompanhia de Jesus havia adquirido por intermédio do sistema dos aldeamentosuma real significação material. Havia alcançado pleno êxito o plano inicial deNóbrega de implantar a atividade dos jesuítas em toda a colônia e, como resultado, aCompanhia estabelecera uma vasta rede de aldeias em todo o território. Só na regiãoamazônica, mais próxima da ação de Vieira, até 1660, havia 54 missões noAmazonas, nas quais viviam duzentos mil índios.

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O Brasil no século XVII: expansão promovida pelos bandeirantes para apresar índios,cujas almas Vieira queria salvar.

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Os feitos dos colonizadores e dos bandeirantes não eram menos impressionantes.A produção do açúcar se havia estabelecido com êxito no Nordeste, um êxito a quese somam as iniciativas de criadores de gado, como os da Casa da Torre. Em 1585, aBahia tinha 36 engenhos. Ao final do século XVII, passou a 146. E o país somavauma população estimada em 250 mil pessoas, na maioria composta por negros eíndios, livres e escravos.35 Por outro lado, os bandeirantes expandiam o territóriopor meio de marchas pelo interior que fixaram as posições de avançada da Américaportuguesa.

São de Antônio Raposo Tavares (1598-1658) as maiores expedições, sempre apartir de São Paulo: a primeira (1628-1633) em direção a Guairá, na proximidade dorio Paraná; a segunda (1635-1637) em direção ao atual estado do Rio de Grande doSul, junto com Fernão Dias Paes (1608-1681); a terceira (1648-1652) entrando pelocentro-oeste e subindo entre os rios Madeira e Tapajós, até a boca do Amazonas.Também saindo de São Paulo, Fernão Dias Paes foi, em 1638, rumo ao sul, nadireção do rio da Prata. Manuel Campos Bicudo, em 1673, continuou as expediçõesao centro-oeste. Embora mais numerosas, as expedições paulistas não são as únicas.Cortando o norte do país, a maior delas é de 1649, de Pedro Teixeira, que, saindo daboca do rio Amazonas, atravessando toda a região amazônica, chegou a Quito, noEquador. São de inícios do século XVIII, também nos rumos do centro-oeste, asexpedições de Antônio Pires de Campos (1716), Bartolomeu Bueno da Silva (1725) ePascoal Moreira Cabral (1718).36

Diferenças de mentalidadeÉ possível que na época de Vieira o crescimento colonial tornasse mais difícil aconciliação entre jesuítas e colonos. O desenvolvimento da colônia era acompanhadodo crescimento dos dois bandos e de suas respectivas áreas de influência einteresses, tornando mais agudos conflitos que, no século XVI, estavam ainda emgerme. Essa possibilidade de explicação surge das queixas dos povoadores, acusandoos jesuítas de buscar o controle dos índios para assegurar vantagens materiais para aCompanhia. "A pretexto de proverem às despesas do culto e à manutenção dasaldeias, aumentando assim o cabedal da companhia, pode dizer-se a história dacompanhia, por si só, uma história completa da colonização".37

Mais evidentes, porém, do que diferenças em torno de interesses materiais foramas divergências de mentalidade. Se Vieira deixou para a história a imagem de haversido o último pregador da Idade Média, os colonos e, sobretudo, os bandeirantes,tinham muito dos últimos guerreiros da Reconquista, agarrados a antigas noções dehonra, que incluíam o saque e a escravização do vencido. É certo, porém, que essa

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mentalidade medieval se esgarçava nos dois grupos, o que talvez propiciariadivisões surpreendentes entre pessoas que, afinal, se haviam formado nos mesmosvalores. Em todo caso, os conflitos se tornariam cada vez mais irredutíveis entrecolonos e jesuítas. Estes, embora pragmáticos e vinculados aos interesses materiaisdas aldeias, nunca renunciaram à salvação das almas.

No caso particular de Vieira, o pragmatismo revelou-se débil no interior de umpensamento que o conduziu, com freqüência, à condenação moral dos povoadores.No tribunal, sob a presidência de André Vidal de Negreiros, criado no Maranhãopara decidir cerca de dois mil casos de índios escravizados de modo consideradoilícito ou duvidoso, o pregador sempre votou a favor da liberdade do índio. Eleaceitava e defendia a missão apostólica da Coroa que envolvia a conquista do NovoMundo, mas não tinha a mesma facilidade para aceitar a legitimidade de ações dospovoadores e dos bandeirantes, embora estas caminhassem no mesmo rumo. Emsuas críticas aos bandeirantes, Vieira passava por alto a contribuição destes últimosà expansão do território, para deter-se na denúncia moral e religiosa. A propósito dasépicas expedições de Pedro Teixeira e de Raposo Tavares, disse que, tendo elesviajado cerca de três mil léguas pelo interior do país, "habitado por um númeroinfinito de nações (indígenas) que homem nenhum da Europa, além daquelesviajantes, havia jamais visto, (...) aqueles mesmos homens só deixaram atrás de siexemplos de sua perversão e cobiça, não um único exemplo de sua fé".38

Na empreitada colonial em que todos se achavam envolvidos, realidades novasescapavam ao olhar do pregador. Ou, quando as percebia, tendia, como em geral osjesuítas, a repudiá-las. E alguns aspectos dessas realidades repugnantes eram, aotempo de Vieira, já antigos e conhecidos. Desde o século XVI, muitos povoadores ebandeirantes não podiam ser considerados portugueses, porque já eram mamelucos,mistura de índio com português. Contudo, desde Nóbrega até Vieira, os jesuítasobservavam com repugnância o fato de que muitos portugueses se deixassem seduzirpelo modo de vida dos índios. Criticavam as misturas de índios com caçadores deíndios que também vinham desde inícios da colônia, quando os grupos indígenas"amigos" foram estimulados a caçar índios em grupos rivais para escravizá-los evendê-los aos colonos. Além disso, com o correr do tempo, parte importante dastropas bandeirantes passou a ser formada por índios.39

Em meados do século XVI já eram visíveis a Nóbrega os problemas que Vieiraveio a enfrentar no século XVII. Talvez, em razão da distância em que a capitania seachava da Corte, a miscigenação em São Paulo tenha sido particularmente forte. Acapitania recebeu notável influência indígena desde o início até o período dasbandeiras, que alguns historiadores consideram "um fenômeno tipicamentemameluco". Segundo Teodoro Sampaio, "até meados do século XVIII falava-se em

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São Paulo mais a língua-geral que o português". "Por isso são tupis os nomes demuitas localidades identificadas pelos Bandeirantes." Em mais de um momentoVieira criticou os paulistas, dizendo que em São Paulo as famílias dos portugueses eíndios estão ligadas umas às outras e que falam a língua dos índios. É célebre o casodo paulista Domingos Jorge Velho (1641?-1703): em fins do século XVII,contratado pelo governo de Pernambuco para debelar o quilombo dos Palmares,percebeu-se que ele precisava de um "língua" para se comunicar com quem falavaportuguês.40

Depois da morte de D. João IV, Vieira disse, em carta de 1657, ao novo rei D.Afonso VI, que, em espaço de quarenta anos, dois milhões de índios haviam sidomortos pelos portugueses.41 O número suscita dúvidas em alguns historiadores,segundo os quais não haveria uma população indígena tão grande no país. Mas vale aestimativa de Vieira para indicar que foi grande o número de mortos, não apenas emguerras e combates, mas também por doenças trazidas pelos portugueses, para asquais os índios não dispunham das defesas orgânicas dos europeus. Vale tambémpara indicar a que ponto chegou a tensão entre povoadores e jesuítas, cujas opiniõesse opunham de modo irredutível.

De qualquer modo, os bandeirantes e os povoadores eram o lado mais forte dadisputa com os jesuítas. Eles garantiram o fornecimento da primeira "força detrabalho" no país; alargaram o território para além do meridiano das Tordesilhas; e,ao fim do século XVII, encontraram as minas de metais preciosos que ajudaram asuprir as necessidades de capital numa Europa que desenvolvia o seu progressocomercial e se preparava para a revolução industrial, aumentando, de passagem, osluxos de Portugal e dos ricos da colônia. Foi nesse processo que terminaram porderrotar os jesuítas e seus aldeamentos.

Observando-se os conflitos de quase dois séculos, impregnados de medievalismo,fica sempre a impressão de que uma das duas partes estaria condenada adesaparecer. Embora compondo um projeto comum, de alargamento da fé e doimpério, nenhuma das partes parecia capaz de compreender as razões da outra. Aofinal, prevaleceu o mais forte. Foram derrotados os jesuítas, primeiro com expulsõeslocais, como as de São Paulo e do Maranhão, e, finalmente, com a expulsão de todoo território. Antônio Vieira, o mais poderoso e o mais brilhante deles, caiu antes daCompanhia, que depois dele entrou em decadência na colônia.

Desigualdade: os índios e os negrosÉ até hoje motivo de espanto saber que a Igreja que tanto combateu em defesa dosíndios tenha aceitado a escravização dos negros, não apenas no Brasil, mas em toda a

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América ibérica. Mesmo no caso de uma figura tão notavelmente combativa comoBartolomeu de Las Casas, foi apenas ao fim de sua vida, toda dedicada a defender osíndios, que se manifestou contra a escravidão dos negros. Vieira não se esqueceu dosnegros, aos quais dedicou alguns sermões do Rosário, mas a atenção que lhes deu foimuito menor do que a dedicada aos índios e, em diferentes momentos, aos judeus.Queria salvar as almas dos negros, diminuir seu sofrimento, mas estava longe deadmitir que deveriam ser livres.

Como já se disse, o grande pregador do século XVII não pode ser interpretadocom os critérios do Iluminismo do século XVIII. Mesmo quanto aos índios, nuncafoi nítida nele a doutrina de que deveriam ser livres. Quanto aos negros, nunca foium abolicionista, nem mesmo ao fim da vida, como Las Casas. No "Sermão daEpifania" ele diz: "Não é minha intenção que não haja escravos (...); nós queremossó os lícitos, e defendemos (proibimos) os ilícitos (...)".42 É que, para Vieira, averdadeira escravidão era o pecado que afastava o homem de Deus. Fiel à doutrinada Igreja do seu tempo e ao espírito da última Idade Média, ele não admitia em suavisão de mundo o indivíduo, no sentido iluminista. Assim como o homem seescravizava quando pecava, libertava-se quando se aproximava de Cristo, porintermédio da Igreja. Era essa a preocupação essencial de Vieira: a liberdade que seencontraria na salvação das almas.

Já que Vieira admitia, quanto aos índios, que pudesse haver uma escravidão lícita,como distinguir, nos casos concretos, entre o escravo lícito e o ilícito? É razoávelsupor que ficasse aberta alguma possibilidade de entendimento com os povoadores.Mas os colonizadores não queriam saber de nenhuma restrição, de tal modo que adefinição do que se considerava lícito ou ilícito colocava problemas práticos nemsempre fáceis de resolver.

Segundo Alfredo Bosi, uma das razões do desentendimento entre Antonil e Vieirateria sido a conciliação, que o primeiro aprovava e o segundo condenava, com"preadores de índios em São Paulo".43 Contudo, não pode ter sido excepcional atentativa de Antonil, que tinha precedentes nas alianças de Nóbrega no Rio deJaneiro e na Bahia. Tinha precedentes mesmo nas tentativas, fracassadas, de Vieira,buscando entendimentos com os moradores do Maranhão em entradas pelo interior.Além disso, sabe-se dos conflitos entre Nóbrega e Luís da Grã, seu sucessor comoprovincial, bem como das diferenças de opinião entre jesuítas e membros de outrasordens religiosas. As ambigüidades da Coroa e da Igreja abriam espaço para muitosconflitos dessa natureza.

Em certas situações, o problema da licitude da escravidão indígena colocou-separa o próprio Vieira. Em carta ao rei de 11 de fevereiro de 1660, ele relata ossucessos das missões que realizara com o padre Francisco Gonçalves, de São Luís

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para o Amazonas e o rio Negro, em 16 de agosto de 1658, atravessando por todas ascapitanias do Estado, "e de todas elas fora levando os respectivos procuradores ecanoas em quantidade para o resgate de escravos que se fazia naqueles rios". Foiaquela a primeira vez, diz Vieira, "que o resgate se fez por esta ordem, para que osinteresses dele coubessem a todos, e particularmente aos pobres, que sempre, como écostume, eram os menos lembrados".44

O pregador também narra a guerra com que "este piedoso exército" (a ironia é deJoão Francisco Lisboa) castigou índios rebelados da nação inheiguara, que, segundoVieira, "haviam há tempos impedido a outros índios da sua vizinhança que sedescessem para a igreja e vassalagem de S. M". Diz Vieira: "São os Inheiguarasgente de grande resolução e valor, e totalmente impaciente de sujeição; e havendo-seretirado aos lugares mais ocultos e defensáveis das suas brenhas, em distância demais de cinqüenta léguas, lá mesmo foram buscados, achados, cercados, rendidos etomados quase todos, sem dano mais que de dois índios nossos levemente feridos.Ficaram prisioneiros duzentos e quarenta, os quais, conforme as leis de S. M., atítulo de haverem impedido a pregação do evangelho, foram julgados por escravos, erepartidos aos soldados".45

Desigualdade social e compaixão cristãNão obstante todos os constrangimentos do passado, a época de Vieira era tambémum tempo de mudança. E o pregador era, como sabemos, também um estrategistapolítico. Daí que não há como considerar suas idéias como pertencentes a um blocohomogêneo. Assim como fazia às vezes seus cálculos políticos por conta própria, o"último pregador da Idade Média" enfrentava as questões do seu tempo com idéiasnovas a respeito da nova humanidade, nem sempre inspiradas na tradição ouenquadradas nos limites estabelecidos pela regras do Concílio de Trento ou, mesmo,da Companhia de Jesus.

Ao contrário do que era dominante numa época em que a desigualdade das etniasse entendia como natural, Vieira parece descrer da superioridade de uma etnia sobreoutras. Eis o que diz no "Sermão da Epifania": "pode haver maior inconsideração doentendimento, nem maior erro do juízo entre homens, que cuidar eu que hei de servosso Senhor, porque nasci mais longe do Sol, e que vós haveis de ser meu escravo,porque nascestes mais perto? (...) Dos magos, que hoje vieram ao presépio, doiseram brancos e um preto, e seria justo que mandasse Cristo que Gaspar e Baltasar,porque eram brancos, tornassem livres para o Oriente, e Belchior, porque erapretinho, ficasse em Belém por escravo, ainda que fosse de São José? Bem o puderafazer Cristo, que é Senhor dos senhores; mas quis nos ensinar que os homens, de

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qualquer cor, todos são iguais por natureza, e mais iguais ainda por fé, se crêem eadoram a Cristo, como os magos".46

Até mesmo as aparentes inconsistências do pregador de algum modo se vinculamem sua visão cristã do mundo. Está claro que, no "Sermão da Epifania", ele defendea igualdade das raças. Mas qual igualdade? A igualdade dos cristãos: "entre cristão ecristão não há diferença de nobreza, nem diferença de cor. Não há diferença denobreza, porque todos são filhos de Deus, nem há diferença de cor". As etnias,portanto, são iguais quando cristãs. E por isso acrescenta: quando cristãs, sãobrancas. É assim que nos diz que os cristãos, por virtude do batismo, "são todosbrancos": "Esta é a virtude da água do batismo". Daí concluir, num argumento contrao racismo dos colonos: "Mas é tão pouca a razão, e tão pouca a fé daqueles inimigosdos índios, que depois de nós os fazermos brancos pelo batismo, eles os queremfazer escravos por negros".47

Não faltou a Vieira a possibilidade, no "Sermão da Epifania", de uma admissão deculpa: "não posso, porém, negar que todos nesta parte, e eu em primeiro lugar,somos muito culpados. E por quê? Porque devendo defender os gentios, quetrazemos a Cristo, como Cristo defendeu os magos, nós, acomodando-nos à fraquezado nosso poder, e à força do alheio, cedemos da injustiça, e faltamos à sua defesa".Cristo defendeu os magos "de tal maneira que não consentiu que perdessem a pátria,nem a soberania, nem a liberdade: e nós (...) não só consentimos que (os gentios)percam tudo isto, senão que os persuadimos a que o percam, e o capitulamos comeles, só para ver se se pode contentar a tirania dos cristãos; mas nada basta. (...)Nada disto basta para moderar a cobiça e a tirania dos nossos caluniadores, porquedizem que (os gentios) são negros, e hão de ser escravos".48

A condenação de Vieira pela Inquisição, em 1667, não significou o fim de suaatividade como jesuíta. Mas deu início ao ocaso de sua vida pública. O pregador foilevado ao Santo ofício em razão de disputas antigas entre a Companhia e os padresdo Tribunal. Não faltaram ainda acusações de aproximação com os judeus, atémesmo a proposta para a formação das companhias de comércio. Foi tambémmencionado o texto de Vieira com o título Esperanças de Portugal, no qualdivulgava o sonho sebastianista de recuperação de Portugal como o Quinto Impérioda humanidade.

Depois de quatro anos de prisão para interrogatório, o pregador foi condenado.Quando ele se levantou para ouvir a sentença, no Colégio de Coimbra, todos osjesuítas presentes se levantaram e permaneceram de pé durante os procedimentos,que duraram mais de duas horas.49 Dois anos depois depois, libertado, saiu dePortugal para Roma, onde foi defender os judeus e seu nome perante o papa. Em

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1681 voltou à Bahia, dedicando grande parte do tempo à preparação dos sermõespara publicação. Morreu em 1697.

Imperativos da colonização, limites da compaixãoMerecem um registro final as reflexões de Vieira em torno do quilombo dePalmares. Um registro final e à parte porque ocorreram em 1691, quando o pregadorjá se achava à margem dos grandes combates a que dedicou sua vida. Vieira voltarahá mais de duas décadas aos muros de sua ordem e se dedicava a assuntos pessoais eda Companhia quando lhe chegou consulta da Coroa sobre a questão de Palmares.Em sua resposta sobre a rebelião de Palmares encontram-se talvez os limites do seupensamento sobre a nova humanidade que os povoadores e os jesuítas encontraramna América.

O quilombo dos Palmares foi a mais notável rebelião negra no Brasil colonial.Como relata Perdigão Malheiro, as rebeliões dos negros eram freqüentes na colôniaportuguesa como nas colônias espanholas, francesas e inglesas. A de Palmares duroudécadas, cerca de 67 anos, na serra da Barriga, hoje estado de Alagoas. Resistiu aataques dos holandeses de Maurício de Nassau e a diversas expedições daadministração colonial. Começou na época das guerras holandesas, reunindoescravos fugidos e pessoas livres. Depois da definitiva expulsão dos holandeses, umdos primeiros cuidados do governo foi bater Palmares, ordenando várias entradasnos sertões.

A guerra final contra o quilombo nasceu de um contrato entre o governador dePernambuco e Domingos Jorge Velho, no qual se estabelecia que os negrosaprisionados deveriam pertencer aos conquistadores. Era habitual no Brasil, para arepressão às rebeliões negras, o recurso aos capitães-do-mato. Nos combates paradestruir Palmares foi empregada uma força de quase oito mil homens, derrotandonuma luta de muitas semanas o quilombo sob a liderança de Zumbi.50

É inequívoca a posição tomada por Vieira sobre a questão de Palmares, em cartade 1691 dirigida ao rei de Portugal, D. Pedro II (1648-1706). Não existia, na época,diante da escravidão dos negros, a ambigüidade admitida em torno das definições daescravidão lícita e ilícita dos índios. Na época, quanto aos negros, toda escravizaçãoera lícita. Ou ao menos costumeira, em todo caso considerada inevitável. É o que sedepreende das opiniões de Vieira sobre Palmares, vários anos antes dos combatesque levariam à destruição do quilombo.

Em carta ao rei, o pregador recusou a idéia de que se enviassem padres daCompanhia para pregar aos negros de Palmares. Ele dizia que isso seriainconveniente porque os negros de Palmares se achavam "em pecado contínuo e

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atual". Para Vieira, os negros deviam obediência aos seus senhores, e a rebeldia eraum crime e um pecado. Recusou também a possibilidade de se enviar ao quilombopadres "naturais de Angola".

Em um passo final de seu argumento, Vieira admitiu, de maneira surpreendente,que só haveria "um meio eficaz e efetivo" para fazer cessar a rebelião: o rei e ossenhores concederiam aos rebelados "espontânea, liberal e segura liberdade",permitindo-lhes viver onde estavam, tal como "os outros indivíduos e gentios livres"viviam em suas aldeias. Poder-se-ia considerar essa aproximação especulativa entreíndios e negros um indício de que Vieira pressentia a inconsistência do seupensamento quanto ao tratamento a ser dispensado aos negros? Mas Vieira recusoutambém essa hipótese no curso de um argumento que denota os limites definitivosdo seu pensamento: conceder a liberdade aos negros de Palmares, disse ele, "seria atotal destruição do Brasil".

É surpreendente e dolorosamente realista a razão que o levou a tal conclusão. Eleconsiderou que, "conhecendo os demais negros que por este meio tinham conseguidoficar livres, cada cidade, cada vila, cada lugar, cada engenho, seriam logo outrostantos palmares, fugindo e passando-se aos matos com todo o seu cabedal, que não éoutra mais que o próprio corpo!".51 O grande pregador, cujos argumentos depretensão universal aspiravam esclarecer o sentido da descoberta de uma novahumanidade, submetia-se, assim, à lógica férrea da preservação da colônia. ParaVieira, como para os colonizadores, não podia haver colônia sem escravos.

A avaliação crítica dessas opiniões não deve, porém, ceder a nenhumanacronismo. Sabemos que Vieira não era um iluminista e que a sociedade européiade seu tempo permitia a escravidão dos negros. Na península Ibérica persistia atradição da escravização do vencido. A propósito, nos séculos XVI e XVII, aexploração de escravos não se limitava aos países de predominância católica;Barléus, um calvinista holandês, lamentava em meados do século XVI que também apraticassem os holandeses. No caso de Portugal, é preciso lembrar ainda quefuncionava livremente o tráfico negreiro, que surgiu muito cedo, quase ao mesmotempo que os portugueses começaram a explorar as costas da África. É precisolembrar, finalmente, que as primeiras imagens humanistas da modernidade nãopareciam reservar aos negros nenhum reconhecimento. Quando tudo foi dito,permanece, porém, o fato de que o grande missionário, ao recusar pregar aos negrosde Palmares e, mais, ao recusar-lhes a liberdade que admitia para os índios,submeteu-se à lógica de ferro da colonização.

Herança de Vieira

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Muito estudado pelos críticos literários e pelos historiadores católicos, AntônioVieira é menos conhecido dos sociólogos e dos cientistas políticos, até mesmo dosantropólogos. E, contudo, na defesa cristã (católica) da igualdade, que tão bemexpressou ao longo da vida, encontram-se algumas das raízes do pensamento social epolítico brasileiro. Mais do que isso, encontram-se nele algumas raízes da peculiarabertura e das ambigüidades da cultura brasileira diante das etnias e da desigualdadesocial. Junto com os padres da Companhia que, como ele, dedicaram-se durante doisséculos a evangelizar o Brasil, o "último pregador da Idade Média" nos deixou aherança de algo de suas virtudes e de seus defeitos, alguns dos quais ele próprioreconheceu em vida.

Mesmo que não tenham sempre conseguido ser igualitários e justos, Vieira,Nóbrega e os demais jesuítas transmitiram o valor da igualdade e da justiça a umasociedade que, desde a origem, sabia-se desigual e injusta. Não conseguiram, depoisde dois séculos, torná-la mais igualitária, mas obrigaram-na a abrir-se à crítica dasua própria desigualdade. Em lugar de uma sociedade criada na certeza da correçãodos seus caminhos, Vieira e os jesuítas ajudaram a criar na sociedade uma elevadaconsciência dos seus próprios erros. Uma sociedade por isso compassiva dos quesofrem a própria injustiça.

Em seu livro sobre Vieira, o historiador Thomas Cohen sugere que o melhorepitáfio para o grande pregador está nas palavras com que ele, apoiado nos exemplosde São Paulo e São Francisco Xavier, definiu o sentido essencial da atividade domissionário: " (...) ad omnia é e deve ser a empresa e o emblema de todo verdadeiromissionário (...) , todos por todos e todos por tudo. Não apenas catequizar o gentio,batizar os catecúmenos e instruir os cristãos, mas também alimentá-los quando têmfome, vesti-los quando estão nus, curá-los quando estão enfermos, libertá-los quandoestão cativos, enterrá-los quando morrem: como preceptores, como pais, comopastores, como médicos, como enfermeiros, como servos, como seus escravos emtodas as coisas, viver sempre com eles e morrer com eles, e por eles, e também emsuas mãos. (...) É tudo isto que significa ad omnia".52

A sugestão de Cohen é valiosa pelo menos por uma razão: ninguém poderia dizermelhor do que Vieira o sentido da compaixão que ele buscou como significado desua própria vida.

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Pombal: pensamento iluminista influenciando o Brasil.

1. BOXER, A Great Luso-Brazilian Figure..., cit.,p. 4.2. As trovas do Bandarra foram publicadas, pela primeira vez, em 1606, em Paris, sob o título Paráfrase e

concordância de algumas profecias de Bandarra, sapateiro de Trancoso. Submetido à Inquisição em 1541,Bandarra declarou ser analfabeto e haver composto as suas trovas baseado no que ouvira da Bíblia.

3. CIDADE, Hernani. Padre Antônio Vieira. Lisboa: Presença, 1985. p. 9.4. CIDADE, op. cit. BOXER, A idade de ouro do Brasil, cit., p. 39. Ver também N ISKIER, Arnaldo. Padre

Antônio Vieira e os judeus. Rio de Janeiro: Imago, 2004. p. 62.5. O conceptismo é um estilo barroco caracterizado pela agudeza do pensamento, o uso intensivo de

conceitos, metáforas e hipérboles. Em contraste com a simplicité dans la grandeur, que se atribui a Bossuet,Vieira seria um conceptista maneirista, influenciado pela nova escolástica da Espanha do século XVII. Cf.GOTAAS, Mary C. Bossuet and Vieira. A Study in National, Epochal and Individual Style. Washington D. C.:The Catholic University of America Press, 1953; e SARAIVA, António José. O discurso engenhoso. SãoPaulo: Perspectiva, 1980.

6. NISKIER, op. cit., p. 141.

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7. VIEIRA, Antônio. Sermões. Organização de Alcir Pécora. São Paulo: Hedra, 2001. v. 1, p. 655-657.8. Ibidem, v. 2, p. 404.9. Ibidem, v. 1, cf. nota 7.10. Ibidem, sermão XIV, p. 635 e seguintes. Ver também Bosi,Alfredo. História concisa da literatura

brasileira. 37. ed. São Paulo: Cultrix, 1994. p. 45-46; e, do mesmo autor, Dialética da colonização. SãoPaulo: Companhia das Letras, 1992. p. 143-144.

11. Ibidem, v. 1, p. 452-453.12. BOXER, A Great Luso-Brazilian Figure..., cit., p. 12.13. Ibidem, p. 11-12.14. Ver o capítulo 1.15. HANSEN, João Adolfo. Introdução a Antônio Vieira. Cartas do Brasil. Organização de João Adolfo

Hansen. São Paulo: Hedra, 2003. p. 27.16. HANSEN, Padre Antônio Vieira, loc. cit., p. 33. As citações seguintes são de Hansen e correspondem a esse

texto.17. VIEIRA, op. cit., v. 1. Ver também COHEN, op. cit., p. 99 e seguintes.18. BOXER, A idade de ouro do Brasil, cit., p. 40.19. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Capítulos de literatura colonial. Organização e introdução de Antonio

Candido. São Paulo: Brasiliense, 2000. p. 450-451.20. NISKIER, op. cit., p. 54.21. VIEIRA, op. cit., v.2 , p. 401 - 402 e 404.22. Idem. Sermões escolhidos. Organização de José Verdasca. São Paulo: Martin Claret, 2003. p. 33.23. Ibidem, p. 38.24. Na época, a administração da colônia se repartia entre o Estado do Brasil e o Estado do Maranhão e Grão-

Pará, criado em 1621, incluindo Ceará, Piauí, Maranhão, Pará e partes de Tocantins e Amazonas.25. COHEN, op. cit., p. 40 e 94.26. AZEVEDO, op. cit., p. 52.27. Ibidem, p. 83.28. Cf. BOSI, Dialética da colonização, cit., p. 136.29. HANSEN, Padre Antônio Vieira, loc. cit., p. 37. Cf. também AZEVEDO, op. cit., p. 43.30. LISBOA, João Francisco. Vida do padre Antônio Vieira. Rio de Janeiro: Jackson, 1949. p. 357. João

Francisco Lisboa não pode ser acusado de simpatias por Vieira. Comentando as razões do jesuíta para apreferência por escravos negros, diz Lisboa: "assim esse exílio eterno da pátria, e todos esses horrores datravessia a que desde então até hoje foram condenados os míseros africanos, eram uma atenuação do mal, euma verdadeira vantagem, no conceito do missionário jesuíta!". Sobre as propostas de Vieira quanto àintrodução de escravos africanos, ver também AZEVEDO, op. cit., p. 111.

31. VIEIRA, op. cit., tomo I, p. 603.32. BOXER. A idade de ouro..., cit., p. 23. Segundo esse historiador, antes de Antonil, cujo livro é de 1711, a

frase famosa foi empregada por Dom Francisco Manuel de Mello, por volta de 1660, conforme PRESTAGE,E. Dom Francisco Manuel de Mello. Esboço biográfico. Coimbra, 1914.

33. BOXER, ibidem, p. 40.34. AZEVEDO, op. cit., p. 151.35. VILELA, Magno. Antônio Vieira. A escravidão negra na Bahia do século XVII.Rio de Janeiro: Relume

Dumará, 1997. p. 36 e 85.36. GÓES FILHO, Synesio Sampaio. Navegantes, bandeirantes, diplomatas. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p.

106 e seguintes.37. AZEVEDO, op. cit., p. 13.38. A citação de Vieira está em COHEN, op. cit., p. 183.

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39. MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra – Índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo:Companhia das Letras, 1994. caps. 1 e 2.

40. SYNESIO, op. cit., p. 112.41. BOXER, A Great Luso-Brazilian Figure..., cit., p. 43.42. VIEIRA, Sermões, cit., v.1, p. 622.43. BOSI, Dialética da colonização, cit., p. 150 e seguintes.44. LISBOA, op. cit., p. 349-350.45. Ibidem, p. 351; AZEVEDO, op. cit., p. 72. "Em 1655 tem lugar a primeira missão aos Tupinambás, então

demorando à margem do Tocantins: mais de mil silvícolas são descidos nessa ocasião. Em 1657, missão aorio Negro; em 1659, outra vez ao Tocantins. No mesmo ano, Vieira consegue reduzir as tribos de Marajó.Era a conquista de suma importância para a colônia: por ela as portas do Amazonas ficam definitivamentecerradas ao holandês".

46. VIEIRA, Sermões, cit., v.1, p. 621.47. Ibidem, p. 621. Bosi cita várias passagens de Vieira no mesmo sentido, entre as quais estas: "(...) que os

homens de qualquer cor são iguais por natureza, e mais iguais ainda por fé"; "(...) os homens, pervertendo aigualdade da natureza, a distinguiram com dois nomes tão opostos, como são os de senhor e escravo";"Entre os homens, dominarem os brancos aos pretos é força, e não razão ou natureza''; BOSI, Dialética dacolonização, cit., p. 135 e 145.

48. VIEIRA, Sermões, cit., v. 1, p. 620. Ver também VILELA, op. cit., p. 164-165.49. BOXER, A Great Luso-Brazilian Figure..., cit., p. 26; cf. também VILELA, op. cit., p. 184.50. MALHEIRO, Agostinho Marques Perdigão. Escravidão no Brasil. Ensaio histórico-jurídico-social. Rio de

Janeiro: Cultura, 1866. p. 31 e seguintes. A ação dos capitães-do-mato foi regulamentada no Brasil em1724. As penas do Código Negro foram abolidas em 1833.

51. VILELA, op. cit., p. 169-170.52. COHEN, op. cit. Ver também VILELA, op. cit., p. 56.

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CAPÍTULO 6

SÉCULO XVIIIVERNEY E POMBAL: ILUSTRAÇÃO E DESPOTISMO

Enterrar os mortos e cuidar dos vivos.POMBAL

A fradaria absorve-nos, a fradaria devora tudo, a fradaria arruina-nos.ALEXANDRE DE GUSMÃO

A Ilustração chegou a Portugal depois da França, Holanda e Inglaterra, mas quase aomesmo tempo que na Espanha, Áustria, Rússia e Prússia. Chegou pelas mãos doMarquês de Pombal, que despertou a sociedade portuguesa adormecida na atmosferadecadente que sucedera aos descobrimentos e a um Renascimento e um humanismoreconhecidamente frágeis. Chegou a Portugal antes do que haveria de esperar umasociedade que, ainda no século XVIII, era tão carregada de heranças medievais. Talantecipação se deu, por um lado, por causa de mudanças de governo que levaram aopoder o Marquês de Pombal e, com ele, a influência de um pensamento que buscavaaproximar-se do Iluminismo em expansão nos países mais avançados da Europa. Poroutro lado, ocorreu como efeito da circunstância trágica do terremoto e do incêndiode Lisboa que em 1755 provocaram na Coroa e na sociedade portuguesas reaçõessurpreendentemente inovadoras.

Embora o Iluminismo luso possa ser tido como desdobramento de um centralismode poder de antigas raízes, o Marquês de Pombal passou à história como o primeiroestadista português moderno. Ministro de D. José I (1714-1777), o marquês foi,como seus inspiradores intelectuais, um "estrangeirado", como os portuguesesdesignavam homens com experiência de mundo, habituados a viagens epermanências no exterior, em particular nos países mais modernos da época. Devevir dele e de outros "estrangeirados" essa disposição portuguesa, também brasileira,para buscar "lá fora" modelos e diretrizes. Por certo vem de Pombal umacontribuição para reforçar nas duas sociedades a consciência crítica do próprioatraso.

A influência do Iluminismo pombalino estendeu-se além de Portugal, para a

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América portuguesa. Em inícios do século XIX pode ser percebida em JoséBonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), bem como nas iniciativas de RodrigoSousa Coutinho (1745-1812), chefe de governo de D. João VI (1767-1826).Ampliou-se com certeza nas concepções centralistas que prevaleceram no Impériobrasileiro. Indo mais longe no rastrear das influências, o historiador Antônio Paimvê sinais de pombalismo na "mentalidade cientificista" de fins do Império e dasprimeiras décadas da República, confluindo com o positivismo de origem comteana.Esse cientificismo, uma espécie de fé religiosa na ciência, aplicar-se-ia a todas asesferas da vida, inclusive à moral.1 E ofereceu formas mais modernas para ascrenças luso-brasileiras, mais antigas, na capacidade do Estado de intervir na vida dasociedade e eventualmente planejá-la.

Fendas na muralhaA surpreendente mudança do pensamento e da cultura da época de Pombal temantecedentes. "Na muralha que oprimia as inteligências havia fendas", disse JoãoLúcio de Azevedo sobre o período anterior.2 E algumas dessas fendas talvez fossemmuito antigas, reminiscências do século XVI, em particular de D. Manuel e D. JoãoIII, que estabeleceram a tradição portuguesa de enviar bolsistas ao exterior,preparando, assim, o clima para os "estrangeirados" de tanta influência no séculoXVIII. Desde os descobrimentos, a cultura erudita de Portugal foi, em grande parte,obra de portugueses que circulavam por outros países ou neles fixavam residência.Sem esquecer os técnicos estrangeiros agrupados à volta de D. Henrique no séculoXV, e alguns humanistas que se aproximaram da Coroa portuguesa no século XVI,os "estrangeirados" cresceram em número com os cristãos-novos que saíram dePortugal à época de D. Manuel. Não por acaso, como já se disse, pesou sempre umasuspeição sobre a cultura portuguesa, em grande parte obra de estrangeiros e de"estrangeirados".

No século XVIII, não obstante a influência dominante dos jesuítas, D. João V(1689-1750) recebeu a influência, também "estrangeirada", de Alexandre de Gusmão(1695-1753) e D. Luís da Cunha (1662-1740), seus ministros. Igualmente de nobrescomo D. Francisco Xavier de Meneses (1673-1743), Conde da Ericeira, cujosescritos, publicados em Londres, investiam contra a Inquisição. Sabe-se que o reipediu ao médico judeu Jacob de Castro Sarmento (1691?-1762), também residenteem Londres, sugestões e propostas para reformar o ensino da medicina. A propostade Sarmento não teve êxito, mas a reforma virá mais adiante, por meio das idéiassolicitadas por Pombal a um outro médico judeu, Antônio Nunes Ribeiro Sanches(1699-1783).3 De D. João V ainda teria partido a incumbência dada ao oratoriano

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Luís Antônio Verney (1713-1792) de elaborar propostas para a reforma do ensino,que virão mostrar-se decisivas na época de Pombal.

Nas palavras do historiador Antônio Sérgio, a batalha para fazer Portugal entrar naEuropa culta começou pelas mais sensíveis necessidades práticas. Daí a reforma dosestudos médicos. Mas as mudanças envolviam também a convicção, como erapróprio de uma época iluminista em toda a Europa, de que "o que cumpria antes detudo era modernizar a mentalidade, substituindo a mediévica orientação das nossasclasses predominantes pelo espírito crítico e experimental". Juntava-se, portanto,essa busca de respostas práticas à procura dos elementos de uma mentalidade nova.4A oportunidade da conjugação de ambas as procuras deu-se, com irremovívelurgência, na tragédia de Lisboa, em 1755.

Reconheça-se, porém, que, depois de dois séculos de associação entre a Igreja e aCoroa, a pretendida desmontagem do mundo intelectual organizado pelos jesuítasnão teria sido possível sem a contribuição da própria Igreja. Os oratorianos LuísAntônio Verney e frei Manuel do Cenáculo (1724-1814) estavam entre os líderesintelectuais do movimento, mas não eram os únicos entre as figuras do clero quefaziam crítica a um passado representado pelos jesuítas e pela escolástica. Segundoo bispo de Beja, por exemplo, as finuras e engenhosidades da escolásticaconduziriam a exercícios que só servem para "adelgaçar o espírito, trabalhar a razãoem agudezas que só a si mesmas significam. (...) É como aguçar o famintocansadamente a faca, sem jamais tocar no alimento". Essa crítica, quase com asmesmas palavras, seria repetida por muitos, fazendo ressurgir, diante das supostasinutilidades da escolástica, uma antiga sensibilidade portuguesa para as experiênciasdo mundo. Não é de surpreender que o cansaço da escolástica abrisse caminho, comLuís Antônio Verney, para uma forte influência do empirismo de John Locke (1643-1704).5

Pombal: déspota ilustradoNão obstante os títulos que conquistou, Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782), conde de Oeiras e, depois, marquês de Pombal, tinha origem numa família de"fidalgotes de mediana fortuna". Embaixador em Londres (1739-1744) e Viena(1744-1754), foi designado por D. José I como secretário dos Negócios Estrangeirose da Guerra e, logo após o terremoto de Lisboa, secretário dos Negócios do Reino.6Nomeado ministro de Estado, Pombal daria início a um período de quase trinta anos(1750-1777) de um despotismo semelhante a outros de sua época. O "fidalgote"português ergueu seu poder às alturas de outros déspotas ilustrados da Europa, comoFrederico II da Prússia (1712-1786, coroado em 1740), Maria Teresa (1717-1780,

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imperatriz em 1740) e José II (1741-1790, imperador em 1780) da Áustria, Catarinada Rússia (1729-1796, czarina em 1762) e Carlos III (1716-1788, coroado em 1759)da Espanha.

O marquês subiu às funções de poder cercado de desconfianças. Depois da suaexperiência como embaixador na Inglaterra, alguns imaginavam que se tornaramaçom, e outros entendiam que aceitasse as regras da Igreja anglicana. Visto comoum parvenu, ele foi acolhido num clima de desconfiança que se agravou em razão deseu distanciamento da velha aristocracia que, em contrapartida, tentava humilhá-lo.Dizem alguns historiadores que os da velha nobreza chamavam-no apenas pelosnomes de batismo, Sebastião José, como faziam com os criados.

Pombal, por sua vez, respondia a seu modo, ou seja, nomeando seus auxiliaresentre gente sem tradição. Disse um diplomata austríaco que, no início do governo domarquês, "uma hoste de plebeus arremetera a tomar posse dos cargos, até aíreservados à classe privilegiada". E acrescenta: "os fidalgos, por melhores dotes quepossuam, e mais se distingam por seus atos, não conseguem emprego na Corte, emuito menos qualquer posto diplomático". Pode-se avaliar o que isso poderiasignificar numa época em que os maiores oponentes a Pombal se achavam entre os"puritanos" da nobreza. Naqueles tempos, "puritanismo" significava "pureza desangue", ou seja, "ausência de ancestrais judeus ou mouros, uma condição que desde1496 se exigia para a entrada em postos oficiais".7

O certo é que, ao chegar ao poder, Sebastião José demonstrou grande capacidadede iniciativa sobre os temas mais importantes de Portugal e do Império, em especialos da sua colônia americana. Reconheceu assim ao Brasil uma importância que, narealidade dos fatos, já vinha de antes e, aliás, de algo fundamental. Como afirmaKenneth Maxwell, Portugal era, no século XVIII, o caso singular de um pequenopaís com um grande império, do qual o Brasil era a parte mais importante. O "ourobrasileiro provia os meios para consolidar o Estado absolutista português". Umarazão a mais para que Pombal, além de figuras de menor reconhecimento nos meiosda velha nobreza, procurasse "cooptar e integrar brasileiros nos mecanismos degoverno tanto no Brasil quanto em Portugal".8

No dizer do historiador português José Augusto França, "Portugal era o ouro doBrasil", que por isso "continuava a comandar a conjuntura econômica portuguesa".9Desde a descoberta do ouro, em fins do século XVII, reforçada pela descoberta dodiamante nas primeiras décadas do XVIII, Portugal mudou de maneira decisiva assuas atenções para a colônia americana, que, além dos metais preciosos, já tinha umaforte economia do açúcar, baseada na grande propriedade da terra e no trabalho deescravos africanos.10

Entre as questões do Brasil que ocuparam as atenções de Pombal antes do

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terremoto de Lisboa se acha o Tratado de Madri, de 1750, definindo os limites daAmérica ibérica. As negociações, dirigidas do lado português por Alexandre deGusmão, brasileiro, nascido em Santos, conduziram à renúncia de Portugal à colôniado Sacramento, em troca de um deslocamento para oeste do meridiano dasTordesilhas, com a inclusão do Rio Grande do Sul em território brasileiro. De 1755,o ano do terremoto de Lisboa, foi a designação do novo governador do Grão-Pará,Francisco Xavier de Mendonça Furtado (1700-1779), irmão de Pombal, queanunciou a declaração da liberdade dos indígenas e, depois, a dissolução do sistemadas aldeias jesuíticas.

Tudo leva a crer que tais decisões, embora do ano do terremoto ou próximas a ele,se inspirassem diretamente nas exigências do Tratado de Madri. Segundo João Lúciode Azevedo, as instruções de Mendonça na chegada ao Brasil nada diziam quesignificasse hostilidade aos jesuítas. "Nelas, o governo considera a prosperidade doGrão-Pará e do Maranhão indissoluvelmente ligada à liberdade dos índios, e aoestado das missões. Declara livres todos os selvagens, e revoga quaisquerprovidências em contrário. Recomenda que os moradores do Estado cultivem asterras com escravos negros, como é uso no Brasil, ou então tomem os índios asoldada. (...) Nada, em tudo, se lê que toque especialmente aos jesuítas, oudemonstre contra eles hostilidade." O que significa que a ruptura com os jesuítasestaria naquele momento escondida em intenções não reveladas ou que deveriam virdepois.

O mesmo historiador descreve o confronto com os jesuítas em dois "pontosessenciais – liberdade absoluta dos indígenas, e limitação do poder temporal dosmissionários". A esses pontos deveria, portanto, ater-se a agudeza e a energia dogovernador. Diz Azevedo: "Em cada um destes campos, fiado em suas forças,desdenhoso e agressivo, o jesuíta resiste. Clama contra a extinção dos cativeiros,pelos quais é agora, desde que se fez grande proprietário. Opõe-se a deixar odomínio dos indígenas, de que depende o seu poder e o comércio que tem no Estado.As demarcações ofendem os direitos da companhia, deslocando as missões doParaguai; manifesta-se portanto contra elas". No dia em que a Companhia seinsurgiu contra Pombal, entrou no caminho da própria destruição.11

A notícia da decisão concedendo liberdade aos índios e dissolvendo as aldeiasprovocaria reações imediatas dos jesuítas. No Brasil, em 1757, o reitor do colégiojesuíta do Pará dirigiu uma súplica ao rei: "Notável é a aflição e o susto em que mevejo, porque o governador pretende que todos os índios, servos deste colégio, com osmais do Estado, sejam declarados por forros; preensão assaz dura e injusta, porque,na realidade, há neste Estado muitos escravos legítimos". No mesmo ano de 1757,Pombal publicou a Relação abreviada da república dos jesuítas, que atribuía a estes

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a tentativa de criação de um "Império Temporal Cristão" na região das missões, edenunciava a existência de uma poderosa república de trinta povoações, "tão ricas eopulentas em frutos e cabedais para os padres, como pobres e infelizes para osdesgraçados índios". A publicação teve um efeito enorme na Europa, onde circuloutraduzida em várias línguas, "talvez vinte mil exemplares, em francês, alemão,italiano", depois em latim.12

Antes da divulgação da Relação abreviada, Pombal foi levado a reprimir aoposição dos jesuítas no Brasil e em Portugal. Na colônia, os jesuítas e os índiosresistiram nas aldeias a portugueses e espanhóis na chamada "guerra guarani",iniciada em 1756. A decisão de expulsar os jesuítas em 1759 nasceu da convicção deque suas missões atrapalhavam a aplicação do Tratado de Madri. Na decisão deexpulsá-los, Portugal se antecipou a outros países, como França e Espanha, e se viuobrigado a cortar relações com o papado por nove anos. Pode-se imaginar o que issopossa ter significado em termos políticos, quando sabemos que só em 1773 aCompanhia de Jesus seria dissolvida por decisão do papa Clemente XIV (1704-1774,eleito em 1769).

"Enterrar os mortos e cuidar dos vivos"Não obstante as audaciosas iniciativas de Pombal desde que começou seu governo,foi a tragédia de Lisboa que revelou a personalidade que deveria modernizar, muitasvezes por meios brutais, Portugal e o Império. O terremoto e o incêndio de Lisboaforam para o marquês a oportunidade de um incomum aumento de poder pessoal. Acidade, de 250 mil habitantes, foi destruída em menos de quinze minutos peloterremoto, cujos efeitos, somados ao incêndio que veio em conseqüência,provocaram a morte de cerca de dez mil pessoas. Esse número permite estimar aquantidade, muito maior, de feridos e desalojados. A repercussão de terremotosanteriores, em San Francisco, Martinica e Messina, contribuiu para criar, a propósitode Lisboa, uma atmosfera de fim de mundo que afetou toda a Europa.

No plano político, parece ter sido decisiva a circunstância de Sebastião José haverficado em Lisboa no momento do pânico, quando fugiam todos os que podiam, entreos quais os membros do governo. Lutando contra o desamparo a que fora relegadaLisboa, Pombal transformou a necessidade da reconstrução da cidade naoportunidade de um projeto que haveria de lhe conferir a imagem de um heróimodernizador. "Enterrar os mortos e cuidar dos vivos": a tradição atribui essaspalavras a Pombal, que as teria usado para responder ao rei que, atordoado diante datragédia, perguntava-lhe o que fazer.

Talvez, como admitem alguns, a atribuição dessa frase ao marquês seja uma das

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gentilezas que a história às vezes concede ao engrandecimento da imagem doslíderes. O certo, porém, é que essas palavras captam o sentido da ação de Pombal naemergência e servem para revelar o espírito decidido que ele daria a conhecerdurante todo o seu governo. De algum modo, Pombal reconciliou Portugal com opragmatismo de alguns dos momentos mais brilhantes dos séculos dosdescobrimentos. Não por acaso, a reconstrução de Lisboa foi, junto com o combateaos jesuítas, um dos motivos constantes da propaganda de seu governo em toda aEuropa.

A tragédia provocou uma reviravolta no mundo das idéias que foi muito além doslimites do reino luso. Como disse um historiador português, "um vento de terrorsacudiu as teorias otimistas que se forjavam na Europa". Surgiram por toda partedebates de que participaram Voltaire (1694-1778), Rousseau (1712-1778) eAlexander von Humboldt (1769-1859), entre outros. Os acontecimentos tiveramvasta repercussão literária, teatral, pinturas, gravuras etc.13 Goethe (1749-1832)disse em sua autobiografia: "Porventura em tempo algum o demônio do terrorespalhou por toda a terra, com tanta rapidez e força tal, o arrepio do medo".14

Voltaire escreveu, a propósito, o poema "Le Désastre de Lisbonne". Escreveutambém um pequeno livro que se tornou clássico, Candide ou l'optimisme, no qualfaz uma crítica das teorias otimistas em voga em seu tempo, em particular as deLeibniz (1646-1716).

Enorme na Europa, o impacto, evidentemente, foi maior em Portugal, que, tendose libertado do domínio espanhol em 1640, vivia desde inícios do século XVIII ummomento de retomada do seu antigo otimismo. Desde fins do século XVIIcomeçavam a chegar as remessas brasileiras de ouro, descoberto em 1690 além daserra da Mantiqueira. Quase ao mesmo tempo, entrara em vigor, em 1703, o Tratadode Methuen, passando a Inglaterra a controlar o comércio, como lugar de onde seimportava tudo. Em 1729 ocorrera a descoberta dos diamantes, até então vistos nasMinas "como cristais vulgares, na areia dos regatos, ou nos tejucos dos pântanos".15

Como diz França, se à entrada do ouro, que se fazia cada vez maisaceleradamente, juntar-se "o valor dos diamantes, das madeiras preciosas, do tabaco,do açúcar e dos couros, compreender-se-á a importância decisiva do Brasil nabalança das finanças de Portugal, ao longo do reinado de João V, ou seja, até1750".16 A Coroa, já nas primeiras décadas do século XVIII, dava sinais de riqueza,até mesmo de ostentação, nas suas embaixadas no exterior, como em Paris, Roma eHaia. Lisboa começava a se acostumar com a ópera, o teatro, a moda francesa, osnovos costumes. Em 1717 iniciou-se a construção do convento e basílica de Mafra, omaior monumento barroco de Portugal.

Essas anotações sobre o otimismo português da primeira metade do século XVIII

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podem servir também para ressaltar a impaciência de muitos diante do atraso dopaís. Nas palavras de Alexandre de Gusmão, Portugal era um "mar de superstição ede ignorância". "A fradaria absorve-nos, a fradaria devora tudo, a fradaria arruina-nos" – não deixava por menos o secretário do rei e irmão de um jesuíta famoso, opadre Bartolomeu de Gusmão (1685-1724).

No Estado, submetido a um poder absolutista, o clero predominava. A Igrejapossuía um terço do reino, dizia o diplomata D. Luís da Cunha, amigo da famíliareal, que abrira o caminho de Pombal ao poder, recomendando seu nome ao rei.Dizia D. Luís da Cunha, dirigindo-se a D. José I: "Se V. A. quiser dar uma volta aosseus reinos (...) achará que a terceira parte de Portugal está possuída pela Igreja quenão contribui para a despesa e segurança do Estado". Essa referência à "segurança doEstado" tinha um sentido muito real: havia na época uma guerra entre Inglaterra eFrança (1755), diante da qual Portugal era neutro, embora simpático à Inglaterra; e,com a derrota dos franceses (1759), surgiram problemas nas relações com aEspanha, ligada à França.

Na Europa das Luzes, o otimismo da primeira metade do XVIII iluminava o pesodas heranças medievais e clericais de Portugal. Desde meados do século XVI atémeados do XVIII "o número de conventos de Lisboa tinha aumentado de trezentospor cento, enquanto a população aumentara apenas 150 por cento". A ostentação deriqueza do clero de então pode ser lembrada ainda hoje, nas visitas às velhas igrejasde Portugal e do Brasil. A igreja "toda de ouro" se tornaria uma das glórias dobarroco.17

Aos olhos dos críticos, vinculados ou não à Igreja, a responsabilidade por esseestado de coisas recaía sobre a Companhia de Jesus, que controlava a educação e acultura na metrópole e na colônia. Os jesuítas "detinham o direito exclusivo deensinar latim e filosofia no colégio de artes, a escola preparatória obrigatória para oingresso nas faculdades de teologia, cânones, leis civis, e medicina na Universidadede Coimbra. Além desta, a outra universidade de Portugal, em Évora, era tambémuma instituição dos jesuítas. No Brasil, os colégios dos jesuítas eram as principaisavenidas da educação secundária".18

Apesar da imensidão de ignorância e de atraso, Portugal surpreendeu a Europa,ainda uma vez, pela rapidez e eficiência com que reagiu diante da tragédia deLisboa. O pequeno país que se apoiava quase exclusivamente na exploração dasriquezas brasileiras, e no qual, diz França, "o gosto cortesão se atardava nas formas enos símbolos suntuários do barroco romano e cuja cultura se anquilosava emformulários escolásticos; um país imobilizado, subalimentado, deserto, onde osconventos se multiplicavam e definhava a agricultura e o comércio e se ignorava aindústria – esse país, levado por uma vontade de revolucionar as suas estruturas, foi

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capaz de fornecer o tônus necessário a um empreendimento fora do comum".Junto com as necessidades de economia e urgência, foi dessas circunstâncias que

nasceu na arquitetura o "estilo pombalino": uma arquitetura simples, "nenhumairregularidade, nenhuma fantasia nas fachadas". "A nova cidade saiu, em grandeparte, da cabeça de um engenheiro militar." Apoiada na tradição, a arquiteturapombalina "chegou a uma personalidade estilística encontrada na sistematizaçãoracional de elementos já existentes", mas afastando-se do barroco e aproximando-sedo neoclássico no monumentalismo, como na Praça do Comércio e no Palácio daAjuda.19 Diz França: a última das cidades antigas da Europa haveria de se tornar aprimeira das modernas.

Contra os jesuítas e a velha nobrezaEnfrentando a tragédia, Pombal fez por conseguir contribuições dos paísesestrangeiros, como Inglaterra, Hamburgo, Espanha e Holanda, e apelou também àscolônias. Já em 1756 o Brasil enviou a Lisboa 14 milhões de cruzados em ouro eprata e um grande número de diamantes e prometeu três milhões de cruzados parapagamento em trinta anos.

Em meio às conseqüências do terremoto e do incêndio lavravam os conflitos domarquês com a velha nobreza e os jesuítas. Conflitos que, já presentes desde 1750,haveriam de crescer depois da tragédia, revelando as enormes diferenças dementalidade que separavam os antigos e os novos donos do poder. Disse umhistoriador que " (...) toda a política do reinado" foi determinada pelo choque com osjesuítas. Talvez fosse melhor dizer "quase toda", para reservarmos algum lugar paraos conflitos com a velha nobreza e para os encargos de Portugal no Brasil e noImpério.20

Ao mesmo tempo que Sebastião José tomava medidas para reconstruir a cidade, aIgreja rezava. "Procissões, penitências sem número procuravam acalmar adivindade; as do primeiro aniversário da catástrofe tiveram especial significado, nomedo de que ela se renovasse." Eis um ponto em que fincavam pé as mentalidadesreligiosas mais atrasadas que se expressavam, por exemplo, em palavras como estas,do cardeal-patriarca: "O desastre fora castigo do céu: as igrejas foram mais atingidasdevido aos abusos, aos escândalos e desordens que nelas eram cometidos". Comodizia um historiador: "Os padres e os frades flagelavam a impiedade do mundo,dirigindo-se a uma nação desnorteada e pronta a acreditar em tudo".21

A tragédia foi oportunidade para um choque de mentalidades, típico dascircunstâncias do século XVIII. Contrastando com a mentalidade religiosa

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dominante, Pombal dizia que o terremoto fora um fenômeno da natureza e seorientava para medidas práticas. O que, porém, não impediu que o Senado de Lisboavotasse disposição para que "em todo o reino se realizassem procissões em honra daVirgem, o domingo segundo de novembro em quanto o mundo durar".22 O jesuítaGabriel Malagrida – um sacerdote de grande renome, que assistiu a D. João V noleito de morte, e que como missionário havia vivido cerca de trinta anos entre osíndios do Maranhão e do Pará – dizia ter antevisto a catástrofe. E dizia ainda, emtexto aprovado pelo Santo Ofício, sob o título Juízo da verdadeira causa doterremoto, de grande divulgação na época: " (...) não são fenômenos, não sãocontingências ou causas naturais, mas são unicamente os nossos intoleráveispecados".

Nesse clima de medo e religiosidade exacerbada, as insatisfações da velhanobreza levaram a tentativas de golpe contra Pombal, e em 1758 a um atentadocontra o rei. Mas as tentativas se frustraram, oferecendo a Pombal oportunidade deaumentar ainda mais o seu poder. Acusados de cúmplices do atentado contra o rei, omarquês de Távora e o duque de Aveiro e seus filhos foram condenados eexecutados. Um ano depois dos atentados, em 1759, Pombal tomou a decisão deexpulsar os jesuítas, e, no mesmo ano, extinguiu suas aulas.

No caminho da secularização do poder, a Inquisição era um problema cujagravidade se expressa no elevado número de condenações. De 1684 a 1747, 4.372pessoas foram condenadas; de 1750 a 1759, houve 1.107 condenações. Mas areforma da Inquisição começou em 1760: o marquês submeteu-a ao controle doEstado, ou seja, ao seu próprio controle, pois nomeou seu irmão como inquisidor-mor. O último auto-de-fé da Inquisição ocorreu em 1761 e, por ironia da sorte, avítima foi o jesuíta Gabriel Malagrida.23 Em 1768, Pombal criou ainda a MesaCensória retirando da Igreja o poder de determinar o que podia ou não ser lido, dessemodo aumentando o poder do Estado à custa do poder do clero. Em 1769, Pombaltomou posição contra a própria Inquisição e, desse modo, os autos-de-fé cessaram,assim como a pena de morte.

Na sua persistente desmontagem do poder dos jesuítas, Pombal iniciou em 1772 adestruição da velha universidade medieval, adequando Coimbra ao novo espírito dasreformas educativas e culturais. Como parte dessas reformas, tornou obrigatório ouso da língua portuguesa em todo o território da colônia.24

Pombal e a IlustraçãoAssim como o confronto entre duas mentalidades, o combate de Pombal contra osjesuítas e seus aliados da velha nobreza foi um confronto entre duas épocas. É por

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isso que não se exaure na mera descrição dos acontecimentos que se aceleram emmeados do século XVIII. O confronto exige a compreensão das concepções em luta,que, de um lado, remontam a uma época de após os descobrimentos em que o reinoportuguês, por meio dos jesuítas, praticamente se fundiu com a Igreja. Concepçõesque, de outro lado, projetam-se para o futuro, sobrevivem a Pombal e a D. José I, vãoalém da "viradeira" em que, no reinado de D. Maria I (1734-1816, aclamada em1777), uma vez mais Portugal buscou caminhos de voltar ao passado.

Como diz Maxwell, o século XVIII foi particularmente longo para Portugal:começou em 1660, quando se consolidou a separação entre Portugal e Espanha, eterminou em 1808, com a vinda de D. João VI ao Brasil. Na época, o quadrointernacional era desafiador: "Lisboa tentava se ajustar tanto à França quanto àInglaterra, mas, justamente por sua natureza atlântica e por causa do papeleconômico central do Brasil no sistema comercial luso-brasileiro, Portugal estavapreso inextricavelmente à Inglaterra". Foi esse o contexto no qual atuou Pombal, eno qual se assistiu "ao choque da tradição com as forças da mudança e da inovação, aluta entre a velha religião e o novo racionalismo". Um longo período em que, "nãoobstante a sempre presente nostalgia das passadas glórias do Oriente, o conflitoentre os meios despóticos e os objetivos ilustrados" deixaria lugar para o desejo dePortugal ser novamente grande sobre a base da riqueza do Brasil.25

Nesse choque de amplas perspectivas históricas, os acontecimentos relevantesnasceram de concepções intelectuais, com toda a força simbólica que tinham naépoca. Dizem alguns historiadores que a fundação da Arcádia Lusitana, em 1756,teria contado com a presença do próprio Pombal. E que a Arcádia, diferente deassociações literárias do mesmo gênero que vêm do século XVII, teria a novidade decolocar nobres e burgueses em pé de igualdade. Como ocorria em outras partes daEuropa, o arcadismo português buscava mesclar razões políticas e sociais com novasformas da sensibilidade artística. No espírito do neoclassicismo, que em toda aEuropa do século XVIII imitava o classicismo francês, buscava-se voltar àAntigüidade grega e latina, além de "restabelecer vários padrões do período porexcelência clássico na literatura portuguesa, o século XVI".26

A Ilustração portuguesa se voltava contra a escolástica dominante por dois séculosem Portugal e na Espanha, tornando os dois países ibéricos fortalezas da Contra-Reforma. Como não podia deixar de ser, num país de tradição profundamentecatólica, a crítica pombalina aos jesuítas se fazia em nome de uma doutrina elamesma de origem católica. Não apenas eram católicos alguns líderes intelectuais quese aliaram a Pombal, mas o próprio marquês, que, além de católico, era "familiar" doSanto Ofício. Tinha, portanto, todos os motivos para atuar dentro dos limites dasconvicções religiosas dominantes, respeitando "a opinião da nação, a religião da

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coroa e as próprias tendências do tempo".27 Embora não tenha tido como evitar aseparação do papado depois da expulsão dos jesuítas, Pombal apresentava sua novaconcepção do Estado e da sociedade em linguagem católica.

O marquês afirmava uma visão nacionalista da sociedade portuguesa e dasoberania do Estado em relação à Igreja, mas o fazia "em nome (da) união cristã e dasociedade civil". Assegurando, como Verney, a religiosidade da sociedade nacional,repelia a instituição supranacional representada pela Companhia de Jesus. "Não hájesuítas portugueses e jesuítas espanhóis", dizia Pombal em sua Deduçãocronológica e analítica, "porque são na realidade os mesmos jesuítas, que nãoconhecem outro soberano que não seja o seu geral, outra nação que não seja a suaprópria sociedade; porque pela profissão que a ela os une, ficam logodesnaturalizados da pátria, dos pais e dos parentes".28

Ribeiro Sanches: dedicado à educaçãoA importância do pensamento iluminista de Verney será mais bem compreendida senos adiantarmos um pouco no tempo, introduzindo-o por meio de algumas notassobre Ribeiro Sanches, um dos seus seguidores. Judeu, filho de um sapateiro,sobrinho e primo de médicos, Antônio Nunes Ribeiro Sanches nasceu em 1699 e foium intelectual devotado à educação e às coisas práticas. Ele considerava aescolástica, cujos conceitos os jesuítas comentavam em Coimbra, como "a produçãodos séculos da ignorância, do ócio dos frades depois que deixaram o trabalho demãos que ordenava a sua regra". Começou seus estudos em Coimbra, em 1716, deonde saiu em 1719, aborrecido com a anarquia do ensino e com o ambiente dedesmandos e violência dos estudantes. Alguns destes iam para a universidade"armados como se fossem para a campanha ou para a montaria, com armasofensivas, com pólvora e balas e cães de fila".

Em 1720, Ribeiro Sanches foi para Salamanca, onde o ambiente intelectual nãolhe pareceu muito melhor. Cem anos depois do empirismo de Francis Bacon (1561-1626) e John Locke, quando se esperava que já se houvesse aprendido algo das liçõesde Descartes (1596-1650) e Newton (1643-1727), Ribeiro Sanches registrou emSalamanca a presença de um jesuíta que se dedicava a "fungar excomunhões" contraa matemática, considerando-a "coisa do diabo".29

Voltou a Portugal, de onde novamente saiu, em 1726, para nunca mais regressar. Éque, dessa vez, saiu no temor da Inquisição, que pouco antes havia prendido umprimo seu e, logo depois, outros parentes. Era época de uma retomada das atividadesdo Santo Ofício que, em 1739, estrangulou no garrote o dramaturgo, de origembrasileira, Antônio José da Silva (nascido em 1705), cujo cadáver foi queimado em

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auto-de-fé. Ribeiro Sanches foi a Londres, onde encontrou outros judeusportugueses, entre os quais os médicos Jacob de Castro Sarmento e Diogo NunesRibeiro, seu tio, que havia fugido de Portugal depois de envolvido num auto-de-fé,em 1704. Em suas andanças, passou por Montpellier, em 1728, para aperfeiçoar-seem medicina com o holandês Herman Boerhaave (1668-1738) e visitou D. Luís daCunha, embaixador de Portugal em Haia, que lhe pediu um plano de reformas para afaculdade de medicina de Coimbra.

Boerhaave indicou seu nome ao governo da Rússia, para onde se dirigiu em 1731 ede onde manteve contatos com os jesuítas portugueses que residiam na China, emPequim. Em 1739, foi designado médico da czarina Catarina II. Em 1747, àsvésperas do seu regresso a Paris, foi diplomado sócio-emérito da Academia dasCiências de São Petersburgo. Ainda encontrou tempo para as Cartas para aeducação da mocidade e para as propostas, finalmente adotadas por Pombal, em1761, de um Colégio dos Nobres inspirado no colégio russo, onde foi professor emédico.

Do anti-semitismo reinante em Lisboa nas primeiras décadas do século XVIII dãotestemunho algumas amargas anotações de Ribeiro Sanches, escritas na Rússia. Dizo autor, provavelmente referindo-se a si próprio: "Entra este rapaz cristão-novo nocomércio do mundo, e a cada passo observa que os cristãos-velhos, por trinta modos,o insultam e desprezam. Quanto mais vil é o nascimento e ofício do cristão-velhomais insulta o cristão-novo; porque, como é honra passar e ser cristão-velho queminsulta e despreza um da nação honra-se e distingue-se. Por isso o carniceiro, omariola, o tambor e mesmo o algoz e o negro escravo são os primeiros que insultame que dão a conhecer com infâmia um cristão-novo. Os que têm melhor educação ládão seus sinais de distinção, mas com maior decência: um, quando fala com ele lhediz uma meia palavra de cão; outro, por gíria, lhe chama judeu; outro põe a mão nonariz; outro, antes que fale, dá umas cutiladas de dedos pelos bigodes; a maior partefaz acenos que tem rabo. Este é o trato de que tem de plebe um cristão-novo com osseus compatriotas, esta é a satisfação com que vive em sua pátria. E como serdesprezado incita vingança, não vive mais que roído do ódio e do fingimento".

Joaquim Ferreira, prefaciador das Cartas para a educação da mocidade, diz, comrazão, que essas penosas experiências explicam a partida de Ribeiro Sanches "paralonge da pátria e a sua recusa de regressar a ela". Um típico "estrangeirado"português.

Verney e o "verdadeiro método de estudar"António Sérgio considera o Verdadeiro método de estudar, de Luís Antônio Verney,

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como, "por alguns aspectos, a maior obra de pensamento que se escreveu emportuguês". Um "estrangeirado", como o próprio Pombal e muitos que oacompanharam, Verney foi o intelectual mais influente do período. Foi, digamos àmaneira de Gramsci, o "grande intelectual" de uma nova geração de intelectuais,impregnados do Iluminismo, junto dos quais se encontravam escravos libertos ejudeus que, finalmente, "viam acordarem-se-lhes direitos de cidade".30

Assim como Ribeiro Sanches na Rússia e Castro Sarmento na Inglaterra, LuísAntônio Verney viveu a maior parte da vida na Itália, embora em situação bastantediferente daqueles. Seu famoso livro foi publicado em 1746, em Valença, naEspanha, e não deixava dúvidas sobre suas convicções religiosas e suas intençõespráticas, já a partir do título: Verdadeiro método de estudar para ser útil à Repúblicae à Igreja.31 Tendo sido o livro solicitado por D. João V, seu autor se julgava comespeciais direitos a ser ouvido pelo governo, um pouco como Voltaire junto deFrederico II, ou Diderot (1713-1784) junto de Catarina da Rússia.

O Verdadeiro método é uma crítica da cultura portuguesa da época, na forma deuma compilação de cartas, dirigidas a um doutor em Coimbra. Inspira-se nosmétodos dos países cultos da Europa, valorizando o estudo das humanidades e,particularmente, do latim e da língua portuguesa. Verney valorizava a latinidade ebuscava reviver a lição dos humanistas do século XVI. Pretendia oferecerperspectivas de uma formação intelectual que, por meio dos clássicos, abrisse paraos horizontes da cultura do Ocidente e gerasse uma mudança de mentalidade noEstado, a começar pela educação. É assim que, embora com a participação e aliderança de prelados, a educação deixaria, pelo menos em princípio, o campo daIgreja, e passaria a assunto de Estado.

Seguindo os ensinamentos de Locke, Verney difundiu em Portugal o empirismoque haveria de ser a base para a reforma pombalina do ensino. Defendendo oprimado da observação e da experiência, o Verdadeiro método manifesta-se contra odiscurso engenhoso dos escolásticos. Entendendo que a razão deve sobrepor-se aosornatos e figuras que decoram a arte de bem falar, critica o padre Antônio Vieira, noqual vê um barroquismo exacerbado. Também critica Camões, cujos versos seriamcontrários aos modelos da Antigüidade e à boa razão. Recusando as antigasinfluências incompatíveis com o ideal da ciência e da clareza, também recusa ocartesianismo. Verney busca afirmar o primado do experimentalismo e da razão, naspegadas de Locke, Condillac (1715-1780), Helvécio (1715-1771) e Holbach (1723-1789). E, porque era católico, distanciava-se dos enciclopedistas franceses, que eramdeístas ou ateus.

A publicação do Verdadeiro método provocaria extensas polêmicas em Portugal,que tomariam os últimos anos de D. João V e entrariam pelo reinado de D. José I. No

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tom da política de Pombal, que suprimiu as aulas gratuitas dos jesuítas já em 1756, ainfluência de Verney no campo da educação de nível médio e superior virá maistarde, em 1761, com a formação do Colégio dos Nobres, por meio das propostas deRibeiro Sanches e, em 1772, com a reforma da universidade. Foi o empirismopregado pelo Verdadeiro método a concepção filosófica consagrada pela Reformapombalina da Universidade de Coimbra, que determinava "o conhecimento dasregras newtonianas" e que "todos os raciocínios teóricos derivarão da física, damatemática, da química, da botânica, da farmacologia e da anatomia". Segundo sediz, o próprio Marquês de Pombal teria acompanhado a revisão dos manuais defilosofia da reforma de 1772, extirpando deles qualquer referência explícita aAristóteles. Inspirados no filósofo italiano Antonio Genovesi (1712-1769), tambémseguidor de Locke, esses textos foram incorporados ao pensamento oficial portuguêse tornados obrigatórios no ensino.

Verney pretendia, porém, mais do que a reforma do ensino. Almejava umareforma cultural do país. E, como já se observou, em Portugal o Iluminismo estavaobrigado, assim como na Espanha, a ajustar-se ao catolicismo, ainda vivo comoidéia política no fim do século XVIII. Nesses países, como diz Cabral de Moncada, oIluminismo tornava-se essencialmente um reformismo e um pedagogismo,enfatizando a questão do poder, as relações entre o Estado e a Igreja e as questõessociais. Os objetivos desse Iluminismo ficaram claramente definidos a limitar opoder da Igreja, subordinando-a ao Estado, difundir o espírito laico, renovar aatividade científica, propagar e secularizar a educação, desenvolver o comércio e aindústria. Para chegar a tais fins esse Iluminismo tinha que se valer do nacionalismoe do absolutismo, as duas grandes idéias políticas novas da época. É dessa espécie oIluminismo da época de Pombal.

Herança pombalinaAlguns historiadores – em particular entre os portugueses – têm sido extremamentecríticos com Pombal e suas reformas ilustradas, das quais enfatizam, sobretudo, aslimitações e as contradições. Preferindo chamar a atenção para o que faltou nessasreformas, a fim de que Portugal emparelhasse com a França e a Inglaterra, ressaltamem suas descrições, quase sempre polêmicas, aquilo que teria resultado em fracassono grande esforço português para se ilustrar. Em vez de excessivamente críticos comPombal, talvez se possa dizer que esses historiadores têm sido demasiado exigentescom Portugal, aquele pequeno reino europeu ainda carregado de heranças medievaisque o marquês pretendia mudar.

Na substituição dos jesuítas pelos iluministas teria havido apenas, como diz

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França, a substituição de uma ditadura por outra. Caíra com os jesuítas a ditadura deAristóteles, e começara a de Locke, "a ditadura do Empirismo, à exclusão dequalquer outra teoria".32 No horror da especulação e da crítica livre, colocou-seLocke contra Descartes, e se proibiu a leitura de Rousseau, Voltaire, Hobbes eEspinosa (1632-1677). Insuspeito de simpatia pelos jesuítas, João Lúcio de Azevedoé um dos mais ácidos na crítica: a "efêmera revivescência da nação, no períodopombalino, não passa de um curto parêntesis", na decadência que se inicia doisséculos antes e se acentua no reinado seguinte.33 Se o aspecto inquisitorial de umaépoca em que a Coroa se fundia com a Igreja era o atraso na Europa, continuaria asê-lo depois de abolida a Inquisição e firmada a soberania do Estado no absolutismomonárquico de D. José I.

O fim melancólico de Pombal parece confirmar as interpretações pessimistasdesses historiadores. Morto D. José I em 1777 e, pouco depois, o príncipe da Beira,D. José (1761-1788), preferido por Pombal, o marquês já nada tinha a fazer. Saiu dopoder derrotado, incriminado e condenado. Defendeu-se como pôde e, logo a seguir,morreu (1782). Por sua vez, o grande herói intelectual do período, Luís AntônioVerney – que não se dignara a voltar para Portugal no período pombalino –,permaneceu a distância, na Itália. E Ribeiro Sanches, cujos textos se tornaram a basepara a criação do Colégio dos Nobres, faleceu em Paris.34 Chegavamelancolicamente ao fim uma época que pretendera mudar Portugal, e se iniciavaoutra que parecia restaurar o passado. Começava a fase que os portuguesesdesignaram como "a Viradeira", com D. Maria a Louca.

Diz França, num texto excelente, embora sem poder evitar o pessimismo de umaavaliação às vezes anacrônica, que Pombal era "empírico e pragmático". Poderia nãosê-lo? Pombal teria sido, por certo, um "déspota esclarecido", mas sem programa oucom um programa insatisfatório.35 Mas, como se depreende das informações domesmo historiador, Pombal concebeu um programa, por insatisfatório que se oconsidere. Ressalta a qualidade da descrição histórica de França que, ela mesma,oferece os elementos de uma explicação para as alegadas insuficiências que aponta.Segundo diz, Pombal esteve "sempre obrigado a partir de zero, de criar ex nihilo, nomeio de uma nação sem estruturas, para além dum dia-a-dia que as Índias e o Brasiltinham facilitado". "Não podia", diz o historiador, nesse aspecto com inteira razão,"deixar de fazer apelo a um gênio de improvisação, a um gênio empírico".36 Nãoseria o mesmo gênio empírico que, sempre presente na cultura portuguesa desde osséculos dos descobrimentos, continuará vivo na cultura brasileira?

Segundo o historiador, Pombal quis criar uma nova nobreza, introduzir sanguenovo nas veias da antiga, atrasada, ignorante, esgotada em tradição. Quis criar umanobreza nascida do grande comércio e das finanças, aberta a idéias modernas,

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semelhante à que se tinha desenvolvido em França.37 Mas o que conseguiu fazer foicriar uma burguesia a partir dos privilégios de Estado, a que nasceu dos contratos dotabaco, do comércio da Ásia e dos comerciantes das companhias que haviam feitofortuna no Brasil e dominavam uma grande parte do comércio colonial. Inspiradasem Jean-Baptiste Colbert (1619-1683), as reformas pombalinas teriam chegado comcem anos de atraso. No tempo da fisiocracia, o mercantilismo e o monopolismo dePombal pertenceriam ao passado.38

Outras interpretações são, porém, possíveis. Se as reformas de Pombal pertenciamao passado, como entender que tenham continuado na história econômica dePortugal e do Brasil? Ademais, mesmo para a Europa, que tenham pertencido aopassado da França e da Inglaterra não significa que pertencessem ao passado deoutros países. Pombal foi o "déspota esclarecido" que podia haver nascido de umpaís como Portugal, submetido a uma educação e a uma cultura religiosa queprolongou o medievalismo. Como diz o próprio França, um país subalimentado,despovoado, abandonado pelas suas forças vivas, pelos seus cientistas, pelos seusnegociantes judeus, circunstâncias que a Contra-Reforma e a fusão do reino e daIgreja só fizeram agravar.39

Vista de hoje, o que há de mais surpreendente na época de Pombal não é que suasreformas tenham encontrado os estreitos limites que França e Azevedo criticam. Oque surpreende é que tenham tido êxito dentro desses limites. Nem mesmo umdéspota, ilustrado ou não, consegue mudar a história para além das condições queesta mesma estabelece.

O historiador inglês Kenneth Maxwell oferece uma interpretação maiscompreensiva. Reconhece êxitos importantes de Pombal nesse longo século XVIIIportuguês – que, como sugere, começou em 1660 e terminou em 1808. Paracomeçar, a "reconstrução de Lisboa depois do devastador terremoto de 1755 sesustenta como modelo de um planejamento urbano ilustrado". Além disso, nascolônias, especialmente no Brasil, "pode-se apresentar a reforma de toda a estruturaadministrativa: a criação de companhias por ação e a proibição da discriminaçãocontra os índios na América portuguesa e dos asiáticos na Índia portuguesa".Acrescenta que devem ser contados entre os êxitos ilustrados a abolição daescravidão em Portugal (mas não nas colônias) e o fim da distinção entre cristãos-velhos e cristãos-novos. E, como culminância das reformas pombalinas de Estado,menciona a criação do Erário Real em 1761, com um sistema centralizado de contase poderes uniformes de impostos, seguindo a prática britânica. Registra ainda amodernização da estrutura militar, com a criação de um novo exército.40

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O Brasil e a herança de PombalNa América portuguesa, de pequeno passado, as reformas de Pombal pertenceriam,para o bem e para o mal, ao futuro. Embora se ocupem pouco de Pombal, oshistoriadores brasileiros tendem a ser mais otimistas com as reformas ilustradas.Para Antônio Paim, teria sido "invenção de Pombal" o Estado patrimonialista, queconsidera, para a época, um "segmento modernizador" que contrastaria com otradicionalismo da velha nobreza portuguesa.41 Pontos de vista semelhantes,ressaltando aspectos progressistas da administração, são freqüentes em outrosintérpretes brasileiros, ressaltando uma obra e uma influência que, no Brasil, teriaido além da economia e da estrutura do Estado, alcançando o mundo da cultura.

Antonio Candido afirma que a ação de Pombal no campo literário e cultural "foidecisiva e benéfica para o Brasil". Admite que o século XVIII brasileiro "foi umSéculo das Luzes dominantemente beato, escolástico, inquisitorial", mas tambémque as medidas ilustradas "se manifestaram nas concepções e no esforço reformadorde certos intelectuais e administradores, enquadrados pelo despotismo relativamenteesclarecido de Pombal". O marquês favoreceu "atitudes mentais evoluídas, queincrementariam o desejo de saber, a adoção de novos pontos de vista na literatura ena ciência, certa reação contra a tirania intelectual do clero e, finalmente, onativismo". Mesmo estimulando uma literatura de lisonja e de interesse, "habituouos intelectuais a prezar a renovação mental, a acreditar na força organizada paramodificar a sociedade, a afastar-se do fator clerical mais duramente passadista, (...)a Companhia de Jesus". Candido considera benéfico para a literatura brasileira queesta tenha sido iniciada, como literatura nacional, sob os auspícios neoclássicos doperíodo pombalino.42

Na literatura, o exemplo mais significativo da influência pombalina é O Uraguay,de José Basílio da Gama (1741-1795), um poema que celebra a obra civilizatória dePortugal na América por meio da memória da "guerra guarani". Ex-jesuíta, mestiço edescendente de Vasco da Gama, Basílio se tornara secretário particular de Pombal.Segundo Ivan Teixeira, "a partir de 1769, com o Epitalâmio e O Uraguay, Basílio daGama teria oferecido a Sebastião José a possibilidade de formar um grupo de poetasque o exaltassem de maneira exclusiva e convicta, pois, sem raízes na Metrópole,não apresentavam perigo de contatos com a velha nobreza, que se indispusera com apolítica do ministro".43

Antonio Candido escreve que foi brasileiro "o ciclo mais característico depombalismo literário", especialmente O Uraguay, de Basílio da Gama, O desertor,de Manuel Inácio da Silva Alvarenga (1749-1814), O reino da estupidez, deFrancisco de Melo Franco (1757-1823). Essas obras, junto com outras de Inácio José

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de Alvarenga Peixoto (1744?-1792) e de Antônio Pereira de Sousa Caldas (1762-1814), constituíram "o eco brasileiro, ou luso-brasileiro, das idéias modernas", quese corporificaram no nativismo, na propaganda do saber, na aspiração ao bomgoverno, idéias que chegaram até a Independência.44

Mais significativa se tornou a aproximação entre Pombal e os poetas brasileiros,porque seus efeitos foram além da literatura. Como já se assinalou, a relação entrePortugal e Brasil durante o século XVIII "não foi nunca meramente de servo coloniale senhor europeu".45 Atitudes diferenciadas da parte dos brasileiros remontam aoséculo XVII, quando, numa atitude inusitada para meros colonos, os povoadores deSão Paulo, Bahia e Maranhão decidiram reconhecer D. João IV em vez dacontinuidade da soberania da Coroa de Espanha, dominante na União Ibérica. São damesma época as guerras holandesas que culminaram, alguns anos depois da UniãoIbérica, com a vitória dos pernambucanos na batalha de Guararapes. Além disso, ésabido que em todo o século XVIII o centro estratégico da política de Portugal eramprecisamente as relações com o Brasil, principal fonte das riquezas do reino. AAmérica portuguesa foi, então, cogitada por Luís da Cunha (e, antes dele, por Vieira)como uma possibilidade para o abrigo da Coroa portuguesa.46 Eram diversas asrazões que aconselhavam os governos da metrópole a alguns cuidados no trato comos brasileiros.

Consciente ou não dessas razões, Pombal escolheu brasileiros para funções degoverno. Alguns dos brasileiros dos quais se aproximou se tornaram conhecidos porseu envolvimento nos movimentos independentistas da colônia. Cláudio Manuel daCosta (1729-1789) foi secretário do governo da Capitania de Minas Gerais, em 1763.Alvarenga Peixoto foi juiz de fora em Sintra, em 1769. O advogado e poeta SilvaAlvarenga foi apresentado por Basílio a Pombal. Também era pombalino TomásAntônio Gonzaga (1744-1810). De influência pombalina, e também maçônica, eramoutros brasileiros que depois se ligaram ao processo da Independência brasileira:José Bonifácio de Andrada e Silva, José Álvares Maciel (1761-1804), Hipólito daCosta (1774-1823), José Vieira Couto (1752-1827), Antônio Carlos Ribeiro deAndrada (1773-1845), e Alvarenga Peixoto.47

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Vila Rica: berço de pombalinos pró-independência da colônia.

No final do período colonial havia ainda brasileiros incorporados no próprionúcleo de direção do Estado português. Alguns deles continuariam, depois daindependência brasileira, prestando serviços a Portugal, ao passo que outrosregressariam ao Brasil, incorporando-se aos movimentos independentistas. Erabrasileiro D. Francisco de Lemos de Faria Pereira Coutinho (1735-1822), reformadorda Universidade de Coimbra, onde exerceu o cargo de reitor entre 1770 e 1821,natural de Santo Antônio de Jacotinga, no Rio de Janeiro. Também o oratoriano JoséJoaquim da Cunha de Azeredo Coutinho (1742-1821), nascido em Campos, foiformado em Coimbra e fundador do Seminário de Olinda, por onde passou "toda abelicosa geração que sucessivamente atearia a revolução emancipadora de 1817".

Entre os nomes de brasileiros que ficaram em Portugal ou que vieram para oBrasil mencionem-se ainda Vicente José Ferreira Cardoso da Costa (1765-1834),desembargador da Relação do Porto, autor do primeiro projeto de Código CivilPortuguês; Luiz José de Carvalho e Melo (1764-1828), desembargador da Relaçãodo Rio de Janeiro, um dos redatores da Constituição de 1824, autor dos primeirosestatutos das Academias de Direito de São Paulo e Olinda; José Joaquim Carneiro deCampos (1768-1836), diretor-geral da Secretaria de Estado dos Negócios do Reino,um dos redatores da Constituição de 1824, membro da Regência Trina em 1831; JoséEgídio Álvares de Almeida (1767- 1832), conselheiro da Fazenda, membro da Juntado Erário Régio, secretário do príncipe, um dos redatores da Constituição de 1824.48

Embora em escala modesta, não são poucas as ressonâncias pombalinas da épocadas Luzes que o Brasil veio a conhecer com a chegada de D. João VI. Participaramdo "entrosamento da iniciativa governamental, do pragmatismo intelectual, daliteratura aplicada, (e) finalmente convergiram na promoção e consolidação daIndependência".49 Era afilhado de Pombal D. Rodrigo de Sousa Coutinho, conde de

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Linhares, que veio ao Brasil na qualidade de chefe do governo de D. João VI no Riode Janeiro. Souza Coutinho criou a Real Academia Militar (1810), posteriormentedenominada Escola Politécnica, desde o início dedicada ao ensino das ciências,querendo formar militares e engenheiros. Criou também a Imprensa Régia e a RealSociedade Marítima, Militar e Geográfica, que retomou a tradição dos estudosnáuticos do século XV.50

Como diz Teotônio Simões, as ressonâncias da época de Pombal no Brasilpassaram, sobretudo, por ex-alunos de Coimbra que "continuaram a reformapombalina nas terras do Novo Mundo (...), plasmaram cursos jurídicos onde asidéias mais avançadas por muito tempo tiveram sua cidadela". Diz OctavioTarquínio de Sousa que, "entre 1772, data da reforma pombalina, e o último ano doséculo, mais de quinhentos rapazes nascidos no Brasil (...) figuraram no rol dosestudantes conimbricenses, o que significa uma média de quase vinte por ano".51

Entre os que passaram por Coimbra, acrescenta Teotônio Simões, encontram-sealguns nomes ligados diretamente às primeiras manifestações de independência dacolônia, como José de Oliveira Fagundes, patrono dos inconfidentes; Ovídio Saraivade Carvalho e Silva, defensor de Ratcliff; e José Inácio Ribeiro de Abreu e Lima(1768-1817), um dos executados na revolução pernambucana de 1817. Ernesto deSouza Campos diz que "a Universidade de Coimbra (entrelaçou-se) não somentecom os reinóis, como também com os colonos nascidos além-mar, nestas terras deum Brasil ainda em formação (...). E de lá vieram homens iluminados que abriram aterra virgem para nela lançar as bases fundamentais de uma nova nação". Erammembros do corpo docente de Coimbra, entre outros, José Bonifácio de Andrada eSilva (Metalurgia), Vicente Coelho de Seabra e Silva Teles (1764-1804; Zoologia,Mineralogia, Botânica e Agricultura), Ângelo Ferreira Diniz e José Corrêa Picanço(1745-1823; Medicina), José da Silva Lisboa (1756-1835; Grego e Hebraico), JoãoPereira Ramos, irmão do reformador da universidade, que fez parte da comissão dareforma.52

Octavio Tarquínio de Sousa registra, entre os companheiros de turma de BernardoPereira de Vasconcelos (1795-1850) em Coimbra, outros nomes relevantes doImpério: José da Costa Carvalho (1796-1860), futuro regente; Caetano Maria LopesGama (1795-1864), ministro e conselheiro de Estado; João Bráulio Muniz, futuroregente (1796-1835); Manuel Antônio Galvão (1791-1850), ministro de Estado; e osjuristas Francisco Gomes de Campos (1788-1865) e José Paulo de Figueiroa Nabucode Araújo (1796-1863). Entre os contemporâneos de Vasconcelos em Coimbraestiveram Pedro de Araújo Lima (1793-1870), Manuel Alves Branco (1797-1855),Miguel Calmon du Pin e Almeida (1794-1865), Manuel Odorico Mendes (1799-1864), Francisco Gê Acaiaba Montezuma (1794-1870), Felipe Patroni (1789?-1866),

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José Cesário de Miranda Ribeiro (1792-1856), Cândido José de Araújo Viana (1793-1875).

Desses nomes, que exemplificam a continuidade da influência pombalina noBrasil, são mencionados aqui, para tomar palavras de Octavio Tarquínio de Sousa,apenas alguns dentre "os que venceram o anonimato póstumo".53 E o venceramporque tiveram contribuição decisiva na conquista da independência e na construçãodo Estado nacional brasileiro.

1. PAIM, Antônio. Categorias para a análise da herança pombalina na cultura brasileira. In: PAIM, A. (Org.).Pombal e a cultura brasileira. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1982. p. 12.

2. AZEVEDO, João Lúcio de. O Marquês de Pombal e a sua época. Rio de Janeiro/Lisboa: Anuário doBrasil/Seara Nova, 1922. p. 87.

3. CARDOSO, Luís Miguel Oliveira de Barros. Luís Antônio Verney e o 'verdadeiro método de estudar': umpensamento inovador entre Portugal e a Europa. Viseu: Escola Superior de Educação, s. d.

4. SÉRGIO, António. Breve interpretação da história de Portugal. Lisboa: Sá da Costa, s. d., p. 41. Vertambém: SIMÕES,Teotônio. Os bacharéis na política. A política dos bacharéis. Tese de Doutorado emCiências Sociais (Ciência Política). Universidade de São Paulo, Departamento de Ciências Sociais, Área deCiência Política, São Paulo, 1983. Ver também: T EIXEIRA, Ivan. Mecenato pombalino e poesia neoclássica.São Paulo: Edusp, 1999.

5. CARVALHO, op. cit., p. 49.6. AZEVEDO, O Marquês de Pombal, cit., p. 9. Sobre a ascensão de Sebastião José, diz ainda Azevedo:

"Expirando Dom João V, a 31 de julho de 1750, logo no dia 2 de agosto foi Sebastião José de Carvalhodesignado para o mesmo cargo de secretário dos negócios estrangeiros e da guerra, que seu tio MarcoAntônio, pouco antes falecido, exercera. A rainha Mariana de Áustria pagava, por esta forma, uma dívidade amizade à sua compatriota, esposa do novo ministro. (...) Ante o obscuro fidalgote, de duvidosa estirpe,roído de ambições, e até aí sem peso na corte, abria-se agora, rico de promessas, um vasto horizonte";ibidem, p. 232.

7. MAXWELL, Kenneth R. Eighteenth-Century Portugal. In: LEVENSON, Jay A. (Org.). The Age of the Baroquein Portugal. Washington/New Haven/London: Yale University Press/National Gallery of Art, 1993. p. 118.

8. Ibidem, p. 125.9. FRANÇA, José Augusto. Lisboa pombalina e o Iluminismo. Lisboa: Bertrand, 1987. p. 247.10. MAXWELL, op. cit., p. 105.11. AZEVEDO, O Marquês de Pombal, cit., p. 238-239.12. Ibidem, p. 137 e 162.13. FRANÇA, op. cit., p. 12.14. AZEVEDO, O Marquês de Pombal, cit., p. 146.15. Ibidem, p. 109.16. FRANÇA, op. cit., p. 40.17. Ibidem, p. 50.18. MAXWELL, op. cit., p. 110.19. FRANÇA, op. cit., p. 11, 58 e 179.20. AZEVEDO, O Marquês de Pombal, cit., p. 128.

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21. FRANÇA, op. cit., p. 70.22. AZEVEDO, O Marquês de Pombal, cit., p. 147.23. MAXWELL, op. cit., p. 121.24. SANTIAGO, Silviano. Introdução a Intérpretes do Brasil. Organização de Silviano Santiago. Rio de Janeiro:

Nova Aguilar, 2000. p. xxiii.25. MAXWELL, op. cit., p. 107.26. ANTONIO CANDIDO. Formação da literatura brasileira (momentos decisivos). v. 1: 1750-1836. Belo

Horizonte: Itatiaia, 1997. p. 41.27. SIMÕES, op. cit.28. A citação de Pombal está em CARVALHO, op. cit., p. 47-48.29. As informações sobre a vida de Ribeiro Sanches são de Joaquim Ferreira, em prefácio a: SANCHES,

António Ribeiro. Cartas para a educação da mocidade. Porto: Domingos Barreira, s. d. p. 20 e seguintes.30. FRANÇA, op. cit., p. 245.31. Para este capítulo, consultei a seguinte edição: VERNEY, Luís Antônio. O verdadeiro método de estudar.

Lisboa: Presença, 1991.32. FRANÇA, op. cit., p. 256.33. AZEVEDO, O Marquês de Pombal, cit., p. 89.34. FRANÇA, op. cit., p. 256.35. Ibidem, p. 247.36. Ibidem, p. 297.37. Ibidem, p. 248.38. Ibidem, p. 298.39. Ibidem, p. 297.40. Maxwell se refere à criação do novo exército pelo Conde Schaumburg-Lippe-Bückeburg, chamado a

Portugal em 1762; MAXWELL, op. cit., p. 113.41. PAIM, op. cit., p. 15 e 89.42. ANTONIO CANDIDO, op. cit., v. 1, p. 63.43. Ver: T EIXEIRA, op. cit., p. 469. Seguindo a linha interpretativa de Candido, Teixeira acrescenta que O

Uraguay, embora visto pelos românticos mais pelo lado indianista, nativista, formador de umanacionalidade, de uma literatura nacional, atenuando-se a ligação com Pombal, pode ser visto sob umaspecto que revela "uma poesia européia produzida por brasileiros no Setecentos: européia, em sentidoamplo, pombalina, em sentido restrito". Assim, "o Brasil pode, sem perda de sua identidade, ser entendidocomo produto da inteligência européia"; ibidem, p. 58.

44. ANTONIO CANDIDO, op. cit., v. 1, p. 64.45. MAXWELL, op. cit., p. 127.46. Segundo Maxwell, "tão aguda tinha se tornado a dependência de Portugal em relação ao Brasil durante o

século XVIII que D. Luís da Cunha previu a eventual transferência da corte portuguesa para o Rio. O reipassaria a ter o título 'Imperador do Oeste' e indicaria um vice-rei para governar Lisboa. Em suas instruçõesde 1738 a Marco Antônio de Azevedo Coutinho, Luís da Cunha projetava a imagem de um impérioportuguês na América se estendendo do rio de La Plata e Paraguai ao Norte estuário da Amazônia"; ibidem,p. 112.

47. ANTONIO CANDIDO, op. cit., v. 1, p. 64-65.48. SIMÕES, op. cit.49. ANTONIO CANDIDO, op. cit., v. 1, p. 64-5.50. PAIM, op. cit., p. 10.51. SOUSA, Octavio Tarquínio de. História dos fundadores do Império do Brasil; Bernardo Pereira de

Vasconcelos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1957. v. 5, p. 16-17. Ver também o Capítulo 7.

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52. As informações acima são de Teotônio Simões, que se apóia também na História da Universidade de SãoPaulo, de Ernesto de Souza Campos.

53. SOUSA, op. cit., p. 18.

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PARTE III

BRASIL IMPÉRIO

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D. Pedro I: tendência ao absolutismo.

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CAPÍTULO 7

PRIMEIRO REINADOJOSÉ BONIFÁCIO E BERNARDO DE VASCONCELOS: LIBERALISMO E CONSERVADORISMO

Nós não conhecemos diferenças nem distinções na família humana. Como brasileiros serão tratadospor nós o chinês e o luso, o egípcio e o haitiano, o adorador do sol e de Maomé.

JOSÉ BONIFÁCIO DE ANDRADA E SILVA

Fui liberal, e então a liberdade era nova no país (...); o poder era tudo: fui liberal. Hoje, porém,(...) os princípios democráticos tudo ganharam e muito comprometeram; a sociedade, que então

corria risco pelo poder, corre agora risco pela desorganização e pela anarquia.BERNARDO PEREIRA DE VASCONCELOS

A época das Luzes no Brasil começou com a vinda do príncipe regente D. João, em1808.1 Luzes modestas, diz Antonio Candido, e, pode-se acrescentar, de curtaduração política. Chegaram com atraso a Portugal e, como é compreensível, levaramainda mais tempo para chegar à colônia. Na política, as figuras mais expressivas daIlustração brasileira foram o português D. Rodrigo de Sousa Coutinho, afilhado doMarquês de Pombal e chefe de governo de D. João, a quem se devem as principaisiniciativas inovadoras quando da vinda da Corte. E o brasileiro José Bonifácio deAndrada e Silva, parente distante de Coutinho, de quem foi amigo e protegido nolongo período que passou na Europa. Quando regressou ao Brasil, quase às vésperasda independência, Bonifácio tornou-se o seu principal líder. Foi, como disse um seubiógrafo, "o oportunista genial, o político por excelência, (que) viu no expediente damonarquia constitucional a garantia da unidade do Brasil".2

Não obstante o heroísmo de alguns liberais e a retórica de muitos, o PrimeiroReinado (1822-1831) e a Regência (1831-1840) foram marcados pelo predomínio deum espírito conservador que se estenderia por todo o Império. A época da fundaçãodo Império brasileiro foi de um conservadorismo que sempre conviveu com oliberalismo. Ou, à inversa, foi dominada por um sentimento no qual o liberalismoesteve sempre enquadrado por um forte senso realista e por um grande pragmatismo.Um conservadorismo de ex-liberais, como Bernardo Pereira de Vasconcelos, queexpressou seu pensamento de maneira brilhante no curso dos acontecimentos maisdo que em obra teórica.

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As repercussões desse espírito alcançam o Segundo Reinado no conservadorismode antigos conservadores, como o Visconde do Uruguai, Paulino José Soares deSousa (1807-1866), em especial no Ensaio sobre o direito administrativo, publicadoem 1862, sob o governo de D. Pedro II, quando o autor já deixara a política prática.É também representativo da época o Direito público brasileiro e análise daConstituição do Império, do marquês de São Vicente, José Antônio Pimenta Bueno(1803-1878). Como o Visconde do Uruguai, São Vicente também foi protagonista degrandes decisões políticas, mas talvez mais relevante como intérprete jurídico daorganização política de sua época.3

Independência: ruptura ou continuidade?Em inícios do século XIX não foram poucos os monarcas europeus exilados, quandoas tropas napoleônicas ampliavam para todo o velho continente os efeitos daRevolução Francesa. D. João foi, porém, o caso único de um monarca que se exiloudentro do seu próprio Império. Embora de há muito prevista pelos estadistasportugueses como uma possibilidade, e nas circunstâncias da política européia,admitida como conveniente pelos ingleses, a vinda da Corte para o Brasil foi umasurpresa para os brasileiros.

Em 1808, a sede do reino transferiu-se de Lisboa para o Rio de Janeiro, então comapenas cinqüenta mil habitantes. Até 1817 chegaram ao Rio cerca de 24 milportugueses, somados os que vieram com o rei e os que vieram depois, emsucessivas levas. Juntando aos recém-chegados de Portugal os que vieram da própriacolônia, estimulados com a notícia de que a cidade se convertera em sede da Corte, oRio dobrou de tamanho de 1808 a 1817. Logo depois da chegada de D. João,abriram-se os portos, tornou-se livre a indústria e o comércio, e tomaram-se medidasque converteriam o Rio de Janeiro numa "cópia de Lisboa".4 As mudanças vividaspela cidade antecipavam nos fatos a Independência do país, que, em caráter políticoformal, chegaria em 1822.

Ainda hoje um fato histórico surpreendente, a vinda da Corte não foi, porém,"adotada repentinamente como um recurso extremo e irrefletido". Diz oliveira Limaque foi uma decisão amadurecida, preparada por propostas diversas, algumas dasquais, como já assinalamos, vêm desde Antônio Vieira, no século XVII, e dodiplomata D. Luís da Cunha, no XVIII. Essas idéias foram retomadas por D. Rodrigode Sousa Coutinho no início do século XIX, diante da possibilidade da invasão dePortugal pelos exércitos de Napoleão. Dizia Coutinho sobre Portugal que "aindaresta ao seu soberano, e aos seus povos, o irem criar um poderoso império no Brasil,donde se volte a reconquistar o que possa ter perdido na Europa".

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Nos mesmos anos, antes de Coutinho, já o marquês de Alorna, D. Pedro deAlmeida Portugal (1754-1813), havia feito proposta semelhante ao príncipe regente:"V. A. R. tem um grande Império no Brasil, e o mesmo inimigo que ataca agora comtanta vantagem, talvez que trema, e mude de projeto, se V. A. R. o ameaçar de que sedispõe a ir ser imperador naquele vasto território aonde pode facilmente conquistaras colônias espanholas e aterrar em pouco tempo as de todas as potências daEuropa".5 Além dos conselhos de homens próximos a D. João, havia também ovaticínio da Inglaterra, que, em 1806, entendia que a vinda da Corte portuguesa aoBrasil seria conveniente aos seus arranjos, num continente perturbado pela expansãonapoleônica. Juntavam-se assim às circunstâncias da Europa em guerra os efeitosdas peculiares relações entre a pequena metrópole portuguesa e sua grande colôniaamericana, reconhecida por muitos a "dependência do velho reino com relação aonovo".6

A continuidade entre a colônia e o Brasil independente se tornaria em poucotempo evidente aos observadores que dessem atenção ao significado da permanênciade um ramo da dinastia dos Bragança dirigindo os destinos da nova nação. Mashavia algo mais profundo e que vinha de há mais tempo: a colônia havia geradosinais de independência que se evidenciavam desde o século XVII nas guerrasholandesas e no reconhecimento dos Bragança pelos colonos. Como diria Martins, "oimpério português na América é bem a obra dos brasileiros, de sua energia, de suaaudácia".7 Mas, embora cada vez mais independente de Portugal, o país se tornaria,desde a vinda da Corte de D. João, cada vez mais dependente da Inglaterra. Umadependência que também vinha de longe, desde o tratado de Methuen (1703), quelevou todo o Império português a uma "forçada vassalagem ao comércio britânico".8

Portugal pretendia aqui, como diz Maria Odila da Silva Dias, lançar "osfundamentos do novo Império português", alçando o Rio de Janeiro ao status demetrópole que chamaria a si "o controle e a exploração das outras 'colônias' docontinente".9 Ao propor a vinda da Corte, D. Rodrigo de Sousa Coutinho entendia "onovo Império do Brasil como a tábua de salvação do reino".10 Não era pequeno,portanto, o projeto português. Mas o que se realizou foi de escala mais modesta: nãose conseguiu salvar o reino e, poucos anos depois, D. João VI teve que voltar aPortugal, que, logo a seguir, perdeu a colônia. Mas a vinda da Corte iniciou, de fato,uma "interiorização da metrópole", na expressão de Maria Odila da Silva Dias.Estabeleceu-se o Rio de Janeiro como metrópole do Império. Não o Impérioportuguês, mas o brasileiro.

Se as mudanças introduzidas por D. João VI aumentaram a "forçada vassalagem"à Inglaterra, mudaram alguns aspectos quanto à vida interna do Brasil, sobretudo asua face cultural. A colônia não tinha ensino superior; a vida intelectual transcorria

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na Corte e nos conventos, os quais "abrigavam toda uma academia", diz OliveiraLima. Em 1819, estima-se a população do país em 3,6 milhões de "civilizados", comcerca de 800 mil "índios bravos", num total de 4,4 milhões de habitantes. Dessetotal, estima-se que cerca de 1,2 milhão fossem escravos. Na Bahia, calcula-se que oRecôncavo tivesse 40 mil brancos, 50 mil índios e 68 mil negros. Nas vizinhanças doRio de Janeiro, onde dois terços da população eram negros, ainda havia índiosnômades na região de Campos, e na própria baía de Guanabara estava instalado umaldeamento indígena.11

A "interiorização da metrópole" vinha acompanhada de medidas que deveriam terconseqüências no futuro. Foi assim que, ao lado da abertura econômica, começou ase esboçar uma abertura para a imigração de trabalhadores europeus. Introduziu-seuma medida que concedia aos que viessem a se estabelecer na América portuguesa odireito a sesmarias, na mesma forma por que elas eram concedidas aos súditosportugueses.Embora essa política não tenha tido maior sucesso na época,permaneceu como uma das orientações prevalecentes em todo o Império. Nos iníciosdo século XIX cresceu a imigração de portugueses, mas a de outros europeus ficoulimitada aos suíços, alguns dos quais fundaram Nova Friburgo.12

Retomava-se, assim, nas preliminares do Brasil independente, o tema da criaçãode um povo, que vem das origens da colônia, e insinuavam-se os sinais de uma"política de branqueamento" que o Império buscaria realizar por meio do programade imigração em massa de fins do século.

Iniciativas na culturaNa pasmaceira da vida colonial, o impacto cultural da vinda da Corte limitou-se,sobretudo, ao Rio de Janeiro. Acompanhando D. João vieram ao Rio váriosestrangeiros, aos quais se juntaram brasileiros que aqui se achavam ou que vieramdas províncias, associando-se a iniciativas culturais futuras. Entre esses muitosnomes há que mencionar o cônsul-geral russo Grigory Ivanovitch Langsdorff (1774-1852), o príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied (1782-1867), os exploradoresJohann Baptist von Spix (1781-1826) e Karl Friedrich von Martius (1794-1868), ospintores Thomas Ender (1793-1875) e José Leandro de Carvalho (ca. 1750-1834), osmúsicos Marcos Portugal (1762-1830) e o padre José Maurício Nunes Garcia (1767-1830). E ainda os pintores Jean-Baptiste Debret (1768-1848) e Nicolas-AntoineTaunay (1755-1830), o escultor Auguste-Marie Taunay (1768-1824), o arquitetoGrandjean de Montigny (1776-1850) e Joachim Lebreton (1760-1819), secretário daclasse de Belas-Artes do Institut de France.13

No país, que não tinha uma única escola de nível superior, criaram-se cursos de

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medicina na Bahia e no Rio de Janeiro; cursos da Marinha; uma Academia Militardestinada a formar engenheiros e militares; uma Escola de Comércio; umaAcademia de Belas-Artes; e o Instituto Acadêmico, que foi chamado deuniversidade, a qual, porém, teria que esperar ainda muito tempo para existir. Criou-se ainda o Museu Nacional no Rio de Janeiro, onde se instituiu também umlaboratório científico. Na colônia, onde não havia gráfica, a recém-instaladaImpressão Régia publicaria obras didáticas, de moral, filosofia, poética, dramáticas,mercantis, clínicas, náuticas. Começaram a circular traduções de livros científicosde álgebra, mecânica, física, economia política, etc.14 Embora posterior, é da mesmaonda a criação das faculdades de Direito em São Paulo e Recife, com base embrasileiros que haviam estudado em Coimbra.

D. João VI voltou a Portugal em 1821, sob pressão do movimentoconstitucionalista do Porto. Antes de fazê-lo, porém, e antecipando a capacidade decentralização do poder que seria a do Império, derrotou, em 1817, um movimentorevolucionário em Recife. Voltou a Portugal com cerca de três mil cortesãos,deixando o poder na colônia em mãos de seu filho D. Pedro, que no ano seguinteproclamou a independência. Não obstante o Brasil ainda colonial que, em 1821, sedespede do rei tivesse 95% de analfabetos, limitando-se, portanto, a política – eainda mais a cultura – a uma ínfima minoria, a elite vivia desde 1808 a consciênciade participar de um intenso processo de construção histórica.

Naquela época, "o Brasil passou a oferecer (...) a sensação quase física de que ahistória estava sendo feita". Ao mesmo tempo, escrevia-se a história do país, aprimeira das quais seria a do inglês Robert Southey (1774-1843), de 1810. No anoseguinte, saía da Imprensa Régia a primeira edição brasileira de O Uraguay, deBasílio da Gama, ao tempo que o cronista-mor do reino, José da Silva Lisboa, ofuturo Visconde de Cairu, preparava a sua história do Brasil.15 Não por acaso, em1817, a Carta de Pero Vaz de Caminha foi impressa pela primeira vez, em Portugal.O documento havia sido lido alguns anos antes em Lisboa, na Academia Real dasCiências, cujo secretário era José Bonifácio. Mencionando Pero Vaz de Caminha,dizia Bonifácio: "Esta Carta é extremamente curiosa, e importante; não só por serseu Autor testemunha ocular, mas igualmente por ser um testemunho da lhaneza esimplicidade de maneiras daqueles áureos tempos da Monarquia Portuguesa". Comoobserva Wilson Martins, as duas primeiras décadas do século XIX ofereciam ao paísa "consciência de estar estruturando uma cultura nacional", de criar "simultânea ereciprocamente, o Brasil e a História do Brasil".16

Bonifácio, o visionário

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José Bonifácio de Andrada e Silva foi um cientista europeu de renome, homem daCorte no reinado de D. Maria I e conselheiro de D. João VI. Como outros de suaépoca, formou-se em Coimbra, na universidade reformada que sobrevivera à"viradeira" de D. Maria I. Além de haver sido o principal dirigente daindependência, foi mentor de D. Pedro I (1798-1834), tutor de D. Pedro II (1825-1891), e pode ser visto ainda como o mais típico representante da transiçãobrasileira da colônia ao Império. Foi também uma das primeiras autoridadespúblicas do Brasil a propor a abolição da escravatura. Em seus tempos deconvivência com a Corte portuguesa já se percebia o visionário, como nestaspalavras de um poema em que apela a D. João VI: "Ilumina teus Povos; dásocorro,/Pronto e seguro, ao Índio tosco, ao Negro,/Ao pobre desvalido".17 Fundadordo novo Estado sob as roupagens da monarquia constitucional, Bonifácio antecipoutemas fundamentais da história do Império, alguns dos quais se estendem até hoje.

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José Bonifácio, "pai-fundador" do Estado brasileiro.

Embora consagrado como "O Patriarca da Independência", ficou no poder deEstado menos de um ano. Para Bonifácio, um vitorioso na pesquisa científica, apolítica teve, talvez, o sabor da frustração mais do que o da glória. Mais do quequalquer outro dos líderes da época, ele assinalou os compromissos liberais queestavam na raiz da independência, o que não foi bastante para livrá-lo dascontradições inevitáveis na sociedade conservadora e escravocrata em que vivia.

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Tanto quanto seus êxitos na passagem da colônia para o país independente, seupensamento deixou o registro, brilhante sempre, às vezes melancólico, dos dramasda formação social do país, contribuindo para tornar seu nome emblemático de todauma época. Se liberais como ele não podiam ser inteiramente coerentes num paísdependente do trabalho escravo, como poderiam ser integralmente conservadores osfundadores de um país onde a crença na liberdade estava na raiz da sua própriaexistência independente? Os êxitos, tanto quanto os fracassos de Bonifácio, sãosignificativos de uma época que foi capaz de pensar os grandes problemas do podere da sociedade mais do que de resolvê-los. E de um país cuja cultura política sedividiu, desde então, entre a retórica e o pragmatismo.

O "pai fundador" do Estado brasileiro nasceu em Santos, em São Paulo, e em 1782foi a Portugal para estudar em Coimbra, como muitos outros. Voltou ao Brasil em1819, 37 anos depois, já realizado como profissional e como cientista. Além deCoimbra, realizou cursos e pesquisas na França, na Alemanha, na Áustria, naNoruega, na Itália e nos países escandinavos, conquistando uma reputação nos meioscientíficos europeus que lhe abriu as portas de importantes academias de ciências daEuropa.

Em Portugal, foi professor em Coimbra e funcionário do governo de Maria I, noqual exerceu funções como militar e diretor de segurança. Seu período europeu, noqual se tornou colega e amigo dos irmãos Wilhelm (1767-1835) e Alexander vonHumboldt, foi a época da difusão do Iluminismo, de Voltaire, Montesquieu (1689-1755), Locke e Rousseau, da afirmação da filosofia de Leibniz e Descartes e daciência de Newton. Dois anos depois de sua volta ao Brasil, já designado conselheirode D. João VI, participou das eleições do governo paulista e integrou a lista dosdeputados que representariam a província nas Cortes de Lisboa.18 Era já um homemmaduro, de grande prestígio, cercado da admiração de importantes figuras dogoverno de D. João VI. Há que lembrar, entre estas, o nome de D. Rodrigo Coutinho,que tinha sido o ministro mais forte de D. João.

Formado no Iluminismo europeu, José Bonifácio foi um visionário no Brasil. Eminícios do século XIX, foi o primeiro homem público do país a falar da necessidadeda civilização dos índios, da abolição do tráfico e da escravatura, da miscigenaçãodas etnias, da expansão do ensino básico e secundário, bem como da instauração decursos superiores, inclusive de uma universidade (como paulista, ele a reivindicavapara São Paulo). Foi também o primeiro a propor a mudança da capital para ointerior, o que, como se sabe, só veio a ocorrer um século e meio depois, com acriação de Brasília. E propôs, entre outras especificações, que a nova capital selocalizasse " (...) em 15 graus de latitude, em sítio sadio, ameno, fértil e junto aalgum rio navegável". E que, a partir da nova residência da corte, " (...) dever-se-ão

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logo abrir estradas para as diversas províncias e portos de mar para que se favoreçapor elas o comércio interno do vasto Império do Brasil".

Bonifácio foi também o primeiro a reconhecer a necessidade da mudança nas leisde propriedade de terras: que "não se dêem mais sesmarias gratuitas", e que com osrecursos das vendas se crie um fundo a ser "empregado em favorecer a colonizaçãode europeus pobres, índios, mulatos e negros forros, a quem se dará de sesmariapequenas porções de terreno para as cultivarem e se estabelecerem". E talvez tenhasido ainda o primeiro, no Brasil, a manifestar a preocupação ecológica de obrigar aque os proprietários de terra "deixem para matos e arvoredos a sexta parte doterreno, que nunca poderá ser derrubada e queimada sem que se façam novasplantações de bosques".19

Não obstante o Patriarca tenha antecipado muitos dos temas relevantes para onovo país, ele tomava distância dos ideais revolucionários da época e reagiahorrorizado diante da "hidra fatal da Revolução Francesa". Como funcionário de D.Maria I, foi adepto de um poder forte e centralizado. Entendia que "os grandesprojetos devem ser concebidos e executados por um só homem, e examinados pormuitos: centro comum de força e de unidade".20 Como bem observou Jorge Caldeira,no primeiro ano do Império o Patriarca desagradou aos dois lados em que se dividiuo cenário político brasileiro: pareceu muito autoritário aos liberais, e os"absolutistas" o consideraram pouco maleável. Isolado, saiu do governo em julho de1823, antes que se completasse um ano da independência do país, sua grande vitóriapolítica.21

Começou no Brasil com José Bonifácio um estilo de pensamento que se tornarágeral e duradouro, voltado à indagação sobre as raízes do país como parte de umesforço intelectual para sustentar projetos de construção nacional. "É necessário quea academia estenda as suas vistas e as suas meditações sobre a história geral do país,fazendo aprontar memórias exatas, respeitantes ao descobrimento, povoação ecultura de cada uma das diferentes capitanias de que se compõem os estados doBrasil, notando com muita particularidade as nações americanas civilizadas, semi-bárbaras ou inteiramente selvagens, que habitam as terras e matos que possuímos, eapontando com igual individuação os meios mais próprios para a civilização delas epara o trato e comércio que com as mesmas poderemos fazer."22

Antes do Patriarca, esforços intelectuais semelhantes visavam à evangelização, àdefesa do território ou à atração de imigrantes, capitais e patrocínios reais para acolonização. Foi, porém, com Bonifácio que as referências ao passado começaram aatrelar-se a projetos, ou esboços de projetos nacionais, ou seja, para o futuro. Essemodo de ver as coisas se consagrou nas melhores obras da historiografia e doensaísmo brasileiros, e se tornou dominante a partir de meados do XIX, com a

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criação de uma historiografia e uma literatura nacionais. É a partir de Bonifácio quese pode dizer, como Silviano Santiago, que os livros sobre o Brasil sempre serviramaos brasileiros mais como farol do que como espelho: "com a sua ajuda e facho deluz é que temos caminhado".23 Não há exagero em dizer que esse estilo depensamento chegou aos "intérpretes do Brasil" na primeira metade do século XX eàs teorias do desenvolvimento da "era Vargas".

Nos seus ensaios e projetos de legislação, Bonifácio propôs para o Brasil osgrandes temas do século XIX, que chamava o "século filosófico". Via a agriculturacomo uma "ciência que sustenta os homens, adoça os seus costumes e os civiliza,forma impérios, e os eleva à maior grandeza". Sem agricultura "não há subsistência,nem civilização", pois dela e das "artes mecânicas" que sustenta nasce a riqueza dasnações.24 Mas, na visão do cientista, a agricultura não poderia jamais ser separadada química, donde a necessidade de criar no país um jardim botânico, escolas dequímica, além de produzir instrumentos e máquinas agrárias.

Do mesmo modo, não se deveria esquecer de "fomentar a indústria e as fábricas"do reino, pois a agricultura por si só não basta e "sem indústria, sem fábrica emanufaturas nenhum Estado é rico e independente". Não bastaria fomentar aagricultura, as artes e o comércio – este que é "tão antigo como o mundo". As idéiasdo Patriarca sobre a economia culminaram em uma visão do Estado: cumpre dar aopovo educação científica e moral; é preciso ter um bom exército e uma marinha.25

Bonifácio, o pombalinoAo lado das inovações, a continuidade é o traço dominante do pensamento de JoséBonifácio. As idéias e propostas para o nascente Brasil se alinham, com algumassignificativas exceções, com as idéias e propostas que poucos anos antes eleapresentara a D. Maria I, então rainha de Portugal. Quase tudo segue a mesma lógicado iluminista. Como se fora um texto de um discípulo de Pombal e Verney,Bonifácio não se esquece de elogiar algumas das obras do marquês, embora semmencionar-lhe o nome. É assim que cita "a providentíssima lei de 6 de junho de1755", que "declarou a liberdade das pessoas e do comércio para os índios do Grão-Pará e Maranhão". Assim também com o elogio da reforma da Universidade deCoimbra: "não posso negar que no anterior reinado (o de D. José I, de quem Pombalfoi ministro) se tinham lançado as primeiras linhas para se estabelecerem as ciênciasexatas e físicas na universidade".

Reserva a D. Maria I, porém, seu maior elogio, pois considera que ela continuavaa "reformação" da Universidade: " . . . se a cultura das ciências é útil e necessária emtoda a parte, mais o era em Portugal. Apesar da reforma da Universidade, que tanto

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honra a memória do sr. rei D. José I, ainda as ciências e as letras não tinhamganhado pés como deviam entre nós; ainda em muita parte nos dominavam oslêmures da filosofia arábico-peripatética; ainda com seus sofismas e argúciasofuscava e sopeava a razão".26

Escravidão e miscigenaçãoAs variações da conjuntura política brasileira determinam a exceção maior nessaordem de razões do iluminista adepto da unidade de comando: é o repúdio aoabsolutismo que aparece em seu projeto de Constituição para o Brasil. "A monarquiaabsoluta é na realidade uma aristocracia encoberta. E por isso tem todos os males dodespotismo e da aristocracia." Daí que "pretender de um soberano absoluto que nãoseja invejoso e despótico, é querer milagres da natureza humana". E vai por aí oPatriarca, numa radicalização liberal dos argumentos. Além de negar em suaproposta de Constituição o reconhecimento de uma "nobreza privilegiada e legal",estabelece o drástico dispositivo seguinte: "todo cidadão que ousar propor orestabelecimento da escravidão e da nobreza será imediatamente deportado".27

Embora de maneira sempre muito sumária, ao estilo não do historiador ou doensaísta e sim do político prático, José Bonifácio viu o índio e o negro como homenscapazes de civilização. E sobre essa premissa antecipou boa parte dos argumentosabolicionistas que virão de meados do século XIX em diante, nos escritos dePerdigão Malheiro (1824-1881) e Joaquim Nabuco (1849-1910), entre outros.

Tomando nota que nos domínios ingleses a abolição do tráfico fora aprovada em1807, propõe no Brasil o término do tráfico para "os próximos 4 ou 5 anos"; propõetambém uma emancipação gradual e progressiva, já que não considerava possívelfazê-lo de imediato "sem grandes males". Envergonhava-se de sermos "a únicanação de sangue europeu que ainda comercia clara e publicamente em escravosafricanos", em visível ofensa aos gritos da razão, do cristianismo e da honranacional. E aconselhava que se voltasse a ler Vieira sobre os negros, o que não deixade ser surpreendente quando se sabe que o grande jesuíta fora, afinal, um dosmestres da filosofia "arábico-peripatética". Na mesma linha, aconselhava ainda quea nova política em relação aos índios seguisse os princípios que inspiraram osjesuítas nos aldeamentos.28

Depois da independência, já agora sem compromissos com Portugal, JoséBonifácio denunciou os portugueses como os primeiros que, desde os tempos doinfante D. Henrique, fizeram um ramo de comércio legal "o prear homens livres, evendê-los como escravos nos mercados europeus e americanos". E, quando oImpério brasileiro apenas se iniciava, anteviu aquela que seria a grande questão

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institucional da nossa política em todo o século XIX: "Como poderá haver umaConstituição liberal e duradoura em um país continuamente habitado por umamultidão imensa de escravos brutais e inimigos?". "Sem a abolição total do infametráfico da escravatura africana, e sem a emancipação sucessiva dos atuais cativos,nunca o Brasil firmará a sua independência nacional, e segurará e defenderá a sualiberal Constituição." Do mesmo modo, questionou com ironia a sociedade que seformava sobre a base da escravidão: "Tudo, porém, se compensa nesta vida; nóstiranizamos os escravos e os reduzimos a brutos animais, e eles nos inoculam toda asua imoralidade e todos os seus vícios". Como em relação à responsabilidade dosbrancos pelo ódio que lhe têm os índios, aqui também a responsabilidade é clara: "(...) o homem que conta com os jornais de seus escravos vive na indolência, e aindolência traz todos os vícios após si".29

José Bonifácio falava com orgulho dos paulistas, gente da sua própria terra, comomestiços: os "Paulistas... essa raça mestiça, forte e ativa".30 Ademais, elogiava aimigração de famílias alemãs, considerando que "estas colônias são de sumointeresse para o Brasil, porque lhe trazem uma mistura de sangue, e dão exemplovivo da maior atividade e moralidade".31 Talvez por isso tenha se antecipadotambém no reconhecimento das virtudes da miscigenação, que, real no Brasil desdeo século XVI, só será admitida de modo consistente pelas elites intelectuais noséculo XX. Segundo Caldeira, a idéia de Bonifácio de sustentar a nação no"amalgamento de pessoas de diversas raças" é anterior à independência: viria de1812, numa carta ao conde de Funchal.32

Em todo caso, o certo é que reconhecendo no país uma extraordináriaheterogeneidade "física e civil", aconselhava o Patriarca que "cuidemos desde já emcombinar sabiamente tantos elementos discordes e contrários, e em amalgamartantos metais diversos, para que saia um todo homogêneo e compacto". O professorde metalurgia não poderia ignorar, porém, que seria "amalgamação muito difícil"aquela de chegar a "um corpo sólido e político", com tanto "metal heterogêneo" –brancos, mulatos, pretos livres e escravos, índios etc. Mas, ainda assim, foi capaz defazer a apologia da tolerância diante da miscigenação racial, na qual Manuel daNóbrega via pouco mais do que o pecado da lascívia.

O visionário que apregoava a mistura das raças e que era tolerante diante dasdiferenças de religião admitia também a possibilidade da miscigenação cultural.33

"Nós não conhecemos diferenças nem distinções na família humana. Comobrasileiros serão tratados por nós o chinês e o luso, o egípcio e o haitiano, o adoradordo sol e de Maomé."34 Crítico da religião católica, que ele vê, tal como esta sepratica no país, "pela maior parte (como) um sistema de superstições e de abusosanti-sociais", é também um crítico do "clero, (que) em muita parte ignorante e

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corrompido, é o primeiro que se serve de escravos, e os acumula para enriquecer".Mas, em que pesem decepções da política, é um entusiasta do seu país e dos seus"bons costumes".

Com toda a sua experiência européia, por excelência um homem do Ocidente, elenos surpreende ao tomar para o Brasil o exemplo da China, cercada pelas muralhas eindiferente ao que se passa no resto do mundo. "O brasileiro que possui uma terravirgem debaixo de um céu amigo recebeu das mãos da benigna Natureza todo ofísico da felicidade, e só deve procurar formá-lo em bases morais de uma boaConstituição que perpetue nossos bons costumes. Devemos ser os chineses do novomundo, sem escravidão política e sem mornos. Amemos pois nossos usos ecostumes, ainda que a Europa se ria de nós."35

Não por acaso, nas lutas da independência, José Bonifácio criou um jornal com otítulo O Tamoio, homenagem aos índios conhecidos por seus combates contra osportugueses, ao contrário dos tupis, que os lusos consideravam em geral como índiosamigos. Já a essa altura como brasileiro - e portanto distante do entusiasmo dostambém pombalinos do século XVIII, Santa Rita Durão (1722-1784) e Basílio daGama, pelas virtudes civilizatórias dos portugueses –, o Patriarca prenunciava oindianismo que será uma das dimensões da "ideologia de Estado" do império dosBragança.

Vasconcelos: o conservadorBernardo Pereira de Vasconcelos se consagrou, na palavra de um de seus biógrafos,como "o mais lúcido doutrinador do regime representativo no Brasil e um dospotentes construtores das instituições nacionais". Nasceu em Minas Gerais, em 1795,de uma família na qual alguns membros se consideravam portugueses, e um de seusirmãos chegou a ministro da Guerra em Portugal.36 Estudou em Coimbra, por ondepassaram desde o último quartel do século XVIII muitos que se tornariam figurasilustres do Império brasileiro. Da velha universidade portuguesa, embora járeformada pela Ilustração pombalina, guardou uma opinião extremamente crítica.37

Em 1826, discursando na Câmara dos Deputados sobre a criação dos cursosjurídicos no Brasil, encontrou oportunidade para dizer que "o método seguido emCoimbra (...) só tinha por fim confundir as idéias dos direitos do homem edemonstrá-lo de modo tal que favorecesse todos os erros propagados pelo maisbárbaro despotismo". Vasconcelos registrou a própria experiência: "Estudei DireitoPúblico naquela universidade e por fim saí um bárbaro: foi-me preciso atédesaprender. Ensinaram-me que o reino de Portugal e acessórios era patrimonial;umas vezes sustentavam que os portugueses foram dados em dote ao Senhor D.

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Afonso I, como se dão escravos ou lotes de bestas, outras vezes diziam que Deus, nocampo de Ourique, lhe dera todos os poderes e à sua descendência; umas vezesnegava-se a existência, mas negava-se a soberania que os povos nelas exerceram;dizia-se que aquela e as outras assembléias da nação portuguesa tiveram de direito ede fato um voto consultivo; o direito de resistência, esse baluarte da liberdade, erainteiramente proscrito (...) . Estas e outras doutrinas se ensinam naquelauniversidade, e por quê? Porque está inteiramente incomunicável com o resto domundo científico. Daí vinha que o estudante que saía da Universidade de Coimbradevia, antes de tudo, desaprender o que lá se ensinava e abrir nova carreira deestudos".38

Algo, ou talvez muito dessas convicções liberais deveria mudar em Vasconcelospor força dos embates políticos de uma época de crise e desordem. O Império queconheceu logo depois da proclamação da independência teve que passar pelo traumada abdicação de D. Pedro I, em 1831, e pelas muitas rebeliões do período regencialpara começar, em 1837-1838, a se consolidar como sistema de poder, em grandeparte por influência das idéias de Bernardo e de sua sempre presente intervenção napolítica. O período regencial conheceu 18 rebeliões em diferentes regiões do país, amaioria na Corte e no Nordeste. As mais importantes, iniciadas entre 1835 e 1838,foram as rebeliões dos cabanos (1832-1835, Pernambuco), a revolta dos escravosmalês (1835, Bahia), a Cabanagem (1835-1840, Pará), a Farroupilha (1835-1845, RioGrande do Sul), a Sabinada (1837-1838, Bahia) e a Balaiada (1838-1841, Maranhão),culminando o ciclo das rebeliões a Praieira (1848-1849, Pernambuco).39

Ao longo dos seus 25 anos de atividade parlamentar e governamental,Vasconcelos defendeu os princípios da Carta de 1824, que estabelecera no país amonarquia constitucional. A Constituição definia o Poder Moderador e atribuía aomonarca a faculdade de nomear e demitir os ministros. Além do Poder Moderador, oimperador assumia também a chefia do Executivo, que exercia por meio do seugabinete ministerial. Embora em princípio contrária ao absolutismo, uma vez quecriara um sistema parlamentar e regulamentara o poder real, a Constituição travaraas aspirações liberais por meio dos dois poderes que definia como pertencentes aomonarca. Expressão das forças políticas do período da independência, a Constituiçãoviria a ser uma das raízes dos problemas institucionais do Primeiro Reinado.Vasconcelos combateu, ao lado de muitos outros, as tendências de D. Pedro I aoabsolutismo – e em 1831 o imperador seria levado à renúncia. Mas já nessescombates, em que se afirmou como liberal, daria mostras do realismo e do "senso delúcido oportunismo" com que haveria de passar à história.40 E passaria à históriacomo conservador.

Embora as opiniões de Vasconcelos, como as de outros no Império, tenham

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variado, sua posição conservadora em torno da questão da escravidão manifestou-semuito cedo e manteve-se basicamente a mesma ao longo de sua vida. Num debateparlamentar, em 1826, sobre as queixas de um grupo de africanos ilegalmenteescravizados, sustentou, para estupefação de muitos dos seus colegas, que "apresunção é que um homem de cor preta é sempre escravo". Chamado às falas porcontraditores, explicou-se: "eu falei na forma de nossa legislação (...), esta é apresunção que nela existe, e não sou obrigado a mais. Não disse que os pretosdeviam ser sempre escravos (.. .)".41

Vasconcelos definiu o realismo de suas atitudes políticas com clareza maior doque a de muitos dos seus colegas, que, contudo, também partilhavam delas. Emboraestes, como ele, se comportassem durante o Primeiro Reinado como conservadoresatentos ao peso das circunstâncias e à força da tradição, reagiam às vezes comespanto diante da clareza freqüentemente brutal e cínica de suas definições. Um dosseus preceitos políticos dizia o seguinte: não há que discutir o que é melhor fazer,mas o que, no "aperto das nossas atuais circunstâncias", se pode fazer. Em outraoportunidade, disse: "uma vez que não podemos fazer tudo, e só podemos fazer opouco, façamo-lo".42 Vasconcelos era, como diz Octavio Tarquínio de Sousa, umhomem de "espírito prático e positivo até à insensibilidade, preconizava para osproblemas sociais soluções consoantes ao interesse tangível do Estado, perecessemembora altos princípios de ordem moral".

É certo que, em 1827, defendeu a suspensão do tráfico e, mesmo, a abolição daescravatura, mas voltou diversas vezes à opinião, que mais profundamente era a sua,de que a escravatura representava a sustentação econômica do país. DiziaVasconcelos, em 1827: "Qual de nós deixa de fazer os mais ardentes votos para verterminado este flagelo que tem assolado a África, desonrado o mundo civilizado eafligido a humanidade, como reconheceu o Congresso de Viena?". E depoisafirmava: "o homem livre produz mais que o escravo, segundo os cálculos doseconomistas (...); não lastimemos a falta de povoação cativa, não é desta queprecisamos".

Combatendo o tráfico, manifestava-se contra a própria escravidão quase com asmesmas palavras de Bonifácio: "como seremos constitucionais (...) se no recinto donosso domicílio exercermos o mais absoluto despotismo?". Estava convencido,porém, de que "a pressão inglesa para a imediata extinção do tráfico (era) menos pormotivos sentimentais ou filantrópicos do que para evitar a concorrência da produçãoagrícola dos países de trabalho escravo com a das colônias inglesas onde se abolira aescravidão". O escravo, tema de que se ocupou com alguma freqüência, foi vistosempre por Vasconcelos como coisa; e ele, nunca desatento aos negócios, "procurouexplorar essa coisa da maneira mais rendosa".43

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Bernardo Pereira de Vasconcelos afirmou certa vez que "a abolição do tráficodeve trazer tendências barbarizadoras" e que a África civiliza a América.44 Não eraesta uma convicção nova entre autoridades portuguesas e brasileiras: vinha dosprimórdios da colônia. Vieira não disse algo de semelhante quando afirmou que aliberdade dos negros em Palmares seria o fim do Brasil? Diferente de Vieira, porém,Vasconcelos foi, pelo menos até meados dos anos de 1830, um liberal em política eem economia. Como muitos outros no Império, foi um liberal à moda britânica:queria o governo de gabinete; tinha horror ao despotismo, tanto quanto aosrevolucionários, anarquistas e demagogos, e defendia a liberdade de imprensamesmo quando esta atacava o sistema político e o governo. Queria soluções práticase possíveis, detestava o discurso palavroso, submetia-se ao "determinismo dascircunstâncias" e não acreditava em "plano geral" para o Brasil do seu tempo.Enquanto foi um liberal, nunca lhe faltou a sensibilidade conservadora e o gostopragmático pelos quais tem sido sempre lembrado na história e que transparecemnas importantes contribuições que deu à construção do sistema institucionalbrasileiro.

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Rio de Janeiro, século XIX: palco de embates entre liberais e conservadores.

O"regresso"Sobre a abdicação de D. Pedro I, em 1831, em favor de D. Pedro II, então com cincoanos de idade, movimento do qual não participou, Vasconcelos disse que "o Brasilficou entregue a si mesmo". De fato, o país não chegou à República, como queriamos exaltados, mas ficou sob controle dos moderados, ou seja, dos segmentos

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políticos que melhor expressavam os interesses dos proprietários de terra. Como sedisse muito tempo depois, a Regência, que durou dez anos, seria um ensaiorepublicano.45 Uma experiência republicana que não deu certo e diante da qualVasconcelos reconheceria a perda de força da autoridade.

E, contudo, a Regência, vista como um cenário de rebeliões locais por sua vezpercebidas como ameaças ao poder central, ofereceria, de fato, a oportunidade dereformas que culminariam no Ato Adicional de 1834, que conduziria, de novo, àcentralização do poder. Inaugurava-se, assim, um tempo de medidas drásticas emdefesa da ordem pública, tomadas pelo padre Diogo Antônio Feijó (1784-1843).Ministro da Justiça em 1831 e regente de 1835 a 1837, ele criou a Guarda Nacional,ligada aos proprietários de terra. Contra "os inimigos da ordem pública", Feijó teve oapoio de Vasconcelos, na pasta da Fazenda, em 1831, e também na Câmara, ondeteve o apoio da maioria, inclusive o dos líderes conservadores, entre os quaisPaulino José de Souza (1834-1901), Honório Hermeto Carneiro Leão (1801-1856) eJoaquim José Rodrigues Torres (1802-1872).46

Atribui-se a Vasconcelos a Exposição de princípios da Regência de 1831, cujasidéias parecem um prenúncio da trajetória que deveria levar o país, na décadaseguinte, ao chamado "período do regresso", de predominância conservadora.Embora tivessem depois tomado caminhos diferentes, vindo Feijó a ser o inspiradorda criação do Partido Liberal, e Vasconcelos o do Partido Conservador, os doislíderes da Regência eram à época liberais que queriam ordem, trabalho e paz. NoAto Adicional, em oposição aos "avançados" e aos "exaltados" que se inspiravam nasinstituições norte-americanas, Vasconcelos bateu-se por instituições que entendiamais adequadas às circunstâncias nacionais. Queria um poder executivo forte, semprejuízo do prestígio que reservava ao legislativo, ao qual pretendia dar competênciapara o julgamento dos membros do Poder Judiciário.

Ainda em 1834, um mês depois da promulgação do Ato Adicional, revelava oobjetivo que pretendia cumprir: "Foi minha profunda convicção de que nesta sessãocumpria fechar o abismo da Revolução, estabelecer e firmar verdadeiros princípiospolíticos, consolidando a monarquia constitucional". Mas em 1839, falando noSenado, queixou-se das mudanças que os debates parlamentares introduziram em seuprojeto: "fizeram-lhe consideráveis emendas que o podem tornar, como eu receava, acarta da anarquia".

O Ato Adicional revelou-se insuficiente ou inepto para o objetivo de Vasconcelos:havia que "parar o carro revolucionário". Essas palavras e esta explicação ele as usoudez anos depois, mas seu comportamento durante a Regência indicava claramente aconvicção da necessidade de uma interpretação do Ato Adicional que resgatasse aintenção original dos seus autores. Até 1834 as revoltas se tinham limitado às

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capitais: Rio de Janeiro, Salvador, Recife, Ouro Preto, São Luís, Belém. Agora elasse espalhavam pelas províncias. "Conseqüência ou não do Ato Adicional – osconservadores diziam que sim, os liberais que não – grandes revoltas irromperam naBahia (Sabinada), no Pará (Cabanagem), no Rio Grande do Sul (Farroupilha), noMaranhão (Balaiada)."47 Vasconcelos entendia que, para consolidar a monarquia e aunidade nacional, era necessário dar conta da realidade adversa criada pelasAssembléias Provinciais, que "estavam construindo uma verdadeira Babel".48

Em 1838, quando o Senado passou a debater a "lei de interpretação do AtoAdicional", começava também o movimento da Maioridade, em reunião na casa deJosé Martiniano de Alencar (1794-1860), pai do escritor. Pretendia declarar maior deidade D. Pedro II, o "órfão nacional", o rapazinho que a nação desde 1831 criara paraser seu rei. Vasconcelos julgava indispensável que, antes de proclamada amaioridade, fossem criadas garantias institucionais: um Conselho de Estado, areforma dos Códigos, a disciplina no exército, a reforma da administração daFazenda. A Maioridade e as reformas pedidas coincidiram apenas parcialmente: a leide Interpretação do Ato Adicional, de 1840, antecedeu de um ano a Maioridade, quefoi decidida ao estilo de um golpe de Estado. De início, a medida beneficiou osliberais, mas, como era do espírito do tempo, estes foram sucedidos, logo a seguir,pelos conservadores.49

A essa altura, Vasconcelos definira seu perfil conservador, a serviço da grandelavoura que ia afinal preponderar na direção política do Brasil, e defendendo ascausas que se ajustavam aos interesses dos donos de escravos.50 Acusado detrânsfuga e retrógrado, o político se defendeu, em 1837, com palavras que setornaram célebres: "Fui liberal; então a liberdade era nova no país, estava nasaspirações de todos, mas não nas leis, não nas idéias práticas; o poder era tudo; fuiliberal. Hoje, porém, é diverso o aspecto da sociedade: os princípios democráticostudo ganharam e muito comprometeram; a sociedade, que então corria risco pelopoder, corre agora risco pela desorganização e pela anarquia. Como então quis,quero hoje servi-la, quero salvá-la, e por isso sou regressista. Não sou trânsfuga, nãoabandono a causa que defendi, no dia do seu perigo, de sua fraqueza: deixo-a no diaque tão seguro é o seu triunfo que até o excesso a compromete. Quem sabe se, comohoje defendo o país contra a desorganização, depois de o haver defendido contra odespotismo e as comissões militares, não terei algum dia de dar outra vez a minhavoz ao apoio e à defesa da liberdade? Os perigos da sociedade variam: o vento dastempestades nem sempre é o mesmo: como há de o político, cego e imutável, serviro seu país?".51

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A solidez do ImpérioAs palavras de Vasconcelos para explicar sua renúncia ao liberalismo da juventudetraduzem, mais do que a sua trajetória pessoal, o percurso de muitos líderes que, aofim do Primeiro Reinado e da Regência, consolidariam o Império brasileiro.Reconheça-se, porém, que a orientação, a doutrina e a legislação da políticaconservadora do Império, assegurando um poder centralizado e a unidade nacional,eram, em grande parte, obra pessoal sua. Eram reclamadas, sobretudo, porVasconcelos. Era dele a liderança intelectual, embora com a participação de outros,como Paulino José de Sousa. Segundo Joaquim Nabuco, que consideravaVasconcelos um "gigante intelectual", nesse processo de elaboração legal ele foi omestre e Paulino, o aplicado discípulo. Embora fosse Paulino o ator político quefizera "passar nas câmaras as leis de 23 de novembro e de 3 de dezembro de 1841,que reconstituíram as bases da autoridade no país", assim fazendo ele "realizara opensamento político de Vasconcelos".52

É por isso que, na reação liberal que veio logo a seguir, em 1842, os ataques foramdirigidos, sobretudo, a Vasconcelos, cuja obra era reputada funesta, retrógrada,atentatória de todas as liberdades. Não obstante, as reformas conservadoraspermaneceram, entre as quais a do Código do Processo, que "deu ao Império umaarmadura que o defendeu durante quase meio século".53 Como diz Nabuco, essa lei"durante quarenta anos (...) manterá a solidez do Império, que acabou, pode-se dizer,com ela".54

Para além das orientações partidárias e das atribuições pessoais, as grandesdecisões que definiram a face do Império terminaram compartilhadas por toda aelite brasileira da época. Ascendendo ao poder em 1844, onde permaneceram até1849, os liberais nada mudaram da legislação conservadora contra a qual se tinhamrebelado.55 "Nada mais parecido a um saquarema do que um luzia no poder", diziaum velho político da época para assinalar a quase nenhuma diferença entre osliberais (chamados de "luzias") e os conservadores (chamados de "saquaremas").Outros cronistas do Império diziam, porém, que, diante dos grandes temas, oprotesto cabia aos liberais, a solução aos conservadores. É um diagnóstico que severifica em alguns casos importantes, como a extinção do tráfico de escravos.

Nas circunstâncias criadas pelas pressões inglesas de inícios de 1850, oconservador Paulino José de Sousa convenceu o ministério e o parlamento de que aúnica solução era acabar com o tráfico mediante lei e ação brasileiras.56 A pressãoinglesa cresceu com o Bill Aberdeen, ato legislativo de 1845 que autorizava amarinha britânica a tratar os navios negreiros como piratas, permitindo o seuapresamento e o julgamento dos envolvidos por tribunais britânicos. A saída

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brasileira para uma situação que se tornava insuportável foi dada pela lei de 1850,que tomou o nome do também conservador Eusébio de Queirós (1812-1868), entãoministro da Justiça, que interrompeu de uma vez por todas o comércio de escravos.

Talvez por isso mesmo, nesse episódio, para todos, quer liberais querconservadores, sobrariam críticas, humilhações e atribuições de culpa. Em 1852,Paulino José de Sousa, respondendo a críticas dos liberais, argumentou que aresponsabilidade pelo tráfico era de todos os governos desde 1830. E acrescentou:"Qual dentre nós não teve relações com um ou outro envolvido no tráfico, em épocasem que não era estigmatizado pela opinião?". No mesmo discurso mencionou acrítica que recebeu do ministro britânico das Relações Exteriores, viscondePalmerston (1784-1865), extensiva a toda a elite do Império: "O sr. Paulino tem sidoprofesso em declarações e promessas; mas estas coisas nunca faltaram da parte dequalquer ministro brasileiro".57 E concluía Paulino: "É verdade que os nobresdeputados, quando estavam em oposição (note-se, quando estavam em oposição),levantaram algumas vozes contra o tráfico; foram palavras; talvez nós não tenhamosproferido tão belas palavras; fizemos porém mais; fizemos obra". Em meio às culpase às críticas que se distribuíam para todos, concluía que a repressão ao tráfico seriado interesse geral do país, não deste ou daquele partido. "Quaisquer que sejam asdivisões que possam existir entre nós a respeito dos negócios internos, sejamosunânimes no pensamento de acabar de uma vez o tráfico."58

1. ANTONIO CANDIDO, op. cit., v. 1, p. 64.2. SOUSA, Octavio Tarquínio de. História dos fundadores do Império do Brasil; José Bonifácio. Rio de

Janeiro: José Olympio, 1957. v. 1, p. 38.3. A obra do Visconde do Uruguai se acha em: C ARVALHO, José Murilo de. (Org.). Visconde do Uruguai. São

Paulo: 34, 2003. (Coleção Formadores do Brasil). Na mesma coleção, ver: KUGELMAS, Eduardo (Org.).Marquês de São Vicente. São Paulo: 34, 2002.

4. A descrição da chegada de D. João é amplamente baseada em: L IMA, Oliveira. D. João VI no Brasil. Rio deJaneiro: Topbooks, 1996. Ver p. 49, 87-88 e 135.

5. Ibidem, p. 44.6. Ibidem, p. 623.7. MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira, cit., v. 2, p. 108.8. Ibidem, p. 26-27.9. DIAS, Maria Odila Leite da Silva. A interiorização da metrópole e outros estudos. São Paulo: Alameda,

2005. p. 22.10. Ibidem, p. 14.11. LIMA, op. cit., p. 552.12. LIMA, op. cit., p. 75, 85 e 512.

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13. Ibidem, p. 89 e 552.14. Ibidem, p. 164-165 e 557.15. MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira, cit., v. 2, p. 39 e 41.16. Ibidem, p. 52-54.17. Apud SOUSA, Octavio Tarquínio de. História dos fundadores do Império do Brasil. v. 1: José Bonifácio.

Rio de Janeiro: José Olympio, 1957. p. 136.18. Jorge Caldeira, introdução a: CALDEIRA, Jorge (Org.). José Bonifácio de Andrada e Silva. São Paulo: 34,

2002. p. 13 e seguintes. (Coleção Formadores do Brasil).19. ANDRADA E SILVA, José Bonifácio de. Lembranças e apontamentos do Governo Provisório da Província

de São Paulo para os seus deputados. In: CALDEIRA (Org.), op. cit., p. 131.20. ANDRADA E SILVA, Elogio acadêmico da Senhora D. Maria I. In: CALDEIRA (Org.), op. cit., p. 102.21. CALDEIRA, loc. cit., p. 30 - 1 .22. ANDRADA E SILVA, Necessidade de uma academia de agricultura no Brasil. In: CALDEIRA (Org.), op. cit.,

p. 69.23. SANTIAGO, Silviano. introdução a: SANTIAGO (Org.). Intérpretes do Brasil, cit., p. xv.24. ANDRADA E SILVA, loc. cit., p. 78-79.25. Idem, Elogio acadêmico., cit., p. 102-104 e 109.26. Ibidem, p. 70 e 102; Bonifácio se refere, em sentido evidentemente polêmico, ao que considerava os

fantasmas ("lêmures") da filosofia escolástica-aristotélica ("arábico-peripatética"), que embaraçava("sopeava") a razão.

27. Ibidem, p. 121.28. Idem, Representação à Assembléia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil sobre a

escravatura. In: CALDEIRA (Org.), op. cit., p. 200-201.29. Ibidem, p. 201 e 204.30. Idem, Pensamentos e notas. In: CALDEIRA (Org.), op. cit., p. 240.31. Idem, Carta a Tomás Antônio de Villanova, 18 de maio de 1820. In: CALDEIRA (Org.), op. cit., p. 116.32. CALDEIRA, loc. cit., p. 37.33. ANDRADA E SILVA, Carta ao Conde de Funchal, Lisboa, 3 de julho de 1812. In: CALDEIRA (Org.), op. cit.,

p. 221.34. Idem, Pensamentos e notas, loc. cit., p. 238.35. Ibidem, p. 241.36. "Se os Pereira Ribeiro de Vasconcelos deram ao Brasil três nomes não esquecidos, Bernardo e Francisco

Diogo (...) o filho mais velho do Dr. Diogo Pereira Ribeiro de Vasconcelos, Jerônimo, nascido em Minas,atingira em Portugal (...) o posto de tenente-geral, seria ministro da Guerra e mereceria o título de Viscondede Ponte da Barca por feito militar em defesa da causa de D. Maria II"; SOUSA, História dos fundadores doImpério do Brasil, cit., v. 5, p. 11.

37. Ibidem, p. 9, 11 e 38.38. Ibidem, p. 19-21.39. CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p.

250.40. SOUSA, História dos fundadores do Império do Brasil, cit., v. 5, p. 38.41. Ibidem, p. 50-51.42. Ibidem, p. 38.43. Ibidem, p. 65-66, 86, e 260-261.44. Discurso de Vasconcelos no Senado, 1843: "Eu digo que a associação brasileira hoje precisa de adotar

uma economia política em grande parte contrária à geralmente admitida, por isso que a abolição do tráficodeve trazer tendências barbarizadoras." É aparteado: "O Sr. C. Ferreira [disse]: Já a África civiliza! O Sr.

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Vasconcelos [disse]: É uma verdade; a África tem civilizado a América, e veja o nobre senador os grandeshomens da América do Norte, os mais eminentes, onde têm nascido; veja os outros todos que devem suaexistência, o seu aperfeiçoamento aos países que têm procurado africanizar-se"; Ibidem, p. 268.

45. NABUCO, Joaquim. Um estadista do Império. 5. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. v. 1, p. 66.46. CARVALHO, José Murilo de. Entre a autoridade e a liberdade, introdução a: CARVALHO (Org.), Visconde do

Uruguai, cit., p. 18.47. Idem, p. 17.48. SOUSA, História dos fundadores do Império do Brasil, cit., v. 5, p. 212.49. Ibidem, p. 218 e 220.50. Ibidem, p. 182.51. Ibidem, p. 197.52. NABUCO, op. cit., v. 1, p. 79.53. SOUSA, História dos fundadores do Império do Brasil, cit., v. 5, p. 218, 220, 128, 235, 236 e 240.54. NABUCO, op. cit., v. 1, p. 79.55. CARVALHO, Entre a autoridade e a liberdade, loc. cit., p. 22.56. Visconde do Uruguai. In: CALDEIRA (Org.), op. cit., p. 552 e seguintes.57. Ibidem, p. 582.58. Ibidem, p. 602.

[<<17]

Aclamação de D. Pedro II: conturbado início de um estável Segundo Reinado.

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CAPÍTULO 8

SEGUNDO REINADOJOSÉ DE ALENCAR: INDIANISMO E CONSERVADORISMO

O mestre que eu tive, foi esta esplêndida natureza que me envolve, e particularmente amagnificência dos desertos, que eu perlustrei ao entrar na adolescência, e foram o pórtico

majestoso por onde minha alma penetrou no passado de sua pátria. Daí, desse livro secular eimenso é que eu tirei as páginas d'O guarani, as de Iracema.

JOSÉ DE ALENCAR

E m Um estadista do Império, que escreveu sobre seu pai e o Segundo Reinado,Joaquim Nabuco disse que "a Regência foi a república de fato". Foi uma "repúblicaprovisória" que se revelou incapaz de conter as rebeliões regionais, mas que cumpriua função de manter o país unido, apesar das turbulências e dos separatismos. Foieficiente ao substituir D. Pedro II, então ainda um menino, pelos regentes, sobretudoo padre Feijó. Mas não foi capaz de criar um regime que substituísse a monarquianem de evidenciar a "desnecessidade do elemento dinástico, que era um pesadelopara o espírito adiantado". Fracassado o ensaio republicano, a alternativa paragarantir a unidade nacional estava à mão: a proclamação da Maioridade de D. PedroII.1

Duas épocasO período pós-Regência (1837-1841), que ficou na história como o "Regresso",começou sob a liderança de Bernardo Pereira de Vasconcelos no temor das rebeliõesregenciais e com a consciência da necessidade da centralização do Império. Era oinício de uma obra de centralização que só seria ultimada pelo "Ministério daConciliação" (1853-1857), sob a presidência do também conservador marquês doParaná, Honório Hermeto Carneiro Leão.

Assim como a centralização, também continuaram por mais tempo as rebeliõesque a motivavam. Algumas rebeliões da Regência só terminariam depois daMaioridade, como a dos Farrapos, no sul, que acabou em 1845. Pouco depois, em1848, começaria a Praieira, em Pernambuco. Teria início mais adiante o período da

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"Conciliação", com uma trégua entre liberais e conservadores que duraria até oinício da Guerra do Paraguai, em 1864.2 Do famoso "Ministério da Conciliação"participou também o general Luís Alves de Lima e Silva (1803-1880), do PartidoConservador, cujos títulos nobiliárquicos – barão, depois marquês e duque de Caxias– servem para indicar a projeção que alcançou no campo político.3 Caxias, quedebelou as rebeliões do período, sucederia o marquês do Paraná na chefia doMinistério.

Esse "Ministério da Conciliação", segundo Euclides da Cunha, separou duasépocas, o Primeiro e o Segundo Reinados. Foi "o ponto culminante do Império".4Mas, conforme testemunhos da época, os tempos de D. Pedro I não foram muitodiferentes dos inícios do reinado de D. Pedro II. Esse ponto de clivagemrepresentado pelo Ministério da Conciliação vinha sendo preparado antes, assimcomo as mudanças que surgem depois dele. Foi a partir de 1850 que surgiram asprimeiras estradas de ferro, desenvolveram-se o telégrafo e as linhas de navegação,renovou-se a instrução pública. Essas mudanças iriam dever-se tanto às ações doMinistério da Conciliação quanto aos efeitos da interrupção do tráfico de escravos(1850), que liberou capitais para investimento em diferentes ramos da atividadeeconômica.

Joaquim Nabuco, em seu brilhante panorama do Império, registra as mudanças eas permanências na transição do Primeiro para o Segundo Reinados. Falando doscomeços, de 1843, quando D. Pedro II tinha 17 anos, diz Nabuco que as mudançasteriam se limitado a personagens, famílias e grupos que participavam da Corte: "asantigas famílias (...) agora tratavam de ocultar do melhor modo que podiam suairremediável decadência". A sociedade do Primeiro Reinado, que se reunia em tornode D. Pedro I, "desaparecera, com seus hábitos, sua etiqueta, sua educação, seusprincípios, e os que figuravam agora no fastígio eram ou os novos políticos saídos darevolução ou os comerciantes enriquecidos. (...) a política e o dinheiro eram as duasnobrezas reconhecidas, as duas rodas do carro social. Quando a primeira sedesconcertava, vinham as revoluções, no fundo tão oficiais como o próprio governo(...) quando era a segunda, vinham as crises comerciais, que se resolviam pelaintervenção constante do Tesouro".

Não obstante esse tom crítico, a apreciação de Nabuco sobre os inícios doSegundo Reinado é marcada pela generosidade. Essa fase inicial se caracterizariapor "uma sociedade moralizada e de extrema frugalidade; os princípios tinham aindamuita força, o honesto e o desonesto não se confundiam, sabia-se o que cada umtinha e como tivera; inquiria-se da fortuna dos homens públicos como um censorromano da moralidade dos personagens consulares; respeitava-se o que erarespeitável; os estadistas de maior nome eram pobres, muitos tendo vivido sempre

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uma vida de privação quase absoluta, em que merecer uma condescendênciaqualquer era quebrar a austeridade e provocar comentários. (...) A invasão do luxo sóse fará dez anos mais tarde com a prodigalidade das emissões bancárias".5

Uma questão de identidadeNessas primeiras décadas do Segundo Reinado, em que o progresso econômico e asmudanças sociais caminhavam tão lentamente, os temas culturais e políticosalcançaram maior visibilidade nos caminhos escolhidos pela Coroa e pelas elitespara construir o Estado nacional. Aos homens que forjaram o Estado brasileiro doséculo XIX impunha-se igualmente a tarefa de forjar uma identidade cultural para opaís. Antecipada em inícios do século por José Bonifácio, a preocupação com aidentidade nacional tomou a escala mais ampla de uma "ideologia de Estado"6, como apoio, e em alguns casos com a iniciativa, do próprio monarca.

A mistura de política e literatura parecia inevitável. Foi um literato e políticofrancês, François-Auguste-René de Chateaubriand (1768-1848), "que forneceu achave de transição entre o universo de referências políticas da civilização ocidental ea realidade brasileira". Nessa transição, a iniciativa coube ao conselheiro Gonçalvesde Magalhães, que fez a tentativa de gerar numa epopéia a "imagem da naçãobrasileira como síntese americana de europeus e aborígenes, africanos excluídos".7Coube a José de Alencar (1829-1877), também literato e político, completar noromance esse trabalho de busca de uma identidade nacional. Nessa obra deconstrução foi também fundamental a cooperação do Instituto Histórico eGeográfico Brasileiro (IHGB), inspirado no Institut Historique de Paris, que cumpriua missão de delinear uma visão brasileira do Brasil, produzindo uma histórianacional e uma definição da brasilidade que unificava a nação.8 Como diz AngelaAlonso, "o indianismo literário e o ensaísmo historiográfico do IHGB vinham daracabamento simbólico ao processo de pacificação que a Conciliação empreendia napolítica institucional".9 É a época de ouro do romantismo e do indianismo.10

O poeta e diplomata Domingos Gonçalves de Magalhães (1811-1882) tornou-se oprincipal representante da nova corrente desde que lançou, em 1836, em Paris, seu"Discurso sobre a literatura no Brasil". Fundou, também em Paris, uma revista,chamada Niterói, em homenagem ao indianismo, na qual difundia os temasromânticos dominantes na França. É de 1836 seu primeiro livro, Suspiros poéticos esaudades, no qual os críticos reconheceram mais pioneirismo do que qualidadespoéticas. Estas chegariam dez anos depois, com os Primeiros Cantos (1846), deAntônio Gonçalves Dias (1823-1864), que se formou em Portugal sob a influência

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do nacionalismo de Almeida Garrett (1799-1854) e Alexandre Herculano (1810-1877). Como assinala Wilson Martins, se a primeira década romântica é a deMagalhães, "basta pensar que, na década seguinte, o romantismo será representadopela geração de Gonçalves Dias, para medir a enorme distância literária que assepara". Nossos primeiros românticos achavam-se, porém, unidos pelo "indestrutívelnexo histórico que os identifica num projeto comum".11

Foi desse nexo que uma década depois surgiu José de Alencar, com O guarani(1857), considerado por Machado de Assis (1839-1908), alguns anos depois, como"chefe da literatura nacional". Quando Alencar surgiu, Gonçalves Magalhães eraainda o condestável das letras, tanto por sua copiosa produção quanto pelo prestígioque lhe conferia a admiração de D. Pedro II. E foi em atenção a um pedido doimperador que publicou em 1856 A confederação dos tamoios, poema épico que setornou alvo da crítica de Alencar. Este, que até então se dedicara apenas às crônicase ao jornalismo, considerou o poema de boa intenção, mas de forma inepta paraexpressar o tema a que se propunha. Alencar, que quase ao mesmo tempo dava apúblico "seus dois primeiros 'romancetes' de ambientação carioca", era apenas umprincipiante na literatura.12 Mas sua entrada polêmica ficaria, além da história dasletras, também para os registros da história política. É que da sua polêmicaparticipariam outros personagens, entre os quais o próprio imperador.

Ocorria, quase ao mesmo tempo, o lançamento d'O guarani "publicado no (...)jornal à medida que ia sendo escrito", em três meses de 1857. É "um largo sorvo defantasia, que realiza talvez com maior eficiência a literatura nacional, americana,que a opinião literária não cessava de pedir e Gonçalves de Magalhães tentara n'Aconfederação dos tamoios".13 Estreando como adversário de Magalhães e, de certomodo, também do imperador, seria Alencar o inovador no âmbito do projetohistórico-cultural que seus adversários literários haviam iniciado.

Um conservador inovadorDiferente de Nabuco, Alencar não escreveu uma biografia do pai, que foi, contudo,um político de nomeada, membro de uma família de proprietários de terras e deescravos. Mas suas lembranças de infância e adolescência são coerentes com ocenário da grande inflexão histórica que vivia o país.

As origens de Alencar fariam prever o rebelde mais do que o liberal conservadorque se tornou em sua atividade política. Sua avó, D. Bárbara de Alencar, participouda revolução de 1817, em Pernambuco, o que a levou a passar quatro anos presa naBahia. Também foi preso o pai do escritor, padre que abandonara a batina e eraamigo do liberal Diogo Antônio Feijó, também padre, de quem o Alencar filho se

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lembrava como estando presente nas reuniões em sua casa, do Clube da Maioridade,que levou D. Pedro II ao trono em 1840.

O Alencar pai permaneceu fiel às idéias liberais da juventude, fez carreirapolítica, tornou-se deputado, presidente da Câmara em 1837. Tornou-se depoissenador, posição que no Império dependia de decisão final do imperador. E nissoteve mais sorte do que seu filho escritor. Em 1868, D. Pedro II negou acesso a Joséde Alencar no Senado, embora este já fosse escritor notável, deputado de váriaslegislaturas e inscrito no Partido Conservador.14

Além dos aspectos formais da expressão literária, a polêmica entre Magalhães eAlencar envolvia a questão da inclusão do índio como parte legítima da culturanacional. O tema, de grande atualidade na época, tinha precedentes na literatura doperíodo colonial. Na consideração dos críticos, A confederação, de Magalhães, eraum épico neoclássico, como havia outros em uma tradição literária que contava comCaramuru, do frade Santa Rita Durão, e O Uraguay, do ex-jesuíta Basílio da Gama.A diferença é que esses poemas coloniais louvavam os portugueses, enquanto Aconfederação os atacava. Mas quaisquer que tenham sido as diferenças entre essasobras, o tema dos índios era persistente. Quase no mesmo momento em que se davaa polêmica Alencar-Magalhães surgiam Os timbiras, de Gonçalves Dias.

Civilização e barbárie - uma sínteseComo observa Wilson Martins, a cultura do país estava diante da questão de comoescolher entre a "civilização e a barbárie". Entendiam as elites do Império que estavao país em disjuntiva semelhante àquela tratada pelo argentino Domingo FaustinoSarmiento (1811-1888), no Facundo, de 1845. Havia que escolher entre a cidade e ocampo, o presente e o passado, a civilização e a barbárie, a Europa e a América. Emcontraste com Sarmiento, Alencar apresentou n'O guarani uma "resposta dialética",uma síntese que louvava, ao mesmo tempo, o português e o índio.15 Ao modo doindianismo do século XIX, Alencar expressava uma propensão do Brasil àmestiçagem que vinha desde os primeiros séculos da colônia. Admitia amestiçagem, porém, à maneira do século XIX. A síntese incluía os índios; não,porém, os negros.

A história d'O guarani se passa no início do século XVII, num castelo medievalconstruído na floresta por um fidalgo português, da época da união Ibérica, masrebelde ao domínio de Castela. O fidalgo tinha profunda admiração por Peri, o índioherói, no qual via um nobre como ele próprio, e com qual vai casar sua filha, Ceci,depois de dar ao índio o seu próprio nome no batismo que o converte em cristão.Assim, seus descendentes já não seriam nem portugueses nem índios, mas

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brasileiros.Quanto ao aspecto propriamente literário, a novidade de Alencar foi ter escrito,

em vez de um poema épico, um romance histórico, idealista e mítico, uma epopéia àmaneira de Walter Scott (1771-1832) e Chateaubriand. Sua grande realização foiuma síntese de espírito conservador, sugerindo imagens dos fundamentos danacionalidade que, com muitas variantes, persistem no pensamento brasileiro atéhoje.16

Disse Machado de Assis que Alencar não deixara sem exame um recanto do país.Acompanhando o entusiasmo do grande escritor, a historiadora italiana LucianaStegagno-Picchio considera a obra de Alencar um "balanço" total do mundobrasileiro de meados do século XIX, "uma comédia humana que vai das origens dacolônia" à "contemporaneidade". Além d'O guarani, o "bom selvagem sem máculanem medo", são exemplos de romances das origens Iracema, "a virgem dos lábios demel", também "transparente anagrama da América" e As minas de prata, "amplomural da penetração bandeirante do país". São exemplos da contemporaneidade(Lucíola), e dos romances regionais, do Ceará (O sertanejo) ao Rio Grande do Sul (Ogaúcho), nos quais, como diz Alfredo Bosi, o bom selvagem "se desdobra em heróisregionais".17

O índio Peri se convertera em mito. Em 1870, o Teatro Scala de Milão encenava aópera O guarani, de Carlos Gomes (1836-1896), inspirada no livro de Alencar, e quecontinua sendo uma das atrações dos teatros de ópera no país. Alencar concebera naunião de Peri com Ceci "o tronco, se não biológico e racial, pelo menos alegórico epoético, da nacionalidade".18 Segundo Stegagno-Picchio, contra o mito de Peri, osmodernistas de 1922 construirão "o mito do Macunaíma: o mau selvagem,zombeteiro e desleal, impávido e degradado".19 Uma tentativa inútil, sugere aautora, pois continua vivo o mito do índio que se converteu e, em sua nobreza,incorporou-se à nacionalidade.

Consciência de um projetoJosé de Alencar estava, por certo, consciente de que participava de um projetocomum à elite de sua época. É esclarecedora a resposta que deu aos contemporâneosque acusavam-no de imitador do norte-americano Fenimore Cooper (1789-1851),autor de O último dos moicanos (1832), que escreveu muito sobre a vida de fronteirae os pioneiros. Diz Alencar que, mais do que Cooper ou Chateaubriand, seu mestrefora a natureza do seu país: "(... ) o mestre que eu tive foi esta esplêndida naturezaque me envolve, e particularmente a magnificência dos desertos, que eu perlustrei ao

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entrar na adolescência, e foram o pórtico majestoso por onde minha alma penetrouno passado de sua pátria. Daí, desse livro secular e imenso, é que eu tirei as páginasd'O guarani, as de Iracema (...). Daí, e não das obras de Chateaubriand, e menos dasde Cooper, que não eram senão a cópia do original sublime que eu havia lido com ocoração. O Brasil tem, como os Estados Unidos e quaisquer outros povos daAmérica, um período de conquista, em que a raça invasora destrói a raça indígena.Essa luta apresenta um caráter análogo, pela semelhança dos aborígenes. Só no Perue (no) México difere. Assim, o romancista brasileiro que buscar o assunto do seudrama neste período da invasão não pode escapar ao ponto de contato com o escreveramericano".20

De um modo ou de outro, a mitologia de Alencar persistiu e abriu caminho paraum dos ramos do romance brasileiro que prosseguiu até o século XX. Os mitos deAlencar cumpriram algumas das funções que se espera de uma ideologia,iluminando alguns aspectos da realidade, colocando outros na penumbra, senãoapagando-os de todo. Como disse Antonio Candido, quando surgiu o indianismo naliteratura o índio já era o passado, ao passo que "o negro era a realidade degradante,sem categoria de arte, lenda heróica". No país novo o indianismo adequou-se comoconveniente motivo das elites que buscavam afirmar uma identidade nacional, com avantagem de evitar o "problema" representado pelo negro. A imaginação românticade Alencar deu ao "país de mestiços o álibi de uma raça heróica, e a uma nação dehistória curta, a profundidade do tempo lendário. (...) No meio de tanta revoluçãosangrenta; em meio à penosa realidade da escravidão e da vida diária – surgia avisão dos seus imaculados Parsifais, puros, inteiriços, imobilizados pelo sonho emmeio à mobilidade da vida e das coisas".21 O que tem a ver com o necessáriosentimento de identidade e permanência de uma sociedade nova e instável que oBrasil era e continuará sendo pelos tempos vindouros.

Era ampla a visão de Alencar sobre as origens do Brasil, a qual mesclava no planosimbólico a fidalguia portuguesa e a nobreza indígena. Ele cooperou com a formaçãoda consciência nacional, reclamada pelo imperador e pela elite da época, de modomais profundo que Gonçalves de Magalhães. Daí que o mal-entendido com oimperador, que tanto magoou o escritor e tanto irritou o monarca, talvez se deva àsambigüidades do tempo em que viviam. O escritor contribuiu, como também odesejaria o imperador, para construir uma ideologia que consagrava os rumos daindependência, passando por alto as ignomínias da escravidão. Sua imaginaçãoromântica criou com um povo índio, na época já uma lembrança do passado, umaimagem do país que não se podia construir com o povo real, do qual o negroescravizado era parte essencial. Uma visão do povo que, pelas mesmas razões,tampouco se podia construir com os pobres ignorados dos sertões, em geral

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mestiços, que só virão à cena com Euclides da Cunha (1866-1909).No século XX, Jorge Amado (1912-2001) dizia-se "um rebento baiano da família

de Alencar". Dizia que Alencar era o fundador da família do romantismo, e atribuíaa fundação da outra família, a do realismo, a Machado de Assis.22 Como se sabe,Jorge Amado foi comunista na juventude e manteve sempre uma aguda sensibilidadepopular, tendo sido um dos primeiros escritores brasileiros a reconhecer o negrocomo herói literário. Não deixa de haver alguma ironia no fato de o romantismo e orealismo, variantes inovadoras da cultura nacional, terem sido criadas por doisliteratos de opinião política conservadora.

Um monarca abolicionistaO ano de 1868, quando Alencar subiu ao Ministério na pasta da Justiça, foi o daretomada das críticas do Partido Liberal às instituições políticas do Império. omovimento de crítica se iniciou com o famoso discurso do sorites, do senadorNabuco de Araújo (1812-1878), criticando o mecanismo institucional de formaçãodos governos no Império. Não obstante suas boas relações com o imperador, outalvez por isso mesmo, o orador preferiu falar da tribuna do Senado, o quesignificava falar ao país em vez de ao Conselho do Império, ao qual tambémpertencia. "Ora, dizei-me: não é isto uma farsa? Não é isto um verdadeiroabsolutismo, no estado em que se acham as eleições no nosso país? Vede este soritesfatal, este sorites que acaba com a existência do sistema representativo: o PoderModerador pode chamar a quem quiser para organizar ministérios; esta pessoa faz aeleição, porque há de fazê-la; esta eleição faz a maioria. Eis aí o sistemarepresentativo do nosso país!"23

Joaquim Nabuco, filho de Nabuco de Araújo, endossa em sua história do SegundoReinado esses conceitos, em frases veementes, sem jamais colocar em questão opapel desempenhado por D. Pedro II. De acordo com Joaquim Nabuco, era aprimeira vez no Senado que se "tachava" de "ilegítimo o uso de uma atribuiçãoconstitucional". Além disso, ele registra que seu pai repetiu no Conselho de Estado oque dissera no Senado, sustentando diante do Imperador o princípio que desejavaque viesse a se tornar vigente: "o rei reina e não governa".24 Embora o discurso deNabuco de Araújo tenha sido feito em nome de princípios, sem intenção de críticapessoal ao imperador, seria impossível ignorar seu significado político. De um modoou de outro, como sabemos, no Império o rei reinava e governava. Com o discursodo sorites, diz Joaquim Nabuco, começa a fase final do Império.25

Monarquista, Joaquim Nabuco quase sempre elogia o imperador, ao mesmo tempo

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que desnuda, como o fizera seu pai, a natureza institucional do "poder pessoal".'Antes de tudo, o reinado é do imperador. (...) Como está em suas mãos o fazer edesfazer os ministérios, o poder é praticamente dele." Até mesmo quando elogia D.Pedro II – e o faz em diversos momentos, em razão das iniciativas da Coroa emfavor da extinção do tráfico de escravos, da lei do Ventre Livre e da abolição –, acaracterização do "poder pessoal" é inequívoca. "A tradição, a continuidade dogoverno está com ele só. Como os gabinetes duram pouco, e ele é permanente, só eleé capaz de política que demande tempo."

Eis uma realidade da política da época que, contudo, José de Alencar não pareceter sido capaz de compreender ou de aceitar. Como disse Nabuco, oporse aoimperador, opor-se "aos seus planos, à sua política, era renunciar ao poder".26 Foi oque ocorreu com o romancista, menos por haver tido a audácia de colocar em dúvidao bom gosto literário do imperador do que por ter sido demasiado conservador parasuportar as iniciativas abolicionistas da Coroa.

Nas grandes mudanças que começaram em fins dos anos de 1860, já consagradocomo escritor, José de Alencar iniciou seus passos no rumo do ostracismo. Desligou-se do ministério em 1870, um ano antes do Ventre Livre, para se candidatar aoSenado. Foi eleito em lista sêxtupla e, a seguir, preterido pelo imperador. Daí emdiante passou ao ataque ao "poder pessoal" de D. Pedro II, possivelmente com asimpatia de muitos dos seus colegas parlamentares, alguns dos quais viam, porém,com estranheza sua mudança de opinião em relação ao imperador.

É que pouco antes do seu ingresso no governo, como ministro da Justiça, Alencarhavia publicado nas Cartas de Erasmo um elogio do imperador que começa com asseguintes palavras: "Monarca, eu vos amo e respeito". E descrevia D. Pedro II: "Ochefe por quem a parte sã da população almeja; o pensamento diretor contra o qualnão se concebem rivalidades; o centro para onde convirjam as unidades esparsas;sereis vós, senhor. A flor do país se reunirá ao redor do trono. Esse há de ser o vossopartido, o grande partido nacional da regeneração, de cuja substância devem sair osnossos partidos políticos".27 Depois do fracasso de sua pretensão de ingresso noSenado, suas atitudes mudaram.

A lei do Ventre LivreComo era a Coroa que determinava a agenda política do Império, o combustívelprincipal das lutas políticas de fins dos anos de 1860 e inícios de 1870 não viria dascríticas liberais ao "poder pessoal". Não significa que as críticas liberais viessem aser ignoradas, mas as reformas que propunham e que, em boa parte, foram atendidas,ficaram no segundo plano, obscurecidas pelos projetos abolicionistas, nos quais

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trabalhava o Conselho do Império desde 1866. A Coroa e seus Conselheiros – entreos quais Nabuco de Araújo e o marquês de São Vicente – tinham presente, por certo,que há pouco terminara a Guerra de Secessão (1861-1865) nos Estados Unidos,dando fim à escravidão norte-americana, mas ao preço de uma guerra civil que asautoridades brasileiras fariam tudo para evitar.

Quase ao mesmo tempo, em julho de 1866, chegava às mãos do imperador o apeloda Junta Francesa de Emancipação, que dizia: "já abolistes o tráfico; mas essamedida é incompleta. O número dos escravos é menor que o dos homens livres, equase um terço já existe nas cidades exercendo ofícios ou servindo de criados, e éfácil elevá-los à condição de assalariados. A emigração dirigir-se-á para as vossasprovíncias, desde que a servidão tiver desaparecido". D. Pedro II respondeu emtermos que significavam um aceno positivo no rumo da abolição: "A emancipaçãodos escravos, conseqüência necessária da abolição do tráfico, não passa de umaquestão de forma e de oportunidade. Quando as penosas circunstâncias em que seacha o país o consentirem, o governo brasileiro considerará como objeto de primeiraimportância a realização do que o espírito do cristianismo desde há muito reclamado mundo civilizado".

Segundo Joaquim Nabuco, "a iniciativa, o desejo de que se levasse a questão (daAbolição) ao Parlamento, (...) partiu do Imperador" por meio de duas tentativas: aprimeira veio com o ministério de 1866, dirigido pelo liberal Zacarias de Góis eVasconcelos (1815-1877); a segunda, com o de 1871-1875, presidido peloconservador Visconde do Rio Branco, José Maria da Silva Paranhos (1819-1880).28

Confiantes na força de sua própria crítica, os liberais entenderam não participardas eleições de 1869. Mas a decisão da Coroa de retomar o tema da escravidãoganhou predominância no debate político, por meio da reação positiva de D. Pedro IIà mensagem dos abolicionistas franceses. Mais ainda porque a Coroa decidiu, então,pela inclusão do tema da escravatura na Fala do Trono. Foi como "um raio caindo decéu sem nuvens".

Segundo José Murilo de Carvalho, o fato de haver o imperador tocado no tema daescravatura pareceu a muitos, "na perturbação do momento, uma espécie desacrilégio histórico, de loucura dinástica, de suicídio nacional".29 A referência feitaà abolição na Fala do Trono encontrou a "mais virulenta oposição já vista naCâmara", uma oposição, aliás, concentrada nas representações de Rio de Janeiro, SãoPaulo e Minas Gerais, cujas vozes ecoavam para um plenário todo conservador.30

Começava o debate da lei do Ventre Livre, que veio a ser promulgada no primeiroano do governo Rio Branco (1871-1875). A lei definia nos códigos do Império oprincípio de que "na terra da Santa Cruz ninguém mais nasce escravo".31 Seguindoexemplos bem-sucedidos em outros países, dava "à escravidão uma sobrevida de

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vinte anos, ao estabelecer o protetorado do senhor sobre o ingênuo". Mas "suprimiapor completo a perspectiva da reprodução do sistema escravista".32

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Alencar queria a abolição ao fim de uma gradual "revolução dos costumes".

José de Alencar voltou-se contra a proposta da lei e contra o governo que apropunha, por intermédio de manifestações no parlamento que foram percebidas pormuitos como as de um conservador extremado, favorável à escravidão. Como muitosque na época desejavam um aprimoramento das formas institucionais, ele entendiaque a abolição desejável viria por meio de uma gradual "revolução dos costumes".Como conservador, considerava a lei do Ventre Livre uma "revolução efetiva" e, oque é pior, "com a desvantagem de ser a prazo". Considerava a proposta da Coroa,além disso, "iníqua e bárbara", porque libertaria os filhos, deixando escravos ospais.33

Alencar dizia que, "ao invés da liberdade do ventre (...) há outras alforrias" nasquais "o governo devia empenhar-se": "a alforria do voto, cativo do governo; aalforria da justiça, cativa do arbítrio; a alforria do cidadão, cativo da guardanacional; e, finalmente, senhores, a alforria do país, cativo do absolutismo, cativo da

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preponderância do governo pessoal".34 E acusava o chefe do gabinete, o tambémconservador Rio Branco, "por desligar-se do partido para provocar uma guerracivil".35

A Lei do Ventre Livre de 1871 não provocou nenhuma guerra civil, como temiamAlencar e muitos naquele momento. Embora depois de algumas dificuldades naCâmara, o Visconde do Rio Branco conseguiu aprová-la segundo as regras políticasprevalecentes no Império. A proposta de lei contava o apoio da Coroa e, portanto,tinha base para a conquista da maioria, composta em grande parte de funcionáriospúblicos, decerto obedientes ao governo. Além das conseqüências sociais que aprópria lei previa e desejava, o Ventre Livre teve conseqüências políticas.

Ainda segundo José Murilo de Carvalho, deu-se nessa oportunidade "a primeiraclara indicação de divórcio entre o rei e os barões". À lei do Ventre Livre sesomaram ainda outras medidas do gabinete Rio Branco, conduzindo a umprogressivo deslocamento do governo em relação às bases socioeconômicas doEstado. Em 1871, por demanda liberal, foi reformada a lei de 1841, que dera inícioao "regresso". Em 1873, num sentido igualmente liberal, a Guarda Nacional "foipraticamente desmobilizada".36 Embora por mão dos conservadores, o Império quenascera liberal parecia disposto a voltar a sê-lo. Paradoxalmente, é essa disposiçãode renovação liberal que o acompanha em seu ocaso. Como diz Joaquim Nabuco, "ahistória da queda da monarquia não é senão a história da cisão conservadora de1871".37

Alencar morreu em 1877. Morreu ainda jovem, aos 48 anos, e assim não tevetempo de ver os efeitos da crise conservadora e da retomada liberal. A estas sejuntariam mais adiante, prenunciando o fim do Império, a "crise militar", a "questãoreligiosa" e a "idéia republicana".38 O escritor que desejava o fim da escravidão pormeio de uma reforma dos costumes não pôde ver o fim da escravidão por decisão deEstado, em 1888. Também não viu a queda do imperador, a quem jamais perdooupelas desfeitas que recebera como literato e político. Tampouco parece ter sidoperdoado pelo imperador, tão sensível como o adversário. Segundo um biógrafo deAlencar, ao saber da morte do escritor, o imperador teria dito: "era um homeminteligente, mas muito mal-educado".

1. NABUCO, Joaquim. Um estadista do Império. 5. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. v. 1, p. 66 e 68.2. ALVES NETTO, Jeronymo Ferreira. Honório Hermeto Carneiro Leão. Jornal de Petrópolis, 19 a 25 de julho

de 2003, ano 6, n. 345.3. Em 1855, Caxias foi investido do cargo de ministro da Guerra. Em 1857, por moléstia do marquês do

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Paraná, assumiu a Presidência do Conselho de Ministros do Império, cargo que voltaria a ocupar, em 1861,cumulativamente com o de ministro da Guerra. Assumiu a função de senador no ano de 1863. Em 1865,iniciou-se a Guerra da Tríplice Aliança e, em 1866, Caxias foi nomeado comandante-em-chefe das Forçasdo Império em operações contra o Paraguai.

4. CUNHA, Euclides da. À margem da história, Porto: Chardon, 1922. p. 280.5. NABUCO, op. cit., v. 1, p. 73.6. Expressão criada por Bolivar Lamounier para expressar, na cultura política brasileira, uma tendência à

preeminência do Estado sobre a sociedade.7. ANTONIO CANDIDO, apud ALONSO, Angela. Idéias em movimento. A geração 1870 na crise do Brasil-

Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002. p. 57.8. Sobre o papel do IHGB e sua relação com a "política do regresso", ver: WEHLING, Arno. A invenção da

história. Rio de Janeiro: UFF / Universidade Gama Filho, 1994. cap. 9, p. 151-169.9. ALONSO, op. cit., p. 57-58.10. Sobre o período, ver também: RICÚPERO, Bernardo. O romantismo e a idéia de nação (1830-1870). São

Paulo: Martins Fontes, 2004.11. MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira, cit., v. 2, p . 225.12. BOSI, História concisa da literatura brasileira, cit., p. 134. Por "romancetes", refere-se a Cinco minutos

(1856) e A viuvinha (1857).13. ANTONIO CANDIDO. Formação da literatura brasileira (momentos decisivos). v. 2: 1836-1880. Belo

Horizonte: Itatiaia, 1997. p. 200.14. RODRIGUES, Antonio Edmilson Martins. José de Alencar: o poeta armado do século XIX. Rio de Janeiro:

FGV, 2001. p. 21. Ver também: BOSI, História concisa da literatura brasileira, cit., p. 134-135.15. MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira, cit., v. 3, p. 58.16. MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira, cit., v. 3, p. 58-60.17. STEGAGNO-PICCHIO, Luciana. História da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. p.

204; BOSI, História concisa da literatura brasileira, cit., p. 138.18. MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira, cit., v. 3, p. 68.19. STEGAGNO-PICCHIO, op. cit., p. 203-204.20. STEGAGNO-PICCHIO, op. cit., p. 201.21. ANTONIO CANDIDO, op. cit., v. 2., p. 201-202.22. MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira, cit., v. 3, p. 68.23. O sorites é um raciocínio circular. É composto de uma série de proposições ligadas entre si de maneira que

o predicado da primeira tornase o sujeito da seguinte, até à conclusão, que tem como sujeito a primeiraproposição.

24. NABUCO, op. cit., v. 1, p. 766 e 768.25. Ibidem, p. 763.26. Ibidem, p. 1 086.27. Apud Nabuco em: COUTINHO, Afrânio (Org.). A polêmica Alencar-Nabuco. Rio de Janeiro: Tempo

Brasileiro, 1978. p. 212.28. Em Minha formação. Rio de Janeiro: Ministério da Cultura, Fundação Biblioteca Nacional, Departamento

Nacional do Livro, s.d., p. 8. "Eu traduzia documentos do Anti-Slavery Reporter para meu pai que, de 1868a 1871, foi quem mais influiu para fazer amadurecer a idéia da emancipação, formulada em 1866 emprojeto de lei por S. Vicente (Pimenta Bueno). A iniciativa, o desejo de que se levasse a questão aoParlamento, estou convencido, partiu do imperador, que não descansou enquanto o não conseguiu, aprimeira vez de Zacarias, a Segunda de Rio Branco. Eu já disse uma vez que possuo o autógrafo, por letradele, da carta em resposta aos abolicionistas franceses, carta que foi o ponto de partida de tudo." Vertambém: PERDIGÃO MALHEIRO, op. cit., p. 377 e 379.

29. CARVALHO, A construção da ordem, cit., p. 305.

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30. Ibidem, p. 305 e 308-309.31. NABUCO, Um estadista do Império, cit., v. 1, p. 845.32. ALONSO, op. cit., p. 80.33. Ibidem, p. 83.34. SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Dois escritos democráticos de José de Alencar. Rio de Janeiro: UFRJ,

1991. p. 8.35. CARVALHO, A construção da ordem, cit., p. 311.36. Ibidem, p. 315 e 322.37. NABUCO, Um estadista do Império, cit., v. 1, p. 839.38. Ibidem, p. 816.

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A palavra a serviço da justiça: Joaquim Nabuco.

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CAPÍTULO 9

SEGUNDO REINADOJOAQUIM NABUCO: A ESCRAVIDÃO E A "OBRA DA ESCRAVIDÃO"

A raça negra "nos deu um povo (...) construiu o nosso país".

Tudo, absolutamente tudo, que existe no país, como resultado do trabalho manual, como empregode capital, como acumulação de riqueza, não passa de uma doação gratuita da raça que trabalha à

que faz trabalhar.

Nós não somos um povo exclusivamente branco.JOAQUIM NABUCO

Joaquim Nabuco (1849-1910) é um caso raro na história brasileira, de pensador epolítico que se concentrou em um tema: a escravidão. Não que se esqueça a sua obrade diplomata, memorialista e historiador, e sobretudo o grande livro que escreveusobre seu pai. Há que ressaltar, porém, que o predominante na variedade dos seusescritos se junta em torno do mesmo leitmotiv: o combate à escravidão. É de Nabucoo esclarecimento: "por felicidade da minha hora, eu trazia da infância e daadolescência o interesse, a compaixão, o sentimento pelo escravo – o bolbo quedevia dar a única flor da minha carreira".1 Em suas memórias, ele diz que "desdemuito moço havia uma preocupação em meu espírito que ao mesmo tempo me atraíapara a política e em certo sentido era uma espécie de amuleto contra ela: aescravidão. Posso dizer que desde 1868 vi tudo em nosso país através desseprisma".2

Nas condições do Império, não era, porém, um prisma qualquer esse que, nomesmo ano de 1868, deu-lhe motivo para um pequeno e valioso livro, precisamentecom o título A escravidão, que durante muito tempo esteve entre os guardados dafamília e só recentemente veio à luz em forma impressa. Quando o escreveu,Nabuco, rebento de uma família de advogados, promotores e juízes, alguns dosquais, como seu pai, dedicados à política, era um jovem estudante da Faculdade deDireito do Recife. Entre os estudantes, então agitados pelas idéias de Tobias Barreto(1839-1889) e Sílvio Romero (1851-1914) e pelas manifestações anti-escravistas de

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Castro Alves, o jovem Nabuco escrevia ensaios e defendia perante o tribunal negrosacusados de crimes diversos, entre os quais assassínio.3

A política como históriaDe fortes sentimentos em relação aos escravos, os ânimos de Nabuco em relação aoBrasil oscilaram em mais de uma ocasião. Esse pensador brasileiro de um temaradicalmente brasileiro era, contudo, um personagem seduzido pela Europa. Filho,neto e bisneto de senadores do Império, o aristocrata Joaquim Nabuco foi sempre umhomem do mundo. Como muitos intelectuais portugueses e brasileiros antes dele,era um "estrangeirado", termo que praticamente saíra de circulação em sua época.Ele dizia: "Sou antes um espectador do meu século do que do meu país". Comohomem do mundo, andou sempre dividido entre o interesse intelectual pelasquestões gerais da civilização, isto é, da Europa, e o sentimento que o prendia àscoisas da sua terra, em particular sua família, os amigos e as lembranças da infância.

Não há aqui uma interpretação das suas palavras ou do seu comportamento. É dopróprio Nabuco a declaração de uma ambigüidade, de uma divisão entre sentimentoe razão, que, diga-se de passagem, também não era apenas dele. "De um lado do marsente-se a ausência do mundo; do outro, a ausência do país. O sentimento em nós ébrasileiro, a imaginação européia."4 Uma divisão entre o sentimento e a razão que,expressando-se em Nabuco da maneira mais nobre e brilhante, desde sempreacompanhou muitos intelectuais brasileiros. As memórias do homem madurocontam dos deslumbramentos do jovem que, em 1870, tinha maior interesse naderrota e na capitulação de Napoleão III, em Sedan, do que na política do Brasil;que, em 1871, não se interessava tanto pela formação do Gabinete Rio Branco comopelas notícias sobre o incêndio de Paris. Em 1872, o que mais o interessava era, emPortugal, o terceiro centenário dos Lusíadas. Em 1873 foi à Europa, em sua primeiraviagem, diz ele, com uma ambição sem limites "de conhecer homens célebres detoda ordem".

Joaquim Nabuco foi, sem dúvida, um homem de extrema generosidade e coragem,que abraçou a mais relevante causa nacional e popular do seu tempo. Alguns dosseus escritos podem por isso surpreender o leitor de hoje pelo pedantismo com quena juventude mencionou seu país. Diferente de Alencar, conservador e escravocrata,que dizia construir a sua literatura a partir de seu amor pelos espaços e pelasflorestas do país, Nabuco, um monarquista liberal que se tornou um campeão doabolicionismo, manifesta às vezes um desinteresse pelas paisagens brasileiras que seestende a todo o Novo Mundo. "As paisagens todas do Novo Mundo, a florestaamazônica ou os pampas argentinos, não valem para mim um trecho da Via Appia,

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uma volta da estrada de Salerno a Amalfi, um pedaço do cais do Sena à sombra dovelho Louvre. No meio do luxo dos teatros, da moda, da política, somos sempresquatters [povoadores, colonizadores], como se estivéssemos ainda derribando amata virgem."5

Como entender então que esse jovem aristocrata, uma das figuras elegantes de seutempo, que alguns consideravam um dândi, tenha se tornado "o advogado ex-officioda porção da raça negra ainda escravizada"?6 Sabemos que a Nabuco interessava "apolítica que é história". Não lhe interessava "a política propriamente dita, que é alocal, a do país, a dos partidos", mas a ação do "drama contemporâneo universal".Permanece, porém, a pergunta: como entender que em meio a seus fascínios edeslumbramentos europeus de jovem e de homem maduro encontrasse tempo eânimo para se engajar em uma causa social no Brasil, cujas paisagens não lhe valiam"um trecho da Via Appia"? É o próprio Nabuco quem resolve o paradoxo. Em 1871,diz ele, o que prendia a sua atenção no Brasil era a "luta pela emancipação" dosescravos. "Não será também nesse ano o Brasil o ponto da terra para o qual estávoltado o dedo de Deus?"7 Se nos lembrarmos da sua compaixão pelos escravos,para onde mais poderia, aliás, estar voltado o dedo de Deus? Estava no Brasil,portanto – mais especificamente, na questão dos escravos –, a ação de interesseuniversal.

Quanto ao fascínio pela Europa, Nabuco não apenas era diferente de Alencar, oque será óbvio a quem tenha lido a polêmica que travaram em 1875. Era diferentetambém de José Bonifácio, que, mais europeu do que ele pela experiência de vida,insistiu em que havia de afirmar a beleza dos nossos usos e costumes, "ainda que aEuropa se ria de nós". Tinha, porém, em comum com Alencar e Bonifácio o interessepela política e pelas letras, como era, aliás, freqüente entre os políticos e as elites doImpério, que, com maior ou menor intensidade, cultivavam as coisas do espírito. Enesse cultivo, como sabemos, as elites do Império, como as que vieram depois, naRepública, tinham sempre, quaisquer que tenham sido as variações do seu ânimocosmopolita ou nacionalista, um olhar voltado para a Europa.

Se as declarações cosmopolitas de Nabuco soam pedantes, em todo casodiferentes do que se sabe da maioria desses intelectuais, isso serve apenas pararessaltar a clareza e a coragem com que o grande abolicionista enfrentou suaspróprias oscilações de sentimento e, sobretudo, suas opções intelectuais. "Umaafeição maior, um interesse mais próximo, uma ligação mais íntima, faz com que acena, quando se passa no Brasil, tenha para mim importância especial, mas isto nãose confunde com a pura emoção intelectual; é um prazer ou uma dor, por assim dizerdoméstica, que interessa o coração; não é um grande espetáculo, que prende edomina a inteligência."8 A exceção, já se viu, que une a razão e a paixão é a

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emancipação dos escravos, que aponta para o Brasil o dedo de Deus. Nabucoconsiderou a abolição "a mais bela nova que em meus dias Deus pudesse mandar aomundo".9

Nabuco versus AlencarO carinho de Joaquim Nabuco pelo pai também não há de ter sido exceção numasociedade tradicional em que as relações de família eram muito mais fortes do quehoje. Foi, assim, mais pelas razões do coração do que pelas do intelecto que, tendoregressado da Europa, Nabuco decidiu tomar a primeira oportunidade para abrirpolêmica contra José de Alencar. Ele reconheceu "ferinas alusões" a seu pai, osenador Nabuco de Araújo, em um romance recém-publicado de Alencar, Guerrados mascates. Alencar registrava em certo ponto: "bem se vê quanto já era abundantede letrados a cidade de São Sebastião e se naquele tempo estivesse em uso aempreitada de códigos e leis, não faltaria quem a tomasse". Segundo o historiadorWilson Martins, essa frase podia ser vista como "uma provocação direta à famíliaNabuco, cujo chefe, alguns meses antes, havia precisamente firmado com o governoo contrato pelo qual se obrigava a concluir um código civil brasileiro no prazo decinco anos, a contar de 1° de janeiro de 1873".10 Joaquim Nabuco passou a esperarpor uma oportunidade de resposta, que surgiu em 1875, quando Alencar, habituadoaos êxitos, vinha enfrentando um enorme fracasso de público e de crítica com umapeça de teatro, O jesuíta.

Assim como o jovem Alencar, impregnado de um romantismo nacionalista,entrara na vida literária contra Gonçalves de Magalhães, o jovem Joaquim Nabuco,imbuído de um liberalismo cosmopolita, não poderia escolher melhor adversáriopara o seu próprio ingresso. As insinuações do autor d'O guarani diziam respeito aalgo de certa seriedade, menos pelo que pudessem pretender como denúncia, e maispelo que revelavam das indecisões e das ambigüidades da mentalidade dominante naCorte. Não fossem as ferinas alusões vindas de Alencar, que além de notável escritorera advogado, várias vezes deputado, e fora ministro da Justiça, não deveria havernada de espantoso no fato de um jurista de renome como Nabuco de Araújo sercontratado para a tarefa de escrever o código civil. Mas compreende-se que, numasociedade hierárquica e elitista em que sabidamente o poder reservava favores aosamigos, a pequena cidade do Rio de Janeiro de então transformasse em escândalosde proporções meras maledicências, que no mais das vezes não tinham outraconseqüência além de irritar os atingidos.

O mais sério disso tudo - e que nenhum dos contemporâneos podia saber naquelemomento - é que, ao fim dos mencionados cinco anos, o tal código civil não estaria

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pronto. E não por falta de empenho ou competência do velho Nabuco de Araújo, queadoeceu, vindo a falecer antes de poder terminar a tarefa. Havia também a força dasambigüidades sociais e políticas do Império, que postergaram por décadas aelaboração do documento. Entendia-se que, num código civil que se pretendiaduradouro, não tinha sentido definir a condição do escravo, que, depois da lei doVentre Livre, deixaria de existir em prazo previsível. Nem pretendiam as elitesimperiais definir a condição do escravo em um código à parte, um "código negro",ao modo dos Estados Unidos. Assim, na indecisão, o código foi ficando para depois.Só veio a ser concluído por Clóvis Bevilacqua (1859-1944), designado para a tarefatrinta anos depois do falecimento de Nabuco de Araújo. No intervalo, veio aabolição, caiu o Império, e a República completou seus primeiros dez anos, sob ogoverno de Campos Sales (1841-1913).11

Duas visões do BrasilEmbora envolvendo questões pessoais, a polêmica entre Alencar e Nabuco serviriapara que se confrontassem duas visões da cultura e duas visões do Brasil. As críticasde Nabuco a Alencar "se enquadram na reação anti-romântica da década de 1870 (...)no sentido do realismo e do naturalismo. (...) O indianismo, o condoreirismo, osubjetivismo, a sentimentalidade constituíam os principais bodes expiatórios".12

Como os de sua geração, o "ocidentalista" Nabuco, a quem Alencar acusa de ser um"folhetinista parisiense", buscava uma interpretação do país enfatizando as suasraízes européias. E, por razões pessoais e políticas, desqualificou Alencar nos meiosintelectuais quando lembrou suas oscilações políticas e sua posição na Câmaracontraria à lei do Ventre Livre. Para Nabuco, Alencar era o "dramaturgoescravagista" cujo teatro se acharia "limitado por uma linha negra e nacionalizadopela escravidão". "A escravidão", dizia Nabuco, "é a atmosfera do seu teatro; os seuspersonagens respiram nela, e desenvolvem-se com perfeita indiferença nesse meiocorrompido".

A acusação é pertinente quanto ao comportamento do Alencar político, masexagerada quanto ao dramaturgo, que só em duas peças tratou da escravidão. Alémdisso, em Alencar, mais importante do que o teatro é o romance. A este, porém,Nabuco nega o que Alencar mais preza, o caráter nacional: "Lucíola não é senão aDame aux Camélias adaptada ao uso do demi-monde fluminense, cada novo romanceque faz sensação na Europa tem uma edição brasileira dada pelo Sr. J. de Alencar,que ainda nos fala da originalidade e do 'sabor nativo' dos seus livros".13 Mais dura éa crítica aos romances indianistas, os quais "podiam ter sido escritos por um maudiscípulo de Cooper ou de Chateaubriand, sem nada perder seu 'sabor nativo'".14

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Menino branco e "mãe preta": afetos e carinhos.

A acusação política ao conservadorismo escravista de Alencar e a suas oscilaçõespolíticas teria tido um efeito avassalador num momento em que o autor d'O guaranibuscava aproximar-se dos republicanos. Segundo Nabuco, Alencar, que fizera por seaproximar de D. Pedro II até ser designado ministro da Justiça, passou a criticar oimperador depois que este o rejeitou para o Senado. "Depois dessa 'contrariedade' oSr. J. de Alencar tornou-se um inimigo declarado do governo pessoal, mas qual a suaposição política? Em que partido? Que idéias apóia?" No debate sobre o VentreLivre, "combateu denodadamente pela escravidão; hoje ninguém poderia dizer o queele quer, ele mesmo não o sabe".15

Alencar retrucou dizendo que Nabuco se achava entre "certos escritoresempenhados em desnacionalizar seu país, e para os quais a pátria não é senão oEstado com seu parlamento, seus códigos e outros acessórios". Quanto à escravidão,"manifestei-me sempre em favor de sua extinção espontânea e natural, que deviaresultar da revolução dos costumes".16 Dizia que a existência da escravidão envolviauma cumplicidade que se estendia a todos: "Se há questão em que ninguém tenha odireito de lançar pedra é esta. Os próprios emancipadores eram escravagistas um,

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dois ou três anos antes, e ficaram sendo-o depois da lei de 1871, porque deixaramsubsistir a instituição, e com uma injustiça clamorosa, ensinando os filhos adesprezar os pais".17

Dizia o romancista: "A escravidão é um fato de que todos nós brasileirosassumimos a responsabilidade, pois somos cúmplices nele como cidadãos doImpério. Nenhum filho desta terra, por mais adiantadas que sejam suas idéias, tem odireito de eximir-se à solidariedade nacional, atirando ao nome da pátria, como umestigma, os erros comuns. Exprobrar a seus predecessores o atraso de que eles nãotêm culpa; detrair o passado para avolumar a sua individualidade; fazer da memóriados progenitores e da dignidade do país troféu para o seu ídolo caricato; éprocedimento que, espero em Deus, não fará exemplo no Brasil. O folhetinistanasceu como a geração coeva em um país de escravos, no seio de uma respeitável eilustre família servida por escravos".18 De algum modo, o entendimento de Alencarsobre a escravidão como algo que dizia respeito a todos não era muito diferente doque veio a singularizar a obra de Nabuco.

O mandato do escravoMorto o senador Nabuco de Araújo, em 1878, seu filho Joaquim foi eleito deputadoem 1879, vindo a participar como uma das figuras mais expressivas da campanhaabolicionista que ressurgiu depois da longa calmaria política que se seguiu à lei doVentre Livre. O jovem aristocrata, que sempre proclamou suas afinidades com oliberalismo inglês, retomou os passos de outros brasileiros favoráveis à abolição,como José Bonifácio, Perdigão Malheiro (1824-1881) e Jerônimo Sodré. E juntou-sea Joaquim Serra (1830-1888), Aníbal Falcão (1859-1900) e Gusmão Lobo, ao ladode intelectuais negros como André Rebouças (1833-1898), José do Patrocínio (1854-1905) e Luiz Gama (1830-1882).

Com esses campeões do abolicionismo, Joaquim Nabuco reivindicou, perante oImpério, a representação do "mandato do escravo". Uma expressão que tinha mais degenerosidade do que de lógica, como Nabuco sabia muito bem. Ele afirmava, comoem O abolicionismo, se tratar de uma "delegação inconsciente da parte dos que afazem, interpretada pelos que a aceitam como um mandato a que não se poderenunciar". Faltava ao escravo o pressuposto da cidadania que informa apossibilidade de um representante e, portanto, de um mandato: "com a escravidãonão há governo livre, nem democracia verdadeira; há somente governo de casta eregime de monopólio. As senzalas não podem ter representantes, e a populaçãoavassalada e empobrecida não ousa tê-los".19

Efeito de sua entranhada formação liberal, Nabuco diz que entrou para a Câmara

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como se fosse "um liberal inglês (...) no Parlamento brasileiro". "Tão inteiramentesob a influência do liberalismo inglês, como se militasse às ordens de Gladstone."20

Uma declaração que talvez se explique também pela importância que a Inglaterra eos Estados Unidos chegaram a alcançar no abolicionismo brasileiro. A Inglaterrateve influência decisiva no término do tráfico (1850), e os Estados Unidos a ela sejuntaram para apoiar a campanha abolicionista dos anos 1880.

Quando o movimento se iniciou havia no Brasil dois milhões de escravos. Entre aselites e as classes altas muitos pensavam que a abolição arruinaria a lavoura e ocrédito nacional. Não obstante, como observa Nabuco, a causa abolicionista seduziua muitos entre os estudantes, a imprensa, os magistrados e os padres. Tinha também"afinidades profundas com o mundo operário e com o exército, recrutado depreferência entre os homens de cor; (operou) como um dissolvente sobre a massados partidos políticos".21 Quanto à Igreja, como instituição, e ao contrário do quesucedeu em outros países, esta nunca se expressou a favor da abolição, com exceçãode uma manifestação dos bispos depois de vitorioso o movimento.

A escravidão como fenômeno totalNabuco escreveu os melhores estudos da época sobre a escravidão, formando, juntocom Perdigão Malheiro, que o antecede, uma referência até hoje obrigatória napesquisa sobre o assunto. Sobre a campanha abolicionista, Nabuco ainda é a maiorautoridade. Em seus escritos, como O abolicionismo, de 1883, em geral concebidosno calor da hora, é sempre difícil distinguir entre a crítica do político e análise dohistoriador e do sociólogo. Nabuco também continua a ser o principal intérprete doSegundo Reinado, que viu findar. Com apoio nos arquivos de seu pai e nas própriaslembranças, dedicou vários anos a escrever um livro – Um estadista do Império –que permanece entre os monumentos maiores da historiografia brasileira.

Como bem esclarece Evaldo Cabral de Mello, em posfácio a Um estadista doImpério, Joaquim Nabuco foi o primeiro dentre os intelectuais brasileiros a explicara sociedade brasileira por meio do regime servil. Diz Cabral de Mello que Nabucoentendeu a escravidão "não como um fenômeno a mais" e sim como "a variantesociológica mais abrangente", "aquela que ilumina mais poderosamente o nossopassado". "Com referência à escravidão é que se definiu entre nós a economia, aorganização social e a posição das classes e das ordens, a estrutura do estado e dopoder político, o próprio sistema de idéias." "Com referência à escravidão, definira-se inclusive a existência de grupos e classes que viviam à sua margem, como apopulação livre mas pobre dos 'lavradores que não são proprietários', dos meeiros,dos 'moradores do campo ou do sertão', e de atividades que não lhe estavam

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diretamente vinculadas."Nesse sentido, Joaquim Nabuco foi o primeiro dos nossos intelectuais a ver na

escravidão brasileira o que alguns sociólogos designam como um "fenômeno socialtotal". Também nisso, registra Cabral de Mello, acompanhando Nabuco, o Brasil édiferente dos Estados Unidos. Lá, a escravidão, que prosperou mais no sul do que nonorte, "não afetara a constituição social toda"; aqui, "a circulação geral, desde asgrandes artérias até os vasos capilares, serve de canal às mesmas impurezas".22 Ou,como diz Nabuco na forma heróica e polêmica de O abolicionismo, "Brasil eescravidão tornaram-se assim sinônimos". Uma outra formulação da mesma idéia:"Quando o sr. Silveira Martins disse no Senado 'O Brasil é o café, e o café é o negro'- não querendo por certo dizer o escravo - definiu o Brasil como fazenda, comoempresa comercial de uma pequena minoria de interessados, em suma, o Brasil daescravidão atual".23

É a partir desse completo envolvimento da sociedade e do Estado com aescravidão que se deve entender a menção de Nabuco, em certa passagem de Umestadista do Império, às responsabilidades de seu pai como ministro de Estado. ANabuco de Araújo se devem importantes iniciativas em prol da abolição, que foram,porém, obscurecidas pela atmosfera social predominante. "(...) a responsabilidade deNabuco (de Araújo) é de ter exercido uma faculdade de que o poder público estavade posse desde os tempos coloniais, em virtude da qual os escravos tidos porperigosos e recalcitrantes eram colhidos por tempo ilimitado ao calabouço, e aícastigados ou mandados servir com os presos por sentença. Era esse o regime daescravidão, por sua natureza bárbaro, um como que estado de sítio permanente paraa escravatura, porque só pelo rigor se podia manter a submissão de grandes massasde homens ao poder absoluto de uma pessoa. Em todos os tempos homens decoração o mais brando e compassivo impuseram penas cruéis; as penas que nósimpomos hoje parecerão igualmente bárbaras às gerações que hão de vir depois.Todos os homens de governo entre nós, todos os depositários de uma parcela quefosse de autoridade, durante o período da escravidão, concorreram, direta ouindiretamente, para sustentar uma tirania pérfida, inquisitorial, torturante. (...) Omecanismo da instituição servil estava todo montado e funcionava automaticamente.A autoridade era requisitada a toda hora a prestar braço forte à escravidão."24

Porque foi um "fenômeno social total", a abolição da escravatura teria que ser umtema independente de opção partidária. Teria que envolver todos os partidos. E, defato, não houve, no Brasil, em público ao menos, partido que se dispusesse adefender, em princípio, a escravidão, como houve quem o fizesse nos EstadosUnidos da época. Por outro lado, achavam-se todos os partidos por demaiscontaminados pela escravidão para tomar a iniciativa de destruí-la. Mesmo Rio

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Branco, o escolhido do monarca para fazer aprovar a lei do Ventre Livre, expressousuas opiniões sobre o tema de maneira bastante matizada e cuidadosa no Conselhodo Império: "Não há entre nós um partido que tomasse a peito a abolição daescravidão. Ninguém supunha essa medida tão próxima, nem os proprietários rurais,nem o comércio, nem a imprensa, nem as Câmaras Legislativas".25

A reforma, portanto, teria que vir pelo alto. Porque a escravidão era um fenômenoque afetava a tudo e a todos, só podia ser superada por iniciativas vindas da própriaCoroa. Só o imperador podia enfrentar o grande drama nacional, mesmo ao custo dese afastar dos seus barões e de suas bases econômicas e sociais. Teria que reformar asociedade, mesmo ao preço de afastar-se dela.

Assim, quando o imperador se propôs a realizar a abolição, afastou-se dossenhores de escravos e dos conservadores, sem que isso o aproximasse dos liberais.Mais adiante, as dificuldades viriam pelos lados do exército e da Igreja. Diz Nabucosobre a Coroa, em sua interpretação sobre a crise final do Império: "as três forçasque podiam mais cooperar para sustentá-la artificialmente, o exército, o clero e agrande propriedade, dispensou-as todas".26 Em O abolicionismo, previa o desenlaceinelutável: "o Governo paira acima das Câmaras, e, quando seja preciso repetir ofenômeno de 1871, as Câmaras hão de se sujeitar, como então fizeram. Essa é aforça capaz de destruir a escravidão, da qual aliás dimana, ainda que, talvez, venhama morrer juntas".27

O escravo e a alma nacionalTambém em um sentido cultural, a escravidão afetava a todos, formava e deformavaa todos. Algumas páginas de Nabuco em suas memórias descrevem a atmosfera dos"engenhos do Norte" em termos que prenunciam a antropologia de Gilberto Freyresobre a presença cultural do escravo na família patriarcal.

Por exemplo, quando fala da "saudade do escravo". Mesmo tendo sido umardoroso abolicionista - "eu combati a escravidão com todas as minhas forças,repeli-a com toda a minha consciência" - na hora em que a viu acabar começou asentir saudade. "Na hora em que a vi acabar, pensei poder pedir também minhaalforria", considerando "ter ouvido a mais bela nova que em meus dias Deus pudessemandar ao mundo". Quando teve a experiência de que a escravidão estava extinta,sentiu "uma singular nostalgia".

Essas anotações de Minha formação antecipam algumas das melhores páginas deCasa-grande & senzala. Aprofundando-se no exame do aspecto cultural da formaçãobrasileira, diz Nabuco que "a escravidão permanecerá por muito tempo como a

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característica nacional do Brasil. Ela espalhou por nossas vastas solidões umagrande suavidade". O contato do país com a escravidão "povoou-o, como se fosseuma religião natural e viva, com os seus mitos, suas legendas, seus encantamentos;insuflou-lhe sua alma infantil, suas tristezas sem pesar, suas lágrimas sem amargor,seu silêncio sem concentração, suas alegrias sem causa, sua felicidade sem diaseguinte". Da escravidão que conheceu em sua infância, eis um registro que valepara muitos da elite da sua época: "quanto a mim, absorvi-a no leite preto que meamamentou; ela envolveu-me como uma carícia muda toda a minha infância".28

Nas memórias de sua formação pessoal anotam-se aspectos centrais da formaçãocultural do país, como neste comovente depoimento: "Eu estava uma tarde sentadono patamar da escada exterior da casa, quando vejo precipitar-se para mim umjovem negro desconhecido, de cerca de dezoito anos, o qual se abraça aos meus péssuplicando-me, pelo amor de Deus, que o fizesse comprar por minha madrinha, parame servir. Ele vinha das vizinhanças, procurando mudar de senhor, porque o dele,dizia-me, o castigava, e ele tinha fugido com risco de vida... Foi este o traçoinesperado que me descobriu a natureza da instituição, com a qual eu vivera atéentão familiarmente, sem suspeitar a dor que ela ocultava".29

É a partir de declarações como essa que se pode suspeitar sobre motivos maisprofundos para as oscilações do sentimento e da razão em Nabuco. Devia haver algode mais sofrido em seu mal-estar em face das coisas do Brasil de sua época. Talvezsuas oscilações de ânimo tivessem origem menos no deslumbramento pelosrefinamentos europeus do que na profunda indignação contra uma injustiça com aqual "vivera até então familiarmente".

A raça negra "nos deu um povo"Antecipando-se quase um século às elites às quais pertencia, Nabuco inaugurou nopensamento político brasileiro o complexo processo intelectual do reconhecimentoda existência do povo. Porque a escravidão tomou no Brasil o caráter de um"fenômeno social total", o abolicionismo tomaria o caráter de uma "reforma políticaprimordial".

Para Nabuco, "a grande questão para a democracia brasileira não é a monarquia, éa escravidão".30 Mais do que uma reforma política, como aquela da qual se falavaem seu tempo, restrita aos partidos e ao parlamento, a abolição deveria ser o pontode partida de uma "refundação" do Brasil. Diferente do abolicionismo nos EstadosUnidos e na Europa, o abolicionismo brasileiro quis "reconstruir o Brasil sobre otrabalho livre e a união das raças na liberdade".

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Nos Estados Unidos, na França e na Inglaterra "não se queria a raça negra paraelemento permanente de população, nem como parte homogênea da sociedade". NosEstados Unidos "ninguém sonhara para o negro ao mesmo tempo a alforria e o voto".Para Nabuco, o ponto fundamental está em que, no Brasil, "a raça negra é umelemento de considerável importância nacional, estreitamente ligada por infinitasrelações orgânicas à nossa constituição, parte integrante do povo brasileiro". A raçanegra "nos deu um povo", "construiu o nosso país". "Tudo, absolutamente tudo queexiste no país, como resultado do trabalho manual, como emprego de capital, comoacumulação de riqueza, não passa de uma doação gratuita da raça que trabalha à quefaz trabalhar." "Nós não somos um povo exclusivamente branco." Assim, aqui aemancipação significará "a eliminação simultânea dos dois tipos contrários, e nofundo os mesmos: o escravo e o senhor".31

A emancipação dos escravos era, para Nabuco, "apenas o começo de umRinnovamento, do qual o Brasil está carecendo de encontrar o Gioberti e, depoisdele, o Cavour".

Talvez essa capacidade de antecipação intelectual de Joaquim Nabuco tenha adever muito ao fato de que ele pretendia mais do que a abolição da escravatura.Pretendia também a destruição da "obra da escravidão", todo o vasto sistema demiséria e desigualdade que esta criara. Nas últimas páginas de O abolicionismo, eleproclama a necessidade de uma reforma "de nós mesmos, do nosso caráter, do nossopatriotismo, do nosso sentimento de responsabilidade cívica" como o único meio desuprimir efetivamente a escravidão da constituição social do país.

É que o grande abolicionista entendia que o Brasil seria "uma sociedade não sóbaseada, como era a civilização antiga, sobre a escravidão, e permeada em todas asclasses por ela, mas também constituída, na sua maior parte, de secreções daquelevasto aparelho". Não escapa dessa contaminação a religião, pois "no regime daescravidão doméstica o cristianismo cruzou-se com o fetichismo, como se cruzaramas duas raças".32 Do mesmo modo, produziu-se a contaminação do conceito depátria, pois confundiu-se o país com a escravidão a tal ponto que o combate a estapodia soar como crime de lesa-pátria.

Sociologia do escravoNão creio exagerado afirmar que a obra desse pensador de fins do século XIXinspirou o melhor do pensamento social e político brasileiro da primeira metade doséculo XX.

Ele foi o primeiro entre os nossos intérpretes a estabelecer diferenças sociológicas

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entre as regiões e, no âmbito destas, entre a cidade e o campo. À maneira sumária dopolemista em campanha, são dele algumas intuições fundadoras de parte substancialda sociologia brasileira que virá, seja em algumas das páginas de Os sertões, sejanas primeiras obras dos "intérpretes do Brasil", nos anos de 1920 e 1930.Começando pelo Norte (para se referir ao Nordeste), descreveu a pobreza e a misériados seus interiores como "resultado final daquele sistema", ou seja do "regime daterra sob a escravidão (que) consiste na divisão de todo o solo explorado em certonúmero de grandes propriedades".33

Antecipando-se quase meio século a Oliveira Viana, Nabuco descreveria essasgrandes propriedades como "feudos (que) são logo isolados".34 "É a divisão de umavasta província em verdadeiras colônias penais, refratárias ao progresso", que nãotrazem "benefício algum permanente à região parcelada, nem à população livre quenela mora, por favor dos donos da terra, em estado de contínua dependência".Quanto às cidades, como resultado de trezentos anos de escravidão, são as cidades"por assim dizer mortas", "quase todas decadentes". As "fazendas ou engenhosisolados, com uma fábrica de escravos, com os moradores das terras na posição deagregados do estabelecimento, de camaradas ou capangas" não podem dar lugar àaparição de cidades autônomas "que vivifiquem com os seus capitais e recursos azona onde se estabeleçam".35

Segundo Nabuco, os interiores do Sudeste, em particular das províncias do Rio deJaneiro e de Minas Gerais, não apresentam cenário muito diferente do Norte(Nordeste). Abre, nessas localidades, exceção para as regiões do café, nas quaisreconhece, como na província de São Paulo, alguma capacidade de crescimento. Masainda essas regiões prósperas apresentariam a vulnerabilidade de depender de umproduto único. O café, como o açúcar no Norte, poderia decair diante da competiçãointernacional. Nabuco vê com pessimismo o progresso paulista baseado namonocultura: "quando passar o reinado do café (...) o Sul há de ver-se reduzido aoestado do Norte".

O abolicionista considera um exagero o entusiasmo de alguns que chamaram ospaulistas "os yankees do Brasil". Coerente com sua visão da escravidão comofenômeno geral, afirma, drasticamente, que o Brasil "não tem yankees". Seupessimismo com relação a São Paulo é, porém, suavizado por uma observação: "porter entrado no seu período florescente no fim do domínio da escravidão, há derevelar na crise maior elasticidade do que as suas vizinhas". Quanto a Paraná, SantaCatarina e Rio Grande do Sul, expressa a mesma confiança de sua época naimigração européia que "infunde sangue novo nas veias do povo".

Além do reconhecimento das diferenças regionais, entra também no tema damestiçagem, combinando a abordagem cultural e a política. Como no Brasil a

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escravidão, ainda que fundada sobre a diferença das duas raças, "nunca desenvolveua prevenção da cor", os contatos, desde a colonização primitiva dos donatários atéhoje, produziram uma população mestiça. Crescimento da mestiçagem étnica ecultural que torna mais complexa a realidade social e política do país porque osescravos, ao receber a carta de alforria, recebiam também a investidura de cidadão.Assim, eles podiam, "na penumbra do cativeiro, comprar escravos, talvez, quemsabe? – algum filho do seu antigo senhor". A confusão de classes e indivíduos e aextensão ilimitada dos cruzamentos sociais entre escravos e livres fazem da maioriados cidadãos brasileiros "mestiços políticos". Nesses "mestiços políticos" combatem"duas naturezas opostas: a do senhor de nascimento e a do escravo domesticado".36

Não lhe escapa à atenção a natureza peculiar do Estado nessa sociedadeescravocrata, numa antevisão do Estado Cartorial definido por Helio Jaguaribe.Nabuco vê nos empregados públicos a classe mais numerosa do sistema e afirma quecom o crescimento dessa classe enraizou-se no país "a superstição do Estado-providência". Do Estado deve vir tudo, pois "sendo a única associação ativa, aspira eabsorve pelo imposto e pelo empréstimo todo o capital disponível e distribui-o, entreos seus clientes, pelo emprego público". Suga as economias do pobre e tornaprecária a fortuna do rico, e, como conseqüência, "o funcionalismo é a profissãonobre e a vocação de todos". É "o asilo dos descendentes das antigas famílias ricas efidalgas, que desbarataram as fortunas realizadas pela escravidão. (...) É além dissoo viveiro político, porque abriga todos os pobres inteligentes. (... ) Faça-se uma listados nossos estadistas pobres, de primeira e segunda ordem, e que resolveram o seuproblema individual pelo casamento rico, isto é, na maior parte dos casos, tornando-se humildes clientes da escravidão; e outra dos que o resolveram pela acumulação decargos públicos, e ter-se-ão, nessas duas listas, os nomes de quase todos eles".37

AdvertênciaConhecedor da obra dos seus precursores, Nabuco menciona a conclamação de JoséBonifácio, de 1823: "Generosos cidadãos do Brasil, que amais a essa Pátria, sabeique sem a abolição total do infame tráfico da escravatura africana, e semEmancipação sucessiva dos atuais cativos, nunca o Brasil firmará a suaindependência nacional e segurará e defenderá a sua liberal constituição; semliberdade individual não pode haver civilização, nem sólida riqueza; não pode havermoralidade e justiça".38 Bonifácio não esperava que suas aspirações se realizassemno dia seguinte, mas a verdade é que tomaram muito mais tempo do que ele podiaimaginar. O tráfico de escravos levaria ainda 27 anos para ser extinto, e a aboliçãodemoraria 75 anos.

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Como José Bonifácio, Nabuco foi um desses raros lutadores em que a paixãoconvive com uma extrema lucidez. Por isso advertiu, mesmo antes da abolição, queembora o abolicionismo destruísse a escravidão, poderia permanecer a "obra daescravidão". "Depois que os últimos escravos houverem sido arrancados ao podersinistro que representa para a raça negra a maldição da cor, será ainda precisodesbastar, por meio de uma educação viril e séria, a lenta estratificação de trezentosanos de cativeiro, isto é, de despotismo, superstição e ignorância. O processo naturalpelo qual a Escravidão fossilizou em seus moldes a exuberante vitalidade do nossopovo durou todo o período do crescimento, e enquanto a Nação não tiver consciênciade que lhe é indispensável adaptar à liberdade cada um dos aparelhos do seuorganismo de que a escravidão se apropriou, a obra desta irá por diante, mesmoquando não haja mais escravos."39

Nabuco, que competia em paixão e clarividência com o Patriarca, mais uma vezestava certo. Suas idéias deveriam ter um destino similar, muitas delas até hojeesperando pela oportunidade de se realizar. O abolicionismo venceu, mas a "obra daescravidão", sob muitos aspectos, permanece.

1. NABUCO, Joaquim. Minha formação. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional / DepartamentoNacional do Livro / Ministério da Cultura, s. d. p. 46.

2. NABUCO, Minha formação, cit., p. 8.3. NABUCO, Joaquim. A escravidão. Organização e apresentação de Leonardo Dantas Silva; prefácio de

Manuel Correia de Andrade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. p. xv. Outras obras de Nabuco são:Camões e os Lusíadas (1872); Amour et Dieu, poesia (1874); O abolicionismo (1883); O erro doimperador, história (1886); Escravos, poesia (1886); Por que continuo a ser monarquista (1890);Balmaceda, biografia (1895); A intervenção estrangeira durante a revolta, história diplomática (1896); Umestadista do Império, biografia, 3 tomos (1897-1899); Minha formação, memórias (1900); Escritos ediscursos literários (1901); Pensées detachées et souvenirs (1906); Discursos e conferências nos EstadosUnidos (1911).

4. NABUCO, Minha formação, cit., p. 11.5. Ibidem.6. NABUCO, Joaquim. O abolicionismo. Introdução de Francisco Iglésias. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2000.

p. 25.7. NABUCO, Minha formação, cit., p. 10.8. Ibidem.9. Ibidem, p. 49.10. MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira, cit., v. 3, p. 429-430.11. O Código Civil, definido pela Constituição de 1824, foi solicitado pela Coroa em 1858 a Teixeira de

Freitas, cuja elaboração não foi aceita. Rescindido o contrato com Teixeira de Freitas, a tarefa passou em1872 a Nabuco de Araújo, que faleceu antes de concluída a obra. Depois de novas tentativas no Império, ocódigo veio a ser elaborado, após a proclamação da República, por Clóvis Bevilacqua, designado para esse

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trabalho em 1899 pelo presidente Campos Sales. Cf. DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro.15. ed. Rio de Janeiro: 1999. v. 1, p. 47-48.

12. Afrânio Coutinho, in: COUTINHO (Org.), op. cit., p. 6; as citações seguintes são de artigos de Alencar eNabuco recolhidos nessa publicação.

13. Nabuco, in: COUTINHO (Org.), op. cit., p. 135.14. Ibidem, p. 210.15. Ibidem, p. 216.16. Alencar, in: COUTINHO (Org.), op. cit., p. 58.17. Ibidem, p. 120.18. Ibidem, p. 119-120.19. NABUCO, O abolicionismo, cit. p. 66-67.20. NABUCO, Minha formação, cit., p. 47.21. Ibidem, p. 51.22. MELLO, Evaldo Cabral de. Um livro elitista?; posfácio a: NABUCO, Um estadista do Império, cit., v. 2, p.

1324.23. NABUCO, O abolicionismo, cit., p. 106.24. NABUCO, Um estadista do Império, cit., v. 1, p. 238.25. CARVALHO, A construção da ordem, cit., p. 305.26. NABUCO, Um estadista do Império, cit., v. 1, p. 966.27. NABUCO, O abolicionismo, cit., p. 137.28. NABUCO, Minha formação, cit., p. 49.29. Ibidem.30. Cf. ibidem, p. 46.31. NABUCO, O abolicionismo, cit., p. 32-33.32. Ibidem, p. 155 e 123.33. Ibidem, p. 102.34. Ibidem, p. 102.35. Ibidem, p. 102-103.36. Ibidem, p. 112 e 114.37. Ibidem, p. 119.38. Ibidem, p. 51-52.39. Ibidem, p. 5.

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PARTE IV

PRIMEIRA REPÚBLICA

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Sobreviventes de Canudos: "rudes patrícios indomáveis" que a República não foi capaz decompreender.

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CAPÍTULO 10

EUCLIDES DA CUNHAA REPÚBLICA E O SERTÃO

Galgava o topo da Favela. Volvia em volta o olhar. (...)E quase compreendia que os matutos crendeiros (...)

acreditassem que 'ali era o céu...' (...)via-se um ondular estonteador; estranho palpitar de vagas longínquas; a ilusão maravilhosa de um

seio de mar...EUCLIDES DA CUNHA

Em verdade vos digo, quando as nações brigam com as nações, o Brazil com o Brazil, a Inglaterracom a Inglaterra, a Prússia com a Prússia, das ondas do mar D. Sebastião sahirá com todo o seu

exército.ANTONIO CONSELHEIRO

A Primeira República (1889-1930) foi vista, para além das mudanças da formainstitucional, como uma continuação do Império. Assim como na passagem dacolônia para o Primeiro Reinado, também na passagem do Império para a Repúblicaalguns cronistas sentiram-se tentados a reafirmar a continuidade de uma história quemantém fortes vínculos com o passado. Falou-se muito de uma "República dosConselheiros", em alusão à permanência de grandes nomes do Império nos primeirosgovernos republicanos. O governo provisório teve entre seus ministros figuras doImpério, como o Barão de Lucena, Henrique Pereira de Lucena (1835-1913), semesquecer que o fundador da República, marechal Deodoro da Fonseca (1827-1892),dizia-se que se comportava como se fosse um monarca. Não era sem motivo,portanto, a imagem da continuidade do Império, embora talvez exagerada nointeresse de "republicanos históricos" ressentidos diante de tantos republicanosnovíssimos nos primeiros governos de após 1889.

Outro aspecto notado na primeira hora da República foi a ausência do povo nocenário político. Ficaram célebres as palavras de Aristides Lobo (1838-1896),ministro do Interior do governo provisório, que descreveu a proclamação daRepública como um golpe militar. "Por ora, a cor do governo é puramente militar, edeverá ser assim. O fato foi deles, deles só, porque a colaboração do elemento civilfoi quase nula. O povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o

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que significava."1 Embora alguns historiadores tenham acreditado ver uma classemédia republicana em meio à multidão que em novembro de 1889 compareceu aocampo de Santana, o certo é que a derrubada do regime veio da iniciativa militar. E opovo estava ausente – ou, se presente, o que pode ter ocorrido com pequena parcela,não participava. Acreditava, como disse Aristides Lobo, "estar vendo uma parada".

República da oligarquiaO marechal Deodoro da Fonseca, chefe do movimento, havia combatido, a serviçodo Império, a revolução Praieira, e participado das guerras da Cisplatina e doParaguai, tendo se tornado, como muitos militares, simpático às teses abolicionistas.Amigo e admirador de D. Pedro II, pretendia, ao que dizem alguns cronistas, a quedado gabinete de turno, não a do imperador. O marechal Floriano Peixoto (1839-1895)era, como Deodoro, um herói da guerra do Paraguai, e havia sido ministro da Guerrano último gabinete do Império, chefiado pelo visconde de Ouro Preto, Afonso Celsode Assis Figueiredo (1836-1912). De seus tempos de ministro, diz um historiador:"Não se conhece uma atitude sua, nem em favor da Coroa, nem em favor daRepública, nas vésperas do dia 15 de novembro. Chefe do Exército imperial, eleagira sempre por omissão".2 Ainda assim, monarquista de opção liberal e comaparências de omisso, passou à história como um republicano puro, dando início,com Deodoro, à participação dos militares na direção do Estado brasileiro. Maisadiante, a partir de meados da Primeira República, os militares se tornarão, até finsdo século XX, uma referência obrigatória da história política brasileira.

A República também começou sob o signo da instabilidade política. Emcontinuidade com o Império, dirigida por militares e distante do povo, nasceu sob osigno dos governos de mão dura. Assim como na monarquia, na qual o poder pessoaldo imperador era quase tudo, inauguramos na República um presidencialismo detipo caudilhesco. Ou, nos seus momentos de maior elegância, um presidencialismode tipo imperial.

Os governos de Deodoro da Fonseca (1889-1891), Floriano Peixoto (1891-1894) edo primeiro presidente civil, Prudente de Morais (1894-1898), responderam comforça às turbulências dos primeiros anos da República ainda em consolidação. Essesprimeiros sinais de uso da força surgiram quando Floriano Peixoto derrotou aRevolta da Armada (1894), movimento de protesto da marinha ao qual se atribuíauma intenção de restauração monárquica. Mas, à parte as eventuais reações dosrestauradores, a força parecia a alternativa que restava a uma República quecomeçara instável e a uma enorme distância do "país real".

A presença da classe média – formada na época por militares, bancários,

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funcionários públicos e profissionais liberais, que alguns acreditam ter sido o povopossível na política da época da Proclamação – será reconhecida mais adiante, nocivilismo e nos movimentos tenentistas dos anos 1920. Mas o povo pobre – que sesitua abaixo da classe média e constitui a grande maioria da nação – só dará sinaisde existência por meio de algumas rebeliões notáveis. Ausente da proclamação, opovo continuou ausente da política institucional nas décadas seguintes, emborasubmetido à conhecida manipulação do "coronelismo" dos proprietários de terra. Osgovernos civis que se seguiram aos militares criariam o perfil de uma Repúblicaentranhadamente oligárquica, que haveria de durar até 1930.

As elites governantes da Primeira República tiveram que se confrontar, já nosprimeiros anos, com rebeliões populares tão surpreendentes quanto inevitáveis. Sãodos primeiros anos após a proclamação as rebeliões de Canudos, na Bahia (1893-1897), a dos marinheiros, na Revolta da Chibata (1910), de João Candido (1880-1969), e a do Contestado (1912), na fronteira entre o Paraná e Santa Catarina.Embora se possam mencionar conflitos operários já em fins do século XIX, só apartir da guerra de 1914-1918 pode-se falar do surgimento, no país, de ummovimento operário, especialmente em São Paulo, Rio de Janeiro e Recife. Do tratohabitual dos governos com o movimento operário, ficou na história a definiçãocélebre da "questão social" como "questão de polícia". As reivindicações sociaisdiriam respeito à ordem pública, cabendo aos governos tratar como desordeiros osque ousassem apresentá-las como demandas ao Estado.

A Primeira República foi tão dura quanto o Império na repressão a movimentos erebeliões populares. Prudente de Morais (1841-1902), que muitos viam como umfraco (a verdade é que o pretendiam mais forte do que efetivamente foi), deu fim àrevolta Federalista (1893-1895), no Rio Grande do Sul, na qual igualmente seacreditava estivessem envolvidos interesses monarquistas. Além disso, esmagou arevolta popular de Canudos, movimento entendido pela opinião pública, e sobretudopelos militares, como anti-republicano e restaurador. Ao fim do governo Prudente deMorais estavam criadas as condições para que Campos Sales (1841-1913)instaurasse a "política dos governadores", base oligárquica da sustentação daRepública, sob a liderança das oligarquias dos estados de São Paulo e Minas Gerais,e submetida aos interesses predominantes da economia do café.

Civilização e barbárieA obra de Euclides da Cunha é das mais expressivas dentre as que se escreveram nasperspectivas positivistas e cientificistas que em fins do Império e inícios daRepública buscaram caminhos de renovação das mentalidades no país. Euclides era

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um jovem republicano, militar e engenheiro, formado no espírito pós-guerra doParaguai, quando os militares ganharam influência política, intelectual e cultural nopaís. Aderindo ao positivismo e ao cientificismo que ainda no Império seduzirammuitos, os militares de inícios da República participavam de um movimento deidéias inovador. A enorme repercussão intelectual alcançada por Os sertõesbeneficiou-se dessa atmosfera intelectual renovadora. Aproveitou-se também daonda de escritos sobre a vida rural e o interior, na mesma época. A intelectualidadecomeçava a descobrir as gentes dos sertões do Brasil.

Os sertões é o único livro de Euclides da Cunha; os demais que constam de suabibliografia são coletâneas de artigos jornalísticos. Mesmo o grande clássico deEuclides é resultado de uma elaboração do autor sobre suas notas e reportagens paraum jornal de São Paulo. Conquistou a intelectualidade brasileira mais pela paixão esinceridade que transmite do que por suas adesões literárias, teóricas e filosóficas.Monteiro Lobato (1882-1948), que dedicou ele próprio algumas de suas melhoresobras a fatos e costumes da vida rural, disse que Euclides da Cunha cumpriu "o papelde 'desasnador' dos intelectuais brasileiros do início do século XX".3

O livro pode ser visto como parte de uma tradição de relatos de guerra, iniciadacom A retirada da Laguna (1871), do Visconde de Taunay, Alfredo d'EscragnolleTaunay (1843-1899), sobre um episódio trágico da guerra do Paraguai. E suapublicação coincide com a de Os jagunços (1898), de Afonso Arinos (1868-1916),sobre a vida rural e o interior, e de Canaã (1902), de Graça Aranha (1868-1931),sobre a imigração de trabalhadores europeus iniciada com o período daIndependência. Mas, entre todos, o livro de Euclides se tornou um caso único pelaprofunda repercussão que alcançou na vida cultural e intelectual da República. Nãoapenas na Primeira, que começou com Deodoro, mas também na Segunda, quecomeçou com a revolução de 1930 e deu início à "era Vargas".4

Hoje, mais de cem anos depois de sua publicação, continuam vivas as questõesfundamentais suscitadas por Os sertões sobre a história e a cultura brasileiras. Apartir de relatos jornalísticos, Euclides construiu uma grande obra de pensamentosobre a formação social brasileira e os desafios sociais que aguardavam (e aindaaguardam) o desenvolvimento da República. A história de Canudos foi contada pormuitos, antes e depois de Euclides.5 Mas, tal como narrada n' Os sertões, essa guerrafoi capaz de revelar as entranhas do país, com um impacto até hoje insuperável.Como diz Walnice Nogueira Galvão, a repercussão do livro, na época dolançamento, alcançou as dimensões de um grande mea-culpa nacional.6Transformou a guerra de Canudos em um emblema das desigualdades e injustiçassociais da nação, obrigando "a atenção do país a se voltar para aquela que é a suarealidade profunda".7 Em nome de uma luta da civilização contra a barbárie, o

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exército da República esmagou os pobres fanáticos do interior.Os acontecimentos da guerra sertaneja viriam a ecoar longamente na história

brasileira, tornando mais frágeis e duvidosas as convicções liberais e modernizantesque as elites aprenderam nas preliminares da República. Nem mesmo as oligarquiascivis, que, no momento dos acontecimentos, sustentaram opiniões a favor doesmagamento de Canudos, ficariam imunes à repercussão dos relatos. Difícil saber oque sobrou da racionalidade cientificista dos militares, em face da missão terrível deesmagar os sertanejos fanáticos, aos quais se atribuiu uma intenção política que nãotinham. Sabe-se, porém, que não escapou a muitos oficiais e soldados o significadoda injustiça que cometiam. Alguns oficiais e praças sentiram o gosto amargo davitória no momento mesmo em que a conquistavam. Quanto a Euclides da Cunha, ojovem ex-tenente foi bastante claro quando disse ter "deixado muitas idéias,perdidas, naquela sanga maldita, compartindo o mesmo destino dos que agonizavammanchados de poeira e sangue".8

O livro ficou também como exemplo da influência da arte na política. DizBerthold Zilly, tradutor d'Os sertões para o alemão, que, "não fosse o livro deEuclides da Cunha, a guerra de Canudos teria caído no semi-esquecimento do grandepúblico, como tantos outros conflitos, movimentos populares, guerras civis eexternas, revoltas, quilombos, greves – acontecimentos quase sempre caracterizadospor massacres contra os de baixo, bastando uma rápida comparação com a Balaiada,a guerra do Paraguai, os Mucker, o Contestado".9 O livro permanece ainda comoexemplo de como eram lamentavelmente míopes as oligarquias fundadoras daRepública. Tiveram que esperar por uma guerra – e, mais, pela expressão literáriamagistral de Os sertões – para reconhecer realidades do interior do Brasil quesempre tiveram debaixo dos olhos.

Muito já se falou sobre as qualidades e os defeitos da obra, sobre o que tem denovo e de velho, de grande prosa literária e de mero rebuscamento retórico, depretensa ciência e de verdadeira poesia, de resíduos racistas e de um sentimento deverdadeira compaixão. Mas não é demais acrescentar que Os sertões se tornaramfator da conversão ideológica de muitos. Euclides da Cunha foi bastante honesto esensível para ir além das convicções que tinha quando iniciou sua viagem para ointerior da Bahia. Não seria, porém, tudo isso inevitável numa reportagemjornalística que se tornou uma obra de pensamento, uma nova descoberta do Brasil?

Euclides da CunhaMilitar por formação, positivista, cientificista e republicano radical, Euclides daCunha mudou a visão do país no mesmo passo em que mudou suas idéias sobre o

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país. Por força da sua interpretação, a guerra de Canudos tornou-se um "evento-chave da história brasileira", elevando à dimensão do mito o personagem obscuro deAntônio Conselheiro. No mesmo passo, também Euclides se tornou um mito, comoexplicador do Brasil.10

[<<22]

Denúncia inflamada em livro-monumento: Euclides da Cunha, autor de Os sertões.

Euclides da Cunha era filho de um fazendeiro de café da Província do Rio deJaneiro, e seu avô, na Bahia, vivia do tráfico de escravos. Ainda jovem, alcançounotoriedade como republicano quando, em 1888, expressou sua rebeldia ao Impérioatirando seu espadim de cadete aos pés do ministro da Guerra em visita à EscolaMilitar. O gesto provocou a indignação dos monarquistas, que exigiram do "governoagonizante" medidas punitivas. Entre os que pediram punição estava JoaquimNabuco, que apelou a que não se admitisse "que uma instituição, criada pelo Estadoà custa de muitos sacrifícios do contribuinte, (...) se (tornasse) um foco de agitaçãorevolucionária, contra as instituições legais".11

O jovem cadete foi expulso do exército, não obstante os apelos de seu pai aoimperador, o que lhe permitiu a primeira experiência profissional no jornalismo, emSão Paulo. Alguns dias depois da proclamação da República, foi reintegrado aoexército por iniciativa de oficiais republicanos, entre os quais se achava o majorSólon Ribeiro (1842-1900). O major, que se tornou depois sogro de Euclides, foraum dos líderes da quartelada republicana, e viria a desempenhar um papel no inícioda guerra sertaneja. Era amigo pessoal do marechal Floriano, que, já presidente,confiou a Euclides, então promovido a tenente, uma posição como engenheiro naestrada de ferro Central do Brasil.

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Em 1896, desiludido com a política republicana, mas não com a República,Euclides preferiu sair do exército para se dedicar à engenharia civil, comofuncionário da Secretaria de Obras de São Paulo. Pouco depois voltou ao jornalismo,demitido da secretaria em razão de cortes de gastos com pessoal. Em julho de 1897,antes portanto de viajar ao sertão, publicou no jornal O Estado de S. Paulo seus doisprimeiros artigos sobre Canudos. Esses artigos, ambos com o título de "A novavendéia", expressavam a clara intenção de assemelhar a revolta dos seguidores doConselheiro a movimentos restauradores de camponeses da época da RevoluçãoFrancesa. Logo a seguir, Euclides foi designado pelo jornal para acompanhar acomitiva do ministro da Guerra em viagem à região de Canudos. O jovem militar,agora oficial reformado do exército, começava assim a sua temporada comocorrespondente de guerra.12 De uma guerra que vinha de alguns anos e que todosacreditavam que estivesse chegando ao fim.

Antônio Maciel, o ConselheiroAntônio Vicente Mendes Maciel, que depois veio a ser chamado o "Conselheiro",nasceu em 1830, em Quixeramobim, no Ceará, de uma família de pequenoscriadores. Nem a religiosidade nem a violência estiveram ausentes dos primeirosanos de sua vida, marcada pelas lutas de família em que os Maciel se envolveram,desde 1833, com um rico proprietário de terras. Histórias antigas, portanto, e pormeio das quais os Maciel, que já eram pobres, empobreceram mais, embora aindamantendo um padrão de vida superior ao da maioria dos habitantes da região. Emmeio a um povo de maioria analfabeta, Antônio Maciel se distinguia por haverfreqüentado a escola, sabia ler e escrever, possuía rudimentos de educação religiosae estudara a gramática latina.

Entre suas várias atividades de jovem, antes de se tornar o Conselheiro, estão asde pequeno comerciante, caixeiro, além de solicitador e requerente no fórum. Em1861, separou-se da mulher, sua prima, que o traíra com um amigo. Envergonhado,Antônio Maciel fugiu da cidade de Ipu, onde vivia, e tomou os rumos do sul doCeará. Foi acometido depois disso de sinais de depressão e de esgotamento nervoso,o que, segundo alguns, não seria incomum em sua família. Acolhido em casa de umparente, terminou por atacá-lo, sendo preso por tentativa de homicídio. Foi depoissolto como irresponsável.

Saiu então do Ceará e tomou os rumos de Pernambuco, dando início àscaminhadas pelos sertões que, aos poucos, fizeram seu renome como penitente.Quando chegou ao interior da Bahia, dez anos depois, já era famoso, e atraía gentenas feiras para ouvi-lo. Acusado de haver matado a mulher e a própria mãe, foi

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levado de volta, preso, ao Ceará. "Acusaram-no", diz Euclides da Cunha, "de velhoscrimes, cometidos no torrão nativo. Ouviu o interrogatório e as acusações, e nãomurmurou sequer, revestido de impassibilidade marmórea. (...) Quedou na tranqüilaindiferença superior de um estóico".13 Uma vez mais foi solto, dessa vez inocentado.

As descrições de Antônio Maciel, aprendidas na leitura de Euclides da Cunha e deestudiosos de sua obra, evocam a paisagem humana e social dos sertões, com suamiséria e seu misticismo, e sinais da guerra que deveria vir. Diz Sylvio Rabello que,quando Antônio Maciel buscou o sertão da Bahia, "já aí o Conselheiro não sepertencia mais, (...) se podiam contar aos milhares os seus devotos. Como na legendade todos os profetas, o peregrino já não andava só".14 Não chamava a que oacompanhassem, simplesmente era seguido. Passou a viver de esmolas, prestigiado,diz Euclides, no seio de uma sociedade primitiva que "compreendia melhor a vidapelo incompreendido dos milagres". Era visto sempre acompanhado nos caminhos,causando preocupação aos padres. "A admiração intensa e o respeito absoluto (...) otornaram em pouco tempo árbitro incondicional de todas as divergências ou brigas,conselheiro predileto em todas as decisões." Foi assim, aos poucos, assumindo aimagem que deveria deixar na memória do país. "De 1877 a 1887 erra por aquelessertões, em todos os sentidos."15

Em 1887, a Arquidiocese da Bahia quis, sem qualquer efeito, internar Maciel emum hospital, pedido recusado por ausência de vagas. Na pobreza e no misticismo davida no sertão, o Conselheiro atraía seguidores pela mera aparência de penitente:magro, a barba e o cabelo compridos, vestido com um camisolão azul. Um dos seusseguidores trazia um oratório "tosco, de cedro, encerrando a imagem de Cristo".Antônio Maciel agia como quem condensasse em si próprio "o obscurantismo de trêsraças", diz Euclides em alusão aos índios, negros e brancos que formaram o país.Acompanhavam-no como se precisassem de alguém que os guiasse "nas trilhasmisteriosas para os céus", e assim remodelavam-no "à sua imagem". Visto como umproblema pela Igreja da Bahia, tornou-se uma atração dos jornais, os de Salvador daBahia e os do Rio de Janeiro, agora capital da República. Como diz Euclides, oConselheiro era uma sombra, mas uma sombra que cresceu tanto "que se projetou naHistória".16

O cenário da guerraA ocasião do primeiro confronto veio em 1893. Na verdade, não ainda um confrontomilitar, mas um distúrbio, coisa comum nos interiores de um Brasil onde o Estadochegava sempre muito frágil e, quase sempre, com enorme atraso. Depois daproclamação da República chegaram ao sertão algumas novidades, entre as quais a

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cobrança de impostos municipais. O Conselheiro se achava na ocasião no arraial deBom Conselho, que havia fundado. Quando apareceu a novidade republicana, ele nãoapenas disse ao povo que não pagasse os impostos, mas que queimasse as tábuas emque eram reclamados. Para reprimir os "desordeiros", a polícia da Bahia enviou umpelotão com trinta soldados, que foram derrotados pelos seguidores do Conselheiroem Masseté.

Maciel, sempre acompanhado por seus seguidores, fugiu uma vez mais. Ia agorapara Canudos, uma velha fazenda à margem do rio Vaza-Barris, ao fundo dos sertõesde Piauí, Ceará, Pernambuco e Sergipe. Na sua chegada, Canudos já acolhia umlugarejo que "tinha como a maioria dos que jazem desconhecidos pelos nossossertões, muitos germes da desordem e do crime".17 Com a entrada dos seguidores doConselheiro, o lugarejo tomou ares que, segundo Euclides, assemelhavam-no a umacampamento de guerreiros ou a uma aldeia africana. O arraial era cercado decolinas, com o monte da Favela ao sul, a menos de dois quilômetros de distância.

Como quase tudo da história de Canudos, o morro da Favela se tornaria lendáriocomo parte do cenário da guerra. E depois da guerra se tornaria ainda uma vezlendário porque alguns soldados, de volta à cidade do Rio de Janeiro, se instalaramno morro da Providência, perto da Central do Brasil, chamando-o de Favela. Essadesignação se tornou geral para os morros nos quais, ainda hoje, se juntam ospobres. Aliás, a designação generalizou-se não apenas para os morros, mas tambémpara as várzeas e planícies, qualquer espaço onde a maioria da população é pobre,não apenas no Rio de Janeiro, mas em geral nas grandes cidades brasileiras.18

Começava cedo a transformação de Canudos em emblema nacional.Diz Euclides da Cunha que Canudos era a "Tróia de taipa dos jagunços" e que

"crescia vertiginosamente".19 O Conselheiro – que há 22 anos, desde 1874, tornara-se famoso em todo o interior do Nordeste e mesmo nas cidades do litoral e que, alémdo arraial de Bom Jesus, construíra dezenas de igrejas, reconstruíra cemitérios econseguira açudes para o povo – faria de Canudos a sua última obra.20 Ao lado davelha igreja do lugarejo, construiria uma nova. Na igreja velha, ao entardecer, ossinos, mesmo nas batalhas, entoavam a Ave-Maria. As torres da nova seriam seuúltimo ponto de resistência contra as investidas do exército.

A primeira expedição militarEm 1895, depois de um incidente em Juazeiro, nascido do descumprimento por partede um comerciante de seu compromisso de entregar madeiras compradas porMaciel, surgiu a oportunidade de nova expedição a Canudos. Essa, que foi a primeira

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expedição militar a Canudos, surgiu em novembro de 1896 por determinação docomandante do distrito militar, que, "por ironia do destino, era o sogro de Euclides,o general Sólon". Era uma companhia que, segundo o Diário da Bahia, "ia com amissão de expulsar de Canudos os bandidos que ocuparam a fazenda e capturar seuchefe, o sebastianista Antônio Conselheiro".21 A expedição, dirigida pelo tenentePires Ferreira, com cem soldados, confrontou-se com os sertanejos em Uauá, nasvizinhanças de Canudos.

É assim que Euclides descreve o confronto: "A multidão guerreira avançava paraUauá, derivando à toada vagarosa dos kyries, rezando. (...) Guiavam-no símbolos depaz: a bandeira do Divino e, ladeando-a, nos braços fortes de um crente possante,grande cruz de madeira, alta como um cruzeiro. (... ) Equiparavam aos flagelosnaturais, que ali descem periódicos, a vinda dos soldados. Seguiam para a batalharezando, cantando – como se procurassem decisiva prova às suas almasreligiosas".22

Atacados de surpresa, os soldados refugiaram-se nas casas à volta do largo,atirando indiscriminadamente contra os sertanejos. O resultado da batalha desigualreflete a diferença na qualidade das armas dos dois lados: morreram 150 sertanejos eapenas 10 militares, entre estes um alferes e um sargento. Engana-se, porém, quempensar que em Uauá uma tal diferença fizesse pensar em fácil vitória da tropa dogoverno. Esta, pelo contrário, retirou-se, cansada, depois de quatro horas de luta.

As enormes diferenças quanto ao número de mortes dos dois lados permaneceriamcomo um padrão até o fim de uma guerra que já não necessitaria de novos incidentespara continuar. Para tal bastava a existência de Canudos. Daí em diante o objetivo daguerra era destruir Canudos.

Esses rudes impenitentesA segunda expedição, comandada pelo major Febrônio de Brito, chegou a MonteSanto em dezembro de 1896: 543 praças, 14 oficiais combatentes e três médicos.Nos discursos militares de antes da partida para os combates, prometia-se destruir osdesordeiros a ferro e fogo. Era preciso, relata Euclides, que "os rudes impenitentes,os criminosos retardatários, que tinham a gravíssima culpa de um apego estúpido àsmais antigas tradições", era preciso que eles "saíssem afinal da barbaria em queescandalizavam o nosso tempo, e entrassem repentinamente pela civilização adentro, a pranchadas".23 Ainda uma vez, porém, as coisas não saíram como seesperava.

O primeiro choque se deu na serra do Cambaio, e foi antecipado pela "vozeria em

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que, através dos costumeiros vivas ao 'Bom Jesus' e ao 'nosso Conselheiro', rompiambrados escandalosos de linguagem solta, apóstrofes insolentes. Havia entre outrasuma frase desafiadora que no decorrer da campanha soaria como um estribilhoirônico: 'Avança! Fraqueza do governo!'". Conquistada a posição pela tropa apóstrês horas de conflito, do lado do governo "eram poucas as perdas – quatro mortos evinte e tantos feridos. Em troca os sertanejos deixavam cento e quinze cadáveres,contados rigorosamente". Repetia-se o mesmo padrão de violência já observado emUauá. Era também mais um combate sem decisão final, depois do qual a tropa dogoverno foi forçada a deixar o terreno e seguir adiante, dessa vez em busca deCanudos.24

O segundo combate, em Tabuleirinhos, não é menos violento. "A tropa perderaapenas quatro homens, excluídos trinta e tantos feridos", ao passo que os sertanejos"foram dizimados", sem que se tenha sabido do número de feridos. "Um dos médicoscontou rapidamente mais de trezentos cadáveres."25 Naquele mesmo dia, à tarde, nasencostas do Cambaio, onde se dera o primeiro combate, assistiu-se a uma grandeprocissão. "O fragor dos combates, porém, trocara-se pela assonância das litaniasmelancólicas. Lentamente, caminhando para Canudos, extensa procissão derivavapelas serras. Os crentes substituíam os batalhadores e volviam para o arraial,carregando aos ombros (...) os cadáveres dos mártires da fé." E ainda uma vez,embora vitoriosas, as tropas governamentais, cansadas, bateram em retirada. E,como nas vezes anteriores, perseguidas pelos jagunços.26

O anti-Cristo ou o "corta-cabeças"A terceira expedição, em fevereiro de 1897, sob o comando do coronel AntônioMoreira César (1850-1897), tinha por objetivo mudar definitivamente o rumo dascoisas. O coronel fora o principal chefe no fim da campanha federalista do RioGrande do Sul e tinha grande prestígio como "debelador de revoltas". Suadesignação para a guerra sertaneja teria assustado os jagunços, que o viam como um"anti-Cristo", o "corta-cabeças". Era, porém, um enfermo, sofria de epilepsia e tevedois ataques logo no início da campanha.27 A expedição chegou a avistar Canudosdo alto do morro da Favela, um ponto que as expedições anteriores não conseguiramatingir, e de onde abriu o canhoneio, dando cobertura a um ataque da infantaria. Emcerto momento, Moreira César foi ferido, vindo a falecer no dia seguinte. O novochefe, o coronel Tamarindo, depois de consultar seus oficiais, decidiu-se pelaretirada.

Diz Euclides que, naquela noite, a guerra sertaneja passaria a tomar "a feiçãomisteriosa que conservaria até o fim". Começaram a surgir as semelhanças de

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formação étnica e cultural entre os soldados e os sertanejos rebelados. "Na maioriamestiços, feitos da mesma massa dos matutos, os soldados, abatidos pelocontragolpe de inexplicável revés ficaram sob a sugestão empolgante domaravilhoso, invadidos de terror sobrenatural. (...) É que grande parte dos soldadosera do Norte, e criara-se ouvindo, em torno, de envolta com o dos heróis dos contosinfantis, o nome de Antônio Conselheiro." E as lendas em torno dos seus milagres efaçanhas lhes pareciam verossímeis diante daquela catástrofe.28

Perseguida pelos jagunços, a retirada tornou-se "uma debandada" de trágicasconseqüências. "Entre os fardos atirados à beira do caminho ficara, logo aodesencadear-se o pânico", o cadáver do comandante Moreira César. Quanto aocoronel Tamarindo, "inteiramente só, sem uma única ordenança, (...) lançou-sedesesperadamente, o cavalo a galope, pela estrada – agora deserta". Tambémperseguido pelos jagunços, foi atingido por uma bala. A terceira expediçãodesaparecera, em debandada, e "os feridos agonizavam no absoluto abandono".29

Os sertanejos e os jagunços ficaram com os despojos, tendo levado para o arraialos quatro canhões Krupps que a expedição trouxera, bem como as Mannlicher eCoblains. Recolhidas as armas e as munições, os jagunços reuniam os cadáveres quejaziam esparsos em vários pontos e os decapitavam. Alinhavam, nas margens daestrada, as cabeças, regularmente espaçadas, com as faces de frente para o caminho.Nos arbustos mais altos, dependuravam os restos de fardas, calças, dólmãs, selins,cinturões, quepes, capotes, mantas, cantis e mochilas. Três meses mais tarde, quandonovos expedicionários seguiram para Canudos, encontraram fileiras de caveiras nasorlas do caminho, rodeadas de velhos trapos, dependurados nos ramos dos arbustos.Na margem da estrada encontraram "erguido num tronco o esqueleto do coronelTamarindo, decapitado, braços pendidos, mãos esqueléticas calçando luvas pretas...Jaziam-lhe aos pés o crânio e as botas".30

O último confrontoA quarta expedição, sob o comando do general Artur Oscar de Andrade Guimarães,tinha um plano único: levar a Canudos seus cinco mil soldados, do jeito que fossepossível. Não repetiria o erro das retiradas que se transformavam em debandadas.Diz Euclides que o general alterou a frase clássica: em vez do "cheguei, vi e venci"mudou-a para "cheguei, vi e fiquei".31 Além de sua própria determinação, o generalpercebeu que não tinha escolha. A capacidade de combate dos sertanejos revelou-sesurpreendente. "Mais tarde, relatando o feito, o chefe expedicionário se confessouimpotente para descrever a imensa 'chuva de balas que desciam dos morros e subiamda planície'." E um dos seus comandantes afirmou "que durante cinco anos, na

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guerra do Paraguai, jamais presenciara coisa semelhante". Em meia hora decombate, um dos seus batalhões tivera "cento e quatorze praças fora de combate, enove oficiais".

A grande diferença em relação às expedições anteriores foi efetivamente esta: nãohouve retirada. Sendo impossível o recuo, os soldados se tornaram "forçadamenteheróicos, encurralados, cosidos à bala numa nesga do chão". Mas isso evidentementenão resolvia a situação. "A tropa – cinco mil soldados, mais de novecentos feridos emortos, mil e tantos animais de montada e tração, centenares de cargueiros – semflancos, sem retaguarda, sem vanguarda, desorganizara-se por completo."32

O general Artur Oscar pediu um corpo auxiliar de cinco mil homens para livrarsuas tropas da imobilidade em que se achavam. Se "as ordens do dia decretavam ocomeço do sítio", o fato era que "a expedição é que estava sitiada", como sempresucedera desde fins de junho. De quando em quando havia escaramuças, nas quais osvitoriosos tocaiavam os vencidos; os assaltantes eram, por via de regra, osassaltados. "A vida normalizara-se naquela anormalidade. (...) Os soldados da linhanegra, na tranqueira avançada do cerco, travavam, às vezes, noite velha, longasconversas com os jagunços."33 E, ao entardecer, o sino da igreja velha batia,calmamente, a Ave-Maria. E logo depois, da igreja nova, ecoava o cantochãomelancólico das rezas.

A degolaO cenário da guerra mudou, porém. Ela se aproximava do fim. A expedição doexército foi salva pelo ministro da Guerra, o marechal Carlos Machado Bittencourt(1840-1897), que chegou à região com reforços, tropas do norte e do sul, acrescidasdas polícias de São Paulo, Pará e Amazonas. Aumentando as tropas em combate paracerca de oito mil homens, o marechal deu ao conflito as feições de uma campanharegular. Do lado dos sertanejos, as perdas eram graves. Haviam desaparecido osprincipais guerrilheiros: Pajeú, João Abade, Macambira, José Venâncio.Permaneciam ainda Pedrão, Cocorobó e Joaquim Norberto. Sem os seus principaislíderes, Canudos se aproximava do fim.

Quanto a Antônio Conselheiro, falecera em agosto. Euclides da Cunha não entraem maiores detalhes sobre as circunstâncias que cercaram a morte do Conselheiro.Nem encontrei nos demais relatos sobre a guerra outras informações a respeito. OConselheiro morreu tão misteriosamente quanto viveu. Até o fim "uma sombra",como diria Euclides, que registra algumas reações dos sertanejos diante da morte dolíder. Ele fora "em viagem para o céu", diriam. E diriam também que "o profetavolveria em breve, entre milhões de arcanjos descendo (...) numa revoada olímpica,

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caindo sobre os sitiantes, fulminando-os e começando o Dia do Juízo".34

Uma nova mudança do lado dos militares dava o sinal da proximidade dodesenlace. Era o início da degola dos prisioneiros. Como descreve Euclides, a degolaincluía, quase sempre, o forçar a vítima a dar um grito de "viva a República".Paradoxalmente, em nome da civilização, praticava-se a barbárie. "Tínhamosvalentes que ansiavam por essas covardias repugnantes, tácita e explicitamentesancionadas pelos chefes militares. Apesar de três séculos de atraso os sertanejosnão lhes levavam a palma no estadear idênticas barbaridades." Agarravam a vítima"pelos cabelos, dobrando-lhe a cabeça, esgargalando-lhe o pescoço; e, francamenteexposta a garganta, degolavam-na".

A prática da degola era conhecida no arraial, o que certamente contribuiu para aenlouquecida resistência dos sertanejos, que lutariam até a morte. A condenação deEuclides é nítida: "Aquilo não era uma campanha, era uma charqueada. Não era aação severa das leis, era a vingança. Dente por dente. Naqueles ares pairava ainda apoeira de Moreira César, queimado; devia-se queimar. Adiante, o arcabouçodecapitado de Tamarindo; devia-se degolar. A repressão tinha dois pólos - oincêndio e a faca. (...) Ademais, não havia temer-se o juízo tremendo do futuro. AHistória não iria até ali".35

Não obstante as brutalidades suscitadas pelo sentimento da vingança, "fizera-seuma concessão ao gênero humano: não se trucidavam mulheres e crianças", sempreque não se revelassem perigosas. E em muitos militares despontava um"irreprimível e sincero entusiasmo pelos valentes martirizados. (...) O quadro que selhes oferecia imortalizava os vencidos, aqueles rudes patrícios indomáveis".36

Algumas das palavras das últimas páginas de Os sertões ficaram como uma legendade glória da valentia dos sertanejos.

Em outubro começou o canhoneio. Veio depois o toque de avançar contraCanudos, mobilizados dois mil homens para o ataque; entrou em cena a dinamite,"dezenas de bombas de dinamite". Derrotado Canudos, destruíram-lhe as casas,"5.200 cuidadosamente contadas". Diz Euclides, num desesperado paradoxo:"Atacava-se a fundo a rocha viva da nossa raça. Vinha de molde a dinamite... Erauma consagração". Tornaram-se célebres as palavras finais de Os sertões, quemuitos brasileiros lembram de memória: "Canudos não se rendeu. Exemplo únicoem toda a História, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo apalmo, na precisão integral do termo, caiu (...) quando caíram os seus últimosdefensores, que todos morreram".37

Uma história sincera

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Euclides transmite ao leitor uma lição da história. Uma lição sobre a formação dopovo brasileiro que ele próprio aprendeu como observador de uma guerra que mudouseus conceitos sobre o sertanejo e sobre a República. Quando viajava para a Bahia edepois para o sertão, ele anotava no seu Diário claros juízos de defesa da Repúblicae de denúncia das barbaridades dos jagunços.38 Em Os sertões, cuja redação virádepois, são mais visíveis as ambigüidades, chegando ao final a expressões de fortesimpatia pelos sertanejos.

Na nota introdutória do livro, Euclides se apresenta como o "narrador sincero" dosfatos, citando as reflexões de Taine sobre o trabalho do historiador: "il veut sentir enbarbare, parmi les barbares, et, parmi les anciens, en ancien". Não renuncia àcivilização e acredita que esta, impulsionada pela "força motriz da história","avançará nos sertões". Mas registra uma pesada crítica à civilização republicanabrasileira que, no Diário, defendia inequivocamente. Em Os sertões, a campanha deCanudos lhe parece "um refluxo para o passado", como as entradas do períodocolonial. A campanha "foi, na significação integral da palavra, um crime".

Há que tomar essas poucas frases de denúncia como resultado de um complexoprocesso de mudança das idéias do autor. Dizem alguns comentadores, com razão,que Os sertões são vários livros. E não apenas porque transita por diversas áreas daciência, desde a geologia, geografia, antropologia física, antropologia cultural,sociologia, psicologia social, sem esquecer a historiografia e a ciência da guerra,mas também porque se expande em um número apreciável de juízos e avaliaçõesparadoxais e contraditórias quando alcança os tons mais altos da retórica, da paixãoe da poesia. Como disse Walnice Nogueira Galvão, seria possível escrever pelomenos dois livros a partir dos juízos ambíguos e contraditórios de Euclides sobre ossertanejos. No mesmo sentido, talvez se pudesse escrever ainda outros livros sobreas variações de tom de Euclides quando se refere a outros temas, como amestiçagem, o Exército, a civilização.

Tantas ambigüidades e contradições não significam, porém, que falte ao livro umalinha amarrando argumentos e descrições em um conjunto consistente. Para alémdas incursões científicas de Os sertões, o encontro de Euclides com os sertanejos emguerra foi, como já se disse, "uma experiência limite", uma dramática experiência deconhecimento do povo brasileiro. Embora apareça no livro como a última parte, aguerra foi o ponto de partida do percurso, difícil e tortuoso, pelo qual Euclidesalcançou uma nova visão do país. À parte as incursões que, mais belas do quecientíficas, ficaram na história das letras mais do que na história da ciência,permanece no espírito do leitor a dramática experiência do intelectual republicanoda cidade grande que chegou a uma nova visão do país observando a miséria e agrandeza dos "rudes patrícios indomáveis". Daí o enorme impacto do livro nas elites

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e sua entronização como um clássico do pensamento brasileiro.Os sertões podem ser lidos como uma metáfora de uma mudança das elites que

formavam uma consciência nacional desde inícios do século XIX e que passaram,lentamente e com não poucas dificuldades e desvios, a se reconhecer como parte deum país mestiço, rústico e primitivo, extremamente desigual. Essa formação deconsciência tem, no caso de Euclides, como já se disse, o sentido de um "mea-culpanacional". Uma autocrítica que, no caso de Euclides, realizou-se sem plano,literalmente na estrada, e a contrapelo da atmosfera até então dominante. Ameditação que poderia organizar as anotações do correspondente de guerra veiojunto com a redação do livro. E esta foi decerto uma outra viagem, no plano dopensamento, nos intervalos de tempo que tomou nos seus dois anos comoengenheiro, dirigindo a construção de uma ponte em São José do Rio Pardo, em SãoPaulo.

A guerra que, no Diário, o escritor via como sendo contra inimigos da República,passou a ser vista em Os sertões, especialmente na parte final, como uma guerraentre irmãos. A crítica do jagunço, entendido como um bandido dos sertões doNordeste, foi aos poucos substituída pela admiração. E ao final do livro ressurge adenúncia do "crime", anunciada em nota introdutória que, como de hábito nasintroduções, foi com certeza escrita no fim. O último ataque militar ao arraial,destruindo suas "5.200 casas cuidadosamente contadas", ecoa no fim do livro como oataque àqueles que Euclides considera o centro da nacionalidade, "a rocha viva danossa raça".

Não por acaso, o leitor encontra, sobretudo ao fim do livro, não poucassemelhanças entre jagunços e soldados. O misticismo dos sertanejos alcança a almados soldados, sobretudo quando se ouve a Ave-Maria no sino da igreja velha. Aofinal, percebe Euclides que era uma guerra de "jagunços contra jagunços", aquelaque se revela quando entra no arraial um batalhão da Bahia. Aquele batalhão "nãoera um batalhão de linha, como não era um batalhão de polícia. Aqueles caboclosrijos e bravos, joviais e bravateadores que mais tarde, nos dias angustiosos doassédio de Canudos, descantariam, ao som dos machetes, modinhas folgazãs,debaixo de fuzilarias rolantes – eram um batalhão de jagunços. Entre as forçasregulares de um e outro matiz, imprimiam o traço original da velha bravura a umtempo romanesca e bruta, selvagem e heróica, cavaleira e despiedada, dos primeirosmestiços, batedores de bandeiras".39

Os elogios à valentia dos soldados se equilibram com os elogios à valentia dosjagunços. E o escritor expressa o mesmo horror diante dos crimes que os dois ladoscometeram. De um lado e de outro, o mesmo sentimento primário da vingança. Amesma barbárie no fogo que incinera cadáveres e na faca que degola prisioneiros.

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Pior ainda: dos dois lados a profanadora degola de mortos. Se todos os "crimes" sãoinaceitáveis, mais inaceitável para Euclides tornou-se o "crime" do governo. Orepublicano Euclides entendia que a República deveria ser capaz de incorporaraqueles que destruía.

Mestiçagem e misticismoA viagem do pensamento de Euclides vai, porém, mais fundo, deixando-nos aimpressão de que o crime não foi apenas da República. Nas últimas linhas do livro,ele se revela perplexo diante "das loucuras e os crimes das nacionalidades".40 Ocrime, portanto, mais do que à República, dizia respeito a toda a nação, queparticipou inteira do episódio. Estaríamos diante de uma tragédia a ser entendidacomo parte de um processo que ainda não terminou, e por meio do qual a "forçamotriz da história" empurra para diante a formação da nação.

A história do Brasil, segundo Euclides, abriu-se em duas, logo nas origens, numaseparação radical entre o norte e o sul. Duas histórias distintas cujos elementosformadores – os sertanistas do norte e os bandeirantes do sul – passaram quasetodos, "em busca das 'minas de prata' de Melchior Moréia", pelas margens dossertões de Canudos.

No século XVII acentuou-se o contraste entre o norte e o sul. "O 'paulista' – e asignificação histórica desse nome abrange os filhos do Rio de Janeiro, Minas, SãoPaulo e regiões do sul – erigiu-se como um tipo autônomo, aventuroso e rebelde, (...)afastando-se do mar e dos galeões da metrópole, investindo com os sertõesdesconhecidos." Foram as bandeiras que desenharam as trilhas do povoamento atéfins do século XVIII. Outra corrente vinha do norte, desde o Maranhão até a Bahia,num povoamento que caminhava mais vagaroso, por meio da mistura com os índios,e que contou com a colaboração persistente do jesuíta. Essa corrente apoiou-se noregime pastoril "que já no alvorecer do século XVIII ia das raias setentrionais deMinas a Goiás, ao Piauí, aos extremos do Maranhão e Ceará pelo ocidente e norte, eàs serranias das lavras baianas a leste". O acesso de ambas as correntes à região dossertões se fazia pelo rio São Francisco, "levando os homens do Sul ao encontro doshomens do Norte". O grande rio "erigia-se desde o princípio com a feição de umunificador étnico, longo traço de união entre as duas sociedades que se nãoconheciam".41

Segundo Euclides, são esses os antecedentes históricos mais distantes do jagunço."Imaginemos que dentro do arcabouço titânico do vaqueiro estale, de súbito, avibratibilidade incomparável do bandeirante. Teremos o jagunço." É "o cernevigoroso da nossa nacionalidade", nascido da contigüidade do povoamento e do

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encontro dos nortistas "que lutavam pela autonomia da pátria nascente e os sulistas,que lhe alargavam a área".42 Dessa fusão de nortistas e sulistas despontou uma raçade curibocas puros, quase sem mescla de sangue africano. A presença do negro,maior na costa, ligada à economia do açúcar, deu origem ao mulato que, porém, éanterior ao Brasil, tendo nascido em Portugal, como resultado do tráfico de escravos.Os "curibocas puros" – ou seja, os caboclos, mestiços de branco com índio – seriamfiguras peculiares ao povoamento do interior do Brasil.

São estas as origens históricas dos jagunços que surgem à luz da história atravésda guerra de Canudos: "(...) com as suas vestes características, os seus hábitosantigos, o seu estranho aferro às tradições mais remotas, o seu sentimento religiosolevado até ao fanatismo, e o seu exagerado ponto de honra, e o seu folclore belíssimode rimas de três séculos. (...) Raça forte e antiga, de caracteres definidos e imutáveismesmo nas maiores crises (...) oriunda de elementos convergentes de todos ospontos, porém diversa das demais deste país". Toda essa população ficou perdidanum recanto dos sertões, realizando a máxima intensidade de cruzamento uniforme"capaz de justificar o aparecimento de um tipo mestiço bem definido, completo".43

Com a dosagem preponderante do índio, ali ficaram num abandono completo,"evolvendo em círculo apertado durante três séculos (...), guardando, intactas, astradições do passado". Os sertanejos têm "a mesma envergadura atlética, e osmesmos caracteres morais traduzindo-se nas mesmas superstições, nos mesmosvícios, e nas mesmas virtudes".44 Seu aspecto "recorda, vagamente, à primeira vista,o de guerreiro antigo exausto da refrega. As vestes são uma armadura. Envolto nogibão de couro curtido, de bode ou de vaqueta; apertado no colete também de couro;calçando as perneiras, de couro curtido ainda, muito justas, cosidas às pernas esubindo até as virilhas, articuladas em joelheiras de sola; e resguardados os pés e asmãos pelas luvas e guarda-pés de pele de veado – é como a forma grosseira de umcampeador medieval desgarrado em nosso tempo".45

A religião do sertanejo "é, como ele – mestiça". É "uma mestiçagem de crenças"que inclui, além de crenças indígenas e africanas, também o misticismo dosportugueses, da época do descobrimento e da colonização. Foi essa uma época naqual "todos os terrores da Idade Média tinham cristalizado no catolicismopeninsular", e os portugueses estavam cheios "daquele misticismo feroz, em que ofervor religioso reverberava à cadência forte das fogueiras inquisitoriais". Osportugueses que chegavam ao Brasil e que, em parte, entravam pelo sertão, eramparcelas da mesma gente que após Alcácer-Quibir procurava a fórmula superior dasesperanças messiânicas. "Imóvel o tempo sobre a rústica sociedade sertaneja, (...) elarespira ainda na mesma atmosfera moral dos iluminados que encalçavam, doidos, oMiguelinho ou o Bandarra. Nem lhe falta, para completar o símile, o misticismo

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político do sebastianismo", que persiste nos sertões do norte.46 Ali, a terra é o exílioinsuportável, e o morto um bem-aventurado, porque a morte é a felicidade supremada volta para os céus.47

A biografia do Conselheiro resume a existência da sociedade sertaneja. É por issoque, diz Euclides, o Conselheiro "arrastava o povo sertanejo". Não o arrastavaporque o dominasse, "mas porque o dominavam as aberrações daquele". Tambémpor isso o Conselheiro foi como que "impelido por uma potência superior, bater deencontro a uma civilização, indo para a história como poderia ter ido para ohospício". Seu misticismo condensava todas as crenças ingênuas, os fetichismosbárbaros, as aberrações católicas, as tendências emocionais correntes na vidasertaneja. O Conselheiro "era o profeta, o emissário das alturas", com "uma funçãoexclusiva: apontar aos pecadores o caminho da salvação". Era este o papel que ele seatribuía: ser um "delegado dos céus". Sentencia Euclides: o Conselheiro "parou aíindefinidamente, nas fronteiras oscilantes da loucura, nessa zona mental onde seconfundem facínoras e heróis, reformadores brilhantes e aleijões tacanhos, e seacotovelam gênios e degenerados".48

Além de místico, o Conselheiro era também um chefe, assim como Canudos que,mais do que um ajuntamento de místicos, era, a seu modo, uma sociedadeorganizada. Como é freqüente nos grandes ajuntamentos de pobres, e como severifica nas favelas das grandes cidades do Brasil moderno, Canudos era também"um homizio de facínoras". Ali "chegavam, de permeio com os matutos crédulos evaqueiros iludidos, sinistros heróis da faca e da garrucha". Eles se tornaramajudantes-de-ordens do Conselheiro. Canudos, como ocorria com muitos lugarejosdo sertão, tinha "a sua tradição especial e sinistra".49

Entre os lugarejos do sertão, o arraial de Bom Jesus da Lapa se destaca como umlugar especial, como a Meca dos sertanejos. Ali, entre as dádivas que jazem emconsiderável cópia no chão e nas paredes do templo, "o visitante observa, de par comas imagens e as relíquias, um traço sombrio de religiosidade singular: facas eespingardas. O clavinoteiro ali entra, contrito, descoberto. Traz à mão o chapéu decouro, e arma à bandoleira. Tomba genuflexo, a fronte abatida sobre o chão úmido...E reza. (...) Ao cabo cumpre devotamente a promessa (...): entrega ao bom Jesus otrabuco famoso, tendo na coronha alguns talhos de canivete lembrando o número demortes cometidas. Sai desapertado de remorsos, feliz pelo tributo que rendeu.Amatula-se de novo à quadrilha. Reata a vida temerosa". Esses "valentesdesgarrados" têm a sua nobreza. Embora isso soe paradoxal, nos lugares em quevivem, o banditismo tem a sua disciplina, a "desordem" normalizou-se. "O saque daspovoações que conquistam, têm-no como direito de guerra, e neste ponto os absolvea História inteira." Fora disso, são raros os casos de roubos.50

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O mais forte dentre os princípios que professava o Conselheiro era este: bem-aventurados os que sofrem. Ele "abria aos desventurados os celeiros fartos pelasesmolas e produtos do trabalho comum. Compreendia que aquela massa, naaparência inútil, era o cerne vigoroso do arraial". Era um profeta que anunciava ojuízo de Deus, a desgraça dos poderosos, o esmagamento do mundo profano, o reinode mil anos e suas delícias. Ansiava "pelo reino de Deus, prometido, delongadosempre e ao cabo de todo esquecido". Canudos lhe parecia uma escala no caminhopara a eternidade.

Segundo Euclides, os jagunços armavam em Canudos as tendas, na romaria paraos céus. Como nada queriam dessa vida, aderiram a uma espécie de coletivismo:apropriação pessoal apenas de objetos móveis e de casas, comunidade da terra, daspastagens, do rebanho e dos escassos produtos das culturas. Junto com os haveres, oConselheiro pregava que os fiéis abandonassem o mais leve traço da vaidade. Macieltinha horror à mulher e à beleza, e considerava o uso da aguardente como delitosério. Contados os últimos dias do mundo, urgia antecipá-lo pelos jejuns, provaçõese martírio. Todo aquele que se quisesse salvar precisaria vir para Canudos, porquenos outros lugares tudo estava contaminado e perdido. Ali, porém, nem é precisotrabalhar, é a terra da promissão, "onde corre um rio de leite e são de cuscuz demilho as barrancas".51

A República e seus bárbarosO olhar de Euclides que condena e denuncia se abre então para o futuro em umaadvertência sobre os rumos de uma história que ainda não terminou. Canudos foi"um assalto" em uma "luta longa" que conduz a civilização aos sertões, numprocesso do qual, de algum modo, todos participamos. Mas o olhar abrangente doescritor permite, não por acaso, reconhecer que à volta desse "crime" houve, apesarde tudo, e de ambos os lados, grandeza bastante para nos dar esperança.

Uma das lições aprendidas por Euclides na guerra de Canudos é que "estamoscondenados à civilização". "Ou progredimos, ou desaparecemos."52 Embora nalinguagem do seu tempo, tão preocupada com as etnias e suas misturas, Euclides nosfala da formação do povo brasileiro, obrigando-se, desse modo, a rememorar omisticismo e a miscigenação que estão nas origens do país. As misturas do branco,do índio e do negro criaram o mestiço, o mameluco e o cafuzo, misturas típicas quese multiplicam em outras misturas. Daí, diz Euclides, que não temos uma raça única,"não a temos e não a teremos talvez nunca".53

Nesse amplo processo de criação de um povo multirracial, o sertanejo será agrande exceção, "fusão perfeita de três raças". Os "rudes compatriotas retardatários"

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estão no centro mesmo da nacionalidade. O que significa que, tendo se esquecidodeles, o país, na verdade, esqueceu-se de si próprio. Significa também que arecuperação da memória histórica sobre sertanejos e jagunços tem o sentido de umaredenção da própria nação.

Em seus inícios, a República não entendeu a lição que revelava, em Canudos,"aquele afloramento originalíssimo do passado". A juventude militar foi atacada de"um lirismo patriótico que lhe desequilibrara todo o estado emocional. Para essesjovens, a luta pela República, "e contra os seus imaginários inimigos, era umacruzada". E nesses modernos templários "a paixão patriótica roçava, derrancada,pela insânia". Dentre os que caíam a bala à entrada de Canudos muitos saudavam amemória de Floriano Peixoto "com o mesmo entusiasmo delirante (...), com que osjagunços bradavam pelo Bom Jesus misericordioso e milagreiro".54

Nos anos da guerra de Canudos registrou-se uma "correria do sertão" invadindo ascidades do litoral. Como nas ladainhas do Conselheiro, o sertão chegava ao mar. Arua do Ouvidor, no Rio de Janeiro, tornou-se "um desvio das caatingas". Jornais queousaram criticar as represálias contra Canudos foram queimados por multidões "aosgritos de viva a República e à memória de Floriano Peixoto". A guerra sertanejaalastrara-se civilização adentro, ali encontrando, o homem do sertão, "parceirosporventura mais perigosos". Eis a interpretação de Euclides: "a força portentosa dahereditariedade (...) arrasta para os meios mais adiantados – enluvados e encobertosde tênue verniz de cultura – trogloditas completos". O curso normal da civilização oscontém e domina até que "um abalo profundo lhes afrouxa em torno a coesão dasleis, (e) eles surgem e invadem escandalosamente a História". Foi assim que, no Riode Janeiro, a primeira cidade da República, os patriotas satisfizeram-se com o auto-de-fé de alguns jornais adversos.55

A República não conseguiu entender que na pregação do Conselheiro não havia omenor intuito político. Foi tomada de espanto quando, nesse refluxo da história, tevepela frente, "inopinadamente, ressurreta e em armas (...) uma sociedade velha, umasociedade morta". Depois da proclamação de 1889, mais fundo se tornou "ocontraste entre o nosso modo de viver e o daqueles rudes patrícios mais estrangeirosnesta terra do que os imigrantes da Europa". Os brasileiros das cidades, "iludidos poruma civilização de empréstimo", não reconheceram a sociedade velha, comopoderiam tê-la reconhecido os iluminados da Idade Média ou os aventureiros doséculo XVII. Foi assim que, "com arrojo digno de melhores causas, batemo-los acargas de baionetas, reeditando por nossa vez o passado, numa entrada inglória,reabrindo nas paragens infelizes as trilhas apagadas das bandeiras".56

Foram por isso sempre decepcionantes para o Exército as vitórias contra ossertanejos de Canudos. Destruído o arraial, "o que mais acirrava a cobiça dos

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vitoriosos eram as cartas, quaisquer escritos e, principalmente, os desgraciososversos encontrados. (...) Registravam as prédicas de Antônio Conselheiro; (...) o quenelas vibra (...) é a mesma religiosidade difusa e incongruente, bem poucasignificação política permitindo emprestar-se às tendências messiânicas expostas. Orebelado arremetia com a ordem constituída porque se lhe afigurava iminente oreino de delícias prometido. Prenunciava-o a República – pecado mortal de um povo– heresia suprema indicadora do triunfo efêmero do Anti-Cristo".

Ao final da guerra, viu-se pela primeira vez, em conjunto, a população deCanudos. Era raro nela "um branco ou um negro puro. Um ar de família em todosdelatando, iniludível, a fusão perfeita de três raças". Ao redor dos derrotadosachavam-se os vitoriosos, "díspares e desunidos, o branco, o negro, o cafuzo e omulato proteiformes com todas as gradações da cor". Euclides ressalta o contraste:"a raça forte e íntegra abatida dentro de um quadrado de mestiços indefinidos epusilânimes". O "cerne da nacionalidade" fora quebrado na luta. "Humilhava-se."57

Como diz Euclides, aqueles pobres rebelados requeriam outra reação, "obrigavam-nos a outra luta".58 "(...) era indispensável que a campanha de Canudos tivesse umobjetivo superior à função estúpida e bem pouco gloriosa de destruir um povoadodos sertões. (...) Toda aquela campanha seria um crime inútil e bárbaro, se não seaproveitassem os caminhos abertos à artilharia para uma propaganda tenaz, contínuae persistente, visando trazer para o nosso tempo e incorporar à nossa existênciaaqueles rudes compatriotas retardatários."

A conclusão de Euclides, porém, é melancólica: "sob a pressão de dificuldadesexigindo solução imediata e segura, não havia lugar para essas visões longínquas dofuturo".59

1. LOBO, Aristides. em carta dirigida ao Diário de São Paulo, apud: RABELLO, Sylvio. Euclides da Cunha. Riode Janeiro: Civilização Brasileira, 1966, p. 44. Os dados biográficos sobre Euclides da Cunha são apoiadosnesse livro de Sylvio Rabello.

2. RABELLO, op. cit., p. 48.3. Apud STEGAGNO-PICCHIO, op. cit., p. 399.4. Taunay foi, como Euclides, oficial engenheiro do exército. O livro, sobre um episódio da guerra do

Paraguai, foi escrito em francês e traduzido para o português, tornando-se um clássico da literaturabrasileira. "A retirada da Laguna é estruturada (...) em perspectivas de tragédia grega, na qual os heróis,'nem completamente inocentes, nem completamente culpados', estão por antecipação condenados aoaniquilamento, em conseqüência de qualquer obscura vingança divina"; cf. MARTINS, op. cit., v. 3, p. 349.

5. Entre as obras mais recentes sobre a mesma história, acha-se o livro do escritor peruano Mario VargasLlosa, A guerra do fim do mundo (Trad. de Remy Gorga Filho. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981).

6. O livro foi um "imenso mea-culpa coletivo, que, aceito pela ordem vigente, serviu de catarse ao menosparcial para essa consciência"; cf. GALVÃO, Walnice Nogueira. No calor da hora. A guerra de Canudos nos

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jornais. Quarta expedição. São Paulo: Ática, 1974. p. 98.7. STEGAGNO-PICCHIO, op. cit., p. 399.8. São palavras de Euclides da Cunha citadas em: VENTURA, Roberto. Euclides da Cunha: a história como

tragédia. Disponível em: <www.euclidesdacunha.org/ventura2000>. Acesso em: nov. de 2005.9. ZILLY, Berthold. Quadros e cenas de uma guerra: a história encenada em Os sertões, de Euclides da Cunha.

Disponível em: <www.euclidesdacunha.org/conferenciaoficial97>. Acesso em: nov. de 2005.10. Ibidem.11. Nabuco, apud RABELLO, op. cit., p. 40.12. As informações biográficas sobre Euclides são de RABELLO, op. cit., p. 40 e seguintes.13. CUNHA, Euclides da. Os sertões. Campanha de Canudos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995. p. 181.14. RABELLO, op. cit., p. 65.15. CUNHA, Os sertões, cit., p. 183.16. Ibidem, p. 178-179.17. Ibidem, p. 199 e 204.18. ZILLY, Berthold. A barbárie: antítese ou elemento da civilização? In: A LMEIDA, Ângela Mendes de; LIMA,

Eli Napoleão de; ZILLY, Berthold (Orgs.). De sertões, desertos e espaços incivilizados. Rio de Janeiro:Mauad, 2001.

19. CUNHA, Os sertões, cit., p. 418.20. Ibidem, p. 200, 203, 205 e 245.21. ABREU, Regina. O enigma de 'Os sertões'. Rio de Janeiro: Rocco/Funarte, 1998. p. 11122. CUNHA, Os sertões, cit., p. 251.23. Ibidem, p. 278-279.24. Ibidem, p. 292 e 295.25. Ibidem, p. 375.26. Ibidem, p. 286 e 309. Machado de Assis, que tinha uma coluna na Gazeta de Notícias, escreve em 31 de

janeiro de 1897: "Protesto contra a perseguição que se está fazendo a Antônio Conselheiro".27. CUNHA, Os sertões, cit., p. 336-7.28. Ibidem, p. 371-372.29. Ibidem, p. 375 e 377-378.30. Ibidem, p. 377-380 e 409.31. Ibidem, p. 469.32. Ibidem, p. 425-426, 428 e 452.33. Ibidem, p. 452, 458, 495-496, 521 e 577.34. Ibidem, p. 38335. Ibidem, p. 596, 598, 600 e 603.36. Ibidem, p. 602 e 612.37. Ibidem, p. 626 e 642.38. Euclides da Cunha. Canudos: Diário de uma expedição. In: CUNHA, E. da. Obra completa. Organização de

Afrânio Coutinho. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. v. 1, p. 585-691.39. Euclides diz que esse batalhão da Bahia era "o único entre todos que se talhara pelas condições da

campanha. Recém-formara-se com sertanejos engajados nas regiões ribeirinhas do S. Francisco"; CUNHA,Os sertões, cit., p. 409.

40. Ibidem, p. 645.41. Ibidem, p. 64, 88, 94-95, 104 e 110.42. Ibidem, p. 114 e 237.43. Ibidem, p. 114 e 118.

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44. Ibidem, p. 121 e 122.45. Ibidem, p. 132-134.46. Ibidem, p. 154 e 158.47. Ibidem, p. 154-155 e 158.48. Ibidem, p. 165-167, 169 e 193-194.49. Ibidem, p. 194-195.50. Ibidem, p. 239.51. Ibidem, p. 208-210 e 215.52. Ibidem, p. 84.53. Ibidem, p. 82.54. Ibidem, p. 389, 396 e 493-494.55. Ibidem, p. 388-390.56. Ibidem, p. 221-222.57. Ibidem, p. 639-640.58. Ibidem, p. 222-223.59. Ibidem, p. 554.

[<<23]

Oliveira Viana, a sociedade "insolidária", nova imagem do país sem povo.

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CAPÍTULO 11

OLIVEIRA VIANATRANSIÇÃO DA PRIMEIRA À SEGUNDA REPÚBLICA

O latifúndio é o grande medalhador da sociedade e do temperamento nacional.

O nosso homem do povo, o nosso campônio é essencialmente o homem de clã, o homem decaravana, o homem que procura um chefe, e sofre uma como que vaga angústia secular todas as

vezes em que, por falta de guia, tem necessidade de agir por si, automaticamente.OLIVEIRA VIANA

As idéias da "era Vargas" vêm de um passado distante. Anteriores ao próprio GetúlioVargas (1883-1954), permaneceram influentes por vários decênios depois da suamorte. Nascido no Rio Grande do Sul, Getúlio Vargas foi deputado estadual em1909, deputado federal em 1923, ministro da Fazenda em 1926, governador de seuestado em 1928. Sua projeção nacional veio com a revolução de 1930, da qual foi oprincipal líder. Foi chefe do governo provisório em 1930, presidente constitucionalem 1934, ditador em 1937, deposto em 1945. Eleito presidente em 1950 pelo votopopular, sofreu quase ao fim do seu mandato, em 1954, uma crise política que olevou ao suicídio. Sua morte causou enorme impacto na opinião pública e asseguroudez anos de sobrevida política seus seguidores, representados nos governos deJuscelino Kubitschek (1955-1960) e João Goulart (1961-1964). Tendo ocupado acena política brasileira durante os decênios de após 1930, sua influência se estendeudepois da sua morte, por meio de seus seguidores e até mesmo de seus antigosadversários. Assim como as idéias da "era Vargas", as instituições criadas por elesobrevivem até hoje.

As diversas biografias e os estudos monográficos sobre Vargas e seus períodos degoverno não tornam mais fácil esclarecer as convicções pessoais de um líder cujasidéias estiveram sempre envolvidas em dúvidas e até mesmo num mistério que osuicídio tornou mais denso. Mas não é difícil imaginar que alguns dos princípios queadotou como político e chefe de Estado remontam ao centralismo do Império, talvezmesmo ao Iluminismo despótico do Marquês de Pombal. Em todo caso, teriam sidoprincípios mais antigos do que as tinturas do positivismo de Auguste Comte (1798-1857) que recebeu no início do século XX, como muitos jovens da elite republicana

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da época. No estado atual dos estudos sobre Vargas, temos que nos contentar com osignificado mais geral de suas idéias, aquele que se revela em seus feitos. Umprocedimento indispensável no caso de um personagem histórico que se caracterizoucomo o mais contraditório e paradoxal da história brasileira do século XX.

O certo é que Getúlio Vargas estabeleceu as bases do país industrial, do Estado eda nação brasileira que se conhecem na virada para o século XXI. Entre suasqualidades como estadista estava a de haver percebido as possibilidades inovadorasda época de crise e de mudanças em que viveu. Homem de formação tradicional, defamília de estancieiros do sul do país, ele foi tão contraditório quanto muitos dosacontecimentos da época em que viveu. Como a história de Pombal, a de GetúlioVargas se inscreve entre as dos estadistas que em algum momento acreditaramperceber o germe de modernidade embutido na tradição do país em que nasceram.Vargas terminou a vida tragicamente, mas consagrado entre os trabalhadores e opovo pobre do país. Foi também execrado por parte significativa das elites, que sóagora, mais de meio século depois de sua morte, parecem capazes de reavaliar suasignificação histórica com isenção. Vargas expressou sempre uma enormesensibilidade para as circunstâncias e para as possibilidades do presente, revelando-se portador de alguns traços típicos da tradição luso-brasileira. De um modo ou deoutro, construiu um projeto nacional aos pedaços, e fez o país sair para a frente.

Um novo começo do pensamento brasileiroO Brasil de Vargas sofreu os efeitos recessivos da crise de 1929, como outros paísesna América e no mundo. Mas os efeitos econômicos da crise, embora enormes, nãodevem fazer esquecer que nem só de economia se faz a história. Na mesma época,observa-se uma outra realidade, que tem mais a ver com a cultura e com a política, eque permitiu ao Brasil aproveitar as oportunidades que a crise abria para seudesenvolvimento e modernização. Num ambiente em que a florescente economia docafé contrastava, desde a segunda metade do século XIX, com a decadência dasminas e das velhas regiões açucareiras, aumentavam de há muito as insatisfações dasclasses médias urbanas, pequenas em número, mas expressivas nas agitações daopinião. Bem antes de 1929, muitos percebiam que o país agrário das oligarquias,federalista e liberal, devia buscar um novo rumo.

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Latifundiário e estancieiro, Getúlio Vargas iniciou a transformação do Brasil em país urbano eindustrial.

Na crise do mundo agrário, o pensamento social e político teve um novo começoque se beneficiou de aberturas para o mundo criadas pela revolução de 1930.Alguma aproximação entre os intelectuais e as autoridades revolucionárias seprolongou mesmo quando a revolução se converteu em ditadura, no Estado Novo(1937-1945). Isso se deveu, em grande parte, ao êxito de Gustavo Capanema (1900-1985) no Ministério da Educação, reunindo à sua volta intelectuais e artistas dediversas correntes de idéias: entre outros, os ensaístas Alceu Amoroso Lima (1893-1983) e Mário de Andrade (1893-1945); o poeta Carlos Drummond de Andrade(1902-1987); os músicos Heitor Villa-Lobos (1887-1959), Francisco Mignone(1897-1986) e Guiomar Novaes (1896-1979); o pintor Candido Portinari (1903-1962); os arquitetos Oscar Niemeyer (n. 1907), Lúcio Costa (1902-1998) e LeCorbusier (1887-1965); o educador Lourenço Filho (1897-1970).1

Se a cultura de algum modo se beneficiou da revolução e das novas circunstânciaspolíticas, também é certo que a política daqueles anos se beneficiou com umaelaboração cultural anterior, que vem desde os anos 1920, e que, em parte, sedesenvolveu em paralelo aos acontecimentos da revolução e do Estado. Nas décadasde 1920 a 1940, encontram-se as primeiras e inspiradoras obras de Oliveira Viana(1883-1951), Gilberto Freyre (1900-1987), Caio Prado Jr. (1907-1980) e SérgioBuarque de Holanda (1902-1982), que estabeleceram as premissas de uma teoria dasociedade e do desenvolvimento social do país.2 São daqueles decênios alguns livros

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que se consagraram como as "interpretações do Brasil": Populações meridionais doBrasil, de Oliveira Viana, saiu em 1920; Casa-grande & senzala, de Gilberto Freyre,em 1933, mesmo ano de Evolução política do Brasil, de Caio Prado Jr.; Raízes doBrasil, de Sérgio Buarque de Holanda, veio três anos depois, em 1936. Dos mesmosautores, vieram ainda, no decênio de 1940, outras obras notáveis, como Instituiçõespolíticas brasileiras, de Oliveira Viana; Sobrados e mucambos, de Gilberto Freyre; eFormação do Brasil contemporâneo, de Caio Prado Jr.

Os livros que menciono acima não são as únicas obras importantes desses autores,mas as primeiras. Especialmente as dos anos 1920 e 1930 podem ser tidas comoobras de juventude desses autores, cujas carreiras prosseguiram depois delas em ricaprodução intelectual. Essas obras são as que estão mais diretamente ligadas àemergência do Brasil moderno, e são por isso aquelas que chamam a minha atençãoneste capítulo e no seguinte. Não obstante as muitas diferenças, esses autoresassinalam, nessas obras juvenis, o surgimento de um novo pensamento brasileiro.Mais do que por sua produção intelectual posterior, foi por esses livros que eles seconverteram, por assim dizer, em pensadores canônicos da etapa inicial daconversão de país agrário em país industrial. Em meio às polêmicas intelectuais deum período crítico da história, eles deram a reconhecer aspectos novos da identidadedo povo brasileiro.

Com a exceção de Oliveira Viana, esses "ensaístas do Brasil" não forampartidários de Getúlio Vargas. Mas também é certo que, com a exceção docomunista Caio Prado Jr., que foi perseguido e preso em 1935, nunca estiveram tãodistantes que não pudessem ter momentos de convivência com o governo. Quanto aOliveira Viana, um dos mais importantes pensadores do período, tornou-se consultorjurídico do Ministério do Trabalho em 1932. Permaneceu no governo até 1940 e foium dos principais autores das leis sociais e sindicais criadas pela ditadura – aliás,até hoje vigentes, com poucas modificações.3

Oliveira Viana: precursoresComo seria de supor de intelectuais do Brasil da Primeira República, Oliveira Vianaera, como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Jr., um filho defamília tradicional. Diz um historiador que o autor de Populações meridionais eramembro de uma família de proprietários rurais, no estado do Rio de Janeiro, e que"confessava uma 'infinita ternura' pela gente humilde que mourejava à sombra nemsempre grata dos fazendeiros": (...) "toda minha obra respira uma 'íntima simpatia'por essa gente".4 Nascido nos últimos anos do Império e da escravidão (uma geraçãoantes de Gilberto Freyre, Buarque de Holanda e Caio Prado Jr.), Oliveira Viana

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formou-se numa época caracterizada pelo positivismo, eivada dos determinismos doclima e do meio natural e de racismos diversos.

Embora viesse a se caracterizar como um crítico das influências estrangeiras nopensamento nacional, Oliveira Viana não podia – como, aliás, nenhum intelectualexpressivo daqueles tempos – escapar de algum deslumbramento por idéias emodelos que vinham de fora. Na passagem do século XIX para o XX, ele se formoudebaixo de forte influência de nomes europeus, na maior parte franceses, como oconde Joseph-Arthur de Gobineau (1816-1882) e Louis Agassiz (1807-1873). Alémdos franceses, havia a influência do inglês Henry Thomas Buckle (1821-1862), que,numa extensa obra de história da civilização, deixou escapar em relação ao Brasilum pessimismo também freqüente em intelectuais brasileiros da época.5 Entre oslatino-americanos, a presença mais antiga de Domingo Faustino Sarmiento e a maisrecente de José Ingenieros (1877-1925).

A historiografia brasileira ainda seguia as velhas orientações historicistas demeados do século XIX, inspiradas na busca de uma identidade nacional. Seguia assugestões de Karl Friedrich von Martius em Como escrever a história do Brasil(1840) e da monumental História geral do Brasil, de Francisco Adolfo de Varnhagen(1854-1857).6 Esses autores definiam a base do ensino de história no país napassagem do século, não obstante as inovações de perspectiva de Capistrano deAbreu (1853-1927), com os Capítulos de história colonial (1907), buscassemestimular um melhor conhecimento da formação do interior do país. De conjunto,era uma historiografia pobre na interpretação das forças sociais, econômicas eculturais que moviam a história oficial, concentrada em grandes personalidades eacontecimentos.

Há, porém, que matizar um pouco esse quadro, abrindo-o para o reconhecimentode exceções, sem as quais se tornaria incompreensível o surgimento de OliveiraViana e dos demais "ensaístas do Brasil". Entre estas, algumas são verdadeiramentenotáveis, como os escritos abolicionistas e a obra de historiador de Joaquim Nabucoe o extraordinário impacto de Os sertões, de Euclides da Cunha. Nas gerações queprecederam Oliveira Viana registre-se ainda, ao lado da historiografia oficial, ummovimento de renovação de idéias, de que participou, entre outros, Sílvio Romero.

No discurso com que recebeu Euclides da Cunha na Academia Brasileira deLetras, em 1906, Romero criticou com ênfase a cultura do Segundo Reinado: "ainteligência nacional andava encurralada num círculo de romanticismo caduco e demetafisismo banal, envoltos ambos numas retorices sovadas, balofas, inanes, em quevelhas frases eram glorificadas e erigidas à cultura de teses científicas, de pilastraseternas do verdadeiro. Em política o Visconde do Uruguai e o conselheiro zacariasde Góis esbofavam-se por estabelecer a exata doutrina acerca da natureza e limites

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do poder moderador". Esse crítico severo podia ter também ímpetos de entusiasmo eesperança, raros entre os intelectuais da sua época: "O Brasil é fatalmente umademocracia. Filho da cultura moderna, nascido na época das grandes navegações,(...) ele é, além do mais, o resultado do cruzamento de raças diversas (...). Ora, osdois maiores fatores de igualização entre os homens são a democracia e omestiçamento".7 Eis todo um programa de idéias novas, só parcialmente acolhidopor Oliveira Viana, mas desenvolvido décadas depois por Gilberto Freyre.

Oliveira Viana não foi uma exceção numa época de predominância racista, comtodas as oscilações de um pensamento que tinha também algo de moda intelectual.Mas também é certo que, nos momentos iniciais do século XX, começavam a surgiros primeiros críticos do racismo. Manuel Bonfim (1868-1932) criticou o racismo eos determinismos em A América Latina (1905), e em outro livro antecipou umavisão culturalista que se tornou, décadas depois, dominante no pensamentobrasileiro. "Somos um povo cruzado, e povos cruzados serão sempre aquilo em quese fizeram expressão de misturas combinadas." Em outras palavras, "o valor atualdas raças é, apenas, valor de cultura". Segundo Flora Süssekind, a obra de ManuelBonfim também se antecipou à do mexicano José Vasconcelos (1882-1959), La razacósmica (1925), com a sua "utopia híbrida", na qual uma "fusão de estirpes"prepararia "o rico plasma da humanidade futura". Os sentimentos que afloravam noBrasil desabrochavam também em outras partes da América ibérica.8

Talvez se possa afirmar – e o fazem alguns comentadores – que Oliveira Viananão permaneceu tão distante dessas novas influências como pode parecer à primeiravista. No ecletismo mais ou menos inevitável na época, podemos tomá-lo também,sob certos aspectos, como um culturalista, embora não tenha sido esse, com certeza,o traço dominante em seu pensamento.9 De grande influência sobre Oliveira Vianafoi Alberto Torres (1865-1917), ex-ministro de Prudente de Morais, o primeiropresidente civil da República, governador do Estado do Rio de Janeiro (1897-1900) eministro do Supremo Tribunal de Justiça. Nos dois livros que publicou, em 1914, Oproblema nacional brasileiro e A organização nacional, reuniu artigos e ensaios nosquais fazia a crítica do federalismo e pregava a centralização do poder. É só nadécada de 1920, porém, já em meio à crise da velha República agrária, que essasidéias chegariam a frutificar, nas obras de outros autores. Desses, o mais importantefoi Oliveira Viana, em controvérsias políticas e culturais de grande projeçãohistórica.

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Colheita de café em São Paulo, 1930:crise do mundo agrário abriu espaço para um novo modo de pensar o Brasil.

O primeiro sociólogoPopulações meridionais do Brasil, escrito em 1918, foi publicado em 1920. Trata-se,portanto, de um livro contemporâneo da crise da República agrária, anterior de quasedez anos à grande crise econômica de 1929 e à revolução de 1930. Talvez por issotenha parecido mais ajustado ao tom da mentalidade conservadora inscrita narealidade do país do que os primeiros livros de Gilberto Freyre, Caio Prado e SérgioBuarque de Holanda. Embora com uma vasta bibliografia que se estende até os anos1940, Oliveira Viana foi, sobretudo, um herói intelectual dos anos 1920. Populaçõesmeridionais teve tamanho êxito que seu autor se sentiu estimulado a publicar, quasede imediato, uma série de livros, todos relativos à formação social e política doBrasil: O idealismo na evolução política do Império e da República (1922), O ocasodo Império (1925) e Pequenos estudos de psicologia social (1921), sem esquecerProblemas de política objetiva, embora este publicado em 1930. Essa apertadaseqüência levou um crítico a dizer, com ironia, que na década de 1920 "grassavaOliveira Viana".10

Oliveira Viana foi, decerto, um conservador, mas também um inovador. Os temascentrais de sua obra, nas palavras de João Cruz Costa, foram "o sertão, as raças e acentralização política". Se entendermos que a referência às raças era, na época, umaforma indireta, no mais das vezes negativa, de referência ao povo, foram tambémesses os temas centrais do pensamento do seu tempo.11 É sabido que sua visão doBrasil incluía um declarado menosprezo pelo mestiço e pelo negro, ao lado de um

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entusiasmo por um aristocratismo arianista que identificava nos primeiroscolonizadores portugueses.

Não obstante esses compromissos conservadores, Oliveira Viana criou osfundamentos da sociologia brasileira, dando continuidade a intuições anteriores deJoaquim Nabuco e Euclides da Cunha.12 Ele estabeleceu uma distinção de regiões naanálise da sociedade brasileira que deixou para trás as velhas abordagens do paíscomo um todo uniforme. Definiu assim uma perspectiva intelectual que, de algummodo, se "incorporou ao cânone interpretativo de nossa realidade". Estudando no seuprimeiro livro as populações rurais do sudeste (Rio, São Paulo e Minas), ele sepropunha pesquisar nas próximas obras as do sul e do norte.13

Algumas de suas inovações terminaram se impondo aos demais "ensaístas doBrasil", numa antecipação intelectual, mais do que cronológica. Apesar de racista,conservador e autoritário, ou talvez por isso mesmo, o fato é que Oliveira Vianainaugurou a agenda dos debates intelectuais dos anos 1920 e 1930. Nesse sentido,não creio que haja exagero na afirmação de que sua influência chegou aos anos 1950,por meio de alguns intelectuais filiados ao Instituto Superior de Estudos Brasileiros(ISEB).14

Anos 1920, uma década de criseAlgo da força de Oliveira Viana nos anos 1920 tem a ver com as respostas queofereceu para a atmosfera de crise daqueles tempos. Seu primeiro livro surgiu doisanos antes de acontecimentos que assumiram na história brasileira o sentidosimbólico de um aprofundamento da crise da República agrária. O ano de 1922 foimarcado pelo episódio dos "dezoito do forte de Copacabana", da rebelião de jovensoficiais que iniciou o movimento "tenentista". Esse movimento, que teria seqüênciaem várias rebeliões, inclusive na de São Paulo, em 1924, culminou em 1926 com a"coluna Prestes". É também de 1922 a famosa Semana de Arte Moderna, em SãoPaulo, impulsionando uma ruptura com os padrões tradicionais nas artes eestimulando os intelectuais a um encontro com o país real.

Surgiu no mesmo ano o Partido Comunista, de pequena influência, masprenunciando o que viria a ser a Aliança Nacional Libertadora e sua tentativa deinsurreição em 1935. Também de 1922, o governo de Artur Bernardes (1875-1955)operou seus quatro anos de gestão por meio do estado de sítio, irredutível a qualquercompromisso com os oposicionistas. Incapaz de evitar o desgaste crescente dosistema oligárquico, o governo seguinte (1926-1930), de Washington Luís (1869-1957), não teve como evitar que em 1929 a disputa rompesse o sistema, abrindocaminho para a revolução. Ampliada pelas polarizações ideológicas da Europa de

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entre-guerras e agravada pela crise econômica de 1929, a controvérsia política setornaria lugar comum no cenário brasileiro no decênio de 1920 e nos seguintes.

Além do conservadorismo, em especial um racismo que alguns anos depoisserviria para estigmatizá-lo, Oliveira Viana trazia em Populações meridionais, asbases de uma concepção autoritária do Estado que também pouco contribuiu para asua popularidade entre os intelectuais, muitos deles com uma inclinação à esquerda.Sua concepção do Estado alimentava-se de um pensamento de longas raízes napolítica do Império, sobretudo em Paulino José de Sousa, o visconde do Uruguai, eJosé Antônio Pimenta Bueno, o marquês de São Vicente. Como seus precursores,Oliveira Viana expressava-se a favor de uma centralização do poder que entendiamenos como um fim em si e mais como um meio necessário para que o povo fosseeducado e organizado para o exercício da democracia.

Era, sem dúvida, um autoritarismo, mas que se propunha como provisório,destinado a desaparecer quando atingisse seu objetivo. E, contudo, esse"autoritarismo instrumental" sobreviveu não apenas ao Império. Sobreviveu tambémà Primeira e à Segunda Repúblicas, estabelecendo-se como parte da cultura políticabrasileira. No regime militar (1964-1985), conviveu com visões governistas quelimitavam o significado da democracia ("democracia relativa") e, nas áreas deoposição, com teorias de uma "democracia substantiva" que, mais do que o respeitoem razão das "regras do jogo", punham em destaque seu conteúdo social eeconômico. É muito recente na história brasileira a concepção da democraciapolítica como um valor em si, contemporânea dos movimentos democráticos que,nos anos de 1980, dão fim ao regime militar. É também recente o resgate de OliveiraViana como sociólogo como parte de um movimento de idéias que, em princípio,voltam-se contra as suas premissas ideológicas e políticas.15

Em todo caso, mesmo como conservador, Oliveira Viana pertencia a uma épocade transição, e desejava mudar o país, nisso participando da inconformidade comumaos intelectuais em qualquer tempo em países como o nosso. Apegado ao interior, depequenas cidades, predominantemente rural, foi o típico intelectual de uma épocaem que mesmo os grandes aglomerados urbanos como o Rio de Janeiro, São Paulo eRecife (sem esquecer Niterói, capital de seu estado), eram pequenos diante daenormidade do mundo rural. Esse pequeno mundo urbano era ainda menor na visãode Oliveira Viana, fascinado com a vastidão quase infinita de um passado agrário,que ele se dedicou a resgatar em sua obra. Além da atmosfera conservadora em quese formou, há que considerar ainda que ele próprio, como pessoa, parecia infenso aogosto pelas novidades, tendo vivido quase sempre enfurnado no interior do estadoonde nascera.

O autor de Populações meridionais não participou do movimento modernista, o

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que ocorreu com Gilberto Freyre, Sérgio Buarque e muitos outros. Não se conhecedele nenhuma intenção de rupturas com o passado que renovassem o pensamento eas artes no Brasil. "Alguns modernistas, senão todos, deixavam-se fascinar pelatécnica do mundo moderno, pelas máquinas, pelas invenções, pelas grandesmetrópoles. Nada disto atraía Oliveira Viana."16 Por outro lado, vale a pergunta:teria o modernismo que agitava alguns salões de São Paulo força bastante parachegar às vizinhanças de Niterói? Teria o conservador Oliveira Viana motivos parasair de seus cuidados, deixando-se impressionar pelo modernismo?

Os modernistas buscaram, ao mesmo tempo, inspirar-se nas formas européiascontemporâneas da arte, e resgatar, em nome da autenticidade nacional, valoresestéticos e culturais do passado. Eram assim desde o início paradoxais as formasestéticas por meio das quais procuravam reconhecer os sinais de uma época deacelerada modernização da sociedade. Aumentou em alguns círculos a influência dosiconoclastas da cultura, mas os santos barrocos permaneceram venerados em seusnichos. Oscilando entre o cosmopolitismo e o nacionalismo, o modernismo trouxetambém o engajamento de muitos intelectuais que ingressariam na cena política nosanos seguintes. Alguns se encaminharam para a direita, no Integralismo, e outrospara movimentos de esquerda.

Embora pretendessem seguir nas artes o exemplo das vanguardas européias, osmodernistas queriam também pesquisar os "alicerces da nacionalidade brasileira nabusca de suas maneiras de ser, seus falares, sua diversidade étnica e cultural, e dasindefinições que estão na raiz da sua inventividade". Foram, portanto, partícipes de"uma modernidade ideológica e irônica (... ) que mescla o cosmopolita e o nacional,mas que representa, sobretudo, uma opção pelo nacional".17 Embora pudesse seratraído por essa pesquisa do passado e dos "alicerces da nacionalidade", OliveiraViana permaneceu alheio ao movimento. Um motivo evidente é o da recusa de suaspretensões renovadoras. Outro motivo possível seria que ele não precisava tornar-semodernista para realizar "uma opção pelo nacional" e uma pesquisa do passado queele próprio já havia iniciado.

"Nós somos o latifúndio"Expurgadas do racismo e dos excessos de conservadorismo, algumas idéias deOliveira Viana passaram a integrar, nos decênios de após 1920, o senso comum daintelectualidade. Como assinala Gildo Marçal Brandão, "o ponto de partida dePopulações meridionais parece um ovo de Colombo, embora nem sempre tenha sidoaceito como tal".18 De fato, algumas de suas idéias passaram a soar como truísmos,esquecidas a sua gênese e o contexto ideológico no qual se formaram.

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É o caso, em especial, da definição de Oliveira Viana sobre o papel essencial dagrande propriedade da terra na formação da sociedade brasileira. "Nós somos olatifúndio", dizia. É claro que, na intenção do sociólogo, tratava-se não de umaapologia do status quo, mas de um juízo de realidade. Mas, descontado o excessoretórico, que novidade teria tal frase nos ambientes intelectuais dos anos de 1950 e1960? E, contudo, o êxito de idéias como essa não parece haver aumentado oprestígio do autor, cuja imagem permaneceu tisnada pelo racismo, peloconservadorismo e pelo autoritarismo.

A sociologia de Oliveira Viana expressava uma sensibilidade para o social,apoiada em uma distinção – ou melhor, no reconhecimento de uma inadequação –entre o "país legal" e o "país real", na qual é fácil perceber a influência da Françacatólica e conservadora. Ele assinalava aspectos da realidade do país que ainteligência da Primeira República, embaraçada nos formalismos de seu liberalismo,revelava-se incapaz de perceber. No caso do latifúndio, Viana apontava para arealidade das bases sociais do regime: no Brasil, para ele, liberalismo significa nadamais do que caudilhismo local ou provincial.

É dessa visão do desencontro entre o "país político" e o "país real" que vinha oaspecto inovador de sua visão da crise dos anos 1920 e 1930. Procedendo a umaatualização de argumentos já conhecidos no Império, sua crítica tinha como alvoprincipal o idealismo das elites. Para Oliveira Viana, viveríamos, desde aIndependência, "politicamente em pleno sonho", apartados da "noção objetiva doBrasil real". Viveríamos rompidos com nosso passado em nome de ideais abstratosde elites que "criam para (seu) uso um Brasil artificial".19

Segundo a interpretação de Werneck Vianna, é nessa perspectiva que OliveiraViana sustenta "a precedência do Homo sociologicus sobre o Homo politicus". Essaprecedência é raiz comum do pensamento autoritário brasileiro que alimentarátambém o tronco comum "das interpretações que buscam afirmar a nossasingularidade como país". Prossegue Werneck Vianna: "na imensa área doslatifúndios agrícolas todas as demais classes sociais e os próprios centros urbanos seencontram submissos às influências e ao prestígio do senhoriato local – eis, aí, amarca da singularidade brasileira e o motivo pelo qual "somos inteiramente outros"em relação à formação das sociedades européias e da americana. Somosinteiramente diferentes mesmo em relação aos argentinos, que desconheceram "afunção centrípeta das nossas fazendas autárquicas".20

Considerado seu débito com os pensadores do Império, a novidade de OliveiraViana estaria em dar a perceber que aqueles viram o poder dos proprietários de terraa partir do ângulo político, não do ângulo social. Viram o poder dos proprietários pormeio dos problemas que estes criavam para o poder central e para a preservação da

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liberdade daqueles submetidos ao seu domínio. Em face dessa tradição que oinfluencia fortemente, Oliveira Viana guardava, porém, a originalidade de sua visãosociológica. Sem ignorar os temas da ordenação jurídica e institucional, presente emO ocaso do Império, e no cuidado estratégico com que discute as leis sociais doEstado Novo, sem ignorar os temas institucionais, seu ângulo de preferência é asociedade. Como disse certa vez, ele não podia concordar com os que achavam que oEstado pode tudo. Para ele, se a sociedade não existe como capacidade derepresentação, existe como problema que o Estado não pode ignorar. Seu ângulo depreferência é o do "país real".

Oliveira Viana foi o primeiro a formular o conceito do latifúndio como base dasociedade brasileira. O latifúndio existia na colônia como fato, não como conceito. Emesmo quando, no Império, veio a existir como conceito, o foi em caráterexcepcional, na obra de Joaquim Nabuco, dedicada essencialmente ao estudo (e aocombate) da escravidão. Mas, se o conceito é tardio, o reconhecimento do fatonasceu com o país. Em fins do século XVI, Gabriel Soares de Sousa (1540?-1591)dizia que "há na Bahia mais de cem moradores que têm cada ano de mil cruzados aaté cinco mil cruzados de renda, e outros que têm mais (...), os quais tratam suaspessoas mui honradamente, com muitos cavalos, criados e escravos, e com vestidosdemasiados, especialmente as mulheres". Os luxos desses proprietários de muitasposses de terra são também mencionados por José de Anchieta, que diz que todostêm "muitos escravos e fazendas de açúcar". Fernão Cardim (1540-1625) fala dahospitalidade dos senhores de engenho, sempre de casa cheia, "parecem condes egastam muito". É famosa na historiografia a frase de Antonil (1649-1716), de 1710:"O ser senhor de engenho é título a que muitos aspiram, porque traz consigo o serservido, obedecido e respeitado de muitos".

Antigo na realidade dos fatos, o latifúndio é, porém, relativamente recente comobase de explicação sociológica e histórica da sociedade. Uma descoberta intelectualque, depois de Oliveira Viana, tornou-se, embora com modificações, amplamenteaceita. O que ocorreu de um modo tão generalizado que, para muitos, tornou-sedifícil aceitar que realmente fosse uma novidade. Como se o conceito tivesse vindojunto com o fato empírico, passou-se a ignorar a primazia de Oliveira Viana aoestabelecer uma premissa fundamental da sociologia brasileira.

Para ele, o latifúndio era o "grande domínio", concebido à maneira da antigüidade,como "fazenda autárquica", e ressaltando, como nos antigos, o poder do pater-familias. No clã familiar rural estaria a origem do "clã colonial", que Oliveira Vianaentendia como instituição social nascida das circunstâncias brasileiras, numa épocaem que já se encontrava decadente em Portugal. Depois que na colônia o poderpúblico fragmentou-se, pulverizou-se e por fim dissolveu-se, "o clã rural foi a

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unidade social agregadora por excelência na colônia". Tornou-se a base da sociedadecolonial e, no país independente, de uma peculiar estrutura de poder que encontraráno Império e na Primeira República sua forma exemplar.21 Nesse sentido, olatifúndio tornou-se "o grande medalhador da sociedade e do temperamentonacional".

O sociólogo conservador foi seguido nesse ponto pelo marxista Caio Prado Júnior,para quem o clã era "algo específico de nossa organização", ou seja, de nossasociedade. Para o marxista, como para o conservador, o clã surgiu numa épocacolonial em que à autoridade pública "fraca e distante" não restara outro recursosenão reconhecê-lo e adaptar-se. Dava-se, assim, nas palavras de Caio Prado, a"aristocratização do grande proprietário". Assim como incorporada por Caio PradoJr., "a linha traçada por Oliveira Viana sobre o problema do clã sobreviveria, atravésda obra de Gilberto Freyre, na concepção de uma sociedade colonialpredominantemente patriarcal".22

A novidade de Oliveira Viana foi admitida com facilidade por Caio Prado Jr. eGilberto Freyre, estendendo-se no travejamento interior de suas obras, talvez porquefossem mais próximos dele no tempo, ainda lembrados de sua influência nos anos1920. O "grande domínio" está embutido no conceito da "grande família patriarcal"dos engenhos de açúcar estudados por Gilberto Freyre em Pernambuco, "formasociológica" que, adverte o autor, encontra-se também em outras regiões, não apenasnos engenhos do Nordeste. Quanto a Caio Prado, em suas críticas à historiografiatradicional, abriu exceção apenas para Oliveira Viana, que, em suas palavras, "foi oprimeiro, e o único até agora, a tentar uma análise sistemática e séria da nossaconstituição econômica e social no passado".

Modificando o significado do latifúndio segundo suas próprias preferênciasteóricas, Caio Prado e Gilberto Freyre passaram a ver nele a base da sociedade.Assim como na "grande família patriarcal" do primeiro, o latifúndio está embutidotambém na economia da plantation de Caio Prado Jr. À semelhança do sul dosEstados Unidos, Caio Prado via na plantation a base da economia do café de SãoPaulo, voltada para o mercado externo, como também o era a economia do açúcar noNordeste.

Oliveira Viana e Joaquim NabucoQuando Oliveira Viana despertou para suas descobertas sobre a sociedade brasileira,o país já havia mudado muito mais do que as preferências da elite para conhecê-lo.Se o pensamento do Império se inclinava para a ordenação jurídico-institucional,não quer isso dizer que ignorasse o plano do social. Quanto ao social, importa

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ressaltar, porém, que a realidade que os pensadores do Império viam de essencialnão era a propriedade da terra, mas a propriedade dos escravos. Até 1850, o queviam de essencial, mais do que a propriedade, era o tráfico dos escravos. Essasquestões dominaram as atenções dos melhores pensadores do país até 1888, um anoantes do fim do Império. É esclarecedor, nesse sentido, comparar Nabuco e OliveiraViana.

Como historiador e como abolicionista, Nabuco é representativo do que havia demais avançado e moderno no pensamento de sua época, tanto na perspectivajurídico-política que então prevalecia quanto na perspectiva social que mais opreocupava. Sua sociologia do senhor e do escravo pode ser tomada como precursorada sociologia do latifúndio (Oliveira Viana) e da sociologia da casa-grande e dasenzala (Gilberto Freyre). Mas foi com o olho na questão central da escravidão queele mencionou o poder autocrático do senhor de escravos no seu "feudo" e do"isolamento" que este produzia na sociedade. Foi na perspectiva da destruição daescravidão e da "obra da escravidão" que mencionou a "grande propriedade".

Lembremos uma vez mais a reflexão de Nabuco: "O Norte todo do Brasil há derecordar, por muito tempo, que o resultado final daquele sistema (escravocrata) é apobreza e a miséria do país. (...) Como se sabe, o regime da terra sob a escravidãoconsiste na divisão de todo o solo explorado em certo número de grandespropriedades. Esses feudos são logo isolados (...). A divisão de uma vasta provínciaem verdadeiras colônias penais, refratárias ao progresso (...) não pode trazerbenefício algum permanente à região parcelada, nem à população livre que nelamora, por favor dos donos da terra, em estado de contínua dependência".23

Embora presente no pensamento do grande abolicionista, a figura do grandeproprietário de terras aparece, porém, no conjunto de sua obra, sempre misturadacom a figura do proprietário de escravos. Não podia, aliás, ser de outro modo.Nabuco entendia que a abolição era o primeiro passo para a criação de umasociedade livre, de um povo, de uma nação. O segundo passo estaria no combate aoque chamava a "obra da escravidão", uma perspectiva que se abriria depois daabolição, envolvendo esforços em prol da educação, da melhoria das condiçõessanitárias e das condições de vida do povo.

Nabuco mencionou também os pequenos proprietários, preocupação das elitesgovernantes desde o Primeiro Reinado, com algumas tentativas de colonização comimigrantes europeus no sul. Considerou ainda a necessidade da imigração, eacreditava, como quase todos em seu tempo, numa estratégia que conduziria ao"branqueamento" do país. Dentre os pensadores do Império, talvez tenha sido elequem mais apontou os grandes temas que alimentarão o pensamento brasileiro queviria depois dele, em Euclides da Cunha, Oliveira Viana, Gilberto Freyre, Caio Prado

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Jr. e tantos outros. Se José Bonifácio antecipou as idéias do século XIX, Nabucoantecipou as do século XX.

De tudo isso, o mais certo, porém, é que Nabuco foi, sobretudo, um grandeabolicionista, um homem do seu tempo. Em seu esforço intelectual e político, o queele via de fundamental era a necessidade da universalização do trabalho livre como oponto de partida para a construção da sociedade brasileira com a qual sonhava.

Desse ponto de vista, a novidade da sociologia de Oliveira Viana ao distinguir olatifúndio pode ser tida como um reflexo da Abolição. Um reflexo, portanto, davitória de Nabuco e dos abolicionistas. Com a Abolição, a base da riqueza e dopoder, em vez do escravo, passou a ser a terra. Foi essa a raiz da descobertaintelectual de Oliveira Viana.

O racismo do autor de Populações meridionais, mais visível no meio intelectualda década de 1930 do que já o fora nos anos 1920, um racismo do qual se afastoudepois, embora sem abandoná-lo de todo, acabaria por empanar o brilho das suasinovações intelectuais, até o ponto de que estas quase se perdessem nos confrontosideológicos da época. Esquentando as lutas políticas cada vez mais na Europa, com osurgimento do fascismo e do nazismo, muitos intelectuais passaram a expressaradesões democráticas e de esquerda, afastando-se do racismo os que porventura otivessem aceitado no passado.

Além dos reflexos da conjuntura européia, a instabilidade política no país eranotória: a derrota da rebelião de São Paulo em 1932, os freqüentes confrontos entrecomunistas e integralistas, a rebelião comunista de 1935, e, finalmente, a ditaduraem 1937, depois da qual os integralistas ainda tentaram uma rebelião em 1938. Nãoé difícil compreender que, como diz Antonio Candido, nos anos 1930, "a obra portantos aspectos penetrante e antecipadora de Oliveira Viana já parecia superada,cheia de preconceitos ideológicos". Decaindo a atração de Oliveira Viana, cresceu ados ensaístas que surgiram nos anos 1930, sobretudo Gilberto Freyre.

O Estado organizadorNas suas concepções políticas, Oliveira Viana recebeu as influências liberais econservadoras do Império e mudou-lhes o foco. Nisso, teve a ajuda de seu mestreAlberto Torres, um republicano liberal que, porém, era contrário ao federalismo.Para Alberto Torres, como para São Vicente e Uruguai, a preservação da unidadenacional, assim como a proteção da liberdade individual, não poderia vir do poderprivado, representado pelos chefes das oligarquias provinciais em que se dividia opaís. Assim como Nabuco acreditava que a abolição só poderia vir do alto, tambémeles acreditavam que a unidade nacional e a liberdade individual só poderiam ser

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preservadas a partir de iniciativas do poder central.Sob a influência de Alberto Torres, Oliveira Viana propugnava antes de tudo pela

restauração do Estado central que considerava destruído pelo federalismorepúblicano. Incorporou também de Alberto Torres tendências ao estatismo e aonacionalismo, ausentes do pensamento dos liberais do Império. Junto com a crençade origem imperial no papel do Estado como garante da unidade nacional,acrescentava a crença no Estado demiurgo. Deverá tornar-se típica do pensamento deOliveira Viana a convicção de que, se o Estado não criou a sociedade, deveria sercapaz de moldá-la, organizá-la, a partir da matéria caótica preexistente.

Como é nítido em Uruguai e São Vicente, o pensamento dos conservadores doImpério era de corte eminentemente jurídico, político e institucional. Concentrava-se nas questões relativas à organização institucional e ao papel centralizador eunificador da monarquia. A pedra de toque do sistema eram as funções do podermoderador ou do "poder pessoal" do Imperador. O Estado, segundo Uruguai, deviaser entendido, em vez do inimigo a ser combatido pelos liberais, como o principalfator de transformação política que, protegendo a liberdade, criava o espíritopúblico. Era o pedagogo da liberdade, cabendo-lhe educar o povo para a participaçãona sociedade política.

Onde não havia, como no Brasil, tradição de autogoverno, caberia ao Estadodesenvolvê-la. Como bem observa José Murilo de Carvalho, que reconhece emUruguai "ecos inconfundíveis de Tocqueville", o pressuposto do conservadorismo dovisconde era a crença na liberdade individual. Não obstante sua confiança no Estado,"sua utopia política continuava sendo a sociedade liberal e a política liberal". Assim,a ênfase na centralização estatal não envolvia um autoritarismo como um fim emsi.24 Também por isso, não era alheia, no campo das idéias, a certos representantesdo liberalismo monarquista.

Distante de Nabuco em muitos aspectos, em especial em sua descrição daestrutura social, Oliveira Viana se aproximou da sua sociologia política.Distanciava-se do abolicionista porque este era um federalista, embora, por força dasrealidades da vida, tivesse que ser, sobretudo, um monarquista. Como se sabe,Nabuco não seguiu o federalismo que se tornou dominante entre muitos dos seuscompanheiros de geração, como Ruy Barbosa (1849-1923), abrindo caminho para orepublicanismo dos últimos anos do Império. Manteve, por certo, ao longo da vida asensibilidade liberal, mas, quando escreveu Um estadista do Império, aproximou-sedos conservadores no reconhecimento de uma realidade que entendia comoinexorável.

Embora tivesse preferido, no campo das idéias, o federalismo, o "poder pessoal"do Imperador pareceu a Nabuco, quando assumiu as funções de historiador, tão

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necessário para o centralismo do Império quanto este para a unidade da Nação. ParaNabuco, o "poder pessoal" de D. Pedro II se explicava pelo que considerava uma dasvirtudes do Imperador: sua capacidade de ver a realidade do país e de agir emconseqüência. E a realidade era a incapacidade da sociedade, corrompida pelaescravidão, para se fazer representar. Tudo o mais, na política e no sistemainstitucional do Império, eram conseqüências.

Em face dessa visão, a novidade de Oliveira Viana estaria em que a necessidadede centralização do poder nasceria já, não da escravidão, mas do latifúndio e dascircunstâncias que este criava à sua volta. Em Populações meridionais, OliveiraViana buscou na história da colônia e do Império as raízes do fenômeno que opreocupava no presente do país independente e republicano. Se Nabuco dizia que o"feudo" do senhor escravocrata conduzia ao "isolamento", Oliveira Viana quase lherepete as palavras: o latifúndio "isola o homem", tornando-o incapaz de relaçõesassociativas. No latifúndio, "a solidariedade vicinal se estiola e morre", e, por isso, asociedade brasileira é fundamentalmente "insolidária". E assim tudo se passa "comose não existisse a sociedade".

Para Oliveira Viana, os latifúndios eram pequenos mundos que simplificavam aestrutura social, produzindo internamente diferenciações sociais que se limitavamaos senhores e seus dependentes. Só havia solidariedade dentro do clã fazendeiro, doclã parental, uma forma espúria de solidariedade, que gerava a patronagem e apolítica de clã. As instituições liberais do Império (e, por extensão, as da Repúblicafederativa) serviam apenas para acobertar, como uma espécie de contrafação do self-government americano, o domínio do caudilho.

Oliveira Viana voltava, assim, ao tema do "país sem povo", mas daria um moldenovo à velha idéia. Em sua visão, caberia ao Estado organizar a sociedade. Assimcomo os conservadores do Império acreditavam criar por meio do Estado cidadãosaptos para a democracia, Oliveira Viana queria, por intermédio do Estado organizara sociedade amorfa. Não que isso devesse significar que o Estado "pode tudo", pois,para ele, que sempre preferiu começar pelo "país real", a sociedade existe, como,aliás deixou claro em um projeto de enquadramento sindical que escreveu emjaneiro de 1940. Ele queria criar, sob impulsos do Estado, uma sociedade solidáriacom o barro da sociedade "insolidária".

O fato, porém, é que chegava ao mesmo ponto de Nabuco, quanto ao sistemainstitucional: a incapacidade da sociedade de se fazer representar. Era também omesmo ponto dos conservadores do Império: reforçar o poder central para manter aordem e assegurar a liberdade individual. Para assegurar a unidade nacional, caberiaao Estado organizar a sociedade, ensiná-la a se organizar, a praticar a solidariedade.

Não é de surpreender o êxito de Populações meridionais nos tumultuados anos

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1920, que prenunciavam o fim da República agrária, em que já as tendênciasprevalecentes da opinião eram de crítica ao liberalismo e ao federalismo. A unidadenacional tornara-se, uma vez mais, um tema aberto à luz do dia. Com as rebeliõestenentistas e os freqüentes desacertos entre as oligarquias, as ameaças à ordemdeixavam de ser simples figura de retórica. Nos anos de crise da República agrária, ateoria de Oliveira Viana oferecia um fundamento racional e plausível para asalternativas que se vislumbravam. Contrastando com as formas existentes deorganização do poder, ele parecia responder a sentimentos predominantes naopinião, em especial nas cidades.

Centralismo e corporativismoPopulações meridionais do Brasil antecipou-se, nos anos 1920, ao que deveria vir

nos anos 1930 e 1940, quando o país retomaria o centralismo, num crescendo que olevaria à ditadura de Getúlio Vargas, no Estado Novo. Apesar das aparênciasmussolinianas, e mesmo de uma aproximação momentânea com a Alemanha nazista,o Estado Novo foi uma ditadura ao estilo luso-brasileiro. Uma ditadura de estilosalazarista, que atendia às exigências corporativistas que pareciam generalizadas nãoapenas nas tendências prevalecentes na conturbada Europa, mas também no solo daAmérica ibérica.

Nos anos 1930, ao mesmo tempo que o Brasil caminhava para o Estado Novo, ocorporativismo se tornava um traço notável do México do general Lázaro Cárdenas(1895-1970), junto com o estatismo e o nacionalismo. Oliveira Viana reconheciatendências semelhantes também na América do Norte, no New Deal de Franklin D.Roosevelt (1882-1945), o que lhe permitiu, em seus escritos moldados no espírito doiberismo, manter como uma constante o fascínio da democracia anglo-saxônica.

Ao aceitar em 1932 o convite para trabalhar no Ministério do Trabalho – umministério recém-criado e ao qual Getúlio Vargas atribuía grande relevância – , osociólogo passava a servir à construção de um Estado que ajudara a conceber emteoria. Contribuiu para as leis sociais, buscando, nos moldes do corporativismo,organizar empresários urbanos e trabalhadores urbanos. Os do campo, onde tinhavigência o latifúndio, teriam que ficar para depois. Se na cidade as corporaçõesajudariam a regular os conflitos já existentes, no campo, regulado pela patronagem,serviriam apenas para criar conflitos onde eles não existiam.

Evidentemente, no corporativismo, organizar a sociedade significa tambémcontrolar a sociedade, reforçando, desse modo, o poder do Estado, no qual o governodeveria distinguir-se da administração. Essa distinção, de origem francesa nopensamento do visconde do Uruguai, era freqüentemente repetida por Oliveira Viana

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em "seu modelo de sociedade sindical e corporativa: centralização política,descentralização funcional".25 Assim como os conservadores liberais do Impérioapoiavam a centralização, mas não convertiam o autoritarismo em um fim em si,Oliveira Viana apoiou um governo ditatorial, mas insistiu o tempo todo que setratava de uma democracia social.

[<<26]

Bairro industrial do Brás, em São Paulo, nas primeiras décadas do século XX: para OliveiraViana, corporações de empresários e trabalhadores ajudariam a regular conflitos.

José Murilo de Carvalho bem assinala que Viana não apoiava a ditadura peladitadura; antes se enquadrava "na visão ibérica de inspiração católica", cujo maisilustre precursor foi José Bonifácio, "uma visão leiga da sociedade e da política,embora informada por valores ligados à tradição católica medieval".26 A inspiraçãocatólica, Oliveira Viana a reconhecia explicitamente, particularmente em seus textosde política social: a Rerum Novarum e a Quadragesimo Anno teriam sido osprincipais guias de sua atuação no Ministério do Trabalho. Era assim de concepçãoiberista, de raízes católicas, rurais, paternalistas, seu "ideal de sociedade fundada nacooperação, na incorporação, no predomínio do interesse coletivo sobre o individual,na regulação das forças sociais em função de um objetivo comunitário".27

O iberismo de Oliveira Viana, contudo, não o impediu de perceber as mudançasdo mundo contemporâneo. Nele, o corporativismo, o sindicalismo e a legislaçãosocial eram a resposta para a questão de "como organizar este mundo dentro dautopia de uma sociedade harmônica, incorporada, cooperativa". "A regência da

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orquestra continuava sendo tarefa do Estado, com a diferença de que agora sua açãoordenadora e educadora não se exerceria sobre os irrequietos clãs rurais, mas sobreos sindicatos, corporações e outras organizações civis. Ao Estado caberia até mesmoforçar classes e categorias sociais a se organizar, pois a organização seria a únicamaneira de se exercer a cidadania no mundo moderno." Assim como no Império, "onovo Estado não deixa de ser o grande patriarca benevolente velando sobre o bem-estar da nova grande família brasileira".28 Evidentemente, o corporativismo deEstado que organiza a sociedade, organiza, sobretudo, o Estado. O corporativismo deEstado é, no essencial, a submissão organizada da sociedade ao Estado.

1. Ver: B OMENY, Helena Maria; COSTA, RIBEIRO, Vanda Maria; SCHWARTZMAN, Simon. Tempos deCapanema. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000. Além do papel aglutinador de Gustavo Capanema noMinistério da Educação, Daniel Pécaut ressalta o da revista Cultura Política, sob a direção de LourivalFontes, que deu espaço, além de conservadores como Francisco Campos e Azevedo Amaral, também paraGilberto Freyre, Guerreiro Ramos, Vieira Pinto, Graciliano Ramos e Nelson Werneck Sodré. Ver:PÉCAUT,Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil. São Paulo: Ática, 1990. p. 69-70.

2. Acompanho Antonio Candido quanto a Casagrande & senzala, de Gilberto Freyre, Raízes do Brasil, deSérgio Buarque de Holanda, e Formação do Brasil contemporâneo, de Caio Prado Jr. A esses livrosacrescento Populações meridionais, de Oliveira Viana, nesse caso acompanhando outros estudiosos quevêm resgatando a importância desse autor no pensamento brasileiro; cf. a introdução de Antonio Candido aRaízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda (26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2004).

3. Por razões políticas e ideológicas, Oliveira Viana é um dos autores mais controversos dentre os "intérpretesdo Brasil". Dante Moreira Leite considera que "a obra de Oliveira Viana não resiste a nenhuma crítica", eentende alguns de seus raciocínios como formas de "delírio". Polemiza assim com Wilson Martins, queatribui a Oliveira Viana "toda a moderna orientação de nossos estudos de sociologia e de psicologia social",e associa suas propostas dos anos 1920 ao "desenvolvimentismo" dos anos 1950; cf. LEITE, Dante Moreira.O caráter nacional brasileiro. 6. ed. São Paulo: Unesp, 2002. p. 290-304; Dante acompanha NelsonWerneck Sodré, em A ideologia do colonialismo: seus reflexos no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 1961.

4. CARVALHO, José Murilo de. A utopia de Oliveira Viana. In: B ASTOS, Elide Rugai; MORAES, João Quartimde (Orgs.). O pensamento de Oliveira Viana. Campinas: Editora da Unicamp, 1993. p. 28.

5. SKIDMORE,Thomas. Preto no branco. Raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. 2. ed. Rio deJaneiro: Paz e Terra, 1989. p. 45.

6. WEHLING, A invenção da história, cit., ver caps. 9 e 10.7. Sílvio Romero, apud ALENCAR, José Almino de. O Brasil é fatalmente uma democracia: Sílvio Romero.

Tempo Brasileiro, 145, abril/junho de, 2001. Ver R OMERO, Sílvio. Introdução a doutrina contra doutrina.São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 72.

8. BONFIM, Manuel. O Brasil na América, apud Flora Sussekind, Introdução a Manuel Bonfim, A AméricaLatina. In: SANTIAGO (Org.) Intérpretes do Brasil, cit., v. 1, p. 615.

9. José Murilo de Carvalho, que reconhece tendências culturalistas em Oliveira Viana, assinala também queesse autor "esboçou uma crítica de Franz Boas, o mestre de Gilberto Freyre e o responsável pela guinadanos estudos antropológicos pela ênfase dada à cultura em substituição à raça"; J. M. de Carvalho,Introdução a: VIANA, Oliveira. Populações meridionais do Brasil. In: SANTIAGO (Org.). Intérpretes do

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Brasil, cit., v. 1, p. 908.10. BRANDÃO, Gildo Marçal. Linhagens do pensamento político brasileiro. Tese de Livre Docência,

Departamento de Ciências Políticas, Universidade de São Paulo, agosto de 2004, p. 42. Sobre o pensamentode Oliveira Viana, ver também J. M. de Carvalho, Introdução a: VIANA, loc. cit., p. 899-914, e, do mesmoautor, A utopia de Oliveira Viana, op. cit. Ver ainda, de Maria Hermínia Tavares de Almeida, Oliveira Viana– instituições políticas brasileiras. In MOTA, Lourenço Dantas. Introdução ao Brasil – um banquete notrópico. São Paulo: Senac, 1999.

11. João Cruz Costa. Contribuição à história das idéias no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956, p.441.

12. Oliveira Viana seguiu, provavelmente, em sua primeira percepção das regiões brasileiras, intuições deJoaquim Nabuco, no Abolicionismo, e de Euclides da Cunha, n'Os sertões e nos escritos sobre a Amazônia.

13. Ver: Carvalho, Introdução a: VIANA, loc. cit., p. 907.14. Guerreiro Ramos, crítico do racismo, ressalta, porém, em Oliveira Viana, a adesão a um critério nacional

para o estudo das realidades brasileiras.15. Vem sendo feito por diversos autores, entre os quais Wanderley Guilherme dos Santos, Bolívar

Lamounier, José Murilo de Carvalho e Luiz Jorge Werneck Vianna. Enquanto alguns desses autorescolocam a ênfase na dimensão político-institucional, mencionando um "autoritarismo instrumental", outrospreferem uma perspectiva civilizacional. Diferentemente de Wanderley Guilherme dos Santos, que fala deum "autoritarismo instrumental", Werneck Vianna fala de um "iberismo instrumental", contrapondo o"americanismo" e o "iberismo", retomando notas do ensaísmo ibero-americano e o argumento de RichardMorse em Espelho de Próspero, cit.

16. CARVALHO, A utopia de Oliveira Viana, loc. cit., p. 34.17. Ver: PÉCAUT, op. cit., p. 26,-27.18. BRANDÃO, op. cit., p. 34 .19. VIANNA, Luiz Jorge Werneck. Americanistas e iberistas: a polêmica de Oliveira Viana com Tavares

Bastos. In: BASTOS, E. R.; MORAES, J. Q. de (Orgs.), op. cit., p. 353.20. Ibidem, p. 375.21. A importância do latifúndio em Oliveira Viana é registrada pelos vários autores que participam do livro

coletivo organizado por BASTOS, Elide Rugai; MORAES, João Quartim de (Orgs.). O pensamento de OliveiraViana, op. cit.

22. Segundo Arno Wehling, seguiram Oliveira Viana, na afirmação de que, na colônia, a sociedade eparticularmente o clã foram mais poderosos do que o Estado português aqui instalado, Gilberto Freyre,Nestor Duarte, Caio Prado Jr., Nelson Werneck Sodré e Guilherme de Aragão, por diferentes motivos; cf.WEHLING. O Estado colonial na obra de Oliveira Viana. In: BASTOS, E. R.; MORAES, J. Q., op. cit., p. 74-75.

23. NABUCO, O abolicionismo, cit., p. 102.24. CARVALHO, A utopia de Oliveira Viana, loc. cit., p. 22 e seguintes.25. CARVALHO, A utopia de Oliveira Viana, loc. cit., p. 20.26. Ibidem, p. 24.27. Ibidem.28. Ibidem, p. 26 e seguintes.

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PARTE V

SEGUNDA REPÚBLICA

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Gilberto Freyre: elogio da mestiçagem.

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CAPÍTULO 12

GILBERTO FREYREO POVO MESTIÇO

Os netos de teus mulatos e de teus cafuzos e a quarta e quinta gerações de teu sangue sofredortentarão apagar a tua cor! E as gerações dessas gerações quando apagarem a tua tatuagem

execranda, não apagarão de suas almas, a tua alma, negro!JORGE DE LIMA

Todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na alma e no corpo (... )a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena ou do negro. No litoral, do Maranhão ao Rio Grande

do Sul, e em Minas Gerais, principalmente do negro.GILBERTO FREYRE

Na "era Vargas", como no Império e na Primeira República, a literatura e a políticaandaram juntas. Continuávamos depois de 1930 a rica tradição de políticos que seconvertiam em escritores e, sobretudo, de escritores cuja criação estava sempre nasfronteiras da política. Na República de Vargas, a forma literária privilegiada poresses escritores-políticos foi "o ensaio de interpretação do Brasil", "um gênero degrande presença na cultura brasileira".1 Para Antonio Candido, essa "forma bembrasileira de investigação e descoberta do país" permitiu descrever "amplospanoramas da sociedade e da cultura brasileiras com base em modelos vindos daantropologia, da história, da geografia e da sociologia".2 Combinando um variadoecletismo com traços poéticos e memorialísticos, os ensaístas cumpriram o papelfundamental de abrir os olhos dos intelectuais para a realidade brasileira.

Gilberto Freyre foi o mais importante ensaísta dos anos 1930 e 1940, tomandolugar de preeminência que, nos anos 1920, havia sido de Oliveira Viana. Eis aavaliação de Monteiro Lobato, ele próprio escritor e político, sobre os três grandesnomes de seu tempo: "Súbito, um relâmpago. Explodem os Sertões. (...) Depoisemergiu Oliveira Viana, e foi novo espanto. E por fim aparece Gilberto Freyre. (...)E Gilberto Freyre tornou-se o Grande Desasnador".3 Lobato se referia a Casa-grande& senzala, cujo significado político-intelectual mereceu de Antonio Candido oseguinte comentário: "O jovem leitor de hoje não poderá talvez compreender,sobretudo em face dos rumos tomados posteriormente pelo seu autor, a força

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revolucionária, o impacto libertador que teve este grande livro". Por sua técnicaexpositiva, Casa-grande & senzala "coordenava os dados conforme pontos de vistatotalmente novos no Brasil de então". E prosseguia Candido afirmando que essa obra"é uma ponte entre o naturalismo dos velhos intérpretes da nossa sociedade, comoSílvio Romero, Euclides da Cunha e até mesmo Oliveira Viana, e os pontos de vistamais especificamente sociológicos que se imporiam a partir de 1940".4

Os "intérpretes do Brasil" e a políticaAs décadas de 1920 e 1930 ocupam lugar especial na história das mentalidadesbrasileiras. No campo da música, as iniciativas de Mário de Andrade propiciavamestudos sobre o folclore e iniciativas de colaboração com a música popular. Foitambém nessas décadas que o samba se consolidou como estilo nacional,evidenciando afinidades de gosto e sensibilidade entre pessoas de classes e etniasdiferentes. Nesse sentido, é emblemático o encontro de 1926, no Rio de Janeiro,entre o músico erudito Heitor Villa-Lobos e os ensaístas Gilberto Freyre e SérgioBuarque com os músicos populares negros Pixinguinha (Alfredo da Rocha ViannaJúnior, 1897-1973), Donga (Ernesto Joaquim Maria dos Santos, 1890-1974) ePatrício Teixeira (1893-1972).5

Embora o contato entre negros e brancos no campo da música venha de há maistempo, esse encontro é significativo do início de uma época de aproximações entreas elites e o povo, depois de longo período de freqüentes expressões de desprezo pornegros e mestiços entres os intelectuais.6 Na época que se iniciava, alguns seempenhariam, como Mário de Andrade e Gilberto Freyre, para reconhecer o Brasilcomo um país de cultura plural, onde são fundamentais as contribuições negra emestiça, além de brancos e índios.7 Naqueles anos de crise que culminariam narevolução e, depois, na ditadura, o pensamento brasileiro deu a público obrasinspiradoras para o entendimento do passado, bem como para a compreensão danova época que se abria para a modernização do Estado e da sociedade. Mencioneiem capítulos anteriores alguns desses ensaios exemplares de Oliveira Viana,Gilberto Freyre, Caio Prado e Sérgio Buarque de Holanda.8

Considerado em conjunto, o ensaísmo daquelas décadas repetiu, com diapasãopróprio, uma façanha que só teve precedente de igual relevo no romantismo e noindianismo de meados do Império. Inovou até mesmo em relação aos grandesprecursores que foram Nabuco e Euclides, cujas obras, pelos aspectos maisprofundos de sua significação política, estiveram vinculadas a grandes eventos. Seusgrandes ensaios foram relatos de campanhas (Canudos) ou propostas para a

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orientação da opinião pública diante da necessidade de decisões de Estado(Abolição). Os ensaístas das primeiras décadas do século XX, por seu turno,introduziram no pensamento brasileiro a singularidade de buscar caminhos deinterpretação global da história e da sociedade brasileiras. Em vez da orientaçãodiante de grandes eventos, buscavam a compreensão histórica de toda a sociedade.

Como para os intelectuais do Império e da Primeira República, a política foisempre uma atração para os "intérpretes do Brasil". Gilberto Freyre foi chefe degabinete do governo de Estácio Coimbra (1872-1937), em Pernambuco, derrubadopela revolução de 1930. Ter participado do último governo da velha República emseu estado custou-lhe um período de exílio em Portugal e nos Estados Unidos, ondeesteve como professor visitante da Universidade Stanford. Depois da queda doEstado Novo, em 1945, elegeu-se deputado federal (1946-1950), quando tomou ainiciativa de propor ao Congresso a fundação do Instituto Joaquim Nabuco (1949),com sede em Recife, sua terra, e no âmbito do Ministério da Educação.

Embora tenha se retirado da política depois de seu período parlamentar, GilbertoFreyre se manteve presente na imprensa, como articulista, e suas opiniõesconservadoras lhe valeram um afastamento dos intelectuais de esquerda. Em relaçãoa estes, maior terá sido talvez o distanciamento gerado por seus contatos com ogoverno de Portugal, sob o regime salazarista. Na época, suas idéias sobre o "luso-tropicalismo" foram entendidas por muitos como um elogio do colonialismo.

Caio Prado Jr. ingressou em inícios dos anos 1930 no Partido Comunista, tendoparticipado em 1935 do movimento da Aliança Nacional Libertadora, o que lhevaleu, como a muitos outros, um período na prisão. Exilou-se em Paris e aproveitouo tempo para cursos na Sorbonne, em 1937 e 1938. Voltou ao Brasil em 1939 efundou a Editora Brasiliense em 1942. Foi deputado estadual em São Paulo de 1946a 1947, quando o Partido Comunista foi posto na ilegalidade. Foi também fundador eeditor da Revista Brasiliense (1955-1964), de importante influência no pensamentoda esquerda da época.

Sérgio Buarque de Holanda, também paulista de nascimento (sua família mudou-se para o Rio de Janeiro em inícios dos anos 1920), foi menos ligado à política doque seus colegas. Em 1929, foi representante de um jornal brasileiro em Berlim,onde assistiu a aulas na universidade, embora sem regularidade. Mas isso foi obastante para que tomasse contato com a cultura alemã da época, em que primavamnomes como os de Friedrich Meinecke (1862-1954) e Max Weber (1864-1920).Regressando ao Brasil em 1931, voltou também ao jornalismo. Dedicou-se àpesquisa histórica e à atividade de docente universitário, sempre com enorme êxito.Embora mais distante da política do que outros ensaístas, ele tinha preferências poridéias socialistas democráticas, que o levaram, quase ao fim da vida, a assinar a ata

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de fundação do Partido dos Trabalhadores, em 1979.Esses "intérpretes do Brasil" eram filhos de famílias tradicionais, alguns deles

ligados à grande propriedade da terra, o que é fácil de entender no Brasil agrário etradicional no qual nasceram. Assim como Oliveira Viana, também Gilberto Freyree Caio Prado Jr. eram de famílias de fazendeiros e proprietários de terras, quediferiam entre si mais pela região e pela atividade setorial do que pelo status queocupavam na sociedade. Gilberto Freyre gostava de se lembrar dos velhos engenhosde açúcar de sua família em Pernambuco. Caio Prado Jr. era de uma rica família defazendeiros de café de São Paulo. Mais distantes da terra parecem ter sido asligações de Sérgio Buarque de Holanda, um homem de classe média tradicional quese dedicou à crítica literária nos jornais do Rio de Janeiro e de São Paulo, onde sefixou, como professor universitário.

Não obstante a origem social tradicional desses pensadores, o maior mérito desuas primeiras obras é ter oferecido uma visão moderna da sociedade brasileira.Sempre apegados à pesquisa histórica, eles nos legaram interpretações de nossatradição, em imagens que cobrem a formação do país desde as origens. Suas obras,em especial as primeiras, que me interessam aqui, tornaram-se leitura obrigatóriapara quem queira compreender a formação do país agrário e sua transformação empaís urbano e industrial. Abriram novos caminhos para gerações de intelectuais e seconsagraram como os intérpretes mais significativos de nossa tradição e de nossamodernidade, sendo reconhecidos hoje, a justo título, como nossos clássicosmodernos.

O passado e o povoA pequena diferença de tempo que separa Oliveira Viana, Gilberto Freyre, CaioPrado e Sérgio Buarque de Holanda torna possível entender afinidades edivergências entre autores que foram, afinal, frutos de uma mesma época. Nãopoderiam deixar de marcá-los os sinais do passado, embora estes sempre maisvisíveis em Oliveira Viana, sobretudo o racismo que os demais puderam superar,pelo menos em suas expressões mais rudes.

Ainda assim, é difícil que tenham podido ficar a distância de remanescentes daideologia do "branqueamento" predominante nas elites brasileiras desde meados doséculo XIX. É o caso de Gilberto Freyre, que foi, contudo, paradoxalmente, o críticomais veemente do racismo da época. Como ideologia, o "branqueamento", vitoriosona estratégia que aconselhou as migrações européias de fins do século XIX,sobreviveu aos anos 1930 e chega até os dias de hoje. A convicção de que ser brancoé melhor, que se acha em seus pressupostos, tornou-se parte da cultura brasileira.

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Sobreviveu, atenuando-se no fundo do racismo sutil, envergonhado, tão freqüentenos brasileiros.

Por maior que tenha sido, contudo, o peso do passado, surgiam novidades emmeio aos acordos e divergências dos "intérpretes do Brasil". Se, em Populaçõesmeridionais, Oliveira Viana acreditava que os proprietários de terra na colônia eramarianos de origem nobre, Gilberto Freyre trouxe, em Casa grande & senzala, anovidade de um reconhecimento intelectual do povo negro e, sobretudo, do mestiço.Enfatizou, como já o havia percebido Euclides da Cunha, que a mestiçagem não erauma criação americana, mas ibérica, resultado da antiga convivência dosportugueses com os mouros na Reconquista e das freqüentes incursões lusas noterritório africano desde o século XV. Deu-se conta de que a experiência demestiçagem na península tornava os portugueses particularmente permeáveis eflexíveis nos contatos com outras raças.

Por outro lado, Gilberto Freyre assinalou que a condição de ingresso na colôniaera a religião, não a raça, o que permitiu à mestiçagem tornar-se uma tendênciageral, além de objetivo de políticas da Coroa, com a complacência do clero e atémesmo dos jesuítas. Reconheceu uma simetria entre a escala social e a racial nacolônia, na qual os brancos tinham mais probabilidade de estar em posições demando, de maior poder e dinheiro, ao passo que os negros, em geral escravizados,estavam no ponto mais baixo da hierarquia social. Não obstante, Gilberto Freyreintroduziu no pensamento brasileiro uma minuciosa descrição das relações entrenegros e brancos e de suas muitas misturas, abrindo caminho para formasdemocráticas de consideração do povo brasileiro. Inaugurou assim o reconhecimentodo povo mestiço, referência obrigatória para o conjunto da intelectualidade, mesmocom as muitas polêmicas que sua obra suscitou.

Nesse reconhecimento do povo teve também participação Caio Prado Jr., comEvolução política do Brasil. Um livro de juventude, um ensaio que o autorconsiderava menor, mas que incluía páginas ressaltando as lutas dos escravos e aslutas populares do período regencial. Caio Prado Jr. chamou a atenção, na época,com sua análise do tema popular no Império, enfatizada pela crítica aoshistoriadores que o antecederam. Para a generalidade deles, dizia, as lutas popularesnão passam "de fatos sem maior significação social e que exprimem apenas aexplosão de 'bestiais' sentimentos e paixões das massas". E recomendava: "há muitose faz sentir a necessidade de uma história que não seja a glorificação das classesdirigentes".9

Desse reconhecimento do povo também participou Sérgio Buarque, dandocaminho próprio às desconfianças generalizadas entre os intelectuais diante dosformalismos da República e do Império. Raízes do Brasil reinterpreta uma sugestão

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de Caio Prado Jr., em Evolução política: "as idéias do sistema político adotado (noImpério) por nossos legisladores constitucionais exprimiam na Europa asreivindicações do Terceiro Estado, especialmente da burguesia comercial eindustrial, contra a nobreza feudal, a classe dos proprietários. Até certo ponto, é ocontrário que se dá no Brasil".10

Sérgio Buarque de Holanda se refere a esse mesmo desacerto entre as idéias e asformas políticas e a estrutura social quando fala da crise dos últimos decênios doséculo XIX como "o desfecho normal de uma situação rigorosamente insustentávelnascida da ambição de vestir um país ainda preso à ordem escravocrata com os trajesmodernos de uma grande democracia burguesa".11 Um desacerto entre ideologia eestrutura social que, tanto em Sérgio Buarque como em Caio Prado, não é muitodiferente do que afirmava Oliveira Viana: "entre nós, liberalismo significapraticamente, e de fato, nada mais do que caudilhismo local e provincial".12

O caminho seguido em Raízes do Brasil indica, porém, uma outra filiação deidéias. Para Sérgio Buarque, "a democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido", pois "a ideologia impessoal do liberalismo democrático jamais senaturalizou entre nós".13 Mas se a democracia dos proprietários de terra era um"mal-entendido", que seria a democracia "bem entendida"? Sérgio Buarque recordaque "todo o pensamento liberal-democrático pode resumir-se na frase célebre deJeremy Bentham (1748-1832): 'A maior felicidade para o maior número'". O que,evidentemente, não era o caso nem para o Segundo Reinado nem para a PrimeiraRepública, em crise diante dos olhos do autor. Nem parecia ser o caso da novaRepública que surgia da revolução de 1930, em que se assistia a um processo decentralização e de autoritarismo que deixava sobradas razões para que continuasse o"mal-entendido".

Nos anos 1930, o povo emergia, mas junto com ele surgia uma ditadura. Tendoregressado da Europa em 1930, onde cresciam o fascismo e o nazismo, SérgioBuarque evocava, em passagens de seu livro (de 1936), a possibilidade doautoritarismo, de certo modo já incluída na importância que ele mesmo atribuía aopersonalismo na cultura brasileira. Pode-se supor, portanto, que a sua imagem do"mal-entendido" da democracia tomaria um caminho diferente, certamentecontrário, ao de Oliveira Viana, no qual o autoritarismo, mais do que umapossibilidade, é uma necessidade, mesmo que transitória. Não é demais lembrar queRaízes do Brasil foi publicado um ano depois da rebelião comunista de 1935 e damaior onda de repressão do período, e um ano antes do golpe de 1937, que implantouo Estado Novo.

Ignorado pelas elites durante o Império e a Primeira República, o povo emergiracom a revolução e não poderia mais ser omitido na história política do país. Não era

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ainda o povo rural que continuará por muito tempo submerso no mundo autocráticodo latifúndio, mesmo durante a Segunda República, mas já não se podia ignorar umaparcela do povo urbano, partes das classes médias e das classes populares dasgrandes cidades. Era a "democracia" que nos ia chegando por meio de um processoque, décadas depois, o sociólogo francês Alain Touraine descreveu como uma"democratização por via autoritária", um dos traços mais salientes da era Vargas. O"mal-entendido da democracia", como se vê, continuava, embora de um mododiferente do passado.

O peso do passadoO reconhecimento da miscigenação por Gilberto Freyre e o das lutas sociais, porCaio Prado Jr., juntavam-se à problematização da democracia, por Sérgio Buarquede Holanda, como formas intelectuais de expressão da emergência popular que viriaa caracterizar a nova época. Não obstante tais novidades, a velha sociedade, emboraem crise, era ainda bastante forte para se impor. Evolução política, o primeiro livrodo rebelde Caio Prado, foi o marco inicial da estrada marxista à qual juntou, em1942, Formação do Brasil contemporâneo – colônia, sua obra maior.

Naqueles anos, porém, o marxismo era ainda opção intelectual de poucos, e seachava, até mesmo no Partido Comunista, submetido ao personalismo de Luís CarlosPrestes (1890-1990), o "Cavaleiro da Esperança". Exemplo das tradições ibéricasdescritas por Sérgio Buarque, o líder tenentista se impusera ao Partido Comunistaantes mesmo de seu ingresso nessa organização política. Exemplo das tradiçõesibéricas brasileiras, mas não o único daqueles tempos: o personalismo de GetúlioVargas era o maior de todos, de fecunda descendência, com muitos discípulos eherdeiros. Em todo caso, as razões da ideologia e da teoria em Caio Prado poucopodiam diante da força de uma tradição dominante na sociedade, inclusive em seupartido, que se suporia moldado pelos princípios impessoais da teoria e da ideologia.Caio Prado foi sempre relegado a posições secundárias na atividade partidária, nãoobstante sua relevância intelectual.

Sérgio Buarque de Holanda, nessa época o mais fino crítico das nossas tradiçõesibéricas, enfrentou o dissabor de interpretações distorcidas de sua obra, que lheimpunham as mesmas tradições que criticava. Um dos aspectos interessantes deRaízes do Brasil é a idéia da "cordialidade", ou do "homem cordial", expressão coma qual o autor pretendia, à maneira de Max Weber, caracterizar a típica afetividadeda cultura e da sociedade brasileiras. A "cordialidade" tradicional – que diriarespeito ao coração, à emoção, ao afeto – tornaria difícil conceber a modernaimpessoalidade das relações sociais, em especial das funções públicas, das leis e, por

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conseqüência, do Estado. No espírito mais tradicional, porém, a interpretaçãopredominante preferiu entender "cordialidade" como "bondade", mesmo quando oautor insistisse em dizer que do coração podem vir carinho e violência, amor e ódio.Uma leitura conservadora da "cordialidade" preferiu identificar esse conceito a umasuposta "índole pacífica" do povo brasileiro.

Instalou-se desse modo, entre a crítica moderna de Sérgio Buarque e a tradição demuitos dos seus intérpretes, um mal-entendido que durou décadas. Nos anos de1980, cansado das confusões em torno do seu livro de juventude, o autor encerrou aconversa dizendo que "já se havia gasto muita cera com o defunto". No que cometeuum exagero. No Brasil moderno em que fez tal declaração, havia ganho mais espaçoa impessoalidade das relações sociais, em especial a das leis e a do Estado. Nosmovimentos da sociedade civil brasileira contra a ditadura, esboçava-se um conceitode democracia como valor universal, distante, portanto, do "mal-entendido" dopassado. Seria certo reconhecer que se atenuava a "cordialidade" da culturabrasileira. Mas seria excessivo dizer que estava morta.

Na época em que surgiram os primeiros livros de Caio Prado e Sérgio Buarque,eram extremamente débeis as condições sociais e culturais que teriam podido darmaior realce e consistência a seu pensamento, sobretudo a suas projeções políticas.Nos anos 1930, o Brasil, embora em mudança, continuava um "país essencialmenteagrícola". Nem a burguesia nem a classe média das cidades eram bastante fortes paraconferir contornos modernos à interpretação do pensamento desses autores. A classeoperária era ainda menos expressiva, embora viesse crescendo desde fins do séculoXIX, com as emigrações européias e, desde os anos 1920, com as migraçõesnacionais. Donos de vastíssimas obras, Sérgio Buarque e Caio Prado tornaram-sehistoriadores de repercussão nos meios acadêmicos. Mas Caio Prado foi recusadoem duas oportunidades quando tentou ingressar como professor na Universidade deSão Paulo. Em que pese a relevância intelectual de sua obra, a instituição parecia terdificuldade em admitir em seus quadros um comunista conhecido.

Gilberto Freyre e o povo mestiçoNão por acaso, os mais conservadores entre os "intérpretes do Brasil" seriam asinfluências intelectuais maiores da era Vargas. Assim como Oliveira Viana, tambémGilberto Freyre misturava suas críticas à tradição com muito de nostalgia. Desejava,como todos os demais, mudar o país em consonância com os sentimentosdominantes na época de transição em que vivia, mas reconhecia com emoção a forçado passado. De há muito em decadência no Nordeste e nos estados do Rio de Janeiroe de Minas Gerais, a velha sociedade agrária começava a decair nos anos 1930

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também em São Paulo, com a crise da economia do café. No velho mundo rural emdeclínio, essas curiosas combinações de sentimentos – entre a vontade de mudar e asaudade dos tempos idos – não eram exclusividade de alguns. Havia disso em muitosintelectuais, mesmo os mais rebeldes. Foi traço característico dessa época umasensibilidade conservadora que convivia com uma notável capacidade de inovação.

Joaquim Nabuco – o mais importante dos precursores de Gilberto Freyre, e aquem este dedicou as mais significativas homenagens – dizia que os negros deramao Brasil um povo. Gilberto Freyre acrescentou a esse reconhecimento do negro oreconhecimento do mestiço. Reconhecendo o negro e o mestiço, reconheceu o povodo qual eram (e são) a maioria. Combatendo o racismo, criticou uma atitude que,discriminando negros e mestiços, por via indireta negava reconhecimento àexistência do povo brasileiro. Numa sociedade na qual a maioria é formada pornegros e mestiços, o reconhecimento do povo exige, como preliminar, a crítica doracismo.

Casa-grande & senzala foi, nas palavras do autor, um "livro carismático". É aindahoje o mais lido e influente no conjunto de sua obra, base fundamental de sua visãodo Brasil. Nele, torna-se evidente que, para compreender o sentido do povobrasileiro, era necessário compreender as relações entre as etnias e, sobretudo, amestiçagem. Mais do que sobre brancos e negros, foi um livro sobre suas relações noambiente da casa-grande e nas vizinhanças da senzala, nas quais ocuparia lugarespecial a figura do mestiço.

Em meio à sofisticada formação intelectual de Gilberto Freyre há diversas razõesteóricas para explicar os caminhos que ele tomou em seu primeiro grande livro. Aprimeira dessas razões é a influência de Franz Boas (1858-1942) e sua separaçãoentre raça e cultura, que distanciou Gilberto Freyre dos pressupostos teóricos damaioria dos intelectuais da época. "Foi o estudo de antropologia sob a orientação doprofessor Boas que primeiro me revelou o negro e o mulato no seu justo valor –separados dos traços de raça os efeitos do ambiente ou da experiência cultural".

Há, porém, uma segunda razão igualmente importante, de natureza política. Éinteressante anotar a reflexão de Gilberto Freyre a respeito: "nenhum estudanterusso, dos românticos, do século XIX, preocupou-se mais intensamente pelosdestinos da Rússia do que eu pelos do Brasil na fase em que conheci Boas. (...) E dosproblemas brasileiros, nenhum que me inquietasse tanto como o da miscigenação".14

A separação teórica entre raça e cultura vinha, portanto, junto com o reconhecimentoda miscigenação para a formação do povo brasileiro.

É por isso que não poderia faltar em Casa-grande & senzala uma crítica, no maisdas vezes delicada e sutil, de Oliveira Viana. Talvez mais do que uma crítica dePopulações meridionais, Casa-grande & senzala foi a sua superação. É por isso que,

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sempre muito gentil nos momentos em que menciona Oliveira Viana, a crítica deGilberto Freyre parece mais preocupada em absorvê-lo do que em confrontar-se comele. A gentileza não o impediu, porém, de deixar claras as suas diferenças com estee, eventualmente, com outros mestres do passado. Daí o enorme impacto de Casa-grande & senzala no ambiente cultural da época. O livro se volta diretamente contraas apreciações negativas que circulavam em relação às "raças inferiores" naformação do povo brasileiro.

Entre os negadores do povo, Oliveira Viana contava com a vantagem de que,mesmo informado por justificativas morais, expressava as suas razões no campo doque julgava serem os juízos de realidade do sociólogo. Outros intelectuais da épocaabordavam o tema de maneira menos refinada. Não apenas negavam a existência dopovo brasileiro como uma realidade sociológica e política como também ampliavama negativa para o campo dos valores morais. E, em alguns desses, o peso do racismose expressava de modo extremamente rude, embora nem sempre de maneira direta.Tobias Barreto, por exemplo, dizia: "no Brasil, 'Povo' significa uma multidão dehomens, como 'porcada' significa uma multidão de porcos".15 É significativo queBarreto identifique "povo" e "porcada" nessa proposição carregada de arrogância edesprezo, mas ainda assim indireta: ao mencionar "porcos" ele pretende dizer"negros" e mestiços, a maioria dos quais evidentemente pobres. Mas não se podedeixar de perceber a intenção racista de uma proposição como essa, quando se sabeda composição étnica do povo.

Gilberto Freyre oferece uma boa hipótese para que se entenda tamanho desprezopelo povo. Tanta arrogância revelaria, na verdade, um profundo "complexo deinferioridade". Tobias Barreto, que era mestiço, expressava, diz Gilberto, oarrivismo do "novo culto". E o "novo culto" era um tipo comum entre mestiços que,submetidos à pressão dos preconceitos, desenvolveram um "evidente complexo deinferioridade" e se tornaram racistas.16 Há outros exemplos. Nina Rodrigues, que senotabilizou por estudos sobre o negro, afirmava que "a raça negra no Brasil (...) háde constituir sempre um dos fatores de nossa inferioridade como povo".

O que significa que o "complexo de inferioridade" mencionado por GilbertoFreyre seria talvez mais amplo. Nos anos 1950, Alberto Guerreiro Ramos (1915-1982), que além de mestiço era um forte crítico do racismo, mencionou também um"complexo de inferioridade" numa referência aos estados do Nordeste: ali o mestiçotenderia a falar de suas origens brancas e indígenas para encobrir seus antepassadosnegros.17 De um modo ou de outro, o essencial dessa alusão ao "complexo deinferioridade" é que, vinda de intelectuais mestiços, brancos ou negros, aincapacidade de reconhecer a dignidade de negros e mestiços em geral se tornavaequivalente à incapacidade de reconhecer o próprio povo.

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Em todo caso, o certo é que a crítica de Casa-grande & senzala a Populaçõesmeridionais é parte de uma virada na percepção dos intelectuais brasileiros sobre onegro e o mestiço, bem como sobre a sociedade e o povo brasileiros. Oliveira Vianadizia "inexistir" a sociedade por causa dos latifúndios em que senhores "arianos"dominariam sobre negros e mestiços. Gilberto Freyre empenhou-se em mostrar umanova sociedade em formação por meio da mestiçagem e da convivência (e dosconflitos) entre as raças nas casas-grandes e ao seu redor, nos seus engenhos esenzalas, bem como nas suas vizinhanças urbanas e semi-urbanas. Oliveira Viananão via na sociedade brasileira senão a qualidade negativa da "insolidariedade", daincapacidade de relações associativas entre as pessoas isoladas pelo latifúndio.Gilberto Freyre distinguia na sociedade brasileira ricos atributos culturais de negrose brancos para a formação da nação, na religiosidade, nas procissões, nas festas, namúsica, na culinária.

Anote-se, além disso, que na balança gilbertiana da formação cultural brasileirateria mais peso a influência do negro do que a do branco. Resgatando a influêncianão apenas racial, mas também cultural, do negro, Gilberto Freyre colocou a ênfaseno "papel civilizador por ele representado". Seguindo Nabuco, afirmou que "aformação social brasileira deve-se ao negro" e que "todo brasileiro é racial ouculturalmente negro".18 Quase as mesmas palavras de Nabuco quando reconheceuque a raça negra "nos deu um povo", "construiu o nosso país" e que "nós não somosum povo exclusivamente branco".19 Há muito de significativo na continuidade deidéias entre o abolicionista e o antropólogo. Identificados no reconhecimento dadignidade do negro, eles ajudaram a superar o irônico reconhecimento do "papelcivilizador do negro", admitido no passado pelos escravistas e por seusrepresentantes políticos, entre os quais Bernardo Pereira de Vasconcelos.20

Gilberto Freyre fez em Casa-grande & senzala uma crítica radical do racismo,não obstante a complacência com que, muitas vezes, tratou a desigualdade social eos preconceitos raciais que, contudo, não deixou de perceber existentes. Umacomplacência que decorre de uma das maiores virtudes críticas de sua obra, que lhepermitiu reconhecer, enraizados no processo social e cultural da formação do país,tanto o racismo quanto a crítica do racismo. Como um e outro estão inscritos, commaior ou menor força, na normatividade da vida social, ele nos permitiucompreender que os brasileiros não gostam do racismo, mesmo quando o praticam.

Não sugere a obra de Gilberto Freyre que a cultura brasileira esteja isenta deracismo. Sugere que, por ser formada através de séculos de mestiçagem, a culturabrasileira é, nesse aspecto, basicamente contraditória. Pode manifestar racismo emdeterminadas circunstâncias, mas não aceita legitimá-lo; e, mesmo quando o pratica,manifesta, ao contrário, a propensão a combatê-lo.

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Gilberto Freyre e Joaquim NabucoTeriam que ser muitos num país de formação católica os que tinham pena do negrona sociedade escravocrata. Não são poucos os exemplos de compaixão de brancosem meio a uma sociedade apoiada na violência e na crueldade contra o negro. Mas acompaixão que se expressava diante do sofrimento do escravo – e que se pode sentirdiante do sofrimento de qualquer animal – é diferente de lhe reconhecer a dignidadecomo ser humano e criador de cultura. A dificuldade – talvez impossibilidade – dacultura escravocrata de reconhecer o negro como ser humano explica que sejam tãopoucos os personagens negros na literatura brasileira do século XIX. Houveexceções, mas raras, como observou Antonio Candido, entre as quais os grandespoemas de Castro Alves. Exceções esplêndidas às quais se podem juntar asmemórias de Joaquim Nabuco e alguns poemas de Luiz Gama.

Mesmo para Nabuco, porém, como para os abolicionistas em geral, devia serdifícil ressaltar as qualidades humanas e culturais dos negros em discursos decombate contra a escravidão, nos quais aquelas qualidades ficariam obscurecidaspela obrigatória descrição da ignomínia da condição do escravo. Talvez por isso sepossa dizer que, na obra do abolicionista, há uma sociologia do escravo, não umasociologia do negro. É certo que Nabuco foi um dos primeiros intelectuaisbrasileiros a distinguir entre o escravo e o negro como ser humano. Foi também umdos primeiros a proclamar que o negro era parte da nação. Mas essas referências,cheias de vida em suas memórias, não poderiam, em seus textos abolicionistas,deixar de ser referências descarnadas, abstrações colocadas no meio de descrições,estas, sim, concretas e palpáveis, do escravo e do sistema que o oprimia. A maiorvirtude intelectual de Nabuco, e, em geral, dos abolicionistas, era a denúncia dadesumanização do sistema escravocrata. O discurso do abolicionista não poderiadeixar de enfatizar o negro como força de trabalho brutalmente explorada, vítima deum sistema que o tratava como coisa, besta de carga, animal.

É por isso que, nos textos abolicionistas de Joaquim Nabuco, a força da luzconcentrada na denúncia da condição do escravo colocava na sombra a criatividadedo negro. Mesmo a do negro livre que, porém, na época do abolicionismo, era emmaior número que o escravo. Não é por acaso que, embora presentes em suasmemórias, sejam tão poucos os exemplos de negros livres nos escritos abolicionistasde Nabuco. Como inscrever tais exemplos no combate a um sistema escravocrataque o grande abolicionista desejava denunciar no seu caráter de máquina desumanade destruição da liberdade? Uma insistência em tais menções, se isso fosse possível,não significaria uma forma de atenuar a força da denúncia? Exemplos de negroslivres estão, contudo, presentes nas memórias de Nabuco, nas suas lembranças deinfância, bem como nas afetuosas menções a alguns de seus companheiros de

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campanha, como José do Patrocínio, Teodoro Sampaio (1855-1937) e AndréRebouças, todos políticos e intelectuais de primeiro nível.

Acresce observar que a campanha abolicionista foi, sobretudo, uma campanha deadvogados e jornalistas formados em direito. É expressivo o fato de que Nabuco seentendia, como os demais abolicionistas, como portador do "mandato dos escravos".Uma expressão que, como vimos, tinha mais de compaixão do que de lógica, talvezuma fina e triste ironia dirigida a um formalismo jurídico que obrigava a todos.Sabe-se que na época estavam todos imersos em um sistema cujos ideólogos eramjuristas, mas que, evidentemente, não tinha lugar para os escravos senão comocoisas. Nabuco foi quem mais se aproximou de uma sociologia do negro que,contudo, não tinha como realizar em toda sua extensão.

Na dimensão abolicionista de sua obra, Joaquim Nabuco se declara herdeiro deAgostinho Marques Perdigão Malheiro, cujo livro A escravidão no Brasil (1866)21 é,sobretudo, uma obra de história do direito, ampla e detalhada descrição das leis e dasnormas de Estado relativas a escravos e libertos. Considera Malheiro "o doutrinador,o mestre da abolição", cuja obra teria sido o admirável ponto de partida depois doqual nada mais poderia deter a campanha.22 Do mesmo modo, a luta pela Aboliçãotinha que se realizar a partir do campo do direito, no qual, evidentemente, osescravos não tinham lugar como sujeitos e só podiam aparecer como objetos. Se emsituações especiais – acusações de roubo, violências, assassinatos – podiam tomaradvogado, o julgamento, como tal, jamais colocaria em causa a própria escravidão aque estavam submetidos.

Podese considerar que Nabuco estava um passo adiante de Malheiro, embora fosseherdeiro das idéias deste. Gilberto Freyre, herdeiro das idéias de Nabuco, estava umpasso adiante de suas idéias por várias razões. Uma delas é que viveu numa épocaem que a escravidão deixara de existir; a segunda é que viveu numa época na quallhe foi possível uma ampla formação sociológica e antropológica. Nabuco e osabolicionistas queriam destruir a escravidão, e numa boa medida o conseguiram.Vivendo em outro período histórico, Gilberto Freyre queria compreender ascondições de possibilidade da mestiçagem que tinha diante dos olhos nas ruas doRecife e nos engenhos do Nordeste.

Um povo mestiçoGilberto Freyre, admirador de Franz Boas, sentia-se mal nos Estados Unidos, comoespectador da imagem dura de uma sociedade birracial, sem lugar para o mestiço. Adistância de seu país, queria decifrar a flexibilidade cultural que permitiu ao Brasilreconhecer a mestiçagem e a pluralidade racial. Jamais existiu no Brasil a

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observância estrita da endogamia com base na cor, tal como santificada por lei nosEstados Unidos na década de 1890. Nos Estados Unidos, ao contrário, a mestiçagem,que também existia, como em qualquer sociedade dividida em raças, jamais foiaceita como legítima.23 Talvez por isso Gilberto Freyre nos lembre que em suapermanência nos Estados Unidos agradava-lhe rememorar cenas brasileiras, em queuma maior flexibilidade cultural permitia reconhecer o mestiço.

Talvez se possa dizer que, em Casa-grande & senzala, o reconhecimento domestiço foi uma preliminar para o reconhecimento do negro. Ao olhar para opassado escravocrata a partir da mestiçagem presente, é de certo modo o mestiçoque apresenta o negro e o branco, seus antepassados. Por isso, a sociologia do negroque Nabuco não pôde fazer se tornaria em Gilberto Freyre um capítulo de suasociologia do mestiço. Ele queria caracterizar uma flexibilidade que reconheceudesde a colônia e o Império, pontos de passagem de uma mestiçagem e de umapluralidade racial que vem de mais antigas raízes, desde a península Ibérica.

É essa sociologia da mestiçagem que conduz Gilberto Freyre a uma visão originaldo negro, do branco e das relações entre ambos. Como ele mesmo declarou naabertura de Casa-grande & senzala: "dos problemas brasileiros, nenhum que meinquietasse tanto como o da miscigenação". Mesmo o seu inegável entusiasmo pelacultura lusa – que mais adiante o conduziu ao que chamou de "luso-tropicalismo" –envolve uma valorização do mestiço. "Portugal é por excelência o país europeu dolouro transitório ou do meio-louro. (...) Esses mestiços com duas cores de pêlo é queformaram, ao nosso ver, a maioria dos portugueses colonizadores do Brasil, nosséculos XVI e XVII".

Seriam esses, segundo Gilberto Freyre, os "portugueses típicos" e não nenhumaelite loura ou nórdica, branca pura: nem gente toda morena e de cabelo preto. "Aescravidão a que foram submetidos os mouros e até moçárabes, após a vitória cristã,foi o meio pelo qual se exerceu sobre o português decisiva influência não sóparticular do mouro, do maometano, do africano, mas geral, do escravo. Influênciaque o predispõe como nenhuma outra para a colonização agrária, escravocrata epolígama – patriarcal, enfim – da América tropical".24 Esse reconhecimento dasraízes mestiças de Portugal encontra-se também em Sérgio Buarque de Holanda, quereconhece "serem os portugueses, em parte, e já ao tempo do descobrimento doBrasil, um povo de mestiços".25

Mestiçagem culturalComo bem sugere Antonio Candido, é preciso hoje fazer um esforço para entender

o que pode ter significado, nos anos 1930, essa radical mudança de perspectiva em

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relação ao sentimento dominante entre os intelectuais, entre os quais algunsprecursores do moderno pensamento brasileiro. Euclides da Cunha, por exemplo, viao mestiço como uma sub-raça, mistura infeliz na qual se perdiam as virtudes dasraças originais. Ao contrário de Euclides, Gilberto Freyre via no mestiço umapromissora síntese. Da valorização da síntese surgiu a valorização dos elementosque a compunham.

Deriva de uma incompreensão do sentido da mestiçagem a crítica de algunsintelectuais que acusam o autor de Casa-grande & senzala de haver visto o escravono âmbito da família patriarcal, não o escravo no eito. Parece-me que o ponto éoutro: assim como Gilberto Freyre partiu do mestiço para compreender o negro, namesma lógica partiu da observação do escravo na família patriarcal, paracompreender o escravo no eito. Realizou o mesmo movimento para chegar à esferado econômico: partiu da observação da família patriarcal, na casa-grande, ou à suavolta, na senzala, com as suas relações pessoais, afetivas, religiosas e seus hábitossexuais, para chegar ao latifúndio, ao engenho como unidade de produção. Nãopartiu da produção econômica em que o negro escravizado era coisa, besta de carga,animal, mas da família e do mestiço. Em outras palavras, partiu da cultura,transformando em força a debilidade de que lhe acusaram seus críticos. E, assim,ajudou seus muitos leitores a compreender que o negro, visto como coisa, naverdade, é gente. Já o era, mesmo no eito.

Mesmo quando introduz no argumento a dimensão econômica, a análise secombina com a dimensão cultural: "No Brasil, as relações entre os brancos e as raçasde cor foram desde a primeira metade do século XVI condicionadas, de um lado,pelo sistema de produção econômica – a monocultura latifundiária; do outro, pelaescassez de mulheres brancas, entre os conquistadores. (...) Na zona agráriadesenvolveu-se, com a monocultura absorvente, uma sociedade semifeudal – umaminoria de brancos e brancarrões dominando patriarcais, polígamos, do alto dascasas-grandes de pedra e cal, não só os escravos criados aos magotes nas senzalascomo os lavradores de partido, os agregados, moradores de casas de taipa e de palhavassalos de casas-grandes em todo o rigor da expressão". E acrescenta: "Vencedoresno sentido militar e técnico sobre as populações indígenas; (...) os europeus e seusdescendentes tiveram entretanto de transigir com índios e africanos quanto àsrelações genéticas e sociais. A escassez de mulheres brancas criou zonas deconfraternização entre vencedores e vencidos, entre senhores e escravos. Semdeixarem de ser relações – as dos brancos com as mulheres de cor – de 'superiores' e,no maior número de casos, de senhores desabusados e sádicos com escravaspassivas, adoçaram-se, entretanto, com a necessidade experimentada por muitoscolonos de constituírem família dentro das circunstâncias e sobre essa base".26

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Assim como antes de Joaquim Nabuco foram poucos os intelectuais capazes dereconhecer a dignidade do negro, foram muitos, antes de Gilberto Freyre, ospessimistas quanto ao mestiço. Temos a bela metáfora de Euclides da Cunha quandofala do sertanejo, mestiço, como o "núcleo da nacionalidade". Mas, quando escreveusua grande obra, Euclides estava demasiado comprometido com o racismo dasteorias e dos preconceitos do seu tempo. É vê-lo falar do "nervoso raquitismo dosmestiços anêmicos do litoral" para perceber que, para ele, os mestiços não prestam.Como se sabe, os "mestiços anêmicos do litoral" foram, sempre, a maioria entre osmestiços. E, na época de Euclides, eram já maioria em todo o povo.

Em um dos mais belos momentos de Os sertões, Euclides nos fala desse "núcleoda nacionalidade" como de um mestiço especial, isolado e esquecido no interior dopaís. Esse mestiço de Euclides é, na verdade, um estranho núcleo, aliás, final etragicamente esmagado pela nação.

O mestiço de Gilberto Freyre é o vizinho do lado, o companheiro de mesa, ocolega de trabalho. Não é apenas o núcleo da nacionalidade, é a maioria danacionalidade. Não é só uma mistura racial, é uma síntese cultural que, em simesma, dignifica as raças de origem. Uma síntese cultural que não pode se isolar dasraças que a constituem e para as quais se constitui, por sua vez, em atraçãopermanente e inevitável.

Democracia racial?O precioso legado de Gilberto Freyre confundiu-se às vezes com imprecisasreferências do próprio autor, e, no mais das vezes, de seus críticos, a uma suposta"democracia racial". Essa "democracia", porém, é uma herança que vem de há maistempo, desde o século XIX, propiciando, ao modo das mágicas próprias da ideologia,transformar em "coisa" uma possibilidade presente na realidade viva da cultura,obscurecendo a natureza real do racismo. Parte dessa ideologia é atribuída a GilbertoFreyre, e é possível que ele tenha contribuído para tal, em entrevistas ou artigos dejornal. Não o fez, porém, em obras de maior significação intelectual, menos aindanos prefácios, em que gostava de anotar reflexões de caráter teórico. Em todo caso, ocerto é que a superficialidade de textos de ocasião pode ter contribuído para umaconfusão de conceitos que prejudica a compreensão de suas obras maiores.

Segundo Levy Cruz, que realizou um levantamento do tema em Gilberto Freyre,este incluiu na versão em inglês (1963) de Sobrados e mucambos as seguintespalavras: "For Brazil is becoming more and more a racial democracy, characterizedby an almost unique combination of diversity and unity".27 Interessante anotar que a"democracia racial" que aparece aí como tendência, não como realidade positiva,

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não aparece nas posteriores edições brasileiras do mesmo livro.Outra menção foi registrada em discurso do autor na Câmara dos Deputados, em

1950, quando protestou, como parlamentar, contra "a rejeição de hospedagem",ocorrida alguns dias antes, em um hotel da cidade de São Paulo, à coreógrafa edançarina americana Katherine Dunham, "por ser pessoa de cor". Na ocasião,protestou Gilberto Freyre: "Este é um momento – o ultraje à artista admirável cujapresença honra o Brasil – em que o silêncio cômodo seria uma traição aos nossosdeveres de representantes de uma nação que faz do ideal, se não sempre da prática,da democracia racial, inclusive a étnica, um dos seus motivos de vida, uma das suascondições de desenvolvimento".28 Nessa passagem, a referência à "democraciaracial" é uma referência ao ideal, nem sempre à prática, da cultura. A práticaaparece, ao contrário, exemplificada no preconceito contra a coreógrafa, ao passoque o ideal, em vez de encobrir o preconceito, aparece no protesto contra essemesmo preconceito.

Embora tenha havido exagero nas atribuições do mito da democracia racial aGilberto Freyre, não há nenhum exagero no reconhecimento da existência desse mitona cultura brasileira. Segundo Élide Rugai Bastos, "o mito da democracia racial (foi)germinado longamente na história do Brasil através de afirmações que apontavam otratamento concedido ao escravo como 'suave', 'cristão' e 'humano', e só vai ganharsentido e objetivar-se com a Abolição e a implantação da República". Para GeorgeReid Andrews, as raízes do conceito de democracia racial "remontam ao séculopassado (XIX, quando) as restrições datadas do domínio colonial português eramexplicitamente declaradas ilegais ou simplesmente caíam em desuso".29

Se o mito vem de longe, a questão que se coloca é a seguinte: como descrever umacultura e ignorar os mitos ou tendências que ela mesma declara? Eis um desafio quese colocou certamente para Gilberto Freyre ao escrever seu livro. Mas que se colocatambém para o seu leitor. Assim como pode ter ocorrido às vezes a Gilberto Freyre,sobretudo em algumas de suas manifestações políticas, esse desafio pode ocorrertambém a seu leitor, evidentemente impregnado do ambiente cultural em que vive.A confusão entre realidade e tendência que em certos momentos existe na culturaque a obra descreve pode passar para a leitura da obra. Se isso ocorrer, o leitor podesentir-se tentado a atribuir a seu autor o transformar em mito um processo culturalque este, contudo, descreve in fieri. Buscando, para seu melhor entendimento, o queestá nas entrelinhas, nas imaginadas profundezas do texto, o leitor pode encontrarexpressões confusas de suas próprias inquietações. É um dos riscos do ensaio, comoforma literária, especialmente no caso de Gilberto Freyre. É, em particular, um riscoque se corre na leitura de uma obra tão carregada de ecletismo e poesia como Casa-grande & senzala.

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1. VENTURA, Roberto. Do mar se fez o sertão: Euclides da Cunha e Canudos. Disponível em:<www.euclidesdacunha.org/ventura>. Acesso em: nov. 2005.

2. Apud VENTURA, ibidem.3. BASTOS, Elide Rugai. Oliveira Viana e a sociologia no Brasil. In BASTOS, E. R.; MORAES, J. Q. de (Orgs.).

op. cit., p. 411.4. ANTONIO CANDIDO. O significado de "Raízes do Brasil'. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil,

cit., p. 9-10.5. Ver V IANNA, Hermano. O mistério do samba. Rio de Janeiro: Jorge Zahar/Editora da UFRJ. 1995. p. 19 e

seguintes.6. O emprego do negro como músico é conhecido desde o século XVII, acompanhando ritos religiosos ou

compondo bandas e orquestras em festas de casas-grandes. A partir do século XVIII, alguns músicosmestiços alcançaram renome, a exemplo de José Joaquim Lobo de Mesquita (1746-1805), em Diamantina,e o Pe. José Mauricio Nunes Garcia (1767-1830), no Rio de Janeiro. Eram ambos filhos de português comnegra escrava e se dedicaram, de modo exclusivo, à música sacra, de influência européia. Já no século XIX,Carlos Gomes (1836-1896), neto de ex-escrava, sempre lembrado por seu grande êxito em músicas de raizeuropéia (O guarani, por exemplo), deixou peças musicais de influência negra, na maior parte esquecidas.Para um panorama das origens da música brasileira, ver KIEFER, Bruno. História da música brasileira. PortoAlegre: Movimento, 1997.

7. FREYRE, Casa-grande & senzala, edição crítica, cit., p. 303.8. É evidente que os nomes mencionados acima não exaurem a riqueza e variedade do ensaísmo brasileiro.

Atenho-me aos autores que considero mais significativos e, nestes, como esclareci anteriormente, a algumasobras. Um estudo mais amplo daquela época exigiria um levantamento que não posso realizar para osobjetivos deste trabalho e que deveria considerar muitos outros nomes, entre os quais os de Paulo Prado,Mário de Andrade, Azevedo Amaral, Alcântara Machado, Cassiano Ricardo, Afonso Arinos, Ronald deCarvalho e Martins de Almeida.

9. PRADO JR., Caio. Evolução política do Brasil: colônia e império. 21. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 8.10. PRADO JR., Evolução política do Brasil, cit., p. 54.11. HOLANDA, Raízes do Brasil, cit., p. 78.12. Oliveira Viana, apud PÉCAUT, op. cit., p. 38.13. HOLANDA, Raízes do Brasil, cit., p. 160.14. FREYRE, Casa-grande & senzala, edição crítica, cit., p. 8.15. Apud GOMES, Ângela de Castro. A práxis corporativa de Oliveira Viana. In: B ASTOS, E. R.; MORAES, J. Q.

de (Orgs.), op. cit., p. 54.16. FREYRE, Casa-grande & senzala, cit., p. 448.17. RAMOS, Alberto Guerreiro. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: UFRJ, 1995. p. 179

e seguintes.18. BASTOS, Elide Rugai. Oliveira Viana e a sociologia no Brasil, loc. cit., p. 414-415.19. Ver capítulo 9, nota 31.20. Como sabemos, em debate sobre a extinção do tráfico, Bernardo Pereira de Vasconcelos afirmou que a

África civiliza a América, mas limitava-se ao aspecto econômico em que o negro era considerado apenascomo força de trabalho. E por isso dizia que "a abolição do tráfico deve trazer tendências barbarizadoras";ver capítulo 7, nota 44.

21. PERDIGÃO MALHEIRO, op. c i t .

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22. NABUCO, op. cit., p. 8 5 1 .23. SKIDMORE, op. cit., p. 56. Como bem observa esse autor, a mestiçagem existe em qualquer sociedade

dividida em raças e, desse modo, a questão que se coloca é reconhecer a mestiçagem como legítima,aceitável. Mas, nos EUA, onde também há mestiçagem, o mestiço é empurrado para o stock dos negros, aopasso que no Brasil ele constituiu um terceiro setor, nem negro nem branco, tendente a aproximar-se dobranco.

24. FREYRE, Casa-grande & senzala, cit., p. 225-230.25. HOLANDA, Raízes do Brasil, cit., p. 53.26. FREYRE, Casa-grande & senzala, edição crítica, cit., p. 8-9.27. "Pois o Brasil está se tornando cada vez mais uma democracia racial, caracterizada por uma combinação

única de diversidade e unidade."28. Cf. CRUZ, Levy. Democracia racial, uma hipótese. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Trabalhos para

discussão n. 128, agosto 2002.29. Ibidem. As citações são de: A NDREWS, George Reid. Negros e brancos em São Paulo: (1888-1988). São

Paulo: Edusc, 1998; BASTOS, E. R. Aquestão racial e a revolução burguesa. In: D'INCAO, Maria Angela(Org.). O saber militante. Ensaios sobre Florestan Fernandes. Rio de Janeiro / São Paulo: Paz e Terra /Unesp, 1987. p. 140-150.

[<<28]

Helio Jaguaribe: influência do culturalismo e do historicismo na origem do ISEB.

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CAPÍTULO 13

DESENVOLVIMENTO E DEMOCRACIAHELIO JAGUARIBE E OS PRIMEIROS ANOS DO ISEB

O otimista pode até errar na caminhada, mas o pessimista já começa errado.JUSCELINO KUBITSCHEK

A ideologia do desenvolvimento só pode ser concebida em culturas que possuem, entre suas idéias-força, a propensão para o domínio do mundo, dentro de uma cosmovisão racional, mediante a sua

configuração a serviço do homem.HELIO JAGUARIBE

Quem acompanhou as circunstâncias em que Juscelino Kubitschek (1902-1976)subiu à presidência da República em 1956 teria dificuldade para prever o êxito quealcançou em seu governo. Naqueles anos, talvez o único a acreditar nisso fosse opróprio Kubitschek, que foi eleito prometendo um governo que realizaria "cinqüentaanos em cinco". O otimismo do candidato estava em aberto contraste com umcenário de crise institucional e de tentativas de golpe de Estado. Um otimismo quepermaneceu vivo na memória nacional como um facho de luz no meio das sombrasde uma conturbada história política.

Médico de profissão, Kubitschek entrou na política em 1933, como secretário degoverno de Benedito Valadares (1892-1973), recém-nomeado por Getúlio Vargasinterventor federal em Minas Gerais. Foi deputado federal em 1934, nomeado em1940 prefeito de Belo Horizonte, deputado constituinte em 1946. Elegeu-segovernador de Minas Gerais em 1950. Eleito presidente da República em 1955,Juscelino Kubitschek transferiu para o país a aura otimista de sua campanhaeleitoral. Seguindo, com algumas modificações, a rota de Getúlio Vargas desde1930, Kubitschek deixou definitivamente para trás o país agrário que o Brasil aindaera em meados dos anos 1950.

Herdeiro de tendências que vêm desde os anos 1930 e 1940 e das novas idéiaseconômicas da Comissão Econômica Para a América Latina (CEPAL), onacionalismo político e econômico ocupou um lugar central no debate ideológicodos anos 1950. A partir de meados da década, enriquecido com as influências doInstituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), tornou-se uma linguagem política

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dominante no cenário brasileiro. Talvez se possa dizer que, no segundo governoVargas (1950-1954) e no governo Kubitschek (1955-1960), a influência da ideologianacionalista equilibrou-se dentro de uma política cujo eixo central era dado pelanoção do "desenvolvimento".

Naqueles governos, o nacionalismo estaria enquadrado em uma concepção"desenvolvimentista" que envolvia a noção de um crescimento econômico voltadopara o mercado interno, com características de autonomia nacional e distributivismosocial. Como ideologia, o nacionalismo tornou-se mais importante no governoGoulart (1961-1964), estimulando uma radicalização política que alcançaria seuponto extremo às vésperas do golpe de Estado de 1964.

Instituições da política e da ideologiaComo bem observou Celso Furtado em A fantasia organizada, os temas daindustrialização e do desenvolvimento passariam a ocupar espaços políticoscrescentes no segundo após guerra, tanto no Brasil como em outros países daAmérica Latina. Estava à vista de todos a destruição causada pela guerra na Europa,uma devastação que a muitos ocorria comparar com a América Latina, conhecidapela pobreza e pelas insuficiências do crescimento econômico. Não por acaso, haviano Brasil quem pretendesse um plano de desenvolvimento, a exemplo das políticasde recuperação propostas pelo Plano Marshall na Europa.1

Os anos do pós-guerra consolidaram no Brasil uma preocupação com aindustrialização que vinha desde os anos 1930, quando as políticas de Vargasconduziram, empiricamente, pedaço a pedaço, nos espaços criados pela crise daagricultura de exportação, a uma ampliação do mercado interno e ao início do quedepois se chamaria de "política de substituição de importações". São do entreguerrasiniciativas governamentais que levaram à criação de empresas públicas como aCompanhia Siderúrgica Nacional (CSN) e a Companhia Vale do Rio Doce. Quase aomesmo tempo, desenvolviam-se políticas semelhantes em outras partes de AméricaLatina: no México, o governo Cárdenas chegou à formação de um monopólio estataldo petróleo; no Chile, a Corporação de Fomento e Crédito (CORFO) dava exemplo,desde os anos 1930, de uma instituição de financiamento da industrialização.

Não obstante os desvios e recuos do governo Dutra (1945-1950), permaneceramno segundo governo Vargas (1951-1954) empresas públicas e instituições de Estadocriadas em seu primeiro período (1930-1945). Entre essas instituições de Estado,Furtado menciona o Departamento de Administração do Serviço Público (DASP),que, inspirado em similares americanos, combinava áreas de estudos econômicoscom outras destinadas a estudos administrativos. Permaneceram também no mundo

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empresarial, além da influência de Roberto Simonsen (1889-1948), as expectativasde pessoas que se habituaram, durante o Estado Novo, a tratar com o Estado ostemas de interesse da indústria. Acresce observar que depois de 1947 o clima da"guerra fria", embora mantendo dentro do país uma atmosfera de compressãopolítica, preservou também certa continuidade das relações econômicas entre oBrasil e os Estados Unidos, algo no espírito da "política da boa vizinhança" deRoosevelt. Alguns planos econômicos surgiram no governo Dutra, como o PlanoSALTE e a Missão Abincque. Segundo Furtado, esses planos foram de menoreficácia do que os entendimentos anteriores do período Roosevelt-Vargas, masprenunciavam possibilidades futuras.2

Nessas circunstâncias, as idéias sobre a industrialização e o desenvolvimento nosanos 1950 – durante o segundo governo Vargas e durante o governo Kubitschek –encontrarão seus principais porta-vozes em instituições que, em sentido genérico,poderiam ser designadas como agências de Estado. Algumas dessas instituiçõeseram de caráter internacional, como a CEPAL, formada no início de 1948, emSantiago do Chile, a partir de proposta do governo chileno. Da CEPAL participou,quase desde o início, Celso Furtado (1920-2004), que lá chegou pouco antes de RaúlPrebisch (1901-1986), principal líder da nova instituição e de uma nova corrente depensamento econômico de influência geral em toda a América Latina. Outras dessasagências de Estado tiveram um caráter binacional, como a Comissão Mista Brasil-Estados Unidos. Foi criada em 1949, no fim do governo Dutra, e prosseguiu suasatividades no segundo governo Vargas, com influência maior do que o Plano SALTEe a Missão Abincque. Foi da Comissão Mista que surgiu o Banco Nacional deDesenvolvimento Econômico (BNDE), em 1952, sob a liderança de Roberto Campos(1917-2001).

Na pesquisa das linhagens que conduzem ao desenvolvimentismo e aonacionalismo dos anos 1950 há que considerar ainda a obra precursora de RobertoSimonsen (1889-1948), nos anos 1930 e 1940, como empresário, político eintelectual. Do outro lado do campo de debate das idéias estava Eugênio Gudin(1886-1986), com quem Simonsen manteve célebre polêmica. Gudin foi o líder datendência liberal que criticava uma industrialização que considerava "artificial",pois de seu ponto de vista o Brasil era um "país com vocação agrícola" e, de certomodo, estaria destinado a ser um "país essencialmente agrícola".

Roberto Simonsen iniciou-se na política junto ao integralismo, em 1931, do qualse afastou por divergências com o anti-semitismo de alguns de seus membros, vindoa ser eleito deputado federal em 1934 e senador em 1945. Foi, porém, no campoempresarial que alcançou renome, como presidente da Federação das Indústrias doEstado de São Paulo (FIESP) e vice-presidente da Confederação Nacional da

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Indústria (CNI). Dedicou-se ainda às atividades intelectuais, como um dosfundadores da Escola de Sociologia e Política, em São Paulo, na qual ministroucursos sobre economia. Deixou diversos estudos e livros sobre aspectos sociais eeconômicos da sociedade brasileira, entre os quais uma História econômica doBrasil, escrita em 1937, com base num curso professado naquela escola, quepermanece até hoje uma referência nos estudos da área. Em reunião de 1947, um anoantes de falecer, defendeu no Conselho Inter-Americano de Comércio e Produção atese de um Plano Marshall para a América Latina.

Helio Jaguaribe e o ISEBO ISEB foi a instituição de maior presença ideológica no momento histórico que seabriu com o governo Kubitschek. Criado em 1955 por iniciativa de Helio Jaguaribe(n. 1923), seu primeiro presidente foi Roland Corbisier (1914-2005). A primeiraetapa do novo instituto terminou em 1958, em meio a uma crise suscitada pelascríticas de Guerreiro Ramos ao livro Nacionalismo na atualidade brasileira, deHelio Jaguaribe.3 Na ocasião, Jaguaribe e Guerreiro saíram do ISEB, permanecendoCorbisier, que transferiu a presidência, a partir de 1959, a Álvaro Vieira Pinto (1909-1987). Iniciava-se a segunda fase do ISEB, que se caracterizaria por uma crescenteinclinação à esquerda até 1964, quando ocorreu o golpe militar.4

O regime militar parece haver dado pouca atenção às divergências internas doinstituto, entendidas, provavelmente, como excessos de sutileza entre intelectuais.Considerando todos como inimigos, cassou os direitos políticos dos fundadores elíderes do ISEB, os quais, mais cedo ou mais tarde, acabaram saindo do país, comorefugiados ou como exilados. Foi o que ocorreu, por exemplo, com Guerreiro e comJaguaribe, ambos acolhidos por universidades americanas. Vieira Pinto exilou-se noChile, onde foi se juntar a outros intelectuais brasileiros que ali se encontravamrefugiados.5

É de 1947, no Rio de Janeiro, a primeira iniciativa de Helio Jaguaribe reunindointelectuais que depois formariam o ISEB. Naquele ano, Jaguaribe organizou aparticipação de alguns intelectuais numa página de debates sobre assuntos do país,n o Jornal do Commercio, contando com o apoio de Augusto Frederico Schmidt(1906-1965), diplomata, poeta e editor e representante do Brasil na ONU, durante ogoverno Kubitschek. A iniciativa de Jaguaribe se desdobrou num esforço para reunirintelectuais do Rio e de São Paulo em Itatiaia, um lugarejo de montanha escolhidosimbolicamente entre as duas maiores cidades do país. O "grupo de Itatiaia" deuorigem, em 1952, ao Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política(IBESP), cuja principal atividade, até 1956, foi a publicação da revista Cadernos do

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Nosso Tempo.A transformação do IBESP no ISEB se deu em 1955. O IBESP teve, porém, algum

tempo de sobrevida: o último número dos Cadernos do Nosso Tempo, de inícios de1956, traz uma ampla análise das perspectivas do governo Kubitschek e, maisimportante, um amplo ensaio, "Para uma política nacional de desenvolvimento", queantecipou muitos dos temas do ISEB e até mesmo do Plano de Metas.6 Nascia assimem direta continuidade com a pequena instituição privada de intelectuais umainstituição de Estado, também pequena de início, mas destinada a uma grandeinfluência intelectual. A mudança teve início em 1954 em conversações entre HelioJaguaribe e Lourival Fontes (1899-1967), importante assessor do governo Vargas.Mas a nova instituição surgiu apenas no ano seguinte, junto ao Ministério daEducação, então sob a direção de Cândido Mota Filho (1897-1977), por ato dopresidente Café Filho (1899-1970), vice-presidente da República que governou opaís por alguns meses depois da morte de Vargas. Os cursos do ISEB – que, assimcomo as publicações, tiveram grande êxito – começaram a funcionar depois da possede Juscelino Kubitschek na Presidência.

As biografias políticas de alguns dos fundadores do novo instituto podem ser tidascomo expressivas de uma continuidade de temas e perspectivas intelectuais que vêmdos anos 1920 e 1930, e mesmo de antes. Helio Jaguaribe, Candido Mendes deAlmeida e Ewaldo Correia Lima vinham de origens católicas e evoluiriam paraposições próximas da social-democracia. Outros, como Roland Corbisier, AlbertoGuerreiro Ramos e Álvaro Vieira Pinto, foram militantes do movimento integralista,que, porém, deixaram como uma página virada dos anos 1930. Caminhariam, nãoobstante as origens integralistas, para posições radicais de esquerda, diferentementedaqueles que, de origem católica, evoluiriam para a centro-esquerda. O historiadorNelson Werneck Sodré (1911-1999), então coronel do exército e membro do PartidoComunista, ingressou no ISEB já no início, não como fundador, mas como um dosseus participantes efetivos.

Procurando buscar, com maior ou menor intensidade, caminhos pela esquerda, oISEB mostrou, na diversidade ideológica dos seus fundadores, uma visívelpropensão ao pluralismo. Além dos nomes do seu núcleo dirigente, assinaram a suaata de fundação o sociólogo Gilberto Freyre (1900-1987), o historiador SérgioBuarque de Holanda (1902-1982), o educador Anísio Teixeira (1900-1971), oeconomista Roberto Campos (1917-2001), o advogado San Tiago Dantas (1911-1964), o jurista Miguel Reale (n. 1910), o historiador José Honório Rodrigues (1913-1987), os escritores Paulo Duarte (1899-1984) e Sérgio Milliet (1898-1966).

Com nomes de grande projeção, a nominata dos fundadores do ISEB evidencia apreocupação dos seus líderes em estimular a participação de intelectuais do Rio, de

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São Paulo e de outras partes do país. Também mostra um cuidado com arepresentação de diversas especialidades no campo das ciências humanas, com apresença maior de sociólogos, economistas, filósofos e juristas. Muitos dessesfundadores tiveram, porém, uma participação apenas lateral, em alguns casosmeramente simbólica. A diversidade de idéias, regiões e especialidades acadêmicasem torno de um tema comum – o desenvolvimento – sugeriu a um historiador aimagem bem-humorada de que o ISEB dos começos era uma espécie de "saladadesenvolvimentista".

Essa propensão ao pluralismo refletia o clima democrático que caracterizaria ogoverno Juscelino Kubitschek, não obstante as turbulências e instabilidades que oprecederam. Mudara em muito o cenário político brasileiro de após a queda daditadura, em 1945, esmaecendo as velhas paixões políticas dos anos 1930. Daquelesanos de conflito aberto entre esquerda e direita, ficaram, em meados da década de1950, temas intelectuais que se revelaram capazes de conquistar adesõesindependentes de vinculações políticas imediatas. Ao contrário da atmosfera dosanos 1920 e 1930, marcada pelos inevitáveis constrangimentos de um quadropolítico de crescente autoritarismo, o decênio de 1950 propiciou aos velhos temas aoportunidade de novos debates, num contexto democrático que se pretendiaduradouro. Tendo surgido nos inícios da crise do Brasil agrário, achavam-se agorareforçados por décadas de urbanização, industrialização e crescimento do Estadopara se tornar as principais orientações do debate público à volta da industrializaçãoe do desenvolvimento em uma fase de entusiástica afirmação nacionalista no país.

Historicismo e culturalismoA continuidade do ISEB com a temática intelectual dos anos 1920 e 1930 foipercebida e proclamada por vários dentre seus fundadores. Helio Jaguaribe,Guerreiro Ramos e Roland Corbisier insistiram, em alguns de seus escritos, noreconhecimento de filiações temáticas que os fazem representativos do historicismoe do culturalismo que vinham das primeiras décadas do século XX. GuerreiroRamos, que se dedicou a estudos críticos sobre a sociologia brasileira, insistiu nocaráter precursor de Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Alberto Torres e OliveiraViana. Sem impedir-se de lhes fazer reparos e críticas, reconheceu nesses autores asorigens de um pensamento capaz de escapar dos modismos estrangeiros para pensaro Brasil em seus próprios termos. Viria deles a raiz – que Guerreiro faz retroagir atéo Império, na figura de Paulino José de Sousa, visconde do Uruguai7 – de umacapacidade brasileira de pensar a nação com autonomia que se tornou pedra de toquedo pensamento do ISEB, a primeira e mais fundamental de suas ambicionadas

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virtudes.É o que se depreende também de uma crítica de Roland Corbisier aos intelectuais

de fins do século XIX até os anos 1920. Seria aquela uma "inteligência brasileira(que) transita de uma visão ufanista e otimista do Brasil para uma visão pessimista equase desesperada, como se o problema, ou melhor, a missão da nossa inteligêncianão fosse a de conhecer e de compreender o país, mas a de exaltá-lo nos panegíricosou denegri-lo nos requisitórios". Nessa crítica do passado, Corbisier, assim comoGuerreiro, abriu exceções para José Veríssimo (1857-1916), Sílvio Romero, AlbertoTorres, Euclides da Cunha e Oliveira Viana, considerando-os, porém, "figurasisoladas que não chegaram a fundar escola e a influir na vida do país".8

Mais do que a revisão do passado, porém, o ISEB queria afirmar o primado daideologia nacionalista no presente. Pretendia – e numa certa escala conseguiu –aquilo que teria faltado aos seus precursores: criar uma ideologia dodesenvolvimento, fundar escola, influenciar a vida do país. Isso exigia um acerto decontas com as heranças de um passado, no qual o período colonial, de três séculos emeio, ocuparia o lugar central. Exigia também acertar contas com uma tradiçãointelectual que tentaria transpor mecanicamente para a realidade brasileira modelosestrangeiros, em geral europeus e norte-americanos.

Como seus precursores, os isebianos foram representativos de uma épocaintelectual impregnada de historicismo e de culturalismo. Algo de uma sensibilidadesemelhante se prenunciava, não obstante pretendidas adesões positivistas ecientificistas, em Os sertões, de Euclides da Cunha, que comoveram as elitesbrasileiras de inícios do século XX pela "narrativa sincera" de uma guerra debrasileiros contra brasileiros, e pela força de verdade que transmitia o autorengajado no seu mundo. Essa sensibilidade aberta às urgências da história presenteressurgiu, depois de Euclides, em Oliveira Viana, não obstante o cientificismo aindapresente em muitas de suas obras, e se tornou vitoriosa nas obras de Gilberto Freyree de Sérgio Buarque de Holanda, entre outros.

Mais do que meras veleidades intelectuais, o historicismo e o culturalismo seafirmaram como tendências da cultura do Brasil do século XX. Nos anos 1960 e1970, variantes desses estilos intelectuais contribuíram para a radicalização daatmosfera política que antecedeu ao regime militar. Dos dois lados da batalha dasidéias sentia-se a urgência do tempo. Falava-se por toda parte a linguagem darevolução, qualquer que fosse o significado que cada qual atribuísse a essa palavra, àesquerda e à direita do espectro político.

Fissuras no mundo das crenças

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Os fundadores do ISEB reconheceram com muita clareza as condições intelectuaisda época em que foram chamados a atuar. Em Filosofia no Brasil, de 1952, disseHelio Jaguaribe que, com exceção do neokantismo e do neotomismo, a filosofiacontemporânea se caracterizava por uma radical modificação da perspectivanaturalista.9 No Brasil, essa mudança teria envolvido, a partir de inícios do séculoXX, as mais diversas escolas de pensamento, entre as quais a católica, de Jackson deFigueiredo (1891-1928), que, politicamente, lançaria as bases de "uma ideologiaanti-individualista e corporativista que iria resultar no movimento integralista".

Jaguaribe observou ainda que Alceu de Amoroso Lima, cujo neotomismoreconheceu como importante para o aprimoramento teórico do pensamento católico,acabou cedendo campo ao culturalismo e ao existencialismo. Era todo um mundo deidéias em mudança, algumas das quais alcançando os esforços de síntese entre oexistencialismo e o culturalismo de Miguel Reale e do heideggeriano VicenteFerreira da Silva (1916-1963). Essas influências chegaram ao ISEB por meio dediversos autores, entre os quais Roland Corbisier, que nos primeiros anos dainstituição procurava a "base de uma cosmovisão existencial-culturalista, (para)interpretar a cultura e a vida brasileiras". Helio Jaguaribe assinala que, em contrastecom velhas tradições intelectuais brasileiras, uma das novidades do ISEB foi tertrazido ao primeiro plano do debate intelectual idéias de origem germânica, mais doque as de origem francesa dos intelectuais do passado. Terá sido talvez umaampliação desse fascínio pela cultura alemã que, embora sempre menor que odeslumbramento pela França, vem desde o século XIX, com Tobias Barreto e SílvioRomero, seu continuador.10

A influência alemã pode ser reconhecida também, antes do ISEB, em GilbertoFreyre, um discípulo de Franz Boas, em Caio Prado Jr., um seguidor de Karl Marx, eem Sérgio Buarque de Holanda, que estudou na Alemanha da época da República deWeimar, de onde trouxe uma metodologia nitidamente weberiana. Essa presença dacultura alemã é, certamente, um traço característico do próprio Jaguaribe, que trouxeao ISEB influências de Max Weber e Ortega y Gasset (1883-1955), bem como doculturalismo de Windelband (1848-1915) e Rickert (1863-1936).

Para Jaguaribe, "apenas após a elaboração das teorias relacionadas com ohistoricismo e o culturalismo, em meados do século passado, organizaram-seinstrumentos teóricos que permitiam alcançar na ciência política a objetividade queas ciências culturais já haviam atingido em outros setores". Seriam, pois, aquelasperspectivas intelectuais as que permitiriam ao filósofo na crise do século XX"suprir com idéias às fissuras que se abrem no mundo das crenças". Seguindo ospassos de Ortega y Gasset, dizia Jaguaribe que se impunha ao homem interrogar-sesobre quem era nesse tempo em que sentia perder valor "o que antes era valioso".

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Impor-se-ia ao filósofo interrogar a realidade em que vivia, num ato de liberdadeque buscava novas idéias que restaurassem o sistema das crenças. A filosofia era afundamentação das crenças, decorrente de uma reflexão sobre a realidade e sobre aspróprias crenças.11

É claro que Jaguaribe descrevia a crise das idéias do século XX a partir daobservação da Europa. Mas sua preocupação maior era o Brasil, que, dizia ele,participava da crise ocidental e, portanto, experimentava "a necessidade de reversuas crenças e de elaborar uma resposta para os impasses da vida contemporânea".

Podem-se acrescentar, também nos anos 1950, mas de certo modo à margem docaso do ISEB, exemplos dessa mesma sensibilidade historicista e culturalista quebuscaram inspirar-se em contextos intelectuais e políticos de outra linhagem. Algunsdeles em oposição aos isebianos, como Florestan Fernandes (1920-1995), que, emnome da ciência, repudiava o cientificismo. Pretendendo afirmar-se como cientista,desejava construir uma sociologia inspirada no funcionalismo de Émile Durkheim(1858-1917) e Robert King Merton (1910-2003). Recusava-se a aderir às teorias doculturalismo e do historicismo, e não esquecia suas críticas aos isebianos no planoda política e da ideologia. Isso, porém, não o impediu, impulsionado por um mesmosentimento das urgências históricas, de aderir em meados dos anos 1960 a ummarxismo cada vez mais político e ideológico.

Talvez se possa dizer que, na maré montante do culturalismo e do historicismo, agrande exceção foi Caio Prado Jr., que, não obstante seus ensaios políticos (emespecial Revolução brasileira), permaneceu ligado a um marxismo de carátersistemático e às análises de infra-estrutura. Marxistas mais jovens, porém, nos anos1960, deixaram-se seduzir pelas idéias do marxista húngaro Giorgi Luckács (1885-1971) e do filósofo existencialista Jean-Paul Sartre (1905-1980). Era meio caminhoandado para a atmosfera culturalista e historicista predominante em outras opçõespolíticas e que, na esquerda, reaparecerá nos anos 1970, nas linhas do marxismohistoricista, inspirado, sobretudo, em Antonio Gramsci (1891-1937).

Economia e poderEmbora nos primeiros anos da década de 1950 Jaguaribe estivesse mais voltado paraas questões da filosofia e da cultura, já se pode observar nele o cuidado, que setornaria crescente entre os isebianos, com os fenômenos da economia e do poder. Eleconsiderava que o crescimento das cidades e a expansão da indústria, resultante dadesagregação da economia rural baseada no latifúndio, tornaria insustentável o"descompasso" entre as necessidades sociais e culturais do país e as possibilidades

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das forças tradicionais.Esse diagnóstico, que merecerá desenvolvimentos ulteriores em O nacionalismo

na atualidade brasileira, não diminuía, porém, a relevância da cultura na análise doautor sobre a história do país. Sem perder de vista as mudanças econômico-sociais,Jaguaribe descrevia, como já o dissemos, um cenário de crise da cultura. Entendia,por exemplo, que a literatura morrera nos anos 1940 e nada teria restado que lhetomasse o lugar. Morria o literatismo e o verbalismo, mas, como a intelectualidadecontinuava bacharelesca, a crise "se manifesta pelo silêncio que reina nos meiosintelectuais". Daí que haveria que criar uma "literatura de idéias, apta a responder àsgrandes questões que pairam irresolvidas". Haveria que buscar o caminho para a"fundação de uma cultura brasileira, herdeira da européia, integrada no espíritoocidental, mas vinculada à realidade do Brasil e representativa de suasnecessidades".12

Na crise dos valores, advertia Jaguaribe, surgia a necessidade da formação de umanova classe dirigente. Se os intelectuais permaneciam em silêncio, as eliteseconômicas e políticas teriam atingido "o clímax de sua inépcia". Formar uma novaclasse dirigente seria uma tarefa de urgência, que se colocava em face de dois riscosa evitar. A formação de novos dirigentes deveria ocorrer "a tempo de evitar que asituação internacional" se modificasse "com a afirmação de uma hegemoniamundial". Considerando favorável ao país a circunstância de um mundo divididoentre os EUA e a URSS, Jaguaribe entendia que, se viesse a se afirmar a hegemoniamundial de um único centro de poder, o país estaria subordinado, "no presenteestado de subdesenvolvimento", "seja qual for o bloco vencedor, à condição de terracolonial, a serviço da força dominante".13

Haveria ainda um segundo risco que a formação de uma nova classe dirigentedeveria evitar. Era o risco de "que a crise econômico-social do país desencadeie umarevolução do primarismo". Na situação social em que se achava o país, não estavaexcluída a possibilidade de assistirmos "à irrupção avassaladora do primarismonacional que destruirá o pouco que se logrou edificar, no curso do tempo, comocultura e como civilização". A filosofia, "como resposta da liberdade à crise dascrenças e como autoconsciência da cultura" tem a missão de construir "as basesideais" para a conquista "de um destino superior para a comunidade brasileira".

Que a aproximação dos isebianos à economia tenha sido feita pelos caminhos dacultura constitui, precisamente, um traço peculiar de sua concepção da história.Assim como desejavam para o futuro uma economia impregnada de cultura, tambémviam impregnados de cultura o presente e o passado. Se Helio Jaguaribe percebiaraízes econômicas da crise dos valores, isso não significa que visse na economiaalgo de exterior aos valores. Para ele, cultura e economia seriam mundos que se

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comunicam, em "um processo social de caráter global", "condicionado, entre outrosfatores, pelas crenças substantivas e adjetivas de uma comunidade". Assim como "háculturas que não conduzem a uma transformação qualitativa deliberada do contextoeconômico", a ideologia do desenvolvimento só pode ser concebida em culturas "quepossuem, entre suas idéias-força, a propensão para o domínio do mundo, dentro deuma cosmovisão racional, mediante a sua configuração a serviço do homem".14

Nesse espírito, o ISEB pôde conceber o desenvolvimento como um crescimentoorientado por um projeto nacional autônomo e intrínseco ao próprio crescimento.

Ideologia e históriaNos primeiros anos, Helio Jaguaribe e Guerreiro Ramos caminhavam no mesmosentido, embora em disciplinas diferentes. Guerreiro queria para o "pensamentosociológico" uma transformação similar à da observada na CEPAL, que "buscatornar a política e o pensamento econômicos dos países latino-americanos fatoresoperativos do seu desenvolvimento". Entusiasta da CEPAL e de Raúl Prebisch,Guerreiro queria para o pensamento sociológico uma capacidade de intervenção narealidade semelhante à que via no pensamento econômico.15 Queria a unidade dateoria e da prática. O que, de certo modo, o ISEB produziu, influenciando a ação departe das elites e do Estado sobre a sociedade.

Essa influência, mais visível na área da economia, esteve presente também nasociedade, não apenas por meio de instituições políticas, mas, sobretudo, deinstituições culturais. Foram diretamente influenciados pelo ISEB os CentrosPopulares de Cultura (CPC), a União Nacional de Estudantes (UNE) e osmovimentos de educação, em especial os ligados à Igreja, como o Movimento deEducação de Base (MEB) e os movimentos educativos ligados ao "método PauloFreire".

Cabe observar, porém, que em Guerreiro Ramos a economia aparecia mais comoum bom exemplo daquilo que ele, sociólogo, desejava como política de intervençãona sociedade do que como um dos elementos de explicação das condições da crise dacultura e da política. Embora os isebianos tivessem, em geral, uma tendência aampliar o lugar da vontade na política, Guerreiro Ramos parecia exigir da vontadepolítica mais do que Helio Jaguaribe e Roland Corbisier já o faziam. Falando, porexemplo, da formação da nação brasileira, Guerreiro Ramos dizia que,diferentemente da Europa, onde as nacionalidades se formaram através de milêniosde história, aqui o "problema nacional" só passou a existir depois da Independência.

Com tal afirmação ele queria dizer que aqui o "problema nacional" era maisrecente e, além disso, constituído pela vontade do Estado. Guerreiro Ramos entendia

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que, no Brasil, o Estado formou-se antes da nação, e esta por vontade daquele.Subestimava uma herança histórica, e cultural, de três séculos, uma longaexperiência que, se não podia formar um Estado, plasmou alguns elementos sociais eculturais decisivos para a formação da nacionalidade, entre os quais a mestiçagemde brancos, índios e negros, a sensibilidade religiosa católica e a unidade de idioma.Passava por alto uma longa experiência histórica e cultural – a colônia – que outrosisebianos examinaram com cuidado.

Para Roland Corbisier, a colônia foi um "fenômeno social total", uma "situaçãoglobal, que afeta e tinge de um colorido específico todos os ingredientes que aconstituem". Ele nos fala também de um "complexo colonial" em que tudo se ligava,e no qual a "alienação" foi o traço característico. Corbisier, que, entre os isebianosda primeira fase, era o mais propenso à filosofia, falava da colônia como de um"instrumento", no sentido atribuído a essa palavra por Heidegger (1889-1976). Ou deum escravo, acompanhando a célebre dialética do senhor e do escravo, de Hegel(1770-1831). Era um "instrumento", no sentido heideggeriano, não tinha finalidadeem si, sua finalidade pertencia a outrem. E, como o escravo, não tinha nada que lhepertencesse.

Peculiar à colônia é que não era dona de si nem de seu destino, que, ambos,pertenciam à metrópole. Não obstante a linguagem filosófica e a relevância queCorbisier concede aos aspectos culturais, ele não se esquece de observar que, no"complexo colonial", o "principal ingrediente" era a "dependência econômica". Era,pois, essencialmente diferente da nação, que incluía "entre os seus traços ouingredientes constitutivos – além do território, da língua e da psicologia comuns – ainfra-estrutura própria e a coesão da sua economia". A nação incluía uma dimensãoeconômica, um "arcabouço"; "sem essa ossatura econômica não há nação".16

É em sua teoria da passagem da colônia à nação que a consciência e a culturaretomam todo seu significado. Diz Corbisier que, no colonialismo, como noescravismo, o ponto frágil da dominação é a ideologia. Assim como na escravidão,também no colonialismo a crença na superioridade de raça e de cultura inclui-seentre os valores que buscam justificar o domínio na consciência do colonizador. Masessa crença convive mal com um princípio que também se encontra na ideologia docolonizador, que é "a tese democrática da igualdade fundamental dos homens". Uma"tese democrática" que, cabe acrescentar, tanto na colônia quanto na escravidão, sópoderia ter uma origem religiosa, ou seja, uma origem no catolicismo vigente nasempreitadas ibéricas na América. Nessa contradição intrínseca da ideologia doescravocrata encontra Corbisier "o gérmen que irá provocar e justificar a revolta doescravo". Assim também no colonialismo: é na consciência dos colonizadores que seencontra o ponto frágil do sistema de dominação.

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Da colônia à nação: o Estado cartorialHelio Jaguaribe, em uma conferência de 1957, oferece uma presença mais concretado pensamento econômico na sociologia e na ciência política. Combinando sua visãopolítica e social com a perspectiva econômica aberta por Celso Furtado emFormação econômica do Brasil, Jaguaribe viu as preliminares da grande mudançados anos 1930 na lei de repressão ao tráfico de escravos (1850) e, depois, na lei daabolição da escravatura (1888). Ambas estimularam uma reorientação da economia,que, a partir da crise de 1929, tomaria escala na direção do mercado interno, gerandoas primeiras condições para a transferência para dentro do país do centro dinâmicoda economia.

As mudanças que sobrevieram a 1850, liberando capitais até então empenhados notráfico negreiro, seriam reforçadas, a partir da Abolição e da imigração estrangeira,com o início da formação de um mercado de trabalho livre. Jaguaribe considerariaainda as dificuldades de importação causadas pelas guerras de 1914-1918 e de 1939-1945, acompanhadas das crises cambiais de 1920 e 1940. Foi no contexto criado peloconjunto dessas mudanças e condições históricas que a indústria passou a substituirimportações de bens de consumo e, depois, bens de produção. Foi, portanto, comoresultado dessa longa história que "fomos compelidos a produzir internamente o queantes importávamos".17

Depois de três séculos e meio de colônia, o Brasil ingressou em 1850 numa fasesemicolonial que duraria quase um século, para só então entrar, a partir de 1930, emsua fase de desenvolvimento nacional. "O Brasil deixou, assim, de ser um país pura esimplesmente semicolonial, como havia sido até por volta dos anos 1930." No planoda política e da cultura, essa longa história teria conduzido o país a uma auspiciosacoincidência dos interesses do proletariado, da burguesia industrial, do campesinatoe da classe média, os quais teriam seus interesses "representados pelodesenvolvimento. Somente são contrárias as velhas classes latifúndio-mercantis",que, contudo, são classes minoritárias.

Jaguaribe descrevia, pois, um longo processo de diferenciação estrutural dasociedade brasileira. Mas assinalava também – e aqui, de novo, entram em cena osaspectos políticos e culturais – que as perspectivas abertas em meados da década de1950 indicariam possibilidades, não certezas. Esse passado que gerara odesenvolvimento nos havia legado também pontos de estrangulamento que poderiambloqueá-lo, assim como urgências sociais que poderiam abortá-lo. No plano político,entre tais pontos de estrangulamento estava a lentidão do Estado, amortecido pelapolítica de clientela. Ao longo da história teríamos criado um Estado cartorialincapaz da ação dinamizadora que o desenvolvimento impunha.

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Embora em 1930 o país estivesse nos umbrais do desenvolvimento, o Estadocartorial e a política de clientela acarretavam, entre suas conseqüências, uma"monstruosa deformação do serviço público". A política de clientela, nascida danecessidade de atendimento a uma classe média que surgira como "subproduto" deuma urbanização que produzira cidades "infladas", mas de escassa capacidadeprodutiva, subsistia apenas como um mecanismo de preservação do poder dolatifúndio mercantil. Estabelecia-se, desse modo, "um divórcio crescente entre asforças que dinamizam o processo econômico e as que continuam manobrando apolítica de clientela e controlando o Estado". "O dinamismo econômico é provocadopela burguesia nacional, pela burguesia industrial e pelos setores do Estadovinculados à empresa produtiva. (...) Todavia, o Estado cartorial continuamanipulado pelas correntes que já não detêm o poder econômico, mas quecontinuam detendo o poder político."18

Primado da ideologiaAssim como Corbisier fala da ideologia na passagem da colônia à nação, Jaguaribeafirma que os caminhos do desenvolvimento teriam que vir da "superação dapolítica". E esta dependeria, essencialmente, da ideologia, mais especificamente, daideologia do desenvolvimento. É que, embora minoritárias, "as velhas classeslatifúndio-mercantis" ainda eram predominantes na orientação da imprensa, econservavam a possibilidade de determinar a composição do Congresso Nacional,pela manobra das clientelas. Tudo passaria a depender de que "a açãoempreendedora dos homens, representativa do processo do desenvolvimento,estabeleça contato com as grandes massas". Na medida em que tal ocorresse "asformas de política clientelista tendem a ser desmascaradas pela própria ineficiência,e as formas de política ideológica a substituí-las, propendendo a organizar-se novaforma no Estado".19

Era essa a possibilidade de desenvolvimento que Jaguaribe via aberta "no governoJuscelino Kubitschek". Segundo dizia, foi esse "um governo que suscitou a adesãodas grandes massas rurais e urbanas e assumiu o poder sob a bandeira dodesenvolvimento econômico e da transformação econômica e social do país". Era,porém, uma possibilidade, pois, a despeito de seus compromissos e intenções, "ogoverno se encontra em dificuldades para executar coerente e sistematicamente asua política, dada a heterogeneidade das forças que compõem a maioria do Governoe do Congresso Nacional". Os fatos da política, pondo "sob a rubrica comum do PSDe do PTB tanto as forças vinculadas ao desenvolvimento econômico como as forçasa ele contrárias (...) inevitavelmente retiram dos partidos que compõem o Congresso

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a possibilidade de atuarem de modo coerente".A esses fatores políticos que percebia obstaculizando o desenvolvimento, Helio

Jaguaribe acrescentava observações sobre a economia, por meio das quais abria umaampla frente de divergência com alguns dos seus colegas isebianos. SeguindoFurtado, entendia que, na economia, "o principal problema (...) é o de expandir anossa capacidade de poupar, inclusive mediante investimentos estrangeiros eorientar estes investimentos em uma linha que represente o máximo deessencialidade". Essa perspectiva sugeria pontos de divergência que aparecerão,mais claramente, em seu livro O nacionalismo na atualidade brasileira, motivo dodebate que abriu a crise isebiana de fins de 1958.

É certo que Jaguaribe insistia em que "a principal causa de estrangulamento donosso desenvolvimento é o fato de não coincidir o processo de formação dapoupança e de aplicação dos investimentos com as necessidades da população". Masparecia impossível a alguns isebianos, orientados por um nacionalismo radical,admitir que os investimentos estrangeiros cooperassem no processo dedesenvolvimento. E era isso, não obstante, o que já começava a ocorrer, desde oinício do governo Kubitschek, com a implantação da indústria automobilística.

No plano social, para Jaguaribe, os pontos de estrangulamento que embaraçavamo processo global do desenvolvimento brasileiro se encontrariam na permanência deprivilégios de classe, cuja influência se estenderia além da política de clientela. Elecaracterizava um parasitismo que afetaria os três principais estratos da sociedade: oproletariado, a classe média e a burguesia. Nesses segmentos sociais, precisamenteos que poderiam formar uma ampla base de sustentação para a política dedesenvolvimento, ele encontrava mecanismos "de enquistamento, de maltusianismo,de proteção a formas de produtividades extremamente baixas". Exemplo dissoestaria nos altos custos dos serviços dos portos, essenciais à exportação, indicando,de algum modo, a precariedade das bases sociais do projeto.

Diante de tais pontos de estrangulamento, a mobilização ideológica passaria a serfundamental para a criação de condições de eficácia do Estado e do planejamento. Amobilização ideológica seria indispensável para que os diversos setores da sociedade"conciliem o seu próprio interesse com os objetivos do plano". Tratar-se-ia,portanto, de ajustar a consciência das classes sociais a seus interesses reais, quaissejam os do desenvolvimento.

Tendo em conta que as ideologias que correspondem às necessidades situacionaisda classe operária, da pequena-burguesia e da burguesia se entrosam na mesmanecessidade, de conjunto, de promoção do desenvolvimento, "o problema que seapresenta é, essencialmente, um problema de educação e de organização ideológica.(...) Na medida em que a educação ideológica se torna consciente, configura-se a

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necessidade, de que não se apercebiam as classes, de padronizar os comportamentospolíticos em moldes que superam a barganha clientelista, organizando-se taispadrões segundo as grandes diretrizes da posição ideológica". O que permitiria que oEstado, "a principal instituição nas condições do mundo contemporâneo", passasse afuncionar de maneira eficaz, seja entendido como agente, seja como expressão dosistema de normas que disciplinam o procedimento social.20

Ideologia e pragmatismo: Celso Furtado e RobertoCamposNão se pode passar por alto, nos anos 1950, as distâncias que mantinham as idéiascom as ações políticas em geral, em especial com as ações de governo. Precisamentepor haver sido uma época em que as idéias alcançaram notável relevância, maisnecessário se torna distinguir as diferenças entre as formulações dos ideólogos eaquelas que acabaram moldando as decisões dos políticos, bem como as dos técnicosque, dentro ou fora do Estado, implementaram decisões cruciais para odesenvolvimento da economia. Porque eram diferentes as circunstâncias em queatuavam, teriam que ser diferentes as razões dos teóricos e dos práticos, emboratodos imersos na atmosfera criada pelos debates entre as idéias nacionalistasemergentes e um liberalismo até então dominante.

O nacionalismo e o liberalismo não tinham, no começo dos anos 1950, no segundogoverno Vargas, fronteiras tão nítidas como ao fim do governo Kubitschek e, emespecial, no governo Goulart. Pode-se dizer que, naqueles primeiros anos, asideologias foram mais importantes no discurso do que nas práticas de Estado. Oimpacto das circunstâncias da história obrigou todos os protagonistas a variações ematizes, bem como a realinhamentos e desgarramentos, evoluções diferenciadas depensadores e políticos. Enquanto não chegava o tempo, que só virá na década de1960, do confronto entre o liberalismo extremado e o nacionalismo radical, asopções ideológicas foram menos importantes na prática do Estado do que nodiscurso que aliciava adesões dos movimentos políticos e sociais.

Celso Furtado tornou-se, quase logo após seu ingresso na CEPAL, uma referênciados nacionalistas no pensamento econômico, mas isso não o impediu, no início desua carreira, de transitar com facilidade entre os diversos grupos em que se dividia opensamento econômico no país. Segundo ele relata em suas memórias, a indicaçãoque o levou à CEPAL saiu do gabinete de Octavio Gouvêa de Bulhões (1906-1990),que formava com Eugênio Gudin a dupla de patriarcas do liberalismo entãodominante. Como membro da CEPAL até 1957, Furtado ajudou a criar as idéias danova tendência nacionalista, participando também de várias atividades no Brasil

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como representante daquela instituição. Entre essas atividades, participou, a convitede Roberto Campos, do grupo misto BNDE-CEPAL, que, por sua vez, veio a ter forteinfluência no Plano de Metas do governo Kubitschek.

Furtado não participou formalmente do ISEB, ao contrário de Campos, cujo nomeconsta da nominata dos fundadores do instituto, embora em caráter formal mais doque efetivo. Mas, a convite de Jaguaribe, Furtado desenvolveu em 1953 um ensaiosob o título "Interpretação histórico-analítica do desenvolvimento econômico", cujasidéias entraram em sintonia com as do ISEB. Seu ponto de partida nesse ensaio era ode que "estávamos lidando com um amplo processo de mudança cultural", com a"força criadora das civilizações" (...) "se há mudanças é porque existe apossibilidade de escolha, o que pressupõe uma margem na disponibilidade derecursos, um excedente com respeito ao estritamente necessário à sobrevivência dacoletividade".21 Furtado recupera essa referência à cultura em suas memórias,quando se reconhece herdeiro de uma influência kantiana, em razão de sua formaçãojurídica, e que, considera, só viria a ser "temperada na medida em que começasse abeber mais a fundo em fontes historicistas".

Os cruzamentos entre os caminhos de Furtado e de Campos estão claramentedescritos nos livros de memórias que publicaram quase ao fim de suas vidas,Fantasia organizada e Lanterna na popa, respectivamente. Na passagem dos anos1940 para os 1950, Roberto Campos era um jovem diplomata de carreira queestudara economia nos Estados Unidos. Nas universidades norte-americanasformara, junto com a crença no planejamento suscitada pelas experiências do NewDeal, também a convicção da necessidade da modernização do Brasil. Diz CelsoFurtado: "Quando o conheci, (Campos) era um homem essencialmente preocupadocom a modernização do país. Os anos que passara nos Estados Unidos haviamdeixado forte impacto em sua visão do mundo. Tinha consciência do atraso doBrasil".22

Roberto Campos, com quem Furtado declara haver tido uma colaboraçãoharmoniosa, era um dos jovens da diplomacia brasileira que acreditavam na CEPAL,recém-formada. "Seu interesse pelo planejamento decorria de uma preocupaçãoquase obsessiva em reduzir o campo da 'irracionalidade' na política." Ele "confiavano poder da razão e desconfiava do caráter das pessoas. O nacionalismo lhe pareciauma força negativa, mas pelas paixões que despertava". O depoimento de Furtadosobre a participação de Campos na Comissão Mista é conclusivo sobre seu colegadaqueles primeiros anos: "do lado brasileiro, a pessoa mais influente na constituiçãoda Comissão Mista e seu co-presidente foi Roberto de Oliveira Campos; expôs-nos oprojeto de criação do Banco de Desenvolvimento e convidou-me para integrar aequipe. As experiências da Nacional Financeira, no México, e da Corporación de

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Fomento de la Producción, no Chile, haviam demonstrado que um banco dedesenvolvimento é o mais importante instrumento de política de industrialização empaíses subdesenvolvidos".23

Esses primeiros anos 1950, em que os jovens Celso Furtado e Roberto Camposensaiavam seus primeiros passos como líderes de idéias que viriam depois a ocuparposições separadas e adversas, eram também, para os mais velhos, anos decontinuação de debates mais antigos. A partir de 1950, relata Furtado, abriu-se "umaofensiva no plano acadêmico contra as idéias da CEPAL", por iniciativa de Gudin,que teria ficado chocado quando tomou conhecimento das idéias de Raúl Prebish."Disse-me: 'Aonde vai Prebisch? Que significa isso de pregar a autarquiaeconômica?'." Segundo Furtado, Gudin considerava o nacionalismo "manifestaçãode burrice coletiva". Suas concepções econômicas se apoiavam no determinismo deBuckle: "Não há como negar que o desenvolvimento econômico é principalmentefunção do clima, dos recursos da natureza e do relevo do solo". Gudin consideravaque a civilização ocidental se desenvolvera unicamente fora da zona tropical. Porisso não se surpreendia com o considerável atraso do Brasil dentro da AméricaLatina, nem com o avanço da Argentina, que tinha melhor clima e melhores solos.24

Ideologia e pragmatismo: Rômulo de AlmeidaDeve servir de exemplo das usuais – e talvez inevitáveis – incoerências internas dosgovernos o fato de Getúlio Vargas ter tido a colaboração de Campos na ComissãoMista Brasil-Estados Unidos, no mesmo momento em que Rômulo de Almeida(1914-1988), representante de um nacionalismo econômico ao qual Campos seopunha, dirigia a assessoria do presidente. Da assessoria presidencial faziam parte,além de Rômulo de Almeida, os economistas Jesus Soares Pereira (1910-1974),Inácio Rangel, Tomás Pompeu Acióli Borges e Cleanto de Paiva Leite, todosnacionalistas, funcionários do Departamento de Administração Pública (DASP).25

Nessa incoerência governamental temos sinal de um profundo paradoxo dahistória. Como observa Campos, o nacionalismo do governo vinha menos dainfluência dos assessores, dirigidos por Rômulo de Almeida, do que do própriopresidente, apegado ao êxito da cooperação da época da guerra entre o Brasil e osEstados Unidos. Em Getúlio Vargas, paradoxalmente, o nacionalismo se beneficiarada política rooseveltiana da "boa vizinhança", que estimulou, do lado brasileiro, uminteresse maior nos empréstimos de governo a governo para investimentos estataisem infra-estrutura do que em investimentos diretos de empresas. Essa disposição decooperação sofreria, porém, substanciais mudanças em inícios dos anos 1950,passando os americanos a se interessar mais pelos investimentos de empresas do que

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pelos empréstimos de governo a governo.26 E assim antigos companheiros detrajetória começariam a se separar.

Em 1951, Getúlio Vargas fez um famoso discurso contra a remessa de lucros parao exterior, que, além da grita política que suscitou dentro do país, indicava umadisposição de Estado que, segundo Roberto Campos, criaria dificuldades para oingresso de capitais. É também desses anos o grande debate sobre a questão dopetróleo, a partir de um projeto do governo esboçado por Rômulo de Almeida.Embora permitindo em sua formulação inicial uma abertura para a participação decapitais privados, o projeto governamental suscitou um grande debate nacional e aoportunidade de um forte impulso nacionalista. Diz Celso Furtado que, nos começosde 1953, "o debate ideológico desdobrara de todos os lados"; o Partido Comunista"deslizara para um extremo radicalismo, que extravasava verbalmente na campanhapopular de 'O Petróleo é Nosso'".27

Roberto Campos saiu do BNDE em 1953, divergindo de determinação de Vargasque colocara na presidência do banco um político considerado incompetente entre oseconomistas. "Rompido no BNDE com Getúlio Vargas, e transferido pelo Itamaratypara Los Angeles em fins de 1953 (só voltado ao Brasil em março de 1955), tivelazer para meditação. Distanciei-me cada vez mais do estruturalismo da CEPAL,aproximando-me do liberalismo de Gudin e Bulhões."28

A essa altura, porém, os aspectos políticos tomavam um movimento autônomomesmo quando se tratava de questões econômicas. Na marcha dos acontecimentos, oprojeto da Petrobrás foi alterado no Congresso por iniciativa do partido da oposiçãoa Vargas, a União Democrática Nacional (UDN), conduzindo ao monopólio estatal efechando a participação aos capitais estrangeiros. Os paradoxos se acumulavam nopaís, que caminhava rapidamente para a crise de 1954, da qual resultaria o suicídiode Vargas e uma sucessão de golpes e contragolpes.

JK, um rico herdeiroJuscelino Kubitschek firmou-se na história brasileira como a figura rara de um líderque cumpriu grande parte de suas promessas. Passados mais de cinqüenta anos desua passagem pela presidência, sua promessa de "cinqüenta anos em cinco" ficoucomo algo mais do que um slogan de campanha. Mas é difícil compreender adimensão de seu êxito sem as bases econômicas e políticas criadas por Vargas, dasquais foi um rico e talentoso herdeiro. Seguindo as linhas gerais da política deindustrialização iniciada por Getúlio Vargas, seus planos de governo abriram ocaminho para a construção do país urbano e industrial que somos hoje. A construçãode Brasília tornou-se a sua obra mais conhecida; não, porém, a mais importante. Sua

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realização mais forte foi a implantação da indústria automobilística, pelo famosoGrupo Executivo da Indústria Automobilística (GEIA), por meio de uma linha deação pela qual o governo abria espaços para o capital privado. No períodoKubitschek, como já se disse, o Brasil começou a adquirir o perfil de um paísindustrial moderno.

[<<29]

Juscelino no Fusca: com a implantação da indústria automobilística, o governo abriu espaçospara o capital privado.

Também no plano das idéias, o maior talento de Kubitschek foi dar continuidadeao que herdara, mesmo que fosse a continuidade das contradições e dos paradoxos.Como Vargas, ele pretendia um crescimento econômico orientado para a ampliaçãodo mercado interno. Queria também um crescimento a partir de investimentos queestimulassem, tanto quanto possível, o capital nacional, público ou privado, e ocrescimento do emprego e da renda, bem como a diminuição das desigualdadessociais. O desenvolvimento, portanto, era pensado em termos de uma lógica decrescente autonomia nacional e democratização social.

Essa lógica do desenvolvimento nacional, à qual Kubitschek acrescentou apreocupação, maior do que a de Vargas, de atrair capitais estrangeiros, funcionounuma escala difícil de conceber nas circunstâncias de hoje, cinqüenta anos depois.Durante seu governo a economia cresceu, o salário real aumentou, o nível deemprego subiu. O que significa que a "questão nacional", tratada pelo ISEB e que

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adquiria ressonâncias maiores pela influência da CEPAL, e a "questão social",impulsionada pelas esquerdas e pelos sindicatos, permaneceram equacionadas nostermos da "questão do desenvolvimento". A lógica que conjugava essas "questões"deixou de funcionar, porém, em 1961, quando a economia entrou em depressão.

Nada mais adequado do que designar os anos de Kubitschek como a época do"desenvolvimentismo". Criada e difundida pelos intelectuais, especialmente noISEB, a expressão era nova. Pretendia descrever o esforço do país para acelerar amodernização, bem como consolidar a afirmação do nacionalismo como umalinguagem cultural e política. Foi também um momento histórico de valorização dademocracia, no qual o presidente caracterizou-se pelo sentimento da conciliação e datolerância. A exemplo de seu governo em Minas Gerais, que se orientava pelobinômio "desenvolvimento e energia", Juscelino Kubitschek gostava de organizarseu discurso político em binômios. Assim, é bem provável que descrevesse seugoverno no plano federal com os termos "desenvolvimento e democracia". A históriade seu brilhante período na história não terminou, porém, como ele gostaria.

Assim como ninguém poderia prever o êxito de Juscelino Kubitschek quandochegou ao governo, ninguém poderia prever que o Brasil voltaria a um cenário decrises institucionais quando ele saísse. Kubitschek deixou o governo em 1960; já emmeados de 1961 o país chegaria ao limiar da guerra civil. A resistência de setoresconservadores a aceitar a posse do vice-presidente João Goulart, depois da renúnciade Jânio Quadros, foi o início de turbulências institucionais que levariam ao golpemilitar que derrubou Goulart em 1964. Vitorioso o golpe, Kubitschek foi um dosprimeiros de uma lista de dirigentes políticos que tiveram seus direitos políticoscassados, e da qual faziam parte ainda os ex-presidentes Jânio Quadros e JoãoGoulart.

Depois da derrubada dos ex-presidentes, dos líderes da esquerda e, em geral, dosherdeiros de Vargas, o golpe militar atingiria também seus criadores civis, como, em1966, o ex-governador Carlos Lacerda (1914-1977). Pensado como provisório,apenas para "arrumar a casa", o golpe militar pôs abaixo toda a elite política civil daépoca de Vargas, consolidando-se numa ditadura que durou vinte anos.

1. FURTADO, Celso. A fantasia organizada. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985; e CAMPOS, Roberto. A lanternana popa. Memórias. 4. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 2004, 2 v.

2. FURTADO, op. cit, p. 43-44.3. JAGUARIBE, Helio. O nacionalismo na atualidade brasileira. Rio de Janeiro: MEC/ISEB, 1958.

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4. O grupo do ISEB era formado por colegas e amigos, não obstante as divergências que deveriam crescer eque terminaram por separá-los na política. Em 1954, em entrevista sob o título "Guerreiro Ramos e adescida aos infernos", Guerreiro revelou à revista Marco (n. 4, 1954) dois dos seus "mais amoráveisprojetos": escrever "a história secreta de Abdias do Nascimento" e a biografia de Helio Jaguaribe. "Com osegundo projeto, pretendo fixar a fisionomia dinâmica de um pedagogo, fixar um momento importante daevolução cultural do Brasil, quando uma vida humana se faz matéria em que um determinado 'tempo'histórico impregna o seu sentido (...)". RAMOS, Introdução crítica à sociologia brasileira, cit., p. 267.

5. São muitos os estudos contendo informações sobre as origens do ISEB. Apóio-me aqui nas minhasconversas com Helio Jaguaribe, bem como na leitura de "O Negro como lugar", introdução de Joel Rufinodos Santos a RAMOS, op. cit., p. 19-31, e em PÉCAUT, Os intelectuais e a política no Brasil, cit., que resumeampla literatura a respeito.

6. Cadernos do Nosso Tempo, janeiro/março de 1956, p. 47-189.7. RAMOS, Introdução crítica à sociologia brasileira, cit., p. 176 e seguintes. Ver também o prefácio do autor

a O problema nacional do Brasil, cit., no qual o autor declara haver dado esse título ao livro "com plenaconsciência de que ele vai situar-se na tradição de sociologia militante no país, que vem desde o Viscondedo Uruguai, Paulino José Soares de Souza, até Oliveira Viana, passando por Sílvio Romero, Euclides daCunha e Alberto Torres. (...) O presente livro, como o de Alberto Torres, é uma tentativa de utilizar aciência social como instrumento de organização da sociedade brasileira".

8. CORBISIER, Roland. Formação e problema da cultura brasileira. Rio de Janeiro: MEC/ISEB, 1958. p. 41;conferência feita em 1955 no curso do ISEB de "Introdução aos problemas do Brasil".

9. JAGUARIBE, Helio. A filosofia no Brasil. Rio de Janeiro: MEC/ISEB, 1957. p. 46. Esse texto foi publicadoem outubro de 1952 no Jornal do Commercio, e depois incluído em volume sob o título Aspectos daformação e evolução do Brasil, publicado por aquele jornal na celebração dos seus 125 anos.

10. Ver JAGUARIBE, A filosofia no Brasil, cit., p. 32.11. Ibidem, p. 12.12. Ibidem, p. 50-51.13. Ibidem, p. 50-51.14. JAGUARIBE, Helio. Condições institucionais do desenvolvimento. Conferências pronunciadas no Clube de

Engenharia em junho de 1957. Rio de Janeiro: MEC/ISEB, 1957. p. 37.15. Ver: SANTOS, Joel Rufino dos. O negro como lugar. In: RAMOS, Introdução crítica à sociologia brasileira,

cit., p. 19-31.16. CORBISIER, op. cit., p. 65.17. JAGUARIBE, Condições institucionais do desenvolvimento, cit., p. 42.18. Ibidem, p. 22 e seguintes.19. Ibidem, p. 31.20. Ibidem, p. 38 e seguintes.21. FURTADO, op. cit., p. 178.22. Ibidem, p. 155.23. Ibidem, p. 154.24. Ibidem, p. 138, 157 e 160.25. Cf. D'ARAÚJO, Maria Celina. O segundo governo Vargas 1951-1954: democracia, partidos e crise

política. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.26. CAMPOS, op. cit., p. 174 e seguintes.27. FURTADO, op. cit., p. 162.28. CAMPOS, op. cit., p. 167.

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POSFÁCIOHISTÓRIA DAS IDÉIAS E DO PENSAMENTO POLÍTICO

Há diferença entre o povo sem escolha de condições e aptidões, como o quer Jean-JacquesRousseau, e o povo que forma a comunhão civil perfeita, como entende São Tomás.

ZACARIAS DE GÓIS E VASCONCELOS

As vicissitudes da história do pensamento brasileiro possibilitaram uma indagaçãoque deu título a um pequeno ensaio de Raymundo Faoro (1925-2003): Existe umpensamento político brasileiro?. Faoro define de maneira clara a relação dopensamento com a cultura nacional: "Se há um pensamento político brasileiro, háum quadro cultural autônomo, moldado sobre uma realidade social capaz de gerá-loou de com ele se soldar".1 Essa pergunta, se referida ao presente, tem uma clararesposta afirmativa. Mas ela é mais interessante se entendida como se referindo àhistória, digamos às raízes do presente, às raízes históricas que geraram no país umacultura e uma realidade social capazes de formar um pensamento brasileiro.

Também nesse sentido histórico minha resposta para a pergunta seria afirmativa:nesse longo período da formação de sociedade brasileira, formou-se um pensamentobrasileiro, extensão do pensamento luso. Como vimos neste livro, temos umpensamento brasileiro que expressa a história da Ibéria, de Portugal e do Brasil, comsuas raízes medievais e uma tradicional e inextricável unidade de aspectos políticos,econômicos e sociais. Um pensamento que, mesclando as dimensões políticas esociais, é semelhante no aspecto formal ao pensamento político clássico ocidental.Também, como este, construiu uma teoria da política e da sociedade, diferindo,porém, na substância, no conteúdo. Assegura, desse modo, a possibilidade de umacomparação que ressalta sua originalidade.

Pensamento político e Estado modernoO pensamento político moderno nasceu na Europa quase ao mesmo tempo quenascia o Estado nacional e se anunciavam os primórdios da sociedade moderna.Maquiavel (1469-1527), como se sabe, não apenas desvendou segredos do Estado emformação. Ele queria também criar um Estado nacional na Itália. Concentrando suasatenções nos fenômenos de secularização do poder, o secretário florentino ofereceuperspectivas para o estudo não apenas do Estado, também da sociedade. É nessesentido que o surgimento do Estado, como algo distinto da pessoa do monarca, está

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na raiz de um pensamento político que envolve aspectos que hoje diríamos sociais.A luz projetada sobre as relações de autoridade e obediência, ou seja, sobre o campodo poder, iluminava mudanças em curso nas demais dimensões da sociedade.

No Brasil e, de modo geral, na América ibérica, nos séculos XVI e XVII, nãocomeçava um Estado, mas o parto doloroso de povos novos. Essa peculiaridade deorigem conferiu ao pensamento político ibero-americano, desde os inícios, o traçodistintivo de uma dominância dos aspectos sociais. A primeira grande novidade dopensamento da América ibérica estava no confronto de portugueses e espanhóis comuma humanidade que desconheciam. Assim, desde a partida, o objeto dessepensamento foi mais social e cultural do que político. Se na Europa doRenascimento o pensamento político tornou-se o centro de uma reflexão quecomeçou a distinguir outras dimensões da sociedade, aqui nem a circunstância socialnem o olhar que a examinava exigiam uma distinção de aspectos políticos,entendidos como autônomos.

No início da Idade Moderna, a velha Europa ocidental, – à parte os paísescatólicos da Ibéria, como sempre cercados de circunstâncias excepcionais –começava a redefinir os fundamentos da autoridade e da obediência e a rever asconcepções medievais do Estado e da sociedade. Surgia uma tendência à separaçãoda religião e da política que deveria prosperar nas cidades italianas, assim como naInglaterra, na França e na Holanda, aprofundando-se nos confrontos políticos ereligiosos ulteriores à Reforma. Essas mudanças fizeram do rei uma figuraindependente da Igreja, mas não independente de Deus nem das leis da natureza.Mesmo as teorias que concentravam poder nas mãos do monarca, como as de JeanBodin (1530-1596) e Thomas Hobbes (1588-1679), preservaram o respeito àliberdade e à propriedade dos súditos. É que ao mesmo tempo que mudava asociedade, surgiam os novos pressupostos do Estado moderno, através de umacultura que reconhecia os indivíduos e uma noção de igualdade entre indivíduos.

O movimento das idéias dos séculos XVI e XVII, culminando nas teorias de JohnLocke (1632-1704), estabeleceu os fundamentos de um "contrato" que permitiriaconceber velhos reinos medievais como comunidades políticas nacionais, com umanova concepção da legitimidade do poder e do mercado. Essas linhas de umpensamento político moderno encontrariam na Inglaterra contrapartida em umalinha autônoma do pensamento econômico que começa no século XVIII, com AdamSmith (1723-1790). Esses desdobramentos, dos quais se podem encontrar exemplosna França e na Holanda, expressavam tendências mais profundas da sociedade a umadiferenciação de estruturas que se tornaria típica das sociedades modernas.Estruturas econômicas, sociais, políticas etc. – a sociedade moderna passaria acaracterizar-se por uma pluralidade de dimensões com qualidades específicas.

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Assim como o desenvolvimento da sociedade e da economia européias, odesenvolvimento diferenciado das idéias alcançou de maneira também diferenciadaas colônias na América. Enquanto as colônias ibéricas, frutos precoces dosdescobrimentos, nasceram sob o signo das influências da última Idade Média, ascolônias inglesas surgiram mais de um século depois, quando já ia avançado naEuropa, sobretudo na Inglaterra e na Holanda, o rompimento com as tradiçõesmedievais. Desse modo, acompanharam os ritmos do pensamento europeu moderno,permitindo o desenvolvimento de um pensamento político diferenciado em relaçãoàs colônias ibéricas do Sul. Cabe mencionar, a propósito, a peculiaridade dopensamento político nos Estados Unidos, que, já a partir da Independência, dáexemplo nos artigos de Alexander Hamilton (1755-1804), James Madison (1751-1836) e John Jay (1745-1829), reunidos no Federalista, de um conjunto de reflexõesfundadoras da democracia norte-americana.2

As mudanças culturais dos séculos XVIII e XIX, em Portugal e no Brasil, nãoalcançaram as mesmas conseqüências que se conhecem na Inglaterra e nos EstadosUnidos. É certo que a Ilustração pombalina e a Independência brasileiraacrescentariam dimensões propriamente políticas à tradição do pensamento luso-brasileiro. Além de Pombal, no século XVIII português, são lembrados no Brasil doséculo XIX nomes notáveis, como os de Bernardo Pereira de Vasconcelos, oVisconde do Uruguai, o Marquês de São Vicente e o senador Nabuco de Araújo, cadaqual com marcas especificamente políticas. Mesmo José de Alencar, mais conhecidopor sua notável produção como romancista, deixaria reflexões valiosas sobre osistema representativo.3 Mas, se contribuíram para esclarecer dimensões políticasdo Império, esses políticos e pensadores não foram capazes de erguer suas reflexõesà autonomia do pensamento político moderno. O que significa que a reflexão sobre ademocracia política terá que esperar por fundamentos que só começarão a surgir nasprimeiras décadas do século XX, a partir de novos desenvolvimentos na sociologia ena antropologia.

Uma nova humanidadeEis a peculiaridade fundamental do pensamento luso-brasileiro: seu tema primordialnão vem do rompimento de modos antigos do poder, como na Europa, mas docontato dos europeus com culturas e povos que desconheciam. A primeira questãocolocada ao pensamento luso-brasileiro por Nóbrega e Vieira foi a doreconhecimento dos povos novos. Nem mesmo Pombal, que consolidaria a dimensãodo Estado na tradição luso-brasileira, deixou de prestar esse reconhecimento aosaspectos sociais: seu conflito com os jesuítas foi, em grande parte, um conflito sobre

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os índios. E, como não podia deixar de ser, preservava os compromissos da Coroacom a construção de uma "sociedade cristã", parte de um tradicional discursoreligioso que, desde as origens, conviveu com o pragmatismo e a violência quetornaram possíveis a conquista e a colonização.

A indagação sobre a humanidade dos povos conquistados constituirá a primeiraraiz desse pensamento brasileiro que se construirá, ao longo do tempo, cimentadopor uma mentalidade de forte herança medieval. O índio inspirou alguns dos maisbelos sermões de Antônio Vieira, no XVII. Mesmo quando o "último grandepregador da Idade Média" deu mostras de seu talento como estrategista político daCoroa, sua preocupação maior foi sempre atribuir ao Império uma missãoevangelizadora. O tema do negro, ao qual o jesuíta dedicou atenção menor,desenvolveu-se menos no discurso do que na ordem prática das coisas, sob controledos traficantes e dos senhores de terra, submetidos os escravos negros às exigênciasda grande propriedade, sem encontrar quem combatesse a injustiça contra elespraticada. Juntando-se, no século XIX, ao tema dos índios, o tema do negroacrescentou-se a outros numa sequência de temas mais antigos – dos árabes e judeus– sobre a incorporação de povos não cristãos à humanidade de Cristo.

A cultura e o pensamento brasileiros formaram-se sob o peso desse passadoibérico, que persistiu depois das mudanças que viriam com D. João VI e com aIndependência brasileira. Mesmo a abertura do Segundo Reinado às influênciasfrancesas e inglesas esteve longe de significar uma ruptura dessa tradição. Comodisse Angela Alonso, a cultura do Segundo Reinado se sustentou no "liberalismoestamental" e no catolicismo hierárquico da tradição ibérica, além do indianismoromântico que lhe deu as cores mais visíveis. Um dos aspectos típicos do poderdaquela época é que "o 'sistema representativo' espelhava a hierarquia social". Ouseja, no sistema representativo não se representavam indivíduos, mas "as famíliasque compunham a comunidade". Eis uma realidade da qual os líderes do Impériotinham plena consciência, pois eram capazes de perceber que, como dizia Zacariasde Góis e Vasconcelos, "há diferença entre o povo sem escolha de condições eaptidões, como o quer Jean-Jacques Rousseau, e o povo que forma a comunhão civilperfeita, como entende São Tomás".4

Assim como no Portugal de Pombal, também no Brasil de D. Pedro II asmudanças nessa tradição são acréscimos, não rupturas. Desse modo, a obra daformação do Estado nacional à qual se dedicaram conservadores e liberais doImpério parecia sempre inconclusa. Por mais que esses líderes tenham desenvolvidoestudos e reflexões sobre a ordem institucional, persistiam neles urgências deorigem social. Na prática, mais do que em suas obras ou discursos, liberais econservadores do Império estavam obrigados, como todos em sua época, ao tema da

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escravidão. Um exemplo do peso constrangedor da "questão social" sobre apossibilidade de um pensamento político autônomo foi a indecisão do Impériodiante da elaboração do Código Civil, tantas vezes postergado. Há outros exemplos.Como definir uma monarquia constitucional que se ergue sobre o solo de umasociedade escravocrata? Uma pergunta formulada por muitos, embora sem resposta.E que teve desdobramentos: como definir uma monarquia constitucional quandotudo o que há de importante na política depende do "poder pessoal" do imperador?Como disse Nabuco, nas mudanças de ministério ou nas reformas que conduziram àAbolição, a vontade do imperador tinha que substituir o povo, que a seus olhos nãoexistia.

O caminho para o que haveria de mais criador no pensamento político brasileirodeveria passar obrigatoriamente pelo social. Na Primeira República, apredominância do social sobre o político ocorreu mesmo no interior da obra depensadores que, como oliveira Viana, foram excelentes observadores da política. Foiassim também na Segunda República com os "intérpretes do Brasil", que escreveramobras de inegável significado político e, no entanto, de conteúdo basicamente social.

Foram as primeiras obras de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque e Caio Prado Jr. quecomeçaram a fechar o círculo das indagações sobre a nova humanidade. Nessesentido, os fundadores do ISEB foram legítimos sucessores, aos quais incumbiuretomar o tema das origens coloniais e da formação do povo. Dos anos 1920 aosanos 1950 esses pensadores nos deram a perceber que o grande problema das elitesna formação da sociedade brasileira era menos o de criar um povo do que o dereconhecer o povo realmente existente e que, aliás, nessas mesmas décadas,começava a emergir para as luzes do cenário político. Foi depois de 1950 – e muitopor influência dessas levas de pensadores de após 1920 e 1930 – que sedesenvolveram no país a ciência política, a sociologia, a antropologia e a economia,como ciências.

Povo e Estado: a construção bifronteNa história do Brasil o tema da formação do povo sempre se associou aos temas damestiçagem e da escravidão. Que gente era aquela que surgia da mistura dos índios,que já estavam aqui, com os brancos e negros que passaram a vir de fora? DesdeNóbrega e Vieira, sempre se lamentou que este país tivesse que crescer sobre asmisérias dos índios, dos negros, dos mestiços e dos mamelucos que proliferavam emtodo o território. Teria sido melhor, pensava-se, que fosse de outro modo, mas,afinal, como se dizia dos índios, os "naturais" eram muitos. É atribuída a Tomé deSousa, o primeiro governador-geral, esta frase brutal sobre os índios: "Ainda que os

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cortassem em açougue, nunca faltariam".5 À parte a crueza dessa frase, o fato é que,desde os primeiros momentos da colônia, não havia como evitar referências àestranha gente com que se confrontaram os portugueses na América nos primeirosséculos. Esses índios, mamelucos, mestiços e negros poderiam formar um povo?

No entusiasmo dos primeiros anos da Independência, José Bonifácio respondeu aessa pergunta de modo afirmativo e inovador. E, desde José Bonifácio até JoaquimNabuco, passando por Bernardo Pereira de Vasconcelos, as indagações sobre o povoandavam emparelhadas com outras, sobre as debilidades de um Estado liberal que seapoiava sobre os escravos. A pergunta sobre como construir uma nação e um Estadoliberal sobre uma sociedade de escravos só encontrou resposta na perspectiva deNabuco, que, como sabemos, descrevia a escravidão no Brasil como um "fenômenosocial total". O que significa dizer que para construir um Estado liberal serianecessário destruir não apenas a escravidão, mas também a "obra da escravidão".Mais do que abolir a escravatura, ele queria mudar a sociedade, reconhecer acidadania dos negros, e desse modo abrir os caminhos para a fundação (ou re-fundação) da nação.

Assim, se o povo é o tema primordial da história das idéias no Brasil, o temarelativo à formação do Estado chegou a nós com enorme atraso. Ao contrário do quemuitos pensam, o povo e a cultura brasileira, com a sua imensa diversidade,formaram-se aqui antes do Estado, que só começou a ser construído com a chegadade D. João VI e com a Independência, depois de três séculos de duração da colônia.Não se pretenda que pudesse substituir o Estado inexistente uma administraçãocolonial vinculada a uma metrópole débil e decadente. Além disso, umaadministração colonial submetida a um reino ainda feudal que deveria passar pelasubmissão à Coroa espanhola na União Ibérica e por provas constantes de fraquezano controle da sua colônia americana.

No século XVIII já se havia construído no Brasil uma colônia mais forte do que ametrópole. Mas só no século XIX começaria a ser construído no país um Estado comcapacidade de controle e domínio sobre o amplo território, desde logo ameaçado porrebeliões e separatismos. E, para construí-lo, as iniciativas que estabeleciam oEstado real combinaram-se com a construção de um povo imaginário, apoiado nosdevaneios da imaginação romântica e da idealização literária dos índios. Mas, alémda ilusão ideológica, esse povo inexistia para todos os efeitos práticos da política. Opovo imaginário, na realidade formado por índios enfurnados na mata oudesaparecidos no passado, era tão ausente da política quanto o povo real, formado nasua maioria por mestiços, em grande parte marginalizados, e negros, muitos dosquais eram escravos.

Ao mesmo tempo, criou-se, por meio de um programa intelectual inspirado em

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decisão de D. Pedro II, uma história do Brasil. Construiu-se, assim, uma visão dopovo e uma imagem da história, ambas "em sintonia com as instituições políticascriadas com o Segundo Reinado". Construiu-se, lado a lado, uma visão"harmonizadora e hierarquizante" do país.6 Os devaneios românticos e ahistoriografia historicista funcionaram para os príncipes de Orleans e Bragançacomo parte da ideologia do Estado. E a construção do Estado, aliás, por meios muitopráticos, não ocorreria sem o brutal realismo das guerras regionais, nem sem o sensoestratégico que orientou a geopolítica imperial, definindo as fronteiras do país,basicamente nos mesmos limites que conhecemos hoje. Do mesmo modo, deveriaser beneficiária de decisões da Coroa que conduziram a medidas de real mudança dasociedade: o fim do tráfico de escravos, a abolição da escravatura e a imigraçãoeuropéia.

O problema do reconhecimento das elites em face do povo real permaneceu naPrimeira República, embora tivessem mudado o regime e as circunstâncias políticas.Embora Joaquim Nabuco e Euclides da Cunha tivessem prenunciado mudanças dementalidade, estas só se tornarão efetivas no pensamento brasileiro a partir dosdecênios de 1920. Na Primeira República, embora já não houvesse escravos,supunha-se que o povo, submetido ao latifúndio, ao "grande domínio rural", nãoformava de fato uma sociedade. Nesse aspecto, a obra bifronte só chegou a termo naprimeira metade do século XX, com a urbanização e a industrialização, nos decêniosatribulados anos da "era Vargas".

Cultura política: ambigüidades e desigualdadesOs temas referentes ao povo e ao Estado formaram o pensamento brasileiro em umprocesso que atropela as cronologias. À parte o tema do Estado, que se esboça noséculo XVIII com Pombal e que se acrescenta no século XIX com a Independênciabrasileira, a única seqüência da qual se pode legitimamente falar quanto aos temasreferentes ao povo é a da dominância desse ou daquele tema nas diferentes épocas dahistória. Assim, o tema dos judeus foi dominante na passagem do século XV para oXVI. O dos índios, no século XVI até o XVII. O dos negros, no século XIX. O dospobres – ou o da desigualdade – dominante, a partir das primeiras décadas do séculoXX. Foram temas coetâneos nas origens do país e se mantiveram ao longo de umahistória de séculos na qual se acham as raízes de algumas ambigüidadesfundamentais do pensamento e da cultura política.

A experiência traumática dos primeiros séculos de como incorporar (ou excluir)os judeus legou-nos uma ambigüidade, até hoje persistente, em torno da iniciativaeconômica que visa ao lucro. A tradição medieval fechava aos judeus as atividades

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consideradas nobres, só lhes deixando abertas algumas das atividades que impediaaos cristãos. Além disso, tendo se tornado refratária à concepção individualistacriada pela Reforma, a cultura tradicional teve sempre enorme dificuldade emreconhecer a liberdade de iniciativa dos indivíduos pertencentes à plebe. A iniciativaindividual seria atributo dos nobres, regulada segundo normas estamentais, no maisdas vezes relativas ao poder e à guerra. Foi assim que o lucro e, por extensão, oêxito, estiveram sempre, na cultura brasileira, maculados de suspeição, tisnados deilegitimidade.

Vem dessa mesma tradição a desvalorização do trabalho. A observação deAntónio José Saraiva sobre as Índias vale, com certeza, para a colônia brasileira: "odesdém pelo trabalho manual (constituiu) o ideal até dos vilãos, com os quais, aliás,se confundiam pela miséria econômica os fidalgos pobres, reduzidos a ínfimospatrimônios ou a uma vida de expedientes".7 Essa antiga tradição medieval demenosprezo pelo trabalho continuou na escravização dos índios e dos negros."Trabalhar como um mouro", dizia-se na península; "trabalhar como um negro",dizia-se na colônia e no Império. Porque o trabalho físico permaneceu durante muitotempo uma qualidade ligada a raças consideradas "inferiores", sua valorização sócomeçará a encontrar algum lugar na cultura brasileira com as migrações européias,brancas, de italianos e alemães, em fins do século XIX.

À tradição do medievalismo ibérico juntaram-se as circunstâncias de uma colôniade três séculos e de um regime escravocrata que durou um século a mais, para fazerd a desigualdade algo de intrínseco à cultura brasileira. Apoiada, nos primeirostempos, nas interpretações então prevalecentes dos Evangelhos e das idéias daAntigüidade retomadas pelos humanistas, consolidou-se aqui uma concepção queentendia a desigualdade entre os homens como natural. Uma concepção que estavaem direto contraste com a frase com a qual Rousseau inicia o Contrato social: "Ohomem nasceu livre". Não se acreditava aqui que a desigualdade nascia dasociedade, mas que vinha do berço. Acreditou-se durante muito tempo que os índiose sobretudo os negros não nasceram livres, embora tivessem alma, como mandavareconhecer a boa religião.

Anterior ao igualitarismo que justificaria as revoluções inglesas, americana efrancesa, essa noção de desigualdade natural acabou por impor-se durante séculosaos usos e costumes do Brasil. Algo de semelhante ocorreu no México e no Peru,com suas grandes populações indígenas desde o começo submetidas ao domínio dosencomenderos. Foi assim, por formas e caminhos diversos, que a desigualdadeherdada da cultura medieval encontrou na experiência ibero-americana suas própriasrazões para se consolidar como algo natural.

Também era fundamental, contudo, às doutrinas da Igreja na época dos

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descobrimentos reconhecer que índios e negros, embora pagãos, tinham alma,devendo por isso ser conquistados para Deus. A conhecida diferença de tratamentonesses casos, lutando a Igreja contra a escravização dos índios ao mesmo tempo queaceitava a dos negros, não vinha das interpretações teológicas, mas dos usos e dastradições medievais que consideravam normal a escravidão dos negros, imposta pelacobiça e pela violência com que o mundo entrava na era moderna. Como assinalouum historiador, "os usos do reino, a tradição da Antigüidade consentiam naescravidão".8

No impasse entre as doutrinas da Igreja e as tradições da sociedade, os caminhostornaram-se sinuosos e propensos ao sofisma. Não faltou em Portugal dos séculosXIV e XV, como no Brasil dos séculos seguintes, quem dissesse que a captura dosnegros na África para transportá-los à Europa ou à América era um modo de lhessalvar as almas. Argumento semelhante ocorreu também, em alguns casos, diante doproblema da escravização do índio. Nóbrega e Anchieta, no Brasil, embora tambémcríticos dos povoadores, admitiam que a evangelização dos indígenas só seriapossível no quadro da expansão da colonização. E sabiam que naquele momento acolonização dependia do apresamento dos índios.

Igualdade, desigualdade e racismoNa sociologia, fala-se de "desigualdade" para mencionar uma relação de domínio (oude autoridade), relação de "superior" a "inferior", qualquer que seja o sentido socialque se lhe atribua. Não é apenas uma "diferença", mas uma diferença situada emalguma hierarquia, de riqueza, de prestigio ou de poder. Assim, em contrapartida, oque se entende por igualdade não significa necessariamente uniformidade; podecomportar diferenças. É o que ocorre nas sociedades pluralistas, modernas edemocráticas, nas quais se reconhecem diferenças entre indivíduos e cidadãos quesão, em princípio, iguais.

De acordo com as mesmas premissas, pode haver também uma igualdade depessoas socialmente desiguais – por exemplo, nas sociedades medievais, a igualdadedos cristãos. "A César o que é de César, a Deus o que é de Deus" – eis o princípioque, na decadência do Império Romano, permitiu reconhecer que os homens têmalma e que são iguais diante de Deus.

Nos Estados Unidos, desde a partida, assumiu-se como natural a igualdade dosperegrinos, puritanos e brancos, das colônias da Nova Inglaterra que ThomasJefferson (1743-1826) reafirmou, em 1776, na Declaração da Independência:"Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homenssão criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre

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estes estão a vida, a liberdade e a procura da felicidade". Se for assim, comoentender a escravidão? Como entender, depois da escravidão, a virulência doracismo norte-americano?

Gunnar Myrdal, em estudo clássico, The negro problem and modern democracy,diz que esse igualitarismo, limitado aos brancos, é uma premissa do racismo norte-americano. Ao contrário dos ibéricos, que, admitindo a desigualdade como natural,entendiam que os negros tinham alma embora continuassem escravos, os brancosanglo-americanos admitiam a escravidão porque, ao mesmo tempo, pensavam que onegro não pertencia à humanidade. Os negros podiam tornar-se escravos não porqueassim se salvariam as suas almas, como pretendia Vieira, mas, precisamente aocontrário, podiam tornar-se escravos porque não teriam almas e, portanto, nãopoderiam ser salvos. Podiam tornar-se escravos porque não eram homens. Daí que,diz Myrdal, o racismo norte-americano se apóia na premissa de uma igualdade dosbrancos, da qual se acham excluídos os negros. É diferente a lógica do racismobrasileiro.

As ambigüidades do racismo brasileiro apóiam-se na premissa de umadesigualdade que a nossa cultura admite como natural. Para uma tradição como abrasileira, todos os homens têm alma, pertencem à mesma humanidade criada porDeus e são reconhecidos como Seus filhos. Mas cumprem funções diferentes na"sociedade cristã". São iguais diante de Deus, mas desiguais no mundo dos homens,no qual Deus lhes conferiu funções desiguais, não apenas diferentes, em face dosbrancos.

Daí que a escravidão dos negros não apenas seria possível como tambémjustificável: de outro modo, continuariam como pagãos, nas selvas africanas,perdidos para Deus. Trazê-los para a América, mesmo à custa de fazê-los escravos,seria um modo de incorporá-los ao povo de Deus. Uma diferença de concepção querepercute sobre a natureza do racismo: porque são também filhos de Deus nãodevem os escravos ser tratados com brutalidade, um ponto de honra do combate dosjesuítas. Embora os negros possam ser vistos como "coisa" no campo do Direito, nãodevem ser tratados como "coisa" no campo das relações humanas.

Estado e desigualdadeNuma sociedade que assim interioriza a desigualdade, o reconhecimento daigualdade não poderia vir da própria sociedade. Teria que vir de fora – do Estado, dareligião ou da influência de outros países. Num primeiro momento, oreconhecimento da igualdade dos índios (no sentido de que não poderiam serescravizados) veio da Igreja e da evangelização. A seguir, nos momentos mais

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decisivos da história de Portugal e do Brasil, tais influências de sentido igualitáriovieram do Estado. Não por acaso, um Estado em crescimento, como ocorreu comPombal e, tempos depois, no Brasil, com D. Pedro II, e, ainda mais tarde, comGetúlio Vargas. Sempre em momentos em que o Estado que se destacou daespontaneidade da vida social e a ela se opôs, mesmo que por um curto período.

Pombal incluiu a liberdade dos índios na primeira grande tentativa de reformaintelectual e cultural ocorrida em Portugal, com conseqüências sobre a unidadeterritorial do Brasil e sua independência. No estilo do despotismo ilustrado, impôs aliberdade dos índios aos povoadores que os escravizavam, e aos jesuítas, que osdefendiam, mas que ofereciam uma face de insubmissão ao Estado. O Brasil teveque esperar mais de um século para que outras decisões começassem a criar,lentamente, as premissas de uma sociedade de trabalho livre. Nos dois casos, ainiciativa coube ao Estado, que, embora influenciado pela mentalidade culturaldominante, conseguiu agir como se estivesse fora da sociedade, introduzindo novosvetores que, no longo prazo, haveriam de modificá-la.

Idéias e circunstânciasA história das idéias supõe a iniciativa, não a onipotência, das idéias. Nem poderiasupor uma tal onipotência uma história das idéias do Brasil, um país que herdou,junto com a valorização de crenças tradicionais, também a valorização daexperiência. E, por conseqüência, uma propensão ao empirismo e ao pragmatismo,que de algum modo se viu reforçada pela difusão do empirismo lockeano realizadano período pombalino.9 Em todo caso, essas atitudes ligadas à valorização daexperiência revelaram-se desde a sobriedade descritiva da Carta de Pero Vaz deCaminha e se estenderam nas várias tentativas pelas quais foi possível implantar osistema de capitanias. Junto com as crenças religiosas, os descobridores econquistadores estavam preparados para as surpresas que lhes reservavam as novasrealidades da América.

Assim como as palavras de Deus, colhidas nas escrituras sagradas, combinaram-secom as escritas profanas do Renascimento, também as idéias que orientaram aconstrução do país não tinham como evitar as circunstâncias nas quais deveriamatuar. Essas idéias formaram a cultura brasileira no mesmo movimento em que sedeixaram surpreender pelas peculiaridades e imprevistos da sociedade em formação.Em alguns textos de Anchieta e Nóbrega pode-se perceber a surpresa dos jesuítasdiante dos índios que a cultura medieval desconhecia. Mesmo conhecendo ospovoadores, os jesuítas não deixaram de surpreender-se diante de comportamentosnovos, às vezes esdrúxulos, impostos por circunstâncias novas para todos. É nesse

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movimento – que se multiplica, se amplia e se aprofunda ao longo da história – queo olhar de fora, que está na origem do novo país, vai se tornando parte da suarealidade.

O que se diz das idéias e dos homens se diz da própria sociedade. As idéias quevêm do olhar de fora têm limites, que aparecem na medida mesma em que as idéiasse realizam – aliás, quase sempre de um modo surpreendente. Essa dialética entreprojetos e circunstâncias não é exclusiva do Brasil. O peruano Garcilaso de La Vega(1539-1616) descobriu, num certo momento, que não era espanhol nem índio, masmestiço. Os portugueses João Ramalho (1493?- 1580) e Diogo Álvares, O Caramuru(1475?-1557), que foram deixados nas praias da recém-descoberta Terra de SantaCruz e aqui formaram família, tiveram, por certo, seus momentos de surpresa diantedos filhos mestiços, que iniciavam linhagens brasileiras.

Nem foram essas surpresas e descobertas exclusivas das relações entre povosdiversos que miscigenavam no Novo Mundo. Diriam respeito também a projetosrelativos à organização econômica da sociedade colonial. Deve ter havido ummomento em que, diante do êxito da economia açucareira de Pernambuco nosséculos XVI e XVII, o antigo modelo colonial da Madeira tornou-se merareminiscência. No Brasil, como em outros países ibero-americanos, surgiram bemcedo esses encontros (e desencontros) entre idéias e circunstâncias, primeiros sinaisde que uma nova nação começava a nascer.

Esse movimento de idéias que, como os conquistadores, vinham de fora, e seencontram com circunstâncias por estes desconhecidas, marcou desde as origens acultura brasileira. Não é um traço exclusivo do Brasil, nem apenas dos países ibero-americanos, estendendo-se também às colônias inglesas. De um modo geral, asAméricas nasceram de um olhar que se equivocou muitas vezes diante de realidadesque os europeus desconheciam. Em seus muitos equívocos – a começar porColombo, que imaginava haver chegado às Índias –, sobraram a esse olhar de foramotivos de deslumbramento com a natureza e com os índios, tanto quanto excessosde violência.

Como as colônias da Inglaterra, as da Ibéria têm em comum não apenas umaorigem religiosa, mas também o fato de ser a novidade da história do mundo que aspolêmicas religiosas ajudaram a acentuar por meio do tema fundamental daconquista da humanidade para Deus. Foi desde o início visível para osconquistadores que os "países novos" tinham de peculiar o ter nascido de umaintenção. Não estão aí "desde sempre", como se pretendem alguns países do VelhoMundo. Daí a relevância particular de uma história das idéias nesses países quenasceram de uma intenção, ou de intenções.

Se a história é sempre uma construção, nesses países novos o é mais do que em

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qualquer parte. Eles devem sua existência a um projeto – algum projeto – que tantopode vir do Estado como da Igreja, no caso do Brasil especialmente da Companhiade Jesus. Ou que, no caso dos Estados Unidos, pode vir de movimentos religiososdissidentes que buscavam novos territórios para pregar sua fé. Tais projetos servempara testemunhar que esses países nasceram com a história moderna, da qual sãoparte essencial. O que significa que sua construção, por caminhos "certos" ou"tortos", e quaisquer sejam as circunstâncias a enfrentar no presente ou no futuro,envolve um compromisso permanente com a modernidade.

1. FAORO, Raymundo. Existe um pensamento político brasileiro? São Paulo: Ática, 1994. p. 7.2. Os artigos do Federalista foram publicados pela primeira vez em 1788, "com o objetivo de contribuir para a

ratificação da Constituição dos Estados". Há vasta literatura sobre esses textos, mas uma boa introduçãopode ser encontrada em: LIMONGI, Fernando Papaterra. O Federalista: remédios republicanos para malesrepublicanos. In: WEFFORT, F. C. (Org.). Os clássicos da política, cit., v. 1, p. 245-287.

3. SANTOS, op. cit.4. ALONSO, op. cit., p. 54, 56 e 62.5. AZEVEDO, O Marquês de Pombal e a sua época, cit., p. 129.6. ALONSO, op. cit., p. 58.7. SARAIVA, História da cultura em Portugal, cit., p. 11: "O tipo de vida fidalgo e o desdém pelo trabalho

manual constituem o ideal até dos vilãos, com os quais aliás se confundiam pela miséria econômica osfidalgos pobres, reduzidos a ínfimos patrimônios ou a uma vida de expedientes. As atividades capitalistas eartesanais tendem a ser monopolizadas por grupos relativamente fechados, como os 'cristãos-novos' (...) ouestrangeiros, sobretudo ingleses, franceses e holandeses, que legal ou ilegalmente fazem de Lisboa ou deSevilha boa parte do comércio externo peninsular, e que levam mesmo até aos mercados de origem(América, Índia, Oceania) os seus barcos de contrabando".

8. AZEVEDO, O Marquês de Pombal e a sua época, cit., p. 129.9. Do século XIII ao XVI, diz Cruz Costa, o pensamento português sempre se ligou à ação, gerando uma

cultura de "valorização pragmática da existência". Uma cultura dotada, segundo João de Barros, de um"profundo sentido realista da existência". Ver: C OSTA, Contribuição à história das idéias no Brasil, cit., p.30 e seguintes; ver também: PAIM (Org.), Pombal e a cultura brasileira, cit.

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ROTEIRO DE IMAGENS

CAPÍTULO 1[>>1]Desembarque de Cabral, 1922. Pintura de Oscar Pereira da Silva (1867-1939).Museu Nacional do Rio de Janeiro, RJ

[>>2]Mapa da América, 1606. Gravura de Jodocus Hondius (1563-1612). Coleção particular.© Bridgeman Art Library

CAPÍTULO 2[>>3]Grande procissão para o auto-da-fé dos sentenciados pela Inquisição de Lisboa, século XVIII.© TopFoto/HIP

[>>4]Capa da publicação Relação do naufrágio da nau Conceição, de Manoel Rangel.

[>>5]Infante Dom Henrique, o Navegador.© Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa

CAPÍTULO 3[>>6]Dança tapuia. Óleo sobre madeira de Albert Eckhout (1610-1665).BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. O Brasil dos viajantes. São Paulo: Objetiva-Metalivros, 1999. v. 1, p. 95.© Museu Nacional da Dinamarca

[>>7]Mapa do Brasil com a divisão em capitanias hereditárias, c. 1586. Atribuído a Luis Teixeira.© Biblioteca da Ajuda, Lisboa

CAPÍTULO 4[>>8]Fundação de São Paulo (1909). Pintura de Oscar Pereira da Silva (1867-1939).© Museu Paulista, São Paulo, SP

CAPÍTULO 5[>>9]Padre Antonio Vieira. Óleo sobre tela de José Rodrigues Nunes (1800-1881).

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© Museu de Arte da Bahia, Salvador

[>>10]Paisagem com plantação (O engenho), 1668. Pintura de Frans Post (1612-1680).© HERKENHOFF, Paulo. (Org.) O Brasil dos holandeses: 1630-1654. Rio de Janeiro: Sextante, 1999. p. 235.

[>>11]Caminhos das bandeiras.© Maplink

CAPÍTULO 6[>>12]Marquês de Pombal. Óleo sobre tela de L. M. Van Loo (1707-1771).© Câmara Municipal de Oeiras, Portugal

[>>13]Vista de Vila Rica, século XIX. Aquarela sobre papel de Henry Chamberlain.© Museu da Inconfidência, MG

CAPÍTULO 7[>>14]D. Pedro I, imperador do Brasil, 1826. Óleo sobre tela de Antonio Joaquim Franco Velasco (1780-1833).© Museu de Arte da Bahia

[>>15]Retrato de José Bonifácio, 1914. Óleo sobre tela de Décio Rodrigues Vilares (1851-1931).© Museu Histórico Nacional, RJ

[>>16]Vista do chafariz da Carioca, 1833. Pintura de William Smyth.© Coleção particular, Rio de Janeiro, RJ

CAPÍTULO 8[>>17]Aclamação de D. Pedro II, segundo imperador do Brasil. Pintura de Jean Baptiste Debret.In: Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. Trad. e notas Sérgio Milliet. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/

Edusp, 1989. v. 3.

[>>18]Retrato de José de Alencar. Litografia de A. Sisson, segundo foto de Carneiro Smith© Fundação Biblioteca Nacional/Jamie Acioli (repr.)

CAPÍTULO 9[>>19]Joaquim Nabuco. Retrato de J. B. Perillo.© Museu Histórico Nacional, RJ

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[>>20]Ama escrava e menino Augusto Gomes Leal, c. 1860.© Acervo da Fundação Joaquim Nabuco, PE

CAPÍTULO 10[>>21]Sobreviventes da revolução de Canudos. Foto de Flávio de Barros© Museu da República, RJ

[>>22]Euclides da Cunha, imagem sem data© Biblioteca Oliveira Lima, Manaus, AM

CAPÍTULO 11[>>23]Oliveira Viana com o fardão ABL.© Agência Estado

[>>24]Getúlio Vargas.© Álbum de Família

[>>25]Colheita do café no início do século XX. Foto de Guilherme Gaensly.Reprodução de A história de uma coleção. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional. p. 243.

[>>26]Bairro do Brás, capital de São Paulo, em 1913. Foto feita do Mosteiro de São Bento. Ao centro, a várzea do

Carmo, ruas 25 de Março, Barão de Duprat e Joly; à direita, avenida Rangel Pestana, ponte do Carmo eGasômetro.

© Acervo Eletropaulo, São Paulo, SP

CAPÍTULO 12[>>27]Gilberto Freyre em foto de 1945© Alexandre Belém (repr.)/Ag. Lumiar/Fundação Gilberto Freyre

CAPÍTULO 13[>>28]Helio Jaguaribe, em foto de 1979© Walter Firmo/Editora Abril

[>>29]O presidente Juscelino Kubitschek inaugura oficialmente a Volkswagen do Brasil.© Arquivo Nacional

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Table of ContentsCapa 2Folha de Rosto 4Créditos 5Sumário 8Prefácio 10Parte I - As duas faces do Ocidente 17

Capítulo 1 - As escritas de Deus e as profanas 19Capítulo 2 - Tempos dos descobrimentos 34Capítulo 3 - Conquistadores e índios 60

Parte II - Brasil Colônia 84Capítulo 4 - Século XVI - Jesuítas e colonos: tempos de Manuel da Nóbrega 86Capítulo 5 - Século XVII - Antônio Vieira: a palavra e o fogo 101Capítulo 6 - Século XVIII - Verney e Pombal: Ilustração e despotismo 128

Parte III - Brasil Império 152Capítulo 7 - Primeiro Reinado - José Bonifácio e Bernardo de Vasconcelos:liberalismo e conservadorismo 154

Capítulo 8 - Segundo Reinado - José de Alencar: indianismo econservadorismo 176

Capítulo 9 - Segundo Reinado - Joaquim Nabuco: a escravidão e a "obra daescravidão" 190

Parte IV - Primeira República 206Capítulo 10 - Euclides da Cunha: A República e o sertão 208Capítulo 11 - Oliveira Viana: Transição da Primeira à Segunda República 233

Parte V - Segunda República 254Capítulo 12 - Gilberto Freyre: o povo mestiço 256Capítulo 13 - Desenvolvimento e democracia: Helio Jaguaribe e osprimeiros anos do ISEB 275

Posfácio - História das idéias e do pensamento político 297Bibliografia 310Roteiro de imagens 316

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