Vol_v_N1_103-130

Embed Size (px)

Citation preview

  • Arte e Antropologia no Sculo XX

    103Etnogrfica, Vol. V (1), 2001, pp. 103-129

    ARTE E ANTROPOLOGIANO SCULO XX:

    MODOS DE RELAO 1

    Se as relaes entre antropologia e arte ocidentalforam particularmente visveis com osprimitivismos modernistas, nos ltimos anos dosculo XX a situao alterou-se profundamente.Neste artigo, mostrando como o estudoantropolgico das prticas artsticas indissocivel das concepes ocidentais de arte,procura-se dar conta dessas alteraes e do modocomo a relao de colaborao e reciprocidadeentre trabalho artstico e trabalho antropolgicoem torno da figura do primitivo substitudapor uma situao bem mais complexa epotencialmente conflituosa. Alm de rever aliteratura mais relevante sobre o assunto,apresentam-se ainda trabalhos artsticos queilustram a nova situao.Jos Antnio B. Fernandes Dias

    What is art? is a question as persistent among contemporary artists as Whatis anthropology? is among contemporary anthropologists. On the other hand,it cannot be said that What is anthropology? is much of an issue amongartists, although there are some interesting ways that anthropology is usedby artists or can be said to have involved them, and in the same way it cantbe said that the question What is art? is of primary importance to anthropolo-gists, although many of them seem to have no hesitation in naming andassigning some cultural manifestations to this category. Im not convincedthat anthropologists have much interest in the art of their own culture, andI think some of them would probably be at a loss to describe developmentssubsequent to, say, Cubism... In the same way, artists have been highly selec-tive in their use of anthropology and biased in their definitions of what it is.

    Anthropological studies of ethnographic art sometimes contain cer-tain assumptions about the definition of art which are curiously out of stepwith arguments about such a definition among artists. For contemporary art-ists have extended its definition to include a range of activities rather then aseries of objects such as paintings or sculptures. Performances of variouskinds, and analytical or theoretical work, extend the notion of art beyond thesense of visual representation into the exploration of ways of seeing, feeling,perceiving, knowing, and ultimately, being, in the world. The investigatoryaspects of art practice are today seen as more fundamental then their formalmanifestation, so that an understanding of art derived from an iconographicor stylistic analysis still leaves aside the major issue of whether, in fact, thenotion of art is necessarily associated with the notion of object or product.

    Curiously, the practices of artists within our own culture are rarely in-vestigated by anthropologists, whose opinions may perpetuate certain as-sumptions derived from art-historical descriptions of the art of previous eras,

    1 Este trabalho retoma duas conferncias realizadas em 2000 na Culturgest (CGD) e no Centro de Arte Moderna daFundao Calouste Gulbenkian.

  • Jos Antnio B. Fernandes Dias

    104

    which are then projected on to the situations of other societies. A rigorousself--critique and debate about the function of art, the role of the artist, the roleof economic and political institutions in promoting certain definitions of artand in using art for ideological purposes (while alienating artist and public),the relationship between artists and the rest of society all this is very mucha part of art practice today, and what art is or ought to be is examined againsta comparative background of historical and ethnographical data. A fortnightago at an artists conference I heard various speakers put forward the viewthat art as it exists in our society does not exist universally or historically. Cre-ativity is not necessarily confined to a few individuals, nor is art itselfnecessarily an elitist or specialist product (Susan Hiller, em Einzig 1996: 20).

    A longa citao foi retirada do texto de uma conferncia que Susan Hillerfez em 1977 no ento Institute for Social Anthropology, da Universidade deOxford, intitulada Art and Anthropology/Anthropology and Art. Umaspginas atrs, a autora confessara algumas confuses que a tinhamapoquentado durante a sua formao em antropologia, o seu trabalho decampo na Amrica Central e a preparao do seu doutoramento na TulaneUniversity em Nova Orlees, e que acabaram por lev-la a abandonar aantropologia como actividade profissional, para se tornar uma importanteartista plstica, radicada em Inglaterra. A autora aponta para uma situaode permeabilidade e instabilidade de fronteiras entre as disciplinas, antro-pologia e arte no caso, que dez anos mais tarde comearia a ser consideradana prpria teoria antropolgica.2

    A partir da constatao de que antroplogos e artistas no prestamateno suficiente s actividades respectivas de uns e de outros, apesar derelaes de intimidade intensa que perpassam as suas histrias, a autoralevanta algumas questes hoje particularmente relevantes: o desinteressemaioritrio dos antroplogos pelas prticas artsticas contemporneas; comoo que nelas se passa expande e altera a noo tradicional de arte; quais asconsequncias do desconhecimento destas mudanas no estudo antropolgicodas artes etnogrficas; como as actividades de investigao na arte contem-pornea (consideradas mais importantes do que a sua manifestao formal)a aproximam das interrogaes que a antropologia da arte poder pr arteocidental a funo da arte, o papel do artista e as suas relaes com asociedade, as relaes da arte com o econmico e o poltico e at de etno-grafias das nossas sociedades contemporneas reconhecendo e registandomodos de estar no mundo, de ver, de sentir, de perceber, de conhecer.

    2 Clifford e Marcus 1986, Marcus e Fischer 1986, Clifford 1988, tiveram um papel seminal neste debate, que seprolongou, entre outros, em Marcus e Myers 1995, e Clifford 1997, com contrapartidas fortes, vindas da teoria da arte,em Foster 1999 e Coles 2000.

  • Arte e Antropologia no Sculo XX

    105

    Alguns trabalhos recentes j abordaram essa tendncia antropolgicapara evitar confrontar-se com a questo da definio de arte, mesmo que osantroplogos utilizem a categoria e a apliquem a algumas prticas culturais.3

    O que se prope aqui explorar o outro lado da questo de Hiller: o dasrelaes entre trabalho antropolgico e trabalho artstico, com nfase nosculo XX. Parte-se tambm do desconhecimento antropolgico da artecontempornea internacional, e das suas implicaes, quer no estudo dasprticas expressivas de povos do quarto mundo a que a antropologia tradi-cional e convencionalmente se dedica4 quer no estudo das prticas culturais,produtoras de valores nas nossas sociedades, em processos que so agoradefinidos numa escala global sem precedentes. Procura-se mostrar como oestudo antropolgico das prticas artsticas e as concepes ocidentais de arteso indissociveis, e os diferentes modos do seu relacionamento ao longo dotempo.

    Antropologia e arte ocidental

    O silncio antropolgico sobre a arte ocidental tem vindo a ser consideradopor alguns autores nos ltimos anos como um aspecto paradoxal da disci-plina. Porque arte uma palavra e uma categoria europeia, que est geral-mente ausente da maioria das lnguas e das culturas no-ocidentais, sexistindo no discurso antropolgico pela extenso deste seu uso no ocidentea outras culturas. Alfred Gell interroga-se ironicamente se o que tem caracte-rizado a antropologia da arte no ser mais um objecto de estudo particulare restrito (a arte das periferias coloniais e ps-coloniais, juntamente com aarte primitiva coleccionada nos museus) do que uma teoria antropolgicavlida para as manifestaes artsticas em qualquer contexto sociocultural; oestudo de uma arte antropolgica mais do que o estudo antropolgico daarte.5 Com os perigos de etnocentrismo, evidentes, e do que podemos chamarocidentalismo, menos evidente mas no menos presente: o artifcio retricoque consiste em fixar um sentido estereotipado, normalmente anacrnico, daarte moderna e contempornea, como arte autnoma, alienada da vida,arte pela arte, que funciona como uma espcie de espantalho, um perso-nagem imaginado, construdo como um contraponto da integrao culturaldas artes no ocidentais. Este artifcio corresponde a uma figura inversa e

    3 Fernandes Dias 1990, 2000; Morphy 1994.4 No sentido de minorias nacionais que vivem em pases que dependem de um sistema mundial, eincluindo os antepassados dos povos que actualmente vivem esta situao. Cf. Graburn 1976, Whitten eWhitten 1993.5 Gell 1998. Cf. tambm Fernandes Dias 1990, 1992, 2000; Gell 1996; MacGaffey 1998; Marcus e Myers 1995;Schneider 1993, 1996.

  • Jos Antnio B. Fernandes Dias

    106

    simtrica do primitivo e do oriental, definidos por contraste com oocidental. E uma simplificao de uma situao que muito complexa.

    Efectivamente, na renascena europeia iniciou-se a constituio de umdomnio discursivo e prtico especfico da arte, que se institucionalizarplenamente no sculo XVIII iluminista distinguindo as belas artes como umfim em si mesmas. Anteriormente, a classificao de arte aplicava-se a todasas actividades manuais realizadas segundo regras, com mestria da arte defazer imagens arte do tecelo ou do apicultor. Mas arte tornou-se nosculo XX uma categoria problemtica, a arte tornou-se mltipla, e h muitasverses do que a arte . Omiti-lo ignorar precisamente um dos aspectosmais interessantes do mundo da arte moderna e contempornea: a suadimenso crtica e utpica, que um dos factores que produzem essacomplexidade, essa instabilidade. Como se o facto de uma prtica artstica serintegrada noutros domnios mais amplos da vida a tornasse cultural esocialmente relevante, e uma outra que se dirige criticamente vida quoti-diana no merecesse esse interesse. Susan Hiller, na citao acima, j apontavaa autocrtica vigorosa e o debate das questes da insero da arte na vidasocial como dimenses intrnsecas prtica artstica de hoje. E dois autoresinsuspeitos, antroplogos que permanecem antroplogos, so categricos, evo mais longe:

    The central issue for modern art has been the relationship or boundary be-tween art and not art. Since Kants philosophical demarcation of an au-tonomous aesthetic domain of human judgement that was separate from boththe means-end calculations of utilitarian practical reason and from the im-peratives of moral judgement, the culturally constructed boundaries betweenaesthetics and the rest of culture have been neither stable nor neutral (Marcuse Myers 1995: 6).

    No por acaso que os primeiros passos no sentido de reconhecer valorartstico a produes no ocidentais se deram a propsito de objectos que,pela sua aparncia, mais se aproximavam de obras de arte ocidentais; osexemplos inaugurais dos bronzes realistas confiscados no Benim em 1897e trazidos para a Europa, ou das estatuetas, tambm realistas, de reis Kubado Zaire, apresentadas na mesma altura na Exposio Universal de Bruxelas,so significativos. Por outro lado, ao mesmo tempo que se foram vislum-brando diferentes tradies artsticas no interior do que inicialmente sechamara genericamente arte negra (uma arte africana, uma arte da Oceania,uma arte ndia, primeiro, diferenciadas internamente depois, entre a arte dosfang e dos dogon, ou dos asmat e dos sulka, ou dos kadiweu e dos tikuna,por exemplo), ao mesmo tempo que se formou a ideia da diversidade artsticano mundo no ocidental, como uma espcie de enciclopdia moderna doextico, assistimos a uma tremenda simplificao e estereotipizao da artecontempornea euro-americana e internacional nos discursos antropolgicos.

  • Arte e Antropologia no Sculo XX

    107

    que o modo como consideramos os artefactos no ocidentais no independente das concepes ocidentais de arte. Os modos europeus de ver,de avaliar e de classificar os objectos exticos, e as transformaes por quepassaram ao longo dos ltimos cinco sculos que marcam o tempo daglobalizao, mas tambm da construo de um domnio artstico especficoe relativamente autnomo, espelham as nossas noes de arte e as trans-formaes por que estas passam, tambm, no mesmo perodo.

    Curiosidades

    Os primeiros objectos a serem trazidos das terras e dos povos que os euro-peus iam descobrindo e conquistando, foram-no na categoria de fragmentos,partes de uma realidade distante e estranha; eles permitiam aos que nopodiam viajar um contacto tangvel com essas realidades, na Europa. Foramdesignados como mirabilia, maravilhas, ou como curiosidades, e inte-grados em coleces dispostas nas Wunderkammer e nos gabinetes decuriosidades, que proliferaram em todo o continente desde o sculo XVI aoXVIII. So aambarcamentos de coisas raras, excepcionais, extraordinrias,exticas e monstruosas, na descrio algo sarcstica de Pomian, onde semisturam artefactos de todos os tipos e fragmentos de artefactos, daantiguidade e dos novos mundos, com espcimes naturais (plantas, animais,minerais) ou fragmentos deles, sem nenhuma distino entre ambos. K.Pomian cita, do catlogo que Andrea Vendramin (1554-1629) fez para a suacoleco,

    ... des tableaux; des sculptures; des divinits, oracles et idoles des Anciens;des habits de diverses nations; des instruments anciens de sacrifice, des urnes,des lampes; des mdailles des anciens Romains et des Vnitiens illustres; desanneaux et des sceaux des gyptiens, orns de scarabes, demblmes etdautres signes taills dans des gemmes et des pierres; des choses naturellespures, mixtes et composites; des buccins, des coquilles et des conques dediverses parties du monde; des minraux; des choses curieuses venues desIndes et dautres rgions du monde tant orientales quoccidentales; des livresillustrs de chronologie, des estampes, des animaux, des poissons et desoiseaux, des plantes et des fleurs (Pomian 1987: 86).

    Com o objectivo de demonstrar o valor pessoal e legitimar a posio socialdo seu proprietrio, como o caso dos gabinetes reais e senhoriais, oureunidas com finalidade de reflexo e de ensino, como acontece com oschamados gabinetes enciclopdicos, a ideia que preside coleco, selecoe organizao das curiosidades, seculariza, e s vezes racionaliza, a queapoiara a criao dos tesouros das igrejas medievais. Cada objecto

  • Jos Antnio B. Fernandes Dias

    108

    espantoso, como um prottipo de mundos exticos, questionando as divisesdo mundo conhecido. E a coleco, no seu conjunto, um reflexo, ummicrocosmo da maravilha do mundo, da ordem transcendental originada deDeus ou da natureza.

    De sublinhar que, apesar da atraco que hoje se pode manifestar, nomundo da arte, pelo gabinete de curiosidades, e da ressonncia que podehaver entre o confronto com o estranho dos gabinetes e a experincia dodesconhecido, do inquietante, que proporciona a arte contempornea, no eracomo obras de arte que os artefactos exticos a eram integrados. Para aEuropa, entre os sculos XVI e XVIII, eles tinham o estatuto de curio-sidades.

    Objecto etnogrfico/objecto artstico

    Se, lentamente, a lgica da coleco vai desenvolver um princpio mnimo declassificao, distinguindo entre artificialia e naturalia, s o iluminismo,com a sua preocupao sistemtica de elucidar uma ordem natural para ascoisas, vai permitir que se passe de um registo contemplativo para um registode observao. E se os objectos dos gabinetes de curiosidades iro forneceros acervos dos primeiros museus modernos, eles sero a usados com objecti-vos diferentes, ganhando um novo estatuto de objectos de maravilhamentoe de curiosidade passam a objectos de conhecimento. Separam-se as colec-es, entre museus de arte e antiguidades, e museus de histria natural. Osartefactos no ocidentais so integrados nestes ltimos; alm dos trs reinosda natureza, a histria natural estuda e classifica tambm a espcie humana,nas suas caractersticas fsicas e nas suas produes industriais, indicadorasdaquelas.

    neste quadro que surgiro as especializaes disciplinares e institu-cionais do sculo XIX, como a etnografia e o museu etnogrfico, inseparveisnesta fase emergente da antropologia (cf. Dias 1991). no museu etnogrfico,em torno da classificao dos objectos e de acordo com os princpioselaborados pelas cincias naturais, que ela constri as suas primeiras teoriasacerca da origem e da evoluo da humanidade. A nova cincia autonomiza--se e diferencia-se, em torno dos seus objectos de estudo. Nasce com ela anoo de objecto etnogrfico, que se define por oposio aos outros objec-tos: aos naturais, por ser produto humano; aos arqueolgicos, por ser deprimitivos contemporneos e no de povos desaparecidos; s obras de arte,por, ao contrrio delas, ser um objecto funcional, ter uma utilidade prtica esocial. E esta ltima oposio, aos objectos artsticos, ser a que primeiro vaimarcar a especificidade do objecto etnogrfico e da antropologia. Ao contrriodas obras de arte, que valem pela sua qualidade intrnseca, os objectos

  • Arte e Antropologia no Sculo XX

    109

    etnogrficos servem para o conhecimento; analisados e classificados segundoo seu grau de sofisticao tcnica e pelas necessidades a que do resposta,eles so vistos como documentos do desenvolvimento da humanidade dosseus estdios mais primitivos aos mais civilizados, a Europa do sculo XIX.O que resulta, como sabemos, de um rebatimento do tempo sobre o espao,que torna o mais distante no espao, e tambm mais distante do ponto devista cultural, o mais primitivo no tempo (cf. Fabian 1983). Ora, a actividadeartstica s se desenvolve nos estdios mais civilizados da histria humana.Os artefactos primitivos no so objectos artsticos porque respondem aoutras necessidades; mesmo os objectos representativos so classificados narubrica das religies como dolos, monstruosos, informados por princpiosa que so alheias as ideias de verdadeiro, de bom, de belo.

    O embrio das belas artes

    Apesar da antinomia fundadora, a oposio objecto etnogrfico/objectoartstico foi problemtica desde o incio. Alargando ao artstico as preo-cupaes evolucionistas com a origem e as leis do desenvolvimento da huma-nidade, alguns consideram que nas expresses materiais dos primitivos esto embrio, a infncia das belas artes. E.-T. Hamy, primeiro director do MusedEthnographie du Trocadero, em Paris, escreve:

    Nous venons de constater ensemble que tout homme, si sauvage quil puissetre, possde un certain degr, une sorte dinstinct artistique, qui lui permetde reproduire sa faon des images plus ou moins grossires des choses dela nature, et sa propre figure en particulier, rduite chez les primitifs aux con-tours les plus lmentaires, mais pouvant revtir dans des groupes moinsattards, certains caractres vritablement ethniques (E.-T. Hamy, citado porDias 1991: 100).

    Alguns autores vo dedicar-se ao estudo sistemtico dessas formas primitivasde artstico antroplogos e historiadores;6 outros vo apreci-las nas suasqualidades os descontentes do academismo clssico, artistas e outros,romnticos, simbolistas. Para uns e outros, os artefactos primitivos no soobras de arte, nem do domnio das belas artes; mas, para alm das funesutilitrias e sociais que tm, muitos objectos podem apresentar um esboo ouum embrio de preocupaes artsticas de vontade de expresso, de sentidodas formas, de vontade de imitao. Podem entrar na classe das artesdecorativas. E para uns como para outros, os atributos que caracterizam essasformas para- e pr-artsticas so definidos em funo do que considerado

    6 As fronteiras entre as duas disciplinas so nesta altura muito fluidas; esto, de facto, em formao.

  • Jos Antnio B. Fernandes Dias

    110

    pela Europa a norma esttica a tradio clssica e do modo como sedistanciam e diferenciam dela. primitivo o que se ope ao clssico, o quelhe perifrico, o que no clssico. Gottfried Semper chamou a essesatributos Urformen, formas primordiais de expresso. O ornamental poroposio com a figura, o hieroglfico contra a narratividade visual, ogrotesco contra a imagem ideal (cf. Connelly 1995).

    Se uns autores as tomam como objectos de estudo objectivo, os outrosavaliam-nas como artisticamente positivas, e vo mesmo us-las nas suastentativas de escapar aos cnones clssicos. o primitivismo uma nos-talgia europeia por um estado natural, simples, puro, idlico ou escuro, umacrena dos civilizados de que uma vida mais simples e menos sofisticada uma vida mais desejvel, e muitas vezes a utilizao de elementos excn-tricos como um meio de contestar ou subverter a cultura central e dominante.

    Arte primitiva e primitivismo modernista

    Se s podemos falar at aqui de primitivo em arte, que no pe radical-mente em causa a dicotomia objecto etnogrfico/objecto artstico sobre quese fundara a antropologia emergente, o incio do sculo XX assistir suasubverso radical. Os objectos primitivos, alguns objectos primitivos, passama ser vistos como objectos artsticos. A noo de arte primitiva adquire aquio seu sentido moderno. E, tambm aqui, surgem os primeiros trabalhos deantropologia da arte.

    A figura do primitivo foi tambm uma figura central na revoluomodernista e na arte moderna. Ao rebatimento do tempo sobre o espaoacrescenta-se um rebatimento do desenvolvimento do indivduo (ontognese)sobre o da humanidade (filognese). Depois de ter sido projectado peloeuropeu branco como um primeiro estdio da cultura humana, o outro assim reabsorvido, pelo mesmo europeu branco, como um primeiro estdio,pr-cultural, da histria individual. o que se chamou a fantasia primi-tivista ou o mito do primitivismo (cf. respectivamente, Foster 1999 e Hiller1991): a associao do outro com os processos psquicos primrios, o incons-ciente, que existem mas esto bloqueados ou reprimidos no homem branco;e a considerao de que os seus potenciais de transgresso se equivalem. Ser,de resto, em torno dessa conexo ntima entre o desenvolvimento da artemoderna e a figura do primitivo que a relao entre arte e antropologia temaparecido mais visivelmente.

    Quer a arte moderna quer a antropologia partilham uma mesmatradio de crtica face modernidade a que ambas pertencem (cf. Marcuse Fischer 1986 e Miller 1991). A antropologia da arte, maioritariamente,relativizou as categorias artsticas ocidentais tradicionais quer mostrando

  • Arte e Antropologia no Sculo XX

    111

    a dificuldade de traduzir os conceitos ocidentais para outras culturas, querapropriando-se dessas categorias para valorizar actividades e culturas nessestermos (representando uma cultura no ocidental como civilizada, igual quetem arte e esttica). E as vanguardas modernistas rejeitaram as conven-es artsticas clssicas, baseadas na representao realista, como limitadorasda percepo e da imaginao; mas tambm procurando alternativas sepa-rao entre arte e vida quotidiana, num ataque condio fragmentada dassociedades industriais. Pois bem, o primitivo, como figura de uma alteri-dade radical, como evidncia de formas de humanidade inteiras, coesas ecoerentes, fornece modos novos e diferentes de ver, e constitui por isso umaimagem a partir da qual se podem desenvolver projectos de crtica cultural.

    Recorde-se o que diz Picasso a propsito da sua visita s reservas doMuseu de Etnografia do Trocadero em 1907, no perodo em que trabalha noDemoiselles de Avignon, e das relaes das mscaras e estatuetas com o seuquadro:

    The masks werent just like any other pieces of sculpture. Not at all. Theywere magic things. But why werent the Egyptian pieces or the Chaldean? Wehadnt realized it. Those were primitives, not magic things. The Negro pieceswere intercesseurs, mediators; ever since then Ive known the word in French.They were against everything against unknown, threatening spirits. Ialways looked at fetishes. I understood; I too am against everything. I toobelieve that everything is unknown, that everything is an enemy! Everything!(...) I understood what the Negroes used their sculpture for. (...) They wereweapons. To help people avoid coming under the influence of spirits again,to help them become independent. Theyre tools. If we give spirits a form, webecome independent. Spirits, the unconscious (people still werent talkingabout that very much), emotion theyre all the same thing. I understoodwhy I was a painter. All alone in that awful museum, with masks, dolls madeby the redskins, dusty mannequins. Les Demoiselles dAvignon must have cometo me that very day, but not all because of the forms; because it was my firstexorcism-painting yes absolutely! (Malraux 1994: 10-11).

    Ou pense-se no modo como a visita ao museu de etnografia produz umataque aos modos expressivos clssicos, mas tambm a procura de uma novafuno para a pintura o poder transformativo da arte, reafirmado ao longodo sculo XX, de Dada ao surrealismo, e de uma forma particularmentecategrica em J. Beuys e na sua figura do artista xamane , o que no significanecessariamente um conhecimento ou reconhecimento, por parte dos artistas,da realidade e da diferena das culturas que empregavam, como expressesda fora libertadora do primitivo.

    Por outro lado, a antropologia tambm devedora da revoluomodernista na arte. Alguns antroplogos, no a maioria seguramente,reconhecem-no. Veja-se R. Firth, autor de um dos primeiros trabalhos deantropologia da arte, sobre a arte dos maori, de 1925:

  • Jos Antnio B. Fernandes Dias

    112

    For some anthropologists, of whom I was one, the admission into the graphicand plastic arts of distortion, of change of form from the proportions givenby ordinary vision, came as a liberating influence. It was significant, not onlyfor an appreciation of the contemporary Western art, but also for a clearerunderstanding of much medieval and exotic art. (...) The painting and sculp-ture which anthropologists encountered in exotic societies could be regarded,not as a product of imperfect vision, technical crudity, or blind adherence totradition, but as works of art in their own right, to be judged as expressionsof artists original conceptions in the light of their cultural endowment. (...)I give this outline of early history to show the commingling of anthropologi-cal and other interests in art. Clearly, despite a somewhat undiscriminating,even lyrical approach to primitive art, the genuine aesthetic reactions of a laypublic were stimulated by these exotic products, and helped in the develop-ment of anthropological art experience. Meanwhile the role of anthropologistsas systematizers and contextual interpreters continued unobtrusively (Firth1992: 19, 21).

    Se, evidentemente, se podem traar histrias separadas das duas aproxi-maes aos objectos no ocidentais, a da antropologia e a do mundo da arte,tambm podem ser apontados mais cruzamentos entre elas do que frequen-temente se pensa. Embora esta seja, em grande parte, uma histria ainda porescrever, j foi apontada a importncia das teorias estticas na formao dasconcepes de cultura de Boas (1996 [1927]), de Kroeber (a noo de estilo),de Ruth Benedict (a ideia de padres de cultura); mas tambm em Lvi-Strauss (a presena do simbolismo francs e a colagem surrealista, ou Wagnere o romantismo); ou em C. Geertz (o conceito de forma significante); ou emV. Turner (pela via do teatro); ou, nos anos 20-30, na etnografia francesa nasua relao com o surrealismo.7

    O papel dos antroplogos continuou discretamente, como diz Firth,desde o incio do sculo, a ser um papel de sistematizao e interpretaocontextual. Mas o tropo do primitivo como outro prolongou o seu poderretrico pelo sculo adiante no surrealismo, num modo particularmentedirecto e ntimo de relao com o conhecimento antropolgico, na Art Brut,no expressionismo abstracto, e de modos mais subtis em muitas obrasartsticas at aos nossos dias.

    A viragem etnogrfica

    O conceito de primitivo manteve-se estvel como uma figura central, querno discurso antropolgico, quer nas prticas e discursos artsticos, desde oincio do sculo XX. A. Kuper (1991) mostra essa continuidade na noo de

    7 Marcus e Myers 1995, Boon 1972, 1989, Clifford 1988, Zengotita 1989.

  • Arte e Antropologia no Sculo XX

    113

    sociedade primitiva; Marcus e Myers (1995) referem, a propsito daantropologia americana, de Durkheim, Lvy-Bruhl e Lvi-Strauss, como,apesar de no ser central para as suas anlises, o conceito continua a serusado para marcar o contraste com o moderno, e a indicar o estudo desociedades outras como a especificidade da antropologia. Foster (1999) indicacomo essa idealizao do outro est ainda presente em autores como Lacan,Foucault, Deleuze e Guattari. E no domnio artstico, muitos trabalhos soesclarecedores quanto ao seu papel central e incontornvel nos desenvol-vimentos da arte ocidental no sculo XX.8

    Embora no tenha desaparecido completamente da antropologia, nemdas referncias artsticas contemporneas, onde pode ser encontrada pordetrs de trabalhos nas reas da performance, da land art, da instalao e dacrtica da instituio arte, a noo de primitivo perde a legitimidade e aautoridade que a caracterizaram. O repensar do primitivo desenvolvido porFabian (1983) e Kuper (1991), aponta neste sentido. Este processo no serestringe ao discurso antropolgico: os trabalhos de Said (1979) sobre o ori-ental, ou de Derrida (1977) sobre o ndio amaznico de Lvi-Strauss,mostram tambm como ambos so construes ocidentais, feitas em funodas nossas prprias imaginaes. E no domnio do discurso artstico, nasequncia da exposio Primitivism in 20th Century Art, realizada no Museumof Modern Art de Nova Iorque em 1984, desencadeiam-se acesas discussessobre a mesma questo,9 que ser amplamente desenvolvida pelos autoresda antologia que Susan Hiller reunir mais tarde (Hiller 1991).

    Uma srie de acontecimentos no mundo, a partir dos anos 60, irtambm alterar profundamente esta situao. Os processos de descolonizaotero aqui, certamente, um papel primordial; os antigos primitivosassumiram voz na arena internacional e no seio das naes quer com osnovos pases africanos, quer com a emergncia de organizaes indgenas,que lutam pela sua autodeterminao face aos estados nacionais, no interiordos pases americanos e da Oceania. Por exemplo, em 1981 e sob os auspciosda UNESCO, realizou-se na Costa Rica uma reunio internacional de queresultou a chamada Declarao de San Jos; nela se proclamou a neces-sidade de deter o etnocdio e de pr em marcha um processo de etnode-senvolvimento que foi definido como

    a ampliao e consolidao das esferas de cultura prprias, atravs do fortale-cimento da capacidade autnoma de deciso de uma sociedade culturalmentediferenciada para orientar o seu prprio desenvolvimento e o exerccio da

    8 Para referir s alguns dos mais significativos, e que tratam a questo em termos gerais: Goldwater 1986, Laude 1968,Rubin 1984, Rhodes 1994.9 A bibliografia vastssima. Vale a pena referir Clifford 1988, Foster 1985, McEvilley, Rubin e Varnedoe 1990, Nadelman1985, Price 1986, 1989.

  • Jos Antnio B. Fernandes Dias

    114

    autodeterminao, qualquer que seja o nvel que as considera (Cardoso deOliveira 1983).

    Um tal facto, como refere Cardoso de Oliveira, obriga a redefinir o papel dosantroplogos, que devem abandonar a tarefa de falar pelos povos indgenas,j que eles passam a falar por si em defesa dos seus prprios direitos polticos,sociais e culturais; todos sabemos como essa redefinio tem vindo a serencarada, na prpria prtica antropolgica, por razes que em muitoultrapassam eventuais modas ps-modernistas. E ter fortes implicaes nosmodos de relacionamento entre as produes expressivas desses povos e oocidente: os museus ocidentais comearo a ser obrigados a repensar ereformular os seus direitos sobre as coleces coloniais que reuniram, a suapropriedade, a sua interpretao, armazenamento e exposio, enfrentandosucessivos pedidos de repatriao e iniciando formas de colaborao com associedades e os povos de origem dessas coleces.10 E, no que se refere sprodues artsticas actuais, a economia da mediao antropolgica entre osautores indgenas e os circuitos internacionais tambm se faz sentir. O mundoda arte relaciona-se directamente, e vai-se abrindo incluso dessas pro-dues. Um caso particularmente bem sucedido ser o da arte contemporneaaustraliana:

    Aboriginal art is now being incorporated in the general discourse over Aus-tralian art. It tends now to be collected by the same institutions, exhibitedwithin the same gallery structure, written about in the same journals, as otherAustralian art. This has come about through the Aboriginal struggle to maketheir art part of the Australian agenda, as part of a more general politicalstruggle. Incorporation could be interpreted as the appropriation of Aborigi-nal art by a white Australian institutional structure; the reality is a much moreequal relationship. Issues such as the alienation of art from the producer, theprotection of intellectual property, the role of the government in the market-ing and production of art, the autonomy of tradition, the relationship betweenrepresentation and abstraction, have developed as critical foci in Australianart partly because of the inclusion of Aboriginal art within the debate. Thebreakdown of simple dichotomies has emphasised rather than reduced thediversity of Aboriginal art, and has allowed distinctions within the categoryto emerge in a non-prescriptive way (Morphy e Elliott 1997: 9).

    Da mesma forma, o processo de globalizao, entendido como um processode destruio de identidades tradicionais e, simultaneamente, de criao denovas diferenciaes, tem profundas implicaes, quer no modo de entendera unidade de estudo tradicional da antropologia, a comunidade local, quepede que se considerem no s as suas determinaes internas, como tambm

    10 Cf. Merrill, Ladd e Ferguson 1993, Simpson 1996, Clifford 1997, Fernandes Dias 1999.

  • Arte e Antropologia no Sculo XX

    115

    os processos regionais, nacionais e globais que a atravessam, e em relao aosquais ela se coloca, adoptando e/ou resistindo, fazendo-se o que , querlevando, noutros casos, separao entre identidade/comunidade e umterritrio, com o aparecimento de instituies e redes translocais e dispersas,ou ainda conduzindo a uma reformulao nas concepes das identidadesnacionais, quer nas antigas metrpoles coloniais europeias, quer em antigascolnias, que pem em causa a sua homogeneidade interna, substituindo-apelo que se tem chamado multiculturalidade.

    Tudo isto leva substituio do primitivo como formulaoessencializada da diferena, das culturas intactas com uma diferena extrema(cujos cdigos e estruturas podem ser submetidos a uma interpretao etraduo perfeitas), pela evidncia de que o que h no mundo contemporneo uma interpenetrao de culturas, orlas, hbridos, fragmentos, retomando aspalavras de Marcus e Myers.11 Os antigos primitivos isolados esto hojelocalizados num tempo e num espao que contemporneo do nosso:

    With our consciousness of the world becoming more global and historical(through travel, communications, and so on), these resources within anthro-pology no longer have the critical, reflective appeal they once did. To invokeanother culture now is to locate it in a time and space contemporaneous withour own, and thus to see it as part of our world, rather than as a mirror oralternative to ourselves, arising from a totally alien origin. Swamped withautomobiles, televisions, popular music, and Western clothes, those once for-mulated as primitives who inhabited a different world, so to speak, will nolonger work as a trope of difference from which a credible imaginativegrasp of our world can occur (Marcus e Myers 1995: 19).

    Por outro lado, se no incio do sculo XX a Europa encontrava a alteridade,mas s fora das suas fronteiras, a globalizao tem tambm efeitos no inte-rior das nossas sociedades, levando redescoberta da diferena como umfenmeno geral interior s culturas, a todas as culturas. Cada uma ummundo em que identidade, diferena e valor cultural so permanentementeproduzidos e contestados. Os chamados novos movimentos sociais, emer-gentes nos anos 60, atravessam as divises polticas e sociais tradicionais (declasse), apelando para as dimenses mais pessoais das identidades dos seusmembros (de raa, como no movimento pelos direitos cvicos dos negros nosEUA; de gnero, como nos movimentos feministas; de sexualidade, como nosmovimentos gay e lsbicos), mas questionando-as politicamente e na praapblica o pessoal poltico.

    A partir daqui, a figura do primitivo e os dualismos tradicionaisns-eles, primitivo-moderno, como formulaes essencializadas da

    11 Marcus e Myers 1995, que referem, entre outros, Clifford 1988, Marcus e Fischer 1986, Rosaldo 1989, Taussig 1987.

  • Jos Antnio B. Fernandes Dias

    116

    alteridade, perdem importncia e legitimidade no interior da prpriaantropologia, onde mudou o modo de construo da diferena em termos deestruturas binrias de alteridade, para modelos relacionais de diferena (Fos-ter 1999: 178); e a preocupao tradicional com o outro primitivo expandiu--se numa etnografia mais abrangente da alteridade, cujo foco se deslocatambm para o interior de qualquer cultura, incluindo as europeias, ( achamada repatriao da antropologia) onde essa alteridade se manifestaatravs das identidades de gnero, de filiao tnica, de orientao sexual, etc.

    In purely domestic terms, the role of the exotic has been displaced by otherdescriptive domains for posing important differences within and alternativesto mainstream American life. Unlike the evocation of far-off cultural worldsto teach us lessons about ourselves, these other domains already exist withinour own social worlds. For example, the debate over gender differences,stimulated by feminism, is one of the most potent of these domains (...) Dis-cussions of the differences between black lives and white, lives of the poorand the middle class, gay lives and straight, have also contributed frame-works for the consideration of alternative realities. Relativism, long an impor-tant message of ethnography abroad, has now become a commonplace of lib-eral discourse at home. (...) In all of these arenas, anthropologys traditionalsubject has been partly displaced by more compelling, closer-to-home ve-hicles for contemporary discussions of the same issues that historically havebeen raised by anthropology (Marcus e Fischer 1986: 135).

    Este descrdito da noo de primitivo e o seu abandono como umacategoria que permite tornar a diferena sistemtica, interpretvel e utilizvelpelo seu potencial para a crtica cultural podem parecer pr termo velharelao de familiaridade entre arte e antropologia. Mas no. Alteram-na.A crtica interna da antropologia acompanha a crtica artstica dos primi-tivismos. Mais do que isso, as questes de identidade e identificao que setornaram dominantes no trabalho antropolgico, ocupam tambm o trabalhoartstico. As vozes das mulheres, das minorias sexuais, tnicas e imigradas,reivindicam crescentemente uma presena artstica, que muitos artistasassumem no seu trabalho.

    relao de colaborao e de reciprocidade entre arte e antropologiasucede-se uma situao muito mais complexa, em que ambas tratam dosmesmos assuntos e em que o trabalho artstico adopta frequentemente a ati-tude do etngrafo, e s vezes os seus mtodos. Quer Marcus e Myers (1995),quer Foster (1999), quer Schneider (1993, 1996), tratam, de modos diferentes,esta alterao.

    Os primeiros reconhecem que More recently, in contemporary cul-tural life, art has come to occupy a space long associated with anthropology,becoming one of the main sites for tracking, representing, and performing theeffects of difference in contemporary life (Marcus e Myers 1995: 1). Tambm

  • Arte e Antropologia no Sculo XX

    117

    Foster afirma que: Thus did art pass into the expanded field of culture thatanthropology is thought to survey (1999: 184). Chama-lhe a viragem etno-grfica da arte contempornea.12 V a sua gnese na deslocao de um modovertical do trabalho artstico (que assenta num envolvimento diacrnico comas formas disciplinares de um gnero ou meio artstico dado), para um que horizontal (num movimento sincrnico de questo social para questosocial, de debate poltico para debate poltico); localiza os seus incios na artepop e na sua aceitao dos meios de comunicao de massa, que marca umaviragem na nossa noo do que cultura e coloca a arte nesse contnuo cul-tural; traa o seu desenvolvimento desde os movimentos artsticos que, naesteira do minimalismo e da pop investigam e interrogam a obra de arte (dosseus constituintes objectivos para as suas condies espaciais de percepoe para as bases corporais dessa experincia), a prpria instituio arte (da suadescrio em termos de um espao fsico e arquitectnico, para uma redediscursiva de outras prticas e outras instituies, outras subjectividades ecomunidades), e o espectador (que no pode mais ser definido s fenome-nologicamente, j que tambm um sujeito social demarcado por mltiplasdiferenas sexuais, raciais, tnicas, etc.), passando pela arte conceptual, aperformance, a body art, a arte site-specific, at ao que chama a arte quase--antropolgica dos anos 90.

    Schneider fala de registos de evidncia para chamar as prticasartsticas que, implcita ou explicitamente, incorporam mtodos da antropo-logia, particularmente o mtodo etnogrfico e a recolha, classificao e expo-sio museolgicas, seja em trabalhos de colaborao com antroplogos, sejapara apresentar uma problematizao e uma crtica da antropologia. E chamaa ateno para a anterioridade de muitos desses trabalhos em relao scrticas internas da antropologia a partir de meados dos anos 80.

    Dirigindo-se mesma questo, os vrios autores referidos apontamalgumas dificuldades nesta apropriao artstica da antropologia. Fosterobserva que, em muitos casos de trabalho artstico quase-antropolgico, sopoucos os princpios da observao participante respeitados e, muito menos,criticados. De modo semelhante, Schneider reconhece diferenas de grau (adurao da estadia), e tambm de profundidade e de sistematizao, entre asduas prticas etnogrficas. Mas, enquanto Foster se dedica, como crtico dearte, a apontar os limites da etnografia para o trabalho artstico, sobretudo nassuas utilizaes rotineiras e acrticas, Schneider, antroplogo, est maisinteressado nas crticas antropologia desses trabalhos e no que eles podems vezes acrescentar ao nosso conhecimento antropolgico, e no hesita em

    12 A expresso viragem etnogrfica, e o que ela descreve, foi entretanto ttulo de um nmero temtico da revistade-,des-,ex-: Site-Specificity: The Ethnographic Turn (Coles 2000), com estudos de diversos autores, crticos ehistoriadores de arte, antroplogos e artistas.

  • Jos Antnio B. Fernandes Dias

    118

    falar de mtodo etnogrfico na antropologia e de mtodo etnogrfico artstico.Reconhecendo que o mtodo etnogrfico se estendeu nos ltimos anos comoum modelo metodolgico a outras disciplinas acadmicas, como os estudosculturais, ecoando J. Clifford, afirma que:

    Modern ethnography appears in several forms, traditional and innovative. Asan academic practice it cannot be separated from anthropology. Seen moregenerally, it is simply diverse ways of thinking and writing about culturefrom a standpoint of participant observation. In this expanded sense a poetlike Williams is an ethnographer. So are many of the people social scientistshave called native informants. Ultimately my topic is a pervasive condi-tion of off-centeredness in a world of distinct meaning systems, a state ofbeing in culture while looking at culture, a form of personal and collectiveself-fashioning (Clifford 1988: 9).

    Clifford defende tambm que estas apropriaes da antropologia na artecontempornea so modos de representao to legtimos como a escrita oua fotografia, o cinema e o vdeo, j reconhecidos academicamente. Marcus eMyers, por sua vez, assumem o desafio que estas apropriaes so para oprojecto da antropologia como modo privilegiado e acadmico de tratar osfenmenos culturais e propem responder-lhe com etnografias dos mundosda arte contemporneos e dos limites do seu potencial para a crtica cultural.

    Interessante tambm ser notar a preocupao dos antroplogos emdistinguir entre os trabalhos de artistas e os de etngrafos. Marcus e Myersconsideram que a distino opera, desde logo, no que toca s posiesrespectivas da crtica antropolgica e da crtica artstica, com uma muitomaior proximidade a importantes vectores de poder e de dinheiro por parteda produo e do discurso artsticos. Mas todos concordam que, enquanto osartistas desafiam e desestabilizam as fronteiras de distino e excluso, paraos antroplogos elas devero ser objecto de estudo. Mais uma vez, SusanHiller esclarecedora:

    Artists, in the sense I mean, modify their own culture while learning from it.The artist, like everyone else, is an insider. Artists work depicts biographi-cally-determined social conditioning. Artists work does not allow disconti-nuities between experience and reality, and it eliminates any gap between theinvestigator and the object or situation investigated.

    Artists perpetuate their culture by using certain aspects of it. Artactivity is largely a manifestation, depiction or symbolization of internalisa-tions that are the result of socio-cultural conditioning; my personal produc-tion may seem enigmatic or paratactic, but to be recognisable to any degreeit must, to a great extent, be merely conditioned by factors that conditioneveryone else language, social structures, economic conditions, etc.

    Artists change their culture by emphasizing certain aspects of it,aspects perhaps previously ignored. The artists version may show hidden or

  • Arte e Antropologia no Sculo XX

    119

    suppressed cultural potentials. Artists may offer paraconceptual notions ofculture, by revealing the extent to which shared conceptual models areinadequate because they exclude, deny some part of reality. Artists everywhereoperate skilfully within the very socio-cultural contexts that formed them.Their work is received and recognised to varying degrees within these contexts.They are experts in their own cultures (Susan Hiller em Einzig 1996: 23-24).

    Esta concepo de artista, que trabalha de dentro da sua prpria cultura parafazer sobre ela um comentrio, ou para a introduzir novos pontos de vista,aproxima-o, evidentemente do antroplogo nativo, do antroplogo at home,e corresponde tambm frmula do artista como etngrafo proposta porFoster.

    Estou ciente destas diferenas, e acredito com Schneider que aspropostas culturais destes trabalhos artsticos so interessantes para a anliseantropolgica. Mas acredito tambm que o conhecimento de trabalhosantropolgicos sobre a cultura contempornea pode ser importante para otrabalho artstico. A mesma Susan Hiller reconhece a sua dvida para comestudos antropolgicos, que a ajudaram, como mulher e como artista, diz, aultrapassar a dificuldade de expressar percepes que em grande parte noso reconhecidas ou so distorcidas pela nossa cultura comum.

    Seguem alguns exemplos de trabalhos e discursos artsticos, bem comode exposies que podem ilustrar esta nova relao entre trabalho artsticoe trabalho antropolgico que referimos. Sempre que possvel, apresenta-mo-los atravs de palavras dos prprios autores, traduzidas.

    Anti-primitivismo

    Jimmie Durham um artista contemporneo norte-americano, de origemCherokee. Entre os seus tpicos de trabalho conta-se a imagem estereotipadado ndio americano, que ele critica e parodia, tornando evidente a suaartificialidade. Na maioria das suas obras utiliza e constri objectos pseudo--primitivistas. o caso de Self-Portrait (cf. fotografia 1), de 1987, uma figurahumana plana, recortada em madeira, com uma mscara colorida na face,uma abertura no lado esquerdo do peito do boneco deixando ver atrs ocorao, e um pnis tambm colorido e proeminente; junto das partes docorpo a que se referem, esto escritas as seguintes frases:

    Ol! Eu sou Jimmie Durham. Quero explicar algumas coisas bsicas sobremim. Em 1986 tinha 46 anos. Como artista estou confuso em muitas coisas,mas basicamente a minha sade boa e estou disponvel para, e quero, umagrande variedade de empregos. Procuro emprego activamente.O Sr. Durham declarou que acredita ter dependncia do lcool, da nicotinae cafena, e que dorme mal.

  • Jos Antnio B. Fernandes Dias

    120

    Do museu e da exposio

    Trs artistas falam dos seus trabalhos sobre museus e exposies.Lothar Baumgarten, alemo, e que fez trabalho de campo entre os

    yanomami da Venezuela por dois anos com um antroplogo, dedicoutambm as suas atenes ao Museu Pitt-Rivers, da Universidade de Oxford,que observou e fotografou sistematicamente entre 1968-1969. Em cada

    Mamilo intil.Sou normalmente alegre.Tenho 12 passatempos!11 estufas!As pessoas gostam dos meus poemas.Os seus msculos abdominais fazem uma salincia de aproximadamente 3-12 polegadas.Cicatriz do apndice.As mos so pequenas, sensveis.Tenho as costas encurvadas.Os pnis dos ndios so anormalmente grandes e coloridos.A minha pele, de facto, no muito escura, mas estou certo de que muitosndios tm a pele acobreada.

    Fotografia 1: Jimmie Durham, Self-Portrait, 1987.

  • Arte e Antropologia no Sculo XX

    121

    fotografia inscreveu mais tarde duas palavras contrastantes. Sobre essetrabalho, que intitulou Unsettled Objects (cf. fotografia 2), escreve:

    Tal como o enigma cria um cosmos de desejo, a saudade a fora que conduz possedo desconhecido.

    A exibio de objectos poderosos em vitrinas, e o desejo de usar a suaenergia numa exposio didctica, desloca-os e torna-os enigmticos.

    Esta transformao mostrada aqui, na diversidade de objectos etno-grficos coleccionados. Armazenados como se estivessem numa exposio,reflectem o seu uso, forma e material. Como nenhum deles est em qualquersistema de organizao chamado cientfico, apresentam um espectculo decaos, adquiridos pressa e provisoriamente catalogados, pretendendo repre-sentar o cosmos. A vontade de totalidade enciclopdica resultou numa vastaapropriao e acumulao de objectos desconhecidos. Esta pretenso e estedesejo de possuir os objectos levam a que eles sejam: exibidos imaginados classi-ficados reinventados generalizados celebrados perdidos protegidos climatizados confi-nados colectados esquecidos avaliados interrogados mitificados politizados admiradosanalisados negociados padronizados salvos dispostos reivindicados acumulados desco-dificados compostos disciplinados nomeados transformados neutralizados estimuladosfotografados restaurados esquecidos estudados legendados racionalizados narradosvalorizados tipificados enquadrados ofuscados seleccionados fetichisados registadosjustapostos possudos movidos contados entesourados polidos ignorados comercia-lizados armazenados taxados vendidos...

    Estes objectos, retirados do seu contexto original, sofrem uma mu-dana no s nas suas circunstncias geoclimticas, o que facilmente podedestru-los, mas tornam-se tambm espcimes de trabalho de conservao etratamento cientfico, ou simplesmente de classificao. O carcter desen-raizado da sua nova existncia redu-los frequentemente natureza esttica

    Fotografia 2: Lothar Baumgarten, Unsettled Objects.

  • Jos Antnio B. Fernandes Dias

    122

    ou curiosa da sua aparncia. A sua aura verdadeira, prpria da sua utilizaoe significado, raramente tem lugar nesta nova existncia. A manipulao dosobjectos no contexto museolgico no permite uma presena duradoura ecrescente. Incorporados temporariamente em variadas exposies didcticas,estes objectos so privados da sua patine, como se vivessem num ciclopermanente de lavagens suprfluas. Em nome da cincia, foram amputadose deformados, reduzidos a material de investigao. No h paz possvel paraeles, nesta situao. O mistrio no resolvido das suas origens e a ignornciaacerca dos seus rituais e propsitos permanecem intactos. Este desconhe-cimento torna-os cobiados e d-lhes uma qualidade extica. Os objectosartsticos, ou os objectos etnogrficos, precisam de encontrar um lugar pro-tector que envolva a sua presena; precisam de poder, para ocuparem umlugar (Lothar Baumgarten em McShine 1999: 94).

    Fred Wilson, um artista negro tambm norte-americano, escreve sobre o seuMining the Museum, realizado em 1992 na Maryland Historical Society:

    Para me sustentar como um artista jovem a viver e trabalhar em Nova Iorque,trabalhei em museus e galerias o Metropolitan Museum of Art, o TheAmerican Crafts Museum e o American Museum of Natural History emvrias funes, de administrador, de guarda de museu, de conferencista, depreparador, de conservador. (...)

    Ter trabalhado em vrios tipos de museus tornou-me particularmenteatento aos modos como o ambiente em que as produes culturais so expos-tas afecta o que o espectador sente a propsito do objecto e do artista que ofez. Ser um artista e uma pessoa de cor um marginal ao museu estabelecido,mas tambm um empregado do museu proporcionou-me uma posio emque podia prestar ateno s incongruncias existentes nestes espaos. (...)

    O museu de arte contempornea de Baltimore pediu-me que organi-zasse uma exposio, em qualquer espao de Baltimore, e eu escolhi a Mary-land Historical Society, que uma das instituies mais conservadoras dacidade. Ao entrar no museu, senti-o como um ambiente que me era total-mente estranho. Antes deste projecto, nunca tinha estado num lugar assim,nem muito menos teria olhado para o que quer que fosse com alguma aten-o. Tive de me perguntar: O que estou a fazer aqui, de que que trata estelugar, e porque estou a reagir assim? Depois de passar a algum tempo,percebi que o que de facto me ofendia no eram tanto os objectos, mas omodo como as coisas estavam colocadas. Como precisasse de um espao detrabalho, fui alojado gentilmente no gabinete do presidente. Trabalhei a porum perodo concentrado de seis semanas, mas mantive relaes e visitas porum ano. E s isso tornou possvel a disponibilidade do pessoal da sociedadehistrica. (...)

    O processo que segui para a criao da minha instalao foi falar comtoda a gente do museu, do pessoal de limpeza ao director executivo, eentender o que sentiam sobre a instituio, sobre a cidade onde vivem, e querelao havia entre uma coisa e a outra. Olhei para cada um dos objectos da

  • Arte e Antropologia no Sculo XX

    123

    coleco da sociedade, que vastssima. Comearam a coleccionar em 1840,e nas suas origens era um clube masculino, e por isso h alguns objectosbizarros na coleco. Mas estas coisas no esto vista. Muitas vezes, o queos museus expem diz muito acerca do museu; mas o que no mostram dizainda mais. Ainda no sabia o que iria fazer, s que queria que os objectosde facto me dissessem alguma coisa. Chamei a instalao Mining the Mu-seum por poder querer dizer mining como numa mina de ouro desenterrar alguma coisa rica de significados ou como num campo de minas explodir mitos e percepes , mas tambm podia significar torn-la minha.Olhei cada objecto e imagem, e tentei tirar deles o que era a sua importnciaindividual e a sua histria, o que me contavam sobre a instituio e a prpriahistria do estado de Maryland. (...)

    H muita prata neste museu. Criei uma vitrina de elegantes vasos deprata lavrada, com a etiqueta Trabalho de metal 1793-1880 (cf. fotografia3). Mas, escondida nos velhos livros de inventrio da sociedade histrica,havia tambm a entrada monos, com objectos feitos de metal. Pus um parde grilhetas de escravo junto dos vasos de prata. Normalmente h um museupara as coisas maravilhosas de uma cultura, e talvez uma sala separada, ouum museu separado, para as coisas horrorosas. A vida, porm, no correentre estas categorias separadas. E de facto, neste caso os objectos tinhamtudo a ver uns com os outros. A produo de uns foi possvel devido subjugao possibilitada pelos outros. Muito possivelmente, at poderiam tersido feitos pela mesma mo. Na minha opinio, o modo como as coisas estoexpostas em galerias e museus tem grande influncia no modo como vemoso mundo (Fred Wilson em Fisher 1994: 152-154).

    Fotografia 3: Fred Wilson, Mining the Museum, 1992.

  • Jos Antnio B. Fernandes Dias

    124

    Voltando a Susan Hiller, desta vez a uma instalao que realizou no MuseuFreud em Londres (cf. fotografia 4), em 1994, e que pode ser vista agora naTate Modern:

    From the Freud Museum uma de vrias instalaes de grande escala que fizutilizando formatos museolgicos, desde o incio dos anos 70. Enquanto odilema da maior parte dos museus contemporneos como tratar o que estfora da viso ou invisvel, os meus museus concentraram-se no que nodito, no que no se regista, no que no se explica, a que no se presta ateno os espaos e as sobreposies entre contedo e contexto, sonho e experin-cia; os fantasmas da mquina; o inconsciente da cultura. (...)

    Num primeiro nvel, a minha vitrina-instalao uma coleco decoisas que evocam pontos culturais e histricos de escorregamento distr-bios psquicos, tnicos, sexuais e polticos. Os itens individuais da minhacoleco vo do macabro ao sentimental e ao banal. Muitos dos objectos sopessoais, coisas que guardei durante anos como relquias privadas, talisms,recordaes, referncias a questes no resolvidas em trabalhos anteriores, oumesmo como brincadeiras. A impressionante coleco de Sigmund Freud, dearte e artefactos clssicos, inspirou-me para formalizar e focalizar o meuprojecto. Mas se a coleco de Freud uma espcie de ndice da verso dopatrimnio civilizacional ocidental que ele defendia, ento a minha coleco,tomada como um todo, um arquivo de incompreenses, crises e ambi-valncias, que complicam essa noo de patrimnio (Susan Hiller emMcShine 1999: 93).13

    13 De referir que Clifford (1997) dedica um captulo a este trabalho de Hiller.

    Fotografia 4: Susan Hiller, From the Freud Museum, 1991-96.

  • Arte e Antropologia no Sculo XX

    125

    Arte e polticas de identidade

    Peter Robinson um artista neozelands, mestio, cujo trabalho pretendepesquisar a cultura maori no nvel pessoal, mas tambm questionar ocarreirismo e o modismo de um modo cptico, como, por exemplo, obiculturalismo como veculo pessoal para uma carreira rpida. A propsitode uma srie de trabalhos em que inscrevia o nmero 3,125, e a que chamouPercentage Paintings:

    Sem dvida so um olhar cnico em relao ao politicamente correcto. Eraesse o contedo do meu trabalho em relao minha percentagem de sanguemaori, em relao ao facto de ser uma pessoa em parte maori, e este novotrabalho uma extenso disso. Quando voc parece um pakeha (branco), mas de descendncia maori, voc se sente destribalizado. As pessoas s vezesquerem saber quanto sangue maori voc tem; ento voc diz e elas ficamcontentes porque tinham razo, a sua percentagem de sangue maori muitopequena (3,125%). E a o acusam de se aproveitar da condio maori. As per-centage paintings eram um modo de denunciar esse tipo de atitude. Acreditoque a identidade maori tem a ver com o fato de voc se considerar um maori ter ancestrais maori, em oposio a um conceito que leva em conta aquantidade de sangue maori que voc possui. Alm disso, a percentage paint-ing era um olhar ctico aos processos institucionais da arte necessrios parame adoptar como um artista maori em relao aos trabalhos anteriores. Dei--me conta de que podia ser usado como um pacote confortvel para justificaro critrio pakeha de como a arte maori deveria ser, para obter sucesso com aspessoas menos esclarecidas dessas instituies (Peter Robinson em Bienal deSo Paulo 1996: 125).

    Por sua vez, Shu Lea Cheang, uma artista chinesa nascida em Taiwan evivendo em Nova Iorque, aborda no seu trabalho tpicos como sexualidade,gnero, raa e comunidade. Em Those Fluttering Objects of Desire (cf.fotografia 5), de 1992, utilizando telefones e televisores, faz uma espcie demapeamento do corpo feminino. O espectador pode ligar um nmero detelefone para ouvir uma voz, enquanto v uma imagem da sua proprietriano televisor em frente. Os textos, as vozes e as imagens so de um colectivode mulheres de cor, artistas e escritoras amigas da autora e que aceitaramcolaborar com ela. Falam sobre as suas sexualidades, os seus corpos, os seusdesejos, num tom confessional, que, com ironia, humor e sensualidadesubverte noes convencionais de negra, de mulher e da sexualidadefeminina.

    Tambm Robert Gober, nascido e vivendo nos Estados Unidos, tratade corpo e identidades sexuais. Numa instalao realizada em 1992, a quechamou Newspaper, apresenta uma srie de maos de jornais, atados comose prontos para deitar no lixo. Cada um dos jornais no topo de cada pilha

  • Jos Antnio B. Fernandes Dias

    126

    fabricado pelo artista; a intercala histrias e fotos reais, recortados ao longode meses de jornais diversos, com histrias e imagens que ele prprio criou.Estes artigos nos jornais cobrem assuntos quotidianos banais, mas sobretudoos debates presentes na sociedade americana sobre o corpo e a sexualidade aborto, homossexualidade, controlo de natalidade, referncias sida, etc.Com os jornais a funcionarem como representantes da comunidade, dopblico, e editados de modo a realar contedos relacionados com as preo-cupaes polticas do artista, eles so declaraes polticas de identidade, dasua identidade.

    Uma das imagens inventadas uma fotografia do prprio Gober emvestido de noiva, com a legenda Having it all (cf. fotografia 6).

    Acrescente-se que a colaborao com grupos locais uma atitudetambm presente nas prticas artsticas contemporneas, como ficou jevidente nos trabalhos referidos de Wilson e Cheang. A sua amplitude eobjectivos variam, mas, em muitos trabalhos recentes de arte pblica, que hmuito deixou de se restringir estaturia, atende-se s dimenses histricas,sociolgicas, polticas e ecolgicas do local, com um envolvimento efectivodas populaes, cujas necessidades internas o artista procura perceber,veiculando-as atravs do seu trabalho.

    Do mesmo modo, j vimos, nos casos de Durham, Robinson, Cheang,ou das artes aborgenes da Austrlia, como a geografia do mundo da arte estmuito mais dispersa. Lentamente, reconhece-se que no se pode ignorar a

    Fotografia 5: Shu Lea Cheang, Those Fluttering Objects of Desire, 1992.

  • Arte e Antropologia no Sculo XX

    127

    produo artstica proveniente de fora do eixo euro-americano. E aumenta onmero de artistas de todos os continentes a circular com uma presenacrescente em mltiplas exposies internacionais, assim como se estendeu atodos os continentes a realizao de bienais internacionais de arte.

    E a profuso das propostas presentes aponta mais para uma globa-lizao pluralista e heterognea do que para a homogeneizao de umacultura global. O que torna a nova geografia tambm mais complexa. Longedo internacionalismo modernista, uma universalidade abstracta construda apartir da Europa ou da Amrica do Norte, estaremos talvez perante apossibilidade de uma outra concepo de internacionalismo, que desafia omonoplio cultural. Em dois sentidos: reconhecer que h outros implicareconhecer que ns somos s uns entre outros; por outro lado, as nossassociedades europeias j no so constitudas s por populaes de origemeuropeia.

    BIBLIOGRAFIABIENAL DE SO PAULO, 1996, Universalis, So Paulo, Fundao Bienal de So Paulo.BOAS, Franz, 1996 [1927], Arte Primitiva, Lisboa, Fenda.BOON, James, 1972, From Symbolism to Structuralism: Lvi-Strauss in a Literary Tradition, Oxford, Blackwell., 1989, Lvi-Strauss, Wagner, Romanticism: A Reading-back, STOCKING, G. (org.), Romantic

    Motives: Essays on Anthropological Sensibility, Madison, The University of Wisconsin Press.CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto, 1983, Os Povos Indgenas e Seus Direitos: A Declarao de San Jos,

    Anurio Antropolgico, 81.CLIFFORD, James, 1988, The Predicament of Culture: Twentieth-Century Ethnography, Literature, and Art,

    Cambridge MA, Harvard University Press.

    Fotografia 6: Robert Gober, Newspaper (the serious bride), 1992.

  • Jos Antnio B. Fernandes Dias

    128

    , 1997, Routes: Travel and Translation in the Late Twentieth Century, Cambridge MA, Harvard Uni-versity Press.

    CLIFFORD, James, e George MARCUS (orgs.), 1986, Writing Culture: The Poetics and Politics of Ethnogra-phy, Berkeley, University of California Press.

    COLES, Alex (org.), 2000, Site-Specificity: The Ethnographic Turn, de-,dis-,ex-, 4.CONNELLY, Frances, 1995, The Sleep of Reason: Primitivism in Modern European Art and Aesthetics, 1725-1907,

    University Park, The Pennsylvania State University Press.DERRIDA, Jacques, 1977, Escritura e Diferena, S. Paulo, Perspectiva.DIAS, Nlia, 1991, Le Muse dEthnographie du Trocadero (1878-1908), Paris, CNRS.EINZIG, Barbara (org.), 1996, Thinking About Art: Conversations with Susan Hiller, Manchester, Manches-

    ter University Press.FABIAN, Johannes, 1983, Time and the Other: How Anthropology Makes its Object, Nova Iorque, Columbia

    University Press.FERNANDES DIAS, Jos A., 1990, Uma Definio de Arte para uma Antropologia da Arte, Ler Histria,

    20., 1992, Rethinking Anthropology of Art After the Contemporary Experience of Western Art, manuscrito., 1999, Memrias da Amaznia na Amaznia... Sociedades Indgenas e Museus Antropolgicos,

    manuscrito., 2000, Arte, Arte ndia, Artes Indgenas, Artes Indgenas: Mostra do Redescobrimento, So Paulo,

    Associao Brasil 500 Anos Artes Visuais.FIRTH, Raymond, 1992, Art and Anthropology, COOTE, J., e A. SHELTON (orgs.), Anthropology, Art,

    and Aesthetics, Oxford, Clarendon Press.FISHER, Jean (org.), 1994, Global Visions: Towards a New Internationalism in the Visual Arts, Londres, Kala Press.FOSTER, Hal, 1985, The Primitive Unconscious of Modern Art, October, 34., 1999 [1996], The Return of the Real, Cambridge MA, The MIT Press.GELL, Alfred, 1996, Vogels Net: Traps as Artworks and Artworks as Traps, Journal of Material Culture,

    I (1), 15-38., 1998, Art and Agency: An Anthropological Theory, Oxford, Clarendon Press.GOLDWATER, Robert, 1986 [1938], Primitivism in Modern Art, Nova Iorque, Vintage Books.GRABURN, Nelson (org.), 1976, Ethnic and Tourist Arts: Cultural Expressions from the Fourth World, Berke-

    ley, University of California Press.HILLER, Susan, (org.), 1991, The Myth of Primitivism: Perspectives on Art, Londres, Routledge.KUPER, Adam, 1991 [1988], The Invention of Primitive Society: Transformations of an Illusion, Londres,

    Routledge.LAUDE, Jean, 1968, La Peinture Franaise (1905-1914) et LArt Ngre, Paris, Klincksieck.MacGAFFEY, Wyatt, 1998, Magic, or as We Usually Say, Art: A Framework for Comparing European

    and African Art, SCHILDKROUT, E., e C. KEIM (orgs.), The Scramble for Art in Central Africa,Cambridge, Cambridge University Press.

    MALRAUX, Andr, 1994 [1974], Picassos Mask, Nova Iorque, Da Capo Press.MARCUS, George, e Michael FISCHER, 1986, Anthropology as Cultural Critique: An Experimental Moment

    in the Human Sciences, Chicago, The University of Chicago Press.MARCUS, George, e Fred MYERS (orgs.), 1995, The Traffic in Culture: Refiguring Art and Anthropology, Ber-

    keley, University of California Press.McEVILLEY, Tom, William RUBIN, e Kirk VARNEDOE, 1990 [1985], Doctor Lawyer Indian Chief: Primi-

    tivism in 20th Century Art, FERGUSON, Russel (org.), Discourses: Conversations in PostmodernArt and Culture, Cambridge MA, The MIT Press.

    McSHINE, Kynaston, 1999, The Museum as Muse: Artists Reflect, Nova Iorque, The Museum of Modern Art.MERRILL, William, E. J. LADD, e T. J. FERGUSON, 1993, The Return of the Ahayu:da: Lessons for Re-

    patriation from Zuni Pueblo and the Smithsonian Institution, Current Anthropology, 34 (5).MILLER, Daniel, 1991, Primitive Art and the Necessity of Primitivism to Art, HILLER, S. (org.), The Myth

    of Primitivism: Perspectives on Art, Londres, Routledge.MORPHY, Howard, 1994, The Anthropology of Art, Companion Encyclopedia of Anthropology, Londres,

    Routledge.MORPHY, Howard, e David ELLIOTT, 1997, In Place (Out of Time): Contemporary Art in Australia, Oxford,

    Museum of Modern Art.NADELMAN, Cynthia, 1985, Broken Premises, Art News, Fevereiro.POMIAN, Krzysztof, 1987, Collectionneurs, Amateurs et Curieux: Paris, Venise: XVI-XVIII Sicle, Paris,

    Gallimard.

  • Arte e Antropologia no Sculo XX

    129

    PRICE, Sally, 1986, Primitive Art in Civilized Places, Art in America, Janeiro., 1989, Primitive Art in Civilized Places, Chicago, Chicago University Press.RHODES, Colin, 1994, Primitivism and Modern Art, Londres, Thames and Hudson.ROSALDO, Renato, 1989, Culture and Truth: The Remaking of Cultural Analysis, Boston, Beacon Press.RUBIN, William (org.), 1984, Primitivism in 20th Century Art: Affinity of the Tribal and the Modern, 2 vols.,

    Nova Iorque, The Museum of Modern Art.SAID, Edward W., 1979, Orientalism, Nova Iorque, Vintage Books.SCHNEIDER, Arnd, 1993, The Art Diviners, Anthropology Today, 9 (2)., 1996, Uneasy Relationships: Contemporary Artists and Anthropology, Journal of Material Cul-

    ture, 1 (2).SIMPSON, Moira, 1996, Making Representations: Museums in the Post-Colonial Era, Londres, Routledge.TAUSSIG, Michael, 1987, Shamanism, Colonialism and the Wild Man, Chicago, University of Chicago Press.WHITTEN, Dorothea, e Norman WHITTEN (orgs.), 1993, Imagery and Creativity: Ethnoaesthetics and Art

    Worlds in the Americas, Tucson, The University of Arizona Press.ZENGOTITA, Thomas de, 1989, Romantic Refusion and Cultural Anthropology, STOCKING, G. (org.),

    Romantic Motives: Essays on Anthropological Sensibility, Madison, The University of WisconsinPress.

    ART AND ANTHROPOLOGYIN THE 20th CENTURY

    If the modernist primitivism provided the most visiblerelationship between anthropology and Western art,the last years of the 20th century witnessed the upris-ing of a radically different situation. This paper, whilearguing that the anthropological study of artisticpractices is undissociable from the Western concep-tions of art, wishes to take into account these lastchanges and the ways by which the collaborative andreciprocal relations between artistic work and anthro-pological work around the figure of the primitivehave been replaced by a new situation, much morecomplex and potencially conflictuous. Reviewing themost relevant bibliography on this issue, the paperalso introduces some art works that picture the newsituation.

    Jos Antnio B. Fernandes Dias

    Faculdade de Belas Artes ULLargo da Academia Nacional de Belas-Artes, 1200

    Lisboa