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Cristiano Augusto da Silva Jutgla

Santa Maria - 2015

Poesia de resistência à ditadura civil

-militar (1964-1985)

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REITOR DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIAProf. Paulo Afonso Burmann

VICE-REITORProf. Paulo Bayard Dias Gonçalves

DIRETOR DO CENTRO DE ARTES E LETRASPedro Brum Santos

VICE-DIRETOR DO CENTRO DE ARTE E LETRASClaudio Antônio Esteves

COORDENADORA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRASSara Regina Scotta Cabral

EDITORAPrograma de Pós-Graduação em Letras

COMITÊ EDITORIALAmanda Eloina SchererMarcia Cristina CorrêaAndré Soares VieiraGraciela Rabuske HendgesLarissa Montagner CervoEnéias Farias TavaresSara Regina Scotta CabralPedro Brum Santos

PROJETO GRÁFICOLilian Landvoigt da Rosa

EDITOR RESPONSÁVELAndré Soares Vieira

DIAGRAMAÇÃOFlavio Teixeira Quarazemin

PREPARAÇÃO DE ORIGINAISAndré Soares Vieira

REVISÃOFrancieli Matzembacher Pinton

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SUMÁRIO

Apresentação.........................................................09

Introdução...............................................................13

1. O testemunho: breves definições.....................19

1.2. Aspectos gerais da poesia de resistência à ditadura............................................................26

2. Análise dos poemas de resistência...............28

Conclusões.............................................................70

Bibliografia primária.............................................72

Bibliografia secundária..........................................75

Política editorial.....................................................79

Volumes publicados..............................................80

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APRESENTAÇÃO

Poesia de resistência à ditadura civil-militar (1964-1985) é o livro apresentado por Cristiano Augusto da Silva Jutgla, como socialização da pesquisa de pós-douto-ramento realizada na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), supervisionada por Rosani Úrsula Ketzer Umbach. Após investigação preliminar, formada por rastreamento em obras publicadas individualmente ou em coletâneas, o autor organiza um corpus de 27 poemas – de Alex Pola-ri, Chacal, Francisco Alvim, Eduardo Alves Costa, Ferreira Gullar, José Paulo Paes, Lara de Lemos, Nicolas Behr, Paulo Leminski, Pedro Tierra, Rogério Duarte e Ruy Espinheira Fi-lho – destacando a heterogeneidade como fator afirmativo na lírica brasileira contemporânea.

A mais importante contribuição deste trabalho, entretanto, consiste em designar e em analisar alguns des-ses textos como poesia de testemunho, assinalada pelo diálogo constante entre texto e contexto. No período delimi-tado, ressalta a luta esperançosa e cotidiana pelos direitos humanos, ora lida a contrapelo nem tão somente da histó-

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ria oficial, como também da crítica e da história literária, já que sob a rubrica poética, em tese, menos referencial do que a narrativa, se e quando assim considerada.

Sintomática dos encaminhamentos assumidos pelos estudos literários desde a década de 1960, e a per-sistirem embora com menos força nos tempos recentes, a fortuna crítica da qual o pesquisador lança mão, salvo al-gumas exceções, procede a flagrante silenciamento dessa produção poética, que muitas vezes passa ao largo da ins-tituição literária, do mercado editorial e dos sistemas cons-tituídos. Essas relações de força encontram correspondên-cia no esvaziamento da própria escrita da poesia política, autenticando a constatação de Francisco Foot Hardman acerca da cultura brasileira como apagamento de rastros.

Por outra via, Jutgla não apaga suas fontes, recor-rendo a significativo elenco de teóricos, tais como Anselmo Peres Alós, Mabel Moraña, Márcio Seligmann-Silva e Maren Viñar, que se dedicaram a tratar das vinculações entre lite-ratura e testemunho. No panorama crítico em que cintilam exemplos narrativos, acresce a significativa percepção de uma parcela do fazer poético brasileiro como testemunho dos anos de chumbo, conforme observa Wilberth Salgueiro.

Essa fração integra o conjunto mais amplo da poe-sia de resistência, que não se circunscreve nem a gerações nem a grupos, tampouco a linhas ou movimentos. As com-posições poéticas selecionadas para integrar o corpus fo-ram produzidas por: a) poetas atualmente consagrados no campo literário; b) poetas em formação à época da ditadu-ra, mas que têm sua obra reconhecida mais tarde pela crí-tica e/ou pelo público; c) poetas testemunhais à época ou após a ditadura, posteriormente não reconhecidos pela crí-tica e/ou pelo público. Os onze poemas comentados nesta publicação distribuem-se em quatro grupos, denominados da seguinte forma: 1) “Impactos e impasses”; 2) “Corpos”; 3) “Ironia” e 4) “Poemas-manifesto”.

Nos grupos de poemas aqui reunidos por temáti-cas que se comunicam entre si, ganha realce a poesia de resistência elaborada por poetas testemunhais, pois alheia

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aos interesses e paixões que movem a formação do cânone poético nacional, teve sua importância negada por aprecia-ções esteticistas ou reduzida ao papel de mero depoimen-to, sem quaisquer ampliações do debate sobre tal função nos meios acadêmicos ou editoriais. É sobre tal lacuna que transita Poesia de resistência à ditadura civil-militar (1964-1985), inventário da mais delicada literatura, a brotar de um passado irremediável, devorador de sonhos e utopias.

Num espaço e num tempo ainda marcado pelas flores e pelas náuseas do autoritarismo, da injustiça social e das variadas formas de violência, as tramas traumáticas, desveladas através dos vieses e dos avessos poéticos co-lhidos, agrupados, examinados e compartilhados por Cris-tiano Augusto rasuram equívocos a fim de assegurarem sua procura, existência e nomeação como poesia. Trata-se, contudo, de uma outra poesia, também autobiográfica, his-tórica, social, urgente para a documentação e a memória de uma cultura que possa contrapor-se aos monumentos da barbárie e deles prescindir, um dia.

André MitidieriUniversidade Estadual de Santa Cruz (UESC)

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“[...] a poesia agora responde a inquérito policial-militar”

Ferreira GullarÀ Ana Cristina

INTRODUÇÃO

O presente livro é resultado de pós-doutoramento realizado na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) entre 2013 e 2014, mais especificamente, sobre poesia de resistência à ditadura civil-militar (1964-1985), produção he-terogênea e complexa, que se constitui em uma linha de força dentro da poesia brasileira contemporânea, assim como ou-tras já reconhecidas dentro e fora dos debates acadêmicos.

Trata-se de uma poesia de testemunho, ideia sus-tentada porque sua fatura se dá intrinsicamente entre texto e contexto. Nesse sentido, os poemas se configuram em diálogo pelos direitos humanos ao tempo em que elaboram uma memória diversa à leitura da história oficial pós Anis-tia. Eis a hipótese que orientou a pesquisa original e, por conseguinte, a publicação ora em mãos em versão resumi-da. Em breve será publicada a versão integral da pesquisa.

A partir da análise do corpus, procurei compreender alguns aspectos estruturais como o contexto de produção e

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recepção, os suportes de circulação e a fortuna crítica. Devi-do ao espaço desta coleção, apresento uma versão resumida do trabalho. O corpus levantado para a pesquisa compôs-se de 26 poemas, dos quais 11 serão comentados e analisados na medida do espaço que a publicação permite. Por motivo de espaço, o(a) leitor(a) encontrará, por vezes, diferenças na análise dos poemas quanto à extensão. Em alguns casos, fiz apenas comentários críticos, o que não significa ser esse ou aquele poema menos importante do que os demais. Apenas tive de enxugar o texto. Fica para a próxima publicação.

Cabe informar também que a poesia de resistên-cia, escrita e publicada durante e/ou após o fim da ditadu-ra, não tem sido objeto de trabalhos de fôlego com exceção de artigos esparsos e poucas pesquisas, o mesmo podendo ser dito da bibliografia primária, de difícil obtenção se com-parada com o atual interesse das editoras de grande porte pelas tendências consagradas da poesia contemporânea, segundo provam as recentes reedições de livros esgotados e/ou raros, bem como publicações de obras completas. Sem esquecer das antologias que mantêm critérios de es-colha canônicos dos poemas, por mais polêmicas e inova-doras que pretendam ser em alguns casos de sucesso, con-forme constatamos em recente trabalho (JUTGLA, 2012).

A situação de apagamento da poesia de resistên-cia se torna mais constrangedora com a recente conclusão dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, a qual pro-curou “examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas [...], a fim de efetivar o direito à memó-ria e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional (BRASIL, 2011, p.1). Nesse sentido, a produção poética em questão pode ser inserida também no conjunto de discursos considerados como literatura de testemunho e pode auxiliar na compreensão da história brasileira recente.

O pesquisador interessado no tema, que conta com trabalhos de referência sobre certas tendências da produção contemporânea, terá de remar contra a corrente ao estudar a poesia de resistência devido à falta de fortuna crítica, como aponta recente trabalho:

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A predominância de uma política de esquecimento tem marcado o fim de regimes autoritários como o que se instalou no Brasil de 1964 a 1985. Na realidade, o que se observa com o fim da ditadura militar, é a presença de uma espécie de amnésia social que implica o apa-gamento de experiências que, ao serem mantidas nos bastidores, tornam possível um certo controle sobre a forma como se interpreta esse período, permitindo a su-pressão de facetas da ditadura consideradas mais com-prometedoras (BEZERRA, 2005, p. 231).

Assim, podemos afirmar que, na fortuna crítica consultada, há um apagamento da referida produção, o qual se dá de três maneiras. A primeira é não reconhecer a poesia política enquanto objeto de estudo principal, mas a reboque de outras; para tanto, a crítica costuma inseri-la em outras tendências, sobretudo na poesia marginal. Por razões de risco à própria vida, compreendo o medo, duran-te o regime autoritário de se ler, divulgar, publicar, vender, ou mesmo debater sobre essa produção. Todavia, esse medo hoje não teria mais razão de ser entre os pesquisa-dores. Em tese, pois no lugar do medo de outrora adentra o apagamento, via tradição cultural brasileira de evitar o confronto com seus traumas coletivos.

O segundo modo de apagamento é comprimi-la temporalmente entre o final dos anos 60 e meados dos anos 70, em uma espécie de confinamento, restringindo-a entre o Golpe de Estado e meados dos anos 70, isto é, até o governo Médici. A drástica compressão cronológica reduz vinte e um anos de ditadura a apenas uma década de produção poética e delega à poesia de combate um papel de figurante, sempre em conexão com a poesia marginal. Quanto a esse ponto, é necessário frisar que a recorrente associação da poesia de resistência aos anos 70 à poesia marginal não se sustenta, pois se trata de linhas de força que embora, por vezes, dialo-guem, também, por vezes, se afastam drasticamente. Assim, transforma-se uma produção específica em um apêndice, em uma variante restrita no tempo e no espaço de uma linha poé-tica do campo literário brasileiro bem mais vasta e complexa.

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No entanto, passadas mais de duas décadas do final da ditadura, o referido procedimento de fusão e com-pressão corre à larga, sem observar que, apesar da censura, foram publicados livros de poesia, muitos deles escritos com explícito intento autoral de combate ao regime, por exemplo, Inventário de cicatrizes, de Alex Polari (1978) ou motivados pelo exílio, conforme relata Ferreira Gullar (1998) em suas memórias acerca de seu Poema sujo (1976).

Além disso, as ações dos ditos escritores margi-nais (criação de revistas alternativas, formação de grupos literários, happenings, mostras de poesia, performances, publicações artesanais, saraus, etc.) não têm na crítica à ditadura seu mote exclusivo, mas à cultura conservadora, às modas (incluídas as literárias), à situação social e eco-nômica do país, às vanguardas, dentre outras questões, estudadas a fundo conforme aponta a generosa fortuna crítica dedicada aos poetas da primeira metade dos anos 70, localizados sobretudo na cidade do Rio de Janeiro.

Uma terceira maneira de se excluir a poesia de resistência dos debates é a afirmação generalizante de que esses textos estariam datados devido a seu cará-ter documental, como faz precocemente Armando Frei-tas Filho em ensaio de 1979, republicado em 2005. Na ocasião, ele toma como exemplo de literatura datada a poesia política feita pelo CPC no início dos anos 60, afir-mação bastante plausível, mas que não deve ser tomada como regra geral para se pensar a poesia de resistência pelos motivos indicados acima, já que esta é complexa e não se restringe a apenas uma década e a uma linha de representação da história.

A generalização do poeta-crítico é frágil, pois, ao final do mesmo ensaio em que trata da poesia dos anos 70, ele chama a atenção para a existência de obras de alta qualidade da “poesia de engajamento social” (2005, p.196-203) produzida por nomes incluídos no presente trabalho como Alex Polari e Ferreira Gullar, além de outros escritores de tendências diversas, mas que resistem sem cair no apelo fácil do texto de ocasião.

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As próprias condições de risco instauradas com o Golpe de Estado levaram os poetas a produzir e distribuir seus textos por caminhos bem diversos, quando não opos-tos, ao modus operandi das editoras. No lugar do circuito autor-editora-livraria-público, os livros chegaram ao público em brochuras caseiras, mimeografadas ou feitas em gráfi-cas amadoras. Quando publicados por pequenas editoras, esbarraram no problema da distribuição e no risco de se vender tal material em plena censura.

A poesia de resistência nasce e se desenvolve fora dos circuitos literários de debate, divulgação e leitu-ra, conhecidos social e juridicamente, tais como editoras, eventos científicos, exposições, jornais e revistas. Trata-se de poetas desconhecidos, que não se filiam ou não se de-clararam pública ou privadamente filiados a nenhum movi-mento ou tendência literária.

O caráter dinâmico da poesia de resistência permi-te-me afirmar que não se constitui nos moldes tradicionais em um fenômeno circunscrito à corrente, ao movimento ou à tendência. Ao mesmo tempo, aparece em todos eles e em outros movimentos desconhecidos dos debates acadêmicos, como a geração 60 do Ceará (LYRA, 1995). Além disso, há outro aspecto interessante. A poesia política circulou durante a ditadura à margem do sistema oficial devido à persistência de artistas, intelectuais, leitores, militantes de esquerda (exi-lados ou não), pequenos editores, professores etc.

A publicação e distribuição precárias tornam-se atu-almente um dado complicador quanto à obtenção dos livros e outros suportes de divulgação dos poemas tais como fan-zines, jornais de cultura, revistas alternativas, todos de bre-víssima existência. Nitidamente tal característica deve-se às condições de repressão, traduzida em risco a seus autores:

O caráter camuflado, disperso e inconstante dessa pro-dução, auxiliou os poetas a sobreviverem de maneira literal e espiritual ao regime autoritário; no entanto, e, contraditoriamente, em tempos democráticos, “a poesia e a música engajadas de resistência ao regime consti-

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tuem um patrimônio mnemônico que, ao menos no Bra-sil, foi despido da sua carga política inicial (SELIGMANN--SILVA, 2003, p. 84).

Apesar da reabertura política a partir de 1985, a poe-sia de resistência não tem sido objeto de interesse das grandes e médias editoras, seja, talvez, pelo baixo apelo mercadológico do assunto, seja pela prática de apagamento dos traumas co-letivos que caracteriza tão fortemente a cultura brasileira.

Em um ambiente editorial gerido pelo lucro, torna--se difícil para o público conhecer essa produção poética, uma vez que ela não tem apelo comercial. Desse modo, sem reedições impressas ou virtuais de tais livros, a me-mória da poesia política brasileira permanecerá ignorada pelas atuais e futuras gerações de leitores. Enquanto o pro-cesso de elaboração do trauma da ditadura não se realiza em termos coletivos, seu silêncio permanece a espalhar-se por diversos setores da nossa vida social, dos quais a lite-ratura é um exemplo gritante. O esvaziamento dessa litera-tura de testemunho se apresenta bastante “coerente” com o “apagamento de rastros”, característica fundamental da cultura brasileira em relação a seus impasses históricos, conforme indica Francisco Foot Hardman (1998). Ao pes-quisador, cabe aqui, ao menos diminuir esse hiato por meio da análise dessa produção política de forte cunho testemu-nhal, tema do primeiro capítulo do livro.

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1. O TESTEMUNHO: BREVES DEFINIÇÕES

O estudo das relações entre literatura e testemu-nho exige de seu responsável uma noção de ética e com-promisso político não apenas com o futuro, como alertava Theodor Adorno (1995) em Educação e emancipação:

A pergunta ‘O que significa elaborar o passado’ requer esclarecimentos. Ela foi formulada a partir de um cha-vão que ultimamente se tornou bastante suspeito. Nesta formulação, a elaboração do passado não significa ela-borá-lo a sério, rompendo seu encanto por meio de uma consciência clara. Mas o que se pretende, ao contrário, é encerrar a questão do passado, se possível inclusive riscando-o da memória. O gesto de tudo esquecer e per-doar, privativo de quem sofreu a injustiça, acaba advin-do dos partidários daqueles que praticaram a injustiça. Certa feita, num debate científico, escrevi que em casa de carrasco não se deve lembrar a forca para não pro-vocar ressentimento. Porém a tendência de relacionar a recusa da culpa, seja ela inconsciente ou nem tão in-consciente assim, de maneira tão absurda com a ideia

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da elaboração do passado, é motivo suficiente para pro-vocar considerações relativas a um plano que ainda hoje provoca tanto horror que vacilamos até em nomeá-lo.O desejo de libertar-se do passado justifica-se: não é possível viver à sua sombra e o terror não tem fim quan-do culpa e violência precisam ser pagas com culpa e violência; e não se justifica porque o passado de que se quer escapar ainda permanece muito vivo (p. 29).

Na linha da tensão notada pelo filósofo, é impor-

tante destacar que o testemunho, em termos discursivos, articula-se por elementos presentes em diversos gêneros textuais, “literários” ou “não-literários”, tais como autobio-grafia, cartas, conto, entrevista, memórias, romance etc. Dessa amplidão, o resultado mais evidente é uma enorme gama de modos de narrar ou, melhor, de tentar narrar o indizível produzido pelo horror da violência. Suas caracte-rísticas particulares e sua forma apresentam-se de maneira plural. Por esse motivo, a literatura de testemunho se mos-tra de difícil conceituação.

O testemunho é um discurso que coloca em dúvi-da tal relação entre fato histórico e representação, pois sua matéria não provém da pauta política e literária oficial, mas do interdito, por exemplo, o:

sobrevivente de Auschwitz que havia querido encontrar sua solução final deixando-se morrer com os outros na câmara de gás e que foi constrangido pelas vítimas a sobreviver para realizar-lhes o último desejo: era preciso uma testemunha e um testemunho, um lugar psíquico onde isto possa se inscrever. Era preciso que o martírio fosse conhecido, que o horror fosse patrimônio da memó-ria coletiva e da herança cultural (VIÑAR, 1992, p. 98).

Quem testemunha a experiência de tortura cria um discurso sobre questões que não são pertinentes ape-nas aos impactos da violência física e psicológica por ele sofridas; sua fala diz respeito a todos, por isso, o sistema

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canônico texto/contexto/recepção entra em crise, pois os lugares de enunciação e de escuta tradicionais foram violentamente impactados, lugares estes que formavam a identidade daquela pessoa, isto é, seus laços afetivos, suas raízes, antes de ela se tornar um sobrevivente.

Por conseguinte, a agora testemunha se encontra sem referências pretéritas de mundo para narrar, ao contrá-rio do autor, que, ciente de sua trajetória e lugar no mundo, pode dali ter condições de escrever, portanto, de criar:

De uma parte, o [discurso] político convoca a cidade, a cena pública e o combate. É o sujeito plural, coletivo, quem determina e regra o comportamento individual. O terror, ao contrário, releva sempre do íntimo, do incon-fessável, e encontra-se, pois, por definição, distanciado da cena social (VIÑAR, 1992, p. 97).

O sobrevivente não dispõe dos mesmos lugares de referência que os demais, pois, segundo o psicanalista uruguaio, ele foi “demolido”. Daí os desafios da psicanálise em lidar com o testemunho, uma vez que seu discurso es-capa a seu quadro teórico e conceitual, construído em torno de outros referentes. Tal dado contrasta com a testemunha, a qual fala de um lugar de enorme violência e destruição de si e do social a ponto de seu mundo pregresso tornar-se estranho a si mesma:

O terror político age sobre uma subjetividade adquirida. O que ele coloca em jogo são as raízes do laço social, ali onde um primeiro voto de onipotência quis – como o as-sinalam Nancy e Lacoue-Labarthe – que o primeiro outro fosse um outro morto ou excluído. O terror político atinge o laço social antes que o “eu”; os outros que me cons-tituem estão em primeiro plano (VIÑAR, 1992, p. 105).

O testemunho é um desafio para os estudos literá-rios. Sendo assim, proponho duas questões: como abordá--lo? É possível estudá-lo nos termos da crítica tradicional?

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A ambas as perguntas, a resposta mais sensata é ‘não’, uma vez que a epistemologia consagrada dos estudos li-terários não toma o testemunho, sob suas diversas faces, como objeto “estético” merecedor de avaliação. Ao mesmo tempo, o testemunho vale-se de uma amálgama de gêneros tanto literários como não literários que cria outra esfera de enunciação, singular e tensa no tocante aos valores canô-nicos totalizantes, afinal “das generalizações se ocupam os grandes gêneros literários - como o romance, por exemplo (e, particularmente, o romance histórico) - aos quais foi atribuído um certo valor literário canonizado e legitimado.” (RANDALL apud ALÓS, 2008)

Se seguíssemos o raciocínio estabelecido, o tes-temunho seria exclusivamente de outras áreas como a his-tória, psicologia, sociologia etc. Porém, trabalhos recentes mostram que o testemunho pode ser objeto de pesquisas nesse campo. Outra conclusão da tensão e relutância em aceitar o testemunho diz respeito à necessidade de reava-liar a epistemologia da teoria da literatura. Em outras pala-vras, o problema não são os objetos de pesquisa, mas os olhares de quem os investiga. O caminho é revisar noções consolidadas e trabalhar a partir e com problemas trazidos pelo testemunho.

Seria interessante partir de algumas definições, ainda que ligadas exclusivamente ao testemunho narrativo. A primeira, de Mabel Moraña (1995):

Documentalismo, ‘oral history’, ficción documental, tes-timonio/testimonialismo, novela-testimonio, literatura de resistencia, “novela-verdad” son todos términos que introducen a distintos aspectos relacionados con un mis-mo fenómeno general: El entrecruzamiento de narrativa e historia, la alianza de ficción y realidad, la voluntad, en fin, de canalizar una denuncia, dar a conocer o mante-ner viva la memoria de hechos significativos, protagoni-zados en general por actores sociales pertenecientes a sectores subalternos, cuya peripecia pasa a la literatura ya sea como directo testimonio de parte, ya sea a través de la mediación de un escritor que releva esa historia.

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En este sentido, la literatura testimonial es en general li-teratura de resistencia, ya que expone una problemática social específica, e muchos casos vinculada a luchas por la liberación nacional o el amplio tema de la marginali-dad, que adquiere, principalmente a partir de los años ochenta, gran notoriedad en las letras latinoamericanas. En este sentido, la literatura testimonial tiende a echar luz sobre las contradicciones del sistema imperante, a revelarse contra el statu quo o a solidarizarse con reivin-dicaciones o luchas populares que cuestionan El ‘orden’ de sociedades autoritarias, discriminatorias y excluyen-tes (p. 488).

A segunda definição de testemunho, de Márcio Seligmann-Silva (2003), guarda pontos de contato com a anterior e apoia a noção da poesia de resistência à ditadura civil-militar como uma produção atravessada também por tais questões:

Literatura de testemunho é um conceito que, nos últi-mos anos, tem feito com que muitos teóricos revejam a relação entre a literatura e a ‘realidade’. O conceito de testemunho desloca o ‘real’ para uma área de som-bra: testemunha-se, via de regra, algo de excepcional e que exige um relato. Esse relato não é só jornalístico, reportagem, mas é marcado também pelo elemento singular do ‘real’. Em um extremo dessa modalidade testemunhal encontra-se a figura do mártir – no senti-do de alguém que sofre uma ofensa que pode significar a morte −, termo que vem do grego mártur e significa testemunha ou sobrevivente (como o superstes latino). Devemos, no entanto, por um lado manter um conceito aberto da noção de testemunha: não só aquele que vi-veu um ‘martírio’ pode testemunhar; a literatura sempre tem um teor testemunhal. E, por outro, o ‘real’ é – em certo sentido, e sem incorrer em qualquer modalidade de relativismo – sempre traumático. Pensar sobre a lite-ratura de testemunho implica repensar nossa visão da História – do fato histórico. [...]Aquele que testemunha se relaciona de um modo excep-

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cional com a linguagem: ele desfaz os lacres da lingua-gem que tentavam encobrir o ‘indizível’ que a sustenta. A linguagem é antes de mais nada o traço – substituto e nunca perfeito e satisfatório – de uma falta, de uma ausência (p. 47-8).

Na crítica brasileira recente, a face histórica da poesia, ou seja, sua percepção como testemunho, aparece em recente artigo de Wilberth Salgueiro (2010):

Nos estudos, cada vez mais numerosos, que se destinam a investigar as relações entre ‘testemunho e literatura no Brasil’, é nítida a escassez de pesquisas que relacionam ‘testemunho e poesia’. Num dos mais importantes livros, no Brasil, sobre o assunto – História, memória, literatura � o Testemunho na Era das Catástrofes (SELIGMANN-SIL-VA, 2003), nenhum dos dezoito textos aborda a poesia brasileira (há, aqui e ali, alusões à poesia de Paul Ce-lan, já um cânone quando se fala em testemunho; e o excelente artigo “As ‘crianças’ de Alterman”, de Nancy Rozenchan). Os motivos desta flagrante ausência se ex-plicam basicamente por dois fatores: 1) a força da nar-rativa brasileira (autobiográfica ou não) de testemunho, que, sobretudo via alegoria, perscrutou as entranhas das máquinas de poder e extermínio de nosso governo ditatorial (DALCASTAGNÈ, 1996); 2) a peculiaridade do discurso lírico, que, altamente subjetivo, iria de encontro ao pressuposto básico do testemunho, ou seja, o grau de cumplicidade entre (a) aquele que fala – a testemunha e/ou sobrevivente; (b) aquilo de que se fala – a violência, a catástrofe, o evento-limite; e (c) a coletividade repre-sentada – vítimas e oprimidos (p. 128-9).

Salgueiro (2010) mostra a pouca atenção da poe-sia testemunhal dada pela crítica, fato que contrasta com o forte vínculo da poesia brasileira com o testemunho, traço também percebido durante a presente pesquisa. A poesia de resistência é um fenômeno presente, por modos e graus diversos, em todas as principais tendências, movimentos,

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linhas, grupos, gerações; ela adentra e demarca território também na obra de concretos, neoconcretos, marginais, práxis, anônimos, militantes, presos políticos, exilados etc.

No entanto, essa presença tem diferenças e nu-ances que dizem respeito aos modos de produção, às moti-vações, percalços e riscos de sua circulação, tanto para os autores quanto para os leitores. Questões vistas brevemen-te no próximo item.

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1.2. ASPECTOS GERAIS DA POESIA DE RESISTÊNCIA À DITADURA

Exposto brevemente o lugar histórico da literatura de testemunho, passo agora a tratar de algumas caracterís-ticas do corpus de pesquisa. Os poemas do corpus foram escritos por:

a) poetas atualmente consagrados: escritores já conhecidos da crítica e/ou do público nas décadas de 60, 70 e 80 e que hoje são reconhecidos como tais dentro do campo literário (acadêmico e geral);

b) poetas em formação à época da ditadura: escri-tores em início de carreira nas décadas de 60, 70 e 80, que tiveram sua obra reconhecida posteriormente pela crítica e/ou pelo público;

c) poetas testemunhais à época ou após a di-tadura: militantes de esquerda que escreveram poemas sobre sua experiência política. A essa produção, não reco-nhecida pela crítica e/ou pelo público, denomino “poesia de testemunho”.

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Quando nos debruçamos hoje sobre a produção dos poetas atualmente consagrados (a), como os concre-tistas, neoconcretistas e marginais ou poetas em formação (b), por exemplo, observa-se que raros são os poemas de resistência dentro do conjunto abundante de suas obras. Como exemplo, cito Francisco Alvim, José Paulo Paes e Paulo Leminski, autores de poemas críticos à ditadura, ao status quo, à tortura, à violência, etc. É importante alertar que a aparente “escassez” de engajamento desses e outros poetas consagrados não visa a uma avaliação negativa ou patrulha ideológica. Mas tão somente indicar que poetas testemunhais (c) escreveram, quantitativamente, mais do que poetas em formação e/ou poetas consagrados.

Passemos a outro dado importante observado du-rante o levantamento do material. A poesia de resistência também foi produzida fora dos circuitos literários de divul-gação, debate, leitura, como jornais e revistas de grande tiragem, editoras de peso, eventos científicos e pesquisas.

O caráter dinâmico da poesia de resistência per-mite afirmar que ela não se constitui nos moldes tradicio-nais, circunscrita a um grupo, movimento ou tendência. Essa singularidade nasce do contexto de produção:

O caráter camuflado, disperso e inconstante dessa pro-dução, auxiliou os poetas a sobreviverem de maneira literal e espiritual ao regime autoritário; no entanto, e, contraditoriamente, em tempos democráticos, a poesia e a música engajadas de resistência ao regime consti-tuem um patrimônio mnemônico que, ao menos no Bra-sil, foi despido da sua carga política inicial (SELIGMANN--SILVA, 2003, p. 84).

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2. ANÁLISE DOS POEMAS DE RESISTÊNCIA

Durante a formação do corpus, chamou-me a atenção posicionamentos recorrentes por parte das vozes poéticas quanto a seus assuntos. Assim, um grande nú-mero de textos, por exemplo, estão construídos sob forte perspectiva irônica. Outros poemas tratam dos corpos, ou-tros se apresentam como manifesto. Por isso, decidi, por pura razão didática, reunir, para o presente livro, os poemas em quatro grupos conforme a perspectiva adotada por seu enunciador, a saber: 1) Impactos e impasses 2) Corpos; 3) Ironia e 4) Poemas-manifesto. Selecionei um total de 27 po-emas para o corpus. Porém, devido às dimensões do pre-sente livro, selecionei 11 poemas para discussão, retirados dos quatro grupos. O(a) leitor(a) poderá consultar os títulos dos referidos poemas ao final da publicação. Os poemas estão divididos os quatro grupos supracitados.

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GRUPO 1) IMPACTOS E IMPASSES

O primeiro grupo de poemas caracteriza-se pela tematização de impasses e impactos da ditadura sobre a vida cultural, política e social: “Marinha” (1974), de Ruy Es-pinheira Filho; “Receita” (1978), de Nicolas Behr; “Agosto 1964” (1975), de Ferreira Gullar e “Carnaval 74” (1982), de Rogério Duarte. Os poemas assumem, em primeiro pla-no, a possibilidade ou, mais provável, a impossibilidade de pensar em projetos pessoais ou coletivos devido à ditadura. Em alguns poemas, caberia até se falar em fantasmagoria devido à força com que o autoritarismo assombra a voz po-ética. Passo ao primeiro poema:

MARINHA

Meus olhos testemunham a invisibilidade das ondinas, a lenta morte dos arrecifes e os canhões de Amaralina.

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Vou, a passo gnominado, pisando a areia fina da praia. Pombas sobrevoam os canhões de Amaralina.Parece a vida estar completa na paz que o azul ensina. A brisa ilude a vigilância dos canhões de Amaralina. Nem tua ausência, amor, perturba esta alegria matutina onde só há o claro e o suave... (E os canhões de Amaralina?).Tudo está certo: mar, coqueiros, aquela nuvem pequenina... Mas — o que querem na paisagem os canhões de Amaralina? (FILHO, 1998, p.17)

Semelhante a outros textos de seu primeiro livro, intitulado Heléboro (1974), o poema “Marinha”, de Ruy Es-pinheira Filho, caracteriza-se por uma estrofação predomi-nantemente homogênea (quatro quartetos, um quinteto). Junte-se a tal característica a predominância de versos longos, com um par de rimas em todas as estrofes; desse modo, “Marinha” é composto de uma estrutura tradicional de seu material linguístico. Com seu ritmo controlado, o po-ema nos conduz cadenciadamente para seu final, quando se dá o ponto mais alto de tensão provinda de um jogo sutil e sereno entre duas forças. Sutileza e serenidade notadas por Junqueira (1991), como marcas importantes nos dois primeiros livros de Filho:

Trabalhando outra vez de preferência o metro curto, mais uma vez nos dá o poeta uma lição magistral de como conter e aguçar o seu discurso, cujo ritmo jamais se esgarça ou tropeça. Também sua linguagem (não raro

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metalinguagem) revela invulgar apuro formal, além de uma intermitente floração criadora. O autor desenvolve um estilo de extrema sobriedade e eficácia, o que não lhe expurga do verso nem o ludismo, nem a modulação cromática (p. 75).

A análise procura dar ênfase ao jogo tenso en-tre natureza e história que perpassa todo o poema “Mari-nha”. Segundo essa hipótese, os canhões (perturbadores à paisagem tropical) criam no eu lírico uma fantasmagoria do repressivo contexto de produção em que o poema se situa; ao mesmo tempo eles instauram um contraponto crítico às interpretações conciliadoras da violenta história brasileira justamente por meio de um símbolo ufanista: a natureza paradisíaca concretizada pela ensolarada praia de Amaralina.

A atitude discreta e reflexiva do eu lírico, que evita entregar-se à sedutora natureza, e aponta, por meio dos ca-nhões, algo mal resolvido naquele ambiente aparentemente tão belo, lembra uma ideia central no pensamento de Theo-dor Adorno (1998) sobre as relações da arte com a história:

Os estratos fundamentais que motivam a arte aparen-tam-se com o mundo objetivo, perante o qual retroce-dem. Os antagonismos não resolvidos da realidade re-tornam às obras de arte como os problemas imanentes de sua forma. É isto, e não a trama dos momentos ob-jetivos que define a relação da arte à sociedade (p. 16).

Suas cinco estrofes causam no leitor um estra-nhamento pelo ritmo andante a contrastar com o desen-rolar de seu conteúdo que, pouco a pouco, caminha para um impasse. Ainda ligado a esse arreio ao discurso, outro ponto que chama a atenção é o fato de que embora a praia, tópico bastante desgastado na poesia brasileira, seja o es-paço por excelência do poema “Marinha”, o eu lírico evita o emprego de hipérboles comuns a esse locus.

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Essa recusa em inflar a enunciação força o leitor a rever com semelhante calma, sem apelos sentimentais neo-românticos, que tanto marcaram a poesia dos anos 70 no Brasil. Nesse sentido, a decantada praia ensolarada se apresenta aos olhos do eu lírico, o qual por ela caminha, admirando um quadro de (aparente) perfeição. As imagens gastas do locus tropical (“mar, coqueiros/aquela nuvem pequenina...”) constituem, em uma primeira leitura, um ambiente tranquilo, rompido mais fortemente apenas pe-las duas interrogações sobre os canhões de Amaralina nas duas estrofes finais.

Dessa maneira, a sensação inicial é de que aque-les objetos são estranhos à paisagem, pois todo o conjunto lexical restante constitui um campo semântico pertencente à praia de Amaralina, situada na cidade de Salvador. Por-tanto, o discurso tende a qualificar a praia como um lugar aprazível, a ponto de criar, nas três primeiras estrofes, um efeito quase de suspensão da passagem do tempo devido à composição paradisíaca daquele ambiente iluminado pelo sol a brilhar forte naquela manhã praticamente despida de nuvens. Assim, da primeira à terceira estrofe há uma pre-dominância de uma natureza atraente, sedutora, que, por pouco, não provoca em seu admirador uma experiência de plenitude, como ele mesmo afirma na terceira estrofe: “Parece a vida estar completa/na paz que o azul ensina” (FILHO, 1998, p. 17).

Desse modo, o intenso prazer provocado pela natura leva o eu lírico a ironizar sutilmente a herança ro-mântica na poesia brasileira moderna, quando revela que as sensações ali experimentadas são capazes ensiná-lo a não sofrer nem mesmo pela falta da amada: “Nem tua au-sência, amor, perturba/Esta alegria matutina/Onde só há o claro e o suave.../(E os canhões de Amaralina?)”

Há ainda outra ironia advinda da ambiguidade presente na palavra “falta”, pois não sabemos se a amada ausente não está ali na praia por um acaso ou se ambos já não estão mais juntos no plano afetivo. Porém, outra leitura indica que os versos do quadro idílico dividem espaço com

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os canhões da primeira à ultima estrofe, sempre situados após imagens edênicas; desse modo, toda estrofe começa pela sedução da natureza e termina pelo contraponto dos canhões que, militarmente, encerram cada uma das cinco estrofes. A justaposição de objetos artificiais aos objetos naturais em cada estrofe (ou seja, de um lado componentes da “alegria matutina”, de outro, instrumentos de guerra) de-sestabiliza e impede a plenitude do momento pelo eu lírico.

Diante da presença dos canhões, desvio a aten-ção nas imagens praieiras e solares e percebo que, de fato, a vida não está completa, mas “parece estar completa”. Sendo assim, não é à toa que esse verso, também sutilmen-te composto de um verbo corriqueiro, aparece exatamente na metade do poema, isto é, na terceira estrofe, indicando a impossível comunhão com a natureza, pois entre a voz que “narra” aquela manhã e o quadro narrado há fragmentos da história no meio do caminho. A sedução da praia come-ça a dividir espaço com a fantasmagoria provocada pelos canhões, que vão tomando vulto por meio de uma gradação crescente estrofe a estrofe.

Essa gradação ocorre por meio de um movimento sutil, mas constante na importância dos canhões ao longo do poema. No plano estrutural, a força dos canhões aumen-ta pari passu à mudança de função sintática nas frases. As armas deixam de ser observadas e passam a sujeitos de sua vontade, ao mesmo tempo em que a natureza vai forçosa-mente tendo de ceder espaço e força a seus concorrentes.

Analisemos brevemente a gradação por meio da imagem dos canhões. Na primeira estrofe, eles aparecem na frase como objeto direto do verbo “testemunhar”:

Meus olhos testemunham (sujeito)a invisibilidade das ondinas, [...]e os canhões de Amaralina. (objeto direto)

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Na segunda estrofe, os canhões exercem a mes-ma função de complemento verbal, porém provocam certa precaução (ou seria medo, receio?) nas pombas, que são o sujeito da frase:

Vou, a passo gnominado, pisando a areia fina da praia. Pombas sobrevoam (sujeito) os canhões de Amaralina. (objeto direto)

Na terceira estrofe, na emblemática estrofe que assume a impossibilidade de comunhão com a natureza (posto que a vida parece, mas não está completa), a função de complemento verbal continua, porém há uma nova mu-dança no poder simbólico e fantasmagórico destas armas a ponto de a própria natureza se valer de astúcias para fugir ao controle exercido pela “vigilância” dos canhões, que, em-bora complementos verbais, já se apresentam vivíssimos a ponto de exigirem da brisa o emprego de artimanha para que não seja notada por eles:

Parece a vida estar completana paz que o azul ensina.A brisa ilude (sujeito)A vigilância dos canhões [de Amaralina. (objeto direto)

Frente ao incremento do poder dos canhões, as for-

ças da natureza não conseguem apagar os traumas da his-tória. No lugar da natureza desfrutável, a melancólica consci-ência do eu lírico ganha enorme peso sobre a história e seus impasses. Estabelece-se, assim, um indissociável diálogo no poema: de um lado, a natureza, capaz de encantar, seduzir, provocar deleite por alguns momentos; de outro lado, no en-tanto, continuam vivos os problemas históricos do autoritaris-mo brasileiro. Como dizia Drummond (1973) em “Cemitério

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de bolso” sobre nossos traumas: “Do lado esquerdo carrego meus mortos,/Por isso caminho um pouco de banda” (p. 282).

Na quarta estrofe, definitivamente os canhões saem dos bastidores e se tornam também protagonistas. No plano sintático, deixam de ser complemento verbal e passam à função de sujeito. É curioso notar que, nesta pe-núltima estrofe, a frase está travada pelos parênteses, o que não deixa margens para o preenchimento das posições anteriores ou anteriores do ponto de vista sintático:

Nem tua ausência, amor, perturba esta alegria matutinaonde só há o claro e o suave...(E os canhões de Amaralina?) (sujeito)

Notemos que o efeito causado pelos parênteses é

uma brusca pausa do discurso vinda logo após as reticên-cias do efeito sinestésico do “claro e do suave”. Suavidade essa rompida bruscamente pela parede formada pelo sinal gráfico do verso seguinte e da pergunta súbita, com seu início oralizado pela conjunção “e”, que não liga o terceiro verso ao último, mas aos canhões da última estrofe. A for-tíssima interrupção no ritmo sereno e controlado do poema instaura um corte definitivo nas pretensas totalizações ou idealizações que a praia e seus componentes idílicos pode-riam promover sobre o eu lírico.

Na última estrofe, o eu lírico faz um apanhado dos elementos naturais que lhe causam um efeito ducile, mas sempre incompleto, naquele cenário de “alegria matutina”. De maneira explicitamente consciente, a voz poética joga com algumas das peças apresentadas ao longo das estrofes ante-riores, reafirmando a beleza da praia: “Tudo está certo: mar coqueiros,/aquela nuvem pequenina...” (FILHO, 1998, p. 17).

Porém, já é tarde; o jogo literalmente se inverteu, pois os canhões assumem funções sintáticas de sujeito, de comando, de ação, bem como passam a causar incertezas no eu lírico e nos leitores. Tanto assim que o poema, todo

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cadenciado, termina com uma conjunção adversativa se-guida de um violento travessão que impõe outra pausa em seu ritmo, pausa esta mais brusca ainda do que os parênte-ses da estrofe anterior: “Mas — o que querem na paisagem/os canhões de Amaralina?” (FILHO, 1998, p. 17).

No poema “Marinha”, instaura-se ao final de sua leitura uma forte tensão advinda da condição melancólica e reflexiva do eu lírico, pois o contraste entre a beleza da praia, tradicional locus tropical de nossa literatura, e a incô-moda presença dos canhões de Amaralina, indica que a voz poética resiste a apagar da memória os objetos traumáticos da história brasileira antes, durante e após 64.

Em outras palavras, a presença dos canhões, so-bretudo em um poema com uma bela praia como espaço, causa estranheza no leitor ao não seguir o estabelecido movimento de apagamento de rastros traumáticos, do silen-ciamento de impasses, como é o caso do autoritarismo que marca o contexto de produção do poema (em plena ditadura) e da própria formação da sociedade brasileira. Interessante notar também que “Marinha” permanece a dialogar com o tempo presente, pois seu autor não incorreu na fixação de marcas contextuais, evitando assim sua datação. Pelo con-trário, sua configuração é a sutileza. A composição do quadro tropical e a presença contínua dos canhões de Amaralina le-vam o eu lírico a um impasse, pois não é possível fruir com monumentos de cultura (e de barbárie) no ambiente.

Outro ponto expressivo do poema aparece na perspectiva do eu lírico frente à natureza e à história, uma vez que sua reflexão (composta de narração, descrição, com duas interrogações finais) não é maniqueísta ou restrita ao período de produção do poema, posto que os impasses his-tóricos simbolizados nos vigilantes canhões de Amaralina não se iniciaram com o golpe de 64, não findaram com a abertura democrática, e permanecem em aberto.

Assim, o poema instaura a melancolia no lugar da fruição dos estímulos sonoros, táteis e visuais. O objeto de desejo não será alcançado ou superado, pois a história bra-sileira, simbolizada e concretizada pelo ferro dos canhões,

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que custa a se desgastar e desaparecer entre discursos totalizantes, não permite vitoriosos sem sujeitos melancó-licos que vão à praia lembrar o que a “maresia” (a história oficial?) parece não consegue apagar.

O próximo poema do primeiro grupo é “Receita”, de Nicolas Behr, publicado em Caroço de goiaba (1978):

Ingredientes:

2 conflitos de gerações 4 esperanças perdidas 3 litros de sangue fervido 5 sonhos eróticos 2 canções dos beatles

Modo de preparar:

dissolva os sonhos eróticos nos dois litros de sangue fervido e deixe gelar seu coração

leve a mistura ao fogo adicionando dois conflitos de gerações às esperanças perdidas

corte tudo em pedacinhos e repita com as canções dos beatles o mesmo processo usado com os sonhos eróticos mas desta vez deixe ferver um pouco mais e mexa até dissolver

parte do sangue pode ser substituído por suco de groselha mas os resultados não serão os mesmos

sirva o poema simples ou com ilusões (BEHR, 1978)

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“Receita” faz um balanço precoce dos impasses e impactos da ditadura sobre a juventude da época. O eu lírico fala de sua “formação” e de seus pares, também dentro do circuito fechado daquele contexto, mas se vale de uma estratégia diferente em termos discursivos. No lugar do jorro de imagens e sensações, angústias e me-lancolias, distancia-se e dá seu testemunho por meio de um olhar sereno, analítico, diante da história brasileira recente: “2 conflitos de gerações/4 esperanças perdidas/ 3 litros de sangue fervido/ 5 sonhos eróticos/2canções dos Beatles”.

“Receita” mostra uma avaliação assertiva sobre o impacto do autoritarismo sobre sua geração. Afinal, a mudança de um ingrediente tem consequências diversas da receita original: “parte do sangue pode ser substituí-do/por suco de groselha/mas os resultados não serão os mesmos.//sirva o poema simples ou com ilusões.”

A adversativa que abre o penúltimo verso do poema propõe uma inflexão sobre a história recente do país, já que a mudança de perspectiva, ou seja, do olhar sobre o tempo, trará resultados diversos, assim como a própria receita ofertada joga com a possibilidade de ava-liar sob prismas variados a vida social: “corte tudo em pe-dacinhos/e repita com as canções dos Beatles/ o mesmo processo usado com os sonhos/ eróticos mas desta vez deixe ferver um/pouco mais e mexa até dissolver”.

A conclusão do poema dá prosseguimento à ava-liação histórica que o texto perfaz desde o primeiro verso. Além disso, reitera que ele pode servir também como um medium discursivo para tratar da história. Nesse sentido, o verso final transforma “Receita” em um mosaico que pode ser infinitamente organizado, pois se os ingredientes po-dem ser diversos, as quantidades e os modos de preparo também se mostram flexíveis. Depende de qual linha o po-eta irá se valer: da poesia política (“o poema simples”) ou da tradição romântica (“o poema com ilusões”). A estraté-gia do jogo do eu lírico perante os impasses e impactos da ditadura abre uma linha de reflexão bastante interessante

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para se compreender mais algumas funções e traços que caracterizam a poesia de resistência.

“Marinha” (1974), de Ruy Espinheira Filho e “Re-ceita”, de Nicolas Behr (1978), tratam, sob configurações diversas, dos impactos e impasses causados pela ditadura, elemento comum em termos temático e, principalmente, em relação ao posicionamento do eu lírico no tocante aos meios de resistência presentes em cada texto. Porém, outro motivo, além dos já citados impactos e impasses, dinamiza os poemas do grupo 1: a tentativa de avaliação, crítica, auto-crítica e elaboração de seu tempo histórico. Creio que essa reflexão se faça mais intensa em “Agosto 1964”, de Ferreira Gullar, publicado no livro Dentro da noite veloz (1975):

AGOSTO 1964

Entre lojas de flores e de sapatos, bares, mercados, butiques,viajo num ônibus Estrada de Ferro-Leblon. Volto do trabalho, a noite em meio, fatigado de mentiras.

O ônibus sacoleja. Adeus, Rimbaud,relógio de lilases, concretismo,neoconcretismo, ficções da juventude, adeus, que a vida eu a compro à vista aos donos do mundo. Ao peso dos impostos, o verso sufoca,a poesia agora responde a inquérito policial--militar.

Digo adeus à ilusãomas não ao mundo. Mas não à vida,meu reduto e meu reino. Do salário injusto,

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da punição injusta, da humilhação, da tortura, do terror,retiramos algo e com ele construímos um artefato

um poemauma bandeira (GULLAR, 2000, p. 170)

O poema “Agosto 1964” é construído em profun-do diálogo com seu contexto de produção assim como todo Dentro da noite veloz (1975). A profunda relação da cole-tânea com o momento histórico aparece, por exemplo, em “Não há vagas” (“O preço do feijão/não cabe no poema. O preço/do arroz/não cabe poema.”) e “Dois e dois: quatro” (“Como dois e dois são quatro/sei que a vida vale a pena/embora o pão seja caro/e a liberdade pequena.”)

Os dois excertos mostram que Gullar vinha impri-mindo tanto na sua produção de poeta bem como na de crítico um afastamento das vanguardas e neovanguardas rumo a uma poesia que conjugasse força expressiva com comprometimento social dentro do texto literário. A abertu-ra do poema em questão também corrobora essa guinada voltada para o cotidiano histórico: “Entre lojas de flores e de sapatos, bares,/mercados, butiques,/viajo/num ônibus Es-trada de Ferro-Leblon./Volto do trabalho, a noite em meio,/fatigado de mentiras.”

Um dado importante na segunda estrofe é o em-prego de um recurso argumentativo crucial na poesia polí-tica de Gullar, denominado aqui de arregimentação da arte contra a barbárie. Em linhas gerais, esse recurso consiste na referência explícita dentro de texto e na valorização de referências artísticas e intelectuais fundamentais na exis-tência do autor.

Ao trazer à baila artistas e obras de grande impor-tância em sua formação, o eu lírico estabelece uma tese,

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uma afirmação na arte, portanto, positiva; por antítese haverá a condição opressora da história do país, concre-tizada na dura vida cotidiana: “O ônibus sacoleja. Adeus, Rimbaud,/relógio de lilases, concretismo/neoconcretismo, ficções da juventude, adeus,/que a vida/eu a compro à vis-ta aos donos do mundo.”

Qualquer leitor de Gullar reconhecerá tanto este movimento dialético quanto traços autobiográficos dentro dos poemas, tão importante a muitos de seus textos, por-que tratam dos dilemas, impasses e impactos da ditadura sobre o sujeito histórico e público, o que aparece em seus poemas sobre o capitalismo no Brasil e na América Latina.

Há um nítido uso do poema como meio de reflexão sobre as condições materiais da vida do eu lírico, a qual não é diferente da vida de milhões de outros brasileiros, mas, tal como o poema, a vida é o lugar da luta e o lugar de onde se extrai contraditoriamente algo e se constrói um artefato, um poema, uma bandeira.

O dístico final, para além da aproximação com “A flor e a náusea” drummondiana, demarca o processo de construção de consciência e, em seguida, a assunção pública do desejo por transformação. Comparado com os dois poemas de seu grupo, “Agosto 1964” não aponta para uma condição melancólica do sujeito diante dos impactos e impasses trazidos pela ditadura, fato visto em “Receita” (1978), de Nicolas Behr.

O poema de Gullar se configura em torno do impac-to da ditadura e da disposição do eu lírico em resistir via re-flexão, característica também presente em “Marinha” (1974), de Ruy Espinheira Filho. O eu lírico sofre o status quo, dá adeus às ilusões, no entanto vale-se do poema como um es-paço para declarar seu amor à vida. Por isso, a perda da ino-cência juvenil não se converte em um estado de luto ou me-lancolia, mas de reelaboração das condições de resistência.

Tal impasse é revelado nas memórias de Ferreira Gullar (1998) sobre o exílio, trabalho que contribui com os estudos sobre os impactos da ditadura sobre a produção poética. Uma passagem tocante do livro é o relato sobre

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sua condição de exilado na Argentina, no ano de 1975, com sua vida correndo sérios riscos, e sob a iminência de viven-ciar outro golpe de Estado naquele país (p. 237-8). Naquela situação aguda surge, como um vômito, o famoso Poema sujo, não incluído no corpus de pesquisa, pois sua dimen-são exige uma pesquisa inteira.

Os três poemas analisados até o momento mos-tram que a resistência se processa de maneira diversa, por meio de configurações, perspectivas e reflexões variadas. Tamanha gama confirma a busca dos poetas por renome-ar as coisas, proposta que se dá por caminhos tortuosos, como afirma Alfredo Bosi (1983):

A partir de Leopardi, de Hölderlin, de Poe, de Baudelai-re, só se tem aguçado a consciência da contradição. A poesia há muito que não consegue integrar-se, feliz, nos discursos correntes da sociedade. Daí vem as saídas difíceis: o símbolo fechado, o canto oposto à língua da tribo, antes brado ou sussurro que discurso pleno, a pa-lavra-esgar, a autodesarticulação, o silêncio [...]Essas formas estranhas pelas quais o poético sobrevive em um meio hostil ou surdo, não constituem o ser da poesia, mas apenas o seu modo historicamente possível de existir no interior do processo capitalista (p. 143).

Talvez o exemplo mais nítido dos impactos do trauma da ditadura sobre a produção poética seja “Carna-val 74”, de Rogério Duarte, poeta ligado ao Tropicalismo. Ao consultar a famosa e didática coleção Poesia Jovem anos 70, Heloísa Buarque de Hollanda e Carlos Alberto Pereira, publicada em 1982, tive a grata surpresa de ler um dos mais criativos encontrados durante a pesquisa. Digo isso porque ele consegue se valer de uma densa discussão te-órica da poesia brasileira desde os anos 20 e estabelecer uma tensão vivida por artistas, mais especificamente, poe-tas diante da ditadura:

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Carnaval 74

como é que é meu caro ezra pound? vou acender um cigarro daqueles para ver se consigo lhe dizer isto. andei fazendo um pou-co de tudo aquilo que você aconselhou para desenvolver a capacidade de bem escrever, estudei Homero, li o livro de Fenollosa so-bre o ideograma chinês, tornei-me capaz de dedilhar um alaúde; todos os meus amigos agora são pessoas que têm o hábito de fa-zer boa música; pratiquei diversos exercícios de melopéia, fanopéia e logopéia, analisei citações de vários dos integrantes do seu paideuma.continuo, no entanto, a sentir a mesma difi-culdade de início, uma grande confusão na cabeça tão infinitamente grande confusão um vasto emaranhado de pensamentos mis-turados com as possíveis variantes que se completam antiteticamente (DUARTE apud HOLLANDA, 1982, p.18).

Do corpus da pesquisa, “Carnaval 74” parece-me ser o poema por excelência do impasse. Todos os poemas de resistência analisados e comentados até aqui, bem como os demais, e outros não incluídos no corpus, trazem, em graus e misturas variados, alguns traços constitutivos de seus enunciadores, ou seja, de suas vozes poéticas que for-mam o que chamo aqui de resistência. Vejamos em detalhe.

O poema se constitui de duas faces. A primeira é eminentemente artística, no sentido mais moderno do ter-mo, englobando todo o primeiro parágrafo; não seria forço-so dizer que esta abertura é um mini Bildungspoesie, um poema de formação. A inusitada carta a Ezra Pound em lin-guagem hipercoloquial, com o nome do poeta norte-ameri-cano em minúscula, revela que o aspirante a poeta procurou cumpriu rigorosamente o percurso ditado pelo bardo inglês

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em seu famoso ABC da literatura. Trata-se de uma formação que paga tributo à poesia moderna, com seu caráter frag-mentado, sintético, iniciada com Mallarmé, chegando até aos poetas-críticos da primeira metade do século XX, como Paul Valéry, T.S. Eliot e ao próprio Pound. Sem contar as aproximações de Fenollosa entre a desconstrução moderna e o sistema ideogrâmico de línguas orientais como o chinês e o japonês, bem como o conhecimento e tributo à tradição ocidental calcada na ligação entre música e poesia.

O leitor já terá reparado na primeira parte de “Car-naval 74” que se tornar poeta é uma verdadeira profissão de fé. Toda a jornada empreendida é escrita de modo des-critivo, sequencial e gradativo, conquanto, volto a frisar, o tom hipercoloquial da suposta conversa com seu guru. Nesse sentido, é possível perceber em suas oito linhas a própria apresentação, em forma analítica, dos movimentos de vanguarda na poesia brasileira, em especial, o concre-tismo e o neoconcretismo. Não há referências nessas oito linhas incompletas ao mundo exterior, apenas aos afazeres intelectuais para se conhecer e se tornar um bom poeta. No entanto, as referências contextuais estão já no título, com sua ambiguidade: carnaval e o ano de 74.

O binômio fará conexão com o segundo parágrafo do poema em prosa, quando o eu lírico confessa estar to-mado por questões e angústias que não têm relação direta ou não encontram resposta no paideuma poundiano-con-cretista. Assim, no fecho do poema, o tom muda comple-tamente, passando da busca pelo aprimoramento técnico para um desabafo de suas dores mais subjetivas. O efeito é um choque no leitor ao revelar que a bibliografia, todo o paideuma, com seus exercícios e reflexões, não afastaram “a mesma dificuldade do início, uma grande confusão na cabeça tão infinitamente grande confusão”. O termo “con-fusão” vai de encontro do rigor preconizado por Pound.

Se na primeira parte há um pressuposto da lógica da desmontagem da linguagem cotidiana, na segunda parte do poema, a condição melancólica, descentrada, fragmen-tária do sujeito lírico causa um ruído e uma reavaliação no

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sentido da formação preconizada pelo paideuma poundiano. Ora, é nítido que todo o paideuma está calcado

em uma profunda confiança na capacidade de transmissão entre enunciador e receptor, daí seu caráter hoje de recei-ta, de manual, por mais que nos anos 50 e 60 tenha feito literalmente a cabeça de muitos aspirantes a poeta. Desse modo, a primeira parte do poema (o relato do percurso do sujeito pelo paideuma) pode ser interpretado como uma metonímia irônica à própria poesia concreta e outros movi-mentos de vanguarda em literatura e artes em geral.

Tal crítica se faz mais nítida se lembrarmos que, in-dependente de contextos autoritários, totalitários ou democrá-ticos, a linguagem não é capaz de representar, muito menos, de apreender o real em sentido total. Então, como crer em um paideuma se lá fora ou aqui fora, bem pertinho, o carnaval se dá em 1974? O terror está presente, e a voz poética tem nítida ciência dos impactos que a ditadura cria não apenas em termos coletivos, mas também em termos pessoais. Esse impacto se dá em termos de desmontagem, de uma ruptura, em sentido nada positivo, do aparelho psíquico das vítimas como será visto nos poemas do grupo 2, sobre o corpo.

No segundo parágrafo, o eu lírico quebra o proto-colo de respeito para com o guru Pound, assume o turno de fala, principalmente, o tópico frasal, ao testemunhar sua “grande confusão na cabeça”, “um vasto emaranhado de pensamentos”. As marcas de oralidade (inobservância de maiúscula no início de frase e de conectivos, por exemplo) mostram que seu testemunho está latente enquanto que o conteúdo canônico poundiano da tradição e da modernida-de não dá conta do terror por estas plagas.

Em suma, o poema “Carnaval 74” apresenta em sua constituição a dualidade entre a poesia, no sentido mo-derno do termo, e a poesia de testemunho; entre a crença na linguagem como um sistema lógico e a sua precarieda-de no mundo cotidiano; entre o uso da linguagem para fins quase mumificados e a linguagem frágil da resistência.

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GRUPO 2) CORPOS

Do segundo grupo de poemas, extraí “Inventário de cicatrizes” (1978), de Alex Polari, e “Celas-23”, de Lara de Lemos. Ambos têm por temática central o corpo, funda-mental na literatura de testemunho, cuja produção nacional é farta em exemplos como Em câmara lenta (1977), de Re-nato Tapajós, Retrato calado (1991) de Luiz Roberto Sali-nas Fortes e Memórias do esquecimento (1999), de Flávio Tavares. Importante destacar que a temática do corpo vio-lentado aparece também na produção ficcional como Pes-sach: a travessia (1967), de Carlos Heitor Cony; Calabar: o elogio da traição (1973), de Chico Buarque e Ruy Guerra e Morangos Mofados (1982), de Caio Fernando Abreu.

Todos esses livros apresentam textualmente a violência sofrida pelo corpo. Não afirmo aqui que o teste-munho, para assim ser considerado, deva ter esse com-ponente; apenas destaco que o(a) leitor(a) encontrará na “literatura” contemporânea e no testemunho brasileiros semelhante presença. A poesia de resistência também se

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dedica a essa temática do corpo como espaço físico e sim-bólico da violência, conforme a presente pesquisa revelou.

Em termos teóricos, Marcelo Viñar (1992) apre-senta importantes considerações sobre o impacto da tor-tura física e psicológica em suas vítimas. Tais reflexões po-dem nos guiar na abordagem dos poemas de resistência, uma vez que o modus operandi da crítica literária canônica se mostra em grande parte inadequada. Enfim, o psicana-lista levanta o seguinte quadro a partir de sua experiência clínica com sobreviventes da ditadura uruguaia:

Minha intenção não é apresentar um caso clínico, mas descrever uma situação e compreender um processo que é, creio, o eixo essencial do que está em jogo na prática atual da tortura. Penso que, na experiência da tortura, podemos distin-guir três momentos sucessivos:- o primeiro momento, o mais conhecido, visa à aniqui-lação do indivíduo e à destruição de seus valores e de suas convicções;- o segundo momento desemboca numa experiência de desorganização da relação do sujeito consigo mesmo e com o mundo, o que chamei, segundo a expressão lúci-da deste paciente, a demolição;- o terceiro momento é a resolução desta experiência limite.Na última parte do trabalho, esboço algumas reflexões sobre as consequências sociais, isto é, sobre os efeitos de psicologia coletiva de demolição como fato individual [...]Por quais meios e de que maneira a destruição e a degradação do corpo operam como preparação e de-sencadeamento da fratura e do desabamento ao nível psíquico?A questão não me parece inútil, nem acessória. Sabe-mos, a partir da ontogênese das relações objetais, que aí onde, hoje, há amor, adesão ou admiração em relação a um ideal, a um valor ou a uma ideia, houve outrora uma relação de objeto que implicava o eu corporal e uma erogenidade manifesta. A ideologia e a ética são sucedâneas de uma matriz originária onde a dialética

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das relações corporais e dos laços erógenos primitivos têm um papel estruturante. A barbárie totalitária com-preendeu este saber psicanalítico (talvez não em sua conceituação, mas seguramente ao nível de sua eficá-cia) e utiliza métodos muito elaborados que levam em conta esta verdade originária: a primazia da relação do homem com seu corpo (p. 45-6).

Um primeiro aspecto do testemunho do corpo vio-lentado é a diversificação da linguagem devido a dois fato-res: a concisão da poesia e a linguagem poética de resis-tência. Primeiramente, a concisão própria da poesia, que, reapropriada em chave testemunhal (e, portanto, sob uma determinada ética política), cria uma força de propulsão pouco usual aos leitores de poesia e aos próprios poetas. Um segundo aspecto da linguagem poética de resistência, no grupo de textos sobre o corpo, é o emprego de imagens fantasmagóricas, degradadas e impactantes, traço tam-bém presente no testemunho em prosa, mas que amplifica a tensão devido à concisão do espaço discursivo da poesia. Assim o faz Alex Polari (1978) em “Inventário de cicatrizes”:

Estamos todos perplexosà espera de um congressodos mutilados de corpo e alma.

Existe espalhado por aíde Bonsucesso à Amsterdando Jardim Botânico a Parisde Estocolmo à Frei Canecauma multidão de seresque portam pálidas cicatrizesesmanecidas pelo tempobem vivas na memória envoltasem cinzas, fios cruzesoratórioseles compõem uma catedralde vítimas e vitrais

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uma internacional de Feridas (p. 51-2).

O anseio pela escuta aparece concretizado na imagem do “congresso dos mutilados de corpo e alma” e, ao final do poema, nas duas estrofes, quando se vê o ponto em comum entre eles: sua destruição física. O mais impor-tante na utópica proposta de “um congresso” para os tortu-rados não é o encontro em si, situação estranha e delicadís-sima, mas uma afirmação da importância e necessidade de os sobreviventes narrarem seus traumas deixados em suas vidas e, portanto, em seus corpos. Maria Rita Kehl (2014), em apresentação de recente livro de contos sobre o perío-do da ditadura, faz considerações, a meu ver, passíveis de diálogo com o poema de Polari no que toca ao anseio pela tentativa de representação da dor:

Passado um tempo subjetivo em que silêncio e estupor são as únicas reações possíveis ante o evento traumá-tico, as vítimas e testemunhas se põem a falar. Ou a escrever. Não é um capricho: é uma necessidade. É pre-ciso compartilhar o acontecido com o outro, os outros. O pesadelo recorrente de Primo Levi, de que ao voltar para casa ninguém acreditaria no seu testemunho, não pode se realizar. As vítimas de todas as experiências de terror sentem necessidade de incluir cada terrível fragmento do Real no campo coletivo da linguagem, como forma de diluir a dor individual na cadeia de sentido que recobre a vida social. E qual o tempo necessário para se transformar o horror sem sentido em experiência estética compartilhada? (p. 15-6).

A pergunta de Kehl terá sempre resposta singular

da boca ou do lápis de cada testemunha, de cada sobrevi-vente, pois os tempos individuais são diversos entre si bem como o testemunho, quando ele ocorre. Assim, o congresso dos mutilados proposto pelo eu lírico é o anseio, a partir da constatação concreta da tortura, de que as coisas muda-

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ram para as vítimas; seus corpos são engolidos pela força da dor e das marcas visíveis e invisíveis à vida social. O “resultado” é diverso a cada vítima, mas, contradição du-ríssima, trata-se de um singular que é coletivíssimo; eis a proposta do encontro coletivo.

O poema de Polari, pela repetição de um paralelis-mo sintático-semântico, cria uma sequência de imagens da dor que configuram o mosaico dos sobreviventes: “todos que dormiram no assoalho frio/das câmaras de tortura/todos os que assoaram/os orvalhos de sangue de uma nova era/to-dos os que ouviram os gritos, vestiram o capuz (...)”. Cada um com suas marcas, lidas e interpretadas de modo singular, atingem o campo político coletivamente, questão de que o eu lírico tem ciência, pois de seu congresso sairá um inventário.

O eu lírico lança mão de outros termos do léxico do mundo burocrático e institucional: “o congresso”, “a In-ternacional”, “a catedral”. Porém, no lugar do público previ-sível, faz-se presente uma “multidão de seres/que portam pálidas cicatrizes/esmanecidas pelo tempo/bem vivas, fios cruzes/oratórios”, que “compõem uma catedral/de vítimas e vitrais/ uma internacional de Feridas.”

Os espaços políticos são tomados por grande ne-gativa ao stablishment, pois este não insere em suas pau-tas o cotidiano das ruas, afinal: “Quem passou por esse país subterrâneo e não oficial/sabe a amperagem em que opera seus carrascos/as estações que tocam em seus rá-dios/para encobrir os gritos de suas vítimas/o destino das milhares de viagens sem volta.”

“Inventário de cicatrizes”, como poema de teste-munho que é, configura-se, conforme venho mostrando até aqui, por meio de imagens da dor, impactos sobre os corpos e sobre as mentes, em especial, a noção de “demolição”, de que trata Viñar (1992), ao tempo em que reúne todo esse conjunto diversificado do sofrimento físico e psíquico como a prova da necessidade da memória sobre a violência cometida contra aqueles que “se demitiram do direito da própria felicidade futura”.

Uma das funções e ações que os poemas de resis-

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tência podem desempenhar, no campo dos estudos sobre testemunho, é a de tentar representar perspectivas singu-lares dos impactos sobre o sujeito, imperceptíveis e/ou não vindas à tona nas demais formas de testemunho (depoimen-to, entrevista, diário etc.). Nesse sentido, destaca-se a poe-sia de resistência a qual, com suas diversas faces, incluído a testemunhal, contribui com elaborações pouco pensadas e estudadas da violência, em especial, da tortura, seja ela física, psicológica ou do exílio, como atestam os poemas de Alex Polari, Ferreira Gullar, Lara de Lemos e Nicolas Behr, para ficar em apenas alguns nomes estudados aqui.

Essa variedade de respostas do corpo e da mente agredidos aparece na multiplicidade infinita do testemu-nho. Em nosso caso, os poemas levantados, bem como ou-tros, não incluídos no corpus, confirmam tamanha gama de “configurações” do trauma como se pode ver em poema de Lara de Lemos (1997):

Celas -23

Eis que me retornamvestes, sapatos,óculos, relógios.

Bolsa povoadade lenços, moedas,inúteis estojos.

Despojada até aos ossosnão sei o que fazerde meus despojos (p. 49).

O pano de fundo do eu lírico, a prisão por ques-tões políticas, e o tratamento desumano na prisão são da-dos que saltam aos olhos do leitor desde o título até seu final. A simétrica estruturação do poema em três tercetos, todos de ritmo cadenciado, devido à predominância de seis

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versos pentassílabos, contrasta com seu conteúdo devas-tador, que trata do momento em que a ex-presa política re-cupera seus objetos, merecedores do adjetivo “pessoais” como se a liberdade que se vê logo ali adiante, após o por-tão de saída, trouxesse necessariamente boas novas após o encarceramento, ou, ainda, a possibilidade de voltar a ser alguém como dito na abertura do texto: “Eis que me retor-nam/vestes, sapatos,/óculos, relógios.”

Os quatro itens devolvidos a ela oferecem, em tese, um caminho de diluição na vida coletiva, com suas ferramen-tas e códigos. No entanto, logo na segunda estrofe, o eu lírico revela que do passado em questão parece ser impossível fa-zer tabula rasa: “Bolsa povoada/de lenços, moedas,/inúteis estojos”. Os adjetivos “povoada” e “inúteis” transformam por completo a ação burocrática da primeira estrofe. Da bolsa, saltam muitos lenços, entendidos aqui em proporção aos tantos choros e despedidas devido às fugas, às mortes de companheiros de luta e a seu próprio sofrimento.

O mistério em torno dos “inúteis estojos” leva-me a pensar que seu conteúdo não dito (canetas? maquiagem? documentos?) não tem serventia alguma, pois a reclusão do eu lírico a fez sentir-se também inútil. Sem alegria, ou mesmo tristeza profunda, o poema segue sereno e quase resignado. A estrofe de encerramento dilui qualquer chan-ce de perspectiva, uma vez que demonstra que o retorno dos objetos a sua dona não coincide com a retomada da vida, por parte do eu lírico, do mesmo modo que antes da prisão: “Despojada até aos ossos/não sei o que fazer/de meus despojos.”

Por sua construção, entendo que “Celas-23” con-segue apresentar um dado interessante para pensarmos o testemunho: apreender o momento de solidão profunda tra-zida pela violência e conseguinte impasse frente ao tempo futuro e ao mundo cotidiano, que caminham indiferentes a sua dor. A fragilidade do eu lírico vem confirmar sua con-traditória condição entre receber de volta de seus objetos (pessoais?!?), mas não receber a si mesma de volta, já que está “despojada até aos ossos”.

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Em suma, o poema fala sobre a (in)capacidade de significação das coisas após os impactos da tortura por meio de uma delicada e dolorosa metalinguagem. Esse pro-cesso se dá pela consciência de que sua autoimagem, o significado que o eu lírico dava a seu corpo e a si foi destru-ída em vida, e o que seja, talvez, mais doloroso: deixando-a viva. Sua condição revela-se na própria impossibilidade de “ler o mundo” para usar uma expressão de Paulo Freire. Em seu lugar adentra a demolição de que fala Viñar (1992).

Verso a verso, processa-se de modo descritivo uma fotografia seguida do desmonte de tais objetos em ter-mos simbólicos, uma vez que o dono daquelas marcas tem-porais registradas no papel não consegue e não pode mais dar-lhe significados. O poema encerra-se com uma imagem do corpo impactado e em estado de impasse, porque a imagem que o sujeito poético tem de si não corresponde à construção autobiográfica anterior a sua prisão, e pela qual ela era reconhecida socialmente. Nesse sentido, há uma implosão concomitante da imagem identitária seja em termos individuais, seja em termos públicos.

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GRUPO 3) IRONIAS

O terceiro grupo traz poemas construídos em tor-no de tematização irônica da ditadura e/ou de situações dela decorrentes. Os poemas selecionados são “Semântica existencial”, de Alex Polari, (1978); “Revolução” (1974), de Francisco Alvim; “Ameixas” (1980), de Paulo Leminski e “À moda da casa” (1967), de José Paulo Paes:

Semântica existencial

Debaixo da janela de minha celadesfilam a 1.ª companhia, a 2.ª companhia,a 3.ª companhia e as demais companhiasque não solucionam minha solidão (POLARI, 1978, p. 15).

O breve poema, de estrofe única, desloca nosso olhar da sala de tortura para um momento e um lugar de

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pré ou pós-tortura, mas diretamente ligados à engenharia da repressão: o quartel e a cela. Por meio desta configura-ção concisa, calcada na descrição dos atos militares, a voz poética estabelece uma reflexão a partir da contradição de sua existência frente às companhias que “não solucionam” sua “solidão”.

Preso, provavelmente em vias de ser torturado, sem saber de seu futuro, ele observa, solitário, o desfile das companhias militares, que, em sentido literal e/ou etimoló-gico, deveriam se caracterizar, de modo oposto, não por sua marca de agrupamento militar, mas pela divisão do pão, da ideia de comungar do mesmo alimento, da solidariedade e do acolhimento. Ora, nada mais irônico a um preso político, que luta por transformações sociais, ver diversos homens desfilando em grupos intitulados companhias enquanto está encarcerado e solitário. Nesse sentido, a metalingua-gem do militante aponta para um paradoxo entre sua condi-ção de isolado e a situação dos militares.

A homogeneização que marca a tropa, seus mo-vimentos repetitivos, hierárquicos e incontestes, situa-se em margem oposta à reflexão do solitário e melancólico prisioneiro, responsável, apesar de sua condição, pelo dis-curso que compõe o poema. Na solidão, o eu lírico trata de questões existenciais. Pode parecer estranho em termos de militância política, no entanto, há de se lembrar que a capacidade de crítica social da lírica ainda é subestimada devido a uma concepção bastante romântica herdada do oitocentos (Cf. ADORNO, 2003).

Tanto assim que o título demonstra claramente se tratar de um poema que joga com a metalinguagem de sua condição de preso político e também com uma metalingua-gem da condição da própria linguagem frente às compa-nhias organizadas militarmente. Para completar o quadro irônico e melancólico, o eu lírico estabelece estes dois lu-gares de enunciação. O primeiro é o mundo institucional das Forças Armadas (“Debaixo da janela de minha cela/desfilam”) com sua imagem, sua semântica “límpida”, “hie-rárquica” e “objetiva”; o segundo é o mundo do prisioneiro,

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o qual não pode se valer de seu corpo e do discurso para atuar no espaço público.

Interessante pensar no peso do adjetivo “existen-cial” para a militância e o pensamento de esquerda em mea-dos do século XX, sobretudo com a militância de intelectuais como Albert Camus, Jean Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Simone Weil. Esse peso também se faz presente no poema, pois a condição de encarceramento do eu lírico coloca a se-guinte questão: como atuar na vida política dentro de uma prisão? A contradição cria a condição irônica do poema e, ao mesmo tempo, leva seu sujeito poético à melancolia.

O segundo poema do grupo é “Revolução” (1974), de Francisco Alvim, também se vale da ironia para tratar da perseguição a professores, intelectuais e artistas:

REVOLUÇÃO

Antes da revolução eu era professorCom ela veio a demissão da UniversidadePassei a cobrar posições, de mim e dos outros(meus pais eram marxistas)Melhorei nisso – hoje já não me maltratonem a ninguém (p. 289).

Todo o jogo do poema está calcado na ironia em torno da palavra revolução, que, tomada em um primeiro mo-mento em seu sentido histórico e político, ligado ao Golpe de Estado, é reapropriada em torno da mudança do eu lírico dian-te da história. Se focarmos o comentário em torno dos senti-dos óbvios do termo “revolução”, tanto para a direita quanto para a esquerda, perde-se a profundidade com que o poema trata do assunto. Para evitá-la, é necessário olhar a transfor-mação interna causada à voz poética. De professor engajado, filho de pais marxistas, que cobrava posições de si e dos ou-tros, mesmo sofrendo violências por parte do regime, ele teria

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passado por uma revolução; não social, mas individual, a qual o teria livrado de sua mania de maltratar a si e aos outros.

Duas perguntas ficam diante dessa mudança radical: o mundo mudou após o ex-professor de linhagem marxista ter largado a militância? Ele próprio mudou de fato para melhor? A resposta melancólica para ambas as questões é um sonoro não.

O poema “Revolução”, com sua conclusão nada edificante, narra sinteticamente dois momentos do sujeito: o primeiro, histórico; o segundo, egóico. No entanto, a iro-nia não está na passagem do professor militante ao apo-sentado compulsório. Ela reside na revelação do vazio que aparece quando se processa essa passagem e se toma tal caminho: “Melhorei nisso – /hoje já não me maltrato/nem a ninguém”. O leitor compartilha da trajetória do professor: sua expulsão, sua resistência e posterior desistência de qualquer projeto político. Repare-se que a decisão é indi-vidual, mas também unilateral, dada sua indiferença para com os demais sujeitos.

O desfecho do poema leva a duas leituras. A pri-meira, mais literal e menos produtiva, entende que o eu-lí-rico não acredita mais na perspectiva marxista, sempre a cobrar posições de si e dos outros. É possível, mas o poema perde em força diante dos motivos que levaram provavel-mente Francisco Alvim a escrevê-lo : a repressão certamen-te foi um dos principais, como a data de publicação sugere, no caso, 1974.

A segunda leitura do trecho final é a mais interes-sante, posto que, devido à consciência da impossibilidade de resistir à repressão naquele momento, o eu lírico desiste e para de maltratar a si e a outras pessoas. Implicitamente há um recuo, uma atitude de avaliação crítica dos cami-nhos da resistência, ou melhor, da impossibilidade de resis-tir. Sendo assim, processa-se uma suspensão da cobrança de engajamento, suspensão que faz todo sentido diante do risco de tortura e morte.

Um terceiro caminho deixado pela ironia do poe-ma é um convite ao leitor para que observe o mundo hoje

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e veja se a desistência da luta e se a revolução proposta pelos militares se concretizou em um país melhor. A respos-ta é conhecida, mas, em minha breve análise, fica a nítida noção de que a revolução interior do eu lírico, que deixa de ser marxista para não mais incomodar ninguém, é uma estratégia não de fuga, mas de tentar configurar a violência do Estado autoritário, a qual o levou à mudança forçada de visão do professor, ao menos em termos públicos. Se o eu lírico parou de fato de “maltratar a si e aos demais”, a me-lancolia dúbia que carrega sua frase permanece vivíssima. De fato ele, em si, não é o problema, porque não se trata de uma questão psicológica, mas política. Passemos agora a dois outros poemas:

ameixasame-as ou deixe-as (LEMINSKI, 2013, p. 105)

À MODA DA CASA

feijoadamarmeladagoleadaquartelada (PAES, 1967, p. 43)

O haikai “Ameixas” dialoga, como é mais do que sabido, com o slogan “Brasil: ame-o ou deixe-o”, do governo Emilio Garrastazu Médici (1970-1974), enquanto o quarteto de Paes dialoga com elementos de grande importância sim-bólica e constitutiva da cultura brasileira. Os dois primeiros substantivos dizem respeito à alimentação (feijoada, mar-melada) e se ligam diretamente ao título do poema que re-mete ao ambiente tão familiar na cultura brasileira dos bote-cos nos quais não apenas se come e se bebe como também se assiste e discute futebol, daí “goleada” ser-lhe tão íntimo.

Se os três primeiros versos ganham o leitor por seu aspecto afetivo, o arremate do poema causa um cho-

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que, um estranhamento, pois “quartelada” nada tem a ver com o ambiente do boteco, do futebol, da comida, mas com o título, que, findo o poema, passa a ter um sentido mais complexo do que a expressão de um cardápio em um bar. “À moda da casa” significa não apenas elementos em tese positivos da cultura brasileira como a feijoada, a marme-lada e a alegria de uma goleada, mas também o golpe, a tradição da implosão dos pactos pelos militares.

Outro aspecto aglutinante do poema é seu ritmo, composto conscientemente por versos ternários em um quarteto. O andamento dos versos lembra com seu movi-mento sincopado e único a marcha de uma tropa. A alegria e os prazeres dos três primeiros versos são controlados pelo quarto e último, o qual delimita a expansão dos demais e os torna incompletos e tensos. Diante de tais marcas constitu-tivas, o título apresenta um dado problemático de nossa for-mação social; concomitante à alegria do futebol de massa, ao prazer da comida, temos o levante pela força autoritária.

Nesse sentido, tanto “ameixas” quanto “À moda da casa” criticam de modo amplo a situação do país. O primeiro poema rechaça a ordem ditatorial de exílio aos desgostosos do regime. Rechaço este feito com um trocadilho sonoro com os verbos amar e deixar, mas também com a imagem (inusi-tada, surreal e algo debochada) de uma ameixa a ser amada ou deixada. O poema de Leminski leva ao riso sutil porque se reapropria de um discurso totalizante e o devolve sem sua carga ideológica, mas com seu estofo concreto: a patética e incabível ordem de se amar uma pátria ou deixá-la incondicio-nalmente. Somente em ditaduras o espaço político é restrito a uma visão dualista. Se não é possível discutir, discordar, de-bater, o país se torna ou tudo, porque o amamos cegamente; ou nada, porque o deixamos rumo ao exílio.

Ainda em termos de expressão, o traço sintético de “Ameixas” e “À moda da casa” é marca fundamental nos livros em que foram publicados, respectivamente Não fos-se isso e era menos não fosse tanto e era quase (1980) e Anatomias (1967). A recorrência da síntese mostra que os poetas empregam elementos considerados literários não

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apenas em poemas de temáticas menos engajadas, mas também em poemas de resistência, mantendo-os atuais. Em linhas gerais, a partir dos quatro poemas analisados do último grupo, percebe-se que a palavra aparece sob o signo da desconfiança, da dúvida e do risco, daí a importância de sua elaboração de modo que o texto escape a receitas fáceis e apelos, questão tratada por Flávio Aguiar em texto de 1978, republicado recentemente:

A produção literária persegue a tecla da denúncia. É uma produção agressiva escrita contra o comodismo do leitor, em que o prazer da leitura e a descoberta do sofri-mento alheio ou próprio formam curiosa simbiose. Este caminho é tão necessário quanto escorregadio. Pois pode-se escrever apenas pour épater le petit-bourgeois. Isso hoje dá status, ibope, já dá novela das dez, logo é capaz de dar a das sete. Não é preciso muito para cho-car a má consciência do nosso bom pequeno-burguês; basta o suficiente para que possamos aplacar periodica-mente nossa consciência. A coragem da denúncia, por si só, não salva ninguém dessa volteada da ampliação (limitada) de público: podemos desaguar numa literatu-ra mesquinha, que se satisfaça com pouco tutano em troca de temperos comerciais. A única maneira de driblar essa tendência é desconfiar permanentemente das (próprias) palavras. O que não é fácil: recém-saímos de confiar desabusadamente nelas, no seu poder de catalisar fantasias desejadas. [...] Fi-nalmente, essa desconfiança tem-se infiltrado mais so-lidamente na estruturação interna das obras literárias.Tomem-se, por exemplo, dois livros de poemas, diver-gentes no estilo, ambos característicos desta época de produção marcada, com maior ou menor rigor, pelas proibições (o Estado que deserda seu filhos), pelo exílio, pela confusão semântica: Meia palavra, de José Paulo Paes, e Poema sujo, de Ferreira Gullar (...)Ambos [os livros] terminam chamando o leitor para fora do útero das palavras. Isso não é tudo; mas é o alicerce para que a literatura se faça uma aventura da consciên-cia e fuja da mistificação (p. 184-6).

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GRUPO 4) POEMA-MANIFESTO:

Em linhas gerais, poemas escritos sob pressão de seu contexto tendem a dialogar “apenas” com seu mo-mento histórico, fato observável na datação recorrente em diversos poemas, livros, quando não em obras inteiras, por mais caudalosas que o sejam. Esse aspecto lançou-me, desde o início da pesquisa, uma questão de difícil solução: como selecionar poemas atravessados por seu contexto de produção? Sua dependência do ambiente em que foi escri-to impede sua leitura hoje?

A resposta, ainda que precária, reside novamen-te na elaboração do texto de modo a surtir interpretações variadas, ou seja, um amplo leque de perspectivas revela-doras e críticas sobre o autoritarismo, a violência e outros aspectos ligados ao trauma. Por esse motivo, haveria uma contradição, posto que o grupo compõe-se de apenas três poemas, sendo que suas fontes são abundantes.

Outro fator para a produção entre nós de tantos poemas-manifesto residiria na íntima relação com a lei-

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tura (por tradução e/ou original) de poetas de resistência estrangeiros como Bertolt Brecht, Ernesto Cardenal, Garcia Lorca, Hans Magnus Enzensberger, Jean Cocteau, Maiakó-vski, Pablo Neruda, sem contar outros ligados à contracul-tura como os beatniks, anarquistas, judeus refugiados da Europa no entre-guerras e durante a Segunda Guerra. Entre o final do século XX e o pós II Guerra Mundial, o Brasil foi destino de grupos sociais, étnicos, religiosos diversos. Dian-te de um mundo estranho, inevitável seria o nascimento de culturas de preservação e defesa de suas identidades (por mais que tal projeto seja impossível) ao mesmo tempo a criação de resistência ao autoritarismo, ao totalitarismo.

Sem dúvida, essa recepção crítica e produtiva ocorreu, com as artes plásticas, com o cinema, a crítica lite-rária, o teatro, etc. Basta pensarmos em três nomes como Anatol Rosenfeld e Otto Maria Carpeaux na crítica literária, Ziembinski no teatro. Embora hipótese, ela me parece bas-tante plausível e será posta à prova em pesquisa futura so-bre a recepção de poetas de resistência estrangeiros no Bra-sil desde o Estado Novo até a redemocratização em 1985.

Pelas razões expostas, creio que os poemas-ma-nifesto selecionados, conquanto seu caráter predominan-temente argumentativo, portanto, pragmático no que diz respeito à expectativa em intervir na vida política, consegui-ram chegar a uma fatura capaz de manter seu diálogo com leitores de hoje.

O poema selecionado do quarto grupo é “No cami-nho, com Maiakóvski”, de Eduardo Alves da Costa, publica-do no livro O tocador de atabaque (1969):

NO CAMINHO, COM MAIAKÓVSKI

Assim como a criançahumildemente afagaa imagem do herói, assim me aproximo de ti, Maiakóvski. Não importa o que me possa acontecerpor andar ombro a ombro

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com um poeta soviético.Lendo teus versos, aprendi a ter coragem.

Tu sabes,conheces melhor do que eua velha história.Na primeira noite, eles se aproximame roubam uma flordo nosso jardim.E não dizemos nada.Na segunda noite, já não se escondem:pisam as flores, matam nosso cão,e não dizemos nada.Até que um dia,o mais frágil delesentra sozinho em nossa casa,rouba-nos a luz, e, conhecendo nosso medo,arranca-nos a voz da garganta.E já não podemos dizer nada.

Nos dias que correma ninguém é dado repousar a cabeçaalheia ao terror.Os humildes baixam a cerviz;e nós, que não temos pacto algumcom os senhores do mundo,por temor nos calamos.No silêncio de meu quartoa ousadia me afogueia as facese eu fantasio um levante;mas amanhã,diante do juiz,talvez meus lábioscalem a verdade

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como um foco de germescapaz de me destruir.

Olho ao redore o que vejoe acabo por repetirsão mentiras.Mal sabe a criança dizer mãee a propaganda lhe destrói a consciência.A mim, quase me arrastampela gola do paletóà porta do temploe me pedem que aguarde até que a Democracia se digne aparecer no balcão.Mas eu sei,porque não estou amedrontadoa ponto de cegar, que ela tem uma espadaa lhe espetar as costelase o riso que nos mostraé uma tênue cortinalançada sobre os arsenais.

Vamos ao campoe não os vemos ao nosso lado,no plantio.Mas ao tempo da colheita lá estãoe acabam por nos roubaraté o último grão de trigo.dizem-nos que de nós emana o poder,mas sempre o temos contra nós.dizem-nos que é precisodefender nossos lares,mas se nos rebelamos contra a opressãoé sobre nós que marcham os soldados.

E por temor eu me calo,

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por temor aceito a condição de falso democratae rotulo meus gestoscom a palavra liberdade,procurando, num sorriso,esconder minha dordiante de meus superiores. Mas dentro de mim,com a potência de um milhão de vozes,o coração grita – MENTIRA! (COSTA, 2003, p. 47-9).

Poema mais conhecido de todo o corpus, com um

grau de popularidade raríssimo em se tratando de versos políticos, sua trajetória, embora de maior “sucesso”, é se-melhante a obras de testemunho conforme apontado aqui, caso de Ferreira Gullar, com seu Poema sujo, e Alex Polari, autor de Inventário de cicatrizes. Esse aspecto fundamental que a pesquisa revelou em termos de recepção aponta para um jogo complexo de apropriação de tais textos devido a seu contexto autoritário, trama esta que exige uma aborda-gem além da tríade autor, obra, público, fato comprovado no esclarecedor prefácio de Luis Fernando Emediato (apud COSTA, 2003) ao livro Poesia reunida:

Quando, na década de 1970, o escritor e criador da So-materapia Roberto Freire lançou um dos maiores best--sellers da época, Viva Eu, Viva Tu, Viva o Rabo do Tatu! jamais imaginou que a epígrafe do livro fosse ser o vér-tice de uma confusão que já dura mais de três décadas. Freire mencionava um trecho do poema ‘No caminho, com Maiakóvski’, de Eduardo Alves da Costa, mas o atribuía ao poeta russo. Engano. O poema, hoje um dos mais famosos da literatura brasileira, era deste poeta nascido em terras niteroienses em 1936, e que vive em São Paulo desde os dois meses de idade.Roberto Freire se retratou depois, mas o poema nunca mais teve morada certa: Gabriel García Márquez, Jorge Luís Borges, Wilhelm Reich, Bertolt Brecht, Leopoldo

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Senghor, o próprio Maiakóvski e até mesmo o mais céle-bre discípulo de Freud, Jung, já foram citados como seus autores (p. 9).

Das análises e comentários a poemas seleciona-dos e da própria leitura de outros tantos para sua forma-ção, nitidamente sobressaem alguns traços configurativos dos poemas-manifesto, caso de “No caminho de Maiakó-vski”. Começo pelos mais gerais para, então, perscrutar suas singularidades.

Em primeiro lugar, há uma disposição à narra-ção, quase sempre longa, de situações, de cenas coti-dianas, concatenadas ou justapostas, mas que guardam relação por seu mesmo campo semântico, no caso, as condições históricas do momento em que o poema é es-crito e com o qual dialoga.

Por hipótese de trabalho, entendo que a função principal do poema, com suas longas estrofes, seria compor aos olhos do leitor um quadro que (lido pela parte, lido pelo todo) exponha, sirva de espaço de afeto, solidariedade e mo-tivação para a resistência. Nesse sentido, ele procura mover corações e mentes, para usar uma expressão dos anos 60.

Sabe-se que, em tempos modernos (tomando o século XIX como referência), expor em grande quantidade e extensão é trabalho dos mais difíceis em poesia, para não dizer arriscado, dado que a ruína do mundo retórico, pré-ro-mântico não caminhou apenas para a produção “desregra-da”, do verso livre, mas também para o fragmento e para a concisão, enquanto o poema-manifesto, na contramão, tende ao discurso analítico.

No entanto, em condições de arbitrariedade e violência institucionalizada, grupos sociais e, obviamente, indivíduos resistentes encontrariam em textos discursivos e longos um meio de encontrar interlocução no sentido de atuação política. Basta ver na América Latina a dimensão, em páginas, de romances políticos tais como Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez, A guerra do fim do mundo, de Mario Vargas Llosa, Quarup, de Antonio Callado,

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Pessach: a travessia, de Carlos Heitor Cony, Pedro Páramo, de Juan Rulfo.

Para construir quadros, há forte presença de da-dos da vida cotidiana como observamos nos seguintes ver-sos: “Nos dias que correm/a ninguém é dado/repousar a ca-beça/alheia ao terror./Os humildes baixam a cerviz;/e nós, que não temos pacto algum/com os senhores do mundo,/por temor nos calamos./No silêncio do meu quarto/a ou-sadia me afogueia as faces/e eu fantasio um levante [...]”.

A vida cotidiana se concretiza na nítida demarcação de posições de sujeitos sociais de maneira geral: “ninguém”, “eu”, “nós”, “os humildes”, “os senhores do mundo”, “eles”; e de maneira específica: “meu quarto”, “meus lábios”, “foco de germes”, “as faces”. Ao dar nome aos bois, o eu lírico constrói um percurso a fim de que o leitor perceba as correlações de-siguais de força e sinta-se acolhido de algum modo.

Tanto assim que, desde o título e já na primeira estrofe, o sujeito assume os riscos de se valer de uma poé-tica construída nesse sentido de demarcação e ação frente à violência, caso do poeta russo: “Assim como a criança/hu-mildemente afaga/a imagem do herói,/assim me aproximo de ti, Maiakóvski./Não importa o que me possa acontecer/por andar ombro a ombro/com um poeta soviético./Lendo teus versos,/aprendi a ter coragem”.

A imagem carinhosa da estrofe corrobora a ideia de que a empatia e o afeto são dois elementos intrínsecos nas disputas ideológicas e, por conseguinte, formativas. Repare-mos que os versos finais da primeira estrofe e os dois seguin-tes assumem a importância do poema político na elaboração de caminhos para a resistência, mesmo que em contextos diferentes: “Lendo teus versos/aprendi a ter coragem.//Tu sabes,/conheces melhor do que eu/a velha história”.

De modo semelhante à vida do poeta russo, o po-ema brasileiro não traz uma experiência produtiva, uma vez que a resistência se encontra ainda em um plano indivi-dual, portanto não público, devido ao medo: “E por temor eu me calo,/por temor aceito a condição/de falso demo-crata/e rotulo meus gestos/com a palavra liberdade,/pro-

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curando, num sorriso,/esconder minha dor/Diante de meus superiores [...]”. Assim, podemos ter mais claro ao menos seis etapas a comporem o quadro histórico de que o eu líri-co se incumbe de construir, conforme hipótese acima.

Na primeira estrofe, o eu lírico assume a influ-ência produtiva de um poeta engajado como Maiakóvski, como já citado anteriormente. Passa-se, na segunda estro-fe, a uma sequência de imagens nada didáticas que mos-tram o crescimento da violência imposta pelos meios do poder oficial e não oficial, trecho mais divulgado e conhe-cido do poema, quando não tomado como todo o poema: “Na primeira noite, eles se aproximam/e roubam uma flor/do nosso jardim./E não dizemos nada./Na segunda noite, já não se escondem:/pisam as flores,/matam nosso cão,/e não dizemos nada./Até que um dia, [...]”.

Na terceira estrofe, há um detalhamento quanto aos modos de recepção da violência por algumas pessoas da sociedade e pelo próprio eu lírico: “Mal sabe a crian-ça dizer mãe/e a propaganda lhe destrói a consciência./A mim, quase me arrastam/pela gola do paletó/à porta do templo/e me pedem que aguarde/até que a democracia/se digne aparecer no balcão./Mas eu sei,/porque não estou amedrontado/a ponto de cegar, que ela tem uma espada [...]”. Ou seja, na quarta estrofe, o eu lírico passa a des-montar tanto o discurso estratégico da resistência oficial quanto o discurso da ditadura.

A quinta estrofe desempenha uma função de sin-tetizar e deixar bem nítido o movimento dialético presente nas quatro primeiras estrofes, mais especificamente, entre o discurso oficial e a consciência interior do eu lírico, entre os discursos totalizantes e as práticas sorrateiras da violên-cia, entre a tentativa de conciliação e o terror. O resultado é que o poema compõe um quadro tenso no qual se confirma o desfecho trágico do poeta russo.

A última estrofe é pura estratégia de resistência delicada, pois mostra a dificuldade de expor qualquer ideia frente aos riscos impostos pela ditadura; se há estratégia é porque há um outro no jogo discursivo. Assim sendo, o eu lí-

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rico opta por um silenciamento, porém revela ao leitor seus pensamentos e anseios que também são coletivos: “mas dentro de mim,/com a potência de um milhão de vozes,/o coração grita – MENTIRA!”.

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CONCLUSÕES

A poesia de resistência à ditadura civil-militar (1964-1985) está presente na produção literária que se tor-naria consagrada pela crítica a partir dos anos 80. Assim, encontramo-la no concretismo, na poesia práxis, na poesia marginal, etc. Ao mesmo tempo, a poesia de resistência feita por poetas testemunhais caminha por fora, desinte-ressada das disputas pelo campo simbólico e político da produção poética brasileira durante duas décadas. Assim, tem caráter pragmático de construção de uma memória crí-tica para as futuras gerações, ação que pode ter resultado em tempos democráticos, pois muitos poemas se mantêm atuais porque, devido a sua fatura, conseguem comparti-lhar e renovar o pacto com novos leitores. Esse pacto se dá em torno do trauma que permanece não apenas nos que o vivenciaram, mas também nas pessoas que padecem e reconhecem parte da violência cotidiana em que vivemos devido à nossa formação autoritária e de difícil construção de justiça social.

A análise e comentários aos poemas procurou ser

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o menos canônica possível, abrindo pontes com questões contextuais, autobiográficas, sociais e culturais, de modo a mostrar que os poemas de resistência desempenham funções de configuração da história, porém carregam um peso extra devido às urgências de seu contexto. Nesse sen-tido, creio que quanto mais divulgarmos essa produção e, por conseguinte, a abordarmos a partir de sua carga trau-mática, melhor será para revermos nosso próprio trauma coletivo, pois, conforme procurei mostrar, os poemas de re-sistência procuram elaborar o choque ainda latente e mal resolvido da violência oficializada e manejada pela ditadura civil-militar. Espero que estes e milhares de outros poemas de resistência, ainda por serem lidos, contribuam para a memória de todas as vítimas da ditadura civil-militar e a construção de uma cultura de direitos humanos no país.

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BIBLIOGRAFIA PRIMÁRIA

Nota explicativa: abaixo segue o corpus comple-to da pesquisa com 27 poemas, incluídos os 11 poemas selecionados para o livro, organizados conforme grupos temáticos. As datas entre colchetes indicam a data de pri-meira publicação do poema em livro, seja edição do autor, amadora ou profissional. Na ausência de colchetes, vale, obviamente, a data indicada após o nome da editora. Quan-do não obtive a primeira edição de algum livro, consultei reedições, quase sempre de obras completas, as quais me forneceram a data da primeira edição. Quando há uma data com interrogação entre colchetes ou uma interrogação en-tre colchetes é porque não obtive fonte segura acerca da data da primeira edição.

A bibliografia secundária, ora apresentada, se restringe ao que foi efetivamente indicado ou citado para a presente edição. A bibliografia completa da pesquisa será indicada ao público em edição futura de maior extensão.

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Grupo 1) Impasses e impactos

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CHACAL. Era uma vez. In: Muito prazer. 3. ed. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2010. [1972]

DUARTE, Rogério. Carnaval 74. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de; PEREIRA, Carlos A. Messeder. Poesia jovem anos 70. São Paulo: Abril Educação, 1982. [1982?]

FILHO, Ruy Espinheira. Marinha. In: Poesias reunidas e in-éditos. Rio de Janeiro: Record, 1998. [1974]

GULLAR, Ferreira. Agosto 1964; Dois e dois: quatro; Maio 1964; O açúcar. In: Toda poesia. Rio de Janeiro: José Olym-pio, 2001. [1975]

LEMOS, Lara de. Cegos. In: Adaga lavrada. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981.

PAES, José Paulo. À moda da casa. In: Anatomias. São Paulo: Cultrix, 1967.

PAES, José Paulo. Olímpica; Sick transit. In: Meia palavra: cívicas, eróticas e metafísicas. São Paulo: Cultrix, 1973.

Grupo 2) Corpos

LEMOS, Lara de. Celas-23; Celas-24. In: Inventário do medo. São Paulo: Massao Ohno, 1997.

POLARI, Alex. Cemitério de desaparecidos; Inventário de cic-atrizes. In: Inventário de cicatrizes. 2.ed. [São Paulo]: Teatro Ruth Escobar/Comitê Brasileiro pela Anistia: 1978. [1978]

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Grupo 3) Ironia

ALVIM, Francisco. Conselho [1978]; Revolução [1974]; Voltas [1978]. In: Poemas. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.

LEMINSKI, Paulo. Ameixas. Toda poesia. São Paulo: Com-panhia das Letras, 2012. [1980]

POLARI, Alex. Semântica existencial. In: Inventário de cica-trizes. 2.ed. [São Paulo]: Teatro Ruth Escobar/Comitê Bra-sileiro pela Anistia: 1978. [1978]

POLARI, Alex. Recordações 1969. In: Camarim de prisionei-ro. São Paulo: Global, 1980.

Grupo 4) Poemas-manifesto

COSTA, Eduardo Alves. No caminho com Maiakóvski. In: No caminho com Maiakóvski: poesia reunida. São Paulo: Ger-ação Editorial, 2003. [1969]

MELLO, Thiago de. Os estatutos do homem. In: Faz escuro, mas eu canto. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.

TIERRA, Pedro. Oficina. In: A palavra contra o muro. São Pau-lo: Geração Editorial, 2013. [1979?]

Grupo 5) Atitudes

LEMINSKI, Paulo. En la lucha de clases. In: Toda poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. [1983]

LEMOS, Lara de. Da resistência. In: Inventário do medo. São Paulo: Massao Ohno, 1997.

POLARI, Alex. A nova tática e o velho instinto. In: Inventário de cicatrizes. 2.ed. [São Paulo]: Teatro Ruth Escobar/Comitê

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Brasileiro pela Anistia: 1978. [1978]

BIBLIOGRAFIA SECUNDÁRIA

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SELIGMANN-SILVA, Marcio. História, memória, literatura: o testemunho na era das catástrofes. Campinas: Editora da Unicamp, 2003.

VIÑAR, Maren; VIÑAR, Maren. Exílio e tortura. São Paulo: Es-cuta, 1992.

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POLÍTICA EDITORIAL

A Série Cogitare foi criada com o objetivo de divulgar a contribuição de pesquisadores que tenham participado de atividades junto aos cursos de Mestrado e Doutorado em Letras da UFSM, na forma de palestras, conferências e outros trabalhos de pequena extensão. Também visam a produção de textos teóricos ou críticos produzidos por professores vinculados às linhas de pesquisa do PPGL - UFSM.

Esses trabalhos devem ser resultado de projetos vinculados às linhas de pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Letras, permitindo, assim, a divulgação de alguns resultados produzidos pela investigação nas áreas de Estudos Lingüísticos e Literários da UFSM.

A publicação de traduções deverá complementar os textos já pertencentes ao domínio público, relacionados à pesquisa desenvolvida pelo Programa, e que contribuam para fomentar novas perspectivas. Devem apresentar prefácio que justifique a importância do texto e sua vinculação com o trabalho de pesquisa desenvolvido pelo tradutor.

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VOLUMES PUBLICADOS

Volume 1A Dama, a Dona e uma outra SórorMaria Lúcia Dal Farra

Volume 2Sartoris:A História na Voz de quem Conta a HistóriaVera Lucia Lenz Vianna

Volume 3A Fronteira e a Nação no Séc. XVIII: Os Sentidos e os DomíniosEliana Rosa Sturza

Volume 4O Outro no (In)traduzível / L’Autre dans l’Intraduisible(Edição Bilingüe)Mirian Rose Brum-de-Paula

Volume 5Pero Sigo Siendo el Rey:Referente e Forma de RepresentaçãoFernando Villarraga Eslava

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Volume 6Aquisição, Representação e AtividadeMarcos Gustavo Richter

Volume 7Da Corpografia: Ensaio Sobre a Língua/Escrita na Materia-lidade DigitalCristiane Dias

Volume 8Perspectivas da Análise de Discurso Fundada por MichelPêcheux na França: Uma Retomada de PercursoAna Zandwais

Volume 9Mitos, Héroes y Ciudades: ecorridos Míticos por Algunas Ur-bes LiterariasPablo Molina

Volume 10Mário Peixoto: O Escritor de Permeio com a CríticaAndré Soares Vieira

Volume 11Manuscritos de linguistas e genética textual : quais os desa-fios para as ciências da linguagem? : exemplo através dos“papiers” de BenvenisteIrène Fenoglio

Volume 12Mário de Andrade: escritor difícil?Sonia Inez Gonçalves Fernandez

Volume 13De cegos que vêem e outros paradoxos da visão: Questões acerca da natureza e da visibilidadeAlcides Cardoso dos Santos

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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRASPrédio 16, Sala 3222 – Bloco A2Campus Universitário – Camobi

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