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VITOR DE MELO SUGIMOTO
CONTOS CONSUMADOSDissertação apresentada ao Programa Interunidades de Pós-Gra-duação em Estética e História da Arte (PGEHA/USP) para obten-ção do título de Mestre em Estética e História da Arte.Orientadora: Profa. Dra. Katia Canton MonteiroLinha de Pesquisa: Teoria e Crítica de Arte
AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL E PARCIAL DESTE TRA-
BALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA
FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
Catalogação da Publicação
Biblioteca Lourival Gomes Machado
Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo
Sugimoto, Vitor de Melo.
Contos consumados / Vitor de Melo Sugimoto ; orientadora Katia Canton
Monteiro. -- São Paulo, 2015.
xxx f. : il.
Dissertação (Mestrado – Programa de Pós-Graduação Interunidades em
Estética e História da Arte) -- Universidade de São Paulo, 2015.
1. Literatura infanto-juvenil (Crítica e interpretação). 2. Contos de fadas –
Japão. 3. Literatura japonesa. I. Canton, Katia. II. Título.
CDD 809.89282
Profa. Dra. Katia Canton MonteiroUniversidade de São Paulo
Profa. Dra. Eliane Dias de CastroUniversidade de São Paulo
Profa. Dra. Maria Zilda da CunhaUniversidade de São Paulo
Nome: SUGIMOTO, Vitor de Melo
Título: Contos consumadosDissertação apresentada ao Programa Interunidades de Pós-Graduação em Estética e História da Arte (PGEHA/USP) para obtenção do título de Mestre em Estética e História da Arte.
Orientadora: Profa. Dra. Katia Canton MonteiroLinha de Pesquisa: Teoria e Crítica de Arte
Aprovado em:
Banca examinadora:
Agradeço a todos que estão entre o começo e o ponto final deste mestrado formando a linha mais consistente que eu poderia imaginar.
“If you can imagine, it is because it is real.”– Pablo Picasso
“You see these fairy stories, these things that are sitting at the back of the nursery shelves? Actually, each one of them is a loaded gun. Each one of them is a bomb. Watch: if you turn it right it will blow up.”
– Angela Carter
“– Porque acha que Truman nunca chegou a descobrir a verdadeira natureza do mundo que o ro-mundo que o ro- que o ro-deia? – Nós aceitamos a realidade do mundo com o qual nos defrontamos. É muito simples.”
– O Show de Truman
Resumo
Misturando o mundano ao universo maravilhoso, esta pesquisa não só ob-
jetivou quebrar a barreira entre realidade fantasia, mas também acabou por revelar
histórias profundamente humanas.
Palavras-chave: Consumo, Folclore Japonês, Artes Visuais, Narrativas enviesadas,
Realidade e fantasia.
Abstract
Merging the mundane and the marvellous universe, the research not only
aimed to break the reality/fantasy barrier, but also ended up revealing deep human
stories.
Key-words: Consume, Japanese folk tales, Visual Arts, Skewed narratives, Reality
and fantasy.
Lista de imagens
p. 141 fig. 1 Vitor de Melo Sugimoto, When you are alone in the woods, you always see faces, 2015. Busto, pano, árvores artificiais e acrílica sobre fórmica, 90 x 119 x 36 cm.
p. 155 fig. 2 Vitor de Melo Sugimoto, A mulher que não come nada, 2014-2015. Mesa, linho, prato, espelho, rede e cerâmica, 75 x 130 x 180 cm.
p. 173 fig. 3 Vitor de Melo Sugimoto, I will always, always find you, 2015. Vidro, areia, caixa de ma-deira, pote de remédio e creme anti-idade, 34 x 19 x 33,5 cm.fig. 4 Detalhe da obra I will always, always find you.
Sumário
Parte 1Atrás de cada cortina
012 – 035Introdução
036 – 054Bem vindo aos contos japoneses
055 – 070Um modelo a ser seguido070 – 094Praticamente inofensiva, ou a forma moda
095 – 110Sem ordem particular110 – 114Parte das partes
Parte 2Contos e reflexões
116 – 121A donzela sem mãos121 – 140Um jogo de você140 – 141When you are alone in the woods, you start to see faces
142 – 145A mulher que não come nada145 – 153Os prazeres deste mundo154 – 155A mulher que não come nada
156 – 159Urashima Tarō159 – 171Viver para sempre171 – 173I will always, always find you
174 – 177Final feliz ou fim de tudo?
178 – 180Bibliografia
Parte 1
Atrás de cada cortina
Introdução
Esta é uma pesquisa de caráter interdisciplinar inserida na linha da teoria e crítica de arte cuja proposta é o resgate cultural de três contos japoneses1 que
serão analisados dentro dos conceitos da forma moda2, com o objetivo de dissolver
a barreira entre realidade e fantasia mostrando que podemos vivenciar esses contos
através do consumo.
A pesquisa tem como objeto três contos da cultura japonesa. A escolha está
apoiada em uma das características da cultura japonesa: a membrana que separa
os contos da realidade é quase inexistente. Elementos como locais e personagens
são reais, fazendo com que esses contos fossem disseminados como lendas e avisos,
além de serem utilizados em diversos segmentos midiáticos como filmes, comercias,
livros, etc.
A quebra da barreira entre realidade e fantasia levou a hipótese de que
podemos experimentar essa ruptura através dos contos folclóricos, os quais têm
enterrado elementos que se desdobram em experiências vividas no dia a dia
mudando nossa percepção do que é real e do que é fantástico. Analisá-los dentro
da moldura da forma moda indica quanto do fenômeno do consumo praticado no
cotidiano capitalista está contido dentro de produtos rotulados da fantasia humana.
A análise foi feita utilizando a teoria de Gilles Lipovetsky após um contato inicial
1 “A donzela sem mãos”, “A mulher que não come nada” e “Urashima Tarō “.2 Forma moda é um conceito estipulado por Gilles Lipovetsky para definir o tipo de consumo que rege a sociedade contemporânea. Constitui o conceito da forma moda o tripé sedução-efêmero-diferenciação marginal; e esse tipo de consumo surgiu dentro da indústria da moda e se estendeu para outras áreas.
013
com o livro “O império do efêmero”, no qual foram encontradas características que
são compartilhadas com os contos selecionados para esta pesquisa, fazendo com
que o elo que amarre a escolha desses contos fosse o mesmo. Objetiva-se também
a criação de três tridimensionais que habitam e operam no mesmo ambiente que
o homem a partir da interpretação dos contos selecionados, uma vez que o autor
está inserido na área da arte contemporânea e que a poética dos contos permeia
a coexistência de mundos e planos para mudar a percepção de espaço em que o
homem se encontra.
Uma das inspirações para essa pesquisa se originou a partir da observação
de diversos Ukiyo-e, xilogravuras japonesas que retratam o cotidiano do Japão
feudal. Justaposto ao tema do cotidiano, também estão presentes em diversas
xilogravuras os espíritos, demônios e diversos outros “habitantes” do Japão antigo,
como se estivessem presentes no dia a dia das pessoas. Vestígios desses elementos
ainda são encontrados através da oralidade e festividades que ocorrem em todo
o Japão. Apesar de a sociedade ao longo dos anos ter superado esse modo de
pensamento, ainda podemos nos sentir inseguros quando nossa realidade é abalada,
trazendo de volta o pensamento primitivo de que era possível viver ao lado de
demônios. Com os contos selecionados, essa pesquisa pretende mostrar que em
nossas vidas algo familiar a esses contos pode acontecer e que isso parece confirmar
as velhas crenças.
Acredita-se que a realidade é governada por leis imutáveis que garantem
a segurança do mundo real. Essa pesquisa, ao colocar em confronto contos
014
fantásticos e uma teoria que explica o consumo contemporâneo, semeia uma
incerteza na percepção do que é a realidade. A existência de uma realidade
diferente da nossa nos leva a duvidar de nossa própria existência, acreditando que
debaixo dessa verdade absoluta exista uma realidade incompreensível, que foge à
lógica da nossa realidade e provoca uma “dúvida sobre nossa própria existência, o
irreal passa a ser concebido como real, e o real, como possível irrealidade”3.
David Roas estabelece uma dicotomia clara entre o conto fantástico e o
conto maravilhoso. Para ele, o fantástico acontece quando as leis temporais e físicas
da realidade são quebradas por uma aparição sobrenatural como, por exemplo,
um fantasma. Por outro lado, o conto maravilhoso se apresenta como um conto
natural, pois no mundo criado nesses contos tudo pode acontecer, os seres que
habitam esse mundo não são considerados fantásticos, já que eles não intervém
na nossa realidade4, como nos exemplos da trilogia “Senhor dos Anéis”, escrita por
J. R. R. Tolkien, e dos contos de fadas. Entretanto, os contos japoneses, ao utilizar
personagens reais e localidades onde coisas extraordinárias acontecem, parecem
não entrar nem no que Roas define como conto maravilhoso, nem no fantástico,
mas sim na categoria de “realismo maravilhoso”. Um discurso que não entra na
polêmica entre o real e o imaginário, ele relata acontecimentos improváveis de se
realizar dentro de uma visão da realidade.
3 ROAS, David. A ameaça do fantástico: aproximações teóricas. São Paulo: Editora UNESP, 2014, p. 32.4 ROAS, p. 33-34.
015
Os contos utilizados nessa pesquisa apresentam a vida cotidiana da
história do Japão, assim como as localidades retratadas em todos os seus detalhes e
personagens (alguns reais), no entanto, a vida desses personagens entra em ruptura
com a aparição ou acontecimento de algo que foge do entendimento do que é
real; conceitos utilizados numa categoria que integra o real e o extraordinário no
mesmo plano. O realismo maravilhoso apresenta acontecimentos extraordinários
como se fossem corriqueiros aos personagens, fazendo com que o leitor aceite o
que é narrado como se fosse natural. Os contos japoneses parecem habitar essa
categoria de realismo maravilhoso, já que eles não provocam um enfrentamento
entre a realidade e o fantástico. Mas, ao utilizar um mundo não diferente do leitor,
eles superam a dicotomia natural/sobrenatural e evidenciam que o irreal é parte da
realidade cotidiana5.
Essa pesquisa propõe mostrar que no consumo podemos vivenciar um
“realismo maravilhoso” como nos contos japoneses, nos quais o sobrenatural e
o fantástico não são uma exceção, e sim algo habitual, cotidiano, mas oculto ao
nosso olhar. A pesquisa também expõe que confrontamos a nossa realidade através
dos personagens dos contos selecionados: consumimos nossos desejos como o
protagonista do conto “A mulher que não come nada”; personalizamo-nos da mesma
forma que a donzela sem mãos; vivenciamos a suspensão do tempo como Urashima
Tarō. O mundo apresentado nos contos é o nosso mundo e nós estamos nos
5 ROAS, p. 36.
016
vendo representados no texto. Para fazer isso a pesquisa vai estruturar a paisagem,
formada por nossa realidade, e depois colocará os personagens no palco, os seres
humanos que vivem seu cotidiano da mesma forma que os personagens dos contos
maravilhosos selecionados.
O seguinte caso ilustra bem como a presença do fantástico permeia o
cotidiano Japonês: Em 21 de maio de 2000, um agricultor japonês residente da
pequena cidade de Yoshii, na província de Okayama, encontrou na grama um corpo
de um organismo que lembrava uma cobra. Respeitosamente o agricultor enterrou
o corpo, que posteriormente fora desenterrado por um funcionário da prefeitura
porque desconfiava que o corpo era na verdade um “Tsuchinoko6”, que foi então
então entregue a um especialista em Biologia da Kawasaki University of Medical
Welfare para determinar a veracidade. Um mês depois, os resultados das pesquisas
revelaram que não era um Tsuchinoko, mas um corpo malformado de uma espécie
de cobra7.
O resultado não desanimou os cidadãos. Buscas pelo Tsuchinoko
começaram, a notícia de um possível encontro com o lendário réptil percorreu
todos os noticiários no Japão e todos ficaram sabendo dessa cidade que ficou
conhecida como a região do Tsuchinoko. A prefeitura organizou buscas estratégicas;
6 Tsuchinoko é um réptil lendário,presente no folclore Japonês, cuja existência nunca foi comprovada. De acordo com o site de Yoshii (http://www.city.akaiwa.lg.jp/tutinoko/tuti.html), suspeita-se que exista dois tipos de Tsuchinoko: o tipo A, que tem um corpo longo e se move como uma minhoca; e o tipo B, mais achatada que o tipo A e que pode pular cinco metros ou mais.7 http://www.city.akaiwa.lg.jp/tutinoko/hajime.html
017
vinhos8 e outros produtos relacionados ao Tsuchinoko foram comercializados; e a
crença nesse réptil ficou mais forte do que nunca.
Criaturas lendárias no Japão têm a capacidade de transitar em diversos
sistemas, seja comercial como o vinho, científico como a pesquisa na Universidade
ou de crenças como a mobilização das pessoas em busca do lendário réptil. O
folclore japonês está tanto enterrado na pequena cidade de Yoshii como inscrito há
milhares de anos na cultura do país, engendrando medo, esperança, paixão, festivais,
produtos comerciais e pesquisas científicas9. Por fim acaba por estender-se por toda
a superfície real e fantasiosa da sociedade que, dessa forma, começa um processo de
dissolução de qualquer diferenciador (vide a mobilização das várias disciplinas em
relação ao caso do Tsuchinoko).
O folclore japonês não pluraliza mais os espaços, ele os torna um só. O
espaço fica homogêneo, com suas fronteiras turvas, englobando todos os sistemas
da sociedade. O espaço científico, a comercialização de produtos em diversas
mídias, os jogos, os contos que permeiam o boca-a-boca: todas essas formas
culturais tomam forma e também dão forma através dos eventos que os circundam,
servindo como materiais de pesquisa e indícios de ações e eventos.
O consumo também dissolve fronteiras. Os produtos relacionados ao
Tsuchinoko engendraram uma turvação do que está relacionado com o comercial
8 http://www.city.akaiwa.lg.jp/tutinoko/syohin.html9 FOSTER, Michel Dylan. Pandemonium and parade: Japanese monsters and the culture of yōkai. University of California Press, 2009, p. 02.
018
e que o não é, provocando uma incerteza entre o que pode ser consumido e o que
não pode.
“A sociedade de consumo é programação do cotidiano: ela manipula e
quadricula racionalmente a vida individual e social em todos os seus interstícios;
tudo se torna artifício e ilusão a serviço do lucro capitalista e das classes
dominantes”10. Nada escapa à lei da mudança e das paixonites, da sedução e da
diversificação, estrutura originária do reino da moda. Essa estrutura tripolar não se
identifica apenas com a indústria de luxo de uma elite social, ela também se localiza
dentro do perfil de nossas sociedades. Para Lipovetsky, é sob a lei da sedução,
obsolescência e diversificação, inauguradas na indústria da moda, que se estrutura
a sociedade de consumo. Nada vai escapar, a estrutura que rege a sociedade de
consumo aglutina e devora todos os setores; apesar de eles repousarem sobre
critérios específicos, a forma moda vai cruzá-los e por vezes rearticulá-los a serviço
do consumo.
O oferecimento de mudança de ares, lazer, sonho e esquecimento sustentam
a indústria do consumo. Capaz de promover a evasão, o consumo carrega as pessoas
e as faz esquecer da miséria e monotonia do cotidiano. Consumimos o que o real
não nos proporciona.
O horizonte cultural aparece com importância já que os contos utilizam
de um ambiente extratextual, um ambiente dentro do âmbito da realidade de cada
10 LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 182.
019
leitor, onde a noção de realidade pode variar entre determinadas culturas, uma vez
que o leitor estabelece uma relação entre a história narrada e seu próprio mundo. A
conexão Ocidente/Oriente aparece aqui quando a análise dos contos japoneses com
uma teoria ocidental é efetuada, quando características de nossa época são apoiadas
com a narrativa ancestral que ajuda a elaborar essa concepção de mundo.
A conexão entre o Japão e o Ocidente não é nova, abordagens já eram
realizadas desde períodos medievais, passando pela história da arte, religião, mídia e
consumo. A coleção dos contos folclóricos no Japão foi trabalhosa porque a maioria
era contada oralmente ou por meio de imagens que, quando vistas, levavam as
pessoas a lembrar dos contos11. O modo como foi catalogado teve referências com
catalogações ocidentais, principalmente do trabalho de Aarne Thompson e Miss
Charlotte-Sophie Burne, cujos trabalhos foram usados como referência por Kunio
Yanagita. Dessa forma, ele pôde estabelecer relações e similaridades entre os contos
ocidentais e japoneses. Com isso, foi possível encontrar contos que possuíam a
mesma forma ou partes similares com os contos encontrados na catalogação dos
irmãos Grimm; é estimado por Kunio Yanagita que haja 50 contos12 similares,
entre eles o conto “A donzela sem mãos”. Kunio Yanagita coloca que essa importação
de contos poderia ter chegado ao Japão após o comércio com bárbaros do sul13,
11 YANAGITA, Kunio. The Yanagita Kunio guide to the Japanese folk tale. Indiana University Press, pg. xx.12 Ibidem, pg. xxiii.13 Peíodo do comércio com bárbaros do sul, ou Período do comércio Nanban, é o intercâmbio entre o Japão e os primeiros europeus no período de 1543 até a exclusão total dessa rota entre os anos 1637 e 1641. A palavra “nanban” foi empregada para
020
porém há outros contos mais antigos do que esse contato com os estrangeiros. De
qualquer forma, é algo polêmico para se provar, caindo apenas em hipóteses, já que
existem contos em regiões que não entraram em contato com o Ocidente e contos
datados antes da abertura do Japão com o Ocidente.
A troca entre Ocidente e Japão também ocorreu com artistas viajantes.
A ligação entre França e Japão nas artes vem desde o final do século XIX.
Japonismo, o efeito da arte japonesa na França, é um fenômeno reconhecido, mas
a reciprocidade tem igual importância. O Japão teve outras influências europeias
durante esse período; particularmente alguns artistas foram inspirados pelos
alemães, ingleses e espanhóis. Porém, o principal foco da relação artística de 1890 a
1930 foi estabelecido entre Paris e Tóquio.
A apreciação pela arte japonesa começou com a ida dos europeus, a maioria
missionários católicos, em 1508 para criar o que ficou cunhado como século do
cristianismo no Japão. Os europeus levaram consigo objetos e obras de arte que
foram estudados por artistas japoneses que, posteriormente, criaram algumas obras
demonstrando seu interesse pelas técnicas fundamentais da arte do Ocidente,
como perspectiva e luz e sombra. Esse intercâmbio se encerrou quando Shogunato
Tokugawa consolidou-se em 1600 decidindo, assim, cortar o contato do Japão
com as nações da Europa. Apenas os protestantes holandeses foram permitidos
a continuar seu contato com os japoneses através do porto de Nagasaki; somente
designar estrangeiros recém-chegados.
021
através dessa pequena abertura é que os japoneses colhiam informações do
Ocidente, incluindo relacionadas à arte.
Em 1868, o imperador Meiji tomou o poder derrotando Shogunato
Tokugawa (Era Edo ou Período Tokugawa, 1615 – 1868), assim abrindo o país
para as influências exteriores; período que ficou cunhado como Era Meiji (1868
– 1912) e cujo slogan era Bunmei Kaika, ou Civilização e Iluminismo. Em poucos
anos o país absorveu vorazmente tudo o que vinha do Ocidente, estudava desde
o sistema de bancos até saneamento básico, projetos de locomotivas, vestuário
ocidental, estratégias navais, filosofia alemã, lei constitucional prussiana, arquitetura
francesa e literatura realista. E muito mais foi incorporado e adaptado.
No século XIX, muitos países da Europa e muitos ao redor do mundo
colocaram Paris como centro da civilização e das artes, particularmente no tocante
às artes visuais e à literatura. A França começou a atrair um grande número de
talentosos escritores e artistas a partir de 1880. No caso do Japão, pintores em
particular eram muito encorajados pelo sucesso, tanto na França como em terras
nipônicas.
O artista japonês Kuroda Seiki (1866 – 1924) era fluente em francês,
conheceu importantes artistas em Paris e teve seu trabalho admirado na cidade, já
que os franceses também ajudaram a encorajar os japoneses a procurar obras de arte
na Europa. Excitado por esse interesse dos japoneses, Paul Claudel (1888 – 1955),
famoso poeta e dramaturgo, viajou a Tóquio como embaixador francês em 1921 e
organizou uma exposição em Tóquio com pinturas de grandes mestres franceses,
022
incluindo Cézanne, Renoir, Signac, Bourard, Demis, Vlaminck, Rodin, Bourdelle e
outros. Por volta dos anos 20, tornou-se possível, para ambos os públicos e artistas,
ficar em contato com as obras europeias, tanto clássicas quanto contemporâneas.
Asai Chū, pintor japonês, escreveu para seu irmão: “parece de alguma forma ser
possível alcançá-los afinal de contas”.
A Segunda Guerra Mundial teve resultado catastrófico para o Japão, único
país a ser atingido por duas bombas atômicas. O Japão pós-guerra foi alimentado
pela cultura americana, a diplomacia entre os dois países resultou em mais do que
a permanência de bases militares americanas no solo japonês e, menos de dez anos
depois, Tóquio foi destruída novamente. Gojira, ou Godzilla na versão americana,
é a metáfora para o resultado nuclear que o Japão sofreu. A valorização da natureza
expressada na cultura japonesa adquire uma forma animalesca e destruidora
após testes nucleares. Esse terror latente proveniente da era nuclear envolve
uma problematização entre política, ambientalismo, tecnologia nuclear e mídia;
fatores que influenciariam o pós-guerra japonês nos anos seguintes. Gojira é uma
hibridização entre Japão e o Ocidente.
Outra hibridização mais contemporânea e dentro da indústria e mercado
das artes é Takashi Murakami. Rotulado pela crítica como o Andy Warhol
japonês, Murakami construiu sua poética como um resultado do gosto japonês
com o Ocidental, mais especialmente o Americano, já que ele coloca Nova York
como um ditador do gosto Ocidental. Para que criasse algo que seguisse o gosto
tanto japonês quanto Ocidental, ele primeiramente se estabeleceu em Nova York,
023
ajustando sua arte para o gosto americano. Com o reconhecimento adquirido lá, ele
voltaria ao Japão modificando novamente sua arte e, por fim, voltaria ao Ocidente,
mas agora mostrando seu verdadeiro tempero que seria compreendido por toda
a audiência14. Além de comandar a empresa Kaikai Kiki Co. Ltd., entre Tóquio e
Nova York, ele também foi curador da exposição Little Boy, na qual apresenta um
estudo sobre a cultura visual japonesa após a Segunda Guerra. É essa cultura que
é a base de um dos personagens que frequentemente aparecem em suas pinturas
(o Mr. DOB, uma espécie de Mickey Mouse pós-nuclear), de sua poética e de seu
manifesto, o Super Flat.
O manifesto Super Flat se refere não só à bidimensionalidade da animação
japonesa, a qual tem grande influencia em suas obras, mas também descreve a
dissolução das fronteiras entre os gêneros da alta e subcultura. Além disso, Super
Flat é o resultado do nacionalismo do pós-guerra juntamente com a influência da
cultura americana que moldou o Japão durante o período moderno e que formou a
cultura Otaku15. Hoje, Otaku é considerada um dos fatores mais importantes para
análise da cultura contemporânea japonesa, os produtos originados desse grupo
cultural são internacionalmente aceitos e o mais importante é a influência que essa
cultura tem sobre a sociedade japonesa. Em entrevista ao Journal of Contemporary
14 MURAKAMI, Takashi. Takashi Murakami: summon monsters? open the door? heal? or die?. Tokyo, Museum of Contemporary Art Tokyo, 2001, p. 131.15 “Otaku” é uma palavra japonesa que indica um novo grupo cultural que emergiu na década de 70. É constituída de consumidores fanáticos de várias subculturas da pós-guerra (anime, manga, Sci-Fi, filmes de super-heróis japoneses, etc).
024
Art16, Murakami ressalta: “... eu pensei que eu poderia entender um pouco da
presente situação do Japão analisando a cultura Otaku. Então em 1993 eu comecei
a incorporar essa cultura no meu trabalho”.
Otaku é um grupo cultural que surgiu no Japão na década de 70 e que
consiste de consumidores fanáticos de produtos da subcultura japonesa do
pós-guerra, como por exemplo o manga, anime, Sci-Fi, computadores e filmes
tokusatsu17. Hoje, é um dos mais importantes fatores na análise da cultura
contemporânea japonesa devido à aceitação internacional de seus produtos e
também porque sua mentalidade vem conquistando grande influência na sociedade
japonesa. A cultura Otaku está conectada a problemas de identidade do Japão pós-
guerra.
Desde a Segunda Guerra Mundial, é presente no Japão o sentimento de
que qualquer atitude que busque a volta aos costumes tradicionais do país seja vista
(ou seja entendida) como uma tentativa de eliminar os crimes de guerra cometidos.
O resgate de uma tradição nas artes, literatura ou sistema de governo imperial
gera a sensação de não ser algo genuíno; isso porque o cenário atual do Japão é
tão americanizado que se torna estranho ver qualquer surto de tradição, seja nos
templos e edifícios da era Edo ou nas festas costumeiras. A indigestão cultural
desde a Era Meiji toma forma com um cenário ao mesmo tempo moderno e com
16 http://www.jca-online.com/murakami.html17 Filmes e séries de televisão que usam os efeitos especiais. Por exemplo: Black Kamen Raider, Jaspion, Jiraya, Changeman, National Kid, Gojira e Ultraman, entre outros.
025
resgate espiritual.
Japão hoje tem sua paisagem e identidade dominadas por McDonalds,
Seven-Elevens, computadores, histórias em quadrinhos, celulares, tecnologia de
ponta, jogos eletrônicos – tudo de origem da cultura americana introduzida na sua
ocupação após o término da Segunda Grande Guerra. A cultura Otaku surge então
como um reflexo disso, uma identidade que domina o cenário atual do Japão, mas
que é híbrida, bastarda e dominada pela cultura pop americana. A cultura Otaku
é resultado de uma domesticação que correu paralela ao boom econômico que o
Japão sofreu e à recuperação de sua confiança nas décadas seguintes, fazendo com
que essa cultura se tornasse parte da identidade distorcida japonesa, um simulacro
de um templo tradicional ao lado de um robô gigante. É como se fosse um desejo
de recuperar sua tradição, em especial a da Era Edo (período perdido, mas não
esquecido, que antecedeu a Era Meiji e a abertura à cultura estrangeira e que
acabou se tornando não só um período histórico, mas também um espaço cultural),
e ao mesmo tempo negar a influência cultural norte americana.
Em 2011, o governo japonês ofereceu passagens aéreas para estrangeiros
visitarem o Japão para promover o turismo pós o evento de Fukushima. Os
inscritos poderiam escolher quais áreas gostariam de visitar e no final teriam que
redigir um texto sobre sua experiência no solo japonês, que seria publicado pelo
governo na tentativa de reverter as preocupações de viajantes com o vazamento de
026
radiação18.
Todos esses eventos são significativos, envolvem uma problemática latente
na contemporaneidade entre o leste e o oeste, que abarca desde as guerras contra o
terrorismo até a ameaça de mercados financeiros, tanto na economia mundial como
no mercado das artes com o boom da arte asiática.
O orientalismo é uma visão da realidade cuja estrutura promove o familiar
(Ocidente) e o estranho (Oriente). O Oriente no orientalismo é um sistema
de representações emoldurado por um conjunto de forças que introduziram o
Oriente na cultura, consciência, concepção e, mais tarde, no império ocidentais19.
O Oriente sempre foi associado a um largo campo de imaginação exótica que não
necessariamente correspondia ao Oriente real, portanto só o uso da palavra oriental
já era suficiente para o leitor identificar um vasto corpo de informações sobre o
18 Japão vai oferecer 10 mil passagens aéreas para incentivar turismoO governo japonês vai oferecer 10 mil passagens aéreas a estrangeiros para que queiram visitar o país no próximo ano. Os interessados terão de se inscrever via internet a partir de abril para concorrer ao novo esquema criado pela Agência de Turismo do Japão para incentivar turistas a viajar pelo país. Na ficha de inscrição, os interessados terão de especificar quais áreas gostariam de visitar. A agência, que faz parte da Secretaria de Turismo, irá selecionar então os felizardos que terão de escrever uma redação sobre sua viagem. Os artigos serão publicados na internet. As autoridades de turismo esperam conseguir muitos relatos positivos sobre as experiências de turistas estrangeiros no Japão para tentar reverter as preocupações de viajantes com vazamentos de radiação e terremotos. http://epocanegocios.globo.com/Revista/Common/0,,EMI271842-16418,00.html19 SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 209.
027
Oriente, como a personalidade de seus habitantes ou atmosfera local20.
No livro “Orientalismo”, Edward W. Said defende que esses aspectos
exóticos atribuídos ao Oriente pelo Ocidente provêm numa porcentagem maior
de aspectos políticos. Esse discurso que se firmou no Ocidente foi imposto porque
supunha o Oriente como mais fraco tecnologicamente, tornando-se um discurso de
caráter racista, imperialista, agressivo e etnocêntrico. O reconhecimento ocidental
está mais associado a ter o conhecimento de algo para poder ter autoridade sobre
ela21. Ter o conhecimento total é assumir ter o controle de sua audiência, já que se
conhece todas as regras, consequentemente não deixando espaço para o outro se
envolver. Enquanto os viajantes orientais iam ao Ocidente para ficar espantados
com a cultura avançada, os viajantes ocidentais que iam ao Oriente eram
diferentes, tinham o objetivo de conhecer para poder ser examinado, estudado,
julgado e por fim disciplinado ou governado22. O que o Ocidente conhece do
Oriente é sem aprofundamento e com muitos esterótipos. Para muitos territórios
orientais, a terra em que vivem é a que o Ocidente ocupou, seja politicamente ou
comercialmente legitimando o caráter imperialista ocidental23. Essa busca doentia
pelo conhecimento entra em choque com a ideia da totalidade na profunda
cultura espiritual japonesa, enquanto a modernidade ocidental era fria, mecânica,
materialista, superficial, desenraizada e inibidora da criatividade.
20 SAID, p. 210.21 SAID, p. 43.22 SAID, p. 51.23 SAID, p. 44.
028
Ocidente e Oriente: enquanto um prega o individualismo, o outro defende
a harmonia grupal. Historicamente é característico do Oriente aceitar o mundo
natural e enfrentar suas adversidades de forma intuitiva, criando soluções diante
de problemas encontrados. Se de fato isso levou a grandes avanços tecnológicos,
por outro lado a curiosidade dos povos ocidentais acerca do mundo levou à
compreensão da natureza através de categorias e também às relações entre elas.
Atribuir categorias a objetos e isolar acontecimentos de seu contexto levou à
explicação de fatos e à especialização de temas como física, matemática, filosofia
geometria, etc. A focalização de um tema e sua análise lógica abre campo para a
dissecação do objetivo e para a compreensão máxima de suas particularidades. As
diferentes crenças e posturas refletem na compreensão de mundo, cada um possui
suas ferramentas para lidar com os mesmos problemas e, consequentemente,
apresentam duas realidades diferentes do mesmo espaço.
A globalização oferece acesso a qualquer história de qualquer tempo,
podendo tanto romper quanto construir muros entre culturas, colocando um na
frente do outro e redefinindo fronteiras identitárias - pode-se ver elementos ocultos
de afinidade entre ambos. Hoje, com o aumento dos problemas ecológicos e com a
incerteza de um futuro promissor para o espaço do planeta, encontra-se de forma
latente a busca por um sistema que arregimente a criação de espaços que valorizem
as duas visões.
Esta pesquisa analisou os contos selecionados e seu envolvimento na
realidade através da estrutura da forma moda postado por Gilles Lipovetsky e
029
evidenciou características entre os contos e a vida cotidiana além do envolvimento
do observador com a narrativa através das artes visuais. Os capítulos dessa pesquisa
se dividem em: introdução, que objetiva levantar os muros da cultura japonesa,
do realismo mágico e do consumo, bem como estabelecer as fronteiras de um
modelo de mundo ocidental e oriental; apresentação de características dos contos
folclóricos japoneses e da forma moda; análise dos contos a partir dos conceitos
do Lipovetsky, nos quais os muros entre realidade e fantasia são derrubados; e a
atualização de obras a partir da elaboração de narrativas de cada observador que
partem da imagem.
A bibliografia selecionada para a introdução aos contos vem de autores
japoneses e americanos que desenvolvem pesquisas dentro do folclore japonês.
Apesar de alguns contos de fadas ocidentais (“A donzela sem mãos”, por exemplo)
serem encontrados dentro da cultura japonesa, a grande diferença está no modo
como a história é contada. Enquanto nos contos ocidentais a relação Deus e
Diabo está por trás dos acontecimentos (isso por causa da influência da igreja), nos
contos japoneses é a Natureza, sob influência Budista, Xintoísta e Taoísta, que está
por trás de todos os eventos. Por isso, o mundo em que os contos se passam é o
próprio Japão, com suas montanhas, plantas, animais, rios e mudanças de estações.
Um lugar onde homem, natureza, espíritos e demônios dividem o mesmo espaço
sem que um domine o outro. Outras características também diferem os contos
ocidentais dos japoneses: o tipo da punição, os proibidores e o tesouro encontrado
nos quartos proibidos. Enquanto nos contos ocidentais são encontrados cadáveres
030
e ouro, nos japoneses são descobertos belezas naturais como rouxinóis, uma
ameixeira ou uma plantação de arroz.
As criaturas sobrenaturais que habitam os contos têm um discurso híbrido.
Da mesma forma que alguns protagonistas como Urashima Tarō, que transita em
outras formas de literatura e entretenimento, os yōkais e Oni também transitam
em enciclopédias, artigos científicos, literatura, folclore, cinema e outros contextos
culturais. É característico dos contos japoneses a interdisciplinaridade, muitas
tramas acabam se misturando com anedotas, lendas, fábulas e piadas. Os temas dos
contos também são encontrados nas lendas, alguns misturam conteúdos históricos,
incluindo personagens, e outros são adaptados a partir de crenças populares.
No capítulo seguinte é feita a análise dos contos selecionados dentro das
características da forma moda (sedução, diferenciação marginal e o efêmero). A
metodologia usada foi discorrer sobre o conto, levantando características dele que
remetem ao conceito do Gilles Lipovetsky.
O conto “A donzela sem mãos” é analisado dentro do conceito da
diferenciação marginal. Ele fala do corte da relação pai-filha, e como ela é largada
no mundo sem referencial histórico, conseguindo sobreviver ao se adaptar a
cada adversidade que ela encontra. Passagens do conto vão servir como pontes
entre o conceito do consumo e o conto maravilhoso, como por exemplo o uso da
maquiagem na protagonista, a manipulação da informação e a criação de mundos
através das palavras.
“A mulher que não come nada” tem como características a sedução e o
031
culto ao corpo. O produto que consumimos contém todas as características que
procuramos. É nesse contexto que o yōkai aparece no conto ao se apresentar como
uma mulher que não come nada. A criatura conquista a confiança do protagonista
que, sem saber, convive por um tempo com um monstro devorador de cavalos
e pessoas. A criatura age da mesma forma que a propaganda, demonstrando a
excelência de seu produto. Ela encanta o consumidor oferecendo a possibilidade de
usufruir livremente a vida e de se cercar de produtos que enriqueçam sua existência
e lhe deem satisfação.
O último conto é um dos mais tradicionais da cultura japonesa. “Urashima
Tarō” já foi adaptado sob diversas formas e segmentos e o próprio protagonista,
Urashima, já apareceu em outros contos, livros, mangás e diversos veículos do
entretenimento, como comerciais da Varig no Brasil promovendo as viagens da
companhia para o Japão. É nesse conto que é trabalhado o efêmero e o instante
eterno. Esse instante de felicidade que encontramos em cada produto ou
experiência; a sociedade dos consumidores é moldada nessa busca por instantes,
efêmeros e plenos, que promovem a felicidade e o prazer. O consumo nutre a
renovação da vivência do tempo por meio das novidades que se oferecem como
simulacros de aventura. O rejuvenescimento se reinicia eternamente com a
perpétua renovação do self e do presente, combatendo o envelhecimento das
sensações que acompanha a rotina diária.
Para corroborar com Lipovetsky, integram o corpo teórico autores como
Zygmunt Bauman, Michel Maffesoli e Jean Baudrillard. Bauman aponta que as
032
pessoas são estimuladas a aumentar seu próprio valor de mercado promovendo a si
mesmas para não serem excluídas do jogo do consumo. Para obter reconhecimento
e atenção, as pessoas precisam se remodelar como se fossem mercadorias para
atrair demanda e fregueses. No mundo líquido de Bauman as pessoas já não
possuem mais vínculos, compromissos ou ligações emocionais anteriores, quanto
mais líquido o indivíduo, mais preparado para se reajustar de imediato às novas
prioridades e para abandonar as adquiridas anteriormente.
A relação que as pessoas estabelecem entre si foi reconstruída a partir
do padrão e semelhança da relação entre consumidores e objetos de consumo.
O sujeito só vai manter segura sua relevância no mercado se ressuscitar
perpetuamente as características de uma mercadoria vendável. Um sujeito sem
vínculos, para que possa ser refeito quando os cenários mudarem, o que decerto
ocorrerá repetidas vezes.
“Além de sonhar com a fama, outro sonho, o de não mais se dissolver e permanecer dissolvido na massa cinzenta, sem face, e insípida das mercadorias, uma mercadoria comentada, que se destaca da massa de mercadorias, impossível de ser ignorada, ridicularizada ou rejeitada. Numa sociedade de consumidores, tornar-se uma mercadoria desejável e desejada é a matéria de que são feitos os sonhos e os contos de fadas”24.
Para Maffesoli há uma forte ligação entre o trágico e o prazer. Diante da
24 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação de pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 22.
033
dúvida de um progresso infinito da humanidade, o que se vê é a volta de fenômenos
e a incapacidade de intervir no curso que o destino faz assumir. A cultura do prazer
corre junto com a consciência trágica do destino, já que o que resta é a busca do
frívolo, o culto ao carpe diem e o consumo de instantes que se esgotam e que não
projetam um futuro previsível. A multiplicidade de atividades que surgem para
promover o gozo fazem envelhecer o espírito de seriedade em todos os sistemas da
sociedade, engendrando o surgimento do puer aeternus, o jovem eterno. O tempo
do cotidiano se congela para aproveitarmos ao máximo o tempo presente em uma
sucessão de instantes intensos e cíclicos, já que o projeto e o objetivo foi posto de
lado.
Baudrillard analisa como o consumo suscita desejos e de que modo ele
surge na relação entre pessoas e no sistema cultural.
“Vivemos o tempo dos objetos: quero dizer que existimos segundo o seu ritmo e em conformidade com a sua sucessão permanente. Atualmente, somos nós que os vemos nascer, produzir-se e morrer, ao passo que em todas as civilizações anteriores eram os objetos, instrumentos ou monumentos perenes, que sobreviviam às gerações humanas”25.
Vivemos rodeados por eles, produto da atividade humana. Assim como
eles, devemos nos reciclar todos os anos, todas as estações e meses, caso contrário,
não seremos o verdadeiro cidadão da sociedade de consumo. A lógica do consumo
25 BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. São Paulo: Martins, 2009, p. 14.
034
regula não só as mercadorias, mas o trabalho, as relações humanas, o corpo, o
impulso individual e a toda a cultura.
O capítulo das narrativas enviesadas lida com o conceito de uma obra
aberta, que se expande em inúmeras possibilidades de leitura. O capítulo trata
do espaço sócio-histórico e cultural de cada ser humano que pode determinar a
maneira como ele lê e interpreta os elementos que constituem um trabalho. Dessa
forma a narrativa nunca é finalizada nela mesma devido às novas experiências
que ela engendra. Isso não só atualiza os contos, mas também faz com que eles
não fiquem fechados a uma única leitura; e de certa forma os aproxima da vida -
tanto um quanto o outro não são estáticos. A utilização de um conto ancestral da
cultura japonesa, analisado dentro de uma ótica ocidental contemporânea, mostra
a capacidade de uma leitura livre de preconceitos, capaz de atravessar o tempo e
mostrar similaridades entre nós, quebrando barreiras.
Buscou-se demarcar aqui as fronteiras que delineiam esta pesquisa,
apresentar atrás de cada cortina que esconde os bastidores dos palcos onde a
pesquisa se desenrola. Em resumo, as páginas seguintes objetivam derrubar o muro
entre realidade e fantasia através do consumo dos contos selecionados. Em um
mundo em que barreiras são dissolvidas conforme o tempo passa, parece não haver
mais distinção entre os dois planos, vemos conteúdos do cotidiano frequentarem
planos que reinam a ficção e vice-versa. Os contos folclóricos já estão gravados no
imaginário coletivo e parecem falar em uma linguagem semelhante à que vivemos,
mas que nem sempre prestamos atenção. Acredito que esta pesquisa possa agregar
035
ao modo como são analisados os contos em geral; apresentar eles de uma maneira
fora do âmbito das análises feitas dentro da psicanálise não só atualiza esses contos
ancestrais como também abre novas possibilidades do uso deles.
Essa pesquisa lida com três contos que ainda são presentes no Japão. O
capítulo tem como proposta discorrer sobre as características dos contos japoneses
em geral. Alguns autores trabalham os contos japoneses como contos de fadas,
outros como folclore ou fábulas. A escolha do termo se torna diverso pelo fato de
os contos japoneses englobarem tudo, e Keigo Seiki já alerta a mistura dos contos
populares:
“Estes contos incluem, além dos chamados contos de fadas, as fábulas, anedotas e algumas lendas. Isso porque os contos folclóricos japoneses têm motivos que frequentemente se misturam com os temas de outros contos. Por exemplo, alguns temas que aparecem em contos de fadas também aparecem em lendas, outros são justapostos com personagens históricos, e alguns casos são adaptados em crenças folclóricas”26.
O Japão possui um grande estoque de contos populares chamados
mukashibanashi27. Os contos até hoje são recitados por jovens e idosos por todo o
26 [Tradução nossa] These tales include, besides the so-called fairy tales, fables, jokes, anecdotes and a few legends. This is because Japanese folktales have motifs, which often intermix with those of other tales. For instance some motifs that appear in fairy tales are also found in legends, some others are combined with historical characters, and in some cases they are adapted to folk beliefs. KEIGO, SEKI. Types of Japanese folktale. Society for Asian folklore, 1966, p. 02.27 Mukashibanashi literalmente significa “conto antigo” ou “conto de antigamente”. Esse termo tem como origem a forma como contos do folclore eram iniciados, “mukashi, mukashi” (há muito, muito tempo atrás). Keigo Seki coloca outras formas de começar um conto além de “mukashi, mukashi” (nos velhos tempos; há muito, muito tempo atrás). Também era comum começar com “zutto mukashi no ô-mukashi” (há muitos anos atrás) ou “mazu aru tokoro ni , jiji to baba to ga arimashita” (era uma vez um velho e uma velha).
Capítulo 1Bem-vindo aos contos japoneses
037
país. Kunio Yanagita, um importante pesquisador de contos populares japoneses,
coloca que, em diversas regiões, em vez de escreverem sobre os contos, algumas
pessoas instruíam um ou dois discípulos, e através deles os contos continuavam a se
espalhar28.
A primeira tentativa literária escrita japonesa que se tem conhecimento é
o Kiujiki ou Kujiki29, que foi compilado em 620 d.C. sob o apoio do alto escalão
de oficiais e confiado ao clã Soga até sua queda em 645 d.C. quando grande parte
do Kiujiki foi queimado e apenas uma porção, o Kokuki30, foi salva. Muito do seu
conteúdo pode ser encontrado no Kojiki e no Nihongi, exceto por algumas partes
mitológicas.
Em 682 d.C. o imperador Temmu (seu reinado perdurou de 672 a 686 d.C.)
comissionou uma preparação da história dos imperadores e assuntos antigos de
relevância, o que posteriormente levou à compilação chamada de Kojiki, concluída
em 712 d.C. e considerada um monumento da literatura japonesa.
Não se sabe ao certo quão antigos os contos japoneses são. A compilação de
Essa introdução era usada em uma coleção de contos budistas no começo do século VIII chamada de “Nihon ryoiki” e também no “Ise Monogatari”, escrito na metade do século X. No começo do século XIII, era comum a introdução “ima wa mukashi” (foi há muito tempo atrás) nos escritos “Konjaku Monogatari”. idem, p. 02.28 KUNIO, Yanagita. The Yanagita Kunio guide to the japanese folk tale. Indiana University Press, 1986, p. xx.29 “Chronicle of old matters of former ages”, citado no livro ASTON, W.G. Nihongi: chronicles of Japan from the earliest times to A.D. 697. Rutland, Vermont: Tuttle Publishing, 1972.30 “Nationals annals”, citado no livro ASTON, W.G. Nihongi: chronicles of Japan from the earliest times to A.D. 697. Rutland, Vermont: Tuttle Publishing, 1972.
038
contos em um trabalho escrito mais velho que se tem conhecimento é o Kojiki, uma
compilação de eventos dos tempos antigos escrita em 712 d.C.. Portanto, pode-se
especular que contos eram presentes antes dessa data. Kojiki foi comissionado pela
imperatriz Gemmei (seu reinado durou de 707 d.C. a 715 d.C., quando deixou o
trono para sua filha, a imperatriz Gensho) e escrito por O no Yasumaro (morreu
em 723 d.C.), nobre que escreveu a partir da recitação de Hida no Are, um kataribe
ou “contador de histórias” profissional (se um kataribe morre sem deixar um
discípulo na sua família ou vila, os contos se tornam extintos naquele lugar).
O Kojiki continha contos relacionados aos deuses da mitologia japonesa e
mitos inspirados nas praticas Xintoístas e possuía referencias a animais, à natureza
e às paisagens, o que mostra o interesse das pessoas nesses lugares que também
são presentes nos contos japoneses. Outra característica dos contos do Kojiki era a
transformação de homens em pássaros e deuses em animais.
Dois anos depois da finalização do Kojiki, a imperatriz Gemmei decretou
uma ordem para a preparação de um material com conteúdo histórico do Japão.
Em 713 foi decretado o fudoki31 pela corte imperial, que consistia na compilação
feita em várias províncias no que diz respeito à catalogação de relatos históricos
e geográficos, agriculturas, mitologia, lendas e contos de cada região, além da
descrição das províncias, cidades, montanhas, rios e vales. De acordo com Fanny
31 Fudoki significa topografia e foram escritos fudoki de várias província.
039
Mayer32, há uma referência ao conto “Urashima Tarō” no Tango33 Fudoki.
Em 720 d.C., “Nihon Shoki” ou “Nihongi” foi o primeiro documento
histórico do Japão compilado por O no Yasumaro, o príncipe Toneri (filho do
imperador Temmu, viveu de 676 a 735 d.C.) e outros. Assim como o Kojiki, o
Nihongi também continha mitos, tradições e gravações de clãs. Nessas velhas obras
literárias podem ser encontrados fragmentos e temas de vários contos japoneses,
além de lendas na sua forma completa.
O Nihongi é uma compilação de crenças e características pessoais. Teve
início durante o período Asuka (552 d.C. – 645 d.C.), quando o Budismo e a
cultura chinesa entraram no Japão via Coreia; e foi concluído no começo do
período Nara (697 d.C.). A época que o Nihongi cobre é o período de formação de
elementos que hoje vemos como tipicamente japoneses. A obra foi autorizada por
um decreto imperial e completada em 720 d.C. pelo príncipe Toneri e Yasumaro
Futo no Ason, além de pesquisadores, que coletavam material histórico, mitos (que
depois vieram a ser reconhecidos e aprovados como fatos) e histórias relacionadas à
família imperial e a clãs politicamente influenciadores. São passagens heterogêneas
organizadas cronologicamente que tentam formar um conjunto consistente, mas
que não adquire a uniformidade de uma composição histórica.
O Kojiki é mais conhecido e apreciado porque lida com épocas pré-
32 MAYER, Fanny Hagin. Ancient tales in modern Japan: an anthology of japanese folk tales. Indiana University press: Indiana, 2001, p. vii.33 Tango foi uma província litorânea que ficava na área onde hoje é Kyoto.
040
históricas do Japão, com o surgimento da família imperial a partir dos Deuses e
com a religião local, o Xintoísmo. O Kojiki possui eventos míticos e um pouco
históricos, porém não cronológicos, enquanto o Nihongi, mesmo que ficcional,
trabalha com datas, nomes e fatos, pois se achava necessário, tendo como referência
modelos chineses. Ambos apresentam caracteres chineses, mas o Kojiki, que foi
escrito a partir da narração de um japonês com conhecimento do idioma chinês,
possui algumas interrupções, nas quais construções do idioma chinês eram apoiadas
com palavras japonesas escritas foneticamente, resultando em um trabalho com
um estilo literário diferente, mas com conteúdo linguístico mais interessante. O
Nihongi é composto em grande parte na língua chinesa, com exceção dos poemas.
É certo que ambos têm valores importantes atuando como gravação histórica
dos mitos e lendas do Japão e do estabelecimento da unificação política, além da
clarificação do Xintoísmo.
O Kojiki e o Nihongi são as fontes do começo das lendas e mitos do Japão.
São nas páginas dessas compilações que são introduzidos Izanagi e Izanami,
Ama-terasu, Susa-no-o e muitas outras divindades34. Davis Frederick afirma que
os primeiros mitos gravados no Kojiki e no Nihongi são interessantes, apesar de
não poderem ser comparados às lendas seguintes que deram vida à fauna e flora
japonesa, ou às de tradição religiosa, que deram significância ameaçadora e sedosa
34 Izanagi e Iazanami foi o criador e a criadora do Japão, e apartir deles vieram os deuses do Xintoísmo; Ama-terasu é a deusa do Sol; Susa-no-o é conhecido como “o homem impetuoso”, ele é irmão de Ama-terasu.
041
para a Natureza35.
As lendas japonesas são essencialmente poéticas e até mesmo o mais
insignificante inseto do Monte Fuji tem algum conto a respeito.
De acordo com Keigo Seki, havia quatro modos de como os contos eram
gravados: (1) livros; (2) poemas; (3) contos narrados com propósitos religiosos;
(4) narrativas genuínas. A forma literária mais antiga pertence ao primeiro grupo,
“Taketori Monogatari”, “Utsubo Monogatari” e “Ochikubo Monogatari”, todos escritos
no final do século X. “Ise Monogatari”, “Yamato Monogatari” (950 d.C.) e “Heichu
Monogatari” (primeira metade do século X) pertencem ao segundo grupo. Os
contos compilados para propósitos de propaganda religiosa têm como o mais
antigo o “Nihon Ryoiki” (822 d.C.), 116 contos para propagar o Budismo que
foram escritos pelo budista Kyokai. Outras compilações que seguem a mesma linha
são o “Sanboekotoba” (984 d.C.), escrito por Minammoto Tamenori; “Ojoyoshu”
(985 d.C.), escrito por Genshin; “Hobutsushu” (1179 d.C.–1180 d.C.), escrito por
Taira Yasunori; “Uchigiki-shu” (final do século XII); “Kojidan” (1212 d.C.–1215
d.C.), por Minamoto Akikane; e “Hosshin-shu” (1215 d.C.), por Kamo Chomei.
Outras coleções importantes de contos religiosos são do século XIII ao século
XIV: “Shaseki-shu” (1283 d.C.) e “Zodan-sho” (1305 d.C.), escritos por Mujo;
“Genkoshaku-sho” (1322 d.C.), escrito por Kokan Shiren; e “Shinto-shu” (1356
d.C.–1360 d.C.). Os dois primeiros foram escritos por monges budistas para a
35 DAVIS, Frederick Hadland. Myths and legends of Japan. New York: Cosimo, 2007.
042
propagação do Budismo, os dois últimos foram escritos por padres xintoístas para
propagar o Xintoísmo.
A quarta categoria é um conjunto de trabalhos do século XII e XIII.
Dentre os mais importantes está “Godansho” (1104 d.C.–1107 d.C.), um trabalho
que contém lendas, contos e anedotas que eram transmitidos entre aristocratas e
foram escritos por Oê Masafusa. O “Konjaku Monogatari” (31 volumes escritos
por volta de 1120 d.C.) foi a grande coleção de contos daquele tempo. Continha
1031 contos incluindo lendas, folclore, fábulas e anedotas. Os próximos são “Kohon
Setsuwa-shu” (1130 d.C.) contendo 70 contos e “Uji-shui Monogatari” (1212 d.C.–
1221 d.C.) contendo 195 contos36.
Muitos temas do folclore podem ser encontrados nos períodos Heian
(794 d.C.–1185 d.C.) e Kamakura (1185 d.C.–1333 d.C.), quando tratam da vida
de aristocratas e cortesãos, histórias de interesse popular e contos budistas que
tinham a tarefa de doutrinar as pessoas. Começaram a ficar escassos durante os
períodos Muromachi (1392 d.C.–1568 d.C., quando era comum a presença de um
profissional que narrava histórias chamado “otogi-no-shu” e que atendia aos lordes
feudais, contando histórias ao anoitecer), Momoyama (1568 d.C.–1615 d.C.) e
no começo da era Edo (1615 d.C.–1868 d.C.). Nesse período também cresceu a
fama dos Otogizoshi, prosas narrativas que, de acordo com Mayer, eram contadas
durante rondas noturnas ou como passatempo37. Mayer prossegue dizendo que na
36 KEIGO, SEKI. Types of Japanese folktale. Society for Asian folklore, 1966, p. 05-06.37 MAYER, Fanny Hagin. Ancient tales in modern Japan: an anthology of japanese
043
era Edo o desenvolvimento da gravura fez com que os contos parassem de circular;
diversas casas que produziam gravuras começaram a brotar nos centros urbanos e
a distribuir em massa ilustrações que atraíam os olhares e atingiam os gostos das
pessoas, inclusive de estrangeiros.
Todas os contos eram compilados com algum propósito, seja para
propagação de uma religião, documentação de uma região ou até mesmo para
instruir mulheres e crianças na religião, como em “Otogi Sôshi”, livro de ficção
baseado nas lendas e no folclore. Eram impressos em larga escala, porém a data e
o autor são incertos. Graças à introdução de religiões vinda de fora do Japão, como
o Budismo e o Taoísmo, alguns contos são paralelos aos da China e Índia, leste da
Ásia e regiões do Pacífico, e acabaram se juntando aos tradicionalmente japoneses.
Durante o período de 1806–1809, Jacob e Wilhelm Grimm começaram a
juntar materiais relacionados ao folclore que nos anos seguintes culminaram em
diversos livros. Em 1858 o Japão assinou um tratado com os Estados Unidos, Grã-
Bretanha, França e Rússia e, considerando que nessa época a coleção de contos já
estava em andamento na Europa, era de se esperar que esses países começassem a
ter interesse pela cultura japonesa. Os grupos que tinham interesse eram formados
por missionários, diplomatas, professores e negociantes, embora não estivessem
totalmente organizados em volta do que gostariam de saber. Alguns tratavam como
fábulas, lendas ou contos de fadas para crianças dormirem38.
folk tales. Indiana University press: Indiana, 2001, p. viii.38 MAYER, p. ix.
044
Era de se esperar uma barreira cultural, os costumes japoneses não eram
muito bem compreendidos pelo gosto vitoriano dos estrangeiros. O idioma, as
viagens restritas e outras circunstâncias também dificultaram. Soma-se a isso
também a descrença dos japoneses no interesse dos estrangeiros pela cultura
local - em vez de apresentarem seu folclore, mostraram mitos, histórias de heróis
e costumes tradicionais. Muitas palavras nos contos japoneses são escolhidas pelo
som e pela sensação que elas provocam, o que tornava difícil para estrangeiros
compreenderem e as recitarem. Há um grande uso de onomatopeias no idioma
japonês, o que também dificulta a tradução para o idioma ocidental, e qualquer
mudança feita acarretaria em uma perda de ritmo, humor e sabor do original. A
barreira cultural é a que mais dificulta a comunicação de estudiosos dos contos
japoneses: isolar as principais passagens dos contos e adaptá-los a um padrão
internacional os deixaria longe da filosofia que eles pregam.
Kunio Yanagita (1875 – 1962) foi o pioneiro em compilar os contos
japoneses, e diversas circunstâncias fizeram-no começar uma compilação desses
contos. O trabalho começou no jornal “Tabi to dansetsu” (começou em 1928 e
continuou até 1943, somando um total de 16 volumes publicados). Duas edições
foram dedicadas aos contos e através deles se descobriram centros de interesses por
todo o Japão, inclusive com variantes dos contos. Encorajado, foram elaborados
outros planos. O primeiro consistia em publicar um guia para coletar contos
chamado “Mukashibanashi saishu techo” (1936). Limitada a cem contos conhecidos
e acompanhada com uma folha em branco ao lado de cada conto, para que o leitor
045
escrevesse novas variações, essa publicação se tornou a base para o livro “Nihon
mukashibanashi meii”39.
O outro passo foi a publicação do jornal “Mukashibanashi kenkyu” (1935–
1937), do qual qualquer pessoa podia participar. Porém, contos falsos começaram
a chegar e o trabalho em separá-los dos verdadeiros se tornou complicado. O
jornal, que também não alcançava todas as regiões, durou por dois anos. O terceiro
passo foi enviar cartas para pessoas que tinham interesse no que Yanagita e seus
entusiastas estavam realizando, além de enviar membros do grupo para coletar
contos de tempos em tempos. Algumas referências começaram a surgir de lugares
que eles não tinham contato e onde puderam perceber diversas variações do mesmo
conto. O passo seguinte foi a publicação do “Zenkoku mukashibanashi kiroku”
(1942–1944), uma coletânea de contos obtidos por todo o Japão. A publicação
perdurou durante a guerra por causa de seu conteúdo simples, o que fez com que
publicassem 13 volumes no total e atingissem mais pessoas do que o esperado.
Os contos japoneses são associados ao interior do Japão e geralmente eram
transmitidos oralmente. Não fosse pelo interesse da aristocracia, dificilmente esses
contos teriam sido escritos.
Personagens históricos do Japão frequentam os contos, como por exemplo
dois onmyōji40, Kamo no Tadayuki e seu filho Kamo no Yasunori. O conto fala que,
39 The Yanagita guide for japanese fairytale.40 Praticantes oficiais do Onmyōdō, prática tradicional do Japão que envolve uma mistura de ciências naturais e ocultismo.
046
aos 10 anos, Yasunori acompanhou seu pai, Tadayuki, em um exorcismo, depois
relatando a presença de demônios no local. Tadayuki, ficou surpreso que o filho
os tenha visto sem treinamento e termina o conto com grandes expectativas em
relação ao futuro da criança.
Yasunori viveu de 917 d.C. a 977 d.C., durante o período Heian. Era
consultor do imperador para resoluções espirituais para certos problemas e acabou
ficando a cargo da criação do calendário, já que as datas naquela época não
correspondiam ao reinado de um imperador ou a qualquer outra coisa, podendo
começar e terminar a qualquer tempo. Cabia aos melhores praticantes do yin-yang,
como Yasunori, decidir o período do calendário. O resto da geração do clã Kamo
ficou com a posse do calendário.
O que faz com que esses contos tenham uma verossimilhança é o uso de
descrições de objetos, casas, lugares e jardins do cotidiano. Províncias, capitais e
locais reais também são presentes nos contos japoneses, principalmente as capitais
e seus arredores. A capital era o lugar da elegância, das artes, da educação – era o
lugar da civilização e da residência imperial, e mudava cada vez que o imperador
morria. Portanto, Kyoto aparece em muitos contos, com lugares como Suzaku
Oji, que foi a principal avenida que ligava o portão sul do palácio até o portão
principal da cidade. De acordo com o conto, o portão da cidade era moradia de
um demônio tocador de flauta. Os próprios palácios se tornam pontos de encontro
047
em alguns contos como “The genie”41 ou “Singed fur”42. O rio Katsura já foi local
onde pessoas expressaram suas mágoas, enquanto o rio Kamo foi local da aparições
fantasmagóricas. Em 710 d.C., Nara se tornou a capital permanente do Japão,
aparecendo em muitos contos devido às instituições religiosas Budistas e Xintoístas
(que também se tornaram presentes em alguns contos) fundadas na região, e ao
desenvolvimento na civilização japonesa que ocorreu no século VIII.
A história do Japão serve como alimento para os contos. Figuras
importantes como o clã Fujiwara aparecem em contos como “Men´s best friend”43,
além de nobres como o ministro Toru Minamoto, que apareceu como fantasma
na sua própria mansão tentando espantar o aposentado imperador Uda, que lá
morava, no conto “No nonsense!”44. O imperador Uda e o ministro Toru voltam
a ser protagonistas no conto “Quite a bit of nonsense”45, no qual o ministro, como
fantasma, tenta um atentado contra o aposentado imperador. É compreensível
o uso de imperadores nos contos devido a sua “aura especial”, até mesmo para
os nobres, mas é também impressionante o uso de pessoas como protagonistas
de todas as classes sociais. Além de imperadores e ministros, guardas do palácio,
polícia imperial e pessoas comuns aparecem nos contos, embora os nomes
pudessem ser quaisquer uns.
41 TYLER, Royal. Japanese Tale. New York: Pantheon Books, 1987.42 TYLER.43 TYLER.44 TYLER.45 TYLER.
048
A religião também está presente nos contos. Quatro que foram observadas:
o yin-yang, o yoga chinês, o xintoísmo e o budismo.
Os praticantes do yin-yang eram responsáveis por prescreverem soluções
para eventos enigmáticos, interpretarem sonhos e determinarem dias auspiciosos.
Kamo no Tadayuki e seu filho, Kamo no Yasunori, foram mestres no yin-yang
e apareceram em muitos contos. Outra figura famosa na história do Japão foi
o mestre Abe no Seimei, que trabalhou para imperadores no período Heian
dando conselhos e prevendo eventos. No conto “The Genie”, Abe no Seimei
conjura feitiços protetores para defender um jovem contra uma maldição. Por
gozar de uma ótima saúde, acreditava-se que Seimei tinha poderes místicos. Não
cabe a essa pesquisa aprofundar-se no significado da prática do yin-yang, mas,
de modo superficial, o yin-yang envolve astrologia, geomancia, purificação e
mágicas ofensivas e defensivas. Yin representa o princípio feminino do universo: a
escuridão, o frio, a passividade. Enquanto yang representa o princípio masculino: a
luz, o calor, o seco, e a atividade.
O Yoga chinês entrou no Japão, mas foi pouco difundido. De acordo com
Royal Tyler, tinha como objetivo a liberdade eterna das amarras da mortalidade
e do corpo. Uma realização espiritual livre de prazeres mundanos podia acabar
com a brutalidade física e transformá-la em um novo e espiritual corpo, como um
“Imortal”46.
46 TYLER.
049
O Japão sempre foi um lugar cheio de deuses e há diversos templos
espalhados pelas ilhas. Era comum, na época em que os contos se passavam, a
comunicação entre deuses e humanos. Mensagens divinas eram passadas através
de médiuns, estes podiam ser possuídos por deuses e passar a mensagem para
alguma pessoa que poderia estar em perigo. Havia muitos médiuns no Japão,
eles trabalhavam como curandeiros e em templos. A maioria dos médiuns que
trabalhavam nos templos eram mulheres, monges e xamânicos, que eram homens
como no conto “The God of fire and thunder”47 ou no conto “The wizard of the
mountains”48.
A comunicação também era feita através dos sonhos. Em alguns contos é
relatado o isolamento de alguma pessoa em um templo para entrar em contato com
deuses, práticas religiosas incorporadas nos contos japoneses. Em muitos deles,
há eventos de possessão, exorcismo e sessões de cura que envolvem a participação
de espíritos que causam doenças. O espírito mais comum que causa doença é
o da raposa. O conto “Yam soup”49 mostra um tipo de possessão. Contos como
“Rice cakes”50 e “The fox’s ball”51 mostram outra possessão da raposa e também o
entrosamento de um monge budista e uma mulher mediúnica52.
O Budismo iniciou-se na Índia e entrou no Japão por volta da metade do
47 TYLER.48 TYLER.49 TYLER.50 TYLER.51 TYLER.52 TYLER.
050
século VI d.C. e se difundiu rapidamente pela terra do sol nascente. Os contos
japoneses estão cheios de monges, sutras e templos. Os templos mais importantes
são Kofukuji e Todaiji na cidade de Nara; monte Hiei em Kyoto e o monte Koya
em Wakayama ao sul de Osaka. São templos importantes no Budismo japonês,
o monte Hiei exercia um enorme poder político, religioso e militar, já que era
de grande interesse dos nobres53. A vida de um monge é contada no conto “The
jellyfish’s bones”54, enquanto monges como Rin’e, Ninkai e Chusan estão presentes
em outros contos.
O amor pela natureza figurava proeminentemente na religião japonesa,
havia uma tendência no budismo japonês a afirmar que montanhas, vales e rios
eram a sabedoria. Diferentemente do que é encontrado nos “quartos proibidos”
nos contos ocidentais, os quartos japoneses contém cenas de beleza natural, como
ameixeiras, rouxinóis ou pés de arroz mostrando seu desenvolvimento ao longo das
estações.
Os contos também são povoados por monstros sobrenaturais - chamados
de yōkai - de todos os tipos. Também estão presentes demônios, Tengu, dragões,
animais como o Tanuki (texugo), cobras, tartarugas, Kitsune (raposas) e porcos.
Demônios frequentam capelas isoladas, montanhas, portões de cidades e pontes.
Um humano que detecta a presença de um demônio pode ser comido, como no
conto “A mulher que não come nada”. Royal Tyler analisa que em muitos contos de
53 TYLER.54 TYLER.
051
demônios, estes simplesmente existem; não há especulação de como chegaram
lá55. Os demônios, assim como os Tengu, gostam de festas, de atormentar os mais
religiosos monges; são criaturas problemáticas e que gostam de atazanar a vida dos
humanos.
Os Tengu assombram e vivem nas montanhas, por isso acredita-se que são
espíritos das montanhas ou seus protetores. São imaginados como parte humanos
e parte pássaros por possuírem um nariz longo e boca em forma de bico, têm
asas e podem voar livremente. Estão sempre vestidos com folhas e vestem um
pequeno chapéu na cabeça e estão sempre armados com lanças ou espadas. Uma
crença antiga informa que os Tengu são emanações de Susa-no-o, que são criaturas
do sexo feminino com cabeças de bestas e com grandes orelhas e nariz, grandes
suficientes para carregarem homens neles e voarem centenas de quilômetros sem
fadiga, seus dentes eram grandes e afiados que podiam atravessar espadas e lanças56.
Apesar de tudo, o Tengu não é malevolente, possui um senso de humor e gosta de
pregar peças.
O dragão japonês está associado à água, ao trovão, ao raio e a luxúria.
Dragões possuem palácios como no conto “Urashima Tarō “ e são, sem dúvida, o
mais famoso dentre os animais associados à mitologia japonesa. Nem todos os
dragões possuem essa aparência, mas na sua maioria os dragões japoneses possuem
55 TYLER. 56 DAVIS, Frederick Hadland. Myths and legends of Japan. New York: Cosimo, 2007, pg. 329.
052
três garras que se assemelham às de uma águia, sua palma com a do tigre, sua
cabeça se assemelha a de um camelo, seus chifres com os de um veado, olhos de
lebre, escamas de carpa, bigodes de gato e uma joia no seu queixo.
Um yōkai que desempenha um importante papel nos contos japoneses é a Yama-
uba (yama = montanha; uba = velha). Ela é uma mulher que pode ser tanto terrível
e devoradora de seres humanos como amigável. Contos contendo esse yōkai são
encontrados por todo o Japão, nos quais também existem variações com seu nome,
podendo variar entre Yama-haha (mãe da montanha), Yama-onna (mulher da
montanha) e Yama-hime (princesa da montanha). Kunio Yanagita, em sua obra “The
legends of Tono” coloca que Yama-uba pode ser muito bem Yama-haha57 e introduz
dois contos. O conto “A mulher que não come nada” também entra nessa categoria,
no qual é característico da Yama-uba a sua mania de devorar tudo.
Tanuki é um outro yōkai muito famoso no Japão, são animais reais e
notórios por seu poder de transformação, incluindo também sua habilidade de
modificar a natureza e fazer com que pessoas fiquem perdidas em ambientes
que são familiares. A raposa também é outro animal natural que está ligado a
ocorrências estranhas, é creditada a ela a capacidade de viver centenas de anos com
a habilidade de se transformar em homem ou mulher e enganar as pessoas. Dentre
os animais, a raposa é mais sagaz e brinca principalmente com o desejo sexual.
São famosas por se mascarar como lindas mulheres e seduzir os homens. Ambos
57 YANAGITA, Kunio. The legends of Tono. Lexington Books, 2008, p. 67.
053
entram em uma categoria de animais reais cuja habilidades não são consideradas
sobrenaturais e sim parte de sua natureza58.
Kawataro, hoje mais conhecido como Kappa, é um yōkai que geralmente
vive na água, tem a altura de uma criança de dez anos, uma coloração azul, boca
pontuda, cabelo vermelho, possui um pequeno buraco no topo de sua cabeça que
contém água, caminha nu e tem voz humana. Quando a água no topo de sua
cabeça acaba, ele perde seus poderes sobrenaturais, tem prazer em desafiar pessoas
para uma luta de sumô (o humano que receber o convite não pode recusar) e tem
a tendência de puxar cavalos e gado para dentro da água para sugar seu sangue,
por isso as pessoas que cruzam rios precisam ter cuidado59 - em algumas partes do
Japão, acredita-se que o Kappa faz duas vítimas por ano.
Os yōkai começaram a ser catalogados em enciclopédias, como o
“Kinmozui” (compilado por Nakamura Tekisai em 1666) e “Wakan sansaizue”
(publicado por volta de 1713), desde muito cedo. Frequentemente nas
enciclopédias não se distinguiam as observações do catalogador das observações
convencionais do folclore e do boca-a-boca. Isso faz com que adquiram uma
legitimidade epistemológica, se assumirmos que o autor das enciclopédias jamais
observou um Kappa e que a ilustração é baseada em características que circulam
entre as pessoas, então ele criou para o leitor uma representação clara de algo
58 FOSTER, Michel Dylan. Pandemonium and parade: Japanese monsters and the culture of yōkai. University of California Press, 2009, p. 37.59 FOSTER, p. 46.
054
que ele jamais tenha visto. A autoridade encorpada no meio visual, junto com a
legitimação invocada pela descrição detalhada, sugerem que o invisível Kawataro
tem uma presença física e tangível60.
A palavra e a imagem do Kawataro em uma enciclopédia fazem com que
ele seja classificado como algo que possa ser pesquisado e usado como referência
e que tenha um papel vital na pesquisa de acadêmicos, autores e artistas, que
acabam influenciando na difusão do yōkai e fazendo com que ele seja incluído no
imaginário coletivo e em parte da história do Japão. Dylan ainda aponta que o
espaço dado ao yōkai em enciclopédias faz com que seja dado um passo na inserção
deles na catalogação bestiária do Japão e também afirma que o yōkai começou a
ficar dotado de uma história natural – uma história natural que inscreveu eles no
discurso e no território inicial da nação japonesa61.
Os contos japoneses arregimentam tudo de sua cultura para se estruturar,
desde o dia-a-dia de cada um a qualquer evento comum e óbvio. Animais que
podem não existir na natureza são, para os japoneses, nativos do Japão, estudados,
catalogados e conhecidos por assombrar o Japão há milhares de anos. Os contos
retratam a fusão de dois mundos: o mundo observado com as montanhas,
cidades, casas, rios e pessoas; e o mundo oculto, com os espíritos, a religião, temas
dos festivais e Deuses. Esses dois mundos se conectam juntos com o cotidiano
formando um novo ecossistema de seres naturais e sobrenaturais.
60 FOSTER, loc. cit.61 FOSTER, p. 48.
055
O posicionamento de Lipovetsky no livro “O império do efêmero” se baseia
no argumento de que o caráter imposto para moda - como algo que promove a
distinção social no consumo de objetos da cultura moderna - não explica o lado
mais significativo da moda: a sua instabilidade, sua estética e a mutação de sua
organização.
“A moda não é mais um enfeite estético”62, ela está voltada para a produção-consumo-comunicação de massa que consegue remodelar uma sociedade inteira à sua imagem. Estabeleceu-se durante a Idade Média e segue com seu império até a atualidade, “a moda está nos comandos de nossas sociedades; a sedução e o efêmero tornaram-se, em menos de meio século, os princípios organizadores da vida coletiva moderna”63.
Lipovetsky alerta sobre a teoria de distinção das classes como motor da
moda. Apesar da moda estar ligada à distinção de classes sociais na qual a classe
baixa, em busca por legitimidade social, imita os costumes e gostos da classe alta
e esta, para manter a distância social e apagar as marcas, vê-se obrigada a inovar
para não ser alcançada por seus concorrentes, gerando, assim, a mutabilidade da
moda. Ele defende que a dinâmica dos ritmos precipitados característico da moda
não aparece somente quando as diferenças elitistas precisam ser aplicadas, mas
que “as novidades andam muito mais depressa que sua vulgarização; não esperam,
62 LIPOVETSKY, Gilles. O império de efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 13.63 LIPOVETSKY, loc. cit.
Capítulo 2Um modelo a ser seguido
056
para surgir, que um pretenso ‘ser alcançado’ se tenha produzido, antecipam-no. Não
efeito sofrido, mas efeito desejado; não resposta sociológica, mas iniciativa estética,
potência amplamente autônoma de inovação formal”64.
Outra teoria a qual Lipovetsky dificilmente aceita é a de que o conflito
de prestígio entre as classes dominantes gerou a mutabilidade da moda. Classes
enriquecidas andam juntas das antigas classes nobres, o movimento de ascensão
de algumas classes fazem as reviravoltas da moda aparecerem, sustentadas pelas
estratégias de distinção e de rivalidades de classes. Foi antes de tudo na briga entre
as classes dominantes que se desenrolaram as lutas de concorrência e de onde
teria saído a dinâmica da moda. Lipovetsky coloca que isso ajudou na difusão e
expansão da moda, mas não o móvel das novidades, o culto pelo tempo presente, a
legitimidade do inédito e sua busca desenfreada.
Para Lipovetsky essas teorias não elucidam nem o motor da renovação
permanente nem o advento da autonomia pessoal na ordem do parecer. Sem
dúvida, a rivalidade de classes acompanha o princípio de variações incessantes na
moda, mas não são sua chave.
“As reviravoltas da moda são, antes de tudo, o efeito de novas valorizações sociais ligadas a uma nova posição do indivíduo em relação ao conjunto coletivo. A moda não é o corolário do conspicuous consumption e das estratégias de distinção de classes; é o corolário de uma nova relação de si com os outros, do desejo de afirmar uma personalidade própria que se estruturou
64 LIPOVETSKY, p. 59-60.
057
ao longo da segunda Idade Média nas classes superiores. Longe de ser um epifenômeno, a consciência de ser indivíduos com destino particular, a vontade de exprimir uma identidade singular, a celebração cultural da identidade pessoal foram uma ”força produtiva”, o próprio motor da mutabilidade da moda. Para que aparecesse o impulso das frivolidades, foi preciso uma revolução na representação das pessoas e no sentimento de si, modificando brutalmente as mentalidades e valores tradicionais; foi preciso que se desencadeassem a exaltação da unicidade dos seres e seu complemento, a promoção social dos signos da diferença pessoal”65.
Isso aconteceu, precisamente, no final da Idade Média, quando traços
de consciência de uma identidade tomaram forma. Ele apresenta exemplos que
mostram a ruptura com o espaço do anonimato tradicional através da expressão
do Eu nas poéticas, autobiografias ou sepulturas personalizadas que mostram a
vontade de individualização66. Ainda que só possa ser visto e vivido na elite social,
mas já é a versão inicial da moda. A exigência de ser você mesmo, a paixão de
marcas da personalidade, a celebração da individualização favoreceram a ruptura
com o respeito à tradição.
Isso gerou a multiplicação de focos de iniciativa e de renovação, estimulou
as imaginações pessoais e, de agora em diante, espreita a novidade, as variações e
a originalidade. Essas são as condições para o movimento precipitado da moda:
a consciência e a vontade de individualizar-se desenvolvem a concorrência, a
65 LIPOVETSKY, p. 67.66 LIPOVETSKY, loc cit.
058
emulação entre os particulares, a corrida pela diferença; ambas autorizam e
encorajam a expressão dos gostos singulares. Como, nessas condições, teria podido
não haver aceleração das ideias novas, procura acelerada e permanente de novos
signos?67
Lipovetsky também afirma que o fator principal está na transformação
de comportamento do alto da hierarquia, que agora modificam e inventam
novas aparências, “(...) a penetração nas classes superiores dos novos ideais
da personalidade singular. Estes contribuíram para o abalo da imobilidade
tradicional, permitiram à diferença individual tornar-se signo de excelência
social”68, para Lipovetsky é um erro separar as variações perpétuas da moda e a
personalização mais ou menos exibida do parecer, na visão dele ambas as faces são
complementares, a personalização como nova legitimação social faz com que a
moda seja um teatro de metamorfoses. Correlativamente, todas as mudanças que
a moda proporciona vão dar ao indivíduo uma liberdade, mesmo que parcial, de
escolhas e de autonomia de gosto. O ideal do Novo começa a brilhar com a moda,
aqui ela rompe com o valor cultural das tradições, que inspirava terror quando se
tratava de mudança, prestigia o presente, muda a ordem social em relação à norma
coletiva e revoluciona a relação com o devir histórico e o efêmero.
A moda e o refinamento visual caminham juntos; ela consagra o progresso
67 LIPOVETSKY, p. 68.68 LIPOVETSKY, p. 68-69.
059
do olhar estético nas esferas mundanas69. Para Lipovetsky, a alegria e o prazer
vividos na cultura cavalheiresca e cortês ajudou no aparecimento das frivolidades.
O prazer de agradar, de surpreender, de ser prazeroso aos olhos, ocasionado pelo
estímulo da mudança e metamorfose da aparência. Ávidos pela felicidade e prazeres
do mundo, isso evidencia um novo sentido do efêmero que corre na sociedade,
que começa a se preocupar com o envelhecimento, a nostalgia pela juventude e a
iminência de que um dia o fim chega. Isso tudo favoreceu a busca acelerada dos
prazeres.
A emergência da moda não pode ser dissociada da revolução cultural que
se inicia com a atualização dos valores corteses: se juntam à exigência de força
e proeza dos ideais das boas maneiras, do bem falar, das qualidades literárias
e refinamento. A moda aspira uma vida mais bela, no momento em que a arte
apresenta uma tendência ao excesso decorativo, aos ornamentos; nessas formas
da cultura foi imposto um espírito barroco, um gosto pelo cenário teatral e
fantasioso. A moda não cessou de obedecer profundamente ao fascínio do efeito, do
refinamento e dos detalhes decorativos; ela significa mais o progresso de um gosto
estético do que um crescimento de riquezas, assim exprime um refinamento dos
prazeres do olho70.
A atualização dos valores corteses gerou novas relações de sedução. Surge o
herói lírico e sentimental, aquele que cerca a mulher de atenção, celebra sua beleza
69 LIPOVETSKY, p. 73.70 LIPOVETSKY, loc. cit.
060
e fica submisso a seus caprichos. Lipovetsky considera a moda como uma extensão
dessa nova poética de sedução, da mesma forma que os valores comportamentais se
atualizaram, a sofisticação da aparência também deverias sofrer alterações, portanto
a moda não deve ser separada dessa nova estratégia de sedução pelos signos
estéticos. Esses novos louvores de beleza fizeram com que se dissemin