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Viso · Cadernos de estética aplicada Revista eletrônica de estética ISSN 1981-4062 Nº 11, jan-jun/2012 http://www.revistaviso.com.br/ Brecht e Benjamin: peça de aprendizagem e ordenamento experimental Jeanne-Marie Gagnebin

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  • Viso Cadernos de esttica aplicada Revista eletrnica de esttica

    ISSN 1981-4062

    N 11, jan-jun/2012

    http://www.revistaviso.com.br/

    Brecht e Benjamin: pea de aprendizagem e ordenamento experimental

    Jeanne-Marie Gagnebin

  • RESUMO

    Brecht e Benjamin: pea de aprendizagem e ordenamento experimental

    A partir de uma breve definio das condies de possibilidade do Lehrstck (pea de

    aprendizagem) brechtiano, so apresentados os conceitos de exerccio (bung), de

    ordenamento experimental (Versuchsanordnung) e de espao de jogo (Spielraum) na

    teoria do teatro pico de Walter Benjamin, conceitos essenciais para sua tentativa de

    reformulao de uma esttica materialista contempornea.

    Palavras-chave: Brecht Benjamin pea de aprendizagem

    RSUM

    Brecht et Benjamin: pice dapprentissage et ordre exprimental

    Partant dune brve dfinition des conditions de possibilit du Lehrstck (pice

    dapprentissage) brechtien, nous exposons rapidement les concepts dexercice

    (bung), dordre exprimental (Versuchanordnung) et despace de jeu

    (Spielraum) dans la thorie du thtre pique de Walter Benjamin, concepts essentiels

    pour sa tentative de reformulation dune esthtique matrialiste contemporaine.

    Mots-cls: Brecht Benjamin pice dapprentissage

    Brecht e Benjamin: pea de aprendizagem e ordenamento experimental Jeanne-Marie Gagnebin

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  • Domingo passado liguei para o Luciano para trocar ideias. Em particular, para falar com ele do meu mal-estar em debater no o texto dele, mas muito mais a questo da pea de aprendizagem [Lehrstck], a questo do teatro pedaggico de Brecht. Como Luciano me confirmou nas minhas dvidas, vou explicit-las com maior tranquilidade. A maior delas diz respeito possibilidade e validade da encenao de tais peas hoje em dia.

    Citando Roberto Schwarz e Ingrid Koudela, Luciano lembra que essas peas foram escritas num momento histrico muito especfico e muito breve: os anos vinte na Alemanha, quando floresceram teatros livres, formados em sua maior parte por trabalhadores, e tambm muitos corais operrios, de orientao social-democrata, mais de 14 mil conjuntos em 1930, a Alemanha sendo o pas da msica como se sabe!

    Ao refletir sobre essas circunstncias histricas precisas, Brecht escreve a partir do exlio:

    At hoje as circunstncias favorveis a um teatro pico e pedaggico s existiram em poucos lugares e no por muito tempo. Em Berlim, o fascismo impediu energicamente o desenvolvimento de tal teatro. Alm de um determinado padro tcnico, ele pressupe um poderoso movimento na vida social que tenha interesse na livre discusso das questes vitais em vista de sua soluo e que possa defend-lo de toda tendncia oposta.1

    Essa nfase nas circunstncias histricas que possibilitam a encenao das Lehrstcke remete a dois elementos estruturantes das peas: primeiro, quem aprende no o espectador (a quem autor e ator transmitiriam uma mensagem poltica justa), mas sim o ator/atuante que treina atitudes, gestos, mesmo que atores e espectadores devam ser intercambiveis, se as circunstncias o permitirem. O Lehrstck, portanto, pertence menos ao gnero teatro como espetculo e mais ao gnero teatro de rua, teatro do oprimido, ou mesmo exerccios teraputicos de dinmica de grupo.

    Em segundo lugar, o prprio Brecht insiste na importncia da improvisao. Mais do que isso; estabelece uma relao entre a forma rida das peas e a possibilidade, mesmo a necessidade de improvisaes e inovaes por parte dos atores/atuantes em cada representao singular. Escreve Brecht: A forma da pea de aprendizagem rida, mas apenas para permitir que trechos de inveno prpria e de tipo atual possam ser introduzidos ([]; em A medida possvel inserir livremente cenas inteiras []).2

    Pensando, ento, nas caractersticas, ressaltadas pelo prprio Brecht, do Lehrstck como sendo uma atuao histrica, experimental, um exerccio e uma proposta de improvisao, consigo levantar uma questo mais precisa. Esse gnero no entraria em contradio com a permanncia e a sacralidade do texto escrito? Ou dito de outra forma: a encenao atual deveria seguir risca as indicaes do texto brechtiano ou, pelo contrrio, somente se deixar orientar por elas e criar novos exerccios, estes sendo ligados s experincias histricas dos atores (e dos espectadores)? O Lehrstck seria ento como uma proposta datada de exerccios variveis, variando segundo as

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  • circunstncias histricas concretas. Ressalto aqui a noo de exerccio, bung, porque ela fundamental no pensamento de Walter Benjamin (e na filosofia desde a askesis grega!).

    Confesso que ainda no consigo acreditar plenamente no valor pedaggico de tais exerccios. A rigor, eu preferiria chamar o Lehrstck (de lehren, ensinar e de Stck, pea) de Lernstck (de lernen, aprender e de Stck, pea), algo que faz implicitamente nossa traduo de pea de aprendizagem em vez da traduo literal por pea de ensinamento. A componente doutrinria e didtica da palavra no me convence, a componente mais experimental j me seduz mais. S que experimentaes, mesmo com conscincia de classe correta, no vo necessariamente na direo da vitria do proletariado, como parece ser a esperana, talvez mesmo a convico do companheiro Brecht.

    Passo agora a algumas observaes esparsas de W. Benjamin a respeito do teatro pico, do teatro infantil, da importncia da experimentao e da improvisao. Benjamin insiste na relao que existe entre de um lado a pobreza dos acessrios, a pobreza dos episdios e do argumento, e do outro, as possibilidades de experimentao e de troca entre atores e espectadores. No segundo ensaio intitulado O que teatro pico?, escreve Benjamin sobre o Lehrstck: Das Lehrstck hebt sich als Sonderfall im wesentlichen dadurch heraus, dass es durch besondere Armut des Apparates die Auswechslung des Publikums mit den Akteuren, der Akteure mit dem Publikum vereinfacht und nahelegt.3

    No mesmo texto, fala ele de uma severidade clerical [eine klerikale Strenge] do teatro pico, severidade ou rigor que ajudaria a introduzir novas tcnicas em vez de se perder nos refinamentos das tcnicas antigas. A importncia do gesto remete a essa simplicidade. O gesto mais delimitado e, muitas vezes, mais claro que uma longa fala (que ele pode at contradizer). E o gesto permite produzir mudanas concretas no prprio cenrio. A pobreza dos elementos cnicos, um certo minimalismo, e a importncia conferida gestualidade ajudam a encenar peas em cada lugar. Ou melhor: cada lugar pode se transformar em palco no preciso de uma parafernlia de aparelhos e de acessrios. Em outros termos: cada lugar pode ser o palco de um ordenamento experimental, como Luciano Gatti traduz com razo a expresso, to importante em vrios textos de Benjamin, de Versuchsanordnung. E experimenta-se, no palco ou no cotidiano, com elementos da realidade, como diz Benjamin no artigo sobre O autor como produtor.4 Uma esttica da experimentao em vez de uma lgica do espetculo.

    No texto O autor como produtor, no mais a obra [Werk], a configurao literria escrita [Dichtung] pelo dramaturgo, que deve ser encenada com fidelidade e devoo. A obra [Werk] tende a desaparecer enquanto totalidade autnoma (totalidade reafirmada pela esttica de Adorno), enquanto texto escrito e criado por um escritor determinado, desaparecimento em proveito de um projeto coletivo de experimentao.

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  • Quem continuaria, ento, o projeto de Brecht hoje? A Companhia do Lato ou o Teatro da Vertigem?

    Essas reflexes de Benjamin remetem a temas j presentes em outros de seus textos, como Experincia e Pobreza, ou como as descries das casas camponesas de Ibiza (nas Imagens do pensamento), cuja simplicidade e funcionalidade impressionaram tanto Benjamin e os jovens arquitetos modernistas.5 A austeridade desses espaos interiores possibilita que as poucas peas de mobilirio adquiram vrias funes diferentes, porque podem facilmente mudar de lugar e de uso durante o dia ou de noite. O tapete se transforma ora em colcho ora em cobertor, a nfora e a cadeira mudam de lugar e transformam o espao6; essa transformao somente possvel, observa Benjamin, porque o espao no entulhado de coisas como o so os apartamentos burgueses que ele descrever na Infncia em Berlim. Nessas casas, como nos palcos improvisados do teatro pico, ainda possvel experimentar porque ainda existe um espao no preenchido, o vazio, aquilo que Benjamin chama de Spielraum (literalmente espao para brincar), um espao para brincar, jogar, experimentar, transformar.

    Essas caractersticas do teatro pico, segundo Benjamin, tambm so a chave do texto que redigiu, a pedido de Asja Lacis, para fundamentar um Programa de um teatro infantil proletrio7 (notemos que Asja julgou o texto incompreensvel!). Se os ensaios sobre Brecht insistem na mutabilidade do espao a rigor, no existe mais o edifcio teatro com entrada, escadaria, palco, fosso, coxias etc. , o programa de teatro infantil insiste na mutabilidade do tempo.

    As crianas so organizadas em um coletivo e tm a possibilidade de encenar suas fantasias atravs de atividades em vrias oficinas de trabalho, sob a coordenao de um adulto/diretor. Essas oficinas so de execuo material de vrios objetos e de aprendizado concreto (preparao dos acessrios, pintura do cenrio, recitao, msica, dana). Essa confrontao concreta com a matria [Stoff] imprescindvel, escreve Benjamin, para permitir que as crianas consigam escapar do perigoso reino mgico da mera fantasia.8 Sem essa confrontao, ficariam presas e impotentes nesse reino mgico (como ficam hoje diante da televiso), isto , tambm profundamente diminudas na volta ao mundo real. Graas atuao com a matria, que permite a transformao da fantasia em signos materiais, a mera fantasia se torna um jogo de possibilidades e de experimentaes concretas.

    Tais encenaes, ressalta Benjamin, se deixam orientar pela improvisao, em vez de obedecer a um texto previamente dado. Com muito mais desenvoltura que os adultos, as crianas realizam no jogo teatral a temporalidade da experimentao, porque no intentam a fabricao de um produto acabado, que possa ser vendido e consumido, mas a experimentao ldica em sua radicalidade. A encenao contrape-se ao treinamento educativo [Schulung] como libertao [Entbindung] radical do jogo, num processo que o adulto pode to somente observar.9 Esse dar luz do jogo10 alude a uma temporalidade efmera ou sempre recomeada, sempre novamente inventada como o tempo da criana brincante no fragmento11 de Herclito retomado por Nietzsche.

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  • Benjamin radicaliza assim uma concepo do teatro como arte do efmero: Todo desempenho infantil orienta-se no pela eternidade dos produtos, mas sim pelo instante do gesto. Enquanto arte efmera, o teatro a arte infantil, afirma ele. 12 Sem lugar nem temporalidade definidos, afora os que constituem sua experimentao, o teatro no se define mais como um gnero literrio constitudo por um corpus de peas e de autores estveis, mas muito mais como um conjunto provisrio de outras ordenaes, de outras Versuchsanordnungen, de espao e de tempo. Essas experimentaes no precisam deixar rastros como as obras escritas do cnone literrio, mas suscitam possveis transformaes da percepo. Nesse sentido, Brecht com seus Lehrstcke talvez seja o pai, provavelmente involuntrio, dos happenings e das instalaes contemporneos. Uma filiao, decerto, instigante, mas pouco ortodoxa!

    * Jeanne-Marie Gagnebin professora titular do Departamento de Filosofia da PUC/SP e livre-docente na UNICAMP.

    1 Cito segundo o manuscrito de Luciano, p. 9.2 Ibidem, p. 13.3 BENJAMIN, W. Gesammelte Werke II-2, p. 536. Esse texto no foi traduzido por Rouanet. Tentativa de traduo: A pea de aprendizagem, enquanto caso especfico, se distingue em particular pelo fato que, graas pobreza do dispositivo cnico, a troca de lugar do pblico com os atores, dos atores com o pblico seja simplificada e sugerida.4 BENJAMIN, W. G.S. II-2, p. 698.5 A esse respeito, ver o belo livro de Vicente Valero, Experiencia y pobreza. Walter Benjamin en Ibiza, 1932-1933, 2001, em particular o captulo primeiro.6 Ver BENJAMIN, W. G.S. IV-1, p. 404.7 Traduo por Marcus V. Mazzari no volume BENJAMIN, W. Reflexes sobre a criana, o brinquedo e a educao. So Paulo: Editora 34, 2002.8 Na traduo de Mazzari. Op. cit., p. 116. G.S. II-2, p. 66.9 Ibidem, p. 117. G.S. II-2 p. 767.10 A palavra Entbindung significa libertao, em particular no contexto do parto.11 Fragmento B52 de Herclito sobre o tempo, ain. 12 Traduo de Mazzari. Op. cit., p. 117, GS II-2, p. 767.

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