Upload
dangdiep
View
217
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
Adrian Gramary
“Se não vivêssemos perigosamente (…) tremendo a beira dos precipícios, não estaríamos nunca deprimidos, estou segura disto, mas
seríamos cinzentos, fatalistas e velhos.”
V. Woolf, Diário: 2 Agosto de 1924 1
“A loucura é aterradora, posso assegurar-te isto, e vale a pena tê-la em conta; na sua lava encontro ainda a maior parte das coisas
acerca das quais escrevo.”
Carta de V. Woolf a Ethel Smyth, 22 de Junho de 1930 1
“Vivemos as nossa vidas, fazemos seja o que for que fazemos e depois dormimos: é tão simples e tão normal como isso. Alguns ati-
ram-se de janelas, ou afogam-se, ou tomam comprimidos; um número maior morre por acidente, e a maioria, a imensa maioria é len-
tamente devorada por alguma doença ou, com muita sorte, pelo próprio tempo. Há apenas uma consolação: uma hora aqui ou ali em
que as nossas vidas parecem, contra todas as probabilidades e expectativas, abrir-se de repente e dar-nos tudo quanto jamais imagi-
námos, embora todos, excepto as crianças (e talvez até elas), saibamos que a estas horas se seguirão inevitavelmente outras, muito
mais negras e mais difíceis. Mesmo assim, adoramos a cidade, a manhã, mesmo assim desejamos, acima de tudo, mais.”
M. Cunningham: As Horas 2
Virgínia Woolf: The Death and the Maiden
49
Leituras / ReadingsVolume VIII Nº3 Maio/Junho 2006
Virgínia Woolf: A Morte e a Donzela
Gordon Square (Bloomsbury).
50
Saúde Mental Mental HealthLeituras / Readings
1 - Uma carta suicida e uma cenografia shakespeariana
Numa antologia de cartas de suicidas, compilada pelo his-
toriador e jornalista alemão Udo Grashoff, recentemente
publicada pela Editora Quetzal (“Vou-me embora: Cartas
suicidas”) 3, podemos ler que em 2001 apareceu por pri-
meira vez na literatura médica uma carta de despedida de
um suicida por s.m.s. Mais uma demonstração do velho
adágio: Vinho velho em odres novos. No livro de Grashoff,
o leitor pode deparar-se com frases lapidárias de despe-
dida, últimas linhas inscritas no limiar da morte, expressão
e extracto de contradições insolúveis, como a de um jovem
com psicose maníaco-depressiva que termina a sua mis-
siva com a frase terrível “é preferível um fim com medo do
que um medo sem fim”. O autor confessa na introdução
que, com esta antologia, propôs-se mostrar a fala fracas-
sada dos falhados. A leitura deste livro poderá ser dura e
pouco grata, mas seguramente não irá deixar nenhum lei-
tor indiferente.
A falar em “cartas suicidas”, talvez uma das mais famosas
representantes deste obscuro subgénero epistolar seja a
que deixou a escritora inglesa Virgínia Woolf, que podemos
encontrar na biografia escrita pelo seu sobrinho Quentin
Bell (“Virgínia Woolf: A Biography”) 4. No ano 2003 – sem
dúvida o ano de Virgínia Woolf, a morte da autora foi visual-
mente imortalizada na abertura do filme “As Horas” de
Stephen Daldry (baseado no romance homónimo de
Michael Cunningham): a romancista inglesa escolheu para
a sua despedida uma cenografia shakespeariana, mergu-
lhando com os bolsos cheios de pedras nas frias águas do
rio Ouse, em Sussex, numa manhã de Março de 1941, tal
como o teria feito Ofélia, a comovente e perturbada don-
zela de Hamlet. Na carta que deixou para o seu dedicado
marido, Leonard Woolf, confessava que se sentia nova-
mente presa da loucura, declarando, no entanto, numa ten-
tativa de o ilibar de qualquer responsabilidade, que aban-
donava este mundo com uma derradeira certeza: “Não
creio que duas pessoas possam alguma vez ter sido mais
felizes do que nós fomos”.
2 - A mãe do romance do século XX
Virgínia Woolf é considerada mãe das inovações formais e
estilísticas do romance do século XX. Para o título de pais
existem mais candidatos: Joyce e Faulkner, entre outros.
Um doente meu dizia-me recentemente numa consulta,
tentando argumentar o prazer suscitado pela leitura de “O
linguado” de Günter Grass, que afinal todas as histórias já
tinham sido contadas, e que o que permitia diferenciá-las
era o estilo. E o estilo é a palavra fulcral que poderia definir
a obra de Virgínia Woolf: um estilo caracterizado pelo des-
envolvimento e depuração do monólogo interior, esse
recurso literário que tenta, usando as próprias palavras da
autora, iluminar “as obscuras veredas da mente”, ou,
usando as palavras de Vargas Llosa, “desaparecer nas
consciências dos personagens, transubstanciar-se com
elas.” 5 Nos seus romances o leitor assiste perplexo a uma
permeabilização absoluta entre o mundo interior da
consciência dos personagens e o mundo exterior, movi-
Virgínia Woolf
51
Leituras / ReadingsVolume VIII Nº3 Maio/Junho 2006
mentos subtis que fazem que a leitura das suas obras seja
uma experiência única, por vezes, deslumbrante, embora
esforçada e cansativa.
Li em algures que um critico literário, mestre da ironia, ten-
tando sublinhar o carácter soporífero da obra da roman-
cista inglesa, afirmava reservar a sua leitura para depois da
sua morte (da do crítico, é claro). Talvez desconheça este
crítico sagaz e brincalhão a existência de uma pequena
ermida na Galiza, perdida nas falésias do norte, famosa
pelo lema ameaçador e admonitório que usava para atrair
os peregrinos, que se dirigiam preferentemente a Santiago
de Compostela: “A San Andres de Teixido, vai de morto,
quen non vai de vivo”. Eu, pelo sim ou pelo não, já lá fui; e
confesso que também já li a Virgínia Woolf. Se calhar, por-
que prefiro não imaginar-me habitante de um círculo do
inferno, não pensado pelo Dante, onde os pecadores fos-
sem submetidos ininterruptamente à leitura das obras da
autora inglesa.
3 - Uma infância à sombra da Rainha Vitória
Adeline Virgínia Stephen nasceu em 1882 no aristocrático
bairro londrino de Kensington, no seio de uma família da
alta classe média instruída. A sua casa, no nº 22 de Hyde
Park Gate era o cenário adequado para aquela vetusta
família vitoriana: uma casa de cinco andares, de paredes
pintadas predominantemente a preto e cores escuras,
preenchida de móveis inúteis, onde as eras da parede exte-
rior e as grossas cortinas do interior pareciam aliar-se para
impedir a entrada da escassa e cinzenta luz dos Invernos
londrinos. Jane Dunn, a autora do livro “A Very Close
Conspiracy”, biografia paralela de Virgínia e Vanessa,
descreve o espírito repressivo e lúgubre desta casa: “Não
havia vistas, não havia horizontes, só camadas e mais
camadas de recordações familiares, muitas delas doloro-
sas, todas viradas para o passado.” 1 O pai, Leslie Stephen,
era um conhecido intelectual vitoriano: antigo clérigo e
catedrático de Cambridge, erudito circunspecto, filósofo
agnóstico e jornalista, cujas cumpridas barbas brancas lhe
conferiam um ensimesmado aspecto profético. Este
patriarca permanecia dias a fio fechado na sua biblioteca,
dedicado ao trabalho de redigir um monumental e enciclo-
pédico Dictionary of National Biography (Dicionário de
Biografias Nacionais), tarefa titânica que não conseguiu
concluir. Pensava, como qualquer dos seus contemporâ-
neos, que o papel da mulher devia limitar-se a ter filhos,
cuidar do bom funcionamento da casa e servir de suporte
afectivo incondicional do homem; qualquer saída deste
esquema preconcebido era considerada extemporânea e
condenada ao fracasso social e pessoal. A mãe, Júlia
Stephen, uma boa materialização dos princípios acima
referidos, dedicava os seus dias a supervisionar o ade-
quado funcionamento da casa, reservando o seu tempo
livre para acções de caridade, atendendo doentes moribun-
dos e ajudando às famílias necessitadas. A sua defesa dos
velhos valores vitorianos, que compartilhava com o seu
marido, determinou que assinasse um documento oficial
contrário às reclamações das sufragistas. Os pais de
Virgínia tinham ficado viúvos dos seus respectivos primei-
ros casamentos, casando em segundas núpcias. Do pri-
meiro casamento, Leslie tinha uma filha (Laura, portadora
de deficiência mental, que passou a maior parte da sua
vida internada numa instituição); e Júlia tinha três filhos
Leslie Stephen
52
Saúde Mental Mental HealthLeituras / Readings
(George, Gerald e Stela). Do segundo casamento nasce-
ram quatro filhos: Vanessa, Virgínia, Thoby e Adrian.
Aquelas quatro crianças brincavam à sombra do palácio de
Kensington (onde tinha nascido a Rainha Vitória, o símbolo
da época), perseguindo esquilos e fadas pelos verdes rel-
vados dos jardins de Kensington e Hyde Park, como as
crianças protagonistas do livro Peter Pan de Barrie.
Durante os meses de verão a família deslocava-se a uma
casa de campo em St. Ives, na costa de Cornualles,
paraíso marítimo que Virgínia tentaria mais tarde recriar no
seu romance Rumo ao farol. No entanto, nem tudo era tão
idílico na infância destas crianças, que precocemente
viram-se obrigadas a seguir os percursos preestabelecidos
por aquela sociedade fechada e anquilosada: os rapazes
foram preparados para seguir estudos superiores,
enquanto as duas raparigas eram educadas para ser boas
amas de casa, recebendo uma educação rudimentar,
baseada em conhecimentos básicos de música e dança,
na aprendizagem da direcção do serviço doméstico e no
conhecimento do ritual do chá, tudo orientado para o objec-
tivo final e imprescindível do casamento.
Imaginamos a Virgínia, que já despontava como uma
criança perspicaz e imaginativa, olhando extasiada para o
seu pai, enquanto este lia, mergulhado entre montes de
livros, desejosa de absorver os seus conhecimentos enci-
clopédicos, tornando-se ela própria uma infatigável leitora.
A escritora sempre respeitou e reconheceu a categoria
intelectual do pai, embora nunca conseguisse perdoar-lhe
os seus inamovíveis esquemas machistas, “as mulheres
não sabem escrever nem pintar” era uma das suas famo-
sas frases lapidárias. No entanto, apesar deste rígido
esquema familiar, as duas irmãs conseguiram furar subrep-
ticiamente o esquema: Vanessa entrou na Royal Academy
Schools para estudar pintura, e Virgínia conseguiu a auto-
rização do seu pai para receber explicações de grego clás-
sico, fortalecendo assim uma formação forçosamente auto-
didacta. Mas o destino reservava para as duas irmãs um
precipitado acesso ao mundo dos adultos: a morte da mãe,
na sequência de uma pneumonia, deixou, especialmente
às duas filhas, num estado de fragilidade extrema no limiar
da vida adulta. Virgínia encontrou na crisálida das borbole-
tas nocturnas uma metáfora adequada para a situação de
aquelas duas adolescentes, abandonadas num ponto
situado entre a infância e a adolescência; no seu diário
podemos ler: “Com as suas patas e antenas pegajosas e
trementes, esperando um momento, junto ao casulo par-
tido, as asas húmidas e ainda coladas, os olhos deslumbra-
dos, incapaz de voar” 1. A sensação de que nunca tinham
sido suficientemente amadas, especialmente pela mãe,
que as abandonou prematuramente, uniu as duas irmãs
numa simbiose emocional que foi fundamental na vida de
Virgínia. Mas a morte iria tornar-se uma presença contínua
na vida de Virgínia: à morte da mãe seguiu-se a da meia-
irmã mais velha (Stela), autentica mãe em funções; e, final-
mente, a morte do pai por cancro, nove anos depois (já na
vida adulta, ainda seria abalada pela morte do irmão mais
velho, Thoby). Estas perdas sucessivas deixaram aos qua-
tro irmãos sob a soturna tutela de George, o meio-irmão
mais velho, enquanto Vanessa era obrigada a assumir o
papel de ama de casa, vago após a morte da mãe. Foram
dias difíceis para as irmãs Stephen, pois George, represen-
tante fiel do velho credo vitoriano, tentou, durante algum
tempo, introduzi-las no mundo da alta sociedade londrina,
procurando com rapidez candidatos adequados para os
seus imprescindíveis casamentos.
4 - O Grupo de Bloomsbury
A Rainha Vitória - a avó da Europa - cujo reinado se esten-
deu durante sete longas décadas, tinha morrido com o des-
pontar do século, em 1901, deixando passo ao período
eduardiano. Pouco tempo depois, em 1904, os quatro
irmãos, decidem libertar-se do jugo de George e mudam-
se para Gordon Square, no bairro boémio e mais barato de
Bloomsbury. Vanessa, pintora e decoradora, esforçou-se
por impor na nova casa de Bloomsbury um estilo em tudo
diferente ao da velha casa vitoriana de Kensington: espa-
ços abertos, paredes brancas, poucos móveis, luz abun-
dante. Um espaço adequado para uma fase nova, cheia de
expectativas, que se abria nas suas vidas. Virgínia escre-
veu no seu diário: “A fenda que atravessamos entre
Kensington e Bloomsbury era como a que existe entre a
impostura respeitável e mumificada e a vida tosca e talvez
impertinente, mas vida ao fim.” 1 O irmão mais velho de
Virgínia, Thoby, que estudava em Cambridge, começou a
convidar os seus colegas de universidade à nova casa de
Bloomsbury, assumindo as irmãs o papel de anfitriãs.
Assim, surgiram os serões das quintas-feiras à noite,
53
Leituras / ReadingsVolume VIII Nº3 Maio/Junho 2006
acompanhados de chocolate e bolachas, gérmen do deno-
minado Grupo de Bloomsbury, o grupo de intelectuais que
haviam de renovar o panorama cultural inglês, fazendo tre-
mer os pilares da sociedade vitoriana. O núcleo do grupo
estava inicialmente formado pelos críticos de arte Clive Bell
e Roger Fry, os escritores Lytton Stratchey e E.M. Forster,
o que se iria tornar famoso economista Maynard Keynes, o
intelectual socialista Leonard Woolf, e o pintor Duncan
Grant. Todos eles compartilhavam uma visão racionalista,
agnóstica e pacifista, durante alguns anos bastante boé-
mia, e frontalmente contrária aos velhos ideais vitorianos e
ao seu excesso de formalismos nas relações sociais. O
grupo, que recebeu (e ainda recebe) críticas azedas pelo
seu snobismo cultural, caracterizou-se por uma grande per-
meabilidade perante as novidades plásticas e intelectuais
vindas do continente (foi este o grupo introdutor das esco-
las pictóricas pós-impressionistas e da psicanálise no
mundo anglo-saxónico), e assumiu uma atitude permissiva
e desinibida em termos sexuais (Stratchey, Forster e Grant
eram homossexuais; Keynes e Adrian – o irmão mais novo
de Virgínia - mantiveram relações homossexuais até a
altura dos seus casamentos; e existiram ainda vários triân-
gulos amorosos, como os formados por Vanessa, Duncan
Grant e David Garnett; e Lytton Stratchey, Ralph Partridge
e Dora Carrington).
5 - Feminismo e Movimento Sufragista
Virgínia Woolf sofreu na própria carne as limitações impos-
tas às mulheres pela sociedade vitoriana. Num dos seus
livros podemos encontrar a seguinte critica irónica aos prin-
cípios tacitamente aceites por aquela sociedade: “Ao longo
dos séculos as mulheres têm servido de espelhos, pos-
suindo o poder mágico e delicioso de reflectir a figura do
homem duplicando o seu tamanho natural… Se ela
começa por dizer a verdade, a figura no espelho encolhe; a
sua aptidão para a vida diminui. Como é que ele vai conti-
nuar a julgar, a civilizar os selvagens, a fazer leis, a escre-
ver livros, a vestir-se com fatos de cerimonia e a discursar
em banquetes se não se vir ao pequeno-almoço e ao jan-
tar, pelo menos, com a sua estatura duas vezes maior que
a realidade?”.6 A sua luta pessoal para se abrir um espaço
nesse mundo, quase vedado às mulheres, decidiu-a a
escreve dois livros que se tornaram precursores do femi-
nismo (“Um quarto só para si” e “Three Guineas”), onde
fez uma análise da situação da mulher na Inglaterra da sua
época. No primeiro dos livros referidos, a nossa autora
chega a singela conclusão de que “a liberdade intelectual
depende de situações materiais” 6, sublinhando as necessi-
dades materiais básicas para a mulher criadora: um quarto
próprio com fechadura na porta, espaço protegido para a
intimidade; e uma quantidade económica mínima (que cal-
culou em quinhentas libras por ano) que permitisse a sua
independência. O seu feminismo fez com que se impli-
casse, embora de maneira muito tangencial e indirecta, no
movimento sufragista, escrevendo o endereço nos envelo-
pes da associação (convém recordar que a sua mãe,
alguns anos antes, tinha tido um papel bem mais directo e
diametralmente oposto, ao assinar um documento contrário
ao direito ao voto das mulheres). Embora sempre se man-
Virgínia Woolf pintada por Vanessa Bell
54
Saúde Mental Mental HealthLeituras / Readings
tivesse afastada da luta politica directa, participou pontual-
mente apoiando as actividades do seu marido Leonard no
Partido Trabalhista, e dando aulas gratuitas para operárias
fabris.
6 - Sexualidade e Psicanálise
A sexualidade complexa e ambígua da escritora inglesa
tem sido objecto de múltiplos estudos. Os abusos sexuais
de que foi vítima por parte dos seus meio-irmãos George e
Gerald durante a sua infância - tema que abordou explicita-
mente nos seus diários – terão deixado nela uma ferida
aberta que interferiu de maneira definitiva nas suas rela-
ções como os homens, e permitiria explicar, pelo menos
em parte, a sua conhecida frigidez. Aos cinquenta e nove
anos de idade, dois meses antes de morrer afogada, escre-
via à sua amiga Ethel Smyth. “Ainda me estremeço de ver-
gonha ao recordar o meu meio-irmão… explorando as min-
has partes íntimas”.1 O seu casamento com Leonard,
baseado num afecto autêntico, e na amizade e respeito
mútuo, foi praticamente assexuado, pelo menos nos últi-
mos anos da sua vida. Fica ainda o seu famoso homoero-
tismo, sempre ávido de figuras maternais, baseado na fas-
cinação que sentia pela sensibilidade feminina, e susten-
tado mais na compreensão e partilha emocional do que na
atracção sexual. Em 1927, no entanto, conseguiu escanda-
lizar a sociedade britânica ao assumir o seu relaciona-
mento com a aristocrata, escritora e poetisa Vita Sackville-
West, relação que inspirou o seu livro Orlando: a história
de um homem que atravessa três séculos, ao tempo que
muda de sexo, acabando o livro como mulher. A edição do
livro, com fotografias de Vita, transformou-se num êxito de
vendas. Numa das cartas dessa época encontramos esta
descrição do relacionamento com Vita: “Ela colma-me de
protecção materna que, por alguma razão, é o que mais
desejo sempre de qualquer pessoa.”4 Relativamente a
maternidade, os diferentes médicos que a seguiram reco-
mendaram-lhe evitar ter filhos, pelas eventuais consequên-
cias que poderia ter na evolução da sua doença psiquiá-
trica. Para a autora, que adorava crianças, esta proibição
foi vivida com grande sofrimento, “penso que os meus
esforços por comunicar com as pessoas são o resultado do
facto de não ter filhos e do horror que às vezes me invade”1,
encontramos numa carta. É difícil não concordar com as
palavras de Dunn, quando refere: “Virgínia não chegou a
sair nunca totalmente da crisálida, onde existia como filha,
e não conseguiu assumir a sua plena maturidade sexual e,
com ela, a carga da maternidade.” 1
É conhecida a rejeição que manifestava a nossa autora
relativamente ao seu eventual seguimento psiquiátrico (ou
psicanalítico). Da psiquiatria que poderíamos chamar mais
médica e clássica, pintou um retrato implacável através da
figura do psiquiatra que segue Septimus Severus, o como-
vente doente psicótico, torturado pelas recordações da
Grande Guerra, protagonista do seu romance Mrs.
Dalloway. Relativamente a psicanálise, manteve um inte-
resse intelectual pela obra de Freud (que leu e publicou na
sua editora Hogarth Press), chegando a conhecer o mestre
vienense em 1939, no seu exílio de Hampstead; comparti-
lhando este interesse com vários membros do grupo de
Bloomsbury, que chegaram a estar ligados de forma directa
à Sociedade Psicanalítica Britânica (James Stratchey, o tra-
dutor da obra de Freud, e a sua mulher Alix; e o seu próprio
irmão Adrian Stephen, que estudou o curso de Medicina
para se transformar depois em conhecido analista, tal
como sua mulher Karin). No entanto, apesar da natureza
da sua própria obra, tão introspectiva e dirigida para o
estudo da subjectividade e da voz interior dos persona-
gens, a escritora sempre recusou deitar-se no divã, talvez,
porque como Hemingway, pensava que a sua autêntica
analista era a sua máquina de escrever. Por sua vez, o seu
marido Leonard também pensava que a natureza do qua-
dro de Virgínia não iria responder à terapia psicanalítica.
Podemos encontrar, no entanto, espalhadas pelos seus
livros, iluminações sobre o sono:
“Mas se de sono se tratara, não podemos deixar de per-
guntar qual é a natureza de tais sonos… Terá o dedo da
morte que poisar de tempos a tempos no tumulto da vida
para que este nos não destrua? Seremos feitos de tal
massa que precisemos de tomar diariamente pequenas
doses de morte, sob pena de não conseguirmos cumprir a
missão de viver?” 7
“No entanto, é na nossa ociosidade, nos nossos sonhos,
que a verdade imersa vem, por vezes, ao de cima.” 6
Ou reflexões sobre a disparidade entre o tempo mental e o
55
Leituras / ReadingsVolume VIII Nº3 Maio/Junho 2006
tempo do relógio:
“A alma do homem, aliás, age de forma igualmente
estranha sobre o corpo do tempo. Uma hora, alojada no
bizarro elemento do espírito humano, pode valer cinquenta
ou cem vezes mais que a sua duração medida pelo relógio;
em contrapartida, uma hora pode ser fielmente represen-
tada no mostrador do espírito por um segundo.” 7
7 - Psicose Maníaco-depressiva ouPerturbação Esquizoafectiva?
Virgínia Woolf sofreu uma doença que começou na adoles-
cência (já nessa altura os irmãos costumavam chamá-la “a
Cabra louca”, epíteto que ela aceitava com boa disposi-
ção), caracterizada por alterações do humor, na forma de
episódios depressivos e/ou disfóricos, associados ocasio-
nalmente a sintomas psicóticos não congruentes com o
humor (actividade alucinatória auditiva na forma de vozes,
umas vezes vozes em comando que lhe mandavam fazer
coisas desatinadas, outras vezes ouvia os pássaros can-
tando em grego clássico ou referia ouvir o rei Eduardo VII
falando de forma imunda entre os arbustos). Durante as
fases depressivas ficava acamada, recusando qualquer ali-
mento, e apresentava insónias, crises de palpitações,
ideias delirantes de culpabilidade e autoreferenciais, e sin-
tomatologia somática (intensas cefaleias que a incapacita-
vam para qualquer actividade intelectual). O seu sobrinho
Quentin Bell, na sua biografia, descreve com grande
riqueza de detalhes os sintomas destas crises depressivas:
“Acreditava que as pessoas se riam dela, que era a causa
dos problemas de todas as pessoas; sentia-se invadida por
um sentimento de culpa pelo qual devia ser castigada.
Chegou a estar convencida de que o seu corpo, de alguma
maneira, era monstruoso, com uma sórdida boca e um sór-
dido intestino que pediam comida (…) a única solução era
recusar-se a comer. As coisas materiais adoptaram aspec-
tos sinistros e imprevisíveis, bestiais e horríveis.” 4 Existe o
registo de, pelo menos, cinco ou seis episódios depressi-
vos, dois deles depois da morte da mãe e do pai (prováveis
quadros endo-situacionais). Existe ainda um episódio, em
1915, em que terá ficado num estado compatível com um
episódio maníaco: “entrou num estado de frenesi verbor-
reico, falando de forma mais turbulenta e incoercível, até
cair numa total incoerência e afundar-se no coma.” 4
Durante os episódios, com o apoio e a presença continua
de Leonard e Vanessa, permaneceu internada em casas
de saúde e sanatórios, pois sempre recusou os interna-
mentos psiquiátricos. A prescrição básica consistia em
repouso, comida, sossego e evitar excitações intelectuais,
ao que se acrescentava a escassa farmacopeia disponível
nessa época (veronal, paraldeido, hidrato de cloral ou vinho
quente para a insónia, e aspirina para as cefaleias). Como
refere Jane Dunn, fora dos episódios, a sua vida e a sua
actividade criativa, foram perfeitamente normais, “De
acordo com seus próprios cálculos, Virgínia cedeu à
doença apenas cinco anos de uma vida que durou quase
sessenta. A sua vida esteve caracterizada por um trabalho
intenso, uma grande claridade intelectual, uma alegria de
viver e uma visão absolutamente lúcida das coisas.” 1 Na
carta que deixou escrita antes de suicidar-se, confessava
apresentar novamente alucinações auditivas: “Comecei
novamente a ouvir vozes e não me posso concentrar” 4.
Previamente tinha tido duas tentativas de suicídio: na pri-
meira delas atirou-se de uma janela, na segunda fez uma
ingestão de grandes quantidades de veronal. A maioria dos
autores que tentaram analisar a doença psiquiátrica de
Virgínia Woolf parecem concordar no diagnóstico de
Psicose Maníaco-Depressiva (episódios depressivos recor-
rentes com sintomas psicóticos não congruentes com o
humor para uns; perturbação bipolar para outros). 8,9 Para
quem escreve, embora fiquem algumas dúvidas para
excluir definitivamente o eventual diagnóstico de
Perturbação Esquizoafectiva, a ausência de qualquer dete-
rioração cognitiva parece inclinar mais o diagnóstico para a
Psicose Maníaco-Depressiva.
Existe ainda uma forte carga genética de tipo afectivo, que
poderia explicar os quadros depressivos que também
sofreram os irmãos de Virgínia, Vanessa e Adrian. Pelo
menos, no caso deste último, temos a certeza que sofreu
repetidas e graves depressões, e talvez foi a consciência
da sua perturbação afectiva uma das razões que o empur-
raram à jovem disciplina da psicanálise. Como explica Jane
Dunn no seu livro: “Parece evidente que os três comparti-
lharam uma mesma herança genética e que viveram uma
infância particular pelos privilégios intelectuais que goza-
ram, pelas desgraças pessoais que sofreram e pela repres-
são de qualquer manifestação de emotividade.” 1
56
Saúde Mental Mental HealthLeituras / Readings
8 - E quem se lembra de Leonard Woolf?
Leonard Woolf, intelectual judeu, socialista activo e com-
prometido, assume, nesta história, um papel secundário,
embora transcendental. Ficará na história por ser o marido
de Virgínia e talvez, por ter criado, junto com ela, a editora
Hogarth Press, em cuja imprensa foram publicadas, entre
outras, a obra completa de Freud vertida para o inglês por
James Stratchey; ao lado das obras de outros autores da
geração de Bloomsbury (os romances de E.M. Foster, para
além, obviamente, de todas as obras da própria Virgínia) e
de obras emblemáticas de outros autores contemporâneos
(The Waste Land de T.S.Eliot, a poesia de Auden e
Spender). Leonard foi, no entanto, o pilar imprescindível da
vida de Virgínia, conseguindo ser, ao mesmo tempo, o
marido tenaz e incansável, e o amigo capaz de servir de
suporte emocional e artístico da criadora. Durante as múl-
tiplas recaídas da sua doença mental, a sua presença (jun-
tamente com a da irmã, Vanessa Bell) foi o factor decisivo
para uma recuperação cada vez mais difícil.
Após a morte de Virgínia, Leonard confessou a Vanessa
que tinha depositado as cinzas da sua mulher debaixo de
um casal de ulmeiros que ela costumava chamar Leonard
e Virgínia. Encima do tronco de um deles mandou colocar
uma placa com as últimas linhas do romance As Ondas: “A
Morte é o nosso inimigo. É contra a Morte que cavalgo de
lança em riste e os cabelos flutuando ao vento.” 10 A figura
de Leonard faz-nos pensar em todos aqueles homens e
mulheres amantes, que observamos nas consultas dos
nossos doentes, cuidadores infatigáveis, que conseguem
acompanhar, dia a dia, a doença mental dos seus compan-
heiros, aguentando situações que, por vezes, parecem
insustentáveis, até para nós, cuidadores profissionais. A
sua presença torna mais leves as horas mais negras e difí-
ceis.
Bibliografia:1. Dunn Jane (1993): Vanessa Bell, Virgínia Woolf. Circe. Barcelona
(tradução espanhola do original inglês “A very close conspiracy”).
2. Cunninghan M (2000): As Horas. Gradiva. Lisboa.
3. Grashoff, Udo (2006): Vou-me embora: Cartas suicidas. Editora
Quetzal. Lisboa.
4. Bell, Quentin (2003): Virgínia Wolf. Lumen. Barcelona (tradução
espanhola do original inglês “Virgínia Woolf: A Biography”).
5. Woolf V (2003): La señora Dalloway. Introducción de Mário
Vargas Llosa. Lumen. Barcelona.
6. Woolf V (2005): Um quarto só para si. Relógio D´Água. Lisboa.
7. Woolf V (1994): Orlando. Relógio D´Água. Lisboa.
8. Jamison KR (1993): Touched with Fire: Manic-Depressive Illness
and the Artistic Temperament. The Free Press. New York.
9. Gustavo Figueroa C (2005): Virginia Woolf: enfermedad mental y
creatividad artística. Rev Méd Chile 2005; 133: 1381-1388.
10. Woolf V (1988): As ondas. Relógio D´Água. Lisboa.
Leonard Woolf