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1 Departamento de Ensino,Instituto FernandesFigueira, FundaçãoOswaldo Cruz. Av. RuiBarbosa 716, Flamengo.22250-020 Rio de JaneiroRJ. [email protected]

Violência é coisa de homem?A “naturalização” da violência nas falas de homens jovens

Is violence man’s thing?The “naturalization” of the violence for young men

Resumo O estudo tem por objetivo analisar os sen-tidos atribuídos por homens jovens à relação mascu-linidade-violência. A metodologia pautou-se numaabordagem qualitativa, em que se procurou compre-ender e contextualizar os sentidos subjacentes às fa-las dos sujeitos investigados, envolvendo 19 homensjovens de segmentos populares da cidade do Rio deJaneiro (RJ). Os resultados apontam que, em geral, arelação masculinidade-violência-juventude pode serum fator de vulnerabilidade. Conclui-se que, paraque se tenha um outro olhar sobre esse modelo, faz-senecessária a adoção de estratégias que possibilitemoutras formas de experienciar o ser homem, que in-vistam numa perspectiva do cuidar de si e dos ou-tros, tornando as relações mais saudáveis e com me-nor risco.Palavras-chave Masculinidade, Violência, Juven-tude

Abstract The study aims to analyze the young men’ssenses attributed to the relation masculinity-vio-lence. The methodology of this study was based on aqualitative approach, trying to understand and sit-uate the underlying senses to the speeches of the in-vestigated subjects, involving 19 young men of pop-ular segments of the city of Rio de Janeiro (RJ). Theresults revealed that, in general, the relation mascu-linity-violence-youth might be a vulnerability fac-tor. It is ended that to have another glance on thatmodel, it is necessary the adoption of strategies thatfacilitate other ways to experience to be man, thatinvest in a perspective of taking care of itself andother, turning the relationships healthier and withless risks.Key words Masculinity, Violence, Youth

Elaine Ferreira do Nascimento 1

Romeu Gomes 1

Lúcia Emília Figueiredo de Souza Rebello 1

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Introdução

Neste estudo, objetivamos analisar os sentidos dehomens jovens atribuídos à relação masculinidade-violência. Entendemos que, por meio dessa análise,poderemos trazer contribuições para as discussõesque vêm sendo desenvolvidas no campo da saúdepública em que se problematiza o fato de homensjovens se envolverem em situações de violência. Paraessa análise, tomamos como referência os conceitosde masculinidade, violência e juventude.

A masculinidade – situada nas relações de gê-nero – pode ser entendida como um conjunto deatributos, valores, funções e condutas que se espe-ra que o homem tenha numa determinada cultu-ra1. Ampliando a discussão, Connel 2 consideraque os modelos de masculinidade e feminilidade –além de se relacionarem a outros aspectos estrutu-rais, como raça e classe social – se vinculam a con-tradições internas e rupturas históricas, fazendocom que haja múltiplas masculinidades, emborapodendo haver uma que ocupa um lugar de hege-monia e, por isso, pode se tornar um modelo a serseguido nas relações de gênero. Esse modelo ex-pressa uma ideologia em que a masculinidade seancora na heterossexualidade, na racionalidade eno privilégio de poder infligir a violência3. Adotan-do um recorte de geração, consideramos, portan-to, que as masculinidades se complexificam aindamais entre os jovens quando influenciados por essemodelo para ascender ao status de homem adulto.

Em relação à juventude, com base em Groppo4,entendemos essa expressão como uma categoriasocial – perpassada por questões etárias – confi-gurada, ao mesmo tempo, como uma representa-ção sociocultural e uma situação social. Nesse sen-tido, a juventude, tratada como uma concepção,representação ou criação simbólica, se constróipelos grupos sociais ou pelos próprios sujeitos ti-dos como jovens, para designar uma série de com-portamentos e atitudes a ela atribuídos. Assim, ajuventude metamorfoseia-se de acordo com a clas-se social, o grupo étnico/racial, a nacionalidade, ogênero, o contexto histórico nacional e regional,dentre outros aspectos4.

No campo da saúde pública, as discussões so-bre a masculinidade têm sido atravessadas porquestões relacionadas à violência. Segundo Coutoe Schraiber5, a partir dos anos noventa, principal-mente nesse campo, se intensificam as discussõessobre a relação homem-violência, sobretudo mo-tivadas pelos altos índices de mortalidade por vio-lência entre homens jovens, em diversas regiões daAmérica Latina e Caribe. Schraiber e colaborado-res6 chamam a atenção para a magnitude da vio-

lência vivida por homens na esfera pública, apon-tando que cerca de um em cada dois homens jáexperimentou alguma situação de agressão física.No caso da juventude, esse problema se acirra, porconta da forte participação desse segmento nosatos violentos. Gomes e colaboradores7, por exem-plo, baseados em dados do Datasus, apontam que,em 2000, mais da metade das mortes por causasexternas, entre homens jovens de 15 a 29 anos deidade, ocorreram por homicídio.

Ampliando essa discussão, Souza8 observa queo maior envolvimento de homens em homicídios eacidentes de transportes – como vítimas ou comoautores – pode se articular com dois grandes símbo-los masculinos: as armas (associadas ao poder devida ou morte) e os carros (associados ao poder delocomoção, velocidade, liberdade e status social).Esses objetos, segundo a autora, “são introduzidosdesde cedo na vida do menino, na forma de brin-quedos, e passam a fazer parte do universo mascu-lino com todos os simbolismos que possuem nocontexto capitalista ocidental contemporâneo”.

As relações entre juventude e violência podemser aprofundadas se adicionarmos questões volta-das para raça/etnia. No entanto, sabemos que hápouco investimento por parte da área da saúde notrato dessas questões. Junto a uma produção es-cassa, há autores que chamam a atenção para anecessidade de se contextualizar as relações entreraça/etnia, juventude e violência num escopo mai-or que envolva, dentre outros, aspectos estrutu-rais – relacionados, principalmente, as desigual-dades socioeconômicas, bem como questões deordem territorial – voltadas para áreas geográfi-cas hoje consideradas de risco9.

Por último, observamos que as discussões acer-ca das relações masculinidade-juventude-violênciadevem se situar numa lógica complexa em que aviolência é entendida como um fenômeno multi-facetário e sócio-histórico, nutrida e modelada apartir de aspectos políticos, econômicos e cultu-rais que se traduzem nas relações cotidianas entreos sujeitos e as instituições, sendo este um proces-so apreendido e internalizado10.

Material e método

Nosso estudo é parte de uma investigação que pro-curou problematizar a tríade ser homem, juventu-de e violência, ancorada no modelo hegemônico demasculinidade. Essa investigação pautou-se numaabordagem de pesquisa qualitativa, aqui entendidacomo um conjunto de práticas interpretativas quebusca investigar os sentidos que os sujeitos atribu-

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em aos fenômenos e ao conjunto de relações emque eles se inserem11. Nessa abordagem, procura-mos compreender e contextualizar os sentidos sub-jacentes às falas dos sujeitos investigados.

O estudo foi desenvolvido com homens jovens,que se encontravam inseridos num curso de quali-ficação para o mercado de trabalho na área auto-mobilística, promovido por uma Organização NãoGovernamental (ONG) que atua em uma favelana cidade do Rio de Janeiro. A instituição ofereceformação, capacitação e colocação no mercado detrabalho aos jovens de baixa renda. A escolha poresse curso se deu pela facilidade de acesso dos pes-quisadores à instituição e por reunir jovens queatendiam aos critérios da pesquisa.

Pautada na lógica de amostra em pesquisa qua-litativa12, na escolha dos entrevistados foram con-siderados os sujeitos em números suficientes paraque houvesse saturação de sentidos e foi prevista apossibilidade de inclusões sucessivas de sujeitos atéque fosse possível uma discussão densa das ques-tões da pesquisa.

Os jovens entrevistados compuseram um gru-po de 19 rapazes com idades entre 15 e 17 anos. Amaioria tinha 16 anos (15 homens-jovens), auto-declararam-se “pretos” (12 homens-jovens) e cur-savam a oitava série do ensino fundamental (17homens-jovens).

A coleta dos dados se apoiou em entrevistassemi-estruturadas. Em termos de procedimentoanalítico adotado no trato dos depoimentos, nesteestudo utilizamos o método de interpretação desentidos13, com base em princípios hermenêuticos-dialéticos para a interpretação do contexto, das ra-zões e das lógicas dos depoimentos que giraram emtorno das temáticas do estudo. A partir desse mé-todo, procuramos não só compreender os senti-dos subjacentes às falas dos jovens, como busca-mos interpretar significados culturais mais amplos,por meio da contextualização dos depoimentos.Caminhando nessa trajetória, elaboramos uma sín-tese interpretativa, procurando articular objetivodo estudo, base teórica adotada e dados empíricos.

O projeto de pesquisa da qual se insere estetrabalho foi avaliado pelo Comitê de Ética em Pes-quisa com Seres Humanos do Instituto FernandesFigueira/Fiocruz, em cumprimento da resolução196/96 do Conselho Nacional de Saúde. Para ga-rantir o caráter sigiloso das informações, os depo-imentos dos entrevistados foram codificados comnomes fictícios.

Cenários socioestruturaisda masculinidade juvenil

Os depoimentos dos entrevistados refletem aspec-tos de cenários socioestruturais do cotidiano e dasrelações entre os sujeitos. Em outras palavras, ostextos são construídos a partir de contextos. As-sim, nessa perspectiva, para os jovens entrevista-dos a violência nas comunidades, quase sempreestá associada ao tráfico de drogas:

Eu acho muito difícil o jovem de hoje em dia nãoestar envolvido com a violência dentro das comuni-dades, até porque eles são encaixados como margi-nais na sociedade. As polícias se revoltam, mas aca-bam fazendo as coisas que eles não queriam fazer,mas acabam tendo que fazer aquilo (Tiago, 16 anos).

Os policiais poderiam agir de outra forma, masnão, usam de violência nas comunidades. Só porqueé comunidade, tudo bem que tem traficante, mastambém tem muita gente do bem e, eles não pergun-tam, saem atirando e quem acaba morrendo [são]os jovens, os envolvidos e os inocentes (Reinaldo, 16anos).

Eu acho que tudo isso vem da sociedade, a vio-lência é gerada mais pelo homem, por causa que agente vê aqui dentro [comunidade], muita facção,falando de facção, isso gera muita violência, porquedaí eles ficam meio com raiva e quer pegar o outro,eu acho que vem em seguida, um vem seguindo ooutro. É, dando continuidade, eu acho que continuaassim, geralmente o homem, a violência só o homemcausa (Ricardo, 17 anos).

Essas falas nos remetem a uma discussão maisampla em que o ser jovem, quase sempre negro,pobre e morador de favela, pode ser alvo de discri-minação e marginalização14 . Wacquant15, ao dis-cutir a violência estrutural, a define a partir da com-binação de dois processos sociais: a polarização declasses em razão das desigualdades sociais e a se-gregação racial. Esses dois elementos combinadosproduziriam o que ele chama de “dualização dametrópole”. Essa violência estrutural, por sua vez,poderia causar um processo perverso multifaceta-do, no qual se destacariam três eixos: desempregocrônico, estigmatização social e racial e exílio. Aexpressão final dessa violência teria como resul-tante a vulnerabilidade de um segmento que já seencontra, por questões etárias, num grau elevadode fragilidade.

A concepção de vulnerabilidade diz respeito àanálise não apenas dos sujeitos, mas também docontexto ao qual estão inseridos, considerando asestruturas sociais vulnerabilizantes ou condicio-namentos de vulnerabilidades16-18. A dialética pos-sível em tal conceito refere-se tanto aos fatores ne-

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gativos, ou seja, aos obstáculos para os sujeitos eaos riscos vivenciados pelos mesmos, quanto aosfatores que podem ser entendidos como positivos,na medida em que os sujeitos criam formas deresistências e estratégias para o enfrentamento dosriscos e obstáculos de forma criativa.

Ampliando a discussão sobre violência estru-tural, Minayo e Souza19 observam que essa tematingido diretamente a juventude brasileira, demodo que o principal grupo de risco para a mor-talidade por homicídio tem sido homens jovens eadultos, moradores de bairros pobres de metró-poles, negros, com baixa escolaridade e qualifica-ção profissional.

Nesse sentido, a chamada forma estrutural daviolência, muitas vezes oculta numa fachada deinevitabilidade histórica da pobreza, da desigual-dade, da ineficácia da garantia de direitos, podetornar invisíveis os mecanismos que geram inte-resses ou privilégios na construção e perpetuaçãode tais quadros de exclusão e segregação.

Sociabilidade masculina e violência

Na construção das identidades de gênero, a socia-bilidade – ancorada em modelos culturais – exercepapel estruturante, uma vez que o ser homem ou oser mulher não se constitui apenas a partir de mo-delos de masculinidade ou feminilidade, mas tam-bém são mediados pelas relações intersubjetivas,de modo a reproduzir ou a reconstruir tais mode-los de acordo com as situações e as especificidadessociais. Assim, nesse processo de construção/repro-dução das identidades, esses modelos funcionamcomo matrizes – social e historicamente construí-das – e se traduzem em habitus, entendido comoconhecimento adquirido e determinado pela posi-ção social do indivíduo, estruturando práticas e re-presentações que podem ser objetivamente “regu-lamentadas” e “reguladas”, envolvendo uma capa-cidade criadora, ativa e inventiva20. Esses habitusnão só são incorporados pelos sujeitos como tam-bém adaptados e partilhados nos grupos de pares.

Seguindo essa lógica, de acordo com os depoi-mentos dos jovens, a violência vista como um ethosmasculino, pode ser expressa e apreendida nas re-lações sociais entre homens do mesmo grupo etá-rio ou entre gerações diferentes:

É por que tem as brigas, por exemplo, nos camposde futebol, nos botecos, coisas assim, e aí você vai veré o homem que tá lá sendo violento (Ricardo, 17anos).

Ele vê que um homem adulto tá fazendo e acabase baseando naquilo. Porque o adulto de alguma for-

ma é referência pro jovem. Quase sempre o jovem éreflexo do homem adulto (Romário, 16 anos).

A partir desses sentidos, a violência teria comolócus privilegiado de ações naturalmente violentaso espaço da sociabilidade masculina. Welzer-Lang21

observa que, nos lugares monossexuados, comopátios de colégios, clubes esportivos, bares, pri-sões, entre outros, para ser aceito como homemou para fazer parte de um grupo de homens, me-ninos vivenciam uma aprendizagem mimética, naqual o mimetismo dos homens é um mimetismode violências, que inicialmente se voltam contra asi mesmo e depois se voltam para os outros, sejammulheres ou homens que não conseguiram atingiresse status.

Esse argumento é reforçado por Bourdieu22,ao discutir que a perseguição ideal do modelo demasculinidade pode ser o princípio de uma grandevulnerabilidade para os homens, uma vez que podeestimulá-los à adoção de investimento em jogosviolentos masculinos.

A masculinidade, como prática pessoal, nãopode ser isolada de seu contexto socioinstitucional(família/estado/mercado/trabalho/grupo de pa-res). Ou seja, a masculinidade tem um status deinstituição produzida na vida diária a partir de re-lações interpessoais, inter-relacionais e entre ossujeitos.

Essa luta, entretanto, tem um ritmo e variáveispróprias e não está conscientemente vinculada aum grupo de homens, mas a uma trama de rela-ções complexas, em que se procura ajustar, legiti-mar e velar as características históricas e culturaisda masculinidade, tornando-a estabelecida, eter-na, natural e, portanto, ahistórica. E, em particu-lar, os jovens entrevistados fazem parte de um seg-mento socioeconomicamente fragilizado e estãoinseridos na instituição em busca de melhoresoportunidades de renda e vida, o que pode demar-car diferenciadamente o olhar destes jovens.

Ser homem é ser violento (?)

A incorporação da divisão social do sexo, instituí-da a partir dos modelos culturais de gênero, podefazer com que determinadas estruturas da ordemsocial sejam naturalizadas. Dentro dessa lógica –por meio do processo de “naturalização” – certascaracterísticas que compõem o modelo hegemô-nico podem ser vistas como uma manifestaçãobiologicamente estabelecida23. Assim, a estruturade dominação, que comumente é associada à mas-culinidade, no âmbito das relações de gênero podecontribuir para que a violência seja associada cons-

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ciente ou inconscientemente ao ser homem. Nessesentido, para alguns entrevistados, a violência éalgo que tende a ser internalizada e naturalizadapelos homens. E, nas relações de gênero, a violên-cia só se relaciona com o feminino quando é umaresposta à violência masculina ou quando é umacausa para essa.

O homem naturalmente ele já é violento (Ro-berto, 16 anos).

Eu acho que ser homem é ser violento, até por-que o homem é mais violento que mulher (Rafael,16 anos).

Algumas pessoas acham que pra ser homem temque ser violento. Ah! Homem é quando dá porrada,quando faz isso, quando faz aquilo e eu acho quenão, eu já acho diferente (Rico, 16 anos).

Os homens arrumam mais violência na maioriadas vezes por causa de mulher. Por que eles saem coma mulher, aí outro cara olha pra mulher dele e aíacaba gerando uma briga (Rafael, 16 anos).

Se ela [a mulher] causa [violência] é em respostaao homem, ela dá o troco, mas geralmente quem co-meçou foi o homem (Ricardo, 17 anos).

De acordo com Bourdieu20, as relações entreos gêneros são constituídas a partir de uma ordemsocial em que simbolicamente a dominação mas-culina pode ser ratificada como um habitus mas-culino. A legitimação do domínio do masculinosobre o feminino dentro da ideologia de suprema-cia pode ocorrer por meio do uso da violência,outorgando aos homens, que partilham da visãohegemônica de que a dominação é uma pertençada masculinidade, o direito de usá-la24.

Ampliando essa discussão, Connel24 problema-tiza o fenômeno da violência como uma constru-ção social, historicamente associada à masculini-dade. Particularmente entre segmentos juvenis, emdeterminados contextos, a violência pode ser uminstrumento de uso recorrente para a afirmaçãoda masculinidade de homens jovens sobre outroshomens da mesma faixa etária, seja entre gruposde pares, seja entre grupos diferentes.

Se o ser homem é mais vulnerável à violência, oser homem jovem pode acirrar essa vulnerabilida-de. Na medida em que a juventude pode ser enten-dida como um status intermediário entre a infânciae a fase adulta, o jovem, para acessar o status de serhomem, pode se deparar com a violência como umcaminho a ser trilhado. Nesse sentido, se o ser mas-culino é associado ao ser violento, a construção daidentidade masculina passa também pelo lidar coma violência, seja como autor ou como vítima, pa-péis que ora se excluem, ora se superpõem. Assim,nossos entrevistados trazem em suas falas ques-tões que podem remeter a essa discussão:

O jovem, ele não sabe direito o que quer e [como]alcançar os objetivos deles, então muitas vezes eleencara a violência como a melhor forma de subir navida e em alguma coisa (Roberto, 16 anos).

Quando eu sou jovem, eu começo a me dedicar àviolência (Renato, 17 anos).

Percebida como um caminho, a violência podeser vista, ao mesmo tempo, por alguns dos nossosjovens como um instrumento de superação de umadada situação em que ele se encontra, um mecanis-mo para realização de seus objetivos, um modelo aser seguido e algo inevitável a ser experimentado.

Ainda que o homem reflita sobre a não perti-nência do exercício da violência como afirmaçãoda masculinidade no âmbito das relações nem porisso deixa de ter uma performance violenta. Issofica patente no depoimento de um dos nossos en-trevistados:

Você com raiva, você gera violência, mais depoisvocê pára pra pensar e pensa, pô não era pra eu terfeito isso. Coisa de homem e babaca. Acho que todohomem tem esse momento babaca de fazer as coisas edepois se arrepender (Ricardo, 17 anos).

Esse depoimento, de uma forma ou de outra,reedita um modelo hegemônico de masculinidadeque assegura a posição dominante de homens e asubordinação de mulheres. Entretanto, como bemobserva Connel2, 24, esse modelo não é totalmentedominante, na medida em que convive com outrasformas de masculinidade, ainda que se sobressaiasobre essas. Ilustrando esse posicionamento, a falaque segue pode nos fazer refletir sobre a convivên-cia dos diversos modelos de masculinidade exis-tente no cotidiano, gerando um possível questio-namento de que a violência não é um fenômenotão naturalizado:

Bem, é que tem algumas pessoas que acham quepra ser homem tem que ser violento. Ah! Homem équando dá porrada, quando faz isso, quando faz aqui-lo e eu acho que não, eu já acho diferente (Rico, 16anos).

A discussão acerca da relativização da violên-cia, como pertença do ser homem, pode ser ampli-ada a partir da própria concepção da masculini-dade hegemônica de Connel que, segundo Adibi25,se opõe a uma visão essencialista de gênero e serecusa a transformá-la numa identidade fixa e es-tática de um gênero. Nesse sentido, a masculinida-de hegemônica reflete uma dinâmica em que o queé hegemônico e o que é subordinado sejam vistosmutuamente como contraponto e antiparadigma26.Assim, a construção da masculinidade cria e recria,transforma e ressignifica, provocando rupturas oupermitindo a continuidade e a legitimação das idéiaspredominantes. Esse processo contém a luta con-

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tínua que envolve marginalização, contestação,mobilização, resistência e subordinação.

Considerações finais

Tanto os dados deste estudo quanto os da litera-tura nos apontam que as relações estabelecidasentre masculinidade e juventude podem redundarem práticas violentas, trazendo comprometimen-tos para a saúde dos homens jovens, na medidaem que esses sujeitos, ao almejarem o status de serhomem, podem ser influenciados pelo modelo he-gemônico de masculinidade, associado à domina-ção e ao ser forte. Nesse sentido, os jovens, para seafirmarem ou serem aceitos como homens de “ver-dade”, de um lado, passam a dominar todos aque-les que julgam mais “fracos” – sejam mulheres,sejam outros homens – e, de outro, caindo na suaprópria armadilha, se expõem a riscos, compro-metendo a saúde ou a vida de si ou dos outros.

A partir dessa perspectiva, as consequências dasrelações masculinidade-violência-juventude para asaúde pública se expressam fortemente nos perfisde mortalidade por causas externas, trazendo nãosó custos para o Estado como também desafios aserem enfrentados frente a um problema tão com-plexo e multifacetado.

Caminhando na direção do enfrentamento detal problema, alguns princípios podem ser esboça-dos; o primeiro deles se relaciona à necessidade deenvolver os homens jovens como protagonistasda construção de um olhar a partir de outros ho-rizontes; o segundo se traduz pela reconstrução denovos sentidos para que os jovens possam trilharnovos caminhos que desnaturalizem a violênciacomo pertença do masculino, construindo a pos-sibilidade de ser homem numa perspectiva do cui-dar de si e dos outros, tornando a vida e as rela-ções mais saudáveis e com menos riscos.

Colaboradores

EF Nascimento participou da concepção, delinea-mento e redação do artigo, análise e interpretaçãode dados, R Gomes participou do delineamento,redação do artigo, análise e interpretação de da-dos, LEFS Rebello participou da redação e revisãocrítica do artigo.

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Artigo apresentado em 21/08/2008Aprovado em 19/01/2009

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