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Camilo Castelo Branco

Carlos ReisCOORDENAÇÃO

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Maria Fernanda de AbreuINTRODUÇÃONOTA BIOBIBLIOGRÁFICA

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Camilo Castelo Branco

Carlos ReisCOORDENAÇÃO

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Maria Fernanda de AbreuINTRODUÇÃONOTA BIOBIBLIOGRÁFICA

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Camilo Castelo Branco

Imprensa Nacional é a marca editorial da

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© 2019, Imprensa Nacional-Casa da Moeda

as obras da BFlp observamo acordo ortográfico da língua portuguesa de 1990

publicado em abril de 2019depósito legal

335 168/11ISBN

978-972-27-2020-5Edição n.º1023260

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Nota préviaCarlos Reis

Se há escritor que, na história literária portuguesa, ostenta as marcas impressivas de uma produção literária, de uma intervenção cultural e de um percurso biográfico bem caracte­rísticos, esse escritor é Camilo Castelo Branco. Mais: Camilo é uma daquelas escassas personalidades literárias relativamente às quais não se é indiferente; o seu nome e o que ele representa inspiram, por isso, reações bem distintas, de adesão irrestrita ou de rejeição instintiva.

Alguns aspetos do que foi a vida de escritor desta persona­lidade, que indelevelmente marcou a nossa cena pública na segunda metade do século xix, permitem­nos entender, pelo menos em parte, alguma coisa da força e do timbre distintivo que são próprios da sua obra. Tendo vivido a literatura com uma intensidade e com um profissionalismo que poucos podem reclamar, Camilo esteve nela por vocação (no sentido mais próprio do termo) e por impulso irrefreável. Mais: nalguns momentos não se coibiu de projetar na literatura que escreveu os seus dramas e as suas paixões, com uma autenticidade que chegou a expô­­lo aos olhos de uma sociedade nem sempre tolerante com a síndrome de excesso que não raro atravessou a sua vida. Os amores adúlteros com Ana Plácido, o processo

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judicial que eles provocaram e a condenação a que este deu lugar (e nem no cárcere Camilo abandonou a condição de escritor) são alguns dos episódios em que aquele excesso e aquela exposição pública são mais evidentes. Mas não são os únicos, de tal modo que o suicídio com que o autor do Amor de Perdição encerrou a sua passagem pelo mundo assume a feição de uma libertação, sem deixar de ser o gesto de deses­pero que de facto é.

A não ser pela predominante dimensão novelística da sua produção literária, de Camilo quase poderíamos dizer que foi verdadeiramente um polígrafo, tantos e tão variados foram os géneros que cultivou e os registos em que o fez. Novelista antes de tudo, Camilo foi também romancista, dramaturgo, poeta, cronista, polemista, ensaísta, crítico, tradutor e epistológrafo, sempre com uma prolixidade e com uma veemência verdadei­ramente invulgares. Para além disso, conviveu com os grandes movimentos literários e com os grandes homens de letras do seu tempo, numa época em que essa condição (a de homem de letras) incutia em quem com ela se identificava uma pro­jeção social e cívica hoje relativamente desvanecida. Marcado pelo romantismo ainda vigoroso em Portugal nos anos 50 e 60 do século xix (um romantismo que nele ressoou com uma tonalidade acentuadamente emocional, quando não patética), Camilo participou também, como protagonista mais do que como comparsa, na receção do realismo e do naturalismo, este último por ele interpretado de forma ambivalente e com as tintas fortes que eram também as do temperamento artístico de um escritor que vivia muito do leitor e para o leitor. De certa forma, Camilo foi, ao mesmo tempo, um dos responsáveis e um dos beneficiários de fenómenos de transformação social e económica que na época atingiram uma literatura cada vez mais acessível a públicos alargados; contribuiu para esse alar­gamento a industrialização do livro (que o embarateceu e de certa forma o democratizou), a institucionalização de circuitos de acesso e distribuição como os gabinetes de leitura, a venda

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em folhetins e a difusão da imprensa, esta última acolhendo nas suas páginas, de forma regular, colaborações literárias subscritas por escritores destacados — e também por outros de quem ficou escassa ou nula memória.

Camilo Castelo Branco esteve nesse mundo cultural de forma sempre ativa. Esse modo de ser e de estar foi favorecido por uma vida literária que se estendeu por cerca de quatro décadas, bem trabalhosas e bem preenchidas por dezenas de títulos publicados e por milhares de livros vendidos. No decurso dessa vida literária, Camilo foi contemporâneo de Garrett (já em fim de carreira), de Herculano, de Castilho e dos grandes vultos da geração de 70, com destaque para Eça: com este cultivou Camilo um cauteloso e quase sempre discreto distanciamento, não só por razões pessoais que agora não vêm ao caso, mas também por se ter certamente apercebido daquilo que no seu confrade vinte anos mais jovem existia de talento e de diferença, relativamente aos grandes temas e às predominantes opções estilísticas que atravessam a escrita camiliana. É precisamente pelo lado do estilo (numa aceção lata do termo) que até hoje se cavam as divergências entre camilianos e queirosianos, sendo certo, todavia, que ninguém põe em causa a castiça pujança, a criatividade imagística, a inimitável pessoalidade e a agilidade narrativa da prosa camiliana. Goste­se ou não de Camilo não se pode negar aos seus textos (e em particular aos seus textos narrativos) a marca de uma identidade própria e a singularidade de uma língua literária sob vários pontos de vista inovadora.

A publicação de Vinte Horas de Liteira na «Biblioteca Fundamental da Literatura Portuguesa» disponibiliza um dos títulos mais originais e de mais estimulante leitura de toda a ficção camiliana. A introdução elaborada por Maria Fernanda de Abreu para esta edição vem a ser um privilegiado pórtico de acesso que ajuda a bem entender aquela originalidade; contribui para isso o facto de ser Maria Fernanda de Abreu uma estudiosa de Camilo com méritos reconhecidos, autora, entre outros, de um estudo circunstanciado (estudo que foi

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uma tese de doutoramento), intitulado Cervantes no Roman‑tismo Português. Cavaleiros andantes, manuscritos encontrados e gargalhadas moralíssimas (1994). Nele comparece a narrativa camiliana articulada com a narrativa garrettiana e com a receção portuguesa de Cervantes. Porque, convém não esquecer, Camilo foi, além do mais, detentor de uma muito rica e plurifacetada cultura literária.

Entre outros aspetos do texto introdutório elaborado para esta edição por Maria Fernanda de Abreu, importa realçar a questão da modernidade de Vinte Horas de Liteira. Constituindo uma reflexão acerca dos modos e das modas de «fazer litera­tura» (incluindo os protocolos do romantismo em exaustão e os sinais da emergência do realismo), o livro Vinte Horas de Liteira e os relatos que o compõem patenteiam, também pelo recurso à palavra sardónica de um autor inscrito na ficção, o arguto conhecimento que Camilo possuía das engrenagens do fenómeno literário, das expectativas do leitor de então e das seduções que sobre ele exercia um relato bem engendrado e bem contado. Sobre esse leitor e sobre nós, os que aderimos empaticamente à sedução da prosa camiliana e os que no escritor reconhecemos um talento literário irrepetível.

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introduçãomaria Fernanda de abreu

Em julho de 1864, iniciou Camilo Castelo Branco a publi­cação no Comércio do Porto, em folhetim, destas suas Vinte Horas de Liteira que, no mesmo ano, seriam publicadas em livro. É hoje uma das suas obras de maior modernidade no panorama da literatura da época romântica, em Portugal. Pelo caráter autorreflexivo e meta­literário, que a crítica literária hoje pode ver no livro, além de tudo o mais que ao leitor de então lhe foi dado apreciar. Um livro cujo assunto é ele próprio.

Do título, esperaria o leitor que se tratasse de um livro de viagens, género tão em moda por aqueles anos e de que o próprio já tinha dado mostras, com a sua «Peregrinação sobre a face do globo», que, em 1857, publicara no volume Duas Horas de Leitura com o título «Do Porto a Braga».

Na «Introdução», começa Camilo por demorar­se na explicação do que o título já anunciava, além da duração, a originalidade do meio de transporte, já pouco habitual na época. Assim, parece ser a liteira o sujeito da primeira página desta sua conversa inicial com o seu já acostumado e fiel leitor. Apresenta, depois, as circunstâncias em que se dá a viagem e o amigo com quem se encontra na estalagem onde parou

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e que o virá salvar do impasse em que o seu rocim o tinha posto. Pareceria, pois, também que o sujeito desta parte é o amigo António Joaquim, que, com empenho, ele apresenta ao leitor.

E a si próprio por que não se nos apresenta ele? O certo é que, se bem repararmos, ainda antes de iniciar o relato dessas circunstâncias — «Há poucos anos que eu jornadeava de Vila Real para o Porto…» — e pouco depois de um comentário sobre a liteira e o seu destino face ao progresso dos transportes em Portugal, já ele dá ao leitor alguns elementos autobiográficos, ao falar­nos, numa longa frase, da sua relação pessoal com tal meio de transporte:

esta é que é a liteira das minhas saudades, porque se em­balaram nela as minhas primeiras peregrinações; porque dos postigos de uma, vi eu, fora das cidades, os primeiros prados e bosques e serras empinadas; porque o tilintar das suas campainhas me alegrava o ânimo […]; porque finalmente foi numa liteira que eu encontrei o livro, que o leitor, com a sua paciente benevolência, vai folhear [itálico nosso].

E, ainda antes de terminar a introdução e principiar a contar­nos a viagem dessas vinte horas, volta a inscrever­se no relato: «Não há mais que dizer do António Joaquim que eu encontrei em Ovelhinha.» Finalmente, o início do capítulo seguinte — isto é, o início da viagem («eram dez da manhã. / Aqui principiam as vinte horas.») — não faz mais do que confir­mar o que suspeitávamos: será ele o sujeito e objeto da viagem, isto é, da conversa entre os dois amigos:

— Ainda fazes romances? — perguntou­me o meu amigo.

— Ainda… Sedet aeternus que sedebit, Infelix……

faço romances, e expio o pecado de meus avós, neste incessante rodar do penedo ao alto do monte, e resvalar com ele ao fundo.

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Vinte Horas de Liteira: o escritor «par lui-même» ou do escritor, leitor

de si próprio e de muitos outros

O livro começa, pois, com um tipo de prefácio que os estudos literários designam de «prólogo dramatizado». Vai servir de enquadramento ao livro na sua totalidade e dá ao leitor as condições da sua gestação. Camilo tinha já recorrido ao «prólogo dramatizado» em Coração, Cabeça e Estômago (1862) e voltará a utilizá­lo, entre outras, nessa sua obra ci­meira que é A Brasileira de Prazins (1882). O exemplo mais célebre encontra­se no Quixote de Miguel de Cervantes, que Walter Scott declaradamente imitará e que a narrativa român­tica, em particular o romance histórico, usará em abundância. Consiste, fundamentalmente, no seguinte: na sua introdução do livro ao leitor, o escritor imagina e encena uma conversa com um amigo, onde proporciona elementos de tipo diverso, entre outros, informação sobre as circunstâncias de produ­ção do livro e as suas intenções, morais, literárias, críticas ou outras. Nalguns casos, serve para fazer o elogio do seu trabalho posto em boca do amigo e não na sua própria. É já, de qualquer modo, uma estratégia ficcional, na qual o escritor aparece como algo real mas, ao mesmo tempo, como personagem. O próprio leitor, ao qual se dirige o prólogo, tem também esta dupla condição: é algo real, que existe fora do livro, correspondendo a cada um de nós, e é também uma personagem que, a partir de agora, é explicitamente integrada no grupo que sustenta o ato de comunicação que o texto vai desenvolver, constituído por estas três entidades: o escritor, o amigo e o leitor.

Nesta perspetiva, o capítulo i, anunciado como «Introdução à história da égua», pode ser lido como um longo diálogo, entre o amigo e o próprio escritor, cujo sujeito de discurso é não uma qualquer égua, que só aparecerá no fim do diálogo, mas sim o assunto da conversa entre ambos. É o escritor, na sua condição de «fazedor de romances», enunciada logo na primeira fala, o sujeito e objeto da conversa e do capítulo. São cerca de quatro

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páginas, onde a sua condição de escritor, a dele próprio e não de qualquer outro, é esmiuçada, analisada, criticada, elogiada… O amigo, aqui em papel de interlocutor eficacíssimo, avança os elementos de discussão, expõe, argumenta, dá a sua visão de leitor dos livros do escritor: «sabes que eu leio os teus ro­mances. É o máximo sacrifício que posso fazer­te das minhas horas de repouso. Em louvor dos teus livros, basta dizer­te que os leio.» O que é muito, se tivermos em conta, e devemos ter, a apresentação que antes nos foi feita do amigo: alguém que declinara «coisas da governança» porque «é egoísta do seu bem­­estar». Ele, escritor, limita­se aqui a pouco mais do que breves réplicas, a contrapor, a redarguir aos comentários do amigo. Só se defende mais energicamente quando o ouve atacar «o que fazem os escritores à moda»: «— Parece que chegas impando ciência das covas de Salamanca! — interrompi eu ofendido em nome dos meus colegas.» Falará muito mais, mais para a frente, como iremos vendo.

Ora, o amigo sabe muito dos seus romances: dos temas, dos títulos, do uso da imaginação, de escolas romanescas e de estilos, em particular, do «estilo ramalhudo» dos «escritores à moda». E sabe da reação de uma leitora, a sua mulher, que «começa a chorar no título [a pobre mulher]. Estrenoita­se a ler». Sabe ainda, muito, do «estilo» do nosso escritor. Conta que à mulher, por a ver chorar com os romances deste, lhe diz que ele «timbra» «em ter um estilo de cebola ou de mostarda de sinapismos que faz rebentar chafarizes de pranto». Mas nem assim conseguiu desacreditá­lo junto daquela leitora. A conversa, eminentemente literária, como se vê, termina com a questão das escolas literárias e a inserção dos romances do escritor nessas escolas. São elas, sistematizadas pelo amigo: 1. A «escola dos castelos lô­bregos»; 2. A «escola realista»; 3. A «escola mista», à qual considera pertencerem os livros de Camilo.

É, assim, por boca deste amigo que Camilo introduz uma questão nada despicienda e fulcral para ele no momento da sua trajetória de escritor em que se encontra. Cerca de uma

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década depois (1975), assume programaticamente este realis­mo, com As Novelas do Minho, que lhe granjearão um lugar destacado na «escola realista», que ele consolidará com os seus últimos romances. Mas, por agora, os seus livros perten­cem à «escola mista», que ele justifica por uma questão de… realismo: «Pois se a sociedade é isso! — repliquei eu. Se a vida é esse misto, que te repugna, como queres tu que se escreva, António Joaquim?»

Creio, pois, que este capítulo i continua a estratégia do «prólogo dramatizado», iniciado na introdução, a qual tão eficazmente serve o objetivo deste seu livro. Aqui, expande­se a apresentação do escritor, feita de dois modos: através da conversa entre ele e o amigo; através de um discurso sobre si próprio, o escritor como personagem, constituindo­se, defini­tivamente, o escritor, este e não outro, como o protagonista desta viagem e do livro.

Neste enquadramento comunicacional serão introduzidas uma série de histórias, que sucessivamente serão narradas, desde a «história da égua» até a «Amor de freira». [Esther de Lemos chama­lhe «moldura», na «Nota Preliminar» à 5.ª edição (con­forme a 2.ª, última revista pelo autor), que aqui reproduzimos (da Parceria A. M. Pereira, L.da, da coleção «Obras de Camilo Castelo Branco, sob a direção do Prof. Dr. Jacinto do Prado Coelho. Fixação do texto e nota preliminar por Esther de Lemos, Lisboa, 1966; foram excluídas as notas filológicas).]

Antes de passar ao comentário dessas «histórias», vejamos, muito brevemente, que lugar ocupava na vida literária portu­guesa Camilo Castelo Branco, que assim se atreve a erigir o seu trabalho de escritor em assunto de romance. E notemos a diferença entre o que faz em Vinte Horas de Liteira e o que seria um discurso memorialístico onde nos contasse das recordações da sua vida, desde a orfandade («1835. Tinha eu nove anos, e era órfão.»), até às «solidões do cárcere», em 1860. Como, no mesmo ano aliás, 1864, regista noutro livro, No Bom Jesus do Monte.

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Quem é o autor em 1864?

Recordemos algumas datas e opiniões e que «momento» era o deste escritor para quem — em palavras do Professor Jacinto do Prado Coelho, cujo papel no âmbito dos estudos camilianos representa uma viragem e um contributo decisivos — chega­ra, então, «o momento de um exame de consciência» e «que não permanecia alheio às opiniões correntes sobre as suas novelas» (O Professor e ensaísta optou por chamar «novelas» e não «romances» à sua narrativa ficcional, fundamentando essa opção):

No mesmo ano de 1864 [...], o novelista dá a lume Vinte Horas de Liteira, livro original em que se vão desfiando historietas ao sabor duma suposta conversa com um amigo, durante uma longa jornada. Surgem neste livro, porventura, as mais perspicazes observações de Camilo sobre a pró­pria obra realizada. Chegara o momento de um exame de consciência para o novelista, que não permanecia alheio às opiniões correntes sobre as suas novelas. Ora ele ora o amigo, lavrador de espírito prático e de sólido bom senso, como tantos com quem o escritor conviveu, vão pondo em causa a visão camiliana da vida, a afetação do estilo, a insistência da literatura romântica em lugares­comuns, como, por exem­plo, o enjeitado. [...] amostras de autocrítica, de facto pouco vulgares na obra de Camilo, mas suficientes para provar que o nosso autor, considerado geralmente espontâneo e irrefletido como uma força da natureza, era também capaz de meditar sobre os problemas da sua arte. [Introdução ao Estudo da Novela Camiliana, 2.ª ed., 2.º vol., 1983.]

Destaco: chegara, pois, «o momento de um exame de consciência para o novelista, que não permanecia alheio às opiniões correntes sobre as suas novelas.» Em 1864, Camilo era já o autor do Amor de Perdição (1861), que Miguel de Unamuno considerará a obra cimeira da narrativa romântica na Península Ibérica, e de Coração, Cabeça e Estômago (1862),

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onde esse mesmo romantismo é já objeto de paródia, ora terna ora sarcástica. Em 1865, dará a lume A Queda dum Anjo, outro dos seus melhores romances. Ainda antes de terminar esta bri­lhante década da obra camiliana, que conta com outros títulos importantes, em 1869, já outro espanhol, Romero Ortiz, na sua Literatura portuguesa en el siglo xix, se manifesta entusias­mado com a figura literária de Camilo, prova também da sua repercussão internacional, destacando­o com um olhar atento sobre a sua obra, considerando­o como «el primer novelista contemporáneo de la Península Ibérica» e comparando­o aos maiores escritores europeus contemporâneos: «!Ah! Si tuviese por pátria a la Francia, a la Inglaterra o a la Alemania, seria tan celebrado, de seguro, y com tan justos títulos, cuando menos, como Balzac, como Carlos Dickens y como Roberto Auerbach.» Na perspetiva nacionalista que orienta a sua tarefa historiográfica, aquele crítico mostra Camilo como «el más portugués entre los literatos portugueses»… «un escritor que no se haya formado en ninguna escuela exótica, que no copia ni imita modelos extraños»… o que, como veremos, não é certo mas ilustra bem um certo tipo de receção que se fazia da sua obra. Um pouco antes, em 1866, ao comentar a «pasmosa fecundidade do Sr. Camilo Castelo Branco», Ramalho Ortigão registara no seu Literatura d’Hoje «a avidez com que todas as obras deste admirável romancista são lidas e relidas».

Afinal, já o consagrado Alexandre Herculano, em 1858, na «Advertência» da segunda edição das suas Lendas e Narrativas, tinha reconhecido o papel do jovem Camilo no progresso do romance português com o seu Onde Está a Felicidade? (1856). Vale a pena, creio, transcrever toda a passagem de Herculano, já que nela se alude ao esforço que ele próprio (juntamente com Garrett) tinham realizado para trazer a narrativa portu­guesa para uma escrita contemporânea. Um esforço o dessa primeira geração romântica em Portugal, que a si própria se dá a ingente tarefa de criar uma literatura nacional, moldado no exílio para onde partiram, nos anos vinte, no contexto das lutas

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entre os novos liberais saídos das ideias da Revolução Francesa e os continuadores do «antigo regime». Um esforço que dera excelentes frutos, que Camilo recolhe e desenvolve, cabendo­lhe, finalmente a ele, consolidar e diversificar a narrativa romântica portuguesa, colocando­a na esteira dos romantismos europeus, em particular o francês e o inglês.

Na passagem, Herculano alude ao Alívio de Tristes, precisa­mente este mesmo livro, que ficará para a história da literatura portuguesa como o marco a superar e que ouvimos a perso­nagem do escritor referir, na primeira longa conversa com o amigo. Escreve, pois, Herculano, em 1858:

Quinze a vinte anos são decorridos desde que se deu um passo, bem que débil, decisivo, para quebrar as tradições do Alívio de Tristes e do Feliz Independente, tiranos que reinavam sem émulos e sem conspirações na província do romance português. Nestes quinze ou vinte anos criou­se uma literatura, e pode dizer­se que não há ano que não lhe traga um progresso. Desde as Lendas e Narrativas até o livro Onde Está a Felicidade? Que vasto espaço transposto!

Camilo Castelo Branco nascera em Lisboa. Em 1825. Ou terá sido em 1826, como, durante toda a sua vida, ele próprio afirmou? (Veja­se, mais adiante, «Nota biobibliográfica».) Toda­via, haverá sempre de ser considerado um escritor do norte. De facto, a maior parte da sua obra, ainda que não toda (recorde­se os Mistérios de Lisboa, recentemente internacionalizados pelo cinema), transcorre em terras do Minho, Trás­os­Montes e o Douro, para onde bem cedo, ainda criança, já órfão de pai e mãe, fora levado pela família paterna, oriunda daquelas terras. A sua carreira de escritor inicia­a no Porto, em 1845, onde vive e onde começa a publicar em jornais. Não admira, pois, que, em introdução a uma reedição monumental de Amor de Perdição, em 1891, Ramalho Ortigão afirme:

Para quem não souber o que era há cinquenta anos a cidade do Porto será já hoje difícil a análise sociológica dos

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romances de Camilo Castelo Branco [...] Do fundo da espessa população comercial, abastada, rotineira, carola, considera­velmente snóbica, destacava­se em violento contraste com ela uma mocidade inquieta, nevrálgica, atrevidissimamente explosiva.

Camilo faz parte, sem dúvida, desta «mocidade». E as suas primeiras manifestações dessas «explosões atrevidíssi­mas» podemos bem lê­las nesse conjunto de textos que, entre 1845 e os primeiros anos de 50, foi publicando nos jornais do Porto — crónicas de atualidade, pequenas narrativas de ficção, comentários… — reunidos em cinco grossos volumes de Dis‑persos por Júlio Dias da Costa, publicados pela Tipografia da Universidade de Coimbra, entre 1927 e 1929. Como já escrevi noutra ocasião:

Neste período dos seus primeiros escritos, em cada um desses passos experimenta o incipiente novelista os mode­los literários que mais lhe atraem ou que a moda impõe. Aí pratica o seu amor pela língua, a atração pelo clássico e pelo vernáculo, a necessidade de usar o idioma até à finitude das suas possibilidades. Aí desenvolve o exercício dessa impressionante vocação comunicativa com o leitor que o leva a inventar a estratégia adequada no momento preciso, em busca de um efeito determinado. Enfim, aí vamos encontrar as origens do seu modo de contar, do seu jeito característico, dessa sua assombrosa capacidade de escrita narrativa. [«Introdução» a Camilo Castelo Branco, A Brasileira de Prazins, Lisboa, Ulisseia, 1984.]

Em Vinte Horas de Liteira dá­nos, precisamente, a ver, pela boca do amigo ou pela sua própria, como aproveitou desta expe­riência, a utilizou e sobre ela refletiu. Também aqui, ao mesmo tempo que oferece ao seu leitor alguns dos gestos, recursos e estratégias fundamentais do seu «ofício» de escritor de «roman­ces», Camilo se mostra como um leitor de si próprio e de outros.

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Importante é ter em conta a sua situação tardia no contexto dos romantismos europeus. Quando inicia a sua atividade de escritor, Camilo que, mais tarde, alguém chamará, mesmo se polemizando, «o grande Balzac minhoto», Balzac, em França, tinha já consolidado a escola realista, com uma avassaladora produção literária nos anos 30 e 40, da «comédia humana» às «cenas da vida privada». Aníbal Pinto de Castro, no seu estudo Balzac em Portugal (1960), estudou minuciosamente como as personagens de Balzac lhe eram familiares, a ponto de aí afirmar que «desde os Mistérios de Lisboa [um dos seus primeiros livros] até aos Vulcões de Lama [o último], Balzac está presente, e a cada passo vem ao espírito do romancista, ora para estabelecer comparações, ora para justificar afirmações, ora como leitura das personagens.». Por sua vez, os grandes folhetinistas franceses tinham já dado contributos decisivos para o desenvolvimento da ficção romanesca, entre eles Eugène Sue, falecido no exílio em 1857, autor, entre outros, dos Mistérios de Paris, que inspirara Camilo. É, segundo creio, essa situação tardia do romantismo português e, em particular, de Camilo, a que lhe dá as condições, que ele genialmente aproveita, para produzir uma obra que, por um lado, consolida a criação romanesca romântica em Portugal e, por outro, faz a crítica, tantas vezes paródica e caricatural, desse mesmo romantismo. Recorde­se, aliás, que essa mesma crítica tinha já sido iniciada por Garrett nas Viagens na Minha Terra (1843­1846), preci­samente quando Camilo começa a sua atividade de jornalista, cronista, ficcionista, dramaturgo e mesmo poeta. É aquele, o de Garrett, um dos magistérios que ele recolhe e consolida, com uma voz tão pessoal e decisiva.

Sustento, desde há muito, que uma das características mais fascinantes — e, diria, hoje, modernas — da obra de Camilo é a de mostrar, desde o início da sua carreira, uma atitude dupla, bidirecional na sua relação com o romantismo: criador de produtos românticos, com todos os ingredientes que, em particular no campo da ficção romanesca, a escola tinha pro­

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duzido; crítico e parodiador exímio desses mesmos produtos, assim oferecendo a potenciais leitores diversificados, por um lado, os mais notáveis exemplos de narrativa literária român­tica e, por outro, e quase sempre ao mesmo tempo, isto é, no mesmo livro, a paródia dos géneros que essa mesma narrativa romântica desenvolveu. Nesse sentido, parece­me ser estas Vinte Horas de Liteira um excelente repositório dessa atitude bivalente do escritor. Uma atitude que, creio eu também, estava já bem clara na sua primeira «história», publicada fora do espaço do folhetim de jornal, autonomamente, em forma de folheto de cordel, onde narra um crime que tinha tido lugar em Lisboa e que os jornais tinham noticiado. Foi em 1848 e Camilo publicou­o anonimamente, com estes título e subtítulo: Maria! Não me mates que sou tua mãe! Meditação sobre o espantoso crime acontecido em Lisboa: Uma filha que mata e despedaça sua mãe. Mandada imprimir por um mendigo, que foi lançado fora do seu convento, e anda pedindo esmola pelas portas. Oferecida aos pais de famílias, e àqueles que acreditam em Deus.

Já aí encontramos outro dos traços que creio característico da narrativa camiliana: a forte presença do narrador ou de um autor implícito que, sem medos nem falsas ocultações, assume uma decisiva presença no relato, interrompendo­o sempre que lhe apetece para comentar e julgar a ação das personagens, dirigindo­­se diretamente ao leitor ou mesmo às próprias personagens, convertendo o texto num vivíssimo espaço de comunicação e esse narrador numa das mais atuantes e prioritárias instâncias ficcionais. Já aqui, ele «ensarta axiomas», ou moralidades e edificações, sempre que isso lhe parece conveniente.

Não será, afinal e já, o embrião da mesma personagem de autor de «histórias» romanescas que, dezasseis anos depois, vamos encontrar, com um comportamento autorreflexivo, nes­tas Vinte Horas de Liteira? E que, nesse tempo, acumulou uma experiência, do ser humano, do mundo e da escrita literária — como escritor e também, recordemo­lo, como leitor — que lhe vai dar esse assombroso à­vontade com que, agora, se

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institui em protagonista e sujeito de si próprio. Em síntese, e permitindo­me parafrasear parte do que já escrevi noutra ocasião, em 1864, Camilo publica um livro que só um escritor que tivesse alcançado o prestígio e a popularidade que, por então, já tinha ele alcançado, poderia permitir­se: Vinte Horas de Liteira. Sob forma de viagem, em companhia de um velho amigo que encontra, por acaso, numa estalagem, em diálogo com aquele, o escritor faz uma revisão da narrativa oitocentista, de modas, correntes e subgéneros, da sua posição em relação àquelas tendências, da situação do escritor em Portugal e, enfim, da sua carreira de escritor de romances, percorrendo os mais diversos aspetos da sua atividade: desde os aspetos económicos e editoriais até às estratégias para a obtenção das histórias que vai narrar ou para a condução da emotividade dos seus leitores. Poderíamos, enfim, considerá­lo como um verdadeiro tratado de narratologia (v., por ex., o conceito de «leitor previsto») e sobre a receção romanesca e ficcional, feito por alguém com uma enorme argúcia e experiência no campo da criação literária e romanesca, precisamente.

Por que escolhe, então, Camilo o suporte de uma viagem para nos mostrar tudo o que sabe e tem refletido sobre os seus livros e os romances? Voltemos às vinte horas e à liteira, isto é, à viagem.

A viagem e a literatura

Afinal, no capítulo i desta viagem, nada de paisagens ou de algo típico da literatura de viagens. Também o não tinha feito Camilo no seu já referido «Do Porto a Braga» onde, explicitamente, recusara a descrição de paisagens: «A paisagem gosto dela nas litografias da Ilustração francesa» (capítulo iii). Também aqui o não fará. Bem poderia ele ter avisado o seu leitor, como o tinha feito Garrett logo no início do capítulo ii das suas Viagens na Minha Terra (1843­1846), quando nos quis advertir de que as suas viagens eram diferentes: «Preciso de o dizer ao leitor, para que ele esteja prevenido; não cuide

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que são quaisquer dessas rabiscaduras da moda que, com o título de Impressões de viagem, ou outro que tal, fatigam as imprensas da Europa sem nenhum proveito da ciência ou aproveitamento da espécie.» O que lhe interessa da viagem e o «proveito» que dela tira, ele e os seus leitores, são as histórias que António Joaquim lhe contará ao longo das vinte horas. E que ele «aproveitará» da maneira que o leitor verá se ler este seu livro até ao fim.

A viagem como estratégia narrativa tem sido, ao longo da história da literatura universal, das mais ricas e produtivas como fonte de histórias. Na literatura dita ocidental, os exemplos são obras cimeiras: desde a Odisseia até ao Quixote, passando pela Divina Comédia e Os Lusíadas, mesmo quando o objetivo do escritor, como no caso do poema de Camões, seja também o de contar a viagem propriamente dita.

Na literatura portuguesa, tinha Camilo um exemplo bem recente, como acabámos de ver, as Viagens na Minha Terra, do seu mestre Garrett, cujo modelo, em certa medida, ele aqui segue e que, explicitamente, tinha invocado no seu anterior «Do Porto à Régua». De facto, nem nas Viagens de Garrett nem aqui na destas vinte horas de liteira o objetivo primeiro é o de fazer uma narrativa de viagens. Àquele importara­lhe aproveitar o suporte da viagem para falar dos assuntos da sua terra, em forma tantas vezes digressiva, em diálogo com alguns dos seus companheiros de viagem, mas, sobretudo, com o seu leitor; a este importa­lhe, em diálogo com o seu companheiro de viagem António Joaquim — e também com as leitoras que, tal como aquele, invoca explicitamente — mostrar a sua arte de contar histórias, também as condições do escritor em Portugal, e ir «ilustrando» esses comentários com algumas histórias. A viagem é apenas um marco que vai pontuando o que deveras importa: «chegámos à estalagem da Azambuja», escreve Garrett; chegamos a Amarante ou «apeámos na estalagem de Penafiel», escreve Camilo, em final de capítulo (que, recordemo­lo, na sua primeira publicação, em folhetim, em periódico, era o

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fim da entrega desse dia). E em ambos os casos esses marcos geográficos são reais.

Tem os elementos canónicos do género: o meio de trans­porte; o par viajante (viajar sozinho não é rentável narrati­vamente, não dá para conversar, a conversa produz­se em diálogo, e é mais difícil encontrar histórias); as estalagens onde sempre se encontram personagens, que fazem diálogos e contam ou fazem histórias. Personagens, diálogos, histórias, os elementos basilares da narrativa oitocentista. Assim, desde a «Introdução» — «Há poucos anos que eu jornadeava de Vila Real para o Porto, e cheguei, quebrado de corpo e alma, a uma Póvoa escondida nos fraguedos do Marão, chamada Ovelhinha. [...]. / Eram dez horas da manhã. / Aqui principiam as vinte horas» — a viagem está cuidadosamente assinalada, com a indicação de marcos geográficos e temporais, no iní­cio e ou no fim de cada capítulo. E, a partir daqui, ao longo da narrativa das várias «histórias» (notemos a frequência da designação «história» no título dos capítulos), há frequen­tes notas temporais. Assim, entre outras, «Estamos na [sic] Amarante — acrescentou António Joaquim — Apeemos da liteira», no final da História V, com a qual enlaça o início da História VI, «A cruz do outeiro», «Pernoitámos em Amarante, numa estalagem, onde eu, anos antes, tinha visto três belas criaturas [...]. Vimos nascer o sol do dia seguinte nas alturas de Pildre». «[...] e apeámos na estalagem de Penafiel.», no final da X, com a qual vai enlaçar o início da XI: «estávamos jantando e admirando a rijeza e elastério da fibra das galinhas de Penafiel, quando entrou à sala um sujeito, que abraçou António Joaquim arrebatadamente [...]». «Como este perío­do estirado me tirasse a respiração, e a liteira parasse na estalagem de Baltar, apeámos.», pouco depois do início da XIV; «estávamos em S. Roque da Lameira», já no distrito do Porto, na XVI. Finalmente, na «Conclusão»: «Parou a liteira na Rua da Boa Vista à porta de Francisco Elisiário, em cuja casa António Joaquim costumava hospedar­se. Despedi­me do

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meu amigo [...] Recolhi­me desancado à minha hospedaria, no intuito de me fazer apalpar por um algebista.»

No dia seguinte, recebe a visita do amigo para continuarem a conversar. E continua a fórmula mágica, essa caixinha das histórias: «Contou­me que…», durante cinco páginas mais. E, «passados alguns dias, por volta das nove horas da noite», recebe a visita do «seu» António Joaquim. Claro que o leitor já entendeu que a indicação das horas, tal como a dos luga­res, é fundamental na encenação da viagem. E paremos um momento para assinalar que na solidão da sua «hospedaria» o nosso protagonista evoca a situação de outro escritor, preso no seu quarto, Xavier de Maistre, «quando viajou à roda do seu quarto» (o mesmo que Garrett começara por invocar logo no início das suas Viagens). Julga­se numa posição análoga e tem um discurso triste sobre si próprio. A conversa com o amigo é, agora, de cemitérios e mortes, reais, como a do seu amigo, e também escritor, Coelho Lousada, que, na véspera, fora a enterrar…

Por fim, volta a registar o tempo, rigorosamente, no «Epílo­go», quando se reencontra com o amigo que, esta vez, lhe dará a continuação das «histórias» que lhe tinha contado, durante as vinte horas, permitindo­lhe, assim, acabar o livro:

Ontem, 27 de Outubro deste ano 1864, quando eu, à conta da pequenez do livro, cuidava em alinhavar outra história, que o meu amigo provavelmente me não contou, anunciou­se­me um sujeito de botas de água e cobrejão.

Era António Joaquim.Haviam decorrido cinco anos sem nos vermos.

Da viagem propriamente dita, no sentido de «essas impres­sões de viagem» que fatigavam as imprensas da Europa, como cerca de vinte anos antes tinha escrito Garrett, nada interessa. De facto, as notações de viagem só interessam quando dão lugar a uma «história». Assim, em XV: «depois que almoçámos em Valongo… a liteira passou por entre uma grossa manada de

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bois, que vinha para o Porto com destino a Inglaterra». São, de facto, os bois a «madalena» (de Proust) que vão dar lugar à história, esta vez, sentimental de «Os amores de Teresa». Sen­timental? Ou será antes burlesca? Relembremos a já assinalada duplicidade camiliana quanto aos géneros românticos…

Em resumo, esta é, sem dúvida, uma viagem posta ao ser­viço de um projeto meta­literário do seu Autor. É este projeto que parece orientar o livro e mesmo as histórias que nele se contam estão ao serviço desse projeto. (Tal como a novela da menina dos rouxinóis para as Viagens de Garrett na sua terra e as novelas interpoladas do Quixote para o projeto literário de Cervantes, defendo eu.)

as histórias: uma forma de experimentar vários géneros de várias

maneiras. Um reportório

«Contar histórias» é, pois, e desde sempre na literatura de viagens, um dos aspetos mais atrativos dessa literatura. E, também, ouvi­las… É o que faz aqui o nosso escritor que, confessadamente, se diz andar à procura de histórias, para vendê­las. Em «A minha história», um título diferente a ter em conta e que, uma vez mais, inscreve a personagem do autor no livro, chama ele a atenção para essa sua condição de «ouvinte», aproveitando para invocar outro dos seus modelos: «disse eu, no tom cortesão de qualquer dos estafadores da ‘Corte na Aldeia’ de Rodrigues Lobo.»

O mostruário de histórias é, como veremos, uma eficaz estratégia para evidenciar como, nesta altura da sua trajetória, Camilo manejava já os variados subgéneros da ficção romântica e romanesca.

Começa, pois, no capítulo ii, com a história de «a égua que salva» a tarefa do amigo como narrador de histórias para o es­critor, seu narratário e ouvinte, que as aproveitará para fazer o volume que nós, agora seus leitores, temos entre mãos. António Joaquim é o protagonista desta história de amores contrariados e é importante que o seja, já que a idoneidade da fonte é cru­

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cial na encenação da autenticidade e credibilidade do que se narra. Como veremos nas histórias seguintes, as histórias que António Joaquim narra têm sempre uma fonte conhecida: ou ele próprio a protagonizou, como nesta primeira, ou testemunhou ou os que lha contaram foram protagonistas ou testemunhas dela — sua mãe, seu pai, sua mulher, seu vizinho, seu avô­, sua prima, seu tio. No «ermitão», por exemplo: «foi minha mãe que ma contou: sinal de que é boa para contar­se a toda a gente» e, no final de «A gratidão»: «Contei­te o sucesso como o ouvi da exposição dos personagens.» Multiplicam­se os casos. Por seu lado, as estratégias para «a encenação» da idoneidade são também inúmeras. Assim, o leitor deve acreditar (ou fingir que acredita) que a prima Adriana, da «História de um bri­lhante», existe e tanto que ao chegar ao Porto a liteira, no fim da viagem de vinte horas, no início da «Conclusão», «parou a liteira na rua da Boa Vista à porta de Francisco Elisiário» e da prima Adriana, sua mulher. E quando, finalmente, a história é de tempos demasiado recuados, sem personagens vivas que a testemunhem, resta­nos outra fonte de autoridade: os livros, como na história de «Os tesouros do príncipe turco».

Por sua vez, os temas que estas apresentam são temas fre­quentes nas narrativas do escritor. Se, na primeira, são os amores contrariados de António Joaquim, virão, depois, o enjeitado, «os brasileiros», o jogador, o dinheiro, o ermitão, os filhos que tratam mal as mães, «a gente boçal e má» das aldeias, temas de um «realismo rural» e «histórias sentimentais», sentimentos como a inveja, a ambição ou a gratidão. E até, com «os tesou­ros do príncipe turco», o «género mágico», a ação situada na Idade Média: oportunidade para puxar dos castelos lô­bregos, dos nevoeiros e dos tesouros enterrados, ouro e prata derre­tidos e escondidos. E se entre mouros e cristãos godos, tanto melhor, era a meridionalização bem nossa das deliciosas lendas setentrionais de Walter Scott e outros, que tanto agradavam ao leitor. E os temas relativos à condição do escritor em Portugal, o «público», a pobreza, o trabalho, os editores.

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Por outro lado, se os títulos são, às vezes, enganadores, como no caso da história de «o ermitão» que tem tanto de tema de ermitão, tão querido à narrativa romântica, como de traços de narrativa histórica, neste caso, relacionado com o Marquês de Pombal e a sua perseguição dos Duques de Aveiro, são também todos eles temas e assuntos que Camilo trata noutros romances. Claro que as referências à história política são a oportunidade para o exercício da voz crítica ou de denúncia do escritor, como sobre Pombal em «O ermitão». A última «história» é «Amor de freira». No início, temos o marco geo­gráfico da viagem: «estávamos em S. Roque da Lameira». Mas também logo nessa primeira frase, uma data e a referência a um acontecimento histórico: «o muramento das trincheiras de 1832». É, na verdade, também aqui, a história tanto ou mais do tio do narrador do que do amor da freira. E o facto de o tio ser coronel sitiante do «desesperado assalto às linhas do Porto», em 30 de setembro daquele ano, converte a história numa narrativa histórica tanto quanto numa novela sentimental. Como o nosso escritor­personagem reconhece num dos seus comentários às histórias que o amigo lhe proporciona, ao anunciar­lhe este a do «enjeitado»: «— estás dedilhando as cordas todas da lira dos modernos romancistas e dramaturgos». Também a sua própria, acrescente­se. E uma vez mais, o diálogo autorreflexivo e meta­­literário é também assunto das histórias.

São, de facto, estes comentários às próprias histórias e ao modo de as contar, o que faz a explosiva originalidade e moder­nidade destas Vinte Horas de Liteira, a que hoje a crítica chama de autorreflexividade do texto literário ou meta­literatura. Em duas das histórias que me permito destacar, por me parecerem duas excelentes novelas (ou talvez contos), «A conteira» e «Histó­ria das janelas fechadas há trinta anos», ouvimo­lo tecer alguns dos mais interessantes juízos sobre a arte de construir narrativas desde o título, a linguagem e a imaginação até à importância do nome das personagens ou do lugar onde se desenvolve a ação. E esses «estilos», ou géneros, diríamos hoje, que não só

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o nosso autor mas também o seu interlocutor bem conhecem. Desde o melodrama da primeira história («Estacou o Belchior, empunhando um curto ferro desembainhado de um chicote. Mediu­me de alto a baixo três vezes com solenidade ridícula além do admissível no melodrama.», narra António Joaquim.) ao falso «terror grosso» e ao grotesco de «Os percevejos de Baltar». Note­se, por fim, só mais um no reportório: o recurso à epistolografia ao serviço do romance, precisamente em XIII, a «sua» história.

É também nas «histórias» que a autorreflexão literária se faz pelo recurso a um conjunto de gestos técnico­discursivos que são variados mas de que apenas destacamos, como exemplos: os «entre­parêntesis», às vezes explicitamente dirigidos à leitora; a arte de «ensartar axiomas», os «aforismas», as «reflexões» e «digressões» do autor «em períodos estirados de cortar a respiração», a ele e ao leitor, autoironiza o escritor. Se ele aproveita até, em «A cruz do outeiro», para anunciar o seu próximo livro!

A verdade é que não só o escritor faz «digressões», entre­­parêntesis, reflexões, que não contam diretamente para a ação do relato. Vêm a propósito dela, é verdade, e, sobretudo, interessam muito ao projeto meta­literário que orienta o livro. Assim, em «História de um brilhante», a propósito do amor de Francisco Elisiário por sua prima Adriana, desenvolve António Joaquim um longo comentário sobre «as paixões dos heróis, celebradas pelos séculos, chamem­se eles Petrarcas ou Camões». E cá vêm umas quantas linhas de desmitificação da biografia romântica de Camões e dos seus amores (como Camilo, aliás, continuará a fazer na introdução à reedição do Camões, de Garrett, em 1880).

Géneros, estilos, linguagem, técnicas com que se faz este livro, ao mesmo tempo usadas e criticadas e parodiadas pelo escritor. Autorreflexivamente. Autoironicamente. E recordo o que, antes, sustentei sobre a duplicidade de Camilo em relação à literatura e às escolas.

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Enfim, em tudo isto, como acertadamente a crítica tem dito, está a ironia romântica. Mas talvez, ao mesmo tempo, também algo de uma faceta que será fundamental no comportamento do narrador camiliano e das vozes em que se desdobra, e que, no contexto da literatura portuguesa, constitui uma das facetas mais pessoais da sua produção literária: o riso. De facto, em 1864, já Camilo tinha dado suficientes mostras, em crónicas, romances e polémicas, desse traço da sua identidade literária que reforçará até ao seu último romance e que o há de converter no maior escritor satírico de Portugal, a par de ser o maior novelista romântico da Península Ibérica. Risos vários, irónico, paródico, satírico, mordaz. Dedilhou­lhe as cordas todas, diria eu parafraseando o escritor de Vinte Horas de Liteira. O sarcasmo camiliano, muito possivelmente esse tipo de sarcasmo que fez Eça de Queirós aproximá­lo da sátira de Quevedo, atua sobre as personagens e as situações que se encontram nas «histórias» mas também sobre a literatura e o modo de a fazer e todo o aparato material que a sustenta, dos editores aos escritores:

O enjeitado é uma rica exploração que há vinte anos faz gemer os prelos e chorar a gente. Desde o Martin de Eugénio Sue até ao teu enjeitado, que não sei como se chama, a simpatia, que eles conquistam, não há filho nenhum legí­timo que a mereça. Este facto demonstra a desmoralização da época, se não demonstra primeiramente a esterilidade das fantasias. Os escritores andam à competência com as amas em irem à roda procurar expostos. Depois pegam das criancinhas, e dão com elas, extenuadas de doença e fome, na cara da sociedade…

…diz o escritor no início da história de «O enjeitado». Pois é. Mas vai contá­la, conseguindo com ela encher umas vinte páginas do seu livro. E, certamente, fazendo chorar muitas leitoras. Na frase lapidar, e nunca sobradamente repetida de Eça de Queirós, em carta ao próprio Camilo: «admiro sem reserva em V. Ex.ª o ardente satírico, neto de Quevedo, que põe

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ao serviço da sua apaixonada misantropia o mais quente e o mais rico sarcasmo peninsular». Ou, como, muito depois, há de exclamar Agustina Bessa­Luís, sua discípula confessa: «Que bem escreve quando ri!»

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nota biobibliográficamaria Fernanda de abreu

[A partir de Jacinto do Prado Coelho, Introdução ao Estudo da Novela Camiliana, 2.ª ed., 2.º vol., 1983, e José Viale Moutinho, Memórias Fotobiográficas (1825­‑1890) do escritor (Lisboa, Ed. Caminho, outubro, 2009).]

1. nascimento e infância em lisboa

• 1825 ou 1826 Nasce em Lisboa, na Rua da Rosa, o peque­no que passará para a história literária com o nome de Camilo Castelo Branco, a 16 de março, filho natural de Manuel Joaquim Botelho Castelo Branco e de Jacinta Rosa. A 14 de abril é batizado na Igreja dos Mártires. O centenário celebrou­se em 1925; todavia, o escritor sempre se apre­sentou e contou os anos da sua vida e dos acontecimentos que nela o marcaram como tendo nascido em 1826. E os seus contemporâneos assim o reconheciam. Na certidão de óbito do escritor, ocorrido a 1 de junho de 1890, regista­se a idade de 64 anos.

• 1827 6 de fevereiro. Morte da mãe.• 1835 22 de dezembro. Morte do pai. «1835 Tinha eu nove

anos e era órfão» (capítulo i de No Bom Jesus do Monte, livro memorialístico, 1864). Acompanhado pela irmã

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Carolina, mais velha, é levado para Vila Real, para casa da família paterna. «Deram­nos um tutor, que nos mandou para Trás­os­Montes acolher ao abrigo da irmã de meu pai» (ibidem), a tia Rita Emília. Frequentara, nestes anos, em Lisboa, a escola do mestre Minas Júnior onde, entre outros, teve como colega o futuro Conde de Ouguela.

2. adolescência e primeiros escritos. de Vila real e Vilarinho da

samardã ao porto. o escritor em formação

• 1939-1940 Em Vilarinho da Samardã, a viver com a irmã, que ali casa com um estudante de medicina, convive com o irmão deste, o Padre Azevedo, que lhe ensina a leitura dos seus primeiros clássicos e o ajuda a desenvolver o seu gosto pelas humanidades e a escrita. «Eu sou aquele a quem padre António de Azevedo ensinou princípios de solfa, e as declinações da arte francesa. Sou aquele que leu em sua casa as ‘Viagens de Ciro’, o ‘Teatro dos Deuses’, os ‘Lusíadas’, ‘As peregrinações de Fernão Mendes Pinto’ e outros livros que foram os primeiros.» (Na dedicatória, ao Padre Azevedo, de O Bem e o Mal, 1863.)

• 1841 Em agosto, casa­se com Joaquina Pereira de França, de 14 anos, em Friúme, aldeia do concelho de Ribeira de Pena, onde passa a viver e trabalha como escrevente num tabelião. Entretanto, perde parte da herança paterna. Em 1843, regressa a Vilarinho da Samardã. A filha, que nasce do casamento, e a mulher morrem pouco depois.

• 1843 Outubro. No Porto, faz exames em disciplinas de Hu­manidades e inscreve­se na Escola Médica e na Academia Politécnica do Porto.

• 1844 Começa a viver a vida literária e boémia («do espírito») portuenses. Estreia­se como jornalista. Começa a publicar artigos em periódicos da cidade, atividade que continuará intensamente nos anos seguintes, e que, até ao fim da vida, não deixará de exercer. Alguns dos periódicos em que foi publicando: O Nacional, O Eco Popular, O Jornal do Porto,

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A Semana, O Portugal, O Portuense, O Mundo Elegante, O Porto e a Carta, O Clamor Público, Gazeta Literária do Porto e outros que mais à frente serão referidos.

(Ver os cinco volumes de Dispersos de Camilo, compi­lação e notas de Júlio Dias da Costa, Coimbra, Imprensa Universidade, 1924­1929. Divididos em: «Artigos», «Cró­nicas», «Romances». Escreve e publica poemas. Assina, a princípio, com as iniciais C. C. B. Usa diversos pseudóni­mos, entre eles: Um Académico Conimbricense, Anastácio das Lombrigas, Anacleto dos Coentros, O antigo juiz das almas de Campanhã, José Mendes Enxúndia, Rosário dos Cogumelos, A. E. Y. O. U. Y., Manuel Coco, João Júnior, Barão de Gregório.)

• 1845 Publica Os Pundonores Desagravados, poema heroico­­burlesco.

• 1847 Publica o drama histórico Agostinho de Ceuta.• 1848 Morre­lhe a filha que tivera com Joaquina Pereira

e nasce a filha Bernardina Amélia, que tem com Patrícia Emília. Instala­se no Porto, onde vai viver permanentemente, com alguma viagem a Lisboa, até mudar, em 1864, para outro dos lugares míticos da biografia camiliana, São Miguel de Seide, para nele residir até ao fim da vida, na companhia de Ana Plácido. Neste e nos anos seguintes, publica, nos periódicos, no espaço do «folhetim», ou noutros, inúme­ros artigos, crónicas e os primeiros embriões de narrativa ficcional. Publica, em folheto, sob anonimato (Mandada Imprimir por Um Mendigo), um relato onde está já presente a figura de narrador que dará o cunho camiliano dos seus romances e novelas posteriores, Maria! Não me Mates Que Sou Tua Mãe!, a partir de um crime ocorrido em Lisboa.

• 1850 Diz ser, de profissão, «escritor público». Viaja a Lisboa, onde permanece algum tempo. Aqui, na Imprensa Nacio­nal, publica o seu primeiro romance, Anátema. Ser­lhe­á atribuído o folheto publicado anonimamente, também em Lisboa, «O Clero e o Sr. Alexandre Herculano».

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(Dada a extensão da obra do escritor, cerca de duzentos romances ou novelas, inúmeros artigos, crónicas, textos de divulgação ou crítica, de escritores, pintores, compositores, folhetos, folhas volantes, textos prefaciais, correspondência, e ainda um bom número de traduções de obras estrangeiras, sobretudo francesas, não se registam aqui todos os seus títulos, optando­se por destacar os mais marcantes da sua trajetória; de igual modo, não se indicam as inúmeras ruas e casas onde residiu.)

• 1850-1851 Matricula­se no curso de Ciências Teológicas, no Porto.

• 1852 Submete­se a exame para obter ordens menores. Abandona o curso de Ciências Teológicas. É cofundador do jornal O Cristianismo. Colabora em publicações de poesia.

• 1853-1854 Publica, primeiro em folhetim, no diário portuen­se O Nacional, e finalmente em volume, Mistérios de Lisboa, novela «de terror grosso», na tipologia proposta por J. do Pra­do Coelho, resposta, no panorama da literatura portuguesa, a Les Mystères de Paris, de Eugène Sue (1842 ­1843). A maior parte dos seus romances foram publicados inicialmente em folhetim, em periódicos, antes de sair em volume, como era prática na época, pelo que só excecionalmente se voltará aqui a referir esta forma de publicação.

• 1854 Publica o livro de poemas Folhas Caídas Apanhadas na Lama, sob o pseudónimo Um Antigo Juiz das Almas de Campanha. Com Augusto Soromenho, é redator de A Cruz. Semanário Religioso.

• 1855 Publica, no Porto, o Livro Negro do Padre Dinis. Continuação dos Mistérios de Lisboa.

• 1855-1856 Publica os três volumes de «Cenas Contempo­râneas», a que pertencem, entre outras pequenas novelas, os romances A Filha do Arcediago e A Neta do Arcediago, que J. do Prado Coelho inclui no tipo «humorístico».

• 1856 Publica Onde Está a Felicidade?, cujo papel na evolução do romance português o consagrado Alexandre Herculano

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destacará, na «Advertência» da segunda edição das suas Lendas e Narrativas (1858).

• 1857 Reside durante cerca de dois meses em Viana do Castelo, como redator do jornal A Aurora do Lima. Aqui publica Cenas da Foz. Regressado ao Porto, publica, entre outros, Duas Horas de Leitura.

• 1858 Publica, em Viana do Castelo, o «romance original» Carlota Ângela, que saíra em folhetins n’A Aurora do Lima. Publica ainda Vingança, «uma das obras que mais elementos contêm para uma ‘teoria camiliana da ficção’», além de Vinte Horas de Liteira, segundo J. do Prado Coelho, e O que Fazem Mulheres. No final do ano, Camilo é aprovado para sócio correspondente da Academia das Ciências, sob proposta de Alexandre Herculano.

• 1859 Nos últimos anos, vê frustradas as diversas tentativas de ocupar cargos em instituições públicas, segundo alguns, devido à relação que mantém com uma mulher casada, Ana Plácido. Este ano, vão viver ambos para Lisboa. O marido move­lhes «querela de adultério». Antes do final do ano, regressam ao Porto. Continua a publicar em jornais.

• 1860 Ana Plácido é presa, Camilo anda fugido à «jus­tiça», que também o procura. Em outubro, entrega­se, na Cadeia da Relação, no Porto. Aqui, ambos recebem a visita do rei, Dom Pedro V. Continua a publicar em jornais e traduz romances franceses. Registam­se já ree­dições de algumas das suas obras anteriores. A reedição de parte considerável dos seus romances vai, a partir de agora, ocorrer com regularidade. Estreia­se em Lisboa, no Teatro Nacional Dona Maria II, a 10 de maio de 1860, o seu drama Abençoadas Lágrimas (J. Viale Moutinho: 2009).

3. de Amor de Perdição às Novelas do Minho

• 1861 Publica, possivelmente perto do final do ano, Amor de Perdição (Memórias d’Uma Família; a data impressa no rosto é 1862), que diz escrito em quinze dias («os mais ator­

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mentados da [sua] vida», escreve no ano seguinte), durante a sua prisão na cadeia da Relação do Porto, por adultério. Por este romance, de tipo «passional», virá a ser conside­rado, por Miguel de Unamuno, como o maior romancista romântico da Península Ibérica, no género. Publica também, nesse ano, outro dos seus melhores romances, O Romance d’Um Homem Rico. Sai a lume, no Porto, uma biografia de Camilo Castelo‑Branco (Notícia da Sua Vida e Obras), do amigo J. C. Vieira de Castro. Em outubro, é julgado e absolvido.

• 1862 Publica Memórias do Cárcere, Coisas Espantosas, Estrelas Funestas e Coração, Cabeça e Estômago.

• 1863 Nasce­lhe o filho Jorge que tem com Ana Plácido, em Lisboa. Publica, entre outros: Aventuras de Basílio Fernandes Enxertado; Memórias de Guilherme do Amaral (Obra Pós‑tuma, Editada por Camilo Castelo Branco); O Bem e o Mal; Noites de Lamego. Começa a sair em folhetins de periódico, no Rio de Janeiro, um romance seu.

• 1864 Instala­se em São Miguel de Seide com Ana Plácido, o filho Jorge e outro filho dela mais velho, Manuel, na casa que este herda do marido da mãe, entretanto falecido. Nasce­lhes o filho Nuno. Será esta, a partir de agora, a residência permanente de Camilo, até ao fim da vida, em companhia de Ana Plácido. Publica: Amor de Salvação, A Filha do Doutor Negro, No Bom Jesus do Monte e Vinte Horas de Liteira.

• 1865 Publica, entre outros: Luta de Gigantes, A Sereia, O Esqueleto, O Morgado de Fafe Amoroso (teatro) e o volume de Esboços e Apreciações Literárias.

• 1866 Publica A Queda de Um Anjo, que virá a ser consi­derado um dos seus melhores romances de sátira da vida política, O Santo da Montanha, Cavar em Ruínas, O Judeu, um dos seus mais apreciados romances históricos, O Olho de Vidro, A Enjeitada, Vaidades Irritadas e Irritantes. Inicia colaboração no Diário de Notícias, fundado em 1864.

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• 1867 Publica outro dos seus melhores romances históricos, O Senhor do Paço de Ninães, cuja ação se desenrola desde a partida de Dom Sebastião para Alcácer­Quibir até às conquistas na Índia, e A Bruxa do Monte Córdova.

• 1868 Publica Mistérios de Fafe. Romance Social, O Sangue, Re‑trato de Ricardina e As Virtudes Antigas. Publica, ao longo de dez meses, uma série de artigos na Gazeta Literária do Porto, que reúne em Mosaico e Silva de Curiosidades Históricas, Lite‑rárias e Biográficas. O filho Jorge, a quem, mais tarde, dedica carinhosamente um livro, é dado como enfermo de loucura.

• 1869 Vive cerca de um ano em Lisboa. Publica Os Brilhantes do Brasileiro.

• 1871 No ano anterior foi­lhe recusado o título de Visconde que solicita, por viver «amancebado». Representa­se, no Teatro D. Maria II, em Lisboa, o seu drama O Condenado, em defesa do amigo Vieira de Castro, condenado por ter assassinado a mulher supostamente adúltera. Publica Vol‑tareis, ó Cristo?

• 1872 Publica­se em Madrid, traduzido para castelhano, o Amor de Perdição. D. Pedro II, Imperador do Brasil, concede­­lhe a Ordem da Rosa. Publica, entre outros, o romance O Carrasco de Victor Hugo José Alves.

• 1873-1874 Publica O Demónio do Ouro e O Regicida. Em 1874, janeiro, sai o n.º 1 de Noites de Insónia, oferecidas a quem não pode dormir, publicação mensal. Publica o volume Correspondência Epistolar entre José Cardoso Vieira de Castro e Camilo Castelo Branco. (O amigo ti­nha, entretanto, morrido no degredo, em Angola.) Quase toda a sua restante correspondência e as polémicas serão publicadas postumamente, em grande parte por Alexandre Cabral.

• 1875 Publica A Filha do Regicida, romance histórico.• 1875-1877 Em «publicação mensal» dá a público, sucessi­

vamente, as Novelas do Minho, que o integrarão, de pleno direito, na nova (em Portugal) «escola realista», antes

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programaticamente inaugurada pelo jovem Eça de Queirós. Em 1876 publica um notável Curso de Literatura Portuguesa. Os seus problemas de saúde, especialmente as dificuldades na visão, são cada vez mais graves.

4. os últimos livros. dos «romances facetos» a Delitos da Mocidade

e Nas Trevas

• 1879-1882 Publica, em 1879, Eusébio Macário, que surge anunciado, a 27 de julho n’O Primeiro de Janeiro, como «primeiro romance da longa coleção faceta que, sob o título geral de ‘Sentimentalismo e História’, o nosso grande literato Camilo Castelo Branco se propõe dar à estampa em curto prazo.». Consta de três a «coleção»: em 1880, publica A Corja e, em 1882, A Brasileira de Prazins. Apresenta­se com o objetivo de fazer «destroços» «nas pequenas fileiras realistas», através da paródia de alguns recursos da «nova escola», mas o último é considerado como uma magistral adaptação da já antiga e consagrada escrita camiliana às características do novo programa realista.

• 1885 Por lei de 20 de julho, o rei D. Luís concede­lhe o título de Visconde de Correia Botelho. É nomeado Acadé­mico Correspondente da Real Academia Sevillana de Buenas Letras, a 1 de abril.

• 1885-1886 Publica a «Crónica mensal de Literatura amena», Serões de São Miguel de Seide, «novelas, polémica mansa, crítica suave dos maus livros e dos maus costumes». Saem seis fascículos. Em 1886, Boémia do Espírito e Vulcões de Lama, o seu último romance.

• 1888 Apesar da consulta cada vez mais assídua a médicos, no Porto e em Lisboa, intensifica­se a debilidade do seu estado de saúde. Casa, finalmente, com Ana Plácido, a 9 de março. Envia ao amigo Freitas Fortuna uma carta que ele próprio considera como uma «cláusula testamentária», com disposições sobre o seu «cadáver» e o lugar onde quer ser sepultado.

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• 1889 O escritor que nunca tinha deixado de colaborar e participar na criação de revistas e periódicos, funda com Tomás Ribeiro o Mensageiro, cujo n.º 1 é «consagrado a Sua Majestade Imperial o Sr. D. Pedro d’Alcântara». Reúne um conjunto de textos memorialísticos em Delitos da Mocida‑de.

• 1890 A 1 de junho, Camilo Castelo Branco suicida­se com um tiro na fronte, no fim da visita que lhe faz o oftalmo­logista Edmundo Machado, que lhe confirma a cegueira irremediável. Segundo J. Viale Moutinho (2009), escrevera ao especialista a solicitar que o visitasse e examinasse, com estas palavras: «Sou o cadáver representativo de um nome que teve alguma reputação gloriosa neste país, durante 40 anos de trabalho. Chamo­me Camilo Castelo Branco e estou cego.» Foi sepultado no Porto, no cemitério da Lapa, no jazigo do velho amigo Freitas Fortuna. Na certidão de óbito regista­se que morre aos 64 anos de idade. Nas Trevas. Sonetos Sentimentais e Humorísticos é o último livro do escritor, publicado em vida.

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INTRODUÇÃO

O progresso é uma voragem!A liteira já se debate nas fauces do monstro. Vai cair a

fatal hora! Daqui a pouco, a liteira, desaparecerá da face da Europa.

O derradeiro refúgio da anciã era Portugal. Nem aqui a deixaram neste museu de antigualhas! Nem aqui! A pobrezinha, a decrépita, coberta do pó e suor de sete séculos, tirita estarre­cida de pavor, escutando o hórrido fremir do wagon, que bate as crepitantes asas de infernal hipogrifo.

Ao passo que o vapor talava os plainos, galgava ela, espa­vorida, os desfiladeiros para esconder­se. Mas o camartelo e o rodo escalaram o agro e penhascoso das serras, e a liteira, acossada pelo char‑à‑bancs, sumiu­se ainda nas veredas pedre­gosas, e acoitou­se à sombra do solar alcantilado e inacessível ao rodar da sege.

É aí que a coeva do Portugal das crónicas se estorce e vasqueja no último alento.

A terra de D. João I e Nuno Álvares agoniza com a liteira de João das Regras e Pedro Ossem!

Volvidos doze anos, a liteira de alquilaria será uma tradição, nem sequer perpetuada na gravura. No recanto de alguma

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cavalariça de palacete provincial, apodrecerão ainda as relíquias da liteira fidalga; mas esta não é a liteira posta em holocausto ao macadame, à diligência, à mala­posta, e ao carril. A liteira sacrificada, a liteira dos dois machos pujantes e das cinquenta campainhas estrídulas, essa é a que se vai de uma assentada, desfeita à serra e enxó para remendos de ignóbeis carrinhos e carroções. Esta é que é a liteira das minhas saudades, porque se embalaram nela as minhas primeiras peregrinações; porque, dos postigos de uma, vi eu, fora das cidades, os primeiros prados e bosques e serras empinadas; porque o tilintar das suas campainhas me alegrava o ânimo, quando a toada festiva me interrompia as cogitações da tarde por essas estradas do Minho e Trás­os­Montes; porque finalmente foi numa liteira que eu encontrei o livro, que o leitor, com a sua paciente benevolência, vai folhear.

Há poucos anos que eu jornadeava de Vila Real para o Porto, e cheguei, quebrado de corpo e alma, a uma póvoa escondida nos fraguedos do Marão, chamada Ovelhinha. O rocim, que me ali trouxera, ganhara pulmoeira na subida da serra, de maneira que, na assomada onde chamam «as rodas», os bofes arquejavam­lhe com tal ímpeto, e encavernada tosse, que não há aí coisa triste que mais diga!

Quando descavalguei, na Ovelhinha, devolvi o garrano ao proprietário, e procurei quem me alugasse cavalgadura, menos poitrinária, até Amarante. Voltando à estalagem, achei uma liteira parada, que chegara naquele ponto. Perguntei ao liteireiro se ia de retorno. Respondeu­me que levava patrão. Contemplei a liteira com mágoa e inveja, principalmente quando a eguazinha galega, que eu ajustara, começou a espirrar uma tosse mais que muito significativa de pulmoeira e mormo real.

Nesta cogitação me surpreendeu o inquilino da invejada locomotiva. Ó raio de luz!… ó bafagem de esperança que me vens perfumada do paraíso terreal!… Era o meu amigo António Joaquim!

— Tu aqui!? — exclamou ele da janela da estalagem.

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— Eu aqui… e tu?!— Eu também aqui neste orco, neste vestíbulo do inferno!

Para onde vais?— Para o Porto, se me levarem.— Quem te leva?— Esta pulmoeira de quatro pés.— Tem juízo, homem! Deixa às feras do Marão a burra, e

senta­te aí dentro nessa liteira.Quando bem me convenci de que não sonhava, a minha

gratidão a António Joaquim mal me cabia no peito, dilatado pelo júbilo. Marinhei à janela, trepando­me num tronco de videira, e apertei­lhe a mão, exclamando:

— Para a vida e para a morte! António Joaquim, salvaste­­me! Esta liteira, e as campainhas, e os machos hão de pesar na balança das tuas ações misericordiosas!

Disse, e desci pendurado nos galhos da cepa.— Essa apóstrofe — disse ele — extenuou­te!… Vem tomar

caldo de galinha.António Joaquim é uma pessoa de quarenta anos, proprie­

tário, casado, e residente numa de suas quintas do Minho, nas cercanias de Braga.

Tem uma biografia serena, breve, e consolativa para quem está vezado às biografias revesadas e tempestuosas.

Estudou para bispo. Sua santa mãe sonhara que seu filho havia de pô­r mitra. Assim que o menino deu tino do alfabeto, mandou­o estudar em Braga. O pequeno foi, contra vontade do pai, que desadorava clérigos de requiem; mas a vontade e o sonho da mulher prevaleceram.

António, ao quinto ano de latim — longo espaço que excedia o tempo marcado no cô­mputo de sua mãe para se realizar o sonho —, foi a férias, e namorou­se de uma filha única de abastados lavradores. À conta disto, correu grandes tormentas o coração de António Joaquim, umas em casa com a mãe, outras fora de casa com um rival, como ao diante se dirá; mas, afinal, casou, e depô­s às plantas da galante

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menina a mitra episcopal, que sua mãe sonhara, e a ciência de latinidade granjeada em cinco anos, a qual, diz ele, não valia mais que a mitra.

António Joaquim está rico. Reuniram­se duas casas que rendem, em ano de colheita regular, duzentos carros, afora vinho, azeite, castanhas e batatas. Cria poldros, com que tem sido muitas vezes enganado, e com os quais tem enganado os seus melhores amigos: coisa que não mancha de leve a reputação de quem quer que negoceia em poldros. Também engorda bois para Inglaterra, e estuda, entretanto, a inconveniência económica da exportação dos bois.

A sua vida gasta­se nas feiras, na fiscalização das quintas, alguma hora muito feriada na leitura de livros agrícolas, e sabe magistralmente carpinteirar. É ele quem faz os carros aos peque­nos, as dobadouras à esposa, os engaços e as pás aos criados, e também faz rocas, e fusos, e gamelas, tudo com perfeição.

Já quiseram mandá­lo ao parlamento, porque António Joa­quim tem aptidão para estudos económicos, fala correntemente e ao nível do entendimento popular. O meu amigo rejeitou a candidatura, porque é egoísta do seu bem­estar, e diz que nun­ca foi escouceado dos poldros rebelões que amansou: fortuna que lhe seria decerto esquiva no parlamento com os outros. Nomearam­no outras coisas da governança, e todas declinou sobre quem as quis, reservando para si a glória de escanhoar com lâmina afiada de epigramas os queixos das autoridades, nuns artigos, que ele, há dez anos, manda para as gazetas com esta assinatura imaginosa: Constante leitor.

Não há mais que dizer do António Joaquim, que eu en­contrei em Ovelhinha.

Bebemos na estalagem uma água quente oleosa por fartas malgas, que tinham no fundo pintados uns galos, que pareciam escorpiões. Engolimos uns pedaços de galinha, que zombavam do mecanismo da trituração, e entrámos na liteira.

Eram dez da manhã.Aqui principiam as vinte horas.

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IINTRODUÇÃO À HISTÓRIA DA ÉGUA

— Ainda fazes romances? — perguntou­me o meu amigo.

— Ainda… Sedet aeternus que sedebit,Infelix……

faço romances, e expio os pecados de meus avós, neste inces­sante rodar do penedo ao alto do monte, e resvalar com ele ao fundo.

— Estás magro, homem! — observou ele, apalpando­me o pescoço, provavelmente com o tato magistral de quem ajuizava da nutrição dos potros pela fibra atochada e nediez do pescoço. — Deixa­te desse modo vivente, se não aspiras à mumificação. Olha que a natureza fez homens, não fez literatos. O Criador, quando expulsou Adão do paraíso, teve a piedade de lhe não dizer: «Serás escritor!» O que lhe disse foi: «Viverás trabalhando até suar.» Considera, amigo, que é necessário suar para viver. E o escritor não sua: logo, morrerá anazado, qual te vejo, pobre homem! Saíste das prescrições da natureza; torna sobre ti, e corrige o vício.

— Isto não se corrige — repliquei eu.— Queres dizer­me que a imaginação é uma espora? Põe

cabeções ao espírito; colhe as rédeas; e, se ele teimar, bate­lhe

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com a cabeça numa pedra. A imaginação que faz novelas é um talento perdido, como os talentos escondidos de que fala a parábola de Jesus. Porque não hás de tu aproveitar a imaginativa em coisas úteis? Inventa um arado, um moinho, um alcatruz, um esgotador de rios, uma ratoeira de apanhar toupeiras, um visco de desbastar grilos e pardais. Dirige a outra ordem de inventos a tua fantasia, de modo que os movimentos corpo­rais te fiquem desembaraçados, e o ar puro te não vá coado por vidraças aos pulmões. Distende os músculos, agitando­os; exercita as funções respiratórias, aprumando o corpo na posi­ção vertical; regenera o sangue, e verás que ainda és homem… Tenho sincera pena de ti!

— Também eu tenho… — atalhei eu.— E, depois, peço licença — continuou António Joa­

quim — para ponderar que as tuas fantasias romanescas são, na maior parte, desnaturais e falsas.

— Ora essa!…— Espanta­te; mas não te agastes com esta rudeza. Sabes

que eu leio os teus romances: é o máximo sacrifício que pos­so fazer­te das minhas horas de repouso. Em louvor dos teus livros, basta dizer­te que os leio. Prendem­me a curiosidade uns paradoxos de virtude que tu estendes a trezentas páginas. Já fizeste chorar minha mulher: quase que ma ias fazendo nervosa! Foi­me preciso dizer­lhe que tu mentias como dois ministérios, e que timbravas em ter um estilo de cebola ou de mostarda de sinapismos que faz rebentar chafarizes de pranto. Nem assim consegui desacreditar­te! Assim que sai romance teu, minha mulher, combinada com o editor, seca­me a paciência, até que o livro chega de Braga entre um papeliço de açúcar, e o saco do arroz. A pobre mulher começa a chorar no título; estrenoita­se a ler; e, ao outro dia, está desolhada, e amarela como as doze mulheres tísicas, que tens levado à sepultura num rio de lágrimas. Tens romances, meu amigo, que mentem desde o título. Comecei, pouco há, a ler um que se chama: «A mulher que salva».

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— Então — acudi eu — que tem esse título?— Não tem senso comum.— Estou pasmado!… Pois a mulher que salva…— Não há mulher nenhuma que salve. Homem perdido por

uma, não pode ser salvado por outra.— Cala­te aí! Tu não sabes nada do coração humano,

António Joaquim! — redargui eu. — Casaste, moço, há dez anos; envelheceste no dia em que casaste; és a matéria feliz; não entendes o que é a desgraça nem as alegrias do coração, alegrias que se revezam com os dissabores, é isso verdade; mas também é certo que, fora da esfera dos teus gozos, há delícias da alçada do espírito, há mulheres salvadoras que as trouxeram do céu, e as derramam como bálsamos colhidos nos colmeais dos anjos…

— Aí vem o estilo ramalhudo! — acudiu ele. — O absurdo não fica melhor justificado com a linguagem absurda. Vocês, os narradores de infortúnios materialíssimos, os almotacés das mais purulentas chagas sociais, deviam de ser obrigados a calarem­se, pela mesma razão que a polícia das cidades obriga os mendigos a esconderem os seus aleijões e cancros nauseabundos. E são vocês, os expositores de úlceras, que nos acusam de materiais, a nós, os que temos uma linguagem chã, e juízo claro como ela, para censurar e desadorar demónios incríveis que nos apresentam, ao lado de uns anjos impossíveis. Se vos vamos à mão, pondo em dúvida a existência sublunar de mulheres que salvam, aí vens tu e os teus colaboradores da mentira, gritando em estilo frondoso que há mulheres portadoras de bálsamos celestiais, colhidos nas colmeias dos anjos. Cebolório! Tanto creio eu nessas mulheres como nas colmeias dos anjos, cujas abelhas são os próprios anjos. Anjos para tudo! É um desperdí­cio espantoso de potestades celestiais o que fazem os escritores à moda. Se vos fecham o céu, como fecharam o empíreo aos poetas de há sessenta anos, palavra de honra que não sei onde vocês irão buscar o lastro dos seus poemas e romances! Ireis a pique à falta de peso nas frágeis tabuinhas…

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— Parece que chegas impando ciência das covas de Salamanca! — interrompi eu ofendido em nome dos meus colegas. — Será isso moléstia de espírito que se te pega do macrobismo da liteira?! Eu não admiro que Volney sentado nas ruínas de Palmira pregasse cavamente acerca das ruínas dos impérios e da humanidade; e menos admiro que um homem de razão esclarecida como tu, bamboado numa locomotiva como esta, se sinta levado aos tempos do Feliz Independente, e desdenhe do romance moderno, contempo­râneo do vapor!

— A minha questão é outra — contraveio o meu amigo. — Não louvo nem detraio o que se fazia há cem anos. Reprovo a contrafação dos tipos que modernamente se dão no romance, e com particularidade nos teus romances. Quan­do eu lia novelas, preferia as da escola dos castelos lô­bregos, dos fantasmas da meia­noite, dos vampiros que dispensavam as sanguessugas, e dos carnífices de olhos esbugalhados, que relampejavam nas trevas das masmorras. Isto entretinha­me e horrorizava­me, enquanto lia. Lido o volume, dava uma gar­galhada, e dizia em elogio do autor: «Que grande patusco!» Porém, se lia algum raro romance da escola real, ou realista, como dizem os franceses, acabada a leitura, não ria; ficava­me a cismar tristemente, e dizia comigo: «Isto é verdade; o mundo é assim; as misérias do género humano argumentam contra a perfeição das obras divinas dos astros para baixo. O físico do homem é admirável como o físico do inseto microscópico; mas o moral do homem é repelente, é hediondíssimo!» Aqui tens a causa da minha abominação dos romances trasladados da natureza. Agora, cuido eu que há uma escola mista, à qual pertencem os teus livros.

— Mista?!— Sim: vocês inventam virtudes impossíveis de par com

perversidades incombináveis. No mesmo capítulo oferecem­nos a mulher nua exsudando o pus da gangrena moral, e outra mulher vestida com o manto das virgens, e rescendendo aro­

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mas das florinhas do Hibla. Ao lado do plebeísmo da taverna o orientalismo das magníficas figuras da Bíblia.

— Pois se a sociedade é isso! — repliquei eu. — Se a vida é esse misto, que te repugna, como queres tu que se escreva, António Joaquim?

— A sociedade não é isto, homem! Toda a desgraça comum tem uma razão de ser; todo o crime tem uma face comovente que exora perdão para o delito repugnante. Não há crime absolutamente imperdoável; também não há virtude imaculada. Nego que se confrontem duas mulheres, e se diga: «Esta mulher perdeu um homem; aquela mulher salvou­o.» A que perdeu resvala de degrau em degrau; a que salvou levanta­se por entre as nuvens fora, até se esconder à análise do espírito humano. Uma entra no inferno sem dar a razão por que o romancista a mandou para lá; a outra bate às portas do céu, e entende que não vive honestamente em companhia das onze mil virgens.

— Isso não é questionar; é fazer espírito — interrompi. — Seja o que for, é uma coisa que depõe vantajosamente a favor da tua habilidade galhofeira. Em todo o caso, entendes tu que não há mulher que salve!

— Entendo. Coisa que salve há uma só: é a experiência das mulheres que perdem. Ainda há uma outra, que não ouso dizer­­te com medo que me julgues um zombeteiro de mau gosto.

— Que coisa é essa?… diz lá!— É uma égua brava.— Uma égua brava?! Que mangação!— Ouve lá a história de uma égua que salva.

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IIA ÉGUA QUE SALVA

António Joaquim acendeu o charuto e con­tinuou:

— Fui grandemente contrariado no conseguimento da mulher com quem casei. Minha mãe não queria desistir de me ver de mitra e báculo; meu pai aborrecia a moça, porque a vira trajada à moda da cidade, e lhe constava que ela vivia à lei da nobreza. O pai de Maria Clara aborrecia­me a mim, porque eu lhe matara a tiro umas pombas, cuidando que eram rolas maninhas; a mãe odiava­me outro tanto, porque eu pin­tara casualmente, na parede da igreja, uma cara com um nariz descomunal, e aconteceu que a mãe de Maria Clara possuía o maior nariz do concelho. Os gandaieiros da freguesia começaram a dizer que o boneco narigudo era o retrato da Sr.a Joana do Ribeiro: soou­lhe o boato; averiguou quem fosse o Apeles de carvão; e jurou que seu marido havia de ser papa, quando eu fosse bispo. Este juramento foi sancionado no céu.

Acresceu uma importante contrariedade sobre tantas. Maria Clara, antes de me ver e ler a minha primeira carta, amava um morgadete de outra freguesia distante, rapaz bem nascido, mal criado, bazofiador de valentias, e de ruim condição. Eu não sabia disto, quando comecei: o amor teve mais força que o juízo,

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quando mo disseram. Continuei por coração, e algum tanto por vaidade. Medo não me faltava: aqui to confesso, que ninguém nos ouve, graças ao barulho das campainhas. Estas revelações só pode fazê­las com segurança quem vai de liteira.

Encontrei­me com o morgado nas vizinhanças da casa de Maria Clara. O rapaz, que teria vinte e cinco robustos anos, parou em frente de mim, sofreando as rédeas do cavalo. O ca­minho era estreito e de pé posto. Fui naturalmente obrigado a fazer­lhe rosto, sustendo o ímpeto da minha égua, que dera um galão contra o cavalo.

— O senhor conhece­me? — perguntou ele.— Conheço muito bem — respondi eu. — É o Sr. Belchior

Pereira.— Para o servir e amar, se nisto lhe dou prazer.— Muito obrigado! — voltei eu ao sorriso irónico do

galhardo cavaleiro, que retrucou:— Não tem de quê. A prova de que o sirvo e amo é o

aviso que vou dar­lhe. Desista de passear por estes arredo­res. A mulher, que o senhor ama, já eu a amava, quando o senhor a viu. Não estou resolvido a ceder­lha facilmente, nem tão­pouco lhe peço que ma ceda. Tenho direitos antigos. Há três anos que amo e escrevo a Maria Clara. O senhor decerto ignorava isto.

— Já sabia — respondi eu com firmeza e muita confiança nas pistolas dos coldres.

— Mas não sabia tudo, pelos modos — redarguiu ele prontamente. — Fica o Sr. António Joaquim sabendo agora que um homem de qualidade não se pode vingar decentemente de uma perjura; mas vinga­se no homem que a faz perjurar.

— Não sabia isso — atalhei eu. — O sistema parece­me ir­racional. Seria mais justo vingar­se dela um homem qualquer; mas um homem de qualidade, como V. S.a diz, e é, não se vinga de ninguém.

— Não me dê conselhos, Sr. António! — voltou ele mal­­encarado.

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— Eu não aconselho: faço as minhas reflexões, visto que estamos conversando.

Sobreveio ele imediatamente:— Mas é que nós não estamos conversando…— Ah! não? cuidei que…— Cuidou que eu era homem de palestras? Isto é um aviso

que eu lhe resumo em duas palavras: desistir ou experimentar­­me o peso das mãos. Entendeu agora?

— Sim, senhor, entendi. Não desisto, nem quero experi­mentar o peso das suas mãos, Sr. Belchior. Se V. S.a me quiser fazer passar por essa desconsoladora experiência, eu prometo dar­lhe a experimentar o peso de duas balas.

O homem remessou o cavalo; a minha égua empinou­se; e eu desabotoei as presilhas dos coldres.

Estacou o Belchior, empunhando um curto ferro desem­bainhado de um chicote. Mediu­me de alto a baixo três vezes com solenidade ridícula além do admissível no melodrama. Bacorejou­me que o morgadete era menos facínora do que aparentava. Disse­lhe que atirava a égua por cima dele, se me não desimpedia o caminho. Cingiu­se com a parede de uma bouça, bamboou três vezes a cabeça carregada de ameaças, e deixou­me ir em paz.

A tiro de espingarda, estava Maria Clara ao peitoril de uma janela aberta no muro da quinta. Suava de aflita. O Belchior surpreendera­a a colher da trepadeira, que formava o dossel da janela, umas flores, e a dispô­­las em ramilhete. Vociferou­lhe alguns insultos, e deu­lhe parte de que eu havia de morrer da tal experiência das mãos dele.

Por isso Maria Clara suava de aflita. Sosseguei­a com a certeza de que eu não estava sequer moribundo, e asseverei­­lhe que Belchior Pereira me parecia incapaz de matar alguém.

A nossa correspondência continuou, e as minhas idas aos arredores defesos não descontinuaram. A tímida moça deixou de aparecer, no louvável acinte de me reter longe da ferocidade

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do morgado; eu, porém, insisti em convencê­la da impunidade da minha afoiteza.

Tratou ele de colher vingança por mais covardes traças.Denunciou ao pai de Maria os nossos breves diálogos da

janela do muro. A mãe, esforçada pelo nariz que eu trasladara, sem malícia, na parede da igreja, instigou o marido, fumegando vaporações de raiva pelo nariz original. Foi a menina proibida de ir ao miradouro.

Bem sabia ela a intenção honesta e honrada do meu amor. O meu abade, bom e digno confidente da minha paixão, tomou a peito desatravancar o caminho de tão louvável pro­pósito. Entendeu­se com o reitor da freguesia de Maria Clara, e acordaram­se em amaciar as asperezas dos quatro velhos mancomunados para a nossa desgraça. Era diplomacia de san­tos em negociação de inocentes afetos: surdiu excelente efeito. A Sr.a Joana passou a esponja da razão sobre o nariz pintado; o Sr. João, marido dela, esqueceu a ofensa involuntária às suas pombas; minha mãe chorou as derradeiras lágrimas sobre a mitra dos seus sonhos episcopais; e meu pai foi obrigado a concordar que os trajos das senhoras cidadãs não pegavam nem implicavam desonestidade às meninas das aldeias. Os dois clérigos deram por concluída, cooperante a proteção divina, a sua missão, e escreveram os proclamas para serem lidos nos três dias santificados.

Maria Clara exultou, eu beijei as mãos dos dois pastores; abracei minha mãe, prometendo­lhe ordenar de clérigos todos os meus filhos, se ela quisesse; e levantei meu pai no colo. O bom velho ria­se e chorava, com a satisfação de se ver perpetuado na sua descendência. Este antecipado amor a netos e bisnetos é uma alegria patriarcal, antegosto refugiado na vida das aldeias. Nas cidades, meu amigo, um homem ou mulher de quarenta anos, com filhos de dezoito, treme de se ver avô­ ou avó. A existência de um neto é uma risada aos bigodes falsificados de negro, ou às faces sujas de carmim.

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Belchior Pereira, sabedor da inesperada convenção, e da primeira leitura dos banhos, premeditou um cruel desforço. Adivinhei­o, e Maria Clara também. O morgado saiu da terra, dizendo que ia para o Porto. Então é que eu mais receei, e me acautelei, sem, contudo, desistir de passar algumas horas das noites de inverno em casa da minha futura esposa, contra von­tade dela. A minha vigilância consistiu em me fazer acompanhar de um criado valente, bem armado, e montado num cavalo que saltava, a quatro pés, valados de altura de um homem.

Uma noite de janeiro, saí, às onze horas, de casa de Maria Clara. Não luzia estrela. Era a escuridão de um sepulcro aquela noite. O nevoeiro regelava a medula dos ossos. Os aguaçais lamacentos espadanavam debaixo das patas dos cavalos. Os ribeiros desbordavam e cobriam as poldras de passagem. Uns pássaros noctívagos piavam lugubremente nos galhos desfolhados dos castanheiros. E, todavia, o meu coração ia alegre, lucidíssimo, perfumado, intumescido de delícias. Não me lembrava Belchior naquela noite; e, noutras, tantas vezes, eu esperei que o meu criado me precedesse na passagem de barrancos e encruzilhadas!

Chegámos a uma agra, que se bifurcava em dois quincho­sos de péssimo piso, à entrada dos quais eu costumava apear. Não o fiz então. Disse ao criado que passasse avante para com o passo firme do cavalo me encaminhar a égua irrequieta e mal segura sobre as pedras descalçadas pelo enxurro da água chovediça. Um dos caminhos levava a minha casa, o outro ia fechar­se num matagal a pouca distância.

O criado meteu o cavalo muito de passo pelo quinchoso. Eu quis segui­lo com a égua; e ela ficou imóvel à esporada. Teimei, até lhe ensanguentar os ilhais. À terceira esporada, levantou­se de repelão, revirou­se, roncou, trincou furiosa o freio, e despediu desapoderada pela outra vereda que ia fechar­se na mata. Eu ia agarrado às clinas, contando com uma queda mortal, quando ouvi três tiros quase simultâneos. Não sei o que então pensei. Fiz um desesperado esforço para suster a arremetida da égua. Via

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já diante de mim umas trevas mais intensas, para assim dizer, entranhadas noutras trevas. Era o cruzamento das árvores que afogavam o matagal. A égua quedou­se ali de súbito, afrontada pelos esgalhos secos, que lhe rasgavam os peitos.

Apeei, sem saber para quê, e meditei um momento. Prestes me convenci de que o meu criado estava morto.

Cavalguei de novo. Voltei no mesmo piso a galope. A égua obedecia, sem tropeçar nas lajens escorregadias. Guiei­a para o caminho, donde fugira: obedeceu ao leve movimento das bridas. Chamei a altos brados o criado, e senti indizível alegria, quando lhe ouvi a voz.

— Cá estou; mas não posso erguer­me! — disse ele.Aproximei­me. Estava ele estirado debaixo do cavalo morto.

Disse­me que tinha uma bala num joelho, e que o traspassado cavalo, ao cair, lhe quebrara a outra perna. Pedi forças a Deus para subtrair o meu pobre criado do peso do cadáver enorme. Consegui, quando o vigor estava a exaurir­se. Tomei­o nos braços; e pude cavalgá­lo na égua. Caminhei ao lado dele, segurando­lhe a perna quebrada no selim.

Quando cheguei perto de casa, vinham criados com fachos de palha acesos em minha busca. Os tiros tinham levado o seu estampido ao quarto de minha mãe, que ainda estava pedindo a Deus por mim.

Tenho a satisfação de te dizer que a fratura da perna do meu bravo Leonardo cicatrizou sem aleijão. A bala do joelho apenas lhe feriu a rodela sem consequência.

Agora vamos ao essencial deste episódio, meu caro amigo: a quem devo eu a minha salvação naquele conflito?

— À tua égua? Queres que eu te diga isto, não é verdade?— É, e não fazes favor nenhum à minha égua.— Pois eu, se escrevesse num livro esse relanço da tua vida,

não dizia que foi a égua que te salvou.— Pois quem?!— Disseste­me que tua mãe estava orando por ti, quando

ouviu o estampido dos tiros. Eu creio que foram as orações de

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tua mãe que te salvaram. Esta crença tem bases no sentimento e na razão. Basta crer num Deus, que inclina a sua face mise­ricordiosa às preces de mãe alvoroçada pelo medo de perder um bom filho.

António Joaquim não replicou. Pejou­se de discutir matéria em que havia de estabelecer confrontos vilipendiosos.

E eu prossegui:— Como facécia, e paródia ao título do meu pobre ro­

mance, a tua história veio muito ao ponto. Mas eu, como vês, ouvi a conclusão da narrativa com pensadora seriedade. Foi uma mulher que te salvou, meu caro António Joaquim; mas mulher­mãe, intercessora, cujos requerimentos justos nunca descem indeferidos do tribunal divino. Pois, se me dissesses que, à mesma hora, a Sr.a D. Maria Clara, tua noiva, esperan­çosa metade de tua alma, estava orando por ti — e bem pode ser que estivesse — dir­te­ia eu que foram duas as mulheres a salvar­te. Um anjo — concede que eu diga um anjo, enquanto me não fechares as portas do céu — levaria em uma de suas asas a petição da mãe, na outra a petição da virgem. O Senhor sorriria ao santo amor de ambas, e tu serias salvo pelos dois amores.

— Está bom! — voltou António Joaquim — mas não me aniquiles completamente a poesia da minha égua!…

— De modo nenhum. A tua égua ainda vive?— Vive.— Pois bem: dá­lhe muito grão, e uma velhice descansada.

A verdadeira poesia das éguas é isto. E, quando contares essa página dos teus amores, dá­lhe um título mais humano, e agradecido às orações de tua mãe.

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IIIMALDITO SEJA ENTRE VÓS AQUELE QUE JOGAR

Daí a pouco, António Joaquim assentou­me duas sonoras palmadas nos ombros, e exclamou:

— Tu hoje deves ter uma boa fortuna!— Quem, eu?!— Pois então! A calcular sobre os livros que tens publica­

do!… Olha que eu já ouvi rosnar que alguns dos romances não são teus… Calúnias!…

— Calúnias, realmente, meu amigo. Alguns, dizem eles? Nenhum dos livros, que correm com o meu nome, é meu. São todos dos editores.

— Mas o que dizem é que não podes ser materialmente o autor do que se lê com o teu nome.

— Ah! entendi agora… Pois sou materialmente essa desgra­çada máquina que escreveu tudo, todo esse lastro da nau das letras nacionais, que anda à matroca.

— Mas estás rico ou não? Fala a verdade!— Estou. Possuo quintas ajardinadas, em comparação das

quais, os hortos pênsis de Semíramis são charnecas intransitáveis. Tenho palácios, que seriam dignos de um príncipe asiático, se não fossem mais dignos de mim. As minhas equipagens de urcos, landaux, e librés…

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— Fala sério, homem! — atalhou António Joaquim. — Tu tens a tua independência feita, e estás no caminho de…

— Morrer…— Com cem contos, e uma estátua na tua terra, à custa da

nação agradecida.— Estátua do espanto me fazes tu, amigo António! Se não

fosses engraçado, serias tolo! Pois tu cuidas que eu vivo dos romances?

— Cuidei…— Nada, não… Eu vivo da glória. Descobri em mim um

segundo aparelho digestivo, que elabora, em substância nutri­tiva, a glória.

— Isso parece­me útil; — obtemperou o meu amigo — porém, seria justo que tivesses de teu um décimo do dinheiro que tens dado a tanta gente…

— A quem?!— Aos personagens das tuas novelas. Por exemplo: àquela

Augusta da rua Arménia, do romance — Onde está a felicida‑de? Oitenta contos debaixo de uma tábua! Quase um Banco! À tábua faltavam­lhe só quatro pés para sustentar a inteireza da comparação. Oitenta contos!

— Também tenho empobrecido muito personagem: fica uma coisa pela outra.

— Aquele dinheirão inventaste­o tu? Pois olha que eu sei uma história em que apareceu muito dinheiro debaixo de uma tábua, algum do qual eu possuo, e agora mesmo podes ver uma amostra. Aqui tens.

António Joaquim tirou de uma saca de prata dois dobrões portugueses no valor de quarenta e oito mil réis.

— Achaste muito disto? — perguntei.— Não fui eu que levantei a tábua. Vou contar­te a história;

e, se duvidares, vai à minha aldeia, que eu ta comprovarei com o próprio depoimento do possuidor do tesouro.

Trinta anos haverá, pouco mais ou menos, que um bom lavrador meu vizinho, chamado ele João do Cabo, casou com

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Maria da Capela, moça bonita, segundo diz minha mãe, e rica, a mais rica das dez freguesias em roda. Era órfã, quando casou, contra vontade de seus tios, dois padres, que tinham rasas de dinheiro, no dizer do povo.

Foi a moça para casa do marido, senhora dos bens de seus pais; mas amaldiçoada pelos tios, que resistiram a todas as tentativas, que meus pais fizeram, no intento de reconciliá­los com a sobrinha.

João do Cabo era um extravagante estúpido. Começou a apostar dinheiro em jogo de azar numa casa de padres, nossos vizinhos; perdeu e ganhou quantias pequenas; entranhou­se­­lhe o vício, e já lhe parecia insignificante o bolo, que podia levantar em casa dos padres. Ia todas as semanas jogar a Braga, e às feiras de ano. Perdeu muito dinheiro, já levantado sobre hipoteca dos bens. Meu pai emprestava, quando não sabia ainda o destino dos repetidos empréstimos; mas o negar­se ele a facilitar a ruína de João do Cabo não vingou melhoria nem emenda para o desgraçado. As irmandades do Santíssimo Rosário, e de muitas outras coisas santíssimas, confiavam di­nheiro ao jogador, tendo os mesários consciência do fim para que emprestavam.

A casa era tamanha que João levou dez anos a dissipá­la. A esperança, que o esporeava a sacrificar os últimos contos de réis, era o dinheiro entesourado dos tios de sua mulher. Contava ele com a herança e com o resgate das suas fazendas. Era voz pública e notória fama que o ouro dos padres, legado de mão para mão, de um tio, vindo do Brasil, valia mais que as terras das duas freguesias mais férteis da comarca.

Morreu um dos clérigos, testando no outro. Respirou o peito desoprimido do lavrador: tinha meio caminho vencido.

Já o jogador havia deixado arrematar em praça as melhores fazendas, executadas pela irmandade do Santíssimo Rosário, quando morreu repentinamente o outro tio de Maria.

Fez­se um alarido de júbilo em casa de João. Correram a casa do defunto; abreviaram o saimento e o enterro quanto

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puderam, sem vergonha da freguesia; e cuidaram em remexer gavetas, baús, arcas, armários, enxergões, tudo que tivesse bojo com capacidade para conter alguns alqueires de dinheiro. Escassamente encontraram numa saca de linho algumas poucas dúzias de cruzados novos.

Recorreu João às escavações na adega, nos lagares, nas lojas; minaram os alicerces da casa; nem vestígios dos alqueires de ouro; nem um salamim sequer para pagar as despesas da exploração!

Desistiram os cavadores, e João do Cabo resignou­se a levantar a herança dos dois patrimónios clericais avaliados em dois contos de réis.

Parece que o malogro e o desespero recrudesceram o vício do jogo. Vendeu o lavrador um dos patrimónios, e despejou o produto à voragem; vendeu a boa casa em que vivia; vendeu o outro património, tudo vendeu, no espaço de cinco anos, reservando apenas um casebre na eira, no qual os padres mandavam recolher empalhadas as frutas. Meu pai foi quem arrematou em praça todas as propriedades de João do Cabo, e lhe aconselhou que reservasse a casa da fruta para ter um colmado onde se acoitasse de inverno com mulher e seis filhos que tinha.

Chegou João do Cabo a extrema pobreza antes dos quarenta anos. Meu pai tomou a seu encargo dar­lhe modo de vida aos filhos, que eram, por fortuna, todos rapazes. Os mais velhos mandou­os para o Brasil; os outros pô­­los a marçanos em lojas de Braga e Porto. Maria foi recebida em nossa casa a título de criada; mas minha mãe, que se tratava de tu com ela, não a mandava lançar mão a trabalho nenhum. Chorava com a pobrezinha, e ensinava­a a esperar as riquezas do céu.

Toda a gente contava que João se deixasse morrer de fome, se não tivesse quem lhe chegasse um caldo. Enganou­se toda a gente. Meu pai sentá­lo­ia à sua mesa, se ele quisesse: rejeitou a esmola sem altivez, dizendo que ainda podia trabalhar, e que era necessário fazer penitência.

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As mãos do desgraçado eram mimosas como as nossas: igno­ravam a dureza do cabo da enxada. Algumas vezes, quis traba­lhar na roça do mato, e largou a ferramenta, porque as mãos largavam a pele. A gentalha boçal e má da aldeia ria­se dele. Os jornaleiros, que o viam à sua beira gemendo a cada enxadada frouxa que atirava à raiz do codesso, olhavam­no de revés, e exultavam de ver nivelado com eles o rico de outro tempo, que lhes atirava ao chapéu com o jornal de cada semana, e lhes chamava calaceiros.

Este rir insultador era o vinagre esponjado na chaga do infeliz. Pensou ele em tirar­se da vista da gente; esconder­se a trabalhar onde não chegasse luz de sol.

— Não sei como conseguiria isso!… — atalhei eu.— Pois admira que o não saibas, sendo tu romancista! — ob­

servou António Joaquim. — Fez­se mineiro. Aqui tens um expediente simplicíssimo. Escondeu­se à luz do sol a trabalhar nas minas da casa de meu pai, nas minas das propriedades que tinham sido dele. Era uma verdadeira penitência! Nem às horas de comer queria sair cá fora ao ar livre. Vinha à boca da mina buscar a cesta: comia ao clarão de algum «suspiro» de baldear o saibro, e voltava a trabalhar até que o exterior fosse mais escuro que as trevas lá de dentro.

Em três anos deste duro lavor, encaneceu, derreou, desfigurou­se, era uma compaixão vê­lo! Por mais que meu pai dissesse e fizesse, não houve tirá­lo das minas, nem mudar­lhe os vestidos, até se desfazerem podres da humidade subterrânea. Nos dias santificados, ia a mulher jantar com ele à «casa da fruta». Era um repasto de lágrimas de ambos. Maria falava­lhe a linguagem religiosa de minha mãe; exortava­o à paciência, e à confiança no repouso da pátria celeste. O marido escutava­a silencioso, ou lhe dizia: «Que mais paciência queres tu que eu tenha, Maria?!»

No inverno de 1853, João do Cabo adoeceu de febres quartãs, e caiu na cama, quando mais não pô­de. A mulher ia levar­lhe os alimentos ao casebre, e à noitinha voltava para nossa casa.

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Minha mãe obrigou­a a pernoitar ao lado do marido, e mandou­­lhe lá armar uma cama de bancos.

Numa daquelas noites, João, a tiritar de frio, pediu a Maria que lhe fizesse uma boa fogueira.

— Aqui não há lenha; — disse ela — mas eu vou lá fora ajuntar uns gravatos.

— Não quero fogueira de gravatos — replicou João. — Faz­­me achas de alguma coisa.

— De quê? Valha­me Deus, não sei de que hei de fazer achas!

João saltou ao sobrado, a estalejar os dentes, e disse:— Traz aqui a candeia, Maria, e esse pequeno ferro de

monte.A mulher aproximou­se com o ferro.— Que vais fazer? — perguntou ela.— Arrancar uma tábua.— Valha­te o Senhor! — acudiu ela. — Se tiras o soalho, a

humidade da terra faz­te mal, João!— Deixa­me. Tanto hei de morrer assim como assado.Tirou com força pelo catre de Cerdeira em que tinha o

enxergão, e escolheu a mais carcomida das tábuas do sobrado. Meteu­lhe primeiro o fio da enxada nas junturas, solevou a tábua, e interpô­s a pata do alvião. Depois, foi alçapremando a tábua até a rachar a meio, porque os fortes pregos do outro lado não cederam ao repuxar do ferro. João introduziu os dedos para quebrar o restante da tábua, e sentiu neles uma extraordinária impressão de frio. Remexeu no quer que era, e deu tino de um objeto liso e polido, como lata. Retirou a mão: fitou os olhos espasmódicos na mulher, e não proferiu palavra.

— Que é?! — perguntou ela, passados segundos.— Ó mulher! — balbuciou João com um gesto de louco.— João, tu que tens?…— E se fosse! — exclamou ele.— O quê?! — tornou Maria, a não querer entendê­lo. — Tu

estás louco, homem?! Se fosse o quê?

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— O dinheiro!… o dinheiro!…— Pois tu que vês?!— Não sei, não sei… Deixa­me tomar ar… Já não tenho

frio… Estou a arder… Pede a Nosso Senhor que isto não seja um engano, Maria! Reza, reza, que a minha penitência de quatro anos merece que Deus tenha dó de nós!…

E Maria pendurou o gancho da candeia na maçaneta do catre, e ajoelhou­se a rezar de mãos erguidas.

No entretanto, João bateu com a ponta da alçaprema na terra aplanada pela tábua, e tirou um som metálico.

— Ó Senhor Jesus do Monte! — exclamou ele; e Maria, ao mesmo tempo, invocou a Virgem Mãe de Jesus.

Caiu o ferro da mão ao marido, e dilataram­se­lhe os beiços num trejeito de riso de mentecapto. Primeiro, pô­s as mãos sobre o peito; depois abraçou a mulher, banhada em lágrimas; por fim, todo convulsivo, levou mão do ferro, e disse­lhe:

— Ajuda­me… que eu tenho medo de morrer de alegria!Saltaram os pregos. Maria tirou a tábua a pedaços com

a força de três homens. João afastou a leve camada de ter­ra, que cobria dois caixotes de folha de Flandres, os quais extraiu, depois de escavar com as unhas a terra circumposta. Como cada um tinha dois palmos de comprimento sobre um de altura e outro de largura, os braços do enfermo mal podiam com o grande peso dos caixotes. Maria ajudou do outro lado. Quando tiraram o segundo, viram uma caixi­nha de lata pendente de uma argola do caixote, por uma corrente de metal. Abriram esta caixinha, e acharam duas chaves. Quiseram abrir com elas os caixotes; mas os aloque­tes estavam enferrujados, e as guardas das fechaduras não corriam ao lado. João partiu as linguetas com um trado. Abriu o primeiro caixote, e viu uns poucos de sacos de anta. Puxou por um; correu as correias de couro entrançado; e viu dinheiro em ouro. Depô­s o saco sobre os outros, e despediu em altos clamores uma desconcertada apóstrofe à Providência Divina.

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Minha mãe estava ainda a pé, com as criadas à lareira. Fitou o ouvido atentamente, e disse alvoroçada:

— Eu oiço gritar o João! Vão lá ver o que é!As moças tiveram medo e não foram; porque o povo, ro­

mancista descabelado, inventara que as almas dos padres, tios de Maria, andavam penando em volta da casa. Minha mãe foi chamar meu pai à cama, contou­lhe que ouvia gritos, e seduziu­­o caridosamente a sair com ela.

Os dois velhos bateram à porta da casinha da fruta, quando João estava borrifando com água o rosto de Maria, que perdera os sentidos. Falou minha mãe de fora. Foi­lhe aberta a porta.

— Que tendes vós? — perguntou­lhe ela, vendo a sua pobre Maria sentada no chão, e encostada aos pés do catre.

— Temos… temos… — tartamudeou João.— Que é?! — perguntou meu pai.— Temos ali dois caixões de ouro! — exclamou o mineiro.— Estás doido varrido, João?! — clamou meu pai.— Graças ao céu, que não estou! Vejam! vejam!Os dois velhos viram ao lado do fosso aberto, entre duas

tábuas, os caixotes de lata.Maria, quando recuperou o tino, estava nos braços de

minha mãe.João do Cabo achou­se sem frio nem calor daí a uma

hora: era temperatura do paraíso que lhe regalava os pul­mões.

Meu honrado pai recebeu o valor de todas as propriedades que lhe comprara, e entregou­lhas com as benfeitorias gratui­tas. Os dois dobrões que te mostrei são restos de sessenta mil cruzados, ou mais. O tesouro encontrado, restaurados os bens, pô­de pagar outros bens de igual valia.

João chamou os seis filhos para casa: tem três a ordenarem­­se; um em Coimbra; e dois na lavoura.

É o mais feliz dos pais, e o mais excelente dos homens.De vez em quando, reúne os filhos, entra com eles nalguma

das minas em que trabalhou, e conta­lhes a extensão e inten­

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sidade das agonias que lhe embranqueceram ali os cabelos. A narrativa termina sempre com estas palavras:

— Meus filhos! maldito seja entre vós aquele que jogar!

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IVA CONTEIRA

— Porque não fazes tu um volume deste facto? — perguntou António Joaquim.

— Hei de ver se faço seis volumes, meu amigo. Terás tu muitas histórias que me contar? Vê lá, meu filho. Se eu achava nesta liteira esqueletos para os cem livros que tenciono escrever em dez anos!…

— Então vocês chamam esqueletos às histórias que apanham de orelha? É bem posto o nome, atendendo à magreza dos livros que fazem!… Que histórias queres tu? de dinheiro?

— E sem dinheiro; servem­me todas.— Queres tu uma que sucedeu há três meses no meu con­

celho? Se duvidares, vai lá sabê­lo.— Ó homem, eu creio em ti; e, se não acreditasse, também

não iria informar­me. Eu dispenso­te de me dar provas que o leitor me não pede a mim.

— Aí vai a história:No tempo da invasão francesa, havia, na minha terra, uma

rapariga de dezassete anos, filha de uma mulher, que fabri­cava rosários de osso com tal perfeição e lustro, que ainda hoje parecem de marfim, e excedem o primor dos melhores, comprados em Roma. Rosalinda, a filha da conteira, saiu

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mais imaginosa que sua mãe no fabrico das contas: facetava as cruzes, floreava­as, lavrava as peanhas, e conseguiu esculpir pequeníssimas imagens, se não corretas, muitíssimo admiráveis na proporção das formas.

Este ofício, sobre ser de portas a dentro, limpo, e de bom serviço às almas, era muito rendoso, atendendo à barateza da matéria­prima, sem embargo da concorrência dos cuteleiros de Guimarães aos ossos de que faziam cabos para as suas já agora desacreditadas ferragens.

As conteiras viviam remediadas e alegres; tinham o seu mealheiro para uma necessidade, e eram asseadas como ne­nhumas das mais abastadas lavradeiras.

Em quanto a costumes, as moças mais honestas e morigera­das tinham que estudar em Rosalinda. As suas afeições eram o culto divino, a mãe, e o trabalho. Na igreja, distinguia­se pela reverente compostura; e também por assistir à missa com o seu livro. Das raparigas de sua criação só ela vingara aprender a ler, quando o abade abriu escola gratuita para ambos os sexos. Em quanto a casamentos, ofereceram­se­lhe alguns de rapazes de ofício, como pedreiros, tecelões, carpinteiros; Rosalinda, porém, modestamente lhes cortou as esperanças, alegando que era muito nova. As velhas, todavia, que eram cachopas naquele tempo, diziam que a orgulhosa conteira mirava a mais alto, e cantarolava a miúdo esta popular trova:

Quem eu quero não me quer;Quem me quer não me faz conta.

Estes dois versos mareavam­lhe algum tanto os créditos no conceito dos pretendentes; mas, na opinião das pessoas desapaixonadas, Rosalinda, amando de preferência os morga­dos das primeiras casas, estava no seu direito de ser tola sem ser desonesta.

Naquele tempo, um oficial do exército francês, comandado por Loison, desgarrou­se do piquete, forçado pelo tiroteio dos

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guerrilhas, e caiu ferido numa bouça vizinha da casa das conteiras, e escondeu­se num gestal a fugir da fúria carniceira do povo.

Rosalinda vira do postigo do seu quarto a luta dos franceses com a guerrilha, e a entrada do oficial na bouça. Assim que anoiteceu, e a mãe saiu a saber novidades, foi ela ao gestal, e viu gotas de sangue. Encaminhou­se por elas, e foi dar com um gentil francês prostrado, sem alentos, e ferido na fronte. Ousou ajoelhar convulsa ao lado do belo agonizante, e leve­mente apoiar­lhe a mão no braço que ele tinha sobre o peito. O francês, segundo creio, abriu os olhos, viu a camponesa esbelta, e lembrou­se do herói de lord Byron, aquele eterno D. João, o qual, revessado à praia pelas ondas, que não pude­ram impiedosamente comê­lo, abre os olhos expirantes, e vê a formosa filha do pirata.

O francês pediu água. Se alguma vez deres à estampa este conto, podes dizer que o jovem oficial pediu o coração à moça em exclamações de quem se goza de uma perfeita saúde; diz o que te fizer conta; mas o exatíssimo é que ele pediu água; e, depois de beber a excelente água do nosso Minho, cobrou cores, e pediu um bocado de pão. A rapariga, como se o amor lhe desse naquele instante ciência infusa de línguas estrangeiras, entendeu que ele queria comer.

Foi a casa, e levou­lhe uns ovos cozidos, e uma malga de leite de vaca. O francês pô­s as mãos agradecidas, e tirou do bolso interior da farda um pequeno dinheiro em ouro, que ofereceu à benfeitora. Rosalinda gesticulou negativamente, disse­lhe a seu modo que estivesse ali, e foi a casa contar o sucedido à mãe e pedir­lhe debulhada em lágrimas que fosse com ela à bouça.

Foram, e pouco depois o francês amparado aos ombros de ambas, quando a noite era já cerrada, foi recolhido ao casebre asseado e alegre das conteiras.

O repartimento interior, onde elas trabalhavam, passou a ser a alcova, e do seu quarto, mais escondido, e assombrado de carvalhos, fizeram o quarto do enfermo.

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O francês ensinou­as a fazerem­lhe o curativo de uma foiçada que levara na cabeça, e uma pedrada numa perna. A cabeça cicatrizou depressa; mas a fratura da tíbia soldou vagarosamente. Havia mais de mês que se hospedava o ofi­cial na casa das boas criaturas, que desvelavam as noites à sua cabeceira. Ao fim deste breve tempo, Rosalinda sabia o mais preciso do idioma francês em governo de casa. O oficial dava­lhe lições, apontando e nomeando, uma a uma, as coisas que o rodeavam, e destas inferia para outras invisíveis, com tão engenhoso sistema que Rosalinda, auxiliada pelo coração, compô­s um vasconço, muito mais francês que as francesias das meninas saídas dos nossos colégios, e menos patois que o de alguns tradutores de romances.

Eu admito que Rosalinda, e o sujeito, que por nome não perca, fossem capazes de inventar uma língua para seu uso e inteligência. E tu?

— Também admito isso — respondi com a gravidade que a pergunta filologicamente demandava. — Creio que a primeira linguagem nasceu com o primeiro colóquio amoroso entre mulher e homem. Discutamos esta importante questão das línguas, se te apraz. Comecemos pelo paraíso terreal, se não queres começar de mais longe.

— Mas, se te parece, — refletiu António Joaquim — acabe­mos a história, e depois comecemos a questão…

— Pois a história está a findar?!— Principia agora.— Bem!… Eu já ia dizer­te que não dá um capítulo a tua

Rosalinda…— A minha?! Do francês é que hás de dizer.— Então amaram­se?— E fugiram, assim que ele consertou a perna e a cabeça.— Pagou bem a hospitalidade da velha conteira, que natural­

mente morreu aflita de vergonha e saudade!…— Não morreu. Continuou a trabalhar nos seus rosários.

Quando lhe perguntavam pela sua Rosalinda, respondia: «Não

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sei». O desaparecimento da moça, e a serenidade da velha, deram que pensar à curiosidade. Ignoro que funcionário da justiça se arrogou atribuições para interrogar a conteira acerca do destino da filha. Atemorizaram­na, e ela confessou que a sua Rosalinda fora para França casar­se com um militar do exército francês, por consentimento dela.

Assim que se divulgou isto, o povo de três freguesias quis ir queimar a casa da velha, e vingar a nação, assando a jacobina que dera sua filha a um herege, quando o patriotismo orde­nava que ela o acabasse de matar na bouça onde o encontrou moribundo. Foi meu avô­ que teve mão da fúria popular.

Daí em diante, a mãe de Rosalinda vivia como leprosa, ou excomungada na freguesia. Ninguém lhe vendia ossos nem com­prava os rosários. As beatas não rezaram mais por contas que ela tivesse feito. A pobre mulher mudou de terra; creio que foi para o Porto, e de lá, passados tempos, foi para França, chamada por sua filha. O povo, sabendo que ela fugira, não se dispensou de lhe reduzir a cinzas a casa, e aspergir estas cinzas com abluções de água benta, e outros exorcismos. Ouvi eu contar a velhos que nos arredores da casa arrasada havia um tal ou qual fedor de enxofre, sinal concludente de por ali ter arrebentado uma legião de demónios. Corridos alguns anos, o sopro da civilização espalhou os miasmas sulfúricos. Pouco lembravam já as fugi­tivas; e, se a nova geração as recordava, era sem ódio, e talvez com uns vislumbres de poesia romântica. Eu, pelo menos, em rapaz, ia sentar­me no entulho da casa das conteiras, e cismava com a Rosalinda e com o francês. Figurava­me o quarto dela, com a vidraça por onde ela vira entrar no gestal o ferido; ia à bouça fantasiar o sítio onde ela o achara; parava junto do portelo por onde o passaram para a casa protetora. Compunha o meu romance com a cor local, e comovia­me; recontava estas cogitações a minha mãe, que conhecera Rosalinda, e pedia­lhe que ma descrevesse pela centésima vez.

Queria eu que se averiguasse se ela ainda vivia. Com o meu abade é que eu tinha a expansão destes pueris desejos. O padre

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perguntava­me se eu queria ir a França castigar o roubador da nossa formosa patrícia; e, com estas e outras galhofas, prometia escrever ao rei Luís Filipe no sentido da minha exigência, à qual o monarca havia de responder minuciosamente.

Era eu já homem de vinte anos quando o meu abade me disse que um sujeito lhe havia perguntado, no Porto, se se lembrava de ter conhecido na freguesia de *** uma Rosalinda, que fugira com um oficial francês. E ajuntou que o francês ca­sara com ela, e era general, e o informador os vira ambos em Baden Baden, no uso de banhos, e conversara em português com Rosalinda, que era já velha.

Hei de confessar­te que o meu romance da puerícia se despoetizou algum tanto com esta notícia. A poesia dá­se mal com os quadros felizes. O que ela quer é lances de lágrimas. A filha do céu parece que só para chorar baixou à terra. É como as flores que se fecham aos grandes fulgores do sol, e se abrem na escuridão melancólica da noite.

— O dissolvente da tua poesia — observei eu — foi o dizerem­­te que a mulher envelhecera, meu caro António Joaquim!…

— Seria… Volvidos dez anos, chegou a Braga uma senhora idosa vestida de luto, com duas criadas, e alugou uma casa modesta nos arrabaldes da cidade. Na primavera daquele ano, de 1850, a senhora, que suas criadas denominavam madame simplesmente, andou visitando o Minho em liteira, e foi à minha freguesia. Disse que lhe agradava muito aquele sítio, e mostrou vontade de se deter alguns dias por ali, o que faria, se encontrasse casa arrendável. Meu pai tinha vaga uma casa de quinta, e cedeu­lha gratuitamente.

Esta senhora — em quem tu já adivinhaste Rosalinda — acei­tou com breves palavras de gratidão a casa oferecida, e mandou a Braga buscar a sua bagagem, que eram alguns baús.

Saía, raras tardes, com uma criada ou sozinha. Passava a curta distância das ruínas da casa das conteiras; mas, se a viam, retirava­se para não dar nos olhos da boçal curiosidade dos lavradores. Meu pai e eu, com minha mãe e mulher, fomos

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visitá­la. Recebeu­nos com uns ares de polidez de palácio. De sua vida nada nos disse, nada lhe perguntámos. A gente sentia­­se constrangida na presença daquela esplêndida velha, que, no garbo e jeito com que se sentou, parecia estar­nos dizendo que nós não nos sabíamos sentar. Ao despedirmo­nos, madame ofe­receu a minha mãe um riquíssimo livro de orações, e a minha mulher um broche de ouro com um genuíno camafeu.

Passados dias, pagou­nos a visita, quando já a não esperáva­mos. Minha mãe, por não ter com que entretê­la, falou­lhe das ruínas da casa das conteiras. Ouviu ela a história, em silêncio, até que minha mãe lhe disse que seu sogro salvara a mãe de Rosalinda de ser queimada pelo povo. Madame fez um trejeito de repugnância, e disse:

— Ainda bem que existia um homem entre as feras.Continuou minha mãe a sua narrativa, até contar o incên­

dio da casa, e as superstições do povo a respeito do enxofre e do demónio.

Madame riu­se, e observou que o povo fazia descrer do demónio; e que era precisa muita fé para não descrer em Deus, se a voz de Deus era a voz do povo, como dizia o blasfemo provérbio.

Com esta sentenciosa reflexão ia fechar­se a prática. De repen­te perguntou a senhora a minha mãe se conhecera a tal conteira.

— Muito bem. Eu tenho sessenta anos, e ela era mais nova que eu três anos. Andámos ambas na escola do Sr. abade; mas foi ela somente quem aprendeu a ler. Era muito bonita, e tinha uns ares de cidade, e umas palavras muito doces. Havia de ser da altura de V. Ex.ª Graças a Deus, o francês casou com ela; mas eu — continuou minha mãe com a perdoável ignorância da sua virtude — penso que os casamentos lá na França não são como a nossa religião ordena, e, se é assim, não têm valor aos olhos de Deus.

— Penso que têm, minha senhora — respondeu com afável sorriso a dama. — O Deus dos franceses é, segundo creio, o Deus de todo o mundo.

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— V. Ex.a já lá esteve em França? — perguntou minha mãe.

— Muitos anos, minha senhora. E lá encontrei casados, muito em harmonia com os preceitos da nossa religião santa.

Conhecia­se que ficaram muitas outras perguntas atraves­sadas na garganta de minha mãe; porém a lacónica senhora levantou­se para despedir­se. Minha mãe mostrou­lhe então um rosário, dizendo:

— Peço licença para oferecer a V. Ex.a o mais bonito rosário que tenho dos que fez Rosalinda.

A senhora aceitou­o, remirou­o com sensível comoção, e agradeceu nestas palavras:

— Penhora­me muito esta dádiva.E, passados momentos de recolhida meditação, ajuntou:— Quem sabe se a Rosalinda, que fabricou estas contas, terá

hoje pejo de ter sido a obreira deste bonito lavor?!— É verdade! — disse minha mãe.

* * *

— Se eu estivesse escrevendo este romance, — continuou António Joaquim — havia de guardar para o fim a surpresa ao meu leitor, ocultando­lhe quem fosse a forasteira dama. Assim, em conversação contigo, como não armo ao efeito, desprezei a mola real do engenho.

— E fizeste bem, — disse eu — porque a mola real dos ro­mances engenhosos está a quebrar do muito uso que lhe dão os dramaturgos e novelistas. Alguns cuidam que surpreendem o leitor, e envidam toda a sua habilidade em torcerem o contexto natural dos sucessos para se deliciarem na vaidade de porem o leitor em espanto. Ora o leitor, usado nesta coisa de romances, é que é muito capaz de surpreender o autor, chegando­se ao ouvido dos personagens encapotados até aos olhos, para lhes dizer quem são, donde vêm, onde vão, e o fim que o autor lhes prepara. Com estes leitores assim previstos, o mais acertado e

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modesto é a gente ser sincera. Nada de negaças vãs e ridículas à sua credulidade, que o mesmo é ofendê­los e humilhá­los. Se escrevesses o romance de Rosalinda, bem que habilmente a escondesses na senhora velha, toda a gente se preparava para sair com um sorriso ao recebimento da inopinada notícia. Toma na devida conta e lembrança esta advertência, para o caso possível de escreveres romances.

— Eu?! — acudiu assombrado António Joaquim. — Escrever romances, eu!…

— Quem sabe? Assim como eu tenho o presságio de acabar lavrador, podes tê­lo tu de acabar romancista.

— Nada, não tenho.— Pois melhor, meu amigo. Procura sempre ser útil para

alguma coisa, e ocupa constantemente o teu espírito em qualquer ramo de trabalho; porque, no momento em que a ociosidade te inutilizar, fazes­te escritor ameno, se te não fizeres escritor dilacerante. Paguei os teus conselhos na mesma moeda, que é a mais barata; e, agora, se te parece, vamos à história da Rosalinda. Ficámos no ponto em que ela saiu de tua casa com o rosário, oferecido por tua mãe.

— Uma vez — prosseguiu António Joaquim — perguntou ela a meu pai se algum lavrador lhe venderia terreno em que se construísse uma casa com um jardim, tudo em ponto pequeno, à maneira dos chalets da montanhosa Suíça. Meu pai não sabia o que eram chalets; mas ofereceu­lhe uma bonita chã arrelvada e sombreada de castanheiros. Disse madame que, se lhe vendessem o terreno da casa das conteiras, edificaria naquele local, por lhe agradarem muito as carvalheiras dos arredores. A isto respondeu meu pai que o terreno estava a monte, porque a proprietária dele, se vivia, decerto se não lembrava de tal; e parentes que o reclamassem não havia nenhum. Ajuntou ela que, a todo o tempo, se a dona ou herdeiros do matagal aparecessem, seriam satisfatoriamente embolsados do triplo do valor.

Toda a gente se maravilhou da esquisitice da senhora, e da rapidez com que, de sobre as ruínas, se levantou o mais gracioso

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cottage, modulado por outro que um inglês recentemente edifi­cara em Vizela. Mais espantou ainda passar ela o inverno todo na quinta de meu pai, esperando a ultimação das obras, para as quais se apenaram os melhores mestres.

Fomos no verão de 1851 visitá­la à sua casa, vimos a no­vidade encantadora da mobília de papier mâché, leveira como a decoração de uma gruta de fadas, cujo teto fossem flores, e as paredes labirintos de trepadeiras. No seu gabinete, entre duas estantes de pau­santo, lavradas no gosto antigo, vimos um retrato de corpo inteiro, velado com um transparente escuro, através do qual se entreviam as cores vivas da farda recamada de medalhas e fitas, e pendente da mão direita um chapéu de bicos emplumado.

Minha mãe perguntou se era o retrato do senhor D. Miguel ou D. Pedro, desejando que fosse antes do primeiro daqueles príncipes para lhe fazer oração mental.

A dama respondeu que era o retrato da única pessoa que amara sobre a terra, e amava ainda no céu. Dito isto, saltaram­lhe as lágrimas com tamanho ímpeto, que nos comoveu a todos.

Em 1853, obteve a misteriosa senhora licença para construir um cemitério comum na nossa freguesia. A junta de paró­quia cedeu­lhe o terreno, e ela custeou todas as despesas de complanação, valados, muramento e capela. Mandou fabricar uma sepultura modesta com um gradeamento de ferro, sem inscrição.

Passados meses, chegou a Braga um caixão de chumbo vindo de França com uma ossada, e de ali foi, com o séquito de alguns padres, para a minha freguesia, e encerrado na sepultura que Rosalinda mandara construir. Soube­se que eram os restos da mãe da senhora, e mais nada; mas, volvidos dias, apareceram estas letras de ferro na tampa da sepultura:

aqui jaz maria gomes, nascidan’esta freguezia. em 1760, e fallecidaem pariz em 1820.

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sua filha rosalindamandou erigiresta cruz sobre a sua lousaem 1853.

Meu pai, quando isto leu, foi esbofado contar o que vira à família. Minha mãe, descurando os atavios com que usava visitar a dama, correu a casa de Rosalinda, e rompeu por ali dentro, como no tempo em que a ia chamar para irem de companhia para a escola.

Rosalinda recebeu­a nos braços, apertou­a ao seio, chorou de saudade e de júbilo, falou­lhe as expressões da amizade de infância, era de todo em todo outra mulher, perguntando por tudo e por todas as pessoas falecidas nos quarenta anos decorridos.

Depois, fomos todos; e eu, com o testemunho de minha mãe, contei­lhe os romances que fizera, por conta dela, nas inspiradoras ruínas da sua casa.

Rosalinda narrou miudamente sua vida. O oficial francês, assim que pisou terra de França, casou com ela. Amou­a trinta e dois anos como nos primeiros quinze dias de noivo. Levou­a consigo a todas as batalhas titânicas de Napoleão, dizendo que, a ser ferido mortalmente, queria morrer nos braços da mulher que lhe dera a vida sacrificada na mais ignóbil das lutas da sua carreira de triunfos. O valente chegara ao generalato, e morrera, legando à sua viúva abundantes meios herdados de seus pais.

O povo da freguesia parava, em redor da luxuosa casa, contemplando a riqueza da fidalga, que muitos coevos tinham conhecido a brunir as contas de osso.

Esta admiração gerou a inveja, e a inveja desabafou pela maledicência.

As beatas e os patriotas diziam que a riqueza de Rosalinda a tinha roubado o francês em Portugal.

Asseveravam alguns que ele fora precisamente quem espo­liara os resplendores de meia dúzia de santos de uma igreja

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vizinha, os quais poderiam valer vinte pintos a peso; porém, os sicofantas de socos calculavam que a riqueza de Rosalinda procedia dos resplendores dos santos. Eu surpreendi, uma vez, a canalha nestes cálculos, e resolvi sumariamente o problema com um estadulho. Quebrei as principais cabeças do raciocínio, e a maledicência acomodou­se, com esta sangria às intumescências da inveja estúpida.

Em 1855, recebi em minha casa um excelente moço, que a Regeneração desempregara por ele ter saído em defesa do governo do conde de Tomar. Fora meu condiscípulo João Carlos, e ficámos sempre amigos com regular correspondência. Induzi­o delicadamente a passar comigo um verão, e com boas artes o convenci a passar o inverno.

Apresentei­o a D. Rosalinda, que se lhe afeiçoou mater­nalmente. João Carlos tinha muita instrução, e falava francês corretamente. Rosalinda folgava de relembrar o idioma de seu marido, e praticar em assuntos de literatura com o meu amigo.

Por mim, que não por ele, sabia a senhora a má situação de João Carlos. Consultou­me sobre o modo de ser­lhe útil, sem ressentir­lhe o melindre. Eu não soube aconselhá­la, por conhecer a suscetibilidade demasiada do meu amigo.

Muito instado por minha mãe, João Carlos passou mais um ano connosco, entretendo­se a ensinar português aos meus filhos, e a mim o francês, que eu escassamente sabia traduzir.

D. Rosalinda, no ano seguinte, pediu­lhe se ele ia a Paris vender uns valores bancários, que ela queria realizar, e ultimar com o governo umas liquidações, que seu marido deixara incompletas.

Foi João Carlos a Paris, e demorou­se seis meses, obrigado pela sua constituinte, que o forçava a esperar a conclusão dos seus negócios atravessados de obstáculos.

Quando o meu hóspede voltou, Rosalinda estava doente com funestos sinais. Deu ele conta da sua comissão, honrosa e habilmente desempenhada. A senhora recebeu metade da

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quantia realizada, e cedeu­lhe a outra como estipêndio, e um rico brilhante como gratificação.

— E como esmola que me dá V. Ex.a? — perguntou João Carlos com os olhos alagados de reconhecidas lágrimas.

— Como esmola — respondeu Rosalinda, sorrindo — dou­­lhe este rosário, que eu fiz, quando tinha quinze anos.

Era o rosário, que minha mãe lhe dera.João Carlos beijou­lhe as mãos.Dias depois foi o meu amigo reintegrado no seu emprego,

sem o ter solicitado.Rosalinda, sabendo que ia para Lisboa, chamou­o ao seu

leito de doença, e disse­lhe:— Eu ainda lhe não cassei a procuração, que lhe fiz, Sr. João

Carlos. Preciso dos seus serviços por algum tempo. Tenho vinte dotes de duzentos mil réis para vinte raparigas desafor­tunadas desta freguesia. Quero que o senhor tome a seu cargo inscrevê­las, e fazer­lhes em meu nome as doações, e entrega do dinheiro às dotadas. Quero outrossim dar cem mil réis a cada homem maior de cinquenta anos desta freguesia, porque acertadamente conjeturo que todos os maiores de cinquenta anos se conjuraram, há quarenta, para me queimarem a casa. Necessito vingar­me cristãmente destes patriotas, que quiseram oferecer no altar da pátria às divindades portuguesas minha mãe assada. Como esta gente é má, quem puder empenhe­se em fazê­la melhor; e o mais aprovado expediente para melhorar almas vis é confundi­las e esmagá­las com o peso de algum ouro. Aqui tem, meu amigo, que eu mal posso dispensar os seus serviços por tempo de um ano. Se a minha amizade, até agora inútil, e de mais a mais impertinente, lhe merece algum sacrifício, peço­lhe que fique.

João Carlos ficou. Dirigido por minha mãe, arrolou as raparigas pobres e casadouras, e os velhos maiores de cin­quenta anos. A vontade da doadora teve a dupla satisfação de dotar as filhas dos velhos que lhe haviam incendiado a casa. Deste modo, pais e filhas, a um tempo, ficaram confundidos

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e agradavelmente esmagados na frase de D. Rosalinda. Con­fusão e esmagação que eu e tu, de bom grado, aceitaremos da mão de Deus e dos homens, quando a vingança de céu e terra estalar em raios de cem e duzentos mil réis sobre nossas criminosas cabeças.

É tempo de concluir.A doença de Rosalinda era do coração. Contava ela que

sentira no seio uma dolorosa tremura, quando seu marido fechou os olhos; e, desde aquele trance, nunca mais deixara de confranger­se ao roer dilacerante da morte, no órgão, que fora o manancial e o tesouro das alegrias da sua existência de trinta e seis anos.

Em princípio de 1855, agravaram­se os padecimentos. Rosalinda fez testamento, e, dias depois, morreu subitamente, quando estava contando a João Carlos, em voz débil mas clara, os últimos instantes da glória de Napoleão I.

O herdeiro e testamenteiro de D. Rosalinda foi João Carlos. As joias legou­as a minha mãe e minha mulher. A mim deixou­­me o relógio de seu marido, com o encargo de eu plantar em redor da sua sepultura alguns pés de gesta, arrancados na moita, que ela deixara intacta no seu jardim. Ali fora encontrado o oficial francês.

O valor da herança dispensou João Carlos de servir os ministros, que, da primeira vez, o mandaram pedir esmola; e, da segunda, seriam capazes de mandá­lo enforcar.

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VHISTÓRIA DAS JANELAS FECHADAS HÁ 30 ANOS

— Conta‑me agora uma história sem dinhei­ro — pedi eu ao meu amigo.

— Queres então uma história sentimental?— Isso.— História de sentimento aldeão? Eu não posso contar de

outras. Bem sabes que da vida das cidades nada sei.— Vejamos: pode bem ser que me vás referir coisas muito

originais!— Onde tu vens!… originalidade!— Onde devo ir. Nas cidades é que já não há sentimento

de originalidade nenhuma. As paixões de lá, boas e más, têm tal analogia, que parece haver uma só manivela para todos os corações. Esta identidade é grande parte na monotonia dos meus romances. Há duas ou três situações que, mais ou menos, ressaem no enredo de vinte dos meus volumes, cogitados, estudados, e escritos nas cidades. Quando quero retemperar a imaginação gasta vou caldeá­la à incude do viver campesino. Avoco lembranças da minha infância e adolescência, passadas na aldeia, e até a linguagem me sai de outro feitio, singela sem afetação, casquilha sem os requebrados volteios, que lhe dão os invesados estilistas bucólicos. Assim que descaio em

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dispor as cenas da vida culta, aí vem a verbosidade estrondo­sa, o tom declamatório, as infladas objurgatórias ao vício, ou panegíricos, tirados à força da violentada consciência, a umas inocências e virtudes, que me têm granjeado descréditos de romancista da lua. Conta­me, pois, uma história sentimental, meu amigo.

— É a história das janelas fechadas há trinta anos.— História das janelas fechadas há trinta anos! Aí está já

um título original, se me não engano!— Foi assim o caso. A cena passa­se na minha freguesia.

Eu conheço a tia Felicidade Perpétua, o nome que eu conheço mais contraditório com a vida de sua dona. É uma mulher de cinquenta anos, lavradora remediada, e o mais bela que pode ser mulher de cinquenta anos, com uma paixão de alma, e no tráfego da lavoura, em que a beleza se vai depressa.

Há trinta e dois anos que ela era um modelo para Rafaéis que não pudessem fantasiar belezas. Agora mesmo, acontece­­me fitá­la com não sei que ternura, e digo muitas vezes a minha mãe: — Não há cinquenta anos assim! — «Se tu a visses, quando ela ia de Santa Madalena nas procissões!…» — responde minha mãe.

Começando pelo princípio, deves saber que Felicidade Per­pétua era filha única de um lavrador, cujos bens valeriam entre vinte e cinco a trinta mil cruzados. Criou­a mimosamente o pai, receando que a vida do campo lhe danificasse a delicada compleição. Contava casá­la com lavrador igual em haveres, poupando­a assim a entender no amanho da lavoura. Excelentes casamentos se lhe ofereceram; mas Felicidade, voluntária senhora na escolha, declinava de si o arbítrio, aceitando constrangida o marido que lhe desse o pai.

Com a casa deste lavrador defrontava o maior proprietário da minha freguesia naquele tempo. Era homem de setenta anos, sem família, e cismático. Diziam lá que o pecado lhe amargurava o inverno da vida, traspassando­lhe de remorsos o coração, e enoitecendo­lhe os últimos anos com a escuridade das sombras

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eternas. Este homem, aos quarenta e tantos anos, abandonara uma mulher com uma filha ao peito. A abandonada acabara de desgosto e miséria; a filha ninguém sabia se morrera obscura como nascera, se mão caritativa a levou de entre os andrajos em que morreu a mãe.

— Que tristeza de história! — atalhei eu. — Não ta pedi tão sentimental!… Vai­se parecendo com as histórias das cidades… Eu cuidei que não havia disso nas aldeias, meu amigo!

— Então retiro o conto?— Já agora… Mas carrega o menos que puderes as cores

negras. Esse teu estilo vai­se parecendo com o meu. Quando me falaste da Madalena das procissões, cuidei que me ias encher o peito dos aromas de rosmaninho e alecrim dos espetáculos religiosos do teu alegre Minho. De repente, desluzes a minha expectativa com uns andrajos em que morre uma mulher desvalida com uma filhinha aconchegada do seio morto!… Ora, pelo amor de Deus!… és muito pior romancista que eu!… Se tu visses em que conjunturas eu tenho escrito as novelas, que fazem chorar tua senhora!… Basta dizer­te que escrevo sempre à luz do crepúsculo. Os meus olhos não comportam outra luz. Quando os dias estão lucidíssimos do brilhantismo do sol, eu tomo do favor de Deus a frouxa claridade de um raio coado por transparentes negros. O meu gabinete de trabalho, durante os meses esplêndidos do ano, é um continuado começo de noite. Desta escuridade, muitíssimo de entristecer, difundida em volta de mim, de força a minha imaginação há de sentir­se. A terra sem o sol é uma coisa de fazer pena e aflição, como se ela houvesse de voltar ao caos primitivo: assim é sombria a alma, que não pode banhar­se nos oceanos de luz, que os teus olhos fitam sem dor. Eu afiz­me a ver uma quase noite no mundo exterior: o meu mundo subjetivo está povoado de imaginações escuras. Tu, porém, meu amigo, tão feliz, tão sadio de olhos, tão em contacto com o sol, com as árvores, e ribeiros, e flores, onde aprendeste essa linguagem plangente?! Se me descrevesses os júbilos da peregrina Felicidade sem

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me contares que o lavrador vizinho desamparou a mãe de sua filha…

— É um episódio necessário ao enredo da história.— É? Então, vais agora dizer­me que o lavrador, picado pelo

remorso, foi à procura da filha…— Não: o lavrador, como se visse sozinho, tomou para

feitor um afilhado, filho de um jornaleiro. Este rapaz, que é velho hoje, e se chama Lourenço Pires, foi no seu tempo um gentil mocetão, tocava clarinete nas chulatas, era o benquisto das malhadas e espadeladas, homem para o seu homem, estimado das raparigas, e amado de algumas, que, por amor dele, se fingiram endiabradas para não casarem à vontade dos pais.

Perpétua amou Lourenço. A esquiva, tão requestada dos lavradores abastados, a senhoril menina, que parecia enfeitar­­se para levar o seu dote a uma casa de brasão, amou o feitor do seu vizinho. Contam os velhos que Lourenço, nas noites calmosas, quando o padrinho se fechava com o seu remorso no quarto mais recô­ndito do vasto casarão de cantaria, saía ele ao rossio, copado de carvalhos gigantes, e aí, sentado num toro de madeira, cantava ao arpejo da viola esta e outras coplas sensibilizadoras:

Já fui canário do rei,Já lhe fugi da gaiola;Agora sou pintassilgoDestas meninas de agora.

Parece que é este o estilo que queres…— Assim vais melhor. Essa tolice é muito mais sincera que

outras maiores que se escrevem nas cidades.— É o que eu ia dizer, se o não dissesses tu: e primeiro

exemplo, que me acudia à memória, eras tu mesmo.— Eu?! obrigado!… Aproveito a ocasião de saber quando

fui mais tolo que o Sr. Lourenço Pires.

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— Quando escreveste e publicaste uma poesia com estes três versos:

Sou um mártir do amor;Sou um anjo sofredor;Nem um prazer me sorri!

Isto é teu?— Deve ser: não há parvoiçada que eu não tenha escrito.— Pois bem: Lourenço Pires, dizendo que era pintassilgo,

foi menos irrisório que tu, dizendo que eras anjo. Anjo, tu!… que anjo!… No tempo em que decretaste a tua angelização, foi que eu te conheci a comer ostras cruas na Águia de Ouro. Olha se te lembras!… Comecei então a descrer dos poetas, e a crer nas ostras…

— Lembro­me muito bem, meu amigo. Foi então que eu estraguei o fígado e o baço. Os três versos, que ultrajas com sensata ironia, revelam amolecimento de cérebro. Ora agora, quando entenderes que o anjo está sobejamente castigado, conta­me a história do pintassilgo.

— Foi amado, amado como todos os tolos, que vão direitos ao coração da mulher por caminhos desembargados de senso comum.

Lourenço, animado por ela, pediu­a ao pai.O velho cuidou de morrer de assombro e angústia, quando

Felicidade Perpétua lhe disse que não casaria com outro… Agora vais ouvir um relanço tristíssimo deste conto. Dir­to­ei breve e secamente. Passados alguns meses, a moça, coberta de lágrimas, disse ao pai o quer que foi tão aflitivo, que o velho saiu a brados pelos campos além e, passou três dias e três noites fora de casa. Trouxeram­no em uma maca, já quando a febre lhe tirara o tino. Viu a filha, e não a reconheceu. Cobrou os sentidos para perdoar­lhe; e, perdoando­lhe, expirou.

Perpétua desfez­se em pranto sincero; mas a vindicta pública, apesar do perdão do pai, não lhe perdoou. A desgraça

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da rapariga era notória. Saíram contra ela as mães de famílias, apontando­a como exemplo, e escalavrando a chaga da desonra para lhe tornarem mais visível o esqualor e a fealdade aos olhos das filhas. Estas, que a tinham em ódio à conta dos seus ares de senhora e jeitos dengosos, vingavam­se enxovalhando­a com remoques e risos.

Perpétua apressou­se em correr os banhos para casar com Lourenço Pires. O rapaz, contente dos sucessos que lhe trouxe­ram à mão uma bela moça e uma boa casa de bens, foi falar ao abade, e apresentou as suas certidões.

Na primeira dominga, quando o abade acabava de ler o proclama, saiu de entre o povo uma rapariga de outra fre­guesia; e, parando no arco da igreja, apregoou que Lourenço Pires lhe prometera casamento com aleivosia e roubo de sua honestidade.

Houve grande reboliço. Perpétua, que assistia à missa no recanto escuro de entre a pia de água­benta e o confessionário, saiu da igreja em soluços. Lourenço…

— O pintassilgo… — atalhei eu com rancor ao maldito, que devia, na ordem das aves, chamar­se abutre.

— O pintassilgo também se escoou por outra porta a fumegar de raiva. O abade aquietou a desordem e chiadeira das mulheres, que meteram a riso o escândalo, e continuou a missa. Depois, chamou a mulher, que saiu aos banhos, arrolou testemunhas, e instaurou o processo, que foi para a câmara eclesiástica de Braga.

Perpétua foi procurar o valimento de minha família, e desamparou a casa. Meu pai foi em Braga o solicitador da demanda de Lourenço Pires. As provas contra o sedutor eram frouxas, e contraminadas por testemunhas, que de­punham contra a honestidade da atravessadora. O processo, vilipendioso acervo de vergonhosas publicidades, como costumam ser estas reclamações da chamada honra, esteve mais de um ano sem despacho. No entretanto, Felicidade, escondida à zombaria estúpida e cruel do gentio da aldeia,

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achou misericórdia em minha mãe, e olhos de piedoso amor para a verem com um filhinho nos braços, do qual foram padrinhos meus pais.

Neste tempo, de uma terra, dez léguas afastada da nossa, veio um padre procurar o lavrador, padrinho de Lourenço.

Este padre veio dar ao homem dos remorsos a nova da existência de uma mulher de vinte e tantos anos, filha de uma tal Quitéria, que, antes de morrer, numa aldeia das abas do Gerês, pedira a outro padre que lhe escrevesse a sua história, para, a todo tempo, a filha saber quem era seu pai. A qual história, o padre, que a escreveu, conservou em seu poder para entregá­la à moça, quando ela soubesse dar valor à notícia do seu nascimento. Como quer, porém, que o historiador falecesse, antes do tempo oportuno para confiar da rapariga o importante escrito, e a família do falecido nenhum caso fizesse do papel envolvido noutros sem valia, decorreram vinte anos até que outro clérigo da mesma família, examinando papéis velhos que as tias destinavam ao forro das massarocas de fiação, encontrou aquele, e averiguou com grande custo a residência de Maria, filha de Quitéria.

De paragem em paragem, foi encontrá­la na comarca de Montalegre, servindo uns lavradores, com bom conceito, e esti­mação de seus amos. Outro padre desta família tomou conta do escrito, ditado pela moribunda Quitéria, com tais pormenores, que o velho lavrador, ouvindo a leitura dos conselhos que o historiador, porventura, em nome da desgraçada mãe, dava de além­túmulo a sua filha, rompeu em clamores e confissões, pedindo que lhe trouxessem a sua filha com brevidade, antes que o demónio o colhesse, sem ele merecer o perdão de suas culpas enormes.

Volvidos poucos dias, o rico lavrador recebia em casa a filha, e, no delírio do seu contentamento, lançava­lhe ao pescoço quatrocentos mil réis de cordões de ouro, com uns corações tamanhos, que o arquejar do peito alvoroçado da moça não os fazia sequer tremer.

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Maria Martins era, desde esta hora, a maior herdeira daquela corda do Minho; mas, em desconto, podia gabar­se de ser a mais feia mulher da província.

Ainda agora, quando a encontro, digo entre mim: «Enquanto esta mulher viver, o horror ideal da fealdade humana é im­possível!»

Era a cara do pai, segundo dizem, correta pelas parcas.

* * *

— Este demónio — continuou António Joaquim — namorou­­se do afilhado de seu pai. Era Lourenço Pires um bruto fatal! Se não fosse o sortilégio da viola e do clarinete, eu havia de cuidar que ele espedia dos olhos torrentes magnéticas! Pelos modos, mulher que o encarasse a fito, sentia­se logo empestada de amor.

Maria Pires, sem embargo do pleito litigado em Braga, não teve mão de si. Declarou­se ao pai, que não achou despropo­sitada a declaração: contudo, observou­lhe que Lourenço havia de casar com uma das duas raparigas, assim que se decidisse a questão em Braga.

Não desistiu Maria, nem Lourenço se esquivou aos avanços cariciosos da ricaça, que, todos os domingos, com beneplácito do pai, atacado de idiotia incipiente, se arreava de ouro, e punha quatro lenços de seda escarlate uns por cima dos outros.

Diz­me tu se Lourenço era fatal ou não!… Alguns morga­dos, com perdão de seus preclaros avós, foram pedir Maria. O lavrador deixava a decisão à filha; e ela, com o desplante de mulher fascinada, dizia que o escolhido do seu coração era Lourenço.

Uma vez estava ele na eira assoalhando uns feijões, e Maria andava na horta colhendo couves.

Que painel inédito! Se os paisagistas se aproveitassem desta encantadora coisa!

Maria, ao saltar o portelo da horta para a eira, deixou cair do regaço um ramo de flores muito feias, que a natureza fizera

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para ela: eram girassóis e malmequeres. Lourenço reparou, e disse com intenção:

— P’ra quem é o ramo?— P’ra quem o merece.— Não sou eu?— Ou será ou não.— Veja lá o que diz, Sr.a Mariquinhas!…— O que disse está dito, Sr. Lourenço.Neste momento, a questão de Braga decidiu­se contra as duas

litigantes. O filho do jornaleiro alongou os olhos da alma por sobre as cortinhas, e leiras, e montados da futura herdeira de Joaquim Martins. «Tudo isto pode ser teu!» — disse o demónio à alma abjeta do vilão. E logo a fisionomia meiga e lagrimosa de Felicidade sumiu­se nas costas da mazorra mulher, que se ficara a deliciar­se na contemplação do alarve querido. Levantara ela as flores do chão, e deu­lhas com um sorriso alvar que faria chorar de nojo um sátiro. Lourenço pendurou as flores nas casas dos botões do colete, e disse umas graçolas amoráveis, com que a rapariga saiu dali contendo a custo as cabriolas do coração. Contou ao pai o sucedido; e o velho, cada hora mais tonto, alegrou­se com a rapariga.

A relação eclesiástica dispensou no casamento de Louren­ço com Felicidade. Meu pai fez saber a fausta nova ao rapaz, que se mostrou pouco alvorotado com a notícia. A jubilosa mulher, nossa hóspede, foi logo para sua casa, com o filhinho de oito meses, tratar dos preparos domésticos para receber o esposo. O abade, sem consultar o contraente, leu o segundo banho. Lourenço desaparece então da aldeia, e ninguém sabe o seu destino.

Dizia­se que ele, arrastado pela mão da Providência, fora casar­se com a primeira seduzida. Felicidade voltou para casa de minha mãe em desesperadas ânsias.

Passados dias, sabe­se que Lourenço, mediante algumas peças tiradas da arca do padrinho por mão da presuntiva herdeira, conseguira em Braga licença para casar­se com Maria Martins

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em qualquer freguesia do arcebispado. Quando a nova chegou, já o cínico estúpido estava casado. Alguns parentes de Felicidade fazem­lhe cerco à casa para o matarem. O pai da noiva ouve os tiros, que lhe lascam as janelas, e perde de todo o tino. Da demência à morte mediaram poucos dias.

Lourenço fugiu com a mulher para uns bens que tinham em Cabeceiras de Basto, e por lá ficam um ano.

Neste decurso de tempo, Felicidade, cuidando que se vinga, pensa em casar­se. O extremo da angústia é isto: a morte não é tanto.

Encontra um marido: é o filho de um lavrador pobre, uma boa alma que a Providência lhe teria enviado, se a Providência costumasse colaborar nestes romances do género humano, com peripécias sem originalidade nenhuma. Este homem acaricia o filho de Felicidade com paternal ternura. Se a vê chorar, quer beber­lhe as lágrimas; mas ela chora sempre. E, depois, a penitente não permite que se abram as janelas que defrontam com a casa de Lourenço Pires. O marido respeita a vontade imperiosa de sua mulher; e nunca mais a luz do sol aqueceu o pavimento húmido daquela casa.

Trinta anos rodaram: Felicidade envelhece: tem já filhos homens; as portadas da janela já estão carcomidas; mas nem uma só hora entrou por elas o ar aos quartos, que se vão desfazendo e ruindo a pedaços.

São, pois, passados trinta anos.É tempo de irmos procurar em casa de Lourenço Pires a

justiça do céu.Teve ele quatro filhos de sua mulher Maria Martins.Falaremos, primeiramente, da mulher. A alma parece que

andava à competência com o corpo a ver qual se tornava mais repelente. Assim que viu o marido atassalhado de remorsos, que lhe tiraram não só a graça, mas até a embocadura do clarinete, começou a agarrochá­lo com interrogações brutais, a que ele, numa hora de impaciência, respondeu com alguns murros. Com o andar dos tempos, e o crescimento da bílis derrancada

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da mulher, o exasperado marido apelou do murro para o pau, e moeu­a, como quem aligeirava, sovando­a, o peso dos seus pecados. Afinal, a derreada criatura amoleceu de condição, e fugia já do marido como de um furioso. Lourenço, assim que enxergava Felicidade, com os seus sete filhos, alegres, e em volta da mãe como sete serafins consoladores, escondia­se para chorar, e fugia para que ela o não visse. Uma vez, quando o primeiro filho de Felicidade passava sozinho por ele, quis abraçá­­lo; mas a criança de sete anos partiu de corrida chamando a mãe a grandes brados.

Os quatro filhos legítimos de Lourenço eram como os quatro cachorros de um casal de lobos. Desde a infância denotaram ferocidade de instintos. Dentavam­se uns aos outros, e mordiam a cara da mãe.

O pai destinara um ao sacerdócio, outro à medicina, outro a leis, e o quarto para senhor da casa.

O mais velho, aos dezoito anos, depois de dar irrefragável testemunho da sua incapacidade para as letras, entrou na car­reira das armas. Passado um ano de vida suja de escândalos e bargantarias do último plebeísmo, obteve a baixa, e apresentou­­se em casa reclamando dinheiro para negociar em aguardente. O pai temeu­o, e deu­lhe dinheiro, que ele desbaratou na liber­tinagem, e voltou para casa, a furtar o que de boa vontade lhe não davam. Este era o filho destinado para o sacerdócio.

O médico em perspetiva, reprovado no primeiro ano, bestificou­se com a embriaguez de três anos sucessivos, em que não voltou a casa. Foi o pai levantá­lo dos chiqueiros de Coimbra, e trouxe­o para si. O rapaz continuou na vinolência; e, num dos frequentes acessos, abocou uma clavina à cara do pai, cedendo­lhe a vida a troco de um garrafão de jeropiga. Este desgraçado teve a felicidade de morrer afogado num poço, onde quis refrigerar as escandecências da embriaguez.

O terceiro filho, enviado a estudar leis, consumiu seis anos em preparatórios, e fechou o curso com três rr em latim. Recolheu a casa denominando­se doutor. O pai abraçou­o,

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intitulando­o a sua consolação. Um dia, como fosse a Braga, e falasse no seu filho doutor, um informador sem alma contou­­lhe as proezas do rapaz. Lourenço exprobrou a mentira ao filho, enfuriou­se, quis tirar­lhe a formatura das costas com um estadulho; mas o latinista dos sete anos lançou mão ao bacamarte do irmão de avinhada memória, e respondeu com heroico peito ao fueiro ameaçador.

O quarto filho, destinado a ficar na casa, foi a uma romaria, viu lá uma cantadeira de boas lembranças, gostou do engenho trovista da moça, e apaixonou­se. Seguiu­a à sua freguesia, sem impedimento de lhe dizerem que ela era uma pobre jornaleira, viciosa, e desprezível. Levou­a consigo para a terra, e pediu ao abade que os casasse. Lourenço, avisado desta ignomínia, fez arrebatar a moça do casebre em que vi­via. O filho foi rebuscá­la, depois de ter roubado os cordões da mãe, e o mais que pô­de. Andou por esse mundo seis meses, e voltou com ela mui legalmente casado, a residir na companhia da mãe, que se escondia nas tulhas aterrada das ameaças da nora.

A casa do opulento lavrador, pai de Maria, está reduzida a menos que os bens de Felicidade Perpétua.

Lourenço Pires faz compaixão à gente que lhe votara ódio. Os três filhos, todos empobrecidos, insultam­no. E ele, ferido de demência, treme no meio deles, ou foge assim que lhes ouve os passos.

Quando dá de rosto nas cinco janelas fechadas da casa fronteira, muge como touro farpeado. A outra mulher, que ele havia perdido, mendiga coberta de farrapos, espera­o, espreita­­o, aparece­lhe de repente, e solta­lhe em face uma gargalhada, que o afugenta. Isto repete­se todas as semanas há dez anos. E este homem vive! Tem cinquenta anos; o cavado do rosto e curva da espinha denotam a decrepidez do criminoso, acor­rentado ao cadafalso da vida. O desprezo dos filhos até o pão lhe nega. Dizem­me que este desgraçado tem tido fome. Se vai queixar­se às justiças, incute piedade; mas ninguém ousa bater

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às portas dos três corações de bronze, que saíram das entranhas amaldiçoadas de tal pai.

Agora, vamos a casa de Felicidade Perpétua.As lágrimas desta mulher, em cuja face brilha o resplendor

da penitente perdoada, caem no regaço de suas humildes filhas. O mais velho, querido dos filhos de outro pai, é o diretor dos trabalhos da lavoura, e o mais trabalhador na casa, que toda é de seus irmãos, ou onde ele tem pequeníssimo quinhão. Há muitos anos que morreu o marido de Felicidade; e, à última hora, pediu a sua mulher que poupasse muito para deixar bem o filho, que não era dele.

Três meninos foram para o Brasil, e todos prosperaram, guiados pelos ditames da honra. Parece que aporfiam em brindar seus irmãos e mãe com dádivas e dinheiro, com que a casa se vai aumentando. O seu irmão mais velho é contem­plado sem distinção dos outros. As raparigas são as pérolas da minha freguesia: a formosura desaparece nelas, quando a gente as contempla na beleza da virtude.

E, ainda assim, as janelas nunca mais se abriram, e Felici­dade ainda tem lágrimas!

Eu queria poder dizer­te o que vai naquela alma de miste­riosa angústia, quando improvisamente lhe aparece Lourenço Pires, o ancião, cujo tardio andar é como se levasse de rojo a pedra da sepultura, procurando terra onde esconder­se com a sua dilacerante agonia.

Não sei o que ela pensa.Presenciei um dia que minha mãe, na presença de Felicidade,

lastimava o miserável fim de Lourenço. A triste mulher pô­s as mãos suplicantes, e disse: «Deus sabe que eu lhe peço todos os dias que leve para si aquele infeliz!»

De outra vez me disse minha mãe que ela ordenara ao filho que não fugisse de seu pai; pelo contrário, lhe falasse com amor.

Depois disto, vi eu, numa fechada mata onde andava caçando, Lourenço Pires sentado à beira de seu filho, que o

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contemplava silencioso. O ancião, de vez em quando, tomava­­lhe as mãos, e beijava­lhas, balbuciando palavras, que eu não pude entender.

Perguntei ao afilhado de meu pai o que lhe dizia o velho. Respondeu­me que eram palavras desatadas; mas que chorava muito, e lhe pedia perdão.

Aqui tens a história sentimental. Deus me livre de a ler em seis volumes escrita por ti, e Deus livre os teus leitores de que este conto lembre à tua memória, quando tiveres a imaginação cansada.

Estamos na Amarante — acrescentou António Joaquim. — Apeemos da liteira, e vamos aqui procurar o nosso Vasco Peixoto, que é o proprietário de um torrão, transportado do paraíso terrestre, com uma planta de pêssegos. Não sei se frei Bernardo de Brito o assevera; mas os pêssegos de Vasco Peixoto são descendentes por varonia daquele pomo que fez pecar Eva e seu marido 1.

1 Vasco peixoto já não vivia, quando este livro entrava em reimpressão. oxalá que seus herdeiros não descultivem os celebrados pessegueiros, que ficaram rememo-rando o préstimo do seu esmerado cultor.Há muito quem de si não deixe tão gratas memórias. as folhas de uma árvore tão docemente produtiva dizem mais em louvor de quem a plantou que as folhas do mais encomiástico livro. [Nota do A. na 2.ª edição.]

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VIA CRUZ DO OUTEIRO

pernoitámos, em amarante, numa estalagem, onde eu, anos antes, tinha visto três belas criaturas, filhas de uma grave e redonda mulher, dona da hospedaria.

Mãe e filhas tinham dispersado: era já de outra família a propriedade do hotel, que renunciara ao lusitaníssimo nome de estalagem da ***. O nome possessivo é que, sem embargo de ser português de lei, não pode ser escrito nesta crónica imorredoura: ficará eterno na memória dos estudantes, que, há vinte anos, por ali deixaram os corações próprios, e os ossos das enormes galinhas que esbrugaram.

Pedi notícias das antigas possuidoras da saudosa estalagem. Disseram­me que a mãe se retirara a descansar no gozo das suas propriedades; que duas filhas haviam casado abastadas e honradamente; e que a terceira… Que dor de coração, que história tão repelente!… Não se conta! É preciso transpor muito lodaçal de sangue e lágrimas para chegarmos da alcova recatada de uma mulher sem mancha até ao grabato de um hospital, paragem extrema da devassidão desvalida. Não há, pois, história para a desgraçada, que os académicos de há quinze anos deno­minávamos a «flor do Tâmega». A Divina Providência abriu os seus imensos tesouros de misericórdia, matando­a.

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Vimos nascer o sol do dia seguinte nas alturas de Pildre. De ali, com o óculo do meu amigo, procurei entre as ramagens as ameias do manuelino portal da casa de Frigim. Esta casa fora de José Augusto Pinto de Magalhães, cavalheiro que abriu no Porto, há dez anos, uma crónica de infortúnios, e se fechou com ela numa vala do cemitério do Alto de S. João, em Lisboa. Naquela casa tinha eu passado uma noite, há doze anos. Referi a António Joaquim a tragédia misteriosa de José Augusto. Caía a propósito contá­la aqui ao leitor; mas, no mês que vem, há de boiar «no rio do negro esquecimento e eterno sono» mais um livro meu, desvelando a face enigmática daquela grande desventura, que o mundo impiedoso quis explicar com uma calúnia maior.

Quando avistámos o edifício majestoso de Alemtém, o meu amigo mandou­me apontar o óculo a um topo de outeiro, em que se avistava uma cruz alpendrada, com seu lampadário pendente do dossel de abóbada.

— Tem um bonito romance aquela cruz — disse António Joaquim. — Chamo­lhe eu bonito, porque encerra uma sublima­da filosofia. Eu vim ali, há tempos, comprar um potro naquela freguesia, e conheci, em casa do comprador, um sujeito, pequeno lavrador, a quem os da terra chamam o «Manuel brasileiro». Pelos trajos, encodeados de terra e remendados, entendi que o epíteto de brasileiro era epigrama popular com que a gentalha costuma alcunhar os patrícios que voltaram pobres do Brasil.

Contou­me outro lavrador o caso assim:Quando Manuel da Mó tinha vinte anos, e granjeava ale­

gre e abastadamente as suas terras, chegaram à freguesia dois brasileiros filhos de um caseiro e compraram bens pelo triplo do valor, e levantaram casas apalaçadas, que eram um folgar de olhos, e grande mortificação da inveja.

Manuel, desde que os brasileiros chegaram, perdeu o contentamento, e o sono, e a vontade de comer. A sua ideia flageladora era ir ao Brasil. A sexagenária mãe chorava dia e noite, desde que o rapaz, filho único, aventou o propósito de ir

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buscar dinheiro com que fabricar uma casa igual à dos vizinhos, e arrotear montes, e abrir minas, que se desentranhassem em levadas de água sobre as terras improdutivas pela secura. Não o contiveram lástimas da velha, nem as lamúrias da Marcolina do Eirô­, sua conversada de dois anos, seu primeiro amor, bonita de uma vez, e dotada com dez contos, e seis cordões de ouro.

Pediu Manuel cartas de recomendação aos brasileiros, que sinceramente quiseram despersuadi­lo do intento. Disseram­lhe que ia tarde para o Brasil; que era refinada doidice deixar a pátria e os bens para ir granjear outros num clima doentio; que a pobreza desculpa a ambição de quem deixa a família, e vai jogar a vida em procurar­lhe amparo; mas que Manuel, lavrador remediado, nenhuma desculpa tinha, deixando sua velha mãe a cuidar das terras. Descreveram­lhe, depois, os trabalhos por que eles haviam passado até ganharem inde­pendência, depois de labutarem trinta anos, sacrificando os prazeres de quase uma vida inteira à esperança de repousarem no último quartel. Repisaram neste ponto, amiudando, uma a uma, as amarguras do caríssimo fruto com que voltavam do Brasil os poucos, que vingavam colhê­lo, comparativamente aos muitos, que lá sucumbiam pobríssimos, desamparados, e esmagados debaixo de um peso de trabalho, que a pátria não impõe ao mais desvalido de seus filhos. Perguntavam­lhe os sinceros conselheiros se mereceria a pena gastar os melhores trinta anos da existência, com a forçada renúncia dos gozos dela, no demorado granjeio de alguns punhados de ouro, que se hão de aproveitar em prazeres, quando já não há vontade de gozá­los, e, a cada passo, as doenças estão lembrando ao velho, rico e triste, que a sepultura se lhe está cavando!…

Nenhuma impressão calou no espírito de Manuel da Mó. De si para si, cogitou ele que os brasileiros não queriam quem lhes fizesse sombra; fechou­se com as suas suspeitas, e foi a outras freguesias pedir cartas recomendatórias. Em toda a parte lhe saíram as prudentes advertências dos experimentados; todavia, todos lhe deram cartas.

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Marcolina do Eirô­ fez o derradeiro esforço, ameaçando o fugitivo rapaz de envenenar­se com rosalgar, ou casar­se com outro. Manuel, cego de cobiça, tanto se lhe importava que Mar­colina fosse ajoelhar com o João da tia Custódia, ou o Bento da Lomba, no arco da igreja, como que lançasse os fígados e os bofes dilacerados pelo arsénico. Furtivamente entrouxou o seu fatinho, legalizou o seu passaporte, e embarcou.

Porém, na véspera da saída, passando ele acolá no alto do outeiro, onde viste a cruz, fez oração a Deus, pedindo­lhe que o ajudasse a voltar rico para a sua terra, que ele man­daria erguer ali um cruzeiro com seu alpendre; e, enquanto fosse vivo, todas as noites alimentaria de azeite a lâmpada do santuário.

— Então, está claro que voltou rico! — disse eu.— Lá vamos. Foi o homem entregar as suas cartas, e

perguntaram­lhe os negociantes, todos pela mesma voz, que ofício tinha. Manuel só então descobriu que não tinha ofício nenhum. Quereria ele responder que o seu ofício era enriquecer­­se o mais breve que pudesse ser; mas os interrogadores não lhe davam tempo à resposta. Até que, à última pergunta, respondeu que saíra de casa para negociante. A isto, respondeu­­lhe o espantado sujeito que negociasse, e se estabelecesse, depois de apresentar cartas de crédito, se ele não trouxera de Portugal o casco do negócio. Manuel, quando lhe falaram em casco, devia de olhar para os quatro pés, e convencer­se de que tinha farta cascaria.

Acabaram­se­lhe uns pintos, que levara de casa, no calca­nhar da meia em que a mãe os tinha, e o rapaz não achara ocupação. Com as lágrimas nos olhos, revelou a penúria em que se via a um dos indivíduos a quem dera uma carta, e que mais de bom rosto o recebera. O negociante, que tinha umas fazendas em Cantagalo, mandou­o trabalhar de enxada nas plantações do café, com ordenado de dez mil réis por mês. O rapaz não esperou pela primeira mensalidade: o brasido das matas virgens em fogueira, e o do sol, que lhe batia de chapa

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no costado, deram­lhe uma ideia do inferno. O pobre homem, alagado de suor, lembrava­se da fresquidão das suas bouças, das relvas dos seus campos, dos dois carvalhos seculares, que lhe toldavam de ramarias a sua casinha, à ourela de um ribeiro. E chorava, amaldiçoando a riqueza dos seus vizinhos brasileiros, e esquecendo que devia abençoá­los pelos conselhos que lhe deram.

Voltou Manuel ao Rio, pedindo remédio a outro negociante, que generosamente lhe ofereceu abono para passar a Portugal, visto que nenhum modo de vida se lhe deparava ajeitado.

— Mas eu hei de ir como vim? — perguntou Manuel da Mó.

— Não, senhor; você há de ir pior do que veio — respondeu o negociante.

O rapaz doeu­se do sarcasmo desconsolador, e disse que havia de trabalhar até morrer; mas que para a terra não vol­taria pobre.

— Pois então — replicou o negociante — deixasse­se estar nas fazendas de Cantagalo, que o sítio lá é azado para morrer depressa.

— Eu queria ser caixeiro — disse Manuel.— Escreva aí o seu nome — disse o negociante.Manuel pegou da pena como quem pega numa verruma, e

furou o papel três vezes antes de escrever o M.— Está bom, está bom; — acudiu o outro, sorrindo — já vejo

que tem uma letra inglesa!… E quer você ser caixeiro! Estava mais talhado para professor de primeiras letras. Quem escreve assim, o que deve é ensinar a escrever. Vejamos como está de contas. Faça aí uma operação de quebrados. Ponha lá…

Manuel esbugalhou os olhos, e exclamou:— O quê?— Você sabe a regra de três? sabe as quatro operações

aritméticas?— Eu não sei nada disso, senhor!— Pois não sabe fazer contas?!

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— Sei cá p’ra me remediar; mas lá disso de… como é?… a gente, quando lhe faz minga, conta pelos dedos.

— Ora, meu amigo, — redarguiu o compassivo português — vá­se embora; fuja do Brasil, se cá não quer dar a ossada. Você não tem senão o recurso da enxada; enxada por enxada, vá trabalhar na sua terra: um jornal de quatro vinténs por dia é lá melhor que três patacas no Brasil.

— Graças a Deus eu tenho bens meus onde trabalhar — replicou Manuel. — As minhas terras valem oitenta centos.

— Pois você é lavrador, tem bens, e vem para o Brasil pro­curar fortuna? Sabe que mais, se não quer ir para Portugal, vá para o diabo, que eu não questiono com doidos.

Manuel saiu confundido e com a alma de negro. Não falando já nos pretos que via, tudo lhe parecia da cor da alma.

A ambição dera­lhe ao espírito uma têmpera de ferro. Parecia­­lhe impossível estar ele no Rio de Janeiro, e sentir precisão de comer, e não ter uma pataca. Passeava ele nas ruas de Quitanda e do Ouvidor. Escutava o tinido do ouro e prata a jorrar em ondas brancas e amarelas nos balcões. Era Plutus, o demónio ou o deus zombeteiro da riqueza, a fazer­lhe trejeitos de dentro das lojas repletas de maravilhas. O infeliz embasbacava diante das vidraças dos joalheiros; até os brilhantes refulgentes se lhe refrangiam em negridão na alma!

Assalteavam­no ímpetos de raiva àqueles homens que o viam assim pasmado, e o remiravam, como se lhe vissem nos olhos um projeto de ataque à propriedade.

Numa dessas excursões, Manuel da Mó julgou que via um rapaz de uma freguesia vizinha. Animou­se a perguntar­lhe se era o Francisco Tamanqueiro. O outro encarou­o de má catadura, e disse­lhe:

— Eu chamo­me Francisco António Guimarães Coelho.— Então perdoará: eu cuidei que vossemecê era um rapaz

da minha terra.Era de feito; mas o apelido de tamanqueiro, que lhe vinha

do ofício do pai, destoou aos ouvidos do caixeiro, que se fizera

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Guimarães Coelho para dar à sua assinatura uma tal qual eufonia, que lhe permitisse, alguma hora, ser visconde de Guimarães, ou barão de Coelho.

Manuel foi indo seu caminho; e, pouco depois, achou­se nos braços de um homem mal enroupado, que lhe bradou:

— Tu por cá, Manuel da Mó?… Não me conheces?! Eu sou o Caetano da Chã dos Codessos!

Manuel olhou­o de alto a baixo duas vezes, e murmurou com certa frieza:

— Vai­te mal a vida por cá?— Mal!… Tenho tido fome de palmo, Manuel! Raios par­

tam quem me meteu na cabeça vir para o Brasil. Estou cá há três anos; ano e meio tenho­o passado no hospital; e o outro não ganho p’ra comer, e mais trabalho ora de carroceiro ora de pedreiro. Por mais que faça, não arranjo para a passagem. Agora ando a ver se vou trabalhar para a Nova Friburgo, a fim de arranjar trinta mil réis para a passagem. E tu, conta­me a tua vida, tinhas uma casa de bens tão bonita, e vieste cá dar com os ossos!… Pagas tu o jantar?

— Não tenho um vintém — disse Manuel, limpando as lágrimas.

O outro desgraçado foi com ele a uma taverna, e matou­lhe a fome naquele dia. Depois levou­o consigo a título de pedreiro, e assegurou­lhe a subsistência por dois meses, no fim dos quais Manuel adoeceu da febre, e esteve à morte.

Graças à caridade do negociante, que zombara dele em matéria de caligrafia e contabilidade, Manuel convalesceu, tra­tado cuidadosamente, e resolveu voltar à pátria. Reconhecido à bondade do patrício, que o inventara pedreiro, aceitou o abono para ambos se transportarem.

Quando apareceu inesperadamente em casa, era ainda viva a mãe, e solteira a Marcolina do Eirô­. Recebeu­o a mãe sobre o coração; e a moça, sabendo que ele se escondia, de envergonhado, foi ela procurá­lo, e asseverar­lhe que o seu peito era ainda o mesmo, se ele queria continuar a conversar

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com ela. Estas honestas conversações pegaram noutras de mais santas e louváveis delícias. Manuel casou, e achou­se de sobra remunerado dos dissabores de um ano no país do ouro e da escravidão.

— Mas a cruz? — atalhei eu — quem mandou erigir a cruz?

— Foi o Manuel da Mó. Disse­me ele que cumprira o voto que fizera antes de ir para o Brasil, porque viera de lá com tamanha riqueza que não invejava a riqueza de ninguém, e por isso se considerava o homem mais rico da terra. Quer ele dizer que a experiência do mundo, e particularmente a experiência da vida amargurada de quem vai enriquecer­se ao Brasil, é um tesouro que Deus concede àqueles a quem quer dar o desapego dos bens desnecessários à verdadeira felicidade.

Aqui tens — concluiu António Joaquim — porque eu te disse que a história daquela cruz tem sublime filosofia, que nem todos os cristãos lhe descobrem.

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VIIA GRATIDÃO

— Ocorre-me outra história de brasileiro — pros­seguiu António Joaquim — e parece­me que depois me hão de ocorrer mais três histórias da mesma espécie.

— O que aí vem! — acudi eu comovido de júbilo. — Como eu te amo, António! Tu és uma flor, uma biblioteca das damas inédita! Vejo que o teu estudo especial são os brasileiros bons e honrados.

Ainda bem! — reflexiono eu agora. — Há doze anos, as letras pátrias, particularmente as do folhetim, gracejavam com os brasi‑leiros, enquanto o artigo­de­fundo afetuosamente os denominava os nossos irmãos de além­mar, com expressões de tamanha e tão saudosa ternura, que era um partir­se a alma de ouvi­los! Depois, os folhetinistas propriamente, como envelhecessem e ganhassem juízo, passaram para o artigo­de­fundo, ao passo que os antigos articulistas se fizeram, uns, diplomatas como Cunha Sotomaior, e João Coelho; outros, ministros como António de Serpa, e Mendes Leal; outros, bispos, como António Alves Martins. E os folhetinistas, esperançados em serem diplomatas, ministros e bispos, começaram por fazerem­se, primeiro de tudo, sisudos, circunspectos, e amigos de toda a gente que conduz a Portugal uma onda aurífera do Pactolo, dinheiro vulgarmente chamado.

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Não podia deixar de ser assim isto.A humanidade entrou em refundição, nestes últimos anos, e

converteu­se em valores. O homem já não é animal bípede im­plume, nem rei da criação, nem homem: é moeda. O que por ora lhe não fazem é tocá­lo sobre um balcão a ver se ele tine bem, e dá os quilates legais; mas, com o decurso dos descobrimentos, há de inventar­se um qualquer instrumento, mediante o qual se determine rigorosamente as libras que cada pessoa tem na algibeira e as que deixou em casa. Este instrumento há de dispensar a boa­­fé necessária nos contratos, a probidade comercial, e as custosas informações que se tiram dos sujeitos de «fortuna» equívoca.

Nesses futuros e auspiciosos dias, que eu tenho a honra e glória de profetizar ao género humano, os pais de meninas desposáveis não hão de ser enganados pelos genros, nem os genros pelos sogros; o capitalista saberá, a ponto, se o acei­tante da letra está endinheirado na véspera do vencimento; a prima­dona observará de antemão se o empresário premedita, caloteá­la na melhor boa­fé de empresário insolvente. É um sem­número de vantagens sociais a promanarem da invenção do instrumento, que poderá chamar­se numímetro, de numus, «dinheiro», e metron, «medida».

Tudo nos anuncia o próximo aparecimento do numímetro. É preciso que se invente alguma coisa que supra a falta da lealdade nos contratos, a qual se há de ir quebrantando à medida que a religião, forja onde se caldeiam e depuram as consciências, se for desluzindo.

Pelos modos, lá da França continua a soprar o furacão da impiedade. Os imberbes começam a entender o Renan; e, se mais o não louvam, é porque ele foi moderado nos insultos a Jesus Cristo. Daqui a pouco, esta mocidade será menos polida com o Redentor; e, volvidos vinte anos, mandará seus filhos descer do supedâneo as cruzes, que simbolizam a barbárie das civilizações de Leão X, e de Luís XIV.

Extinto o dogma, importa pedir à ciência o que a religião levou da consciência e coração da humanidade. Então aparecerá

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impreterivelmente a invenção do instrumento, por meio do qual não possamos enganarmo­nos aleivosamente uns aos outros.

Já me não entendo com estas divagações, que não têm que ver com a história do brasileiro, que António Joaquim me contou do seguinte teor:

— A pequena distância de minha casa, passa o rio Cávado.Há muitos anos que uns rapazinhos foram banhar­se ao rio.

Um deles tinha dez anos, e aprendia a nadar com umas boias de cortiça. O atilho das boias partiu­se, quando o mocinho bracejava no mais fundo da levada. Os pequenos nadadores correram a segurá­lo; mas já não puderam arrancá­lo à vora­gem. Nisto, um homem, que passava à beira do rio, lançou­se vestido ao pego, mergulhou, e emergiu com o rapaz agarrado a um braço. Tomou­o ao alto, fez­lhe vomitar a água bebida, contra os conselhos da ciência; e, apesar da ciência, restituiu­o a seus pais, jornaleiros pobres, que o andavam preparando para o mandarem para o Brasil.

Constantino, que assim se chamava o rapazinho, foi para o Rio de Janeiro, e ao cabo de vinte e cinco anos voltou para a pátria, casado, com filhos, e muito rico.

Fez um palácio onde encontrou o tugúrio vazio de seus pais, que ambos tinham morrido em abundância, posto que nunca cederam ao filho, que lhes quisera melhorar a residência. Amavam a sua lareira, o seu escano de carvalho, o seu colmado, e a figueira, que lhes sombreava a janela térrea.

O Comendador Constantino José Rodrigues passeava, por uma tarde de agosto, às margens do Cávado, com a esposa e filhos. Sentaram­se na ourela de uma levada, e, de súbito, o assalteou a reminiscência do perigo em que estivera ali. Contou o caso à mulher, que o escutava com ansiedade, e aos meninos, que medrosamente se arredavam da beira do rio. Perguntou­­lhe a senhora:

— E o homem que te salvou, já morreria? Lembras­te do nome dele?

— Deixa­me recordar… — disse o comendador Rodrigues.

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Passados momentos, ajuntou que se não podia lembrar; mas, como viviam alguns moços de sua idade, e seus companheiros de natação, havia de informar­se.

— Se ele viver, e precisar, — disse a brasileira — deves fazer­­lhe bem. Se o bom do homem se não lançasse ao rio, não eras o pai destes anjos nem o esposo da tua Laurentina.

Constantino, enternecido com a observação afetuosa de sua mulher, foi logo dali indagar o nome do homem. Dois dos seus amigos de infância lembravam­se do acontecido; mas tinham esquecido o salvador. Falou nisto ao abade, o qual, ao fim da missa do dia, instado pelo comendador, mandou aos velhos que o esperassem no adro, e perguntou­lhes se algum deles foi, ou sabia quem fosse o caritativo homem, que, vinte e seis anos antes, se tinha lançado ao rio para tirar da garganta da morte o Sr. comendador Rodrigues.

— O homem que fez essa boa ação não está aqui — disse um dos anciãos. — Era o Januário miliciano.

— Bem sei: — disse o abade — aquele valente homem que quebrou um braço e uma perna, quando foi acudir ao incêndio da casa do fogueteiro, e ficou tolhido para ganhar a sua vida de tecelão.

— Há mais de quinze anos — continuou o velho — que ele se foi à esmola por esse mundo fora; e, enquanto foram vivos os pais do Sr. comendador, ainda ele por aí aparecia. Deus lhes fale na alma, que sempre lhe davam o seu tostão; mas, depois que eles morreram, não voltou cá.

Estas informações redobraram ao comendador a vontade de descobrir o mendigo, se mal que era mais provável que ele tivesse acabado nas durezas da vida mendicante.

O abade escreveu aos párocos de muitas léguas em roda; porém, inutilmente. Quis o comendador favorecer os parentes de Januário; mas nenhuns havia. Este nobre sentimento de gratidão impossível quase que o afligia.

Volvido um ano, o filho mais velho do comendador andava folgando na chã de um montado sobre um potro ainda bruto,

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e inflexível aos quinze anos do atrevido moço. O cavalo tomou medo de um rebanho de ovelhas, acossadas pelo terra‑nova do cavaleiro, e tais galões despediu, que o rapaz perdeu um dos estribos, foi cuspido do selim, e ficou pendurado do estribo pelo outro pé. O potro fugiu raivoso e fumegante, com as crinas arrepiadas, arrastando­o, de encontro à aresta de um despenhadeiro.

Neste conflito de infalível morte, o cavalo recebeu na testa uma rija paulada, que o atordoou, e logo um braço de ferro lhe travou da cabeçada. O potro exsudava a torrentes, e tremia convulsivamente. O salvador, que mal podia exercitar o outro braço, pô­s as rédeas debaixo de um pé, e com uma navalhinha cortou os loros do estribo a que estava preso o pé do ensan­guentado e desacordado moço. Depois, prendeu as rédeas ao esgalho do tronco de um sovereiro, e foi, manquejando, examinar o escalavrado cavaleiro.

Já sabes que o salvador do filho de Constantino era o Ja­nuário, miliciano de alcunha, porque servira em milícias nas grandes batalhas da independência.

Viu o velho que o rapaz tinha a cabeça fraturada, e a face cortada do raspar dos seixos. Como homem que vira muita ferida, decidiu logo que nenhuma daquelas era mortal. Apalpou­­lhe o corpo, e desgraçadamente decidiu logo, também, que o pé esquerdo estava desmanchado.

Cobrou os sentidos o menino, e rompeu em gritos de dor, levando a mão a diferentes pontos contusos do corpo. O velho trouxe­lhe nas abas do chapéu água de um ribeiro para ele lavar as feridas da face, e aquietou­o, dizendo­lhe que um homem não chorava com dores.

— Que faria — acrescentou ele — se vossemecê quebrasse de uma feita um braço e uma perna como eu! Pois olhe que ninguém me ouviu um pio! Eu já tinha então levado com quatro balas no corpo, e olhe que mas tiraram sem eu botar uma lágrima!… Então donde é vossemecê? — perguntou o mendigo.

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O moço indicou a terra, que se via lá em baixo na quebrada do outeiro.

— E de quem é filho? — tornou o velho.— Do comendador Constantino José Rodrigues.— Constantino! — disse Januário, recordando­se. — Eu há

dez anos que não venho aqui, por isso não sei…— Meu pai veio há dois anos do Brasil.— E seu pai é desta povoação?— É.— Constantino! — volveu o mendigo. — Será ele o filho do

Jacinto das Pegas?— Meu avô­ chamava­se Jacinto.— Então é ele!… — acudiu o velho. — Graças a Deus

que não morrerei sem ver o rapazito que eu salvei de se afogar!

— Pois é vossemecê o Januário!? — exclamou o moço, abraçando os andrajos do seu salvador.

— Sou eu, menino! Pois ainda há quem se lembre do meu nome cá na minha terra!? — clamou o velho com o enrugado rosto banhado de formosas lágrimas. — Nestas coisas é que eu choro! — balbuciou ele, limpando os olhos ao punho encodeado da jaqueta.

O ancião chamou um pegureiro, e mandou­lhe que fosse dizer ao Sr. comendador que o seu filho estava ali maltratado de uma queda, e que era precisa uma cavalgadura mansa para o levar a casa. E ajuntou:

— Diz lá que lhe manda este recado o Januário miliciano.Entretanto, esteve Januário cortando a bota para descalçar

o pé inchado do ferido. Banhou­lho com água, e enfaixou­lho com ligaduras formadas de lenços.

Passada uma hora, assomaram à chã do monte o comen­dador, a esposa, e os filhos, ansiados e arquejantes. Avistaram, no topo de uma riba alcantilada, o filho sentado num fofo de gestas, e o mendigo ao lado dele, e o cavalo de ali perto a escarvar e a rinchar.

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O moço, quando viu os pais, bradou:— Cá está o tio Januário! Ele aqui está, minha mãe! Não

venham aflitos, que eu estou quase bom!— Bonito! — murmurou o velho. — Os homens é assim que

fazem! Diga sempre que não lhe dói muito.O comendador foi com os braços abertos para Januário,

que se ergueu a tremer de velhice e de alegria. A brasileira foi ajoelhar ao pé do filho, sem embargo do muito afeto que tinha ao salvador de seu marido. Os outros meninos estavam pasmados das barbas intonsas do mendigo.

— Com que então — exclamou o comendador — Januário, o amigo que me salvou há vinte e seis anos, é este velho, que eu tenho nos braços!

— Seus paizinhos pagaram­me de sobra o bem que eu lhe fiz, Sr. Constantino! — tartamudeou Januário, muito comovido.

O filho do comendador acudiu logo:— Mas não lhe pagaram de me salvar a mim. Se não fos­

se ele, meu pai, eu, a esta hora, estava acolá naquele fundão desfeito em pedaços, e mais o cavalo.

— Devem­se­lhe duas vidas, Sr. Januário! — exclamou o brasileiro. — E devo­lhe muito mais da vida do meu filho, que me é muito mais cara que a minha!

A senhora não se enojou de ir apertar a mão negra e encorreada do velho, exclamando:

— O anjo bom da nossa família fica sendo nosso parente de hoje em diante.

O ferido sentou­se na albarda de uma égua, e caminharam todos em direitura à aldeia, vagarosamente, para não forçarem o passo ao aleijado.

Se alguma hora escreveres isto, dar­lhe­ás o relevo de sen­timento que eu não sei. Contei­te o sucesso como o ouvi da exposição dos personagens.

Eu folgava de ir sentar­me, há seis anos, à beira de Januário, que tomava o sol no eirado do comendador, e ouvi­lo contar as batalhas do Roussillon, e as da repulsão dos grandes generais

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do império. Os filhos do comendador ouviam­no, como se estivessem deliciando­se nas bravuras de um avô­, recamado de medalhas e ondulante de penachos.

Um dos melhores quartos do palácio do comendador era o de Januário. O seu lugar à mesa era entre os dois, que ele salvara. O primeiro prato servido era o seu. As orações do repasto era ele quem as entoava num tom senil que incutia religiosidade.

Afinal, resta­me dizer­te que o enterro mais pomposo da minha freguesia foi o de Januário, e raras lágrimas tão sinceras terão caído sobre uma sepultura.

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VIIIOS TESOUROS DO PRÍNCIPE TURCO

— Não tens uma história de feitiços que me contes? — disse eu ao meu amigo.

— De feitiços não me lembra história nenhuma; porém, no género mágico, posso contar­te o que sucedeu a meu tio João Manuel com o livro de S. Cipriano. Tu sabes que nunca houve Cipriano nenhum que escrevesse tal livro…

— Conheço dois santos Ciprianos: um, que padeceu martírio no tempo do imperador Valeriano, e escreveu, entre outros, o livro Dos sucumbidos. O outro foi bispo de Toulon, e não sei que escrevesse de magia.

— Pois a crença popular e a especulação de algum velhaco novelista da idade média inventaram que S. Cipriano, feiticeiro como S. Gil, deixara um livrinho, que descobre tesouros. Eu nunca vi este livrinho; mas meu tio João Manuel jurou que o vira em mãos de um padre de Barroso; e, de empreitada com o padre, deliberaram arrancar das entranhas da terra uns cofres de ouro soterrados pela mourisma, no tempo em que os godos desceram das suas montanhas, e a levaram de sobressalto, e a ferro, para as regiões africanas.

Meu tio João, como vês, era uma inteligência fina, um pouco escurecida pela vontade de ser rico, e fundar um convento de

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frades da ordem franciscana. Os rendimentos do seu patri­mónio escassamente lhe dariam a sustentação de dois frades mendicantes; e o que ele queria era poder sustentar um cento daqueles santos varões: desejo inofensivo, que lhe absolve a sede de riquezas, e piamente creio que lhe seria útil à alma tanto quanto ele quis ser útil às corporações fradescas.

Emparceirado, pois, com o padre barrosão, lançaram suas medidas, depois de reiteradas conferências, e decidiram que um dos enormes tesouros mouriscos, indicados por S. Cipriano, estava no entulho do arrasado castelo de Vermoim.

Vermoim é um altíssimo acervo de fragas, sobranceiras à freguesia daquele nome, uma légua distante de Famalicão, à esquerda da estrada de Guimarães. Da crista do monte descobrem­se verdadeiros tesouros, fertilíssimas campinas, povoa­ções a branquejarem por entre florestas, bosques coroados pelas agulhas das torres, rios que serpenteiam por entre almargens e ervaçais, enfim, o Minho, o espetáculo prodigioso, que faz amar Portugal, e pedir a Deus nos não deixe ir tão longe no caminho do progresso material, que, ao cabo de contas, — ao cabo de contas é a frase própria — fiquemos sem pátria, por amor do aperfeiçoamento da matéria.

Meu tio, o padre, e um cavador da confiança de meu tio, carregado de vitualhas para um dia, e de instrumentos para as primeiras explorações, subiram, há trinta e tantos anos, ao espinhaço da serra de Vermoim. O padre era muito mais alumia­do que meu tio em história. Sentou­se ele numa fraga, depois que almoçaram, e contou que um príncipe turco da Mourama vivera naquele sítio com muitas riquezas roubadas aos cristãos. Ora, este príncipe turco da Mourama, assaltado pelos lusitanos, comandados pelo rei Vamba, fugira a unhas de cavalo, depois de enterrar os tesouros. O rei vencedor entregou a defesa e posse do castelo a D. Vermuí Frojaz, fidalgo de raça visigoda, que o transmitiu aos seus descendentes; mas, no reinado de D. Sancho I, os netos do príncipe turco entraram, disfarçados em peregrinos, por Portugal dentro, até se alojarem nos paços

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dos Pereiras, representantes de D. Vermuí, que os receberam com grande veneração, e mui devotamente. Dos paços ao cas­telo mediava meia hora de caminho fragoso. Os peregrinos, a horas mortas, saíram de sua albergaria, e foram via do castelo desamparada de esculcas em tempos de paz. As instruções, que levavam acerca do local em que as riquezas estavam, eram claras e inequívocas. Num ângulo do pátio da cisterna, ao sopé de uma seteira, é que o príncipe turco da Mourama enterrara os cofres do último rei godo, atraiçoado pelo conde Julião e pelo bispo Opas. Os descendentes do mouro, — dizemos mouro para o não chamarmos sempre príncipe turco, em homenagem ao clérigo de Barroso — assim que puseram um engenhoso ferro às solduras das lajens depositárias do tesouro, sentiram um terramoto! Os lanços das muralhas, as barbacãs, os umbrais das balhesteiras, ameias e torres, desabou tudo com fragor medonho. Os netos de Agar mal tiveram tempo de encomendar ao demónio suas almas negras, e ali se ficaram triturados à espera da trombeta do último dia. O arrasado castelo, no dia seguinte, resfolegava de suas entranhas uns vapores negros. As povoações espantadas cuidaram que um incêndio devorara os paços de D. Vermuí Frojaz.

Posto isto assim com esta clareza histórica, verdade que escapou aos cronicões dos monges, que escreveram a mitologia de Portugal, o padre barrosão disse que os tesouros deviam de estar a curta distância da cisterna, cujos bordos eram ainda visíveis na superfície escabrosa da chã, em que o castelo se sepultara. Meu tio conformou­se a este sensato parecer; e co­meçaram nos trabalhos de escavação, depois de beberem um bom trago da borracha, tesouro que eles tinham levado, sem indicações de S. Cipriano.

O cavador abriu um fosso de oito palmos de comprimento sobre seis de largura. O desaterro dava pedaços de tijolo ver­melho, e de barro negro, consistente como fragmentos de ferro fundido em panelas. Quando o cavador cansava, revezavam­se meu tio e o clérigo. Ao descair da tarde, a cova tinha quatro

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palmos de profundeza, e continuava a dar cascalho de tijolo, e argamassa. O cavador, enquanto meu tio e o seu sócio dos tesouros tressuavam a escorrer, escondia­se atrás da fraga a chuchurrear na borracha, e a filosofar com ela no regaço, afagando­a tão carinhosamente, como se a razão clara lha desse a borracha, e não o raio de luz da filosofia infusa: filosofia, que por ser infusa em muita gente, parece­se com a da borracha do cavador. Desculpa tu a sensaboria do trocadilho.

O cavador ria­se, e murmurava com os lábios no bocal da vasilha para não ser ouvido: «Estes homens são brutos!»

No entanto, o padre de Barroso agachou­se na cova, e princi­piou a tirar seixos serapintados de manchas amarelas, e laminados sobrepostamente. Os geólogos chamariam àquilo uns silicatos: eu e tu, na cegueira da nossa ignorância, chamar­lhe­íamos pedras; mas o padre e meu tio disseram que era ouro e prata fundidos. O cavador correu à vozearia jubilosa deles, e achou­os com duas pedras entre mãos. Perguntou meu tio ao criado se já tinha visto daquilo em sua vida. «Isso são calhaus» — respondeu ele. Os dois inteligentes trocaram um sorriso de piedade entre si, como o fariam os Srs. Bocage e Andrade Corvo, se me dissessem que um certo inseto se chamava zoologicamente coleóptero, e eu lhes replicasse que o bicho é escaravelho.

O padre disse formalmente a meu tio:— A coisa é isto, João. Aqui está o ouro e a prata derretidos.

Estas pedras são dinheiro.E, voltando­se ao cavador, ajuntou:— Não te rias, selvagem! Se guardares segredo, tens que

comer toda a tua vida.— Eu troco o meu quinhão por uma vez de vinho — disse

o filósofo.Era noite. Desceram da serra, e foram pernoitar a Famalicão

para voltarem, no dia seguinte, com comestíveis.Como a noite dá conselho, meu tio e o padre deliberaram

partir para o Porto de madrugada, e oferecer as pedras à análise de peritos para lhes determinarem o valor.

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O ar misterioso com que eles se apresentaram a um ouri­ves faceto da rua das Flores foi uma solene recomendação de sua tolice. O primeiro impulso do ourives foi dar­lhes com os dois calhaus na cabeça deles; porém, amigo de rir­se, mudou de cara, fez­se pasmado da riqueza do achado, contrastou as pedras, e exclamou cavamente:

— Onde acharam os senhores esta riqueza?— Não to disse eu? — exclamou o padre, voltado contra

meu tio, que subtilmente levantou o dedo indicador perfilado com o nariz para acautelar o companheiro das perguntas do ourives.

— Isto apareceu — respondeu o clérigo.— Mas aonde?! — perguntou o ourives. — Este mineral

é…— Ouro e prata derretidos — acudiu meu tio.— Justamente — obtemperou o ourives. — Ouro e prata

derretidos. Os senhores vendem estes dois pedaços?Outro sinal negativo de meu tio, que a penetração do padre

traduziu nesta resposta:— Não vendemos: queríamos só saber o valor destes

objetos.— Estes objetos — respondeu pausadamente o zombetei­

ro — só depois de refundidos e limpos podem ser avaliados. Mas isto, sinceramente lhes digo que tem aqui muito que roer.

— Deve­se alguma coisa? — perguntou meu tio.— Não é nada. Se alguma vez resolverem vender, preço por

preço, lembrem­se da minha casa; mas tenham cuidado com a exploração, se é em terreno baldio, porque o Estado embarga­­lhes a mina, e senhoreia­se da propriedade. Trabalhem de noite, e muito às escondidas. Se os senhores quisessem tomar­me como sócio na exploração, eu, à proporção que se extraísse o metal em bruto, iria tratando da limpeza dele.

— Pensaremos nisso — respondeu meu tio.À saída da loja, disse o padre ao seu radioso amigo:— Olha o velhaco, a ver se nos lograva!…

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— Pudera!… — atalhou o outro. — Não precisamos de sócios. Assim que tivermos mais alguns pedaços deste ouro, vamos vendê­los a reinos estrangeiros, porque em Portugal, se nos descobrem, obrigam­nos a dar conta da mina.

E, desde logo, se conchavaram em dizer ao cavador que as pedras não valiam dois vinténs, e fingiram que desistiam da escavação, para serem sozinhos no trabalho.

Atemorizados pela advertência do logrativo ourives, passa­vam as noites nas ruínas do castelo de Vermoim, e ao romper de alva, assim que os pegureiros apontavam com os rebanhos nos montados vizinhos, tomavam as espingardas, e iam à caça, sem largar de olho a escavação, e o antro formado por duas fragas, onde escondiam as pedras desentulhadas.

Meu tio escreveu então uma carta a um frade franciscano de Guimarães, prevenindo­o que dentro de dois anos o seu pensamento de fundar um convento com cem frades seria rea­lizado. No entretanto, pedia­lhe que não cessasse de orar em benefício de uma empresa contra a qual o poder de Satanás havia de conspirar.

O frade riu­se, e pediu ao Senhor que desse juízo a meu pobre tio.

Os desígnios do padre barrosão eram menos modestos, mas igualmente endereçados ao bem da cristandade. A sua intenção era ir a Roma, e voltar de lá com uma mitra, ou duas, visto que tinha um sobrinho padre.

Ao cabo de três semanas de trabalho, as pedras escolhidas pesavam dez arrobas. Transportaram­nas aos poucos, e com grandes resguardos, para uma aldeia das abas da serra, e daí, em bestas que foram da minha terra, levaram­nas por cami­nhos transversais até as depositarem furtivamente na choça de moinho abandonado na garganta de um monte. Desculpa as miudezas descritivas. Eu penso muitas vezes nesta desgraça de meu tio, que por amor dos frades se finou. Para si não queria ele nada, que lhe sobejava muito do pouco com que vivia. Foi a ideia do convento que o matou!

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— Sabes dizer­me se o Octávio Feuillet sabia a história de teu tio João? — perguntei.

— A pergunta parece­me do padre de Barroso! — respondeu António Joaquim.

— É que o romancista francês conta de uma ilustre velha que morreu devorada das impotentes ânsias de fundar uma catedral. Lerias tu o Romance de um Moço Pobre, e estás aí a improvisar uma história que me obrigará a mentir pela primeira vez ao público?

— Não: conto­te uma desgraça. Meu tio João e o padre de Barroso partiram para Espanha, na intenção de venderem nas principais cidades da Europa o seu ouro derretido. O joalheiro, a quem primeiro se dirigiram em Madrid, desenganou­os, dizendo­­lhes que aquelas pedras eram boas para atirar às matilhas de cães noctívagos que infestavam as ruas.

Os infelizes, estupefactos, reagiram contra a zombaria do ourives, e foram consultar outros. De aí a horas, meu tio e o padre eram presa dos gaiatos, que lhes saíam às esquinas pedindo­lhes uma peseta de ouro derretido.

Fugiram espavoridos de Madrid, quando a invasão dos garotos, vingando as afrontas de 1640, não respeitava já as vítimas portuguesas na estalagem, e deixaram as dez arrobas de pedra no quarto de onde fugiram.

O tristíssimo agora é isto: meu tio João chegou a casa mentecapto. Envelhecera vinte anos nos vinte dias de ausência. Fugia, sempre que se descuidavam em casa, para um convento de franciscanos bracarenses, ou para outros, onde ia recrutar os cem frades instaladores da sua comunidade. Finalmente, morreu. O padre de Barroso era mais robusto de alma e de corpo. As suas crenças religiosas abalaram­se algum tanto por causa de S. Cipriano, cuja impostura lhe pareceu não só desprezível, mas atentatória da fé e piedade de um sincero cristão. Em consequência do quê, fez­se liberal, entrou nas batalhas da liberdade como capelão de um regimento; chegou a cónego da patriarcal, e estava indigitado bispo, quando a

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misericórdia divina, compadecida do bispado incerto, o levou desta vida.

A máxima responsabilidade da demência de meu tio João, e da conezia do padre de Barroso, pesa sobre a consciência do ourives do Porto.

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IXO ENJEITADO

— Vais ouvir agora a história de um enjeitado da minha freguesia — disse o meu amigo.

— Estás dedilhando as cordas todas da lira dos modernos romancistas e dramaturgos — observei eu. — O enjeitado é uma rica exploração que há vinte anos faz gemer os prelos e chorar a gente. Desde o Martin de Eugénio Sue até ao teu enjeitado, que não sei como se chama, a simpatia, que eles conquistam, não há filho nenhum legítimo que a mereça. Este facto demonstra a desmora­lização da época, se não demonstra primeiramente a esterilidade das fantasias. Os escritores andam à competência com as amas em irem à roda procurar expostos. Depois, pegam das criancinhas, e dão com elas, extenuadas de doença e fome, na cara da sociedade.

— Na minha história não há disso — interrompeu António Joaquim. — O Luís, de alcunha «o enjeitado», foi pegureiro de cabras em minha casa, e é hoje… ia dizer­te já o que ele é contra todas as regras da narrativa. Não sei de quem era filho, nem o interesse do conto requer que se lhe inventem pais. O pequeno criara­se ao seio de uma pobre jornaleira, que, aos sete anos, o pô­s a servir.

Aos vinte, despediu­se de meu pai, e foi servir em casa de uma viúva, que tinha uns pequeníssimos bens, que mal a

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sustentavam. A minha gente admoestou­o a não trocar um bom ordenado pela miséria do casalejo para onde ia, e onde nunca houvera criado. Luís respondeu que a viúva, se não tivesse um homem que lhe granjeasse as terras, morreria à míngua.

Esta viúva tinha duas filhas em casa, e um filho no Brasil. Uma das filhas, que era bonita, casou com um lavrador rico, homem de más entranhas, que não só recusou auxiliar a sogra, mas ainda a esbulhou de uns cem mil réis, que tanto somaria o dote da mulher. A outra filha era superabundantemente feia, mas boa de coração, quanto a irmã era descaroada e egoísta.

Luís tinha os seus ordenados juntos em mão de meu pai: cobrou­os, e comprou umas vacas para fazer a lavoura da sua nova ama. Arroteou algumas terras que andavam descultivadas, aforou montados, e trabalhou incansavelmente. Chegado o fim do primeiro ano, a viúva não ousava oferecer­­lhe ordenado: chamou­lhe filho, e ofereceu­lhe a mão da sua Teresa. Pobre mãe! Somente ela pensava que sua filha não era feia! O enjeitado também via Teresa pelos olhos da mãe. Ambos se tinham visto de coração para coração. Haviam passado, a sós, um ano, debaixo das calmas e frios da lavoura. Tinham começado e concluído a tarefa de trezentos e cinquenta dias alegremente. A face de Teresa, aljofrada de suor, e talvez de lágrimas de gratidão, tinha­lhe parecido formosa ao desinteres­seiro operário. Amavam­se. Luís, para Teresa e sua mãe, não era o enjeitado: era o amigo, o compensador do desamparo em que a deixaram filho e filha, um esquecido no Brasil e outra abastadamente casada na freguesia próxima.

Luís aceitou a proposta de sua ama. Leram­se os pregões. Assim que a notícia deste vilipêndio chegou ao conhecimento da filha rica, ela aí vai com o marido insultar a mãe, a irmã e o enjeitado. Ouviram silenciosamente as injúrias, e Luís as ameaças; porém, o meu santo abade, em quem te falo sempre que há virtudes a historiar na minha terra, tomou a peito a defesa dos fracos, e casou­os.

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Era coisa racional agourar um viver alegre e bafejado de prosperidades a estes casados, que se amavam tanto, e mou­rejavam sempre. Pois não foi assim.

A viúva entreveceu logo depois; as vacas morreram da epizootia; o ano foi muito seco e de fome; o bicho comeu os batatais; a lagarta devorou as hortas; a toupeira remexeu a terra do linho; duas pipas de vinho azedaram­se: enfim, uma cadeia de infortúnios, rematada pelas maleitas de Teresa, que já não podia ajudar os esforços do marido contra a perspetiva da fome no ano futuro.

A filha rica soube o estado de sua mãe, e, para remediá­­la e consolá­la, mandou­lhe dizer que pusesse fora de casa o enjeitado, que ela lhe mandaria alguma coisa.

A viúva escondera dos seus bons filhos este recado; mas Luís, que, por linhas travessas, o soubera, disse à mulher:

— Vamos buscar nossa vida em outra parte já que não po­demos valer a nossa mãe. Eu volto a servir os amos antigos, e tu irás comigo. Se Deus mudar o tempo para o ano que vem, voltaremos a granjear os bens.

A entrevada, sabedora disto, de ansiada e afligida, quis sal­tar do seu catre, para conter o genro, que estava chorando no sobrado fora. A velha disse que venderia uma cortinha a meu pai, ou a empenharia para remediarem­se. Foi Luís, lavado em lágrimas, ao seu antigo amo, e pediu de empréstimo o pão para semear no ano futuro, e sustentar sua mulher e sogra: tudo lhe foi concedido, porque o enjeitado tinha umas palavras graves e breves que valiam o mais idóneo abono.

A velhinha, que tinha assomos de pundonor, quando viu segurada a subsistência de sua família, comprou três roscas de pão­de­ló, e mandou­as aos três netos da sua filha rica, em resposta ao oferecimento de a não deixarem morrer de fome, expulsando ela o marido de sua filha pobre. Isto faz lembrar o caso de Martim de Freitas, cercado no castelo de Coimbra, que mandou ao inimigo uma apetitosa truta assada, quando os soldados de Afonso III cuidavam que a fome dos cercados

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lhe ia entregar a praça. A má filha devolveu as roscas do pão­­de­ló, dizendo que os seus filhos não recebiam favores de enjeitados.

— Comei­as vós, — disse a velha aos seus — e dai­me um pedacinho, para eu poder beber à vossa saúde, meus filhos! Deus queira que os netos não paguem pela boca da mãe.

Já vês que a entrevada, além de pundonor, tinha bom estô­­mago para o pão­de­ló e para os ultrajes da filha.

O ano seguinte saiu abundantíssimo dos tesouros da Pro­vidência. As colheitas foram ubérrimas. Luís pagou a semente, que lançara à terra, e comprou outra junta de vacas. Encarrei­rou outra vez no prosperado arranjo da sua vida, e botou um capotinho de castorina aos ombros de sua mulher, e ajeitou por suas mãos um confortável carrinho, em que transportava sua sogra aos campos, onde lhe entrançava com ramagens um abrigo sombrio nas horas cálidas.

Neste ano teve Teresa o seu primeiro filho. O meu abade, que não queria ninguém mal­avindo com o próximo, e de nenhum modo com parentes, lembrou­se de fazer pazes entre a má filha e a sua boa mãe, aventando o pensamento de se convidarem os ricos para serem padrinhos da criança. Acedeu alegremente Luís, e a entrevada pô­s as mãos, clamando:

— Oxalá que eu ainda veja minha filha Josefa, e os meus três netos, antes de morrer!

O abade foi com o convite, e voltou agastado, profetizando que Deus havia de abater os soberbos, e levantar os humildes. Josefa e seu marido repeliram furiosos o convite, conclamando que tinham vergonha de serem parentes do Luís enjeitado.

— Veremos quem Deus enjeita… — respondera o abade, sacudindo o pó dos sapatos na soleira da porta.

Ao escurecer deste dia, mandou Deus à casa dos pobres felizes um padrinho para a criança.

Era um homem bem trajado, de meia idade, que apeou de uma liteira, e perguntou pela Sr.a Custódia Ferreira.

— Minha mãe está entrevadinha na cama — disse Teresa.

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O sujeito entrou na cozinha, e perguntou se podia ir ao leito da entrevada. Teresa pegou da candeia, e foi dizer a sua mãe que estava ali um fidalgo.

— Não é fidalgo, — ajuntou o desconhecido — é seu filho.

A entrevada esqueceu­se da paralisia, e quis saltar do catre, exclamando:

— Bendito seja o Senhor!O brasileiro entrou no quarto, e dobrou o joelho, beijando

a mão convulsa da velha.O abade, chamado pelas campainhas da liteira, foi dar a

casa da viúva, e assistiu à cena maviosa e comovente. Manuel Ferreira, que assim se chamava o negociante, perguntou pelas restantes pessoas da sua família. O abade expendeu a história da família nos últimos trinta anos. Contou o casamento de Josefa, e a ruindade de sua condição. Exaltou as virtudes de Luís, e a doçura filial de Teresa. Não lhe esqueceu — porque ainda o res­sentimento o azedava — o caso feio do orgulho de Josefa, recusan­do fazer cristã a criancinha, que Teresa estava amamentando.

Manuel Ferreira pô­s a mão na face do menino, e disse:— Depois de amanhã seremos os padrinhos deste anjo,

minha mãe.Fez­se o batizado com as possíveis pompas da aldeia. Era

eu pequenote, e lembra­me que fui com meu pai assistir ao jantar que se deu na sala da residência às pessoas mais gradas da freguesia, enquanto no eirado os pobres se deliciavam no bodo que o brasileiro lhes mandou dar. Recordo­me de ouvir contar a Manuel Ferreira que passara no Brasil vinte e nove anos desgraçados de continuada peleja com os revezes; que, nesse longo espaço, apenas duas vezes escrevera a seu pai, dizendo­lhe que era infeliz; e se abstivera de escrever, não podendo acudir à necessidade de sua família. Acrescentou que inesperadamente enriquecera por herança de um amigo; e, sem demora, liquidara os seus haveres, e viera à pátria com o coração nas ânsias da dúvida sobre a vida de seus pais.

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A velhinha assistiu ao jantar; e, no fim, querendo imitar os brindes que meu pai, e o boticário, e o abade fizeram ao brasileiro, propô­s ela o seguinte brinde:

— À saúde de todos os meus filhos, para terem vida, e serem bons aqueles que o não têm sido.

O abade festejou muito o honrado e santo coração da velha; porém, o brasileiro, levando o copo aos beiços, disse:

— Eu só bebo à saúde dos bons filhos.— E de tua irmã Josefa — acudiu a mãe. Manuel Ferreira

não respondeu.Passados dias, o brasileiro foi ver nos arrabaldes de Braga

uma quinta magnífica. O proprietário cedeu­a por um preço exorbitante, dinheiro de capricho, que denunciou os grossos cabedais do comprador. Desta quinta fez Manuel Ferreira doa­ção a sua irmã Teresa, e quis que ela com seu marido e mãe se transferissem para ali. O enjeitado quis continuar no tráfego da lavoura; mas o cunhado tirou a partido que ele aceitaria a prosperidade com o repouso e limpeza da vida que os seus haveres lhe permitiam. A viúva, quase obrigada pelo filho, foi para França com ele, e voltou, passado um ano, muito melho­rada, sustendo­se em muletas; mas com sobejas forças para visitar todos os dias o Lausperenne, e agradecer ao Supremo Bem as alegrias da sua velhice. O amor, as carícias, os extremos de ternura não conseguiram, ainda assim, dilatar a existência desta ditosa mãe além dos setenta e quatro anos.

Depois da morte dela, o filho mandou avaliar o quinhão dos bens pertencentes a Josefa, e enviou­lhe o valor da sorte; depois mandou arrasar a casa, dizendo que não devia ficar memória da casa onde nascera uma filha que injuriara sua mãe velha e pobre. Dos chãos e leiras mandou fazer retalhos, e distribuí­los com pequenas e alegres choupanas aos pobres da freguesia.

A vida má que ele, nos vinte e nove anos desgraçados do Brasil, vivera por sertões, e perigosas arremetidas à fortuna adversa, minaram­lhe a saúde, e anteciparam­lhe graves doenças, que o descanso não curou.

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Ao pé dos cinquenta anos, perdeu esperanças de melhorar, e testou em sua irmã e afilhado bens de fortuna consideráveis. Morreu nos braços de todos, abençoando o prazer de encostar a face morta ao coração de sua família.

Agora verás tu, com assombro, a mudança que a fortuna operou no ânimo de Luís enjeitado.

— Fez­se mau? — perguntei eu.— Nada; fez­se outra vez lavrador. Assim que o cunhado se

colocou a distância de o não censurar, despiu o casaco opressor que lhe entalava as espáduas, e botou­se ao arado, como o faria Tântalo, se o deixassem, por fim, beber do rio e comer das frutas do seu suplício. Andava anasado e arganaz, e engordou assim que pô­de roçar dois carros de mato, e passar os calores de um estio a sachar o milho com os criados.

Como se via com muito dinheiro, e muitas firmas ilustres a pedirem­lho para caridades de estabelecimentos pios, Luís Ferreira, apelido que ele tomou de sua mulher, dava aos neces­sitados mais do que lhe pediam. O resultado disto, afora os cento por um, prometidos pelo Divino Mestre, foi fazerem­no comendador. Luís aceitou e pagou o diploma como aceitaria e pagaria a bula da santa cruzada, ou o diploma de irmão da Ordem Terceira. Quando ele conheceu que não era um mortal vulgar, foi ao lerem­lhe — que ele não sabia ler — os sobres­critos das cartas, em que o intitulavam digníssimo comendador da Ordem de Cristo; porém, como era cristão, entendeu que pertencer à Ordem de Cristo era uma boa coisa por tão pouco dinheiro. Todavia, quando umas pessoas distintas lhe deram excelência, o homem olhou para a mulher, e desatou a rir, e riu tanto, e por tanto tempo, que a boa da Teresa cuidou que o marido ia rebentar pelas cruzes, salvo tal lugar.

Deixemos o comendador a rir da excelência, com mais sinceridade do que Aristófanes, e Erasmo, e Boileau riram da loucura do género humano, e vamos ver se se realizou a profecia do meu abade, que dissera: «Deus abate os soberbos e levanta os humildes.»

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* * *

— João da Quintã, marido de Josefa, procedia de um Jerónimo Carvalho, que foi enforcado em Lisboa há duzentos anos.

— Enforcado há duzentos anos! — exclamei eu, preparando­­me para ouvir a tragédia de um homem, digno de mais ilustre posteridade. — Então, vais contar­me uma história em que há forca!… Faltava esse tom da elegia romântica. Enforcado há duzentos anos! Provavelmente conspirou contra o trono res­taurado do senhor D. João IV!…

— Não foi isso: era guarda da alfândega Jerónimo Carvalho. Roubou dos armazéns fazendas, que estavam a despacho. Os negociantes roubados citaram­no a juízo, e levantaram­lhe o triângulo sobre o livro 5.º das ordenações. Naquele tempo era tão fácil enforcar um ladrão, como é fácil hoje apresilhar­lhe uma venera na lapela da casaca. Tempos escuros em que as forcas eram uns como postes dos lampiões, com que a justiça alumiava a estrada do dever. Hoje a forca não passa de um pretexto para clamorosos discursos, e choradeiras de roman­ces, em que o bom siso perneia estrangulado às vezes. Eu sou dos que opinam pela necessidade da forca… Se queres, vamos discutir esta questão.

— Eu antes queria a história, meu amigo.— Pois como quiseres: é certo que Jerónimo Carvalho foi

enforcado… 1. Tinha ele mulher e filhos, que saíram de Lisboa, a esconderem nos sertões do Minho a sua ignomínia e muito dinheiro, que puderam sonegar ao sequestro dos negociantes

1 esta execução parece-nos verificada nas seguintes palavras de Tomé pinheiro ou de antónio Vieira, Arte de Furtar, cap. lxv: «…Furtar o que vos hão de demandar, e fazer pagar, em que vos pez, é a maior tolice de todas, como se viu no que sucedeu ao carvalho, na semana em que componho este capítulo. era guarda da alfândega de lisboa, e guardava as fazendas alheias muito bem, porque as punha em sua casa, como se foram suas: foi demandado por isso; e porque não deu boa razão de si às partes, o puseram por portas repartido: pretendeu levantar cabeça à custa alheia, e levantaram-lha dos ombros à sua custa…» [N. do A. reproduzida da 1.ª em todas as edições seguintes.]

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desbalizados pelo guarda de armazéns. Convidada pela bran­dura e amenidades do local, a família do enforcado parou nas margens do Cávado, e edificou uma choça, que meu avô­ ainda viu, na orla de um outeiro, chamado a Quinta. A viúva do Carvalho viveu ainda muitos anos com exteriores de peni­tente pobreza; e, morrendo, deixou um filho, que aforou os montados vizinhos, e fabricou melhor alojamento na assomada das suas gandras. Casou o filho do enforcado com uma cigana, foragida às penas horríveis da ordenação do reino, e perseguida pelos quadrilheiros do corregedor de Braga. A cigana, que se acoitara à choça do filho do supliciado, para haver de casar­se, fez pública confissão dos seus pactos com Satanás, e entrou no grémio da igreja, fazendo figas ao demónio. Deste matrimo­niamento geraram­se filhos e filhas. Cem anos depois, a casa da Quinta era uma das primeiras da comarca. O pecúlio de Jerónimo Carvalho desenrolava­se em fertilíssimas campinas, e pradarias, e florestas.

Os bisnetos, porém, do filho do enforcado foram gran­des dissipadores, e esbanjaram o principal do grande casal. Morreram estes, e ficou um clérigo herdeiro das relíquias do espedaçado tesouro do guarda de armazéns. Este padre era o terror do inferno. Mulher possessa que lhe cingisse a estola, ou experimentasse o tato das mãos demonífugas, ficava sã. Entre as suas energúmenas, teve ele a dita de limpar uma das sujidades da sevandija infernal. Era esta uma rica viúva, sem filhos, que tão reconhecida lhe foi, que o deixou seu herdeiro. O padre António da Quintã, que meu pai ainda conheceu, refez a casa desbaratada de seus avós, e chamou a si um sobrinho para lha deixar. Porém os presuntivos herdeiros da viúva puseram deman­da ao sucessor do clérigo, alegando a demência da testadora, e as pias fraudes com que o padre lhe conturbara o espírito. Este litígio tinha oitenta anos de duração, enredado nas trapaças da jurisprudência, quando casou Josefa Ferreira, a cunhada do Luís enjeitado. João da Quintã, sexto neto por varonia do enforcado, desprezara o processo, que, desde 1830, se enterrara

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nas estantes do desembargo do paço; e, ao mesmo tempo, um brasileiro, aparentado com os sucessores da viúva, despendia dinheiro a mãos cheias para se entreter com a demanda, por não saber em que exercitar a sua ociosidade. Ou porque a justiça estivesse com o brasileiro, ou porque o dinheiro e a atividade criassem uma justiça de propósito para ele, ou — e o mais provável é isto — porque no tribunal da Providência se decidisse afinal o pleito, o certo é que João da Quintã perdeu a causa recomeçada em todas as instâncias, e ficou esbulhado de todos os bens, sem poder salvar as benfeitorias, absorvidas nos rendimentos de oitenta e cinco anos.

Esta queda dos soberbos, vaticinada pelo meu abade, coin­cidiu com a elevação de Luís enjeitado ao degrau convizinho do fastígio humano — à comenda da Ordem de Cristo!

Tinha cinco filhos o lavrador despossado repentinamente dos seus casais. Chamou o mais velho, deu­lhe uma clavina, e ordenou­lhe que passasse com uma bala o peito do brasileiro vencedor do pleito.

O filho entendeu que lhe era menos penoso viver simples­mente pobre, que pobre e assassino ao mesmo tempo: resistiu às ordens do pai, e fugiu.

Foi ter­se com a tia Teresa, e contou­lhe em lágrimas a desventura de sua família. O comendador Luís Ferreira assistiu à exposição do sobrinho.

— Fica em nossa casa, moço, — disse Luís — e vai falar com teus pais e teus irmãos, e diz­lhes que venham para aqui, onde há pão em abundância e graça de Deus.

— Eu irei com o moço, se tu dás licença — disse Teresa.— Pois, se tu vais, iremos todos — acudiu o comendador.E saíram todos em busca da família pobre, que morava a

distância de três léguas.Quando chegaram à vista da aldeia de João da Quintã, do­

brava a finados o sino da paróquia da freguesia. Um lavrador, que gradava uma leira na quebrada do monte, saiu­lhes ao caminho, e contou que o João da Quintã matara com um tiro o

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brasileiro de Vilar, quando ele ia com os oficiais da justiça pô­­lo fora de casa. Ajuntou que o homicida se dera logo à prisão, e pedira que o deixassem despedir­se dos filhos. Era uma dor de coração — ajuntava o informador — vê­lo abraçado à mulher e ao filhinho de dois anos, que ela tinha ao peito.

Luís Ferreira foi indo seu caminho até à casa da Quintã. Encontrou sua cunhada no quinteiro, rodeada de povo, com a criança nos braços, e três meninas entre dez e quinze anos, sentadas ao pé de si. Josefa lavava de lágrimas o rosto do filho. As meninas, com as mãos na cabeça e o rosto sobre os joelhos, pareciam empedernidas e fulminadas pela desgraça.

Luís levantou sua cunhada por um braço, e disse­lhe:— Venha daí com as suas filhas.A desgraçada ergueu­se, e disse às meninas que a seguissem.O comendador deu ao sobrinho o dinheiro que trazia, e

mandou­o ir no seguimento do pai, que caminhava para a cadeia de Braga.

Quando Luís Ferreira saía da aldeia com a família de seu cunhado, encontrou um cirurgião, que lhe disse:

— O homem não morre.— Qual homem? — perguntou o comendador.— O brasileiro — respondeu o cirurgião.— Graças ao Altíssimo! — exclamou Teresa. Tu devias

também exclamar alguma coisa! — me disse António Joaquim. — Bem se vê que tens calo no sentimento! Não há surpresa que comova um romancista, vezado a inventar sur­presas, que transcendem os limites do disparate.

— Estou pasmado; mas não exclamo — disse eu.— O brasileiro, — continuou o meu amigo — assim que se

viu ferido numa espádua, declarou que estava morto, e caiu sem sentidos. Os homens da justiça levaram­no para casa com reputação de defunto, e…

— E os sinos, — ajuntei eu — que não tinham razão para serem mais entendidos em ferimentos que os oficiais de justiça, começaram espontaneamente a badalar a finados.

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— Não foi tanto assim. Os sinos dobravam por uma velha que morrera na freguesia vizinha; e, como ela era irmã de uma confraria da outra, tinha sufrágios de uma missa, e um toque a defuntos. Tanta pergunta! É costume teu amiudares assim as explicações aos teus leitores?!

— É, quando os sinos tocam a defuntos por pessoas que não morreram. E depois?

— Depois, o comendador deixou em sua casa a família, e foi para Braga com sua cunhada. João da Quintã estava sucumbido de remorsos e saudades. Meditava em suicidar­se, quando o comendador lhe disse que o brasileiro vivia, e o admoestou a ter esperanças em salvar­se.

O ferido esteve uns três dias de cama com o braço ao peito, e partiu logo para Braga a instaurar o processo contra o criminoso. Pessoas da amizade do comendador diziam­lhe que não receasse o resultado da querela, porque no júri se haviam de preparar as consciências de feitio que as circunstâncias atenuantes reduzissem a pena de prisão temporária o delito de seu cunhado.

O comendador, porém, recusou­se a cooperar no suborno da consciência dos jurados; parecia­lhe impossível e impraticá­vel a salvação de seu cunhado, acusado de tentativa de morte premeditada e resistência aos oficiais de justiça.

Pouco tempo antes do julgamento, mandou ele vestir de luto as suas três sobrinhas, e a cunhada, e o sobrinho mais velho, e a criancinha de dois anos e meio.

Estava o acusador em Braga, na «Hospedaria dos Dois Ami­gos», quando o comendador lhe entrou ao quarto, em frente da lutuosa família, e levou as meninas pela mão a ajoelharem diante do estupefacto brasileiro. Pouco mais ou menos, foram estas as suas palavras:

— Esta gente é a família do infeliz João da Quintã. O pobre homem tinha criado estes filhos na abundância, e nunca pensou em ir por essas terras fora a pedir esmola com eles. Quando se viu de todo em todo desgraçado, perdeu a razão, e a fé em Deus. O castigo do seu crime é ele ter esta família a comer do

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meu pão, tendo eu sido o Luís enjeitado que ele desprezou a ponto de me não querer batizar um filho. Pois sou eu, o Luís enjeitado, e não o homem rico, quem vem pedir a vossemecê caridade e misericórdia para o pai destas meninas, e desta criancinha, que lhe vai pedir o perdão de seu pai.

E, dizendo, tirou o menino dos braços da mãe, e o pô­s nos braços do brasileiro.

Aqui tens mais um brasileiro bom e sensível da série das minhas histórias. O homem tinha já os olhos inundados de lágrimas, e a balbuciação da palavra misericordiosa nos lábios. A criancinha, cuidando que ele era o pai, afagou­lhe as faces mui de leve com as pequeninas mãos, e proferiu, como um vagido suplicante, a palavra papá. Parecia tudo instinto do céu naquele menino! O brasileiro, banhado de pranto, exclamou:

— Está perdoado teu pai! Vai­lhe levar a boa nova à cadeia.— Vamos todos! — disse o jubiloso comendador, abraçando

o comovido brasileiro pelos joelhos.Saiu, passados dias, João da Quintã do cárcere, depois que

o ministério público desistiu da acusação por parte da moral pública, e dos oficiais da justiça ultrajada. Nisto é que parece que o comendador empregou mais dinheiro que eloquência. Em vez de mandar vestir os sobrinhos de negro, encheu ele as algibeiras de coisas de cor alegre e garrida.

Não ficou aqui a vingança de Luís enjeitado.Entendeu­se com o brasileiro, seu amigo desde a hora em

que choraram juntos. Deu­lhe em dinheiro o valor das proprie­dades penhoradas. Restituiu a casa da Quintã a seu cunhado; e, no momento de lhe entregar os títulos, pagas e quitação do brasileiro, disse­lhe:

— Entrego­lhe metade do que herdei do nosso cunhado. Rezem muito por alma dele, que nos deixou a felicidade de todos. Ensine vossemecê os seus filhos a serem humildes, e a não desprezarem os enjeitadinhos, que são os filhos adotivos de Nosso Senhor.

Aqui termina a história do Luís enjeitado — concluiu António Joaquim.

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XO ERMITÃO

— Vais agora ouvir a mirífica história de um ermitão.

Dei um ósculo na fronte escampada de António Joaquim, e exclamei:

— És um anjo e uma glória nacional! Eu cogito, há muitos anos, em dar aos meus leitores a história de um ermitão. Não vinguei ainda o intento. Eram a minha desesperação os ermitães com virtudes que dessem a urdidura de um volume.

— Olha que as virtudes do meu ermitão — interrompeu António Joaquim — não urdem dois capítulos. É uma história menos edificativa do que promete o título; porém, foi minha mãe que ma contou: sinal de que é boa para contar­se a toda a gente.

Não sei se sabes que a Relação do Porto, situada no mesmo local em que hoje está, caiu há cento e tantos anos.

Abre­se um entre parêntesis na narrativa do meu amigo para de passagem referir ao leitor, não informado, a proce­dência daquele quadrilátero de granito denegrido, que ali está na Porta do Olival. E, se o leitor, aborrecido de velharias, se anojar com a história da Relação do Porto, dê um salto de olhos sobre três páginas do livro, e prenda a sua atenção no ponto em que António Joaquim é interrompido.

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Antes do nascimento de Cristo, 226 anos… — Vejam onde eu vou! Pouca gente começa de tão longe nestes tempos em que o progresso nos está empurrando a todos para diante! — 226 anos, pois, antes de Cristo, houve chancelaria ou convento jurídico em Santarém. Ninguém ignora que os celtas e gregos fundaram e os romanos ampliaram Santarém, que se chamou «Praesidium Julium» por graça de Júlio César. Nas Espanhas, a descrição do Universo, mandada fazer por Augusto, e referida por S. Lucas, foi proclamada primeiro em Santarém.

Naquele tempo, os governadores das províncias, durante o bom tempo, iam à guerra; e, assim que o inverno lhes es­friava o sangue belicoso, recolhiam­se a sentenciar causas nos conventos jurídicos. Depois, os mouros invadiram a Lusitânia em 714, e as formas jurídicas foram alteradas. O governador mouro nomeava para cada comarca um conde cristão, que julgava consoante a legislação goda, afora os crimes de pena última que eram exclusivos dos alcaides.

Estou a ver o desfastio adorável com que alguns centenares de leitoras deixam cair o livro, e murmuram no tom dos anjos agastados:

— Que impertinência! Que narcótico!Eu queria ter a audácia dos apóstolos das grandes ideias

para ousar dizer a VV. Ex.as que é chegada a hora em que se faz mister ao sexo das graças vestir­se da armadura da ciência para entrar em luta com a tirania do homem. Se os dons maviosos, os encantos, e a magia dos afetos bastassem à emancipação das senhoras, emancipadas estariam todas, desde que Dalila tosquiou Sansão, e Onfale fez que Hércules fiasse na roca. Mas a desigualdade dos direitos assenta o seu arbítrio odioso na desigualdade dos dotes intelectuais. Muitos Sansões continuam a ser tosquiados; muitas Onfales obrigam, com a violência de um relance dengoso de olhos, enormes indivíduos a fiarem na roca; e, todavia, as frágeis vencedoras, realezas efémeras, continuam na submissão, no ostracismo dos grandes cargos da república, na inelegibilidade aos parlamentos. Nem

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sequer sócias das academias! nem nas academias, coisas fúteis e irrisórias, que parecem ter sido inventadas especialmente para senhoras ociosas! Já é!

A estólida argumentação dos feios impugnadores da emanci­pação das senhoras, como disse, apoia­se na míngua da ciência dos doces serafins, que tudo sabem do céu, e tudo desdenham do saber dos homens. É, pois, forçoso desalojar os selvagens deste baluarte com as armas da ciência. É preciso que as damas, entre coisas igualmente indigestas, aprendam como se instituiu o convento jurídico no Porto.

Vão agora SS. Ex.as saber que o senhor rei D. Afonso Henriques conquistou Santarém em 15 de março de 1147, e ordenou que os anciãos nobres julgassem as causas, até que D. Sancho, o Capelo, instituiu ali Relação e casa do cível. Em 1211, D. Afonso II criou juízes ordinários, e leis gerais: cessou então o governo das leis municipais, inscritas no Foral de cada terra.

Os nossos monarcas, naqueles tenebrosos dias, saíam anual­mente a administrar justiça aos povos; e hospedavam­se à custa dos administrados, recebendo uma contribuição chamada «o jantar de el­rei». Os advogados, como fossem salariados pela nação, não podiam receber dinheiro dos litigantes.

Requereram os povos a D. João I, em cortes de Coimbra a 10 de abril de 1383, a trasladação da casa do cível de Santarém para Lisboa.

D. Sebastião nomeou duas Relações ambulantes, que anda­vam justiçando pelo reino. D. Filipe II, finalmente, mudou a casa do cível para o Porto.

A primeira junta de julgadores fez­se na casa da câmara em 1583.

O mesmo Filipe, em 1584, ordenou que os desembargadores usassem becas ou garnachas, e barba larga para representarem a autoridade dos senadores romanos.

Os portuenses, numa petição que fizeram ao rei, consegui­ram, ao que parece, comovê­lo sobre objeto de máximo porte

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na salvação das almas. As leis destes reinos determinavam que os condenados à morte tivessem antes da execução o tempo somente necessário para se confessarem, sem outro sacramento. Sua Majestade, compadecido das almas dos justiçados, consentiu que se lhes desse o Sagrado Viático.

Mudou­se a Relação da casa da câmara para o palácio do conde de Miranda no Corpo da Guarda; e a cadeia continuou na rua Chã, já então chamada a cadeia velha, porque fora reformada em 1490.

Em 1606 principiaram as obras da cadeia e Relação à Porta do Olival. Duraram dois anos. Neste espaço de tempo foi proi­bido construir casas no Porto, e condenado o operário que se esquivasse ao trabalho do magnífico edifício. Para ocorrer às ingentes despesas, foi concedido aos condenados a degredo remirem a pena a dinheiro.

Cento e quarenta e quatro anos depois, esta obra de dois anos, e de aparências eternas, aluiu­se. Era num sábado de Aleluia, 1.º de abril de 1752.

A Relação estabeleceu­se na praça das Hortas, onde esteve vinte anos, esperando a reedificação, começada em 1767.

O romance do meu amigo recomeça agora:— Quando a cadeia abriu o primeiro rombo, entre os

presos fugitivos e ilesos, fugiu um criminoso de consideração. Era nada menos que o matador de um bispo, cujo nome e bispado ignoro, porque a história, em respeito à cristandade, não transmitiu aos vindouros o nome deste príncipe da igre­ja. O que a tradição diz é que o bispo incerto praticara um crime de horrendo nome na lareira doméstica de um fidalgo transmontano, desonrando­o; e que o fidalgo, com a melhor espada de seus avós, soldados de Cristo, o degolara no estrado do leito nupcial, ao tempo que a esposa se lançava da janela à rua, em desesperada fuga.

O defunto bispo era muito do afeto de Sebastião José de Carvalho, rei de Portugal e Algarves; ao passo que Nuno de Mendonça, o bispicida, era figadal inimigo do dito rei, como

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todos os fidalgos esmagados debaixo do omnipotente salto do seu sapato.

Nuno de Mendonça foi condenado à forca. O dia do suplício, na povoação de Vilariça, estava marcado para o dia 3 de maio; mas a cadeia arrasou­se no 1.º de abril.

O criminoso, ignorante do destino da esposa, por entre selvas e penhascos foi em demanda dela, com a mão convulsa no cabo do punhal. Tinham sede de mais sangue aquelas nobilíssimas entranhas de rico­homem atraiçoado refecemente! Indagou dos mendigos, que saíam, ao repontar a manhã, da albergaria de sua casa, e soube que a fidalga estava, desde muito, num rigoroso mosteiro.

Fugiu da terra onde nascera antes que o conhecessem, apesar das barbas intonsas e alvas como a neve. E apenas tinha quarenta anos! Dois anos de cárcere, dois anos de paroxismos à espera da última hora na ignomínia da forca, dois anos de ânsias de vingança sem desafogo nem esperança, fizeram do galhardo Nuno aquele velho, que se afasta da Vilariça pelas gargantas das serras.

Meu bisavô­ era mui devoto de S. Gens, venerado numa ermida que dista de minha casa três quartos de légua.

Conta­se que, uma vez, o honrado lavrador amanhecera no cume do outeiro, onde está a ermida, e encontrara, sentado na raiz de um agigantado zambujeiro, à porta da capela, um homem desconhecido mal entrajado, e com semblante mace­rado de fome.

Fez­lhe perguntas com demonstrações de pena, e boa von­tade de ser­lhe útil. Nuno de Mendonça, quebrado de fraqueza, escassamente respondeu.

Meu bisavô­ levou­o consigo, agasalhou­o, alimentou­o, e respeitou o silêncio do hóspede infeliz.

Os avisos derramados pelas comarcas, depois da fuga dos presos, repetiam­se rigorosos. Os sinais de Nuno de Mendon­ça, como um dos principais criminosos, eram inequívocos. O lavrador desconfiou do misterioso silêncio do hóspede, sem o suspeitar o homicida do libertino mitrado.

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Nuno, recuperado o vigor, disse ao hospedeiro que seguia dali para Castela. Meu bisavô­, tocado de compaixão, observou­­lhe que se não arriscasse a ser preso, porque as ordens de captura de todos os viandantes desconhecidos nas comarcas eram apertadas.

O fidalgo susteve­se: compreendeu a magnânima delicadeza do velho; julgou­o digno de sua confiança, e contou­lhe as des­graças de sua vida. Em paga da confidência, o lavrador dava­lhe dinheiro que lhe facilitasse a passagem para outros reinos; porém, Nuno de Mendonça sentiu­se desamparado de ânimo: o temor de recair nas garras do valido de D. José I, a visão do patíbulo, que o chamava para 3 de maio, prostraram­no no catre, que o hos­pedeiro velho lhe oferecia com a máxima segurança de sua vida.

Nuno esteve um ano e mais em casa de meu bisavô­. Saía nas noites gélidas a beber o ar das serras. O seu posto habitual era na ermida de S. Gens, sobre a raiz do zambujeiro.

Decorrido este largo espaço de um tristíssimo viver, o fidalgo pediu ao seu amigo que lhe construísse uma choça entre as fragas vizinhas da ermida, para que a vida se lhe não escoasse na estagnação do pequeno quarto, onde passava os dias. O velho não o contrariou. Fez­lhe por sua mão, e com os seus criados, uma casinha de pedra, coberta de colmo, e argamassada no interior. Deu­Ihe um catre e um banco; uma panela, e um podão para cortar lenha. Dava­lhe uma arma caçadeira, e uma cadela de coelhos; Nuno dispensou estes últimos dons, e pediu uma túnica de estamenha e um rosário.

Devemos supor que a solidão, povoada de horríveis fan­tasmas, em que o fidalgo viveu, lhe acrisolou a piedade, e o afervorou em crenças na justiça divina. Pode ser que a larva do bispo ensanguentado lhe perturbasse as breves horas do repouso; e o desgraçado, enfraquecida a razão pelos incessan­tes rebates do infortúnio, e terror da forca, se convertesse às demasias da religiosidade.

O certo é que Nuno de Mendonça vestiu a estamenha, e sentou­se na testada da choça à espera que a pomba dos

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antigos anacoretas lhe deixasse cair da região aérea o cibo nutriente.

Meu bisavô­, porém, antecipava­se, todos os dias, aos cuidados da pomba, mandando­lhe alimentos para o jantar, e indo pes­soalmente à noitinha levar­lhe a ceia, e passar com ele algumas horas. O povo das vizinhanças descobriu a existência do homem das barbas brancas, e denominou­o logo o ermitão de S. Gens. Começaram a ir procurá­lo pessoas que sofriam da alma e do corpo. Aos infelizes contava ele a história dos desgraçados que conhecera, e despedia­os consolados; aos doentes aplicava­lhes o conselho de pedirem a Deus que os curasse, se a vontade divina lhes não concedia a vida para grandes tribulações. Este proceder, que, na mente popular, devia ser o descrédito de qualquer ermitão, granjeou o renome de Nuno de Mendonça. Pessoas distintas das cercanias quiseram conhecer o homem que falava a linguagem que o povo nem sempre entende, mas sempre admira. Meu bisavô­ teve medo desta popularidade, bem que tivessem passado três anos, depois da fuga da cadeia arrasada. Pediu­lhe, portanto, que se esquivasse a práticas com o povo, ou mudasse de terra.

Felizmente que as justiças das províncias se haviam relaxa­do na pesquisa dos presos, depois do terramoto de 1755. As providências do marquês de Pombal todas eram absorvidas na reedificação de Lisboa. Nuno de Mendonça, o ermitão de S. Gens, confiado no descuido dos quadrilheiros, deixou a choça, e foi caminho de sua terra, na intenção de arranjar dinheiro para passar­se a França, e acabar os seus dias num mosteiro.

* * *

Continuou assim o meu amigo:— Nuno de Mendonça encontrou as armas de sua casa

cobertas de crepe. A esposa tinha falecido, meses antes, num mosteiro da Galiza, tão compungida das suas culpas, que edificou mais com sua morte do que poderiam fazê­lo três

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senhoras de vida santa. A contrição do crime é a mais expres­siva e tocante homenagem às consciências puras. Os remorsos da vida pecaminosa valem mais como exemplo que a serena prática das virtudes. A gente repara mais nas lágrimas da penitência que nas alegrias da alma inocente… Parece que te enfadam estas máximas!…

— Não: eu gosto muito de máximas; — respondi — porém, quando as narrativas me interessam a curiosidade, antes quero ouvir as máximas no fim da história. No entanto, se…

— Pois sim: eu vou direito ao ponto, visto que não é lícito imitar­te na manha com que tu, nos teus romances, ensartas axiomas, quando a imaginação te emperra.

— Agradecido… Não se pode ser La Rochefoucauld sem ter­se a fantasia perra!… Tu e os leitores da tua laia é que afogam os embriões dos escritores aforismáticos em Portugal. Pois sabe tu que a eternidade de muitos livros é o estilo sen­tencioso que lha dá. Os romances vão a pique, às vinte e quatro horas de navegação, porque não levam lastro de sentenças. Entre nós, há um exemplo da duração de um renome, devido à gravidade das máximas: são os romances do conselheiro Rodrigues Bastos. É, todavia, necessário que o escritor seja maior de oitenta anos para que os leitores lhe relevem o tom pedagógico dos axiomas… Agora, o estafador da paciência estás sendo tu — atalhou António Joaquim. — Afogando, com o devido respeito, os teus embriões aforismáticos, direi que Nuno de Mendonça encontrou as portas de sua casa fechadas. Como não havia descendência, falecida a reclusa penitente, os servos da infeliz família foram entregar as chaves aos irmãos de seu amo, que residiam em Bragança.

Nuno, desconhecido na sua própria terra, colheu informa­ções, e foi caminho de Bragança. Pelo alto silêncio da noite, bateu à porta dos seus, deu­se a conhecer, e achou­se nos braços de Cristóvão de Mendonça, seu irmão, padre da Companhia, o qual havia saído de Lisboa, da casa professa de S. Roque, para urdir com os jesuítas do Porto não sei que redes contra

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o conde de Oeiras. A resguardo de criados, celebraram os irmãos com júbilos e lágrimas o aparecimento de Nuno, que julgavam morto, ou vagabundo por países remotos. O jesuíta, que trouxera por companheiro o padre Timóteo de Oliveira, mais tarde desterrado pelo marquês de Pombal, — como ami­go do padre Malagrida, que morreu queimado por ordem do mesmo sublime déspota — o jesuíta, digo, entendeu­se com o seu companheiro; e, no dia seguinte, vestiram uma roupeta a Nuno de Mendonça, compuseram­lhe a cara monasticamente, e saíram de noite, montados em possantes mulas, com destino a Lisboa.

O condenado à forca entrou com seu irmão na casa de S. Roque, onde esteve até 1759, com um pseudónimo para as pessoas suspeitas à Companhia. Nuno de Mendonça inscreveu­se na conjuração contra o rei D. José. O duque de Aveiro, cabeça dos conjurados, prezava­o muito, e tinha­o em sua mais íntima confidência, posto que resistisse ao alvitre do conjurado, que se ofereceu para expurgar a nação portuguesa do dragão purpu­rado. Escuso dizer­te que o dragão vinha a ser, em linguagem heráldica, o marquês de Pombal.

Os romancistas de casa e de fora, quando vestem fan­tasticamente a regicida tentativa de 1759, aventam que os ciúmes do conde de Atouguia respiraram pelos bacamartes disparados contra a carruagem do rei. Estou autorizado por meu bisavô­, que só ouvi nas palavras evangélicas de meu avô­ e de meu pai, a declarar a ti e à história que a honra mari­tal do conde de Atouguia não foi levemente inquinada por D. José I. A razão ou sem­razão da tentativa regicida está de sobra explicada no rancor da conculcada nobreza ao valido do rei. A Companhia de Jesus bandeou­se com a nobreza, porque o marquês a molestou, com mais arbítrio que justiça, na influência que ela exercitava nas colónias. O clero, revestido da suprema grandeza pela inabilidade e tardia devoção do rei D. João V, estranhou as coibições e reprimendas do reinado sucessor. O marquês tinha por si o braço do povo, e o braço

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propriamente seu, que era, digamo­lo sem estranheza, braço para suster mais formidável Atlas, carregado com o peso das iras do clero e da nobreza.

Tu sabes e sabe toda a gente o malogro da tentativa, e a justiça bárbara que sofreram os fidalgos no terreiro de Belém, e os jesuítas complicados, uns no desterro, outros nas masmorras, e aquele pobre do Malagrida na fogueira.

Um dos conjurados, que desfechou contra a carruagem do rei, foi Nuno de Mendonça. Os outros nunca ele os declarou; mas havemos de supor que um familiar do duque de Aveiro, por nome Policarpo das Neves, — presumo que era este o nome e apelido — foi o segundo que disparou infaustamente.

O que eu sei é que fugiram juntos; e com tão incrível feli­cidade, que vieram dar ao Minho a casa de meu bisavô­.

Nuno de Mendonça foi habitar a choça desamparada nas vizinhanças da capela de S. Gens. Policarpo entrajou­se de trabalhador nos campos, e foi cavar entre outros obreiros nas terras de minha casa. Passarem ao estrangeiro era­lhes impossível. Todos os dias eram presos nas fronteiras os vian­dantes menos suspeitos. A cabeça de Policarpo estava a preço de quatro mil cruzados; pela cabeça de Nuno de Mendonça ninguém dava nada. Este nome tinha morrido na memória de homens. O marquês de Pombal, depois de devassar na casa jesuíta de S. Roque, apenas soubera que desaparecera um familiar chamado Nolasco. Este Nolasco deu noites de febril insónia à omnipotente cabeça do valido.

Entretanto, o fidalgo da Vilariça, devorando­se de ódio e ânsias aflitivas no seu ascético antro de S. Gens, atraiu nova­mente o povo das freguesias subjacentes à montanha. Dizia­se que ele havia chegado da terra santa, e de Roma, onde beijara a mão de Clemente XIV, e talvez se gozou da sua antecipada canonização pela boca do dispensador das coroas imarcescíveis da glória eterna.

Policarpo saía de noite com meu bisavô­ ao topo da serra, e contavam ao ermitão as notícias chegadas da capital.

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Uma noite lhe levaram a nova do suplício do duque de Aveiro.

— E a duquesa? — perguntou Nuno.— Foi também degolada.— Pobre santa! — exclamou o fidalgo. — Morreu inocen­

tíssima!… Eu nunca ousei na sua presença falar contra o rei!E rompeu em altos gritos, pedindo à misericórdia divina

que lhe aligeirasse a demorada agonia de sua vida.Eu não sei se a fronte do Senhor se inclinou clemente à

prece do homicida, que mandara um bispo à região onde há o estridor de dentes, e quisera mandar provavelmente um rei à mesma região. O certo é que Nuno de Mendonça, poucos dias depois do suplício dos seus conjurados, morreu nos braços de um clérigo da minha aldeia, com odor de santidade não ouso asseverar­to; consta­me, porém, que se finou com o mau cheiro de todos os defuntos, cujo coração e mais entranhas se esface­laram, corroídas pelas herpes, durante dez anos de desgraça sem intercadência.

Aqui tens a história do ermitão. Queres agora saber que fim teve Policarpo das Neves, o ecónomo da casa dos Mas­carenhas? Julgavam­no filho natural de um fidalgo da casa de Aveiro, onde se educara e ganhara ilimitada confiança. Estava a enriquecer­se, quando se deu a catástrofe: esperava, abatido o marquês de Pombal, arredondar bens de fortuna que o elevassem às grandezas do seu nascimento, reconhecido irmão do duque.

Todos os seus haveres foram confiscados: não tinha onde cair morto; mas o que mais o molestava era não ter onde cair vivo sem medo que algum curioso, por escassez de recursos, lhe tirasse a cabeça para a vender pelos quatro mil cruzados oferecidos.

Meu bisavô­ conhecia nos Padrões da Teixeira, perto de Mesão Frio, um seu antigo criado, que ali abrira taverna. Foi ter­se com o homem, e comprou­lhe o estabelecimento, com a condição de arranjá­lo em local mais lucrativo do Minho. Policarpo das Neves senhoreou­se da taverna dos Padrões da

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Teixeira, e ampliou­a, construindo uma alpendrada para reco­lher as arreatas dos almocreves. Passados anos, casou, tendo ele quarenta de idade, com uma rapariga de uma aldeia do Marão. Teve um filho, que assistiu à morte do pai, e, só na derradeira hora, soube do moribundo qual era o seu nome, e como viera parar àquelas serranias. Divulgou­se a notícia, quando o filho e viúva já não tinham que temer a ação da justiça. O marquês de Pombal e D. José I já se haviam combinado, na presença de Deus, em perdoar a Policarpo das Neves.

Eu conheço dois netos deste homem de ferro, que trabalhou quarenta anos para deixar um filho abastado. Um deles abracei eu ontem em Vila Real, onde é delegado do procurador régio, um valente, e gentil, e pundonoroso rapaz, que tu havias de conhecer, há doze anos, no Porto, com uns formosos olhos azuis, e um espesso bigode louro: chama­se ele Valentim de Mascarenhas.

— Conheço: também ontem o abracei — disse eu. — Sou­lhe imensamente grato, porque fez o favor de me não prender…

— Pois tu estás em risco de ser preso? — interrompeu­me António Joaquim grandemente espantado.

— Estou em risco de ser preso… palavra de honra!— Porquê? Qual crime é o teu?— Regicídio! Se ainda existe a choça de Nuno de Mendonça,

permite que eu me faça ermitão de S. Gens, tirando a partido que tu serás a pomba alimentadora deste anacoreta, que te beija desde já as cândidas asas.

E, dizendo, beijei o segundo cabeção do capote de António Joaquim, e apeámos na estalagem de Penafiel.

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XIAMOR PATERNAL

Estávamos jantando e admirando a rijeza e elastério da fibra das galinhas de Penafiel, quando entrou à sala um sujeito, que abraçou António Joaquim arrebatadamente. O meu amigo apresentou­me ao Sr. Miguel de Barros, pessoa de trinta e poucos anos mais, galhardo tipo de fidalgo provinciano. Conversámos a respeito de crianças, porque Miguel de Barros não falava senão em meninos, com a efusão de um filantropo inaugurador de creches, ou com a ternura de um pai inclinado aos cinquenta anos. De feito, o nosso comensal era pai, e dava ares de estremecer como estremecem as mães seus filhos. Findo o jantar, separámo­nos. Miguel ia para Resende, sua terra, e nós embarcámos na liteira, cuja comodidade já me ia parecendo uma coisa problemática, depois de quinze horas de trajeto na superfície escabrosa do globo.

— Este Miguel de Barros, — disse eu a António Joaquim — se não tivesse meninos, havia de conversar agradavelmente na cultura da abóbora e do feijão frade…

— Cala­te aí, selvagem! — atalhou o meu amigo. — Se tu soubesses que as criancinhas foram os arcanjos redentores da alma e coração derrancados deste homem!…

— Então é coisa de história o amor do teu amigo aos meninos?

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— É, e verás. Miguel de Barros foi o homem que eu conheci mais precoce em desmoralizar­se. Aos vinte anos, dispunha de sua plena liberdade, de seus instintos maus, e de muito dinheiro, que ele escondera da vigilância do tutor, quando lhe morreu a mãe. Foi para Lisboa lapidar o brilhante bruto da sua bruta educação, e veio de lá aos vinte e quatro anos, assim que o dinheiro se lhe acabou, e o conselho de família lhe restringiu as pensões.

Sem Deus, sem lei, sem mínima ideia de deveres, agora entrego à tua imaginação, e conjetura tu o que faria um rapaz de insinuante aspeto, lustrado com o polimento dos salões da capital, bem falante, afeminado quanto convinha nas frivolidades gratas às damas de todo o mundo, e nomeadamente às damas da terra dele. Lido em histórias de amores aventurosos, tomou para modelo de sua alegre juventude os personagens mais sim­páticos, e quis, à força de poesia, intercalada de prosa, inflorar as suas patrícias, fazendo­as também personagens, chamando Elviras umas, Ofélias outras, outras Desdémonas, Virgínias algumas, e pelos modos achou de tudo, ou tudo compô­s com a sua prosa e poesia.

Este lavor de composição difícil nas condições em que se acha o progresso moroso das nossas províncias, custou­lhe alguns dissabores na sua terra. Cá por fora, nestes sertões, há pais de famílias que não deram fé ainda do clarão que se fez no mundo, e duvidam obtemperar aos evangelizadores da ideia nova. Há aí retrógrado que te quebrará a cabeça, se tu fizeres saber à família dele que o mundo agora marcha mais depressa que no século passado. Não sei quantos retrógrados desta ralé topou Miguel de Barros. O que está além da menor dúvida é que o rapaz, vezado em todas as artes e manhas da boa sociedade, sofreu o comum fadário de todos os adiantados da civilização: foi mártir: partiram­lhe a cabeça mais de uma vez, e obrigaram­no a mudar de terra.

Tem Miguel de Barros uma quinta em Santo Tirso. Aí nos conhecemos há dez anos.

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O moço, a despeito das cicatrizes da cabeça, não pô­de arrancar do seio a víbora da poesia que o andava ferretoando na entranha mais nobre, sem ofensa da outra, à qual presta ho­menagem o coração, desde que alvorece a aurora do juízo. Não mudou de vida: achou­se em novo terreno, e quis experimentar a cultivação das suas flores da alma. Abriu os diques à enchente extravasante da sua poesia, levou alguns corações na torrente, e ele propriamente se ia afogando nela. Não sei se Miguel ganhou medo da estátua de algum comendador, arremedo do pai da Inês de D. João. Desconfio que não foi bem uma estátua: algumas razões tenho para conjeturar que um lavrador o ameaçou de lhe abrir a sepultura no quinteiro, onde o surpreendera, uma tarde, recebendo um raminho de manjericão e alfádega da mão nada mimosa de uma rapariguinha mais que muito inocente e cativa dos requebros do fidalgo. Se assim foi, está explicada a mudança de Miguel de Barros para Braga.

Esqueci­me de instaurar em Braga a alçada das minhas averiguações: todas as hipóteses, porém, me induzem a crer que Miguel de Barros não fez por lá coisas que desmentissem os seus precedentes. Braga é um clima doce, uma natureza opulenta, um retalho de paraíso, um ninho de verdura para se amarem as aves, que têm ali uma primavera eterna.

Não obstante, como em toda a parte há milhafres, que não deixam amarem­se sossegadamente as arvéolas e os cochichos, Miguel de Barros desferiu as asas para outras regiões.

Foi dar ao Porto com o seu coração alanceado das injus­tiças da humanidade, e especialmente das injustiças dos pais de famílias. No Porto não se deu bem. Achou que a terra, sobre não ter poesia, tinha uns nevoeiros nocivos à saúde do seu aparelho respiratório. Quer fosse isto, quer fosse não o compreenderem as estrelas que ele apostrofava em linguagem simbólica, o certo é que, ao cabo de vagamundear dois anos entre o Marco de Canaveses, e Santo Tirso, e Braga, deliberou voltar ao ponto de partida, e tomar conta de sua casa, e do juízo necessário para viver com a cabeça inteira.

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O juízo, objeto em que toda a gente fala como coisa de fácil conseguimento, não vem assim depressa, e a propósito das nossas resoluções. Eu tenho pena de todos os doidos, daqueles doidos até que o não são por voto das ciências médicas. Ainda não conheci um extravagante que voluntariamente o seja, e conheço dezenas de doidos que se lastimam sinceramente de não poderem caminhar na estrada lisa, onde me encontram.

Miguel de Barros saíra mal sorteado do universal repositório do juízo, se é que há um lugar onde a humanidade recebe a faísca intelectiva, vulgar e indevidamente chamada senso co‑mum, a coisa menos comum deste mundo. Estava ele em sua casa fazendo e refazendo títulos de arrendamentos das quintas, gizando obras, planeando reconstruções, e cogitando até nas vantagens do casamento como base inconcussa de um sólido juízo. Nestes pensamentos honestíssimos, surpreendeu­o a apa­rição de uma moça campesina, graciosa como as andorinhas, e inocente como as flores, com que ela se toucava, às escondidas da gente, sumida nas ramagens das selvas.

Entro agora na segunda parte da história de Miguel de Barros.

A moça que o surpreendera tinha tão lindos olhos, que nem os abismos ousavam mostrar­se­lhes em sua fealdade.

Amou­o ela, como a flor ama o raio do sol que há de abrasá­la, e fenecê­la.

Disseram­lhe que fugisse ao condão fatídico daquele homem, que havia de ir à presença do Senhor na torrente de lágrimas que ele fizera chorar. A moça ouvia triste o que lhe diziam, e parecia responder com o silêncio: «Eu não quero que as minhas lágrimas entrem na torrente que hão de levá­lo à presença do Senhor.»

Angélica — é assim que ela se chama — estava um dia com uma criancinha nos braços. Esta criancinha nascera duas horas antes. Era dela. As lágrimas da mãe cobriam­lhe a face.

— Não posso deixá­la ir, meu Deus! — exclamava ela. — An­tes a vergonha! antes tudo, que deixá­la ir!… Se ele visse

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este menino tão lindo!… Se alguém lho mostrasse, ele não o deixava ir para a roda!

À beira de Angélica estavam duas mulheres: uma, com a face escondida no regaço, soluçava: era a avó do menino, que ela tivera nos braços, e não queria mais ver. A outra era uma vizinha piedosa, que havia de levar o recém­nascido à roda.

Foi esta quem respondeu às exclamações de Angélica:— Se tu queres, rapariga, o menino levo­lho eu ao fidalgo.— Leve! — clamou a mãe, entregando­lho, depois que lhe

enxugou o rosto.Ao nascer do sol, Miguel de Barros abria o gradeamento

da matilha dos cães para ir à caça com outros mancebos das circunvizinhanças.

Os cães latiam ruidosamente no souto contíguo à casa, e arremetiam contra uma mulher, que gritava.

Miguel assobiou à canzoada, e perguntou à mulher o que fazia ali.

— Esperava V. Ex.a — disse ela.— Que quer você? — perguntou Miguel.— Uma palavra em particular.— Que traz aí?Esta pergunta era já um toque do anjinho, que lhe falava

de entre as mantilhas de alvíssimo linho em que a mãe o envolvera.

— É o seu menino.— O quê?!— Esta florinha do céu! Ora veja, fidalgo, veja como é

lindo!Miguel fitou os olhos na criança adormecida e tocou­lhe

com o dedo indicador na face esquerda.Neste relanço, chegaram os companheiros com as suas

matilhas, conclamando:— Vamos, que os cães estrinçam­se uns aos outros.Miguel não desfitava os olhos do menino.— Para onde vai de aqui? — perguntou ele à mulher.

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— Vou levá­lo à roda! esta criaturinha tão bonita… Ora veja V. Ex.a quem terá coração de a não querer? Se eu não fosse tão pobre, ficava com ele… E, ainda assim pobre, se Deus me ajudasse, eu, ainda que pedisse esmola, bem o queria para mim… Pois há quem possa enjeitar um menino assim!… A mãe lá ficou a chorar, que é uma dor de alma ouvi­la!…

— Leve o filho à mãe — disse Miguel de Barros, e acrescentou: — Lá vou já.

E, voltando­se aos amigos, que o esperavam, disse:— Vão indo, e não esperem por mim. Depois… que quadros

belos ressaltam às vezes do seio mesmo do infortúnio!Quanto daria eu para ver Miguel de Barros, vinte e quatro

horas depois, ao lado de uma cadeira estofada, em que Angé­lica era transportada da sua pobre casa para a melhor alcova da casa do fidalgo! E vê­lo a ele chorar porque a criancinha, ao quarto dia de vida, amanheceu pálida mortalmente, porque sua mãe não pudera alimentá­lo durante a noite!… O ansioso estremecimento com que ele próprio se foi em demanda de uma ama, que lhe aleitasse o filho!… Vê­lo passear de noite nos salões para adormentá­lo nos braços!… O tremor melin­droso com que o pai o aconchegava, receando que o menino lhe escorregasse por entre as mãos!…

Queres agora saber o último lance deste magnífico espe­táculo?

É Miguel de Barros, seis meses depois, casar com a formo­sa mãe de seu filho, e prezá­la, pelo tempo adiante, com um tamanho coração, que, a meu ver, são as mãos do anjinho que lho estão enchendo sempre de ternura. Isto foi há oito anos.

Miguel de Barros tem hoje seis filhos. É um pai que me faz inveja a mim, sendo eu tão amante das minhas criancinhas. Como queres tu que ele fale noutro assunto? Os meninos são os arcanjos do seu resgate, e não lhe dão tempo a sentir o travor do tédio da vida.

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XIIHISTÓRIA DE UM BRILHANTE

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— Conta-me agora tu uma história — disse António Joaquim.

— Eu costumo vendê­las — respondi com o grave e sisudo desinteresse da arte. — Contava­te um conto bonito, se me desses este brilhante, que me vai cegando como o resplendor de Jeová ao povo escolhido.

— Esta pedra — observou o meu amigo, mostrando­me o anel — também tem história. Pertenceu aos brilhantes de minha prima Adriana.

— Ouçamos, portanto, a história dos brilhantes de tua prima Adriana.

— É sentimental!… Regozija­te! Minha prima nasceu no Porto. Ficou órfã aos dez anos, e quase pobre. Os brilhantes de sua mãe, e pouco mais, que pô­de salvar­se na honrada falência do pai, foi o que lhe deram, quando ela, aos dezasseis anos, saiu do Recolhimento de S. Lázaro para casar­se com um velho, antigo sócio de sua casa. Disseram­lhe que era a suprema demonstração de juízo casar com o sócio de seu pai, porque

1 na 2.ª edição que a presente reproduz, revista pelo autor, e onde os contos apare-cem pela primeira vez com título, este título saiu visivelmente errado, sob a forma de «História de um Bilhete»; o erro repetiu-se no índice.

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era velho, e porque era rico: como velho, amá­la­ia como os novos já não amam; como rico, deixá­la­ia rica e nova para depois poder escolher marido. Adriana, ouvidas estas razões de senhoras idosas e experimentadas, sufocou as do coração, e deu­se ao amor e à riqueza do velho, com a tácita condicional de desejar incessantemente que ele morresse para casar com o novo. A sociedade desculpa esta desmoralização.

O marido ultrapassou as promessas de um amor infinito. Amava­a até à ferocidade de um molosso que espia a caverna, onde se lhe escondeu a corça. Ninguém lha via: expediente único de sua invenção para que ela não visse ninguém. Não a levava ao teatro nacional, porque as comédias eram atentató­rias dos sãos costumes. Não a levava a bailes, porque era feia descompostura a da senhora casada, que se entregava às fúrias acrobáticas de um saltarilho. Se não houvesse missa de alva, o marido seria capaz de renegar a religião de seus pais para não levar a esposa à missa. Minha pobre prima, ao romper da manhã dos dias santificados, embiocava­se na mantilha, e seguia o marido, que, ainda assim, a espionava do alto da gola do capote em que embarricava a cara. Se ele via na igreja do Carmo, duas vezes, um mesmo homem, no domingo seguinte mudava para a Trindade, e de aqui, por motivo idêntico, para S. Nicolau, embora os sujeitos suspeitosos estivessem em devoto êxtase diante dos altares, e a luz do templo não permitisse tais madrugadas de amor a corações mundanos.

Adriana era uma ingénua e excelente menina. A paciência com que ela recebeu este sequestro dos mínimos prazeres da vida santificá­la­ia, se uma companheira de Recolhimento, aus­piciosamente casada com um discreto marido, a não incitasse à rebelião contra a tirania marital. Raras vezes se falavam; mas correspondiam­se semanalmente. É bem de ver que minha prima contrabandeava esta correspondência nas barreiras conjugais, desde que o previsto esposo lhe observou que não gostava de tais cartinhas, bem que as primeiras fossem inocentíssimas. Depois da proibição, Adriana desafogou­se em queixumes à sua

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amiga; referiu pelo miúdo a desconsolação das suas arrastadas horas; o suplício da sua soledade e orfandade de coração; a inveja que lhe faziam as suas criadas propriamente; o desejo que tinha de morrer… Palavra, porém, denunciadora de quebra da dignidade, nem uma só escreveu minha prima, posto que a sua amiga se não esquivasse a derramar­lhe uma luz infernal no coração em trevas.

Francisco Elisiário, que assim se chamava o marido de Adria­na, não estudara o sexo feminino, como costumam estudá­lo uns certos sábios, que se enganam todos os dias, e apenas ganham dos seus estudos saberem que são enganados, como outros que nunca estudaram matéria tão incompreensível. O melhor mestre, em ciência tão abstrata, é o amor. Amor do tamanho e da esperteza desse, que Francisco Elisiário encofrava nos seios da alma, poderás tu adjudicá­lo aos heróis e aos poetas; mas eu, na pequena área das minhas relações com a humanidade, apenas conheci amores enormes e duradouros nos Elisiários. As paixões dos heróis, celebradas pelos séculos, chamem­se eles Petrarcas ou Camões, ficam esculturadas em medalhões, pendurados nos frontais da história; porém, a crítica, se, uma bela manhã, acorda sincera e justa, reduz a proporções hu­manas os corações dos semideuses, e demonstra­nos, em face das confissões dos próprios heróis, que Petrarca, sem embar­go de chorar em sonetos uma Laura, senhora de são juízo, e sem embargo também das ordens sacras, deixou numerosos filhos, e acabou a vida alegremente entre eles. Luís de Camões, que bons autores fazem morrer de saudade de Catarina e de compaixão do ninho seu paterno, não morreu disso, nem de miséria, como outros dizem: morreu de enfermidade, caquexia talvez, antecipada pelos desregramentos da vida no oriente. Em quanto à celebridade dos seus infaustos amores com a formosa dama da rainha, meu amigo, deves saber que são muitas as damas incensadas nos seus sonetos, e tão baixos alguns dos seus amores, que ele mesmo se confessa envergonhado de ter amado uma negra. Aqui tens o que são as paixões dos grandes

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poetas que hão de avassalar o espanto das gerações por essa eternidade fora… Eu creio geralmente no amor dos Franciscos Elisiários, e com particularidade no amor do marido de minha prima. Não creio na solidez de nenhum outro amor, nem na perspicácia dos que estudam as mulheres, e cuidam que há uma ortopedia com que os aleijões da alma se endireitam.

Francisco Elisiário adivinhou que Adriana prestava atento ouvido aos induzimentos de algum demónio de má natureza. Pô­s­se de atalaia, e surpreendeu uma criada com uma carta. Quis arrancar­lha do seio a ferro frio, visto que a honestidade de seus costumes lhe não consentia apossar­se dela a mão desarmada, em local de tamanho melindre e intangível pudicí­cia. A criada, tremente de horror, entregou a carta, que, pouco mais ou menos, rezava assim:

«…Estive ontem no teatro lírico. Que deliciosa música a do ‘Trovador’, minha querida Adriana!… Lembraste­me sempre: foste o meu pensamento triste naquelas horas ale­gres! Tu, tão nova e tão linda, aí fechada, a ouvir ressonar o monstro!… Que vida a tua! que mocidade sacrificada ao ouro amaldiçoado e pesado como a tampa de uma sepultura!… E o que é, sobretudo, atroz é teu marido ter uma saúde que aflige a gente! Estás casada há três anos, e não me disseste uma só vez que teu marido estivesse pálido!… Morrem os anjos, padecem os homens de bom coração, como meu esposo, e esse laparoto vive no gozo da mais boçal saúde!…», etc.

Elisiário foi à beira da mulher com esta carta, e ululou por largo espaço. Adriana redarguiu­lhe, quando a paciência a desamparou, e ele, alucinado pela ameaça da separação, chegou a levantar uma cadeira para derrubar o aprumo da mulher.

No dia seguinte, minha prima fugiu para casa da sua amiga, e de lá escreveu a minha mãe, pedindo­lhe que a levasse para si, até arranjar convento onde acolher­se.

Foi minha mãe ao Porto, e conduziu Adriana para casa, com a cláusula de se não deter muitos dias fora do convento, para que as línguas más lhe não empeçonhassem a ação da fuga.

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Francisco Elisiário, no entanto, empregou alguns meios judiciários para reconduzir a mulher; mas Adriana, protegida pelo esposo da sua amiga, achou traças de sofismar a lei pro­tetora dos maridos.

Poucos dias se demorou connosco minha prima. Houve­se com austeridade minha mãe, recusando­se a dar asilo perma­nente a uma senhora casada, que ia intentar uma ação mal fundamentada de divórcio, contra a vontade do marido.

Elisiário havia dotado a mulher com trinta contos de réis. Adriana, além de meios bastantes à sua sustentação num con­vento, pedia as suas joias, avaliadas em quatro mil cruzados, e mais nada pedia.

Estava Adriana recolhida em Vairão. Vivia mais satisfeita. Tinha por si a pureza da consciência. Ninguém a vigiava que incutisse suspeitas. De quinze em quinze dias, íamos vê­la minha mãe, minha mulher, e eu. Porém, o marido, dementado pela ira, em que degenerara o amor, alegava que sua mulher lhe fugira para desatar os vínculos sagrados, que aceitara no altar. Esta frase, que tem por si os calorosos aplausos da moral pública, era estilo de jurisconsulto; que Francisco Elisiário não era homem de frases, nem defenderia a tese da santidade dos vínculos conjugais. É, todavia, certo que o ciúme lhe queimava as entranhas, o fígado especialmente, víscera que ele trouxera doente das regiões africanas. O homem concebeu a lerda sus­peita de que era eu o concorrente ao coração de Adriana, pobre menina, que apenas sentia coração na enchente de lágrimas, que lhe extravasava às faces esmaiadas.

Um dia, aparece em minha casa um homem redondo e escarlate, com dois olhos coruscantes, e uma capa de borracha. Era Francisco Elisiário, que vinha pedir a minha mãe contas de sua esposa. A pasmada senhora, quando viu, pela primeira vez, o marido de sua sobrinha, compreendeu a flagelação da infeliz Adriana, em três anos de conformidade, e pavor de uma criatura tão desusada! Não obstante, como ele, em linguagem humana, dizia que queria sua mulher, minha mãe ordenou­me

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que acompanhasse eu a Vairão o Sr. Elisiário, e o fizesse escutar por minha prima.

Consegui que Adriana o escutasse. Consta­me que Elisiário, assim que entrou os penetrais da grade, como quisesse ajoelhar­­se ante a pálida e formosa esposa, ficou de cócoras, em con­sequência de não poder com o gravame do fígado e do baço e das entranhas circunjacentes. Esta postura, toda natural, e não imitada dos galãs teatrais, comoveu Adriana, que o mandou erguer­se em tom de mavioso compadecimento. Expô­s Elisiário as suas angústias, e rematou pedindo à esposa que voltasse a tomar conta do governo da casa, que andava à matroca.

Esta palavra «matroca» destoou nos ouvidos de Adriana. Doeu­se ela de se ver meramente necessária para a governação da casa.

— Sente a falta de uma criada, não é assim? — perguntou a esposa. — Não lhe faltará quem administre a sua casa com mais zelo. O que eu lhe peço, Sr. Elisiário, é as joias que eram de minha santa mãe. Se entende que o sustentar­me é esmola, dispenso­o desse encargo; os meus parentes me darão as sobras da sua mesa.

O marido desandou do tom suplicativo para o da inso­lência. Declarou que não dava nada à esposa infiel que o não amava. O epíteto infiel exacerbou a chaga e o rancor. Elisiário, provocado a explicar a significação da palavra, respondeu que a esposa, que consentia chamarem­lhe monstro ao marido, era mais que pérfida. Esta razão, que me não parece de todo tola, foi a derradeira que minha prima lhe ouviu. Ergueu­se ela então fumegante de pundonor, e saiu da grade.

Francisco Elisiário saiu ao terreiro do convento, e disse­me:— Muito bem!— Conciliaram­se? — perguntei eu com sincero interesse.— Não, senhor… Tomou conta dela o diabo; mas o senhor,

se cuida que a minha fortuna lhe há de ir às mãos dela, está enganado… nem às suas… — ajuntou ele, comprimindo entre os punhos as proeminências adiposas do abdómen.

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Eu fitei­o com assombro, por me não parecer coisa fácil enforcar aquele homem sem um patíbulo ad hoc, um patíbulo especial para a estrangulação daquele esferóide.

* * *

Francisco Elisiário cavalgou, sacudiu as pernas contra os ilhais expiatórios do macho, e foi em direitura ao Porto. Voltei ao palratório para expandir o meu espanto, e encontrei minha prima medianamente consternada, e melhor disposta a gracejar do meu ressentimento que a lastimar­se dos ofensi­vos ciúmes do esposo. Referiu­me o essencial do diálogo com ele, e concluiu encarregando­me de recomendar a minha mãe que não se afligisse com o receio de tê­la às suas sopas; que ela, acostumada ao trabalho e à paciência, se alimentaria com recursos próprios, independente de favores constrangidos. Adriana, como vês, levara a mal que minha mãe lhe remetesse a Vairão o esposo, e uma carta de religiosas admoestações em ordem a conciliá­los.

Fui dali para casa, grandemente comovido do infortúnio de minha prima, bem que ela o dissimulasse com o falso sorriso da pobreza honesta. Pobre rapariga! Nem a felicidade do coração, que é a moeda verdadeira fabricada pelos anjos; nem a felicidade da cabeça, que é a moeda falsa fabricada pelos homens! Ver­se ela assim, tão moça, e tão bem sorteada de graças, sequestrada ao mundo, com encantadoras reminis­cências dele, e esperanças de achar o que o mundo não tivera para ela: uma alma, que parece ser coisa tão fácil de encontrar quanto é averiguado e certo que há pessoas que têm duas almas, três, e mais, à sua disposição! Adriana reclusa num convento, num sepulcro, povoado de múmias movediças, monjas que já haviam mandado para o céu os espíritos, e se haviam cá ficado em corpo a expurgar na pobreza algumas venialidades que não tinham que ver com as almas! Como havia de gastar a vida naquele devorar­se continuado a mulher de vinte anos,

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incapaz de pedir à sociedade um lugar no banquete das suas alegrias fáceis, talvez criminosas, mas exemplificadas por muitas mulheres sem desculpa!

Fiz estas e outras reflexões a minha mãe, que chorou copio­samente, prometendo ir buscar Adriana ao convento, e desprezar a maledicência do mundo, apelando do juízo falso dos homens para o tribunal divino. Porém, antes deste expediente louvável, foi ela mesma a Vairão, no intento de reduzir a sobrinha a sacrificar alguns anos de sua mocidade a uma velhice repou­sada. Pediu­lhe que escrevesse ao marido em termos brandos, convidando­o à reconciliação, e tirando a partido que ele a não teria encerrada como esposa indigna de confiança.

Adriana obedeceu: é que já tinha obedecido à razão que lhe falava pela fechadura do cofre de Francisco Elisiário. Desculpemo­la, desculpem­na as mulheres, que têm mais poesia no seio que todos os sonetos de Petrarca; desculpem­na estas virgens de olhos húmidos, que passam à beira dos esterquilí­nios deste mundo, e por milagre não caem, levando os olhos postos no azul do firmamento! Desculpem­na, finalmente, as almas experimentadas que sabem o que é a razão a falar pela fechadura de um cofre cujas entranhas são cem contos, embora sobre o cofre esteja sentado, como sobre a pipa, um Sileno, que, ao rir­se do mundo, rasga de orelha a orelha uma boca, semelhante à do inferno, absorvente de todas as inten­ções generosas, de toda a poesia dourada, de todas as louras e angélicas visualidades do melhor coração!

— Está desculpada! — atalhei eu. — Declaro­te, em nome do globo que tem a honra de nos possuir, que está desculpada tua prima. Escreveu ela, portanto, ao marido…

— Escreveu. Acompanhei ao Porto minha mãe que foi a portadora da carta, que, desgraçadamente, era uma carta com estilo, carta da cabeça, fraseada com repugnância do coração, carta que tanto podia ser santa como imoral — santa porque oferecia o pescoço ao jugo, imoral porque mentia por amor da riqueza.

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Não a entendeu Francisco Elisiário, nem minha mãe entendia o melhor dela, quando o marido de Adriana lhe pedia expli­cações do palavreado.

— Isto não se percebe! — bradou ele. — Minha mulher diz aqui…

E leu:— «Dou­te a minha alma; dou­te a minha vida; mas quero

ar, quero a liberdade da respiração.» Eu já a proibi de respirar alguma vez?! — perguntou iracundo ele. — Sua sobrinha disse­­lhe que eu a não deixava tomar ar?!

— Não, Sr. Francisco; — respondeu minha mãe. — Adriana quer dizer, acho eu, que precisa de mais liberdade, e mais confiança da parte do senhor.

— Vem barrada! — exclamou o esposo em linguagem pitoresca. — Faz favor de me olhar para a testa! Vê lá algum T?

— Não, senhor.— Pois então, minha amiga, não sei que lhe faça. Liberdade

é o governo da casa de seu marido. Comédias e bailes é o que ela quer? As comédias são a perdição do género humano; e os bailes são laços que o demónio põe às criaturas do sexo frágil. Eu sei histórias a este respeito, minha senhora, que é da gente amarrar as mãos na cabeça!… Sabe a senhora que mais? Eu fiz uma grande rapaziada em casar com sua sobrinha. É o que me diz toda a gente.

— Rapaziada! — atalhou minha mãe com indiscreta franqueza. — O que o Sr. Francisco fez aos sessenta anos foi uma rapaziada muito serô­dia… Tinha já idade para refletir…

— Acha­me muito velho?! — atalhou ele raivoso. — Pois olhe que eu podia escolher, e casei por caridade… Um homem que tem cem contos…

— Casa por caridade…— É como diz, e acabou­se! Enfim, eu responderei à carta

de minha mulher, depois de pensar no caso. Vou consultar o meu sócio.

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— Não consulte, Sr. Francisco — disse minha mãe, erguendo­­se para sair. — Sua mulher tem pão em minha casa, e virtude em si própria para merecer que Deus lhe faça sentir a vossemecê o remorso de a ter caluniado.

Presumo que Francisco Elisiário ficou um tanto movido; mas quis ir consultar o sócio. Conheces o Sr. Eusébio Luís Trofa?

— Conheço e respeito esse sujeito. É um homem honesto: di­­lo toda a gente entendida em homens honestos.

— Sem te querer desmentir a ti e a toda a gente, peço vénia para referir­te sobre que cimentos assenta a honestidade do Sr. Eusébio Luís Trofa, Castor do Pólux­Elisiário. A figura dele é também de Castor, anfíbio, que pertence aos mamíferos da família dos roedores (Castor‑Euzebius de Linneu).

Francisco Elisiário arrebanhou um bom capital por ser esperto…

— Fez ele muito bem — interrompi eu. — Eu considero honrada a inteligência universal por aqueles que a empregam em enriquecer­se. No abatimento da minha pobreza estúpida ainda me resta o olho penetrante da consciência para ver e admirar a perspicácia dos homens que se locupletam, e mais ainda dos locupletados que conservam, com aplauso público, o rótulo da sua honestidade. Isto é que é saber, isto é que é a prova do grande alcance do intelecto humano!… Vais contar­me agora com enormes frases a história de Eusébio Luís, cuidando que me obrigas a fazer caretas de estranho espanto. O homem decapitou algum amigo milionário? Envenenou três famílias que o deixaram herdeiro?

— Nada, não: casou­se com a mãe de um seu amigo defunto, herdeira de muitos contos…

— Então isso é pecado, que prove a esperteza de Eusébio Luís Trofa!? Pareces­me… A gratidão, a que me obriga o favor de ir de liteira, tolhe­me de te dizer que me pareces arquitolo!

— Espera, que a imoralidade do casamento está no prólogo. Na vila dos Arcos havia uma pobre jornaleira, que, há coisa de catorze anos, andava a britar cascalho na estrada do Porto

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a Braga. Era uma suja e lázara criatura de cinquenta e tantos anos, encorreada dos ardores do sol, e esmoucada e desnocada de pés e mãos pelo pesado trabalho de carregar e martelar pedra.

A mulher mandara para o Brasil um filho, que mal sou­bera o nome de seu pai, e conseguiu facilmente esquecer o nome da mãe. Este sujeito, quando liquidava uns cem contos de réis com que tencionava regressar à Europa, morreu sem disposições. A herança foi depositada no consulado português, à espera de averiguações.

Eusébio Luís, natural dos Arcos, conhecia a procedência do defunto, e assim o declarou no consulado. Vieram para Portugal os competentes avisos, e Eusébio saiu no paquete em que eles vieram.

Chegou aos Arcos, e indagou habilmente da existência da mãe do falecido. De paragem em paragem, foi dar com ela a britar pedra no viaduto de Arnoso. Chamou­a de parte, disse­lhe que lhe conhecera o filho no Brasil, e tinha ordem de procurar e socorrer a mãe do seu amigo, tirando­a desde logo da má situação em que a encontrasse. Dito isto, levou­a consigo para Braga, vestiu­a modesta e limpamente, sentou­a com ele à mesa farta e houve­se com todo o cuidado para que alguma indigestão a não apanhasse.

Passados três dias saiu com ela para o Porto.A este tempo, mais de seis pessoas procuravam nos Arcos

a tia Antónia Pires, mãe do falecido João Pires de Almeida, e saíam dos Arcos a procurá­la na estrada. O engenheiro condutor via­se abarbado para responder a todos os interro­gatórios dos negociadores da herança, que se escondiam uns dos outros. Eusébio Luís Trofa leu anúncios em que Antónia Pires era avisada para se não deixar lograr por um tal meliante, que a fora buscar ao viaduto de Arnoso. No governo civil do Porto já estavam instruções para descobrir a mulher raptada; e providências dadas para inutilizar a fraude e dolo de algum contrato, que viesse a descobrir­se. Eusébio pediu conselho ao seu amigo Francisco Elisiário.

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Resposta do homem honesto:— O que deve você fazer desde já, é casar com ela; e depois

que lhe mordam na sombra.Antónia Pires ficou estarrecida, quando Eusébio lhe ofereceu

a grande e gorda mão, e, para vestido de casamento, um corte de seda amarela, e um chapéu verde com fitas vermelhas, e uns adornos de parreira com dois cachos de uvas ferrais, e um passarinho entre a folhagem, que dava ares de ser uma calhandra.

Encantou­a tudo isto à tia Antónia Pires, que tantas vezes amassara com lágrimas as cô­deas do seu pão.

O casamento celebrou­se em Cedofeita com dispensa de proclamas, e voltaram de carruagem, eles e os padrinhos, e foram jantar ao Reimão.

De aí a dias, Eusébio deu parte a sua esposa que lhe havia morrido o filho. Antónia chorou, como todas as mães; e, depois que soube a perdoável astúcia do marido, que lhe queria de alma, chorou ainda por ter enriquecido contra vontade do filho ingrato.

Eusébio deixou a mulher no Porto entregue aos cuidados do seu amigo Elisiário, e foi no próximo paquete levantar a herança do enteado. Aqui tens um espécime da biografia de Eusébio Luís Trofa.

— Não encontro imoralidade nenhuma nesse facto, António Joaquim! — observei eu. — Se Eusébio Luís não casasse com a senhora D. Antoninha Pires, senhora muito do meu respeito, casava eu, e não sei se casarias tu, num país em que a biga­mia fosse permitida. Eu tenho a honra de conhecer a senhora D. Antónia, de a ter visto muitas noites no teatro de S. João, a chorar, quando o tirano nos dramas quer fazer em postas as vítimas ingénuas. Estas lágrimas denotam sensibilidade e inteligência. Em quanto à figura, se não arrebata, repulsiva também não é. Os marabus, as fitas, as flores, os broches, e a auréola ideal que doura todas as testas cotadas em cem contos de réis, não te direi que a formoseiam, mas, plástica e

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esteticamente falando, imprimem­lhe, não sei como, um não sei quê, que se chama simpatia. Eu não sei realmente com que direito censuras tu em Eusébio Luís o que por aí anda tolerado e louvado em sujeitos, que mofam dos Eusébios. O homem negociou com o coração da mulher? Casou com ela justamente porque era rica? Olhem que admiração!… Quantos argonautas conheço eu que conquistaram o velo de ouro através de mares mais lamacentos!… Quantos mancebos, que pareciam andar queimados da sede do ideal, eu tenho visto abaixarem a cabe­ça às fontes sujas de uma sórdida cupidez! E cuidas tu que a irrisão pública os mortifica? Valha­te Deus! A irrisão pública deixou de os mortificar desde que eles patinharam no lameiral comum, e provaram que as leis do espírito tanto alçam a gente à idealidade, quanto as leis invioláveis da matéria nos puxam para a doce e suave estupidez de possuir cem contos de réis. A sentimentalidade, a poesia, este quê subtil e puro intelecto, que nos eteriza e mete pelo céu dentro, é o que nos ficou do Adão primitivo, antes do lapso; é uma reminiscência da primeira cabana, que o Criador construiu para o homem no centro da criação, reinado dele; porém, depois do tombo que sofreu a humanidade, é preciso que todos vão caindo no lodaçal, onde fermenta esta coisa podre chamada dinheiro. Tu não tens visto o poeta Lamartine a conversar entre nuvens com os anjos? Pois saberás que ele ontem desceu de lá, para pedir, cá em baixo, dinheiro à França. Não ouves em Portugal, e em toda a parte do mundo, onde há escritores, os grandes poetas, os intérpretes das avezinhas, e das relvas, e das brisas, a gritarem que se faça uma lei de propriedade literária, propriedade de uma ode à lua, e de outra ode ao sol, e de umas quadras a uma menina com três estrelas? Não ouves esta gritaria a pedir dinheiro? Como justificas tu, pois, o teu espanto se homens tais, como Eusébio, apanham um cento de contos pelo mais honesto e lícito dos meios? Que dizes tu do príncipe de Polignac, matrimoniado com a filha do capitalista Mirés? Quem é que zomba de en­laces desta natureza tão frequentes em Portugal, e precedidos

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de episódios muito mais irrisórios que o casamento de sua excelência a senhora D. Antónia Pires?

— Estou obstruído! — exclamou António Joaquim. — Tens à tua disposição torrentes de palavras, que são cataplasmas emolientes no meu espírito. A liteira embrutece­te, meu amigo! Se queres, salta fora, e toma ar.

— Vou bem, vou bruto, menos que o necessário para ser ditoso; mas estas reformas operam­se lentamente. Vamos ao conto.

* * *

— A mim logo me disseram no Porto — continuou o meu amigo — que Eusébio Luís Trofa era sujeito de pestilenciais entranhas, e voto pesado no espírito, ou nos lombos de Francisco Elisiário, à falta de espírito. Sem embargo, assim que eu soube quem era a segunda consciência do marido de minha prima, fui ter com o ricaço, a fim de preveni­lo a favor da reclusa de Vairão. Eu sabia que ia tê­las com um homem esperto, esperto­mau, da velhacaria da maldade, que é grau supremo da esperteza humana. Naquele tempo, a minha energia moral ia de par com a santa valentia dos antigos apóstolos, que pregavam aos príncipes bárbaros a lei de Cristo, civilizador das almas…

— E agora mesmo — atalhei eu — pareces­me apóstolo! A propósito do Sr. Trofa, acho que consomes estilo de mais! Onde tu ias pregar, António!…

— Pois vais ficar admirado da minha palavra omnipotente, e do local escolhido para o discurso. Disseram­me que Eusébio Luís e sua esposa estavam no teatro de S. João assistindo pela duodécima vez à representação da Degolação dos Inocentes, tra­gédia de comover por tal sorte os ânimos, que todas as pessoas que a viam ficavam melhores. Entrei no camarote, no lance em que Herodes ordena que se degolem todos os meninos da Judeia, e cai o pano sobre a hedionda carnagem, que vai fazer­se entre cenas. A Sr.a D. Antónia Pires, nesta ocasião, ensopava o seu lenço em lágrimas; e Eusébio Luís com o dedo polegar da

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mão direita, e o outro dedo polegar da mão esquerda esfregava os dois olhos, como se as lágrimas lhes fizessem comichão. Isto via eu pelo resquício da porta do camarote, e entrei, antes que as torneiras da sensibilidade, abertas por Herodes, desandassem. Fiz as cortesias preparatórias, e invoquei a inspiração. Eusébio, à primeira, cuidou que eu era ator que lhe ia oferecer um bilhete para o meu benefício, e disse logo:

— Se leva a Degolação dos Inocentes, fico com o camarote.— Não sou ator, — disse eu com gesto abatido e voz

cava, — sou o enviado de uma alma que sofre, de uma cria­tura que padece, tão inocente como os meninos que o ímpio Herodes acaba de mandar degolar!

D. Antónia abriu a boca, e o marido fechou a dele. Observei esta plástica, e raciocinei que o mesmo idêntico sentimento produzia efeitos contrários nas articulações maxilares dos dois cô­njuges; e desta operação mecânica inferi que a boca das duas pessoas era o órgão indicativo das sensações da alma delas, facto importante, se não único, para averiguações, que podem vir a restabelecer a suspeita de que não há alma nenhuma, nem essência nenhuma incorpórea, e que a sede das sensações está nos queixos.

Assim que D. Antónia começou a fechar a boca, e Eusébio a abrir a sua, segundo a natureza de cada um, aproveitei ha­bilmente os dois minutos da surpresa, e disse lamentosamente:

— A infeliz que sofre é Adriana, malfadada esposa de Fran­cisco Elisiário, homem honrado, mas injusto; coração de um anjo, mas anjo decaído da sua grandeza. Sim! — prossegui eu, com cada olho em cada um dos ouvintes suspensos. — Sim! Adriana, neste momento, bem podia, como a Sr.a D. Antónia, estar gozando o doce prazer de assistir à inocência degolada, prazer inocente que os Herodes do nosso tempo perseguem tiranamente. Que mal fez ao mundo, que mal fez a seu marido a nobre Adriana, para, na flor dos anos, estar entre ferros de um convento, saudosa do esposo, apesar… sim, apesar, digo eu, de ele a ter querido sepultar viva!

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— Isso não me consta! — interrompeu Eusébio, severizando o rosto em defesa do seu amigo. — O meu sócio Francisco Elisiário era incapaz disso… Sepultá­la viva!… O senhor, quem quer que seja, está enganado. O meu amigo teve umas testilhas com a mulher, quis dar­lhe com uma cadeira; mas não lhe chegou. É o que foi. Isso de matá­la viva, é peta!

— Peço licença para me explicar, Sr. Eusébio Luís — volvi eu. — Sepultar viva uma mulher é… sabe o senhor o que é? Sabe V. Ex.a o que é, Sr.a D. Antónia? Oh! V. Ex.a decerto não sabe, porque Deus lhe deparou um marido, que é a bondade em pessoa, e o coração mais generoso que dar­se pode em peito de marido! Um marido que a conduz ao jardim de S. Lázaro e às Fontainhas; um marido que lhe tem proporcionado as sabo­rosas merendas do Reimão; um marido que a traz ao teatro; e finalmente, um marido que lhe está adivinhando as vontades para lhe encher de flores o caminho da vida. Quem tem um marido como a Sr.a D. Antónia?

— Graças a Deus! — atalhou ela abalada e enternecida a prantos. — Tenho um marido como há poucos.

— Eu não conheço outro — acudi eu.— São favores! — murmurou Eusébio; e continuou flautean­

do uma vez de vinagrinho, e sacudindo os bagos de rapé do peitilho da camisa com certeiros piparotes; — mas olhe o senhor que o meu amigo Francisco Elisiário também não é mau marido — ajuntou ele.

— Eu creio que não é; porém, um injusto ciúme prejudica a sua bondade, e a ventura de sua esposa. Pois V. S.a, Sr. Eusébio, casado com Adriana, fechá­la­ia em casa, privando­a de todos os honestos prazeres desta vida? Quereria que ela chorasse em silenciosa solidão saudades dos pais que tanto lhe queriam? Deixá­la­ia entregue à sua própria dor, devorando­se na impos­sibilidade de conversar com as suas amigas, de ir às festas de igreja, de visitar os altares na semana santa, de ir espairecer um ou outro domingo ao campo, de ver a Degolação dos Inocentes, ou o Santo António, Taumaturgo? V. S.a faria isto a sua mulher?

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— Eu, não!— Pois aí tem o que é sepultar viva uma mulher, Sr. Eusébio!

Aqui tem o que fez o seu sócio à cândida e inocente esposa que, por desventura de ambos, lhe confiou mocidade, beleza, virtude, esperanças, tudo, Sr. Eusébio e Sr.a D. Antónia, tudo!

Neste ponto, D. Antónia encheu a mão direita com o lenço, e pespegou­o no olho direito, como quem assenta uma ventosa. O marido carregava os dedos de vinagrinho, e sobressorvia pitadas como se quisesse entupir os condutores das lágrimas, que lhe repuxavam do íntimo seio.

Ergueu­se o pano, para aparecerem no sanguinário tablado os carnífices do tetrarca da Judeia. Fiz menção de retirar­me; porém, Eusébio, com agradável sombra, atalhou­me a saída, dizendo­me:

— Eu quero falar mais alguma coisa com o senhor; deixe­se estar até ao fim da comédia, se lhe não faz desarranjo.

Assisti ao ato final da «Degolação». Algumas vezes, quando a tolice da tragédia era capital, cuidei que me andava uma lâmina no pescoço a cortar as carnes. A linguagem portuguesa e o senso comum não choravam menos que as mães dos meninos descabeçados; mas quem chorava mais que as mães judias e que a gramática de nossos cristianíssimos avós, era a Sr.a D. Antónia.

Em verdade te digo que não há virtudes onde falta coração suscetível de compadecer­se com as desventuras fantásticas. Deus me livre das almas requeimadas que observam os espe­táculos trágicos com o olhar desdenhoso da arte! Eu folgo, e já folguei de te dizer que minha mulher chora quando lê os teus romances. Se ela se risse da salgalhada de lamúrias que tu escreves, e discutisse a verosimilhança das angústias dos teus personagens, acautelava­me dela. No camarote, vizinho de D. Antónia, estavam quatro meninas vestidas de branco e rosa: pareciam serafins, que obtiveram licença do Senhor para descerem do céu ao teatro de S. João, a fim de verem como os seus irmãozinhos inocentes foram degolados há mil oitocentos

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e cinquenta e tantos anos. Pois estas meninas, a cada frase espumante de lágrimas que estoirava no palco, fungavam umas risadas que chamavam a atenção dos camarotes próximos. Se olhavam para D. Antónia, e a viam com os olhos vermelhos de chorar, ajuntavam as caras em grupo, e espirravam para não romperem o peito contra os espartilhos. Estas quatro meninas deviam ter na plateia quatro apaixonados admiradores do seu espírito, que se estavam glorificando de serem amados por mulheres de crítica, mulheres superiores à altura das parvoiçadas do drama. Tenho pena de as não conhecer de nome para te perguntar agora se aqueles quatro serafins deram a felicidade doméstica aos maridos, ó meu amigo, a mulher, sinceramente mulher, é a que tem coração para estremar o pensamento doloroso das formas grotescas com que o vestem os espíritos incultos. Que tem que ver com as composturas da arte a alma singela a quem bastam as mil tristezas sem artifício que a natureza lhe revela?…

— E o Eusébio Luís que te disse depois? — atalhei eu, antes que o leitor me atalhasse a mim.

— Eusébio — respondeu António Joaquim — disse­me que o fosse procurar no dia seguinte, ao seu escritório, por volta do meio­dia.

Minha mãe alegrou­se com as minhas esperanças e quis à fina força conhecer a Sr.ª D. Antónia Pires, assim que lhe eu disse que ela chorava copiosamente. Entendi que o aproximarem­­se as duas lagrimosas pessoas, era assegurar o bom êxito da minha empresa, começada por um disparate, que só a boa fortuna dos tolos podia tirar a limpo.

Quando entrei no escritório pedi a Eusébio licença para apresentar minha mãe à Sr.a D. Antónia.

Agora vais tu ver que eu não sou inteiramente destituído de engenho para tecer um enredo de romance.

Preparo­te uma surpresa! Se eu fosse um narrador vulgar, esta minha história, haviam de cuidar os teus leitores, alguma vez, que ma contou um destes dois machos, sem com isso

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o macho noveleiro honrar a sua avó, que também palavreou histórias, debaixo das pernas de Balaão.

* * *

Eusébio mandara connosco um caixeiro para nos intro­duzir à sala, onde a Sr.ª D. Antónia havia de vir receber os cumprimentos.

Como a senhora se deteve alguns minutos, o que sempre acontece às damas que se não alinham nem enfeitam para governarem sua casa, minha mãe achou curta a demora para admirar­se das pompas e galantarias, que adornavam a sala do Sr. Eusébio Luís Trofa.

Eu também estava entretido a examinar um pretinho de barro que mostrava a língua de papelão vermelho, e esbu­galhava os olhos de vidro. Este pretinho, cotado em doze vinténs, estava entre duas ricas jarras chinesas, com flores do Constantino.

Sobre o pedestal de um cronómetro, cujo vértice era a estátua de Wellington, vi um cãozinho de vidro com uma alco­finha na boca, e uma cigarreira de missanga com as iniciais de Eusébio Luís.

Nas étagères acharoadas dos ângulos da sala brilhavam os mais bem imaginados brinquedos de crianças, gatos que miavam, galinhas que cacarejavam no centro dos pintainhos, tudo por molas, e esquadrões de cavalaria de chumbo postos em ordem de batalha contra outros esquadrões.

Minha mãe achava isto lindíssimo, e eu estava de pachorra para passar ali algumas horas aprazíveis na exposição do bom gosto de um homem rico.

Não me há de esquecer que o tapete era de penugem aveludada, que parecia uma alfombra de sestearem princesas mouras, enquanto que no limiar da porta e soleiras das janelas os estrados eram capachos de palha, avaliados proximamente em 110 cada um.

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Num pano da parede estavam os dois retratos em corpo inteiro de Eusébio Luís, e sua senhora, primorosos traslados do exato e mimoso pincel do Resende: noutro pano, ressaltavam as cores vivas de um quadro de frutos, em que sobressaía à primeira luz o escarlate apetitoso de uma melancia aberta em talhadas, e um açafate de pêssegos, que ressumavam o seu doce suco.

Noutro pano pendiam de cordões de seda, rematados em borlas franjadas de ouro, dez painéis da história do filho pró­digo, não de casaca preta, como o vestiu a imaginação de um trolha francês, mas de vestes patriarcais, em conformidade com a época bíblica do edificativo caso.

No outro pano do grande quadrado da sala, estavam as janelas guarnecidas de cortinados damascados de diversas cores, esplêndidos, alterosos, lardeados de braçadeiras de esmalte. Ora, como te disse, os debruns destas cortinas caíam sobre capachos de palha.

Eu começava a rir­me, quando a Sr.a D. Antónia entrou na sala. Minha mãe levantou­se a custo da estofada cadeira, em que se afundira, e estendeu a mão à esperançosa protetora de sua sobrinha. D. Antónia para, firma­se muito no rosto de minha mãe, e murmura:

— A senhora…— Sou a tia de Adriana, que venho pedir a V. Ex.a o favor

de interceder com o Sr. Francisco Elisiário, não para perdoar a sua mulher alguma culpa, que ela está inocente como os anjos do céu; mas sim para que ele a trate com o amor que ela merece e a não obrigue à desgraçada escravidão com que não podem as esposas de vinte anos.

— Mas a senhora — tornou D. Antónia agitada e lagrimo­sa — como se chama?

— Eu sou Maria Carlota.— Da casa de Rebordães?— Sim, minha senhora… — acudiu minha mãe — pois

V. Ex.a conhece a minha família?!

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— Este é o senhor seu filho Antoninho? — tornou D. An­tónia.

— É sim, minha senhora.A esposa de Eusébio Luís correu para mim, apertou­me ao

seio, e exclamou:— O meu Antoninho!Nisto, e nesta postura nos surpreendeu o marido.— O marido não ficou mais espantado do que eu! — observei

ao meu verídico amigo António Joaquim. — Desabafa­me desta ansiedade! Eu cuido que estás inventando com a mais desastrosa fantasia, se te não sais naturalmente dos braços de D. Antónia! Parece­me que a natureza não se repetiu ainda em semelhante disparate!

— Pois vais ficar de novo surpreendido com a simpli­císsima naturalidade deste encontro. D. Antónia, lavada em lágrimas, sentou­se, e disse ao marido, com intercadências de soluços:

— Eu já te contei, Eusébio, a minha triste vida toda. Lembras­­te daquela senhora, que pagou a quem criasse o meu filho para eu criar o dela, quando me vi desamparada? Aqui tens o menino que eu criei a meu seio.

Minha mãe correu a abraçar­se em D. Antónia, assim com uns ares de estremunhada ao acordar­se de um alegre sonho. Eusébio Luís manifestou o mais genuíno semblante de bom homem. Eu, bastante comovido com o lance das duas velhas abraçadas, tinha arrepios de sangue e de cabelos. Aos meus olhos, em que por vezes a poesia do céu antepõe o seu prisma, ambas elas se me figuraram numa só, pela identificação dos benefícios maternais; uma dera­me ao mundo; a outra dera­me o seu sangue.

Agora, em poucas palavras, te direi que Antónia Pires fora casada com um mau homem que a deixara mãe de uma criança de dez dias, e desapareceu dos Arcos. Antónia foi dar a Braga, com o filho ao seio, no intento de enjeitá­lo, assim que se lhe oferecesse aleitar um filho alheio. Neste tempo, recomendara

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minha mãe o ajuste de uma ama para me criar. Foi Antónia no dia em que eu nasci para minha casa, e levava ainda o filho, que tinha vinte e dois dias, resolvida a enjeitá­lo. Minha mãe viu a criancinha, e viu­lhe no rosto as lágrimas da mãe. Compadeceu­se de ambos, e aumentou ao salário da minha ama para ela poder pagar a criação do seu filho. Quando eu já estava apartado e robusto, o marido de Antónia voltou à terra, e tirou inculcas da residência da mulher. Apresentou­se a minha mãe com autoridade de marido, e levou consigo Antónia. Minha mãe nunca mais teve novas da minha ama, até àquela hora em que a reconheceu sentada no veludo acolchoado da sua otomana.

A continuação da história também se te diz em breves termos.

O marido de Antónia morreu, quando o filho tinha seis anos. A mãe, com as economias de seu trabalho e benefícios de um compadre, mandou o filho para o Brasil. O filho enri­queceu, e morreu ingrato aos sacrifícios da mãe. Já sabes que pesada vida tinha a pobre mulher, quando Eusébio Luís Trofa a foi buscar ao viaduto de Arnoso.

D. Antónia fez que nos fechassem as portas da sua casa para mais não sairmos dela. Ao fim de três dias, e de algu­mas conferências do negociante com o seu sócio, partimos todos para Vairão. Francisco Elisiário ia comovido e alegre, pedia­me perdão de me haver tratado grosseiramente, beijava as mãos de minha mãe, e prometia ser um digno marido de sua sobrinha.

Adriana saiu do convento, confiada nestas palavras de D. Antónia: — A menina de hoje em diante vai ter mãe, que há de guardá­la dos rigores de seu marido. Eu sou uma velha amiga de divertir­me: a minha filha há de ir onde eu for, e onde quiser passar as suas horas com satisfação.

Voltámos ao Porto. No outro dia da chegada, degolavam­se os inocentes no teatro de S. João. Fomos à execução. Minha mãe chorou mais que D. Antónia; e Francisco Elisiário interrompeu

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por vezes o espetáculo, exprobrando a patifaria de Herodes, em apóstrofes muito mais eloquentes que as do autor da peça.

Minha prima não chorou nem riu, porque esteve sempre entretida a examinar os vestidos e toucados das senhoras que a examinavam a ela, com um sorriso zombeteiro. Adriana apresentara­se no teatro vestida e penteada como se estivesse preparada um ano, à espera daquela noite.

No dia seguinte, deu Eusébio Luís um jantar dançante. Desde as cinco da tarde até às duas da manhã os opulentos salões, abertos pela primeira vez, estiveram animadíssimos. Foi tal a profusão do serviço, que eu, escrevendo a primeira local em minha vida, entendi que devia escrever profusão com dois ff, para criar uma distinção, que não encontrei criada no dicionário de sinónimos. Não sei se foste tu, ou outro jornalista que então me observou que não era lícito alterar a ortografia para favorecer um amigo, e que a abundância dos licores não devia levar os seus instintos revolucionários até à etimologia das palavras. Eu não desafiei o sandeu que me provocou, porque estava sentindo a felicidade que perdoa aos tolos gramaticais. Era a felicidade de minha prima que me deliciava o coração.

Francisco Elisiário também deu um jantar dançante. Adriana apareceu no baile recamada das joias de sua mãe, e de outras que o marido lhe oferecera como penhor de aliança eterna. À meia­noite daquele festivo dia, minha prima despresilhou do peitilho do vestido um belo brilhante, e, em presença de seu marido, disse­me:

— Meu primo, aceita­me esta pedra, como lembrança da alma reconhecida da mulher que te agradece a felicidade de seu marido.

Aceitei a pedra, que aqui vês.Terminou a história.Francisco Elisiário é um marido que pode afoitamente

dizer, no meio da mais degenerada sociedade concebida pela tua imaginação, que a sua honra está guardada no imaculado coração de sua esposa, como os incensos sagrados a Deus na

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urna de ouro em mãos do levita. E, todavia, Adriana vai a todos os bailes, a todos os espetáculos, à convivência de todas as suas amigas, excetuada uma que lhe classificou de monstro o marido, se ainda te lembras do princípio desta história.

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XIIIA MINHA HISTÓRIA

— É chegada a ocasião de eu te contar uma história, se bem que sinceramente me dói o privar­me, entretanto, de ouvir­­te — disse eu, no tom cortesão de qualquer dos estafadores da Corte na Aldeia de Rodrigues Lobo. — A história dos brilhantes de tua prima sugere­me uma recordação de certo acontecimento que me fez rir muito, e que eu decerto não sei reproduzir com graça. O caso passou­se em Lisboa, há quinze anos.

Um meu amigo, chamado José Cabral, rapaz mui galantea­dor e galanteado, rendia os seus afetos a uma secular recolhida num convento dos mais elegantes de Lisboa. Era uma senhora de meia­idade, ou da idade­média como José Cabral esturdia­mente emendava, quando, com a zombaria, cuidava rebater as facécias de quem o carpisse nos seus amores aos quarenta anos de D. Paula Manuel Chichorro. Esta dama tinha sangue nobilíssimo nas veias, e um património regular; mas de cabe­ça era desconcertada algum tanto, por amor da mania, vinte e cinco anos inveterada, de fazer­se eterna nos versos de um poeta, como a Marília do Gonzaga, e a Elvira do poeta das «Meditações».

Neste propósito, deixou­se cortejar de vários poetas, alguns dos quais, desde 1834 até 1844, lhe consagraram e publicaram

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versos, que deviam dar­lhe a eternidade à ilustre dama, se fossem lidos. Aqueles anos correram tumultuosos de comoções políticas. Qualquer florinha de poesia era desarreigada pelas borrascas da prosa das finanças, e atirada aos quatro ventos, que sacodem as ventarolas da humanidade. Assim se explica, sem desdouro dos bardos, cantores de D. Paula Chichorro, o passar­se­lhe a década mais florida de graças, sem que o mundo soubesse quem lhe preludiava a eternidade em redondilha maior.

Inclinada já aos quarenta anos, a reclusa, apesar de desme­recida e avelhada, insistiu em querer perpetuar­se mediante o honesto expediente das musas.

José Cabral, aparentado com uma freira do convento de D. Paula, era um poeta enviado pelo destino, à última hora, onde um coração ansioso o chamava. Algumas damas galhofeiras avisaram o sujeito da mania da fidalga, e ele tomou à sua conta construir­lhe um nicho no templo da memória. Dedicou­lhe as primeiras trovas, menos más de forma e conceito. As mesmas trovas tinha consagrado ele a outras muitas senhoras, que ju­diciosamente desistiram de serem eternizadas por José Cabral. O poeta, que principiara brincando, e por comprazer com as divertidas senhoras do convento, achou­se ilaqueado nas tramas de um amor grave e reflexivo. D. Paula tinha uns dezoito contos, e nascimento ilustre, e graças não despiciendas. Lembrou­se o menestrel de fazer­se marido dela, mas a nobre senhora não queria marido, queria um cantor, um imortalizador, um incenso que vaporasse pela eternidade dentro em honra dela.

Escreveu José Cabral uma ode ao natalício de Paula. A dama brindou­o neste dia com um anel de ouro, em que cintilava engastado um belo brilhante; e, ao mesmo tempo, respondeu em prosa­poética a esta poesia prosaica de uma estrofe da dita ode:

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Ó Paula! amor infindo, amor que prendeMinha alma a ti e ao céu,

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Aspiremos o aroma que rescendeDas aras de Himeneu.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

A prosa da dama foi assim:

«Diz um autor esclarecido que o casamento é a sepultura do amor. Não baixemos do ideal, que é a vida. Amem­se as nossas almas com o amor sublime, que resiste ao fastio e ao tempo. Sejam as nossas núpcias como o enlace de duas brisas, e como o fulgor de duas estrelas que se encontram no azul do firmamento.»

Desde este dia, José Cabral, sem desistir das núpcias aéreas com a espiritual senhora, reatou o fio quebrado de outros amores honestos com uma Dona Ester Barjona, judia, filha de um Salomão, e representante de muitos judeus ricos da rua dos Algibebes.

Ester, no intervalo da quebra do galanteio, afeiçoara­se a um sargento­aspirante, aluno da Politécnica, filho de um oficial­­general; não obstante, a requesta de José Cabral, seu primeiro afeto, não foi mal recebida. O que ela fez foi entreter­se com os dois galãs, por não ter confiança em nenhum. O poeta de Paula gostava de aparentar fausto, e os seus haveres eram menos de medianos. Não lhe faltavam espíritos generosos; mas a desfortuna enfreava­o, e retinha­o, quando ele se queria ostentar dadivoso e liberal. Ester fez anos, e José Cabral queria brindá­la com uma digna prenda: deu­lhe o anel do brilhante, que recebera de Paula.

Dias depois, o sargento­aspirante encontrou a bela israelita em casa de uma família da relação de ambos: viu­lhe o anel, suspeitou da procedência dele, amuou­se, e sacudiu as melenas com vertiginoso ímpeto. A judia, para o convencer da inocente possessão do anel, tirou­o do dedo, e disse­lhe:

— Aí tens: estou justificada.

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O académico dignou­se aceitar a justificação e o anel, que ficou sendo o penhor simbólico da nova aliança.

Perguntou Paula ao poeta:— Que é do anel que te dei?— Raras vezes o trago — disse o poeta — porque ando a

tomar banhos na barcaça, e já me escorregou do dedo. Desde que isto me aconteceu, nunca o levo ao banho.

Perguntou José Cabral a Ester Barjona porque não trazia o anel.

— É porque preciso dizer a minha mãe donde me veio este precioso objeto.

Daí a tempos, Ester encontrou o sargento­aspirante, olhou­­lhe para as mãos e disse:

— Que fizeste ao anel?!— Mandei fazer um semelhante para te dar a ti, e gravar

as nossas iniciais no reverso do aro.D. Paula viu uma vez no dedo de uma senhora um anel

de ouro, primorosamente feito de três roscas, representando uma cobra.

Os olhos da serpente eram dois rubis, e as escamas brilhavam em pequenos diamantes. Gostou muito da cobra, como símbolo da amizade, e escreveu ao ourives Nascimento, pedindo­lhe a remessa dos anéis modernos. O ourives remeteu anéis de dife­rentes feitios e pedras. Paula deu um ai, e perdeu a cor quando os examinava. Reconhecera o anel que dera ao poeta.

Conteve­se, como senhora e fidalga que era. Comprou o anel, que fora seu, e despediu o ourives. Depois escreveu assim ao bardo:

«As mulheres, quando um projeto as preocupa, não podem dilatá­lo para o dia seguinte. Desejo ardentemente possuir um anel igual ao que te dei, porque tenho um brilhante do mesmo quilate. Manda­mo pela portadora, se aqui não podes hoje vir, meu amado poeta.

Paula»

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Resposta:

«Aí vou amanhã, meu amor celeste: não confio o anel de ninguém: seria profanação o tato de mãos estra­nhas. Hoje não vou, porque estou em uso de digitális por causa das palpitações do coração. Este amor há de matar­me!…»

D. Paula Manuel Chichorro riu­se, e murmurou com o mais fino dos sorrisos:

— Os poetas!…

Carta de José Cabral a D. Ester Barjona:

«Minha estrela! Nunca observaste que faltam as nossas iniciais no anel, que te dei?! Eu quisera que tu mas requi­sitasses, bem travadas, bem enlaçadas, bem íntimas umas noutras, como emblemas de nossas almas!… O teu amor não tem estas espirituais bagatelas, que são o testemunho das paixões grandiosas… Manda­me o anel, para to devolver com este sacramento da nossa eterna união.»

Resposta:

«A mamã está no meu quarto: não posso ir onde tenho a tua querida prenda. Amanhã ta envio, com a saudade mais calorosa da tua Ester.»

Carta de Ester ao sargento­aspirante:

«Meu Raul. Minha mãe pergunta­me pelo anel, que te dei, e ela me dera. Manda­mo para lho mostrar, e depois to entregarei segunda­feira em casa das Mouzinhos. Tua cega adoradora — E.»

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Resposta:

«Vou buscá­lo a casa do ourives, e lá to mando pelo aguadeiro. Adeus, minha luz, meu talismã!»

Eis aqui três pessoas realmente aflitas!José Cabral espera; Ester espera; Raul não espera ninguém.

Lembra­se ir resgatar o anel, que vendeu ao Nascimento por cento e cinquenta mil réis. Reúne os seus capitais e perfaz a quantia de três pintos e dois vinténs. Soçobra­o a vergonha, porque a sua família vai a todas as casas do conhecimento de Ester. Recorre ao pai, conta­lhe o sucedido, maldiz os amigos que o levaram a uma casa de jogo, onde perdeu a honra e o anel. O general é um velho austero. Condena o filho a expiar a vilania com o opróbrio de não poder remediá­la. Obriga­o a ir para Estremoz ligar­se ao regimento, e vai ele ao ourives para resgatar o anel. O ourives solicita de D. Paula o obsé­quio de ceder o brilhante. A senhora cuida que salva assim a dignidade do poeta, que ela presume ter sido o vendedor, e entrega o anel. O general visita a família da judia; e, com subtil disfarce, a ocultas da mãe, deixa cair o anel no regaço da menina.

Ester remete­o sem detença a José Cabral, que vai de cor­rida ao convento.

Dizem­lhe que D. Paula está numa grade com visitas. É o ourives, que foi agradecer à senhora a cedência do anel, e lhe está referindo a prática que tivera com o general Sarmento, que fora restituí­lo nobremente à namorada do filho, a qual o tirara a sua mãe para lho presentear. D. Paula não entende esta embrulhada. As regiões onde pairava o seu espírito, eram puras de semelhantes falcatruas. Crê que o ourives está inventando uma história sem pés nem cabeça. Insta pelos pormenores do conto, e compreende tudo. Então é avisada de que o poeta espera as suas ordens no pátio do mosteiro. O ourives despede­se, e José Cabral é recebido na grade.

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D. Paula reconhece o seu anel, e pergunta­lhe com um sorriso afetuoso:

— Será necessário mandá­lo purificar e lustrar com água­­benta?

— Porquê?!… — inquire o poeta.— Por ter andado no dedo de uma judia! Não acha, meu

mimoso poeta?José Cabral empalidece, leva a mão ao lado esquerdo, e

diz:— Céus! que aleivosia!…D. Paula pergunta­lhe se vem munido de digitális.O infeliz vê­se ridículo, e exclama:— A senhora zomba das minhas palpitações? Então, a mulher

de fidalgos espíritos imortaliza­se em minha opinião, dando um engenhoso piparote no anel, que atravessou o espaço intermédio às grades, e veio rolar aos pés do seu vate amarelo.

E disse com adorável hombridade:— As castelãs dos belos tempos da cavalaria costumavam

pagar com sorrisos ou com dinheiro as trovas dos provençais, que as cantavam. Eu, que pertenço ao passado pelo espírito, pago com esse objeto valioso as suas endeixas, meu caro menestrel; e, se também quer o sorriso das castelãs menos esquivas, em vez do sorriso, dou­lhe uma gargalhada.

Casquinou o mais acerbo e afrontoso frouxo de riso, e saiu da grade; porém, ao fechar sobre si a porta, sentiu que o anel lhe batia no cachaço. Quando voltou o rosto abraseado contra o poeta, ainda o viu a disparar­lhe, como azagaia ervada, esta injúria:

— V. Ex.a é uma velha ridícula! Hei de empalá­la nas minhas trovas, e mandá­la de presente às gargalhadas da posteridade!

Quando voltei, dez anos depois, a Lisboa, José Cabral era chefe de uma repartição, e tinha carta de conselho. Falei­lhe no anel de D. Paula. Referiu­me ele que a ilustre senhora, depois

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da grosseria com que fora castigada, caíra em si, e renunciara à imortalidade dos versos, fazendo­se amar por um cónego que em poesia só tinha lido as poesias eróticas de Manuel Maria Barbosa du Bocage.

D. Ester Barjona estava casada com um primo, rabino da sinagoga de Amesterdão. E ele narrador tinha casado com a sisuda filha de um bacalhoeiro, por cuja influência era chefe de repartição, e esperava ser ministro.

Observa tu agora — concluí eu — que este anel de D. Paula foi a causa irrisória de quatro pessoas entrarem num caminho de vida séria. O poeta viu­se ridículo, e aproou o espírito ao porto remansoso de um casamento reparador.

Ester casou com o judeu que seus pais lhe destinavam, e deu ao mundo mais uma dúzia de judeuzinhos.

Raul está hoje major de cavalaria, e nunca mais jogou desde que vendeu o anel para pagar as dívidas.

D. Paula Chichorro recebe os gosmentos requebros do có­nego, espécie de entulho, que ela atravessou à porta do templo da memória, para nunca sentir a tentação de lá entrar.

E, se não fosse o anel? Calcula tu as complicadas tolices, e perfídias, e desordens que podiam ter­se encapelado sobre estas quatro existências, desviadas do seu próspero destino!

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XIVOS PERCEVEJOS DE BALTAR

António Joaquim fez-me o favor de achar engra­çada a minha história, e perguntou­me quanto devia, visto que a minha profissão era vender histórias. Conspiraram poderosos sentimentos de gratidão para que eu, com o desprendimento do filósofo que rejeitou os tesouros de Xerxes, lhe dissesse que não era nada. Sem embargo da minha recusa, António Joaquim deu­me um cigarro, e perguntou­me se os editores em Portugal eram mais liberais do que ele. Pude convencê­lo de que os editores em Portugal eram as hóstias imoladas espon­taneamente nas aras das letras pátrias, e que eu, à minha parte, havia arruinado uns poucos, e os meus colegas o resto, de teor e modo que, volvidos alguns anos, os poetas e romancistas, se não pudessem viver repletos e entouridos das suas fantasias, haviam de ir às praças, à imitação de Homero, narrar os seus poemas e romances às multidões, que, em paga, lhes enrama­riam as frontes de acácias e cilindras.

Como este período estirado me tirasse a respiração, e a liteira parasse na estalagem de Baltar, apeámos.

Quando o vapor levar a civilização a Baltar, há de vir gente pálida de Lisboa retingir as faces com o chorume da vitela que se come ali. Se os Ganimedes, que servem à mesa suja, não viessem

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da cozinha como de um depósito de guano, a gente cuidaria que estava comendo os sobejos de algum banquete olímpico. Diríeis que as vitelas de Baltar se geraram das divindades pagãs, se Júpiter, quando se fez boi para transportar Europa, a fizesse vaca a ela, e se multiplicassem em bezerros, o que era justo que fizessem tão parvos deuses para servirem de alguma coisa à gente, que lhes dá exemplos de moralidade não se fazendo bicho para arrebatar ninguém. Lembrasse­se Júpiter de cá vir hoje transformado tão a capricho, que eu aposto que sofria uma pega de cara no toural de Aveiro, onde os touros são de uma brandura e meiguice tal, que todos parecem deuses enamorados das gentis varinas, representantes da beleza fenícia. Isto parece­­me erudição de mais a propósito da vitela de Baltar.

Estávamos a cear quando António Joaquim me disse que, no quarto fronteiro a mim, se havia passado, dez anos antes, uma cena calamitosa.

— Dois cadáveres saíram dali!… — ajuntou ele.Ouvido isto, comecei a ver cadáveres pendurados na parede

como enormes cavalas escaladas; a vitela trescalava­me a carne humana; as canecas pareciam­me crânios, e o vinho vaporava um fartum de sangue, e escumava líquidos intestinais.

— Dois cadáveres!… Esta casa dá títulos para os romances de Frederico Soulié… — murmurei eu, voltando os olhos pávidos do moço da casa, que se me afigurou um bandido acostumado a reduzir os hóspedes a vitela assada. Concluída a ceia, à luz de caverna, que bruxuleava, como devia de ser

………… na seva mesa de Tiestes,Quando os filhos por mão de Atreu comia,

António Joaquim vestiu de horror o semblante, esbugalhou os olhos empedrados de pavor, e disse no tom soturno dos celerados, que aterram a gente no teatro com histórias medo­nhas, o seguinte:

— Era por uma noite de agosto.

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Um cavaleiro apeou do seu frisão à porta desta estalagem, e ofereceu a mão para receber o pé de uma aérea dama, que saltou de uma hacaneia aos braços do garboso cavaleiro.

Ao transporem o limiar da porta, a dama, encostando a face ao ombro do cavaleiro, murmurou:

— Que linda noite, que ar tão puro, que lua tão de prata vamos trocar pelo fétido, e escuridade desta lô­brega taverna!

— É mister que repouses, Maria — disse meigamente o caricioso esposo da tão poética viandante. — Descansemos duas horas; e, ao primeiro alvor, cavalgaremos, saudados pelas avezinhas, que nos darão em trilos a orquestra da magnífica partitura da natureza, composta pelo sublime maestro que fez as harmonias dos bosques e as harmonias das esferas…

— Que estilo! — interrompi eu atordoado com o rufo e repique deste palavreado. — Que estilo, santo nome de Jesus! O horror local fez­te perder a portuguesa e minhota simplicidade da tua linguagem! Pois, em verdade, essa gente falava assim?!…

— Falava pior do que isto, porque eram dois esposos que se adoravam. Tu finges ignorar que duas pessoas que se amam só começam a dizer coisas ajuizadas desde que se aborrecem. A linguagem do amor vem e vai­se com ele; deve existir um serafim, que compô­s o vocabulário de amantes, e fecha o livro, assim que o seu companheiro — o anjo do coração — apaga a lâmpada de ouro, à luz da qual os ditosos amadores soletravam as frases. Estas, porém, se ficaram gravadas na memória dos homens, ficam sendo matéria de riso. Ah! o cavaleiro e a dama, que apearam no quinteiro desta estalagem, falavam assim porque se amavam como as terras abrasadas do sol de agosto amam a nuvem, que se lhes desentranha em refrigerante chuveiro.

— Pareces­me eles a falar, amigo António Joaquim! Se fizes­ses favor de me dizer como se converteram em dois cadáveres essas eloquentes pessoas…

— Lá vou!… Queres que eu comece pelo fim, homem? Subiram eles para este sobrado em que estamos, e, logo que entraram, pediram…

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— Vitela assada.— Está claro.— E quando começavam a cear, um corujão deu um berro

naqueles pinhais de além. Maria deixou cair o garfo, e excla­mou:

— Agouro!E o cavaleiro pô­s­lhe a mão na face pálida, e disse­lhe:— Come, querida, come vitela, e deixa berrar as corujas.Nisto, um pêndulo de parede soou onze horas, lentas, pe­

sadas, e fanhosas como o gemer da sineta que nos cemitérios chama os esqueletos a enxugarem as mortalhas à viração da noite alta.

— Fazes­me frio e medo, António! — exclamei. — Tu queres que a vitela me dê volta no estô­mago! Estou enjoado com o descritivo cadaveroso da tua história! Ameniza­te, se é possível!

— O cavaleiro sentiu um calafrio no espinhaço, e disse ao servente da ceia: — Dá­me um quarto limpo com uma cama decente.

— É este — respondeu o criado, indicando o quarto que tens defronte.

Os dois esposos recolheram àquela sinistra alcova. O corujão grasnou de novo no esgalho resseco de um sobro. O céu, de súbito, velou­se de nuvens acossadas em turbilhões pelo vento setentrional. O fulgor da lua fechou­se no bojo negro da bor­rasca. Os euros silvavam nas vigas deste teto. Lá fora a ramagem varejada pela chuva torrencial rangia e gemia, rouca e formidável, como milhares de homens partidos pela espinha dorsal!

— Que imagem! — observei eu. — Também me sinto quebrar pela espinha dorsal às garras da tua retórica. Tens vislumbres de Vítor Hugo! Isso faz­me lembrar a torre da igreja, que parecia uma verruma a furar o céu. Há muita gente que escreve como tu conversas. Estou em crer que esse estilo é a vitela de Bal­tar que o dá. Muita gente, pelos modos, aqui vem comer! Eu mesmo, que escrevo espalmadamente, estou a sentir em mim a dura necessidade de falar como tu. Conta­me agora, amigo de

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alma, que negruras íntimas coaram ao interior da alcova em que os dois viajeiros exalaram os supremos alentos.

— Eram duas horas da manhã — continuou António Joaquim. — A essa hora, quem pusesse o ouvido nos resquí­cios daquela porta, ouviria um gemer uníssono de duas vozes, um arrancar da vida em ânsias estertorosas. Depois… vamos deitar — disse abruptamente o meu amigo.

— Deitar?! e a história?— Amanhã.— É impossível! Eu não me vou deitar sem saber de que

morreram.— Amanhã. Tens­me interrompido com ironias: hei de

castigar­te com a ansiedade.— António Joaquim! isso é atroz e estranho a toda a graça.

Morreram envenenados? Apunhalaram­se reciprocamente por ciúmes? Matou­a ele e suicidou­se depois?

— Não respondo até amanhã. Não te canses… Escolhe uma das alcovas, e vamos deitar. Queres o quarto dos dois cadáveres?

— Quero! — bradei eu com exemplar intrepidez — quero compenetrar­me dos miasmas cadavéricos daquele antro! Até amanhã.

Entrei com uma candeia na alcova, e deitei­me fatigado de alma e espírito, apagando a luz.

Vinte minutos depois, sentei­me de salto no leito, sacudin­do dos ombros os grifos encravados de uma legião de demó­nios.

— Há horrores ignotos neste quarto! — exclamei eu, e acendi a luz.

Olhei sobre mim, e em roda de mim: eram grosas de esquadrões de percevejos, que irrompiam em caravanas das cavernas do catre, e das luras do tabique. Saltei ao soalho com os cabelos hirtos e os nervos em vibrações catalépticas. Peguei das botas à Frederica, e dei morte a milhares daquelas alimárias, que renasciam umas de outras, como tantas hidras de Lerna.

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Fez­se um fétido homicida na alcova. Abri as janelas, e bebi o ar balsâmico dos pinhais. Voltei à carnificina, sacudi os lençóis à viração da madrugada, e tornei a reclinar o corpo lasso no catre ensanguentado, conservando a candeia acesa.

Daí a instantes, as hordas ressaltando das tocas acardumavam­­se nas paredes, e formavam concílios em temerosa quietação; depois abriam fileiras, e subiam ao teto. E eu, sentado no cavalete de torturas, examinava, com a luneta, estas infandas evoluções, e via­os despenharem­se do teto sobre mim a prumo, às centúrias, ferozes de fome e sede de vingança. E eu voltava de novo a carregá­los com as botas, e eles fugiam com uma velocidade insultadora. Pela primeira vez em minha vida eu vi percevejos com asas, a esvoaçarem naquele ambiente em­pestado do sangue deles. Referi a vários naturalistas este facto, e ninguém acreditou na existência dos percevejos alados de Baltar. Ontem abri um livro do zoólogo Dr. Charbonnier, e tive ocasião de ver que este hemíptero tem asas rudimentares, e não duvida o sábio absolutamente que o percevejo as tenha completas. Deus traga este naturalista a Baltar para honra e glória da ciência!

Eu senti então um incêndio febril, e tonturas de cabeça, vertigens mortais a cada nova ferroada. Já me faleciam forças para brandir as botas contra a parede. Sentei­me no tabuado, e chorei à laia de Mário nas lagoas de Minturnes.

Aqui tenho um livro de ciência a explicar­me aquelas an­gústias. É o Dr. Charbonnier que sai em defesa da sinceridade desta narrativa: «Há indivíduos muito irritáveis em quem a mordedura dos percevejos produz tão viva excitação que os torna febricitantes.»

Eu pensei que podia morrer de tão ignóbil desastre. A candeia apagara­se à míngua de óleo. As alimárias, protegidas pelas trevas, atacavam­me no meu refúgio. Ergui­me de golpe, e não sei que gementes rugidos de delírio e desesperação atirei à face da providência, que criara o percevejo. Quis fugir pela porta; mas perdera o tino. Raspava com as unhas nas paredes,

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e estripava chusmas de infames. Refugia, estrincando os dentes; e quebrava a minha fúria com gemidos.

Nisto ouvi passos, na saleta, que se dirigiram à minha porta.

— Que tens? — disse uma voz. Era António Joaquim.— És tu? — exclamei. — Salva­me com uma luz, que eu

sinto­me morrer!E gemi.— Assim gemeram há dez anos os dois infelizes, cuja história

te contei — disse ele em solene diapasão. — Agora compreen­des como eles morreram aí? Da morte que te ameaça a ti, desgraçado! Já sabes o final da história? O garboso cavaleiro e a gentil dama aí acabaram estripados, comidos em corpo e quase em alma pelos percevejos.

— Abre­me a porta por piedade — rebrami eu — que apenas tenho vida para conhecer que estou morto!

António Joaquim entrou com a sua candeia, e disse:— Venho salvar­te, porque és necessário à regularidade e

perfeição do cosmos. Eu e minha mulher, quando aqui pernoi­támos há dez anos, fomos as vítimas e personagens da história, que se acha confirmada com o teu sangue.

— Ah! tu é que eras o garboso cavaleiro? — disse eu entre lacrimoso e alegre. — Que modéstia de narrador!… Mas disseste­­me que deste quarto haviam saído dois cadáveres…

— E saíram — replicou António Joaquim.— Como? não entendo!…— O que daqui saiu foram duas almas cerceadas. O sangue,

que é a vida, tinha aqui ficado nas goelas desta alcateia de feras. Que éramos nós sem sangue? Dois cadáveres com um pouco de espírito para nunca mais nos deitarmos em camas da taverna de Baltar.

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XVOS AMORES DE TERESA

Um destes dias, como eu estivesse acendendo um fósforo da fábrica de Galiza, reparei nas figuras da caixinha. Era um camponês, embebendo num lenço as lágrimas do olho direito; e, com o braço esquerdo estendido cariciosamente a um boi, dizia em espanhol: En vez de hijos tengo un buey, que me da grandes satisfacciones. A satírica referência que os nossos vizinhos dão a este dístico não a sei. O que se vê menos mal desenhado é um sujeito, comovido a prantos, afagando um boi, que, à míngua de filhos, lhe dá muita satisfação. Isto, que não é nada sério, nem era possível sê­lo numa caixa de fósforos galegos, a mim tocou­me na alma com singular melancolia, porque me trouxe à lembrança uma história, que António Joaquim me contou, depois que almoçámos em Valongo.

A liteira passou por entre uma grossa manada de bois, que vinha para o Porto, com destino a Inglaterra. Os corpulentos e nédios ruminantes caminhavam tristes, relanceando sobre a ruidosa locomotiva os seus magníficos e lânguidos olhos. Se as duas pessoas, que iam na liteira, fossem gente pensadora, calculadora, e versada em economias políticas e outras ciências atinentes à prosperidade das nações, entrariam a discorrer so­bre a conveniência de mandarmos aos ingleses os bois gordos,

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e comermos os bois magros por alto preço. Recordaríamos espantados a estupidez de nossos pais que comiam bois gordos muito em conta, e eles mesmos andavam gordos, e tinham muito dinheiro, sem mandar bois para Inglaterra. Da censura à ignorância de nossos pais, passaríamos ao elogio dos nossos sábios contemporâneos, e dos magarefes, que aproveitam mais que os agricultores, e que os sábios; e, depois de largo e fundo discursar a propósito de bois gordos, adormeceríamos ambos aí pelas alturas de Rio Tinto, e sonharíamos com as vacas magras do sonho de Faraó, sonho de fome, que, a meu ver, não foi acertadamente interpretado por José. O rei do Egito sonhava com os açougues de Portugal no século xix.

— Que magnífica boiada! — disse eu. — O boi é o quadrú­pede que mais se parece com um filósofo. Vê tu o passo mesurado, grave, e cadente de um boi! O olhar meditativo! a sisudeza do aspeto! o ar revelativo de um complicado trabalho intelectual que se está elaborando naquela enorme cabeça! Há grandes filósofos inquestionavelmente menos sérios e cogita­tivos que o boi!

Decerto sabes, amigo António Joaquim, a importância social, legendária, simbólica, e mítica do boi na antiguidade.

— Não sei isso bem; — disse modestamente o meu ami­go — o que eu sei deste prestadio animal é que a humanidade o come há muitos séculos, e que nos jantares de Cressus e Luculus apareciam bois inteiros assados, e creio que no convento de Mafra também se assavam inteiros os bois.

— Principiando um pouco depois do dilúvio, — tornei eu — saberás que os bois, entre os egípcios, os fenícios, e indostânicos…

— Eram bois — atalhou António Joaquim. — A conside­ração, que me mereces há muitos anos, e a franqueza com que me tratas, anima­me a pedir­te que me não digas nada da importância do boi na Fenícia, no Egito, e no Indostão. As liteiras são locomotivas próprias e talhadas para esses e análogos discursos; porém, já que, até agora, pudemos aligeirar

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as horas sem carregarmos o espírito de erudição literalmente bovina, pedia­te que me ouvisses uma historinha de bois em que entra uma paixão das que levam a vida a pique, e uma formosa moça das que a natureza faz com o toque da sua vara mais prodigiosa de magias.

— É uma história sentenciosa e séria como a dos percevejos de Baltar? — perguntei.

— Não. É triste, e merecia ser bem contada. A loura Teresinha da Ginjeira era uma rapariga minha vizinha, filha de um bom lavrador. Tinha vinte anos alegres como as alvoradas dos passarinhos. As faces puniceavam­se­lhe como as ginjas que sobre a janela do seu quarto lhe pendiam em festões da corpulenta árvore, que dava o nome à casa do lavrador.

Teresa, quando tinha doze anos, herdou de sua madrinha dois novilhos. O pai deixou­lhos criar como propriedade dela, bem que a mãe os quisesse logo vender, e empregar o produto em ouro para as orelhas da filha. Teresa conseguiu a benque­rença do pai aos seus bezerrinhos, e deu­se toda a cuidar deles com muito contentamento. Quando eles, já saciados de pasto, se deitavam nos prados a ruminar, Teresa sentava­se entre eles, anediava­os, acariciava­os, e adormecia com a cabeça apoiada nos moles flancos dos imóveis almalhos, que a remiravam com ternos olhos. Se mugiam, Teresa cuidava que os seus novilhos chamavam pelas mães; e, compadecida, redobrava carícias, e lá se ia às pradarias a colher abadas das ervagens, que eles esco­lhiam e mais saboreavam nos almargeais. Quando eles, já touros, mugiam com mais estrondo, Teresinha cuidava ainda que eram saudades das mães, e afagava­os, dizendo­lhes branduras com tanto sentimento, que os boizinhos pareciam atentados a escutá­­la. Não eram já saudades o mugir dos lustrosos e irrequietos touros: era uma voz de brado ingente formado por todas as vozes de todos os seres, que vivem debaixo do céu. Buffon, o intérprete do touro, diz que o seu mugido é amor: Le taureau ne mugit que d’amour. Da vaca não diz ele o mesmo: é medo e terror o que lhe desentranha os berros prolongados…

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— Se não queres — interrompi eu — que discorra acerca da importância que tiveram na Fenícia, no Egito, e no Indos­tão os bois, dispensa­me de saber a razão por que berram as vacas. Esses conhecimentos linguísticos podem interessar aos vaqueiros, e aos professores de filologia.

— Pois tens razão, que eu, se me não atalhas, ia ensinar­te um vocabulário muito mais inteligível que as raízes das línguas afegã, pelvi, e indostânica. Fica na tua ignorância, e vamos aos tourinhos de Teresa.

Chorou amargamente a moça quando os seus bezerros, ao terceiro ano de idade, foram submetidos ao jugo. Pediu ela que a deixassem guiá­los no ensino. Os touros obedeciam à voz dela, e não obedeciam à aguilhada do lavrador, que lhe ensanguentava os ilhais. Teresa podia lavar aquele sangue com o seu pranto.

À primeira vez que os jungiram ao cabeçalho de um carro de lenha por uma ladeira íngreme, os bois gemiam, fitando na sua amiga os olhos baços e mortiços como se os desvidrassem as lágrimas. A moça, no dia seguinte, não engoliu bocado, e passou as horas de sesta na corte dos bezerros a refrigerá­los com o pendão do milho, colhido na frescura da manhã. O lavrador fez­se de fel e vinagre com a tolice da rapariga, e chegou a ameaçá­la de vender os touros na primeira feira, para acabar com as «invencionices» como ele chamava à compaixão da filha. Teresa prometeu nunca mais queixar­se, com a promessa de lhe não venderem os seus boizinhos.

O que ela fazia era esconder bons bocados para os mimosear à hora do descanso. Dava­lhes farinha na água, batatas cozidas, abadas de espigas, tudo que por baixo de mão podia carrejar para um recanto da corte.

Aos seis anos de idade a junta de bois do meu vizinho era a mais chibante e guapa das dez freguesias em roda. Não lhe faltava um só dos sinais que revelam a perfeição de um boi: cabeça curta, pontas negras, testa ampla, orelhas grandes, aveludadas e unidas na raiz, olhos rasgados e escuros, focinho

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grosso, ventas bem abertas, beiços cor de azeviche, pescoço carnudo, espáduas anchas, papada até aos joelhos, rins largos, flancos salientes de polpas musculares, membros reforçados, lombo direito, cauda pendente e farta de cabelo, couro flexível e espesso, pelo sedoso, macio e encaracolado na testa.

— É a descrição mais completa que tenho ouvido de um boi! — observei eu. — Parece incrível que tu, assim conhece­dor e entusiasta da parte plástica e escultural do boi, me não tenhas permitido que eu te contasse a importância do boi no Egito…

— Na Fenícia, e no Indostão — acudiu ele com um sorriso de ignorância filauciosa. — Pois não sei que mais te possa dizer da admirável junta de bois, que continuavam a ser os afetos de Teresa. O lavrador, se a feira caía em dia santificado, punha­lhes as cabeçadas ricas de frocos escarlates, e lá ia com a sua junta desbancar as melhores concorrentes. Se lhos punham a preço, pedia duzentos mil réis por dizer alguma coisa; e Teresa fazia­se de mil cores, receando que o comprador oferecesse algumas poucas moedas menos, de modo que o pai cedesse à tentação. Os dias de feira para a pobre moça eram dias de inenarrável flagelação.

Tinham os bois assumido a sua máxima corpulência. Orçavam por nove anos, e pesariam, cada um, trinta boas arrobas.

O pai de Teresa foi convidado a comprar uma bouça, que partia com terras dele. A bouça estava a preço de quarenta moedas, e o lavrador não as tinha. Os bois haviam medrado muito, e pouco trabalhavam já, de pesados e inertes que se iam fazendo de dia para dia. Pensou em vendê­los; refletiu alguns minutos na aflição da filha; a mulher disse­lhe que não fosse basbaque, e fizesse o seu negócio. De feito, o cruel vendeu os bois a ocultas da moça, recebeu o sinal, e ficou de receber o restante no Porto, onde ele havia de conduzir os bois ao embarque.

Soou logo na freguesia a nova da venda. Nunca se haviam vendido bois por tão alto preço.

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Era a questão do dia nos serões, nos adros das igrejas, e nas safras. Teresa, ao sair da missa, ouviu palavras que lhe assaltaram o coração como frechas dilacerantes. Eram de um velho que lhe dizia: — Quarenta moedas de ouro! Vê lá tu, rapariga, no que deu a herança de tua madrinha! Teu pai bem pode dar­te um cordão de dois arráteis! — Não que ele, — disse um invejoso — vendeu os bois para comprar a bouça, e à filha não é capaz de lhe dar umas socas!

Teresa já não ouviu as derradeiras palavras. Prorrompeu num alto choro, que parecia finar­se de angústia. Acercaram­na mulheres saídas da igreja, e a mãe entre estas. Umas riam, outras choravam, sabida a causa de tamanha lamúria. Mas a mãe, para dispersar o ajuntamento, levantou a filha de repelão, deu­lhe um murro nas costas, e fê­la apertar o pé diante de si.

Teresa chegou a casa, foi à corte dos bois vendidos, e abafou os gritos no pescoço deles em que se abraçava com vertigi­nosa ansiedade. Levaram­na dali a empurrões, e obrigaram­na a tomar de sobre a mesa a tigela do seu caldo. Os soluços resistiram à violência da deglutição. A atribulada moça pediu de joelhos que a deixassem ir para a sua cama, que estava a morrer de frio.

Quando isto me contaram, pedi ao lavrador que deixasse ser visitada sua filha pelo cirurgião de minha casa. O alarve riu­se, e disse: «O remédio era desfazer a venda, e deixar morrer os bois em casa.» — E vossemecê antes quer que lhe morra a filha? — repliquei. O lavrador espirrou­me uma cascalhada alvar no rosto, e exclamou: «O senhor não me parece homem de estudos! Já se viu neste mundo morrer alguém p’ra mor de uns bois?»

Teresa tinha ataques febris todos os dias, e secaram­se­lhe a este fogo as lágrimas. O lavrador consentiu que o cirurgião lhe visse a filha, e já não se riu quando o facultativo lhe disse: «Eu creio poder asseverar­lhe que sua filha morre.» — De quê?! perguntou o pai. «De saudades dos seus bois.» — E en­tão não há cura nenhuma? — retorquiu ele. «Há. Deixe estar

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os bois: espere que sua filha tenha marido, ou afeição que a distraia dos bois que ela criou, e, depois, venda­os.»

O lavrador não tinha outra filha. Consultou a mulher, a qual, abalada pelo susto do marido, sentiu em si um estremecimento de coração maternal. Foram à cama da doente, e disseram­lhe que já estava desfeito o contrato. Foi orvalho do céu, que choveu sobre a flor queimada. Purpurearam­se­lhe as faces; acelerou­­se­lhe o pulso com a febre suavíssima da alegria. Quis logo erguer­se, amparada às mãos dos pais, que beijava sofregamente. Não tinha forças; mas o júbilo deu­lhas milagrosas. Desceu à corte, e rompeu em veementes e amoráveis apóstrofes aos bois, que a farejavam, e lhe afumegavam as faces e mãos. Presenciei este lance, e não pude suster as lágrimas.

Reviçaram as graças peregrinas de Teresa em poucos dias.Este caso deu­se há quatro anos. Os bois têm hoje catorze.

O lavrador espera que a filha se incline a outros afetos mais racionais para vender aos ingleses a carne rija daqueles dois ditosos quadrúpedes. Suspeito, porém, que eles hão de morrer velhos, encostando a rugosa cabeça no regaço de Teresa. Quan­do isto acontecer, pode ser que o coração da minha formosa vizinha se dedique a algum outro animal menos doméstico, e menos agradecido.

— A tua vizinha — disse eu — em quanto a mim, se não é fabulosa como a Pasifaé, tem instintos e coração de vaca! Perdoa­­me, se não choro enternecido com a tua história. É certo que as lendas antigas contam casos, que têm sua referência, mais ou menos mitológica, simbólica…

— Vais­me contar a importância dos bois no Egito, na Fenícia, e no Indostão?… Peço licença aos teus leitores para te mandar bugiar… Não entendeste o coração da pobre Teresa!… Tu só entendes o amor ao boi, desfeito em bifes ou almô­ndegas!

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XVIAMOR DE FREIRA

Estávamos em S. Roque da Lameira, na graciosa e abandonada alameda, sobposta ao muramento das trincheiras de 1832.

António Joaquim apontou com o dedo uma casa destelhada, rota, e destroçada de balas, entestando com o monte.

— Ali morreu meu tio Carlos Leite há vinte e oito anos, em 30 de setembro, horas depois do desesperado assalto às linhas do Porto em dia de S. Miguel — disse António Joaquim, e prosseguiu:

Meu tio era coronel no exército sitiante. Não sei se os huma­níssimos sentimentos da liberdade impeliram o espírito de Carlos Leite a simpatizar com a causa briosa dos cercados: pode ser que meu tio pensasse como filósofo, como socialista, como cristão da escola de Jesus Cristo: pensaria; mas vai grande estádio do pen­samento ao ato. A disciplina do soldado prevaleceu à aspiração do filósofo. Meu tio militava à sombra das bandeiras que jurara.

Desde 1826 até 1830, Carlos Leite residiu no Porto coman­dando um regimento. Era tenente­coronel aos quarenta e cinco anos, e amava, desde os vinte, uma senhora, que ele vira entrar, aos quinze anos, violentada, em um dos conventos do Porto, onde professou aos dezasseis.

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As duas almas, que se haviam encontrado uma só vez, na antevéspera da entrada de Mariana no convento, não pô­de a celebração tremenda dos esponsais divinos desuni­las. Meu tio havia­se comprometido em casamento com uma parenta bela e rica; e não mais respondeu às cartas da noiva, nem sentiu o gravame da sua quebra de palavra.

Era homem afeito aos gozos da sociedade, galã e prazentei­ro, benquisto e amado; e, de repente, desprendeu­se de todas as alianças com o mundo dos felizes — ou que aparentam sê­lo, — e refugiou­se em solidão, apenas perturbada pelas obrigações militares.

Umas pessoas lastimavam­no, e outras compadeciam­se. A sociedade ri­se dos amores frívolos, e ri­se também dos amores que têm o ar sério de enorme sofrimento. Do homem que possui um coração para cada mulher, e uma paixão em cada semana, que diz a sociedade? «é um pateta!» Se ele anda a penar pela mesma mulher metade de sua vida, a sociedade que diz? «é uma lástima!» Não achas que é assim?

— É assim; e fazemos nós muito bem, nós, a sociedade. — Res­pondi com a empáfia filosófica de um dos sete sábios da Grécia, com o abdómen bem arredondado das comezanas historiadas por Plutarco nos seus Tratados de Moral.

(Observação entre parêntesis: os sábios da Grécia discutiam os fundos mistérios da natureza com o estô­mago repleto. A preocupação medicinal de nos abstermos de trabalhos de espírito, por espaço de três horas depois de jantar, faz que já se não criem sábios do chorume e polpa dos gregos. O bom entendimento claramente diz que, enquanto os alimentos se esmoem, a porção material da fábrica humana está empe­nhada nesse cozimento; e então é que o intelecto se acha de todo desembaraçado para cogitar. Os grandes livros, que os frades escreveram, são eternos pregoeiros disto. Aqueles ro­bustos pensadores, se tão­somente pensassem e escrevessem com o estô­mago esvaziado, não teriam pensado nem escrito nunca.)

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— Fazemos nós muito bem — repeti — porque a boa razão, mãe ou filha do senso comum de alguns particulares, diz que o homem muito dado a feminilidades, e amador por ofício, é uma besta­fera. Faz­se mister que a sociedade o domestique à força de o meter a riso, e vesti­lo de histrião de galanices aos olhos das mulheres incautas. O escárnio desunha as pre­sas dos leões. Ora, como a polícia não tem alçada sobre estes celerados, é necessário desautorá­los dos seus foros de homens escorreitos: e disto procede correrem fado com reputação de néscios os que arranjam uma fonte de Vaucluse em cada rua, e se fazem Petrarcas de esquina. A sociedade reprova igual­mente o extremo oposto. Rimos também dos que se amiseram e descabelam, porque a sua dama os desdenha desamoravel­mente, ou porque as contingências da vida os estorvam de se enlaçarem com as pombas que os anjos lhes mandaram, e as boízes dos homens lhes prenderam, ao pousarem­se elas neste solo amaldiçoado, onde o dinheiro é visgo para as aves dos viveiros celestiais. Não se consentem sandeus em amor, porque o amor que a sociedade absolve é o amor discreto. Menos se consentem os lagrimeiros babosos, porque o amor honesto é o amor alegre. — respondi.

— O pouco que entendi da resposta — reflexionou António Joaquim — habilita­me a supor que Salomão já contava contigo, quando disse que o número dos tolos era infinito. É um sábio a julgar outro sábio. Agora, vamos à história, que de aqui a pouco estás salvo da liteira e de mim.

— Estás enganado! — acudi eu. — Provavelmente irei con­tigo enquanto farejar no bojo da tua memória um romance inédito. Sou o teu vampiro, António Joaquim! Hei de sugar­te seis volumes da alma. Seis volumes, que serão as seis colunas do teu supedâneo no templo dos imortais!… Que fez depois teu tio? Dizias tu que umas pessoas tinham dó dele, e outras riam­se.

— Carlos Leite, quando os expedicionários das ilhas desembarcaram no Mindelo, estava aqui no Porto. A guarnição

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retirou desconsideradamente e acossada pelo terror pânico. Meu tio não pô­de despedir­se de Mariana pessoalmente. Deixou­lhe um bilhete com estas palavras: «Não nos veremos mais. Eu desejo morrer. Vêm aí dias em que a morte se há de facilitar aos amigos, e alcançar os desafeiçoados que lhe fugirem. Até à eternidade, Mariana.» Carlos Leite desejava morrer porque não pudera desraizar o coração do terreno em que lho cultivara sua mãe, senhora de costumes antigos.

O homem, com aparências por demasia mundanas, contra­dissera a fama de suas leviandades juvenis, amando com alma casta a mulher formosa, maniatada às colunas do altar. Nunca se lhe deteve no coração afogueado o pensamento de disputar à violência paternal a dócil vítima de especulações de família, ofertada sacrilegamente a Deus, como se o Criador amantíssi­mo de suas criaturas pudesse ser enganado e lisonjeado com os corações, que se lhe atiram espedaçados ao seu santuário!

Carlos Leite de sobra conhecia que o Altíssimo não seria o escandalizado, se a freira fugisse do seu cárcere, e rasgasse as vestes monásticas, a alva de condenada a um lento patíbulo. Sabia­o, e via­o à luz deste século, que já então lampejava fur­tivamente nos espíritos, a despeito da vigilância dos tonsurados, e das baionetas, circumpostas em sentinelas às trevas do altar e do trono. Contudo, a religiosidade do infortúnio de Mariana fez daquele homem um sublime padecente, um amparo à alma desfalecida, um desgraçado que se atormentava espontanea­mente para que ela se consolasse com dar a outrem metade das suas agonias. Aqui tens porque meu tio queria morrer. Já o desalento o ia cegando para as visões de além­túmulo. Os anos pesavam­lhe. Esperanças de felicidade, aqui, onde ela se entende e compreende, nenhumas. Esperar do céu!… Oh! que nectário enleio e ansiar deve ser esse! Mas meu tio, bem que religioso, era menos ascético, muito menos que os poetas, por via de regra, gente boa, que se ilude para se não parecer com a outra gente. Que é isto de aprazarmos as mulheres, que nos fogem deste mundo, para as bem­aventuranças do outro?… Eu

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estou persuadido que as venturas do céu são de outro quilate. Mulheres e homens no céu, meu amigo! Sexos na presença de Deus!… Parece­me que seria insustentável por um trimestre a boa ordem do reino eterno!…

— Olha que a tua linguagem vai destoando do som funeral da narrativa — observei ao meu amigo. — Há tanto tempo que teu tio saiu do Porto… Tenho empenhadas todas as faculdades do meu espírito em saber o que fez a freira depois.

— Quando os liberais entraram no Porto, algumas religiosas assustadas com a perspetiva de desacato aos conventos, saíram, e recolheram­se a casa dos seus parentes. Mariana, receando que seu pai lhe censurasse a deliberação, por suspeitá­la crimi­nosa, foi procurar o abrigo de parentes nas cercanias de Paço de Sousa. Carlos Leite estava em Ponte Ferreira, quando ela passou, em companhia de suas criadas. Apertou­lhe a mão, susteve­a sem alento nos braços, disse­lhe breves palavras em tom paternal, e mandou soldados acompanhá­la a casa de seus parentes. Desconfio que o intento da religiosa era assis­tir à primeira batalha, e procurar a morte onde o seu amigo esperava encontrá­la.

Meu tio recebeu algumas vezes notícias de Mariana, e escreveu­lhe cartas que possuo. Creio que nenhum oficial supe­rior do exército de D. Miguel anteviu como ele o êxito da luta. Em uma das cartas, diz ele: «Nós defendemos o rei; os cercados defendem a vida. Nós somos oitenta mil confiados na justiça da causa; eles são quinze mil confiados na salvação do próprio esforço. Os nossos frades já nos falam da proteção de Deus e dos santos. Os cercados animam­se uns aos outros, e não se atêm à coadjuvação de S. Jorge ou S. Tiago. Necessariamente hão de vencer eles.» E depois de algumas linhas, ajuntava: «Eu não verei a derrota nem a vitória.»

Formado o cerco, o regimento de Carlos Leite avizinhou­se das linhas. As batalhas dos primeiros meses, como se colige de uma balbuciante história que aí temos, foram pouco para heroísmos. Não devemos crer sem reserva o que nos contam os

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veteranos, que, de uma e outra parte, conservam as cicatrizes e a memória desses dias infaustos. Meu tio almejava uma grande e decisiva peleja. Foi dos que se alegraram com o programa do assalto geral às linhas em dia de S. Miguel.

Encontrou, finalmente, a sua desejada bala. Caiu do cavalo debaixo da bateria do Bonfim. Era mortal o ferimento. Os soldados transportaram­no à loja da casa que te mostrei. Requisitaram­se da ambulância os unguentos para o curativo da ferida, que sangrava debaixo da clavícula direita. Meu tio fez um gesto negativo, e murmurou: «Não me atormentem mais.» Depois, chamou à puridade um sargento da sua confiança, e disse­lhe: — Tome conta dos papéis da minha bagagem, e mande­lhos. Se eu pudesse, escrevia­lhe com o meu sangue duas linhas… Para quê?… Uma dor inútil…

Proferidas estas palavras, entrou na loja uma mulher trajada de aldeã, em altos clamores. Era a religiosa. Ajoelhou­se à beira de Carlos Leite. Caiu de sobre os joelhos com a face nas lajes. Meu tio levantou­a; e, no esforço que fez para a estreitar ao seio, perdeu o alento, e ali morreu.

Mariana não voltou mais ao mosteiro, nem ao abrigo da família. Sei que a recolheram uns fabricantes de S. Roque da Lameira, julgando­a filha de lavradores. O sargento, encarregado de entregar­lhe os papéis de meu tio, morreu poucas horas depois do seu comandante. A bagagem foi enviada para casa de minha mãe pelo camarada de meu tio.

Dois meses volvidos, Mariana, acompanhada pelo cama­rada de Carlos Leite, ao cair de uma noite tempestuosa, foi dar a minha casa. O soldado chamou minha mãe de parte, e disse­lhe: «Esta senhora é a freira que o meu comandante amou dez anos.» — Pois se é, disse minha mãe, eu amá­la­ei toda a vida.

Mariana entrou na nossa família. Eu chamava­lhe tia; minha mãe chamava­lhe irmã. Este santo parentesco durou vinte meses. Lembra­me que ela tinha uma formosura de cadáver, antes de azulado o rosto pelas manchas da putrefação. O sorriso, com

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que agradecia os nossos carinhos, fazia tristeza. No outono de 1835, ao caírem as primeiras folhas, inclinou a santa do amor e da saudade ao seio de minha mãe a fronte branca e fria de mármore, e expirou, balbuciando «Vou vê­lo!»

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CONCLUSÃO

Parou a liteira na rua da Boa Vista à porta de Francisco Elisiário, em cuja casa António Joaquim costumava hospedar­se. Despedi­me do meu amigo. Eu chorava com dores nos ossos; mas aproveitei estas lágrimas, atribuindo­as a um exaltado sentimento de gratidão. Comprometemo­nos em nos ajuntarmos no dia seguinte para, em suave quietação, nos deli­ciarmos conversando sobre coisas e pessoas do nosso passado. Recolhi­me desancado à minha hospedaria, no intuito de me fazer apalpar por um algebista. Graças às poções alcalinas, e fumigatórios, ao outro dia haviam desaparecido os vestígios das vinte horas de liteira.

O meu primeiro cuidado foi substanciar no meu livro do Há de haver apontamentos das histórias que o meu dadivoso amigo me contou. A este livro de arcaboiços de romances chamo eu do Há de haver, porque ali estão como embrionárias as quantias que hei de receber do público, nome trivial e um tanto plebeu, que, em mais fidalga linguagem, quer dizer a porção luminosa do país para quem, e em honra da qual, os operários do espírito estão de contínuo lustrando e facetando os seus avelórios. Estes «créditos» o que têm de mau é abor­tarem às vezes, por isso mesmo que são embriões. A não ser

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isto, quem possui um livro deste Há de haver, em Portugal, tem mais que o necessário para se fazer conhecido do seu aguadeiro, e ser sócio do Instituto de Coimbra. Para além disto começa a imortalidade.

No dia seguinte recebi a visita do meu amigo. Contou­me que em casa de Francisco Elisiário até os móveis riam de júbilo. Adriana, a esposa ditosa do marido regenerado, dera à luz um menino robusto como um elefante. Comunicou­se­me a alegria daquela boa gente, e também me ri. Todos os chamados bens supremos desta vida são mesquinhas e transitórias fruições, em confronto dos inefáveis enlevos da paternidade, melhor provada e definida do que ela está na lei romana, e, pelos modos, no direito escrito e consuetudinário português.

António Joaquim mandou buscar sua esposa, e mãe, e os filhos mais velhos para assistirem ao batizado do menino. Felicito­me de ter cumprimentado estas duas senhoras, que se disputavam em doce competência o coração do meu amigo. A mão caprichosa da natureza, já agora, quando quer fazer mulheres assim, esconde­se nas florestas do Minho, e noutras florestas: o ponto está em que a santa ignorância embale no berço as criaturas, e vá com elas pela vida além, até lhes entregar, à beira da sepultura, a chave dos enigmas da outra existência. Nas cidades, a natureza não pode vencer a arte. As esposas e as mães têm outra casta de merecimentos que as realçam grande­mente, e as aformoseiam como matizes da sociedade: falta­lhes, porém, o dom divinizador da ignorância.

Passados os dias da festa de Adriana, o meu amigo, com o rosto quebrado de tristeza, entrou ao meu quarto, e disse­­me:

— Que é dos rapazes do Porto que, há doze anos, foram a áurea juventude desta terra? Onde estão os alegres conversadores do meu quarto na hospedaria francesa? Entrei nos botequins, e não conheci ninguém. Morreram?

— É possível que morressem. Uma dúzia de anos é um cataclismo. Em quatro mil trezentos e tantos dias, a torrente de

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uma geração vaza­se nos boqueirões dos cemitérios. Estranhas um sucesso naturalíssimo, António!

O meu amigo saiu mais triste de minha casa, como quem volta as costas a um espírito fútil, indigno de entender a sau­dade dos mortos esquecidos.

No outro dia, encontrei­o no «Passeio das Virtudes». Estava com ele um seu amigo da primavera de ambos. Era… — É um preito aos grandes desgraçados mortos não lhes lembrar o nome aos vivos, que apenas atentam os ouvidos para saberem os nomes dos felizes.

António Joaquim escutava­o com semblante de dor e espanto. Aproximei­me, e escutei também. O essencial do seu discurso, não interrompido e precipitado, soava como isto:

— Perseguem­me os astros. Há uma conjuração de céu, terra, e mar contra mim. Os inimigos aéreos têm corpos lúcidos como faúlas crispadas das forjas do inferno. São as potências, que obedecem ao meu inimigo implacável. Quando a guerra à minha pobre cabeça vem do nascente, ou do meio­dia, tenho o etna dentro do crânio. Não pode viçar flor nenhuma de esperança em volta das chamas da minha cabeça. Estrondeiam­­me no tímpano as potências como se a humanidade arrastasse grilhões sobre um pavimento de bronze. Isto é infernal, meu amigo! Tu não sabes quanto eu padeço!

António Joaquim relanceou­me os olhos cheios de lágrimas, e contemplou depois o casaco, e as calças, e o chapéu enlamea­dos, rotos, e indigentes do seu amigo.

O desgraçado tinha enlouquecido um ano antes.— A última vez que vi este homem, disse­me depois António

Joaquim, foi há seis anos, no baile do conde de ***. Que gra­cioso e galhardo mancebo ele era então! As mulheres poderiam amá­lo; mas, nós os rapazes adorávamos­lhe a sátira eloquente, a frase de dois gumes, a sentimental ironia das suas revelações amorosas. Dizia­se que a filha do conde de *** lhe queria apaixonadamente. Esperava­se que ele quisesse aristocratizar os seus bens de fortuna, enlaçando­se à família que muito podia

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naquele tempo. Perguntei­lho, quando almoçávamos depois do baile: disse­me que os seus amores sérios eram uma menina de doze anos, linda como o sorriso da criancinha de um mês adormecida, risonha como os anjos que levam a Deus a alma pura de uma virgem. Acrescentou que amava a menina de doze anos desde que a vira aos nove, dançando, entre crianças, toucada de flores brancas, sorrindo a todos com lábios e olhos, olhos em que Deus ou satanás influíra o íman, que tanto pode levantar a alma ao céu, como despenhá­la à voragem. Seria esta mulher que fechou a alma do pobre moço no recô­ncavo das trevas infinitas?

— Não sei: porém, desconfio que a razão lhe fugiu com a «fortuna», galicismo atroz que busca os seus prediletos na lama, e lhes converte a lama em coxins de penas; ao passo que empurra com o pé ao lamaçal os berços de ouro em que abriram os olhos os predestinados como o teu amigo. Eu também o conheci na opulência da razão e na opulência do ouro. Não lhe sei dum crime, nem sequer duma falta. Todos os desafortunados e desgovernados se consideravam iguais perante a bolsa dele. Emprestava dinheiro com juro de gratidão; mas perdoava logo o capital e o juro: assim mesmo os perdoados ficavam descontentes, por entenderem que este modo de des­quitar devedores era não querer emprestar mais com tamanha usura. Assim que empobreceu, o teu amigo distinguiu­me entre os seus conhecidos; e assim que endoideceu fez­me o favor de me procurar. Aquelas visualidades que o atormentam, e que tu não pudeste formular no teu espírito, são as medonhas quimeras, que andam à volta da monstruosa quimera chamada pobreza. Todo homem pobre, perdida a razão, deve ver aquilo, e ouvir aqueles estrondos. Os pobres que não perdem o juízo, se não escutam Deus, devem ver coisas piores ainda. Os pobres que têm sete filhos veem sete rostos amarelos de fome. A mãe, que lhes não pode injetar no sangue deles o sangue dessorado das suas artérias, vê sete espectros, que lhe dizem: «porque nos hás tu dado a vida, mulher viciosa e mãe descaroada?» Aqui

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tens que as visões dos pobres com juízo são mais pavorosas. É justo chorar o destino daquele moço que ambos conhecemos nas condições mais bem sorteadas e prosperadas; mas eu chorá­­lo­ia mais do centro da alma, se ele tivesse luz de razão para se ver pobre, e andrajoso, e esquálido. Amanhã o teu amigo morre 1. A congestão vai afogar­lhe a áspide que lhe morde o cérebro. Acaba­se tudo: é a demência que o resgata. E, se não fosse a demência, e a coragem do suicídio lhe faltasse, havias de vê­lo envelhecer ralado de amarguras e opróbrios.

— Más doutrinas! — atalhou o meu cordato amigo. — Pois a pobreza é opróbrio e ralação de amarguras?

— Não: a pobreza é um encanto de olhos e de razão: a po­breza não é opróbrio; é uma incessante glorificação de honras. Um casaco surrado e no fio, aos olhos desta cristã sociedade, tem o valor estimativo dumas lapelas arreadas de veneras e fitas. O homem pobre, se quer ombrear com os poderosos, não tem mais que mostrar o seu brasão — as botas rotas. Se és pobre, quebra a tua escudela de Diógenes na cara de quem te aprouver, que a baixela dos ricos está às tuas ordens: não tens mais que mandar dizer pelo guarda­portão que está no pátio um pobre virtuoso, que prefere pedir o que a humanidade lhe deve, a tomá­lo por suas mãos onde se lhe ocasionar melhor e mais segura oportunidade.

— E o trabalho? A virtude do pobre que é senão o trabalho? — atalhou António Joaquim.

— O trabalho, é verdade; é virtude, assim como é virtude comer, e dormir, e não andar descalço, e gozar outras como­didades individuais e relativas. Em quanto a mim o trabalho é necessidade: chamar­lhe virtude soa poeticamente. Convenho contigo e com Rousseau: «Tout homme oisif est un fripon.» Espero provar­te pela vida fora, se ainda o não provei, que eu aceitei de bom ânimo e boa sombra a minha condenação ao trabalho. Quando eu repousar a cabeça no regaço da dependência, meu

1 morreu, um ano depois, em rilhafoles. [N. do A., da 1.ª edição, reproduzida nas seguintes.]

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amigo, devo estar a decliná­la da dependência para o seio caridoso da morte. Já vês que não me inspira a preguiça esta coisa que se te apresenta com ares de tese absurda.

— Mas é que eu ainda não sei o que tu queres provar! — in­terrompeu António Joaquim. — Isso que tu dizes, se é tese, não me parece mais bem tecida que as visões do meu pobre amigo.

— O que eu quero dizer, com referência ao teu pobre ami­go, é que muitos na posição desafortunada em que ele ficou, depois de perder os bens, e antes de perder a razão, muitos, repito, na situação dele, enquanto buscam e não acham trabalho próprio de suas forças, gastam o vigor moral, a probidade que os estimula, a vontade enérgica de se nobilitarem na pobreza. Consumidas estas poderosas faculdades num esforço inútil contra a organização das coisas…

— Mas o que chamas tu organização das coisas?— É o ministro da justiça que não fez o teu amigo dele­

gado.É o ministro da fazenda que o não fez verificador da

alfândega.É o ministro da marinha que o não fez secretário de um

governo do Ultramar.É o ministro do reino que o não quis para dirigir uma

fábrica de deputados não sei em que bairro.E o teu amigo era bacharel formado, inteligente, e sem

mancha na sua vida de rapaz.Aqui tens o que eu chamo organização das coisas.O que querias tu que ele se fizesse? Albardeiro? Cabelei­

reiro? Acendedor de lampiões? Peço à tua razão ilustrada uma resposta.

— Se ele tinha inteligência — disse António Joaquim — fizesse­­se escritor.

Ouvido isto, benzi­me, pus os olhos no céu, e disse:— A providência divina houve por bem endoidecê­lo pelos

processos ordinários da loucura vulgar, antes de lhe incutir a

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loucura extraordinária de fazer­se escritor em Portugal. Que paradoxo! A inteligência do teu amigo não lhe abriu as portas do funcionalismo público? Não: pois bem; faça­se dessa inteligência alguma coisa! Um escritor — o derradeiro mester em que pode ser aproveitado esse raio luminoso do coração de Deus!…

Ó meu amigo, o máximo favor que um português pode receber do céu é endoidecer, na véspera de fazer­se escritor público!

* * *

Passados alguns dias, por volta de nove horas da noite, recebi a visita do meu António Joaquim.

O benigno acaso honorificara­me, naquele tempo, com uma posição insociável, análoga à de Xavier de Maistre, quando viajou à roda do seu quarto. O sublime filósofo escreveu então o mais desenfastiado e gracioso livrinho deste mundo. Bem haja a polícia de Turim, que circunscreveu os horizontes do autor do «Leproso» às quatro paredes de uma câmara, em cujo ambiente as ideias de ouro ondulavam como a poeira lampejante sob um raio de sol. A humanidade não teria aquele livro da saudade, do coração, e do conforto, se a culpa do escritor o não forçasse a reclusão.

Eu também circunvagava os olhos pelas paredes do meu quarto. As minhas alfaias, como otomanas e poltronas, con­vidavam a uma prudente quietação, estranha à tentativa de viajar. Qualquer destes móveis demandava a imobilidade para conservar aparências de adorno. Se os metesse a caminho, igualar­me­ia a de Maistre na queda, sem ser preciso distrair­me.

As cortinas do meu quarto não eram as inspirativas cassas branca e rosa do gentil narrador: eram transparentes opacos de fábrica nacional, que desfiguravam a luz em escureza de cárcere. Os quadros impendentes de quatro pregos eram o retrato de quatro pessoas infelizes: uma mulher sentada no cairel de um abismo, sondando­lhe a profundeza para despenhar­se. O segundo era dois noivos de oito meses fechados na sepultura antes de

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verem florir a primeira primavera debaixo do céu, em que eles se tinham abraçado para caminharem, longa vida, à luz da mesma estrela. O terceiro quadro era um artista, vencido na luta com a miséria, dando o seu único bocado de alimento a um cão, o só amigo seu, e certo para a hora suprema da agonia, figurada no último quadro. Com estes incentivos chora­se; mas não se viaja. Fica declarado que eu não pudera acompanhar o meu amigo, nem procurá­lo, no decurso de alguns dias e noites. Estava preso, com o meu quarto por homenagem de duas semanas.

Pareceu­me mais que muito contristado António Joaquim. Reparando no ar desacostumado da sua tristeza, disse­lhe:

— O Porto faz­te mal, meu amigo. Tira­te daqui, se não tens urgência de estar. Presumo que te nauseiam úlceras, que a tua patologia social desconhecia. Vai para a tua aldeia, António. Desgraças, reduz­te a conhecê­las pelos romances, que apenas te desbaratam o tempo. Que tens tu? é o espetáculo do teu amigo da mocidade louco e encodeado da lama das ruas em que dorme?

— É tudo.— De onde vens? E de casaca?— Do cemitério. Assisti ontem a um enterro, e hoje a

outro.— Hoje sei eu que era António Coelho Louzada o sepul­

tado. E ontem?— Era José Francisco Fernandes.— Não conheci.— Nem eu: fui sem convite encostar­me no escuro da ca­

pela do cemitério do Prado, porque vi fileiras de carruagens marchando funeralmente para ali. Deviam de ser trezentas as pessoas, que alumiavam o trânsito do caixão a um pomposo jazigo.

Perguntei quem tinha sido neste engano do mundo aquele defunto, que tão chorado de amigos se ia pela eternidade dentro, e por uma porta de tão belo mármore. Disseram­me que era o Sr. José Francisco Fernandes.

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Como no préstito conheci o meu honrado parente Francisco Elisiário, assim que ele apagou a tocha, e alimpou as últimas lágrimas, avizinhei­me dele, e pedi­lhe que me dissesse alguma coisa do seu finado amigo.

Francisco Elisiário respondeu:— Tomara o senhor o que ele deixou, a maior de cento e

oitenta contos!— Eu não lhe pergunto quanto ele deixou: queria saber

quem era.Olhou­me com ar de bondade, que tolera perguntas

párvoas, e disse:— Era o José Francisco Fernandes.— Homem de bem? Honrado? Benfeitor da humanidade?— Acho que era honrado, de boas contas, e não me consta

que fizesse mal a ninguém.— E bem?— Eu sei cá, homem! — tornou o marido de minha

prima. — Se fez bem, lá o achará no outro mundo; e, se não, lá se avenha.

— Mas o primo Elisiário parece que estava limpando as lágrimas…

— Pudera não! — acudiu ele, exprimindo­se com pausas lúgubres. — Se lhe parece! estar a gente ali ao pé da cova, e lembrar­se que, tanto faz ter como não ter, havemos de ir todos àquilo!

— Ah! então o primo não chorava pelo seu amigo; chorava por si…

— Não que isto de morrer é um negócio sério, meu caro António.

— Negócio é que eu não acho que seja, a não ser para os herdeiros do Sr. Fernandes. Com que então diz­me o senhor que toda esta gente, que aí vem, acaba de prestar o derradeiro ato de acatamento a um cadáver que era ontem capitalista…

— E de aqui vamos dar os pêsames a um sobrinho que pilhou a herança. Quem havia de esperar que o tal sujeitório havia de

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herdar! Era um valdevinos, que andava por aí de charuto na boca, e luneta, e chapéu à bolina. O tio pô­­lo fora de casa há dois anos, e mandou­o à vida. Ninguém fazia caso dele.

— Ah! estas pessoas que vão agora dar ao herdeiro os sentimentos não faziam caso dele?

— Pudera! Um troca­tintas!— As tintas é que ele agora trocou perfeitamente. Era preto,

e fez­se louro.— Não percebo o que diz o senhor — observou meu primo.— Disse eu que o sobrinho do defunto Fernandes, que

Deus haja…— Ámen — atalhou Elisiário revirando um olho à lua. E eu

ajuntei:— Como ficou herdeiro do tio herdou­lhe também os

trezentos amigos que aqui vão!… O mundo é feio, primo Francisco!

— Ora se é, primo António! Isto de morrer a gente, quando principia a gozar a fortuna que fez, custa a tragar! Eu, cada vez que vou a um enterro, fico a cismar toda a noite, e acordo achacado.

Nisto, o marido de Adriana espirrou, e disse:— Acho que me constipei! Fiz boa asneira em cá vir com

este frio! Deixasse­me eu estar em casa… É a última vez que caio nesta. Quando eu morrer, que não vá ninguém ao meu enterro!

O mundo é triste! continuei eu a dizer à minha consciên­cia, e de abstraído que ia, perdi­me de Francisco Elisiário, e fui revelar a minha mulher e minha mãe a tristeza que me confrangia a alma.

Aqui trago um jornal de hoje em que vem noticiado o enterro do amigo dos trezentos cavalheiros de ontem à noite:

«Necrologia. — Deram­se ontem à terra os restos mortais do Sr. José Francisco Fernandes, cidadão probo, e estimado geralmente. Homens assim, quando vão deste mundo, deixam

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na terra um lugar vazio, e sinceras lágrimas da humanidade. Bem se viu quão grande era o número dos seus amigos pela concorrência à volta do seu cadáver. O corpo do bene­mérito cidadão foi encerrado no magnífico jazigo que o ilustre finado mandara erigir. Cumprido o triste dever, os amigos do chorado José Francisco Fernandes foram apertar pesarosamente a mão do nosso particular amigo António Eleutério Bernabé Fernandes, sobrinho e digníssimo herdeiro do defunto. Esperamos, e todos esperam, que o Sr. Bernabé lhe suceda também nas virtudes. Morreu um homem de bem, e deixou outro no seu lugar. Requiem æternum dona eis, domine, et lux perpetua luceat eis.»

O autor da notícia, como vês, pede, em latim, a Deus que dê descanso eterno ao defunto e ao herdeiro. E eu peço também a Deus, em português, que dê eterno descanso a todos. Agora falar­te­ei do enterro de hoje.

Eu tinha lido do portuense António Coelho Lousada uns graciosos romancinhos na Península e no Comércio do Porto. Li revistas semanais tão chistosas como delicadas no Nacional. Li um magnífico estudo do século xvi, num romance intitulado A Rua Escura. Li outro romance denominado Na Consciência que me disseram ser a resposta a um que tu havias publicado com o título: Onde está a Felicidade? Li mais um romance incompleto, chamado Os Tripeiros; que era a gloriosa legenda 2 que tão sublimemente explica o epíteto, que alguns palermas cuidam soar indecorosamente para os netos da valente raça de portuenses, devotados às conquistas de além­mar. Tudo lera e muito de alma me afeiçoei ao escritor, que sobredourava os dotes de alto espírito com a virtude da independência nobre, e da honra numa quase pobreza.

Como ontem li a notícia da morte de Lousada, fui hoje ao cemitério para lhe contemplar a fronte onde se apagou a

2 no tempo, em que o meu amigo falava estas coisas, ainda não era tudo legendas neste mundo. [N. do A., da 1.ª edição, reproduzida nas seguintes.]

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lâmpada, cuja flama ele entreteve com o óleo de suas lágrimas, talvez! Fui, e vi à vontade, porque em redor do seu esquife eram poucos os contempladores. E ele, por entre as pálpebras meio fechadas, parecia contá­los, e coar às cinzas do coração o bafejo vivificante das almas que lhe davam a sua saudade num suspiro, num como soluço trémulo. Ali sim: verdadeiros amigos estavam ali à beira daquele esquife pobre, atirado ao valo comum, perdido para sempre entre as ossadas dos pobres. Eu lembrei­me então que seria um grandioso pensamento o daquele que atirasse sobre a sepultura rasa de António Coelho Lousada um dos seus livros, e dissesse: Aí está um epitáfio!

Saí do cemitério. Os mancebos — todos o eram — que saíram comigo, vinham taciturnos, e recolhidos. Alguns pararam à porta da casa de onde saíra o morto e entraram; outros perpassavam, dizendo: «É ao Porto que nós damos os pêsames de ter perdido uma das suas primeiras inteligências, e de todas a mais espe­rançosa em livros gloriosos para a sua terra querida.»

Entrei num botequim, e apropriei­me deste jornal, com o propósito de te mostrar a notícia do enterro do Lousada, a qual te peço que confrontes com a do argentário, que se lhe antecipou vinte e quatro horas na presença de Deus.

Aqui está. Eu leio:

«Óbito. — Ontem morreu o Sr. António Coelho Lousada, que escreveu algumas obras de merecimento. Foi arrebatado no vigor dos anos. Lamentamos a perda do escritor, que era benquisto de todos que o conheciam, e deveu pouco à fortuna.»

Bem se vê que esta local só podia ser escrita a respeito de um morto que deveu pouco à fortuna. Quando morre alguém que lhe deve muito, as penas fúnebres, molhadas em essência de lágrimas, encarregam­se de saldar as contas com a credora fortuna, nas pessoas dos herdeiros do defunto, que ficam sendo os sacerdotes da deusa propícia.

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Pensei nisto, e vim caminho do teu quarto, por me parecer que eras muito afeiçoado ao Lousada. Lá mesmo imaginei que a tua saudade ia abraçar­se ao cadáver do amigo, e que entre as gotas do orvalho, que ao romper da manhã lhe hão de humedecer a terra, uma delas será a lágrima que te vejo na face.

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EPÍLOGO

Ontem, 27 de outubro deste ano 1864, quando eu, à conta da pequenez do livro, cuidava em alinhavar outra história, que o meu amigo provavelmente me não contou, anunciou­se­me um sujeito de botas de água e cobrejão.

Era António Joaquim.Haviam decorrido cinco anos sem nos vermos.— Como estás nutrido! — exclamou ele.— É a gordura da felicidade! — disse eu, apalpando os peri­

galhos da barba para me convencer da minha nutrição. — E tu? Que nediez! que elefante de força e saúde! És o emblema do Minho em carne; Em osso não digo, porque tu deixaste de pertencer aos animais vertebrados: és um molusco inteligente, António! Como ficou a tua família? Os teus rapazes? Os teus sócios da arca santa em que mareias sobre este cataclismo de corrupção universal?

— Estão todos bons. A única pessoa corrompida da arca sou eu.

— Tu!?— Eu, sim, desde que involuntariamente dei direito a que

o meu nome se leia em vinte e tantos folhetins do Comércio do Porto. A pureza da minha vida e costumes quem ma dava

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era a obscuridade. Enquanto o mundo me desconhecesse, sabia eu que o meu esconderijo seria defeso à curiosidade malévola e pestilencial; porém, desde que me fizeste viver e discorrer, e parvoejar, como qualquer sócio deste funesto clube, chamado a sociedade, a minha pessoa, o eu subjetivo, deixou de ser eu, e passou a ser tu. Quero dizer que aniquilaste a minha indi­vidualidade típica: consubstanciaste­me na matéria universa; e contaminaste­me da peste geral.

Foste ingrato a quem te deu liteira para vinte horas! Estampaste o testemunho da tua ingratidão, e não haverá para ti, de ora em diante, pessoa generosa que te faça um favor, com o risco certo de ficar sendo autora dos teus livros. Pelo que vejo, todos os infelizes que conversam contigo são teus cola­boradores, de mais a mais, gratuitos. Em França não é assim. Balzac pagava os enredos das suas histórias, e todo o escritor de boa­fé reparte dos seus lucros com quem os auxilia.

— Vens portanto reclamar a tua quota­parte nas Vinte Horas de Liteira? — perguntei eu, disposto a respeitar a propriedade das ideias do meu amigo.

— Não! — acudiu ele. — Ainda não estou inteiramente afistulado da gangrena mercantil que apodrenta a humanidade. Eu não vendo ideias. A inteligência é fulgor de Deus, é raio de luz que se não decompõe em lama. Alugar o espírito por umas tantas horas ao leitor, que te compra um livro, é uma simonia, um tráfico sacrílego, um chatinar ignóbil com os dons da luz eterna.

— Portanto, prescindes da tua parte em dinheiro na cola­boração das Vinte Horas de Liteira?… Muito obrigado.

— E prescindo também da glória.— Isso não podes! — acudi logo com vaidade de

imortalizador. — A imortalidade é indeclinável. Só podes decair comigo do aplauso das gerações por vir. Está o teu nome em vinte e tantos folhetins? Conta por séculos a sobre­vivência de ti mesmo. As pessoas que fazem romances, e as que são feitas ou refeitas nos romances, não podem acabar

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de todo em todo. Se não ficam perpetuadas em bronze, têm uma duração, mais ou menos encarquilhada, de múmias. As necrópoles, ou salões mortuários onde se depositam estas múmias intelectuais, são as mercearias por via de regra. A manteiga e os cominhos são a resina e o asfalto aromático destes embalsamamentos.

Meu amigo, eu já não posso remediar o que fiz. Eternizar­­te foi uma tolice irreparável como outras muitas. Desculpa, que a minha intenção era honesta; e tu deves imaginar quanto me seria custoso irradiar uma auréola imortal em volta do teu nome, que se ajeita muito pouco a isso. Um homem que se chama António Joaquim tem todos os elementos nominais para ser uma excelente criatura; mas está em divórcio da lira clássica, e do alaúde romântico.

— Cada vez mais sandio! — atalhou o meu amigo, apertando­­me nos braços afetuosos, e relevando­me estas facécias mas­cavadas e inocentes, com que eu brindo as pessoas que mais prezo.

— Então a que vieste? Vens­me deparado pela Providência dos romancistas falidos de imaginação? Trazes­me o epílogo das Vinte Horas de Liteira?

— Aqui estou à tua disposição: explora­me.— Conta­me o que é feito dessa gente que ficou viva nos

vinte e cinco capítulos publicados. Aqui tenho os Comércios à mão.

A heroína do primeiro romance é a égua que te salvou. Ainda vive?

— Cuidei que me pouparias à dorida lembrança; porém, se

Infandum… jubes renovare dolorem,

saberás que a minha salvadora ao décimo oitavo ano de sua idade, quando se estava gozando as delícias de uma invalidez repousada e farta, foi escouceada por um jumento no viço dos anos, e não pô­de sobreviver à sua ignomínia.

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— A tua égua devia assim morrer! — observei eu. — Raro personagem distinto não acaba assim espinotado por burros. Equiparou­se a tua ilustre defunta aos grandes estadistas enca­necidos, aos grandes génios que fecham o ciclo intelectual da sua geração. Em Portugal há lamentáveis exemplos destes pinotes homicidas. Console­te, meu amigo, a consideração de que a tua égua tragou afinal as fezes do licor embriagante, chamado glória. O que me falta saber é a posição social que atingiu o burro. Aposto que está bem!

— Não sei.— Hei de eu indagar isso, quando tiver paciência para

examinar o destino de todos os sujeitos da sua espécie. Eu sei onde eles se encontram; mas não o digo aqui para me forrar à catástrofe da tua égua.

Vamos adiante. Os filhos de João do Cabo, aquele homem que desenterrou o dinheiro? O pai ainda os leva às minas, em que ele expiou a dissipação dos seus bens?

— O pai morreu. O filho mais novo, que frequentou a Universidade, recebeu o seu património, e jogou­o em menos de três anos aqui na Foz. Tinha vinte e cinco anos, e estava pobre. Foi buscar o amparo dos irmãos. O mais velho, que é padre inteligente, acolheu­o com boa sombra, e disse à criada: «Faça a melhor cama e as melhores iguarias para o nosso hóspede.» A governante objetou dizendo que eram desnecessárias tantas cerimónias com um irmão. O padre replicou: — É hóspede.

Ao cabo de três dias, saíram juntos, e lá numa quebrada de monte em que se abria uma das minas, onde trabalhara o pai de ambos, o padre parou, e disse ao doutor:

— Teu pai e meu, que Deus haja, desbaratou os seus haveres; mas não foi mendigar favores nem esmolas: trabalhou nesta mina e noutras. Neste mesmo sítio, em que estamos agora, nos referiu ele as suas culpas e os seus castigos, concluindo por nos dizer: «Meus filhos! Maldito seja entre vós aquele que jogar!» Pesa sobre ti a maldição de teu pai, porque jogaste e perdeste

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o teu património. Se perdeste a honra também, não sei, nem to pergunto: a sociedade o saberá e to perguntará. À maldição, que te há de ser toda a vida um doloroso gravame, há um só meio de lhe amaciares as asperezas: é o trabalho, o trabalho como expiação, conducente à virtude. Teu pai era agricultor, e fez­se mineiro: tu és homem de letras, cursaste cinco anos a Universidade: creio que não precisas dessaibrar minas. Abre o teu escritório de advogado, e trabalha. Se me dizes que em casa de teus irmãos há pão abundante e sobejo, respondo­te que o há, graças a Deus; mas é para inválidos, para os que querem trabalhar, e não podem: para ti não, que podes, e não queres. A ti, meu irmão, farei o que faria a um estranho. Se não tens com que principiar vida, dou­te as minhas economias; mas dos bens, que foram de teu pai, nem um ceitil.

No dia seguinte, o bacharel saiu para Lisboa, com os recursos dados pelo irmão. Aplicou­se tão esforçadamente à prática do foro, que é já hoje um advogado de fama, e começa a recuperar o seu património. Nas cartas, que escreve ao padre, não o trata de irmão: chama­Ihe a sua providência.

— Edifica­me esse caso, meu caro António Joaquim!… E aquele João Carlos, herdeiro da D. Rosalinda, viúva do general francês?

— João Carlos ficou na encantadora vivenda que herdou; e, passados anos, casou com uma menina pobre, linda, e doente como as criaturas a quem o ar desta vida parece que empeçonha os órgãos pneumáticos da alma.

— Pois ela tinha isso!? Órgãos pneumáticos na alma?!— Tu é que já não tens órgão nenhum da alma, meu

celerado! Não tens senão estilo. É o que diz toda a gente bem organizada de corpo e alma.

— E vai depois… a esposa de João Carlos morreu de pneumonia?

— Não: engordou.— Ah! consertaram­se­lhe os órgãos da alma? Ainda bem!…

Deram à sociedade muitos meninos?

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— Muitos anjos que se confundem e conversam com as flores do jardim, onde seu pai lhes fala da generosa senhora que lhes deu enchentes de felicidade a todos.

— E o Lourenço Pires da «História das janelas fechadas há trinta anos»?

— Morreu há dois anos. Saiu do seu suplício pela mais dolorosa das evasivas. Aquela primeira mulher, que ele havia infelicitado, continuou a persegui­lo, como te contei. Uma vez, estava ele deitado e adormecido na ourela do rio Ave. A men­diga descia do monte eminente, e reconheceu­o. Avizinhou­se dele, caminhando às surdas, e espiando­o por entre as árvo­res. A distância de dois passos, quedou­se contemplando­o com horrível trejeitear de rosto e mãos. Depois, saltou como fera ao homem, e de um empuxão, acompanhado de pragas, despenhou­o na corrente.

— Com que estranheza ele acordaria! — refleti eu, sincera­mente condoído da sorte do homem. — Quem te contou isso? Permite esta pergunta à crítica.

— Contaram­mo lavradores que estavam nas veigas da outra margem do rio, alguns dos quais se lançaram inutilmente à levada para salvarem Lourenço Pires.

— E ela depois que fez?— Fugiu pela serra fora, e lá de sobre o fraguedo mais

empinado, desfechou umas gargalhadas, que pareciam berros de gaios, no dizer dos lavradores. A justiça lançou­lhe a rede pelos concelhos vizinhos, e descobriu­lhe a ossada, passados meses, entre umas fragas do monte Córdova, a meia légua de Santo Tirso.

O enterro de Lourenço Pires foi decentemente feito pelo filho de Felicidade Perpétua, filho dele também. Esta santa mulher desfez­se em lágrimas. Levou­a Deus, depois que lhe mostrou executada por ministério dos homens a justiça divina.

— E que me dizes tu daquele Manuel da Mó, que por ter voltado pobre do Brasil, mandou erigir uma cruz, em ação de graças ao Altíssimo?

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— Encontrei­o este ano em Basto na feira de S. Miguel. Este homem enriqueceu com uma herança que teve a mulher, por morte de um tio brasileiro. Disse­me ele que ia levantar agora uma capela em honra também do Altíssimo, a ver se a mão divina o livrava de ser barão.

— Então a herança deu­lhe algum espírito, pelo que vejo!… E aquele santo homem, o Luís enjeitado, ainda pode dar­nos alguma lição da moral de Jesus?

— Ainda. Olhá­lo em rosto é entender a moral de Jesus. Não há semblante mais sereno e alegre. Os olhos dele nunca choram, porque, assim que vê lágrimas alheias, todo o tempo lhe é necessário para enxugá­las.

Em redor de Luís Ferreira, mulher, filhos, parentes, ami­gos, estranhos, todos comungam daquela virtuosa alegria ou compadecimento das dores que se acolhem à caridade dele. É o homem de Deus com o seu paraíso neste mundo. Não sei se os teólogos consentem isto. Alguns exigem que o coração do justo seja alanceado de desgostos, beneméritos da recompensa eterna. Sou leigo nesta matéria. O que sei é que Luís Ferreira é bom e feliz: o que deve animar os maus infelizes a fazerem­se bons. A teologia que discuta.

— E aquele Miguel de Barros, que encontrámos em Penafiel, a conversar somente de meninos?

— Tinha então seis, e tem hoje doze.— Oh! que desgraçado!— Cada filho, que lhe nasce, consoante ele diz e eu creio, é

novo manancial de venturas, que lhe rebenta em casa. Como é robusto, em cada braço traz três filhos, e dois em cada ombro, e um na pescoceira, e os outros penduram­se­lhe por onde acertam.

— É um grupo que faz vontade à gente de ter muitos meninos! E tua prima Adriana quantos filhos tem já?

— Pois não sabes que minha prima enviuvou há quatro anos?— Não sabia! Querem ver que o Francisco Elisiário morreu

da constipação, que apanhou no enterro do seu amigo Fernan­des? Aquele espirro foi talvez um agouro!

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— Não morreu constipado. Começou a queixar­se de dores agudas no ventre, e a comer muito. Deram­lhe uns flatos, e a medicina deixou­o sem pinga de sangue. Lembrou­lhe alguém se ele teria ténia. Consultou o Gerard desta fera, o Sr. Oliveira de Gondifelos, que lhe extraiu seis solitárias de uma assentada. Francisco Elisiário começou a sentir­se vazio, e pior. Disto faleceu, deixando uma excelente «fortuna», e as seis ténias em álcool.

— E tua prima?— Perguntas se minha prima ficou em álcool?— Não: o que fez depois?— Minha prima, passado o ano da viuvez, casou com um

paralta de Lisboa, que a levou de aqui, e lá a tem no gozo de todas as pompas realizáveis com cem contos de réis, que se espalham em dez anos. Eu sou o tutor do filho de Francisco Elisiário. Tenho­o comigo, à espera da idade para o fazer educar em colégio. Diz minha mãe que, volvidos alguns anos, havemos de sentar à nossa mesa a pobre Adriana, esbulhada dos bens de seu marido. Eu desculpei­a, quando casou. Precisava de amar. Viu um homem com os olhos do coração. Elegeu­o, ligou­o a si honrosamente. Se se enganou, se é infeliz, não a condenemos.

— Pois eu condeno­a!? Essa é boa! Um trimestre de amor vale bem cem contos de réis, e até me parece barato. A conde­nação social é um desconto frivolíssimo para quem empobreceu por amor; mas o que eu acho mau é a pobreza, e quero crer que tua prima não há de achá­la boa. Tem de curtir muitas dores surdas, muitas humilhações do amor­próprio, e arrepen­dimentos, que não reparam as ruínas do coração, dos bens, e da idade. Ora, parece­me a mim que tua prima lucraria mais em ter desistido do amor, que lhe corta de um golpe tantos ligamentos importantes à vida. Eu de mim, se tivesse a tolice de querer condenar tua prima, havia de acusá­la por ter sentido necessidade de amar, tendo um filho. Um filho é o complexo de todos os amores do céu e da terra. O Altíssimo, quando quer interpor um elo entre si e a mulher, dá­lhe um filho.

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— Isso é bonito — interrompeu António Joaquim — e pode até ser que seja verdadeiro; mas tem suas quebras na prática. A questão tateada fisiologicamente…

— Não tateemos questões fisiológicas — atalhei eu, por me parecer que a fisiologia é uma ciência, que vai tendendo a engrossar as camadas da matéria à volta do espírito. — E D. An­tónia morreu?

— Não: enviuvou também.— Que me dizes!? Foram também seis ténias que comeram

Eusébio Luís?— Não sei. Os localistas dos jornais, minguados em conhe­

cimentos indispensáveis ao seu ofício, escusam­se de dar aos leitores uma ideia dos desmanchos em que estavam as vísceras das pessoas falecidas.

— D. Antónia deve estar inconsolável!— Esteve inconsolável bastante tempo; excedeu­se até no

prazo razoável das desconsolações de uma viúva. Foi para Ponte do Lima, onde o marido comprara uma quinta; e, há seis meses, soube eu que ela casara com um rapaz de vinte e quatro anos.

— Essa é pior!… Seria necessidade de amor, como o casa­mento de tua prima?

— Pois que foi senão necessidade de amor?— E o marido como encherá esse vazio de coração?— Perfeitamente, como quem enche uma bexiga. Sopra­lhe

alguns suspiros, coisa fácil a todo o homem que dispõe de pulmões e ar.

— Mas, pelo que me disseste noutro tempo, inferi que D. Antónia tinha juízo!

— E que disse eu agora indicativo de que ela o não tem? Amou. Esta palavra absolve todas as demências. Se é forçoso censurar alguma das viúvas, minha prima é mais culpada que D. Antónia. A viúva de Eusébio Luís não tinha filho, nem parente, nem afeição, com que alumiasse as escuridades da velhice. Ama como esposa, dá talvez um amor terno de mãe

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ao homem com quem casou. E se ele for mau marido, pode estimá­la como bom filho. Além disto, como é muito rica, ainda que o marido se despenda em extravagâncias, é provável que ela não chegue à pobreza. À hora da morte, olhando para seu marido, poderá dizer­lhe: «pratiquei a virtude de te dar os meus haveres, para os repartires com outra que melhor te mereça.»

— Dou­te a minha palavra de honra — exclamei eu — que não induzes senhoras ricas e velhas a casarem com rapazes, pelo inefável prazer de lhes deixarem riqueza, que repartam com as novas. Em quanto, porém, ao sentimento da materni­dade, entendo que será proveitoso desenvolvê­lo nas senhoras idosas, mas a favor de órfãos desamparados, de filhinhos de pais pobres, de milhares de filhos de Deus, que elas devem adotar, esposando assim o espírito de Jesus Cristo. Toma lá um charuto e diz­me mais alguma coisa que encha três páginas. Quem temos nós mais de quem me contes obra de três páginas? Da Teresinha dos bois não tens que dizer?

— Ah! — exclamou António Joaquim — vou dar ao teu livro um trágico remate.

— Anuncias­me que morreram os bois e ela?— Os bois caíram debaixo do cutelo inglês. Naturalizaram­

­se ingleses por efeito da metempsicose. Foi a própria Teresa que aconselhou a venda, quando o pai ficou reduzido a uma quase indigência, por ter perdido a casa, em resultado de uma demanda com parentes. A rapariga revelou coragem heroica neste lance. Viram­na assistir à saída dos bois a caminho para o Porto. Afagou­lhes a cabeça entre o seio e os braços. E não chorou. A nobre alma sufocou as lágrimas para não exacerbar a angústia de seus pais.

Como ficaram sem terras, tomaram outras de renda. Teresa trabalhava incansavelmente para aligeirar os encargos da mãe. O velho, absorvido em seu infortúnio, caiu numa indolência marasmática, escondendo o rosto entre os joelhos para chorar. As terras eram mal agricultadas, à míngua de braços. Teresa era o homem da casa, mas era sozinha. A colheita mal chegou

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para pagar a renda do primeiro ano. Esta última adversidade abriu a sepultura ao pobre velho.

Acudiu Luís, o Enjeitado, a esta família. Aqui tens a lição da moral de Jesus, que pediste há pouco. Mãe e filha acei­taram o abrigo do comendador. Nada lhes faltava, senão o contentamento.

Teresa cuidou em casar­se para ter um amparo mais legítimo e melhor aceite ao coração.

Um afilhado de Luís Ferreira, caixeiro no Brasil, veio a ares pátrios. Agradou­se de Teresa, e espertou na alma vir­gem a primeira sensação. Pediu­a à mãe, e ao padrinho. Luís Ferreira recebeu de má vontade o requerimento do afilhado, e disse­lhe: «Vai ganhar a tua subsistência e a dela; e vem depois, que Teresa estará solteira à tua espera.» O caixeiro, obrigado a mentir pela paixão, disse que já tinha de seu alguns contos de réis com que podia estabelecer­se em Portugal.

— Como os ganhaste? — perguntou Luís.— Negociando, com créditos do patrão.— Mas tu — replicou o padrinho — quando vieste há dois

meses do Brasil, disseste­me que o ordenado mal chegava para as despesas. Para que mentiste então, se não mentes agora?

O caixeiro tartamudeou. Luís Ferreira perdoou a mentira ao amor do rapaz, e declarou­se estranho ao casamento.

Matrimoniaram­se com a condição de ficar Teresa em casa do seu benfeitor, enquanto ele ia e voltava do Brasil com os seus cabedais liquidados. O programa era estabelecer­se depois em Braga com armazém de fazendas brancas. Teresa condescendeu.

O marido da formosa moça obedeceu à violenta necessidade de separar­se, depois de lutar dois meses.

Apartou­se, amando­a mais do que previra. Bem sabia ele que a sua volta do Brasil com capital para estabelecer­se era obra para anos de muita fadiga e economia. Cogitou em enriquecer­se depressa; porém, a experiência do Brasil contraditava­lhe todos os cálculos. Volitaram­lhe em volta do

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espírito escandecido alvitres desonrosos, posto que exemplifi­cados com bom êxito. Entre muitos era forçoso aceitar o que se lhe afigurou menos repulsivo. Lembrou­lhe a moeda falsa, e apartou­se de sua mulher com este cancro a roer­lhe os liames que o prendiam à honra.

Chegou ao Porto. Haviam­lhe dito que se fabricava aqui moeda­papel com muita perfeição. Não sei quem o encami­nhou na vereda do crime até se defrontar com os agentes do artista falsificador. Com o dinheiro próprio, e com emprésti­mos, comprou alguns baratos contos de réis de notas falsas de cunho brasileiro.

Foi. Reassumiu a sua posição antiga, melhorada em guarda­­livros. Sem que ele o soubesse, Luís Ferreira, mediante amigos seus, solicitou do patrão de seu afilhado favores e proteção ao caixeiro, para ele poder voltar à pátria, e à companhia de sua mulher, e do filhinho que lhe deixara no seio. O patrão cen­surou o casamento; mas associou o guarda­livros no negócio. Estava, pois, o marido de Teresa em remediadas condições de mandar ir para o Brasil sua mulher.

Não o fez: o programa de enriquecer­se desonrosamente havia sido rubricado pelo demónio.

Ingeriu na circulação monetária da casa algumas notas falsas, e subtraiu as verdadeiras equivalentes. Saiu­se bem. Capitalizara um conto de réis. Animou­se a segunda empresa. Bafejou­lhe ainda o vento profícuo do inferno. À terceira fulminou­o a des­graça. As notas foram suspeitadas de falsas na mão dele, próprio apresentante. Prenderam­no na tesouraria da casa bancária. Revistaram­lhe o seu aposento. Encontraram outras, em maços separados das verdadeiras. Processaram­no, e julgaram­no com a severidade das leis, que punem severamente o crime.

Esta nova chegou a Luís Ferreira, quando Teresa esperava ansiosamente carta do paquete. O santo homem, quando leu as cartas dos seus amigos do Porto, a quem viera do Rio de Janeiro o aviso, perdeu os sentidos. Teresa, que assistira arquejante a este lance, lançou mão das cartas, e pediu aos filhos de Luís

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Ferreira que lhas lessem. O mais novo, sem atender ao alcance da sua imprudência, leu em voz alta uma que dizia:

«O seu afilhado, a esta hora, pode ser que já esteja morto. Aquilo no Brasil é sumário. Os moedeiros falsos vão ao gancho, como cá os nossos vão onde os honrados pobres não conseguem ir… etc.» 1

Teresa irrompeu em gritos, e escabujou vertiginosamente nos braços da mãe.

Tornado em si, Luís Ferreira repreendeu o filho por ter lido a carta. Disse palavras de evangélica, mas banal resignação a Teresa, e, no dia seguinte, veio ao Porto para informar­se do modo como havia de salvar o afilhado, restituindo o roubo, e ressalvando­o da sentença a dinheiro. Ninguém lhe soube dar semelhantes informações. Todos lhe diziam: «Se isso fosse cá em Portugal, arranjava­se bem.»

Luís Ferreira voltou para casa, resolvido a mandar ao Brasil o seu filho mais velho com poderes ilimitados para resgatar a dinheiro o criminoso. Alentou, com encarecidas esperanças, Teresa, que dava sustos à família. Os brados, as exclamações, as instâncias a Deus eram já uns excessos agoureiros de demên­cia. Aplacaram­na algum tanto as promessas confortadoras do velho. Dava­lhe ele um clarão de esperança, dizendo­lhe que, se o marido tivesse sido condenado à morte, o imperador lhe comutaria em prisão a sentença, e ela iria para junto do preso, até que Deus se apiedasse de ambos 2.

1 esta penalidade não está no código brasileiro. a lei de 3 de outubro de 1833, diz no artigo 8.º: «os fabricadores e introdutores de moeda falsa serão punidos pela primeira vez com a pena de galés para a ilha de Fernando, pelo duplo da pena de prisão que no código criminal está designado para cada um destes crimes.» (dois a oito anos é a pena do código alterada pela citada lei.)as reincidências são punidas com galés perpétuas.

2 luís Ferreira não sabia melhor que os informadores a jurisprudência criminal do Brasil. [Ambas estas notas foram postas pelo A. na 1.ª edição, e reproduzidas nas seguintes.]

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No imediato paquete veio a notícia da condenação do réu em dezasseis anos de galés para a ilha de Fernando.

Teresa também recebeu então carta do marido com estas breves linhas:

«Quando receberes esta carta, já a minha desgraça está acabada…»

A desgraçada, entendendo literalmente estas palavras, soltou um grito de alegria.

A carta continuava:

«Perdi­me por amor de ti; mas Deus sabe que não te culpo, nem tu podes ser culpada pelo mundo. Joguei uma carta, em que apostei a vida. Perdi: agora mato­me porque não posso assim viver, com uma corrente de ferro por dezesseis anos… por toda a vida! Pede ao Senhor que se compadeça da minha alma, e diz a teu padrinho que te dê um bocado de pão e outro ao nosso filho. Adeus, Teresa. Se não tivesses um filho, pedia­te que deixasses este mundo, onde eu não pude viver com honra. Teu marido Z.»

Às últimas expressões de quem lhe lia a carta, expediu também um grito; mas era um como arranco da razão que vasquejava nos paroxismos.

Enlouquecera, e louca esteve seis meses. No termo deste espaço de trevas, um raio de entendimento a visitou.

Este lampejo mostrou­lhe a eternidade, o céu talvez. Teresa arrancou­se das presas do seu horrente suplício, e voou no raio da luz, que a misericórdia do Senhor lhe enviara.

— E o filho? — perguntei.— Tinha­lhe morrido no ventre — respondeu o meu amigo,

e continuou:— Aqui tens o fim daquela carinhosa amiga dos seus no­

vilhos. Dava­se a perceber, naquele afeto, que o meigo coração

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de Teresa havia de espedaçar­se, quando se deixasse dobrar ao amor humano, amor que encerra e esconde catástrofes sem nome, e maldições sem número.

Está completo o livro?— Está. Acaba mal. Hei de ver se, à custa de uma piedosa

mentira, invento alguma peripécia, que espante o leitor, ou, pelo menos, o faça rir dos aleijões da minha fantasia.

— Não consinto que se minta em meu nome! — disse António Joaquim solenemente.

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Índice

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7 Nota prévia 11 introdução33 nota biobibliográfica

Vinte Horas de liteira

45 Introdução

49 I — Introdução à história da égua55 II — A égua que salva63 III — Maldito seja entre vós aquele que jogar73 IV — A Conteira87 V — História das janelas fechadas há 30 anos101 VI — A cruz do outeiro109VII — A gratidão117 VIII — Os tesouros do príncipe turco125 IX — O enjeitado139X — O ermitão151 XI — Amor paternal157 XII — História de um brilhante181 XIII — A minha história189XIV — Os percevejos de Baltar197 XV — Os Amores de Teresa205XVI — Amor de Freira

213 Conclusão 227 Epílogo

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DesignHenrique Cayattecom Susana Cruz

Fontes tipográficas

TítulosActa | Dino dos Santos | 2010 © DSTypeNeutraface | Richard Neutra / Christina Schwartz | 2007 © House IndustriesTextoMinion Pro | Robert Slimbach | 1990 © Adobe Fonts

PapelCoral Book Ivory 90 g

Impressão e acabamentoImprensa Nacional-Casa da Moeda

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Page 249: Vinte Horas de Liteira.indd 1 21-03-2019 16:31:29 · publicado em abril de 2019 depósito legal ... Horas de Leitura com o título «Do Porto a Braga». Na «Introdução», começa
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